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DE COMO É EXTIRPADO O SOFRIMENTO DO SENHOR MOCKINPOTT Peça em 11 quadros de Peter Weiss tradução de Camilo Schaden Personagens: Mockinpott Salame Mulher Carcereiro Concorrente Magistrado Patrão Advogado Médico O Bom Deus Funcionário Mordomo Dois anjos Duas enfermeiras Três figuras do governo 1º quadro – Na cadeia Um catre. Uma porta, com um postigo. Mockinpott no catre, a coberta até a altura do bigode. Seu nariz é pontudo e vermelho. As pontas da barba, penduradas, descansam sobre a bainha do cobertor. Um barulho alto na porta. Mockinpott se levanta, de susto. No postigo aparece um olho extraordinariamente grande. Mockinpott volta a se deitar. Logo ao mesmo tempo o ruído barulhento da chave na porta. Mockinpott se levanta outra vez, de susto. O carcereiro entra e fecha a porta atrás de si. O carcereiro é um homem grande, com o rosto coberto por barba. Ele traz uma chave laminada. CARCEREIRO tranquilo Vamos vamos levante levante eu te trago aqui a sopa no prato de metal cuspi nela como de costume vejo que o clima aqui está deprimente maldoso Mas agora sem coberta

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DE COMO É EXTIRPADO O SOFRIMENTO DO SENHOR MOCKINPOTT

Peça em 11 quadrosde Peter Weiss

tradução de Camilo Schaden

Personagens:MockinpottSalameMulherCarcereiroConcorrenteMagistradoPatrãoAdvogadoMédicoO Bom DeusFuncionárioMordomoDois anjosDuas enfermeirasTrês figuras do governo

1º quadro – Na cadeia

Um catre. Uma porta, com um postigo. Mockinpott no catre, a coberta até a altura do bigode. Seu nariz é pontudo e vermelho. As pontas da barba, penduradas, descansam sobre a bainha do cobertor. Um barulho alto na porta. Mockinpott se levanta, de susto. No postigo aparece um olho extraordinariamente grande. Mockinpott volta a se deitar. Logo ao mesmo tempo o ruído barulhento da chave na porta. Mockinpott se levanta outra vez, de susto. O carcereiro entra e fecha a porta atrás de si. O carcereiro é um homem grande, com o rosto coberto por barba. Ele traz uma chave laminada.

CARCEREIRO tranquiloVamos vamos levante levante eu te trago aquia sopa no prato de metalcuspi nela como de costumevejo que o clima aqui está deprimentemaldosoMas agora sem cobertaSenhor Mockinpott você está acordadoImediatamente vai ser feita a camaagora é dia e não é mais noiteMockinpott se dirige tonto para o cobertor. Está vestido com uma camisa e uma calça folgada demais. Só em um pé ele tem uma meia verde. Seu outro pé está preso numa corrente ancorada no chão.

MOCKINPOTTQue dia é hoje mesmo

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CARCEREIROSexta feira o dia inteiro

MOCKINPOTTNa sexta feira eu estou livre finalmente

CARCEREIROLá vem ele de novo com essa choradeira

MOCKINPOTT enquanto dobra o cobertor e o coloca sobre o catreMas será que não há justiçanunca cometi nenhuma maldadenunca arranjo briga com ninguémporque quero ficar em pazsempre me mantenho muito quietoporque quero evitar malentendidose aí a gente é simplesmente tirado da própria vidae sem mais nem menos jogado na cadeia

CARCEREIROÔ malandro cala essa boca agoravocê estar aqui tem algum motivoaqui nunca ninguém ficou presosem ter aprontado alguma

Mockinpott anda alguns passos, esquecendo a corrente no pé. Seu pé fica preso, ele tropeça e cai. Fica sentado no chão, toca a língua, que ele mordeu.

MOCKINPOTTHá muitos domingos segundas terças e quintas feiras1

estou aqui e só posso dizerque tudo isso vai longe demais isso não se fazme prender aqui ilegalmente

CARCEREIRO, que colocou a sopa sobre o catre, dirige-se à portaAcho que eu devia pegar a bengalinhae te surrar mais uma vez

MOCKINPOTT se levanta, recua alguns passos, arrastando a correnteMeu caro carcereiro olhe para mimeu fui e sou um homem honestoque nunca machucou nem roubou ninguémque vive com simplicidade e nada desperdiçaque lê o jornal e toma cafée nunca bebe bebida fortee não leva vantagem indevidaou desvia do caminho direito

1 No original: “Seit mehreren Sonn Mond Dienst und Donnerstagen” (Há muitos dias de Sol de Lua de Serviço e de Trovão). Sonntag = domingo (dia do sol); Montag = segunda feira (dia da lua); Dienstag = terça feira (dia de serviço); Mittwoch = quarta feira (meio da semana); Donnerstag = quinta feira (dia de trovão); Freitag = sexta feira (dia livre); Sonnabend = sábado (noite do sol, véspera do domingo).

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CARCEREIRO abrindo a portaA esse respeito eu ouvi coisas bem diferentesa paz e a ordem você perturbouvagueia à noite pelas ruase quando te enquadram você se faz de bobovai sair.

Mockinpott avança rapidamente, para conter o carcereiro. Ele esquece novamente a corrente, tropeça, consegue agarrar o carcereiro pelo ombro, quase cai, mas se segura firme no carcereiro. Este o repele bruscamente, com um soco.

MOCKINPOTTUm malentendido trata-se de outra pessoanunca ninguém me vê perambular pela noiteonde eu sou comedido e poupo as solas dos meus sapatose fico em casa com minha querida mulheró Senhor Carcereiro eu tenho alguma coisa no bancopor um advogado o senhor ganha um florim em agradecimento

CARCEREIROCinco florins

MOCKINPOTTDois

CARCEREIROQuatro

MOCKINPOTTTrês

CARCEREIRO de foraCinco florins

MOCKINPOTT choramingandoCinco florins das minhas ricas economiaspara me arranjarem um advogado

O carcereiro entra novamente, rápido. Entrega a Mockinpott um papel e uma caneta. Mockinpott assina, gemendo.

CARCEREIRO grita para foraSenhor advogado entreeu o deixo a sós com o cliente

O advogado aparece imediatamente. Usa uma roupa imponente, uma toga. Fala com sons torácicos, o dedo em riste. O carcereiro desaparece e fecha a porta atrás de si.

ADVOGADOAhã ahãque infeliz é esse que nós temos aqui

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ah mais um preso indevidamentee cheio das mais inexplicáveis acusaçõesah que mundo é esse que corrompe o bomeu vejo no senhor o senhor é um homem honradopor cinqüenta florins eu ponho a mão no fogo pelo senhor

MOCKINPOTTCinquenta florins isso é caro demaissenta-se na beira do catre, enterra o rosto nas mãos

ADVOGADO apressadamenteSomem-se mais cinquenta de resgatee o senhor vai ver o senhor estará livre num piscar de olhos

Mockinpott geme, as mãos na frente do rosto.

ADVOGADOO senhor sofre meu senhor como era mesmo o nomeMottimrock se eu bem me informei

Mockinpott ergue o olhar, esfrega as mãos

ADVOGADONome vai e nome vemO senhor vai entender é extraordinariamente difícilse envolver em um caso assim sem esperançasse o senhor também não está disposto a dar o senhor mesmo alguma coisaSim ou não eu não tenho muito tempoo senhor está disposto a pagar a quantia proposta

MOCKINPOTT se levantaSenhor advogado o que eu posso fazerse o senhor exige todas as minhas economiasHá anos eu me mato de trabalharaté que finalmente eu tenho ao todo cem florinse mais na carteira vinte florinsfora isso não tenho nenhum tipo de dívidasó o que eu tenho são queixas pessoaispelas quais devo ser indenizado

ADVOGADO lubrificadoPese logo e tome sua decisão O senhor meu senhor não tem como fazer exigências na sua situaçãoSacrifique-se e eu o libertoNão se sacrifique para mim tanto faz

Mockinpott deixa escapar um soluço seco. O advogado entrega um papel e uma caneta.

ADVOGADOCinquenta de honorários e cinquenta de fiançao senhor já está praticamente livre

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Mockinpott assina. O advogado guia sua mão. Enquanto assina, Mockinpott escorrega lentamente do catre para o chão. O advogado bate com força na porta, que logo é aberta. O carcereiro aparece e dá uma piscadela para o advogado. O advogado sai apressado pela porta.

MOCKINPOTT levantando-se de um salto, quer seguir o advogado, tropeça na corrente, caiSenhor Advogado Senhor Advogadoeu ainda nem lhe disse nada sobre o meu caso

ADVOGADO de foraIsso tudo eu posso deduzir dos papéisque naturalmente estão à minha disposição

MOCKINPOTTMas tudo está errado nos papéisSenhor Advogado nós vamos perder a parada

ADVOGADOSem preocupações senhor Koppimpottcom minha ajuda e com fé em Deusvai acontecer tudo o que estiver ao nosso alcancepara que o senhor veja a luz da liberdade

O carcereiro bate a porta do lado de fora e a tranca.

MOCKINPOTT sentado no chãoPor que sempre só comigo acontece esse tipo de coisaeu nunca posso fazer nadaquais são as causas se eu pudesse entendere conseguisse escapar da minha infelicidade

Aparecem dois anjos. Eles usam grandes asas brancas laminadas de metal, que batem umas nas outras. Mockinpott se levanta, sobressaltado, e olha para eles.

OS DOIS ANJOSMiserere Miserereque muito mais complicações lhe apareçamVede aqui vede nosso bom homemque seu sofrimento não consegue entenderMiserere Miserereque ele não escape de nenhuma outra desgraça

Mockinpott de joelhos, enquanto os anjos desaparecem, batendo as asas. Barulho estrondoso da chave na porta. A porta se abre. O carcereiro, o advogado e o magistrado entram. O carcereiro traz uma pilha de roupas sobre o braço, o magistrado traz uma caderneta na mão.

MAGISTRADOSenhor Messiê Mockipott é o referidoacusado aqui presente diante de nós

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MOCKINPOTT se levantouEle mesmo mas eu não fiz nadaque me trouxesse até aqui justamente

MAGISTRADOEntão o senhor espera aqui pacientementee é completamente inocente

MOCKINPOTTIsso mesmo senhor meretríssimo exatamente issome separaram da minhaqueridamulher

MAGISTRADOE desde então o senhor está aqui parasitandofeliz e contente às custas do Estado

Mockinpott abre a boca, mas não sai nenhuma palavra.

MAGISTRADO lendo a cadernetaSomem-se às suas demais dívidaspela sua estada aqui mais quinze florins

Mockinpott cai de novo de joelhos, procura palavras, não encontra nenhuma.

ADVOGADO muito rápidoUma vez que o referido senhor Knoppimrock me contratouresultou dos nossos ininterruptos e persistentes esforçosque nós após prestação de contas obtivemos da mais alta instânciaa garantia de que o supracitado de agora em diante possausufruir plenamente da sua liberdade e imediatamenteapós o pagamento das dívidas se afastar deste local

O carcereiro amarra com grande agilidade um laço lilás no colarinho de Mockinpott e o veste com a jaqueta larga demais que trouxe. Puxa-o para cima do catre e abre o grilhão do seu pé. Coloca dois grandes coturnos pretos ao seu lado. Mockinpott não percebe as botas e fica sentado no catre. O carcereiro puxa um relógio de bolso inacreditavelmente grande e lhe dá corda. O mecanismo do relógio faz barulho, depois as molas arrebentam com um estrondo. O carcereiro segura o relógio junto do ouvido, chacoalha-o, ouve-se o som de peças soltas dentro do relógio. O carcereiro coloca o relógio no bolso da calça de Mockinpott.O magistrado faz surgir com o movimento de um prestidigitador uma grande carteira, abre-a com um gesto ágil, tira com um gesto afetado das mãos e dedos quatro notas, oferece, com um largo balançar do braço, uma nota ao carcereiro, guarda as outras três, com elegância, no seu próprio bolso, olha mais uma vez dentro da carteira, vira-a de ponta cabeça, entrega-a então vazia a Mockinpott, segura já uma caneta e uma caderneta, leva a mão de Mockinpott a assinar, vira-se e vai em direção à porta. Mockinpott está parado em pé, perplexo, vai então até a porta, esquece as botas, puxa o pé como se ainda estivesse preso pela corrente. Magistrado e advogado deixam a cela apressadamente. Mockinpott quer segui-los. O carcereiro passa uma rasteira em Mockinpott, que tropeça e voa num arco alto para fora da porta.

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2º quadro – Ao ar livre

Mockinpott se levanta, esbate suas roupas. Fica ali em pé com sua única meia verde, vira-se cuidadosamente para lá e para cá, então experimenta realizar um movimento com a mão direita, como se balançasse uma bengala de passeio. Gira a bengala invisível algumas vezes, para então apoiar-se nela. Por um segundo ele se apoia na bengala, então perde o equilíbrio. Olha em volta, assombrado.

MOCKINPOTTMinha bengala de passeio aonde foi parar minha bengala de passeioah eles a deixaram ainda na cadeia

Uma bengala de passeio vem voando até ele pelo palco vazio. Ele a levanta, gira-a pelo cabo com o mesmo movimento de antes, vai se apoiar nela, mas ela está rachada embaixo e não dá apoio. Mockinpott cai, logo levanta novamente e observa a bengala.Salame entra durante a cena da bengala. Ele tem um barrigão e usa um chapéu surrado. Parece feliz, a princípio nem percebe Mockinpott, senta-se rapidamente com as pernas cruzadas, desata um grande lenço xadrez do qual tira sua comida: um pedaço de pão, a ponta de um salsichão e uma garrafa de vinho quase vazia.

MOCKINPOTT olhando alternadamente para Salame e para sua bengalaPermita-me apresentar-me meu nome é MockinpottVeja por exemplo essa bengalaé uma herança talhada por um mestre fidalgo

SALAME cortando o pão e o salsichão com um grande canivete em pequenos cubinhosO quenão tem um puto e está fudido e mal pago

MOCKINPOTTEra o meu orgulho e meu sustento

SALAME mastigandoO quetua cabeça é oca e cheia de vento

MOCKINPOTTMeu senhor se o senhor soubesse o que me tem sucedido

SALAMEO quequer se exibir mas tem os pés encardidosabre com desejo a garrafa de vinho e vai dispondo, com gestos exageradamente afetados dos dedos, os pedacinhos de salsichão sobre os pedaços de pão.

MOCKINPOTT olhando para seus pésMeus sapatos aonde foram parar meus sapatosah eles também ainda estão na cadeia

As botas vêm voando até ele no palco. Ele as ergue, observa-as, tenta calçá-las em pé, uma depois da outra, perde o equilíbrio, senta-se, ergue o pé direito para calçar a bota

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direita, decide-se no entanto a colocar primeiro a bota esquerda no pé esquerdo. Tira o pé esquerdo da bota, troca as botas ao colocá-las no chão e então tenta colocar a bota direita no pé esquerdo, a bota esquerda no pé direito. Durante a cena do sapato, Salame faz sua refeição. Ele come o pão e o salsichão como se fosse um banquete. Leva a garrafa à boca como se contivesse vinho caro.

MOCKINPOTT olha Salame comer e se confunde ainda mais no calçar das botas.Quando eu olho assim para o senhor meu caro senhorfica tão difícil calçar as minhas botaseu me pergunto por que primeiro o esquerdoe depois seguir mancando com o direitose começo com o direitoo esquerdo me olha de um jeito tão estranhoaí eu quero escolher o certotento então por eliminaçãomas aí está novamente o problemaqual eliminar primeiro

SALAME sérioSim sim também ao andar sempre é muito difícil dizerquando devemos passar com o pé direito pelo esquerdoe com o esquerdo pelo direitotoma um gole da garrafa, arrota

MOCKINPOTT primeiro admirado, depois alegreNão é mesmo meu senhor não é mesmo ah finalmente um homemcom o qual se pode conversar seriamenteVeja meu senhor eu tenho passado maus bocadosuma grande injustiça foi cometida contra mim

SALAMEQue bicho te mordeu

MOCKINPOTT amarrando um no outro os cadarços das botas, que se emaranharamVou eu andando à luz do sol e entro numa ruachegam os guardasgritam esse é o nosso homemjá me seguram firme pela roupaeu digo meu nome é Mockinpotto nome dizem eles não vem ao casoo que é que eu estou fazendo aqui na ruaComo de costume estou a caminhodo jornaleiro que fica ali na esquinadigo e lá em cima onde eu morominha mulher espera para o café como sempreEles dizem isso tudo vai se esclarecerquando visualizarmos as circunstânciase no seu café e na sua putinhavocê vai poder pensar lá na cadeiaÉ isso eu pergunto o que se entende por justiçaquando se sai assim a passeio num dia de sol

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levanta-se, vê-se que ele amarrou os cadarços das botas um no outro, ele tropeça e cai.

Salame, nesse ínterim, terminou sua refeição. Ele limpa a boca com uma ponta do lenço, depois mais uma vez com as costas da mão, dobra o lenço bem limpo e o guarda, assim como a garrafa vazia, no bolso da calça. Com um salto acrobático ele vai às alturas, pula mais algumas vezes na meia ponta e olha para Mockinpott, que agora desata novamente os cadarços e amarra cada bota separadamente, a bota esquerda no pé direito, a direita no pé esquerdo.

SALAMESim sim você é daqueles eu vejo em vocêque não aguenta ficar em casa com a sua mulherque não fica num emprego fixomas que prefere vadiar pelas ruas

MOCKINPOTT levantando-seMeu senhor o senhor muito me decepcionae me dificulta a comunicaçãopor favor pense na minha situaçãoe no que eu lhe disse

SALAMEVocê disse alguma coisa? eu já esquecieu não gosto que me incomodem durante as refeiçõese agora eu me vou eu estou com uma sedea gente se vê meu nome é Salamesai

MOCKINPOTT tristeE eu já estava achando que tinha encontrado um amigopara as iminentes horas difíceisah nunca confie num estranhosó me resta ainda minha querida mulherpõe-se em movimento, atrapalhado pelas botas trocadas.

3º quadro – Em casa

Uma cama. Um armário avulso, no qual está encostada uma vassoura. A mulher está sentada na cama, de camisola, e penteia os cabelos lisos. A coberta sobre as suas pernas está toda embolada. Na parte de baixo da cama, saindo da coberta, veem-se dois grandes pés sujos. Estão a tal distância da mulher que poderiam ser seus pés. Á entrada de Mockinpott a mulher ajeita a coberta.

MOCKINPOTT reclamandoAh querida mulher dia e noitepensei em você lá onde eu estavae só pensar em seu rosto e em seus cabelosme manteve vivo lá onde eu estava

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MULHER venenosaQue jeito de sumire eu tenho que me matar aqui sozinha

MOCKINPOTTVocê nem pergunta o que me aconteceuagora que finalmente nos vemos de novo

Mockinpott se senta na beira da cama. A mulher se afasta dele. Lá embaixo no fim da cama os pés se esfregam um no outro.

MOCKINPOTTVocê não quer mesmo sabertudo que eu tive de aguentar

A mulher não responde. Continua penteando os cabelos. De baixo da coberta vem um espirro meio abafado, acompanhado de um movimento brusco. Para disfarçar a mulher também espirra, bate na coberta, espirra mais uma vez.Mockinpott pega seu lenço, assoa o nariz da mulher e acaricia seus cabelos.

MOCKINPOTTQuebraram minha bengala nas minhas costase me tiraram tudo o que eu trazia comigoeu não entendi com qual objetivomas todas as economias elas agora se foram

MULHER repelindo-oPrimeiro sumiu e gastou todo o meu doteaí chega se esparramando é bem a sua caracomigo não isso eu te digoeu quero que as coisas mudembate na coberta, uma tossida sob a coberta, a mulher tosse junto.

MOCKINPOTTEssa injustiça no mundoeu gostaria de saber como tudo isso se dáeu vou para o trabalho e cumpro minha obrigaçãomaiores pretensões eu não tenhopago em dia os impostos e o aluguel de casae aí se vai parar no meio da desgraça

Os pés no fim da cama se esfregam um no outro.

MULHERAh se às vezes aparecessem uns que não me enganassemmas que fizessem algo por mim e pelo meu bem

Tosse embaixo da coberta. Imediatamente a mulher também começa a tossir. Ela empurra Mockinpott da cama e se levanta. Sua camisola chega até o chão, não se veem seus pés. No fim da cama ficam visíveis os outros pés saindo da coberta.

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MOCKINPOTT olhando os pésVocê por acaso perdeu seus pés

MULHER olhando os pés, pegando neles rapidamenteOs pés eles congelaram e caíram

Ela começa a pular, vai pulando até a vassoura, pega a vassoura, pula pelo espaço apoiada na vassoura e varre o chão. Ela vai pulando até o fim da cama e cobre os pés com a coberta. Na ponta de cima da coberta o concorrente põe para fora sua cara barbuda. Mockinpott lhe dá as costas nesse momento. Quando Mockinpott se vira de volta a cabeça desapareceu novamente sob a coberta.

MULHER enquanto issoPorque as meias elas estavam muito carase eu não tinha fogo na estufaa culpa é sua já que você foi emborae me deixou sem nada aqui na lamamas eu te digo que isso acabouvocê não tem mais o que procurar nessa casaergue ameaçadora a vassoura.

O concorrente põe novamente sua cabeça para fora da coberta.Novamente Mockinpott está virado para outro lado, e quando se volta, o concorrente puxou a cabeça de volta para dentro.

MOCKINPOTTMas onde você mora eu também moroé assim que é entre casais

MULHERIsso não se pode mais chamar de casamentode onde você vai embora dormir em outro lugar

Nesse ínterim o concorrente saiu discretamente da cama. Está usando uma camisa curta. Anda na ponta dos pés, puxando a barra da camisa para baixo. Com a cara barbuda virada para Mockinpott, vai orgulhosamente em direção ao armário. Mockinpott está em pé, de costas para ele, até que o concorrente alcança o armário. Mockinpott se vira justamente quando o concorrente desapareceu atrás do armário.

MOCKINPOTTTudo isso me parece tão estranhonão confio no meu olho nem no meu próprio ouvidovai na ponta dos pés, atrapalhado pelas botas trocadas, em direção ao armárioMas o que é que há com esse quartome parece que não está como sempre foi

A mulher vai dando grandes pulos até o armário. Quando ele vai olhar atrás do armário, esgueira-se o concorrente para a frente do armário, dando a volta. Mockinpott vai devagar para trás do armário, o concorrente anda devagar na frente. Mockinpott desapareceu atrás do armário, o concorrente vai se espremendo ao longo

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do armário. Mockinpott aparece outra vez, o concorrente desaparece. Mockinpott vai até a cama.A mulher aterrissou na cama com um grande salto. Ela se cobre e estica os pés para fora da coberta no fim da cama. Mockinpott se inclina sobre ela e quer erguer a coberta.

MULHERAh isso é bem a sua cara mesmoacha que eu ia te deixar chegar em mimmas parei com os sentimentosisso é o que eu te digo

O concorrente solta um rosnado atrás do armário.

MOCKINPOTT se assusta e cai de joelhos diante da camaO que é que acontece nesse quartoeu estou aqui agora com você como sempree o armário está naquele canto como sempree por anos eu vi essa cama

O concorrente rosna atrás do armário.

MULHER fazendo estranhas caretas, abrindo os braços e balançando como um fantasmaVocê nunca esteve aqui e eu não te conheçoquem é você seu desgraçadocuidado eu tenho um cachorrãoque vai te mandar goela adentro

O concorrente rosna alto.

MOCKINPOTT tremendoComo eu estou eu estou com medoah eu não aguento mais isso

Os dois anjos aparecem batendo as asas.

OS DOIS ANJOSMiserere Miserereque até o fundo tudo lhe seja devastadoVede aqui vede nosso bom homemque seu sofrimento não consegue entenderMiserere Miserereque sua desgraça o consuma por completo

Os dois anjos desaparecem batendo as asas.

MOCKINPOTT se afastando da cama ajoelhado e de costasPor que você não me reconhece maise não me chama mais pelos nomes de sempreo que foi que eu fiz por que você me manda embora

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é meu próprio quarto e minha própria camaah se você soubesse o que está perdendoe o que acaba de perder para sempre

A mulher e o concorrente dão um rosnado horrendo. Mockinpott se afasta choramingando, arrastando-se de costas.

4º quadro – Diante do patrão

O patrão diante de uma estante, com papéis e canetas tinteiro. Um funcionário passa carregando uma caixa. Mockinpott entra. Tira seu relógio do bolso, encosta-o no ouvido, chacoalha-o, as peças soltas dentro dele fazem barulho. Ele guarda o relógio no bolso novamente. Vai em direção ao patrão, faz uma reverência. O patrão não ergue o olhar.

MOCKINPOTTMuito bom dia senhor chefe eu estou de voltase o senhor soubesse tudo o que me aconteceume prenderam sem motivoeu nem sou ladrão nem vagabundoeu disse que eu tinha um trabalhodepois não me arrisquei a dizer mais nadaporque era só eu abrir a bocaeles me batiam até fazer barulho

PATRÃO ergue o olhar.Meu senhor eu não entendo isso aí que o senhor está dizendoeu não me lembro de tê-lo visto antespara mim tanto faz o que o senhor aprontoumas se o senhor vem aqui mendigarentão o senhor veio ao lugar erradonão damos nada ponha-se na rua

MOCKINPOTT tira do bolso um papel amarrotado.Senhor chefe aqui o senhor pode ler meu nomeeu fui um funcionário do senhoreu entrava e saía por essa portadia entrava dia saía eu trabalhava aqui

PATRÃO sem olhar o papel que Mockinpott lhe estende.Isso deve fazer muito tempoNão entendo como o senhor ainda pode estar empregadoQuem simplesmente deixa o local de trabalhosem justificativa ou atestado médicoé naturalmente também considerado desligado de seu vínculo empregatícioe aí meu senhor suas queixas não ajudam em nadavolta-se novamente aos seus papéis

O funcionário passa novamente com uma caixa.

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MOCKINPOTT chamando-oEi você você não pode dizer ao chefeque eu também carreguei caixas aqui com vocêse que eu nunca fiz nada erradomas que sempre calculei cada carregamento com exatidão

PATRÃONão atrapalhe o homem no seu ritmo de trabalhosenão é descontada uma parte do salário dele conforme consta do contrato

MOCKINPOTTPor favor senhor chefe eu não pude fazer nadaquanto a ficar lá sentado atrás de uma porta trancadanão tive como lhe dar notíciaporque ninguém quis se ocupar do meu caso

PATRÃOO senhor ainda está aqui isso vai longe demaisnão tenho tempo para algo assim

MOCKINPOTTSenhor chefe é só eu recomeçare aí eu vou trabalhar por dois

PATRÃO Para as caixas não precisamos de mais que ume da sua laia não precisamos de nenhum

MOCKINPOTTO senhor vai simplesmente me por na rua

PATRÃOPor acaso o senhor veio aqui agitar minha gente

MOCKINPOTTMas eu não quero nada além do meu direito

PATRÃOSuma daqui o senhor não entende o que eu faloO funcionário volta, com uma caixa.O patrão se dirige a ele.Homem pegue esse aí pela golaO senhor tem a função de colocá-lo para fora

O funcionário põe a caixa no chão. Ele dá um passo na direção de Mockinpott.Mockinpott recua.

MOCKINPOTTEu já vou eu já vou sozinho

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5º quadro – Ao ar livreUm banco e uma pequena mesa redonda. Mockinpott está sentado no banco, debruçado sobre a mesa, o rosto deitado entre os braços. Entra Salame, feliz, toma um gole da sua garrafa, novamente um terço cheia. Mockinpott ergue a cabeça, mal percebe Salame, fala mais consigo mesmo.

MOCKINPOTTAh a injustiça que me fizeram

SALAMEQual justiça que te infizeram

MOCKINPOTTNão estou bem não estou bem

SALAMEBem feito bem feito

MOCKINPOTT soluçando convulsivamenteAchei que com a minha mulher eu finalmente teria sossegoe ela vem com a vassoura para cima de mimme põe para fora de casae fica sozinha na cama

SALAMETem certeza de que ela estava sozinha

MOCKINPOTTEla estava deitada sozinha com suas duas pernasah ela as tinha perdidodela ficar sozinha congelaram e caíram

SALAMEE o que havia lá além dos pésvocê naturalmente não olhou

MOCKINPOTT se endireita, perturbado.Ah minha mulher nunca me mentirianunca ela me trairia com nenhum outro

Salame senta-se ao seu lado no banco. Ele oferece a garrafa a Mockinpott. Mockinpott não nota a garrafa, então Salame toma um gole ele mesmo.

MOCKINPOTTOu o senhor acha que havia alguém láonde eu não vi mais ninguémenterra o rosto nas mãos e choraAh as belas horas no meu próprio larà noite depois do trabalho à luz do abajuronde eu sempre me sentava na poltronae lia o jornal para minha mulher

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SALAMENa poltrona onde agora outro está sentadopor isso a poltrona não te serve de muita coisa

MOCKINPOTT se endireita.E o meu trabalho onde eu passava o dia inteiroe por isso recebia todo mês dinheiro vivome puseram para fora sem pensare simplesmente deram meu trabalho para outro

SALAMEO que é que você fazia no trabalhoalém de ficar de um lado para o outro e descansar

MOCKINPOTT ofendidoEu tinha afazeres muito Importantes com caixaseu tirava o que havia nelas seguindo listase conferia nas listase riscava das listas depois de guardar nas caixasMeu senhor esse era o conteúdo da minha vidae por ele eu me sacrifiquei em vão

SALAMESe agora um outro está lá então é claroque não era o seu trabalho

Mockinpott desaba soluçando por cima da mesa, acomodando a cabeça nos braços. A mesa arrebenta embaixo dele. Mockinpott cai no chão. Salame fica sentado no banco, toma um gole da garrafa.

SALAMEPor que você se deita no chãoé muito mais confortável ficar sentado aqui em cimaainda por cima destruir propriedade alheiacom certeza vão te trazer a conta

MOCKINPOTT fica deitado.Eu não posso pagar mais nada eu não tenho nada no bancoah eu não posso mais ah eu estou doente

SALAME arrolha a garrafa, levanta-se.Então vamos já a um médicovocê deita na mesa2 e esperaaté ele te abrircom ele fica bem rápido e indolore depois de poucos segundosele descobriu toda a sua doença

2 No original: „du legst dich auf den Tisch und wartst“. Trata-se da cama do consultório – em alemão, Tisch (mesa) – na qual ele vai se deitar, como na mesa que acabou de arrebentar.

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Mockinpott se encrispa, esconde a cabeça sob os braços. Salame puxa-o para cima. Mockinpott se defende, se debate. Salame puxa o braço de Mockinpott sobre seus ombros e leva Mockinpott nas costas.

SALAMEEle corta fora tudo que está podree você fica bom na horaSalame caminha, com Mockinpott nas costas. Os dois anjos aparecem batendo as asas.

OS DOIS ANJOSMiserere Miserereque seu caso possa alimentar a ciênciaAh vede aqui vede nosso bom homemque seu sofrimento ainda não consegue entenderMiserere Miserereque ele renda louros à pesquisa

Os anjos desaparecem batendo as asas. Salame e Mockinpott saem.

6º quadro – No médico

Uma cama de consultório. Na parede um jaleco branco e uma prateleira com instrumentos, recipientes, frascos em enormes dimensões. Salame entra com Mockinpott nas costas. Ao mesmo tempo entra o médico, de jaleco branco. Seguem-no duas enfermeiras em jalecos brancos. Salame coloca Mockinpott sobre a cama.As duas enfermeiras deitam Mockinpott corretamente. Salame esconde-se atrás delas, esgueira-se rápido até a parede e veste o jaleco branco. O médico enquanto isso caminha em volta da cama, a mão no queixo.Salame abre o laço atrás do jaleco da enfermeira 1, que está inclinada por sobre a cama, e esconde-se atrás da enfermeira 2. A enfermeira 1, achando que a enfermeira 2 abriu seu laço, dá um tapa na enfermeira 2. A enfermeira 2 bate de volta.

MÉDICO durante a cena dos tapasAhã ahãque infeliz é esse que nós temos aquiah novamente um tipo acabado e famintoe enlouquecido pelas mais inexplicáveis doençasah que mundo é esseque degenera o são

O médico fica parado diante de Mockinpott, levanta a mão esquerda, estala os dedos. A enfermeira 2 lhe entrega um martelo da prateleira.Salame abre o laço do jaleco da enfermeira 2, dá um passo para o lado e fica ali, inocente. Depois de entregar o martelo ao médico, a enfermeira 2 dá um tapa na enfermeira 1. A enfermeira 1 bate de volta. Tudo acontece com grande rapidez.O médico mira com o martelo na cabeça de Mockinpott, mas não bate, continua mirando pelo seu corpo, até chegar ao joelho. Bate com o martelo no joelho de Mockinpott, a perna levanta alto, atinge o médico, o médico cai e leva ao cair as duas enfermeiras consigo.Salame pega um estetoscópio e ausculta Mockinpott dos pés até o peito.

Page 18: DE COMO É EXTIRPADO O SOFRIMENTO DO SENHOR MOCKINPOTT

MÉDICOO senhor escuta alguma coisa senhor colega

SALAMEOuço um zumbido se eu não me engano

MÉDICOO senhor acha esse barulho preocupante

SALAMEO melhor é irmos direto para a operação

MOCKINPOTT sobressaltadoÓ não senhor professor por favor sem me cortareu lhe peço não há outra alternativa

MÉDICOPonha a língua para fora

O médico estala os dedos, a enfermeira 1 lhe entrega uma lanterna, ele ilumina dentro da boca de Mockinpott. Salame se inclina por sobre a boca de Mockinpott.

SALAME num calafrio exageradoO que se vê aí dentro é um horror

MÉDICODiga A

MOCKINPOTTI

MÉDICOEu disse A

MOCKINPOTTO

MÉDICOA

MOCKINPOTTU

MÉDICOO senhor não sabe dizer A

MOCKINPOTT com esforçoSenhor professor doutor se eu realmente precisassee também soubesse a razão para talentão com certeza eu diriae responderia a todas as perguntas

Page 19: DE COMO É EXTIRPADO O SOFRIMENTO DO SENHOR MOCKINPOTT

O médico e Salame se inclinam mais ainda sobre Mockinpott.

MÉDICOSenhor colega ele tem saburra na língua

SALAMENão consigo ver porque ele fica se mexendo

MÉDICO estalando os dedosQueiram por favor segurara boca deste senhor aberta dos dois lados

As enfermeiras seguram a boca de Mockinpott aberta, uma à direita e outra à esquerda.

MOCKINPOTT gemendoAhhh

Salame se inclina ainda mais sobre a boca aberta de Mockinpott.

MÉDICOO que o senhor vê senhor colega o paciente ainda vive

SALAMEPelo que eu vejo ele tem um buraco atrás

O médico agita as mãos diante dos olhos de Mockinpott.

MÉDICOO paciente ainda reage com o olhar

SALAMEEnfermeira erga a cabeça do paciente

A enfermeira 1 endireita a cabeça de Mockinpott, a enfermeira 2 vem com um maço de placas quadradas e se coloca diante do fim da cama.

MÉDICODiga-nos agora que desenhoo senhor vê respectivamente em cada placa

A enfermeira 2 levanta o primeiro desenho.

MOCKINPOTT com esforçoLua

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MÉDICO muito rápidoSol

A enfermeira 2 levanta o segundo desenho.

MOCKINPOTTTorre

MÉDICOBarril

A enfermeira 2 levanta o terceiro desenho.

MOCKINPOTTPássaro

MÉDICOPeixe

A enfermeira 2 levanta o quarto desenho.

MOCKINPOTTCasa

Page 21: DE COMO É EXTIRPADO O SOFRIMENTO DO SENHOR MOCKINPOTT

MÉDICOMesa

A enfermeira 2 levanta o quinto desenho.

MOCKINPOTTVerme

MÉDICOBengala

A enfermeira 2 levanta o sexto desenho.

MOCKINPOTTGuardachuva

MÉDICOSaia

A enfermeira 2 levanta o sétimo desenho.

Page 22: DE COMO É EXTIRPADO O SOFRIMENTO DO SENHOR MOCKINPOTT

MOCKINPOTTFechadura

MÉDICOÁrvore

A enfermeira 2 levanta o oitavo desenho.

MOCKINPOTTPalitos de dente

MÉDICOCerca

A enfermeira 2 levanta novamente o primeiro desenho.

MOCKINPOTT gentilSol

SALAME gritandoLua

Page 23: DE COMO É EXTIRPADO O SOFRIMENTO DO SENHOR MOCKINPOTT

MÉDICO didaticamentePercepção turva ele inverte o que vê

SALAMEEu diria delírio

MOCKINPOTT aturdidoMas é que tudo está de fato virado do avessocomo fazer todo mundo entenderah tudo está misturado na minha cabeça como em uma sopa

A enfermeira 1 larga a cabeça de Mockinpott. A cabeça cai estrondosamente sobre a cama. Mockinpott chora.

MÉDICOSenhor colega de acordo com nossos conhecimentos médicosexaminemos esse vaso precioso

O médico estala os dedos. A enfermeira 1 lhe entrega uma grande chave. Ele vira a chave, com grande ruído, na cabeça de Mockinpott e abre uma tampa na cabeça de Mockinpott. Ele se debruça sobre ela, ao mesmo tempo que Salame. Suas cabeças se chocam e voltam.

MÉDICOPerdão o senhor viu alguma coisa senhor colega

SALAMEPerdão não havia algo obstruindo

Salame olha dentro do crânio aberto de Mockinpott. Ele ergue a mão e estala os dedos. A enfermeira 2 lhe entrega uma grande colher. Ele mexe dentro do crânio de Mockinpott.Mockinpott gargalha e sacode as pernas.As enfermeiras seguram firme as suas pernas.

MÉDICO entusiasmadoVejam esse cérebro ah que maravilhae imaginem só com quanta besteiraele se enche ao longo da vidaAqui está diante de nós completamente revelado

Salame ergue a mão e estala os dedos. A enfermeira 1 lhe entrega um recipiente em forma de saleiro. Ele sacode o recipiente sobre a cabeça de Mockinpott, devolve o recipiente, a enfermeira o pega e lhe dá um frasco vermelho. Ele derrama um pouco do conteúdo da garrafa na cabeça de Mockinpott, devolve o frasco e recebe um saco. Ele despeja algo do conteúdo do saco na cabeça de Mockinpott, devolve o saco e recebe um recipiente em forma de uma lata de pimenta, derrama também um pouco do seu conteúdo e o devolve. Tudo acontece com grande rapidez.

Page 24: DE COMO É EXTIRPADO O SOFRIMENTO DO SENHOR MOCKINPOTT

MÉDICO durante os malabarismos de SalameVejam esse cérebro que funciona como novoquando tratado por mãos experientesNão há algo de missão divinaem como dominamos com perfeição o nosso ofício

Salame fecha a tampa do crânio de Mockinpott com grande ruído. Endireita-se, esfrega as mãos.O médico encosta o ouvido no peito de Mockinpott. Salame encosta o ouvido na barriga de Mockinpott.

MÉDICOO senhor ouve o coração senhor colega

SALAMEOuço rosnar se eu não me engano

Salame enfia a mão por baixo da camisa de Mockinpott. Mockinpott gargalha e se debate. A enfermeira 1 segura firme os seus braços, a enfermeira 2 se joga sobre suas pernas. Também o médico apalpa Mockinpott. Mockinpott irrompe num riso muito ruidoso. Salame vira Mockinpott de lado e enfia a mão atrás na calça de Mockinpott. Ele tira um grande coração. Segura-o no alto, sacode-o, ouve-se o barulho de coisas soltas dentro dele3.

MÉDICO encantadoVejam esse coração ah que tesouro

SALAMESó que infelizmente estava no lugar errado

Salame estala os dedos e a enfermeira 1 lhe entrega imediatamente os recipientes como antes, dos quais ele derrama algo sobre o coração.

MÉDICO durante os malabarismos de SalameMas é sempre interessante observar comocom o manuseio correto da anatomiacada parte volta à vidae se põe em movimento com nova força e resistência

Salame guarda o coração lá no fundo, dentro da camisa de Mockinpott. Mockinpott gargalha.

MÉDICOSenhor colega com isso concluímos nosso trabalho

SALAME reverenteE o que tem remédio remediado está

7º quadro – Ao ar livre

3 No original: „es klappert darin“. Mesma expressão usada para o sacudir de peças soltas dentro do relógio.

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Entram Salame e Mockinpott. Mockinpott gargalha. Ele perde de vez em quando o controle dos braços e pernas.

MOCKINPOTTAh senhor Salame é bem típico de mimque sofrimento é esse agora outra vezele se coça, bate com os braços em torno de si.

SALAME didaticamenteAcabamos de ouvir da boca do médicoapós exames aprofundados o diagnósticodeclarado com conhecimento de causa e segundo o qualnão se identifica mais nenhum sintomaportanto você foi considerado plenamente saudávele tudo está certo e nada está trocado

MOCKINPOTT gargalhando de vez em quandoE aí o resultado disso seriaprimeiro que me prendam à luz do diasegundo que me tenham tirado meu dinheirosem que eu tivesse ganhado nada com issoterceiro que minha querida mulher cague em mimquarto que me expulsem do trabalhoAh seria tão bom chorarmas só me vem toda vez essa risadacoça-se, sacode-se, explode em risos, depois para em pé, atordoado

SALAME soleneO que você tem só sabem os sábiosvocê está na trilha dos enigmas do mundodá para ver pela sua expressão espiritualizadaque você está bem perto da solução

Mockinpott está parado com a boca aberta e os olhos grandes. Ergue o indicador como se fosse dizer algo que acabou de perceber. Os dois anjos aparecem batendo as asas.

OS DOIS ANJOSMiserere Miserereque ele seja purificado de todas as doresVede aqui vede nosso bom homemque talvez logo seja capaz de entender seu sofrimentoMiserere Miserereque lhe seja concedida uma iluminaçãoOs anjos desaparecem batendo as asas.

MOCKINPOTTSim sim agora eu sei eu entendieu sempre soube que um diadetém-se e fica de boca abertaNão não é possível é uma praga

Page 26: DE COMO É EXTIRPADO O SOFRIMENTO DO SENHOR MOCKINPOTT

ah que alguém me diga logo a solução

SALAMESabe de uma coisa

MOCKINPOTTNão

SALAMEEu tenho uma ideia

MOCKINPOTTTem

SALAMEVamos até o governo aqui pertopois quanto a esses senhoreseles devem saber é função deles

MOCKINPOTTE você acha que eles tem tempo para nóstão altas personalidades

SALAMESe não tiverem então erraram de profissãoafinal nós mesmos os elegemoseles precisam contar com a gentee para isso precisam da nossa confiançavocê vai ver eles tem para cada perguntaalgo significativo a dizerSaem os dois.

8º quadro – No governo

Atrás de uma mesa elevada estão sentadas três figuras com cabeças extraordinariamente grandes. A figura 1 coça a cabeça, a figura 2 cutuca o nariz, a figura 3 está com os pés sobre a mesa. Mockinpott e Salame entram. Mockinpott faz uma profunda reverência. Salame põe as mãos nas cadeiras e se estica para trás.

SALAMEMeu amigo aqui um tal senhor Mockinpottgostaria que uma cabeça honrada e esclarecidalhe dissesse algo útil e digno de reflexãosobre sua própria e difícil situação

FIGURA 1 passando a mão no rosto, virado para a figura 2Me parece me parece que agora o tempomelhorou novamente e está bem mais agradável

MOCKINPOTT para a figura 1

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Por exemplo eu gostaria de lhe perguntar o seguinteeu costumava andar com uma bengala de passeiovieram dois guardasme tiraram a bengala de passeioquebraram a bengala nas minhas costasisso é justiça o senhor pode me dizer

Enquanto isso, Salame ergue os braços no alto e faz alongamentos de ginástica.

FIGURA 1 virado para a figura 3Quem é atualmente o melhor alfaiatepara a confecção de novas roupas

FIGURA 2 muito depressaEsse tipo de revolta que se mostra diante dos nossos olhosos guardas devem sufocar sem piedadealegra-nos especialmente que os senhores nos digamcomo eles estão protegendo o país de perigos

FIGURA 3 imediatamente em seguidaNão podemos afirmar com ênfase suficientequão errado seria poupar alguémque vem nos incomodar onde nós moramos

MOCKINPOTT para a figura 3Ou talvez o senhor possa me responderpassei cerca de metade da minha vidacom a minha senhora na mesma camae de um dia para o outro ela me manda emboraagora eu pergunto não haveria para issoalgum remédio certeiro

Salame enquanto isso faz alguns agachamentos.

FIGURA 1 virado para a figura 3Ah me diga meu caro primoo ganso anterior não era bem mais gordo

FIGURA 2 muito depressaAlegra-nos ver comprovado pelo senhoro que de inúmeras outras partes também ficamos sabendoque há forças que nos sustentamem nossos esforços para proteger os bons costumesde modo que se cultive o germe sãopara obter a perpetuação da família e do lar

FIGURA 3 num mecânico staccatoUnidos no melhor acordoestamos como sempre firmemente decididosa continuar no caminho que temos trilhadonesses tempos cheios de responsabilidades

Page 28: DE COMO É EXTIRPADO O SOFRIMENTO DO SENHOR MOCKINPOTT

MOCKINPOTT para a figura 1Quero me apressar em minha interrogaçãosem entediá-lo com a minha perda de dinheiromas uma coisa eu realmente gostaria de saberpor que quando nos tiram alguma coisa nós ainda por cima temos que pagar

FIGURA 2 limpando os dentes, virado para a figura 1Da nossa casa não conseguimos tirar as moscasnem com adesivo inseticida

FIGURA 3 com os pés estendidos sobre a mesaSupomos que o senhor saibaque a riqueza em um paísdepende do bem estar geralportanto isso o senhor vai entenderé preciso quando aparecem buracos em algum lugarpreenchê-los de modo que desapareçam

FIGURA 2 imediatamente, mecânicoSempre voltamos a apontar para o fato de quenão há nada mais importante que o lucroe se todos nos unirmosninguém sentirá sua contribuição como uma perda

FIGURA 3 cutucando vigorosamente o ouvido com um dedo, virado para a figura 1Se a minha mulher comprasse um chapéu novoseria um exagero dizer no entanto que lhe fica bem

MOCKINPOTT para a figura 2Permita-me senhor ainda tenho algumas perguntase estou ansioso em saber o que o senhor me diz delascuidadoso, alternadamente para as figuras 1, 2 e 3Por que só tem me acontecido desgraçassendo que eu nunca faço mal a ninguémnem entro em discussõesporque quero poupar o próximonão me meto com ninguém e ando sempre sozinhoe toda hora me passam a pernaeu não entendo como isso pode sercom o trabalho e com o casamento e com o dinheiroe a saúde e as botas e sobretudoo que é proibido e o que é permitido

Enquanto isso Salame corre no lugar.

FIGURA 1 bocejando, virado para a figura 3Me parece que ano passado o tempoestava mesmo muito melhor e mais agradável

FIGURA 3 num mecânico staccato

Page 29: DE COMO É EXTIRPADO O SOFRIMENTO DO SENHOR MOCKINPOTT

E caso o senhor ainda não saibaentão lhe diremos o que o senhor precisa saberApesar de alertas inquietantes vindos de algumas bocasnão há motivo para inquietaçãodesde que decididos e imperturbáveisunidos no melhor acordocontinuemos o caminho que temos trilhadonesses tempos cheios de responsabilidades

Um mordomo aparece com uma sineta e a toca.

MORDOMOMeus senhores a audiência está encerradaserá transmitida agora uma proclamação do governo

Mockinpott se retira com profunda reverência. Salame ao sair empina a bunda para as figuras. Com a saída dos dois começam os preparatórios para a proclamação: um pigarro, uma tosse e um assoo de nariz, depois algumas pulsações e uma contagem – um, dois, três.

9º quadro – Ao ar livre

Ouve-se no alto-falante a proclamação, num cânone a três vozes. Mockinpott e Salame entram. Em seguida assentem respeitosamente com a cabeça, Salame com os cantos da boca caídos para baixo e grande movimento de cabeça, Mockinpott mais contido, com a mão no queixo ou no nariz. Logo apenas Mockinpott assente com a cabeça. Salame começa a acompanhar as palavras com revirar de olhos e largos bocejos. Enquanto Mockinpott escuta atentamente, Salame mima grandes gestos de orador, bate no peito, abre os braços. Mockinpott às vezes lhe pede com gestos para mostrar respeito, mas Salame não se deixa incomodar. Mockinpott põe as mãos atrás das orelhas, para poder escutar melhor a proclamação.

FIGURA 1Fechado decidido unidopigarro

FIGURA 2Decidido unido inalterado

FIGURA 3Inalterado fechado decidido de uma vez por todas

FIGURA 1Fechado disparado embriagado esperado

FIGURA 2Inesperado embebido bebido junto embriagado.tosse

FIGURA 3

Page 30: DE COMO É EXTIRPADO O SOFRIMENTO DO SENHOR MOCKINPOTT

Embriagado disparado fuzilado exterminado

FIGURA 1Responsabilidade resposta responsabilidade resposta

FIGURA 2Resposta responsabilidade resposta responsabilidade

FIGURA 3 espirroObjeção negociação irresponsável ação

FIGURA 1Decência reclamar parada de mão cumplicidade

FIGURA 2Parada de mão cumplicidade decência ação responsável

FIGURA 3Decência ação responsável reclamar parada de mão

FIGURA 1Resposta responsável consensualpigarro

FIGURA 2Resposta responsável ação reclamada

FIGURA 3 tosseResponsabilidade negociável reunível

FIGURA 1Exterminado afogado junto aberto a negociações

FIGURA 2 espirroNegociação responder ação irresponsável

FIGURA 3Assembleia negociação sedimentação má resolução

FIGURA 1Ação irresponsável responder responsabilidadeTosse

FIGURA 2Fechado consensual firmemente decidido

FIGURA 3Decidido de uma vez por todas inalterado aberto a negociações

FIGURA 1

Page 31: DE COMO É EXTIRPADO O SOFRIMENTO DO SENHOR MOCKINPOTT

Consciência limpa remorsos dever saber

FIGURA 2 tosseSaber sem remorsos com a consciência limpa

FIGURA 1Esforços ininterruptos melhor acordo

FIGURA 2Mescla inofensiva ininterruptamente imprescindivelmentetosse

FIGURA 3Melhor acordo mistura perigosa esforçostosse

FIGURA 1Responsabilidade resposta responsabilidade respostaespirro

FIGURA 2Resposta responsabilidade resposta responsabilidade

FIGURA 3 pigarroResponsabilidade resposta responsabilidade resposta

FIGURA 1Garantido forçado forçoso introduzido

FIGURA 2Forçoso cantado garantido oprimido

FIGURA 3Introduzido infelizmente forçado cantado canções

FIGURA 2 pigarroResponsabilidade resposta responsabilidade resposta

FIGURA 2Resposta responsabilidade resposta responsabilidade

FIGURA 3 pigarroResponsabilidade resposta responsabilidade respostaFIGURA 1Decidido unido exterminado

FIGURA 2Exterminado decidido bebido junto

FIGURA 3 pigarro

Page 32: DE COMO É EXTIRPADO O SOFRIMENTO DO SENHOR MOCKINPOTT

Fuzilado afogado aberto a negociações

O som da proclamação vai abaixando. Mockinpott escuta ainda por alguns instantes, depois aplaude, com alguma incerteza. Salame assente com a cabeça, os cantos da boca profundamente caídos para baixo, fazendo careta. Mockinpott para de aplaudir, hesitante. Então Salame aplaude violentamente.

SALAMEUm discurso belo e edificantetalvez um pouco flutuante demaismas as palavras em compensaçãoelas são um saldo positivo para o ouvinte

MOCKINPOTT primeiro assente, depois nega com a cabeça.Depois desse discurso eu sei tão pouco quanto antesentra por um ouvido e sai pelo outrocomo vai ser se eu nunca descobriro que é o torto e o que é o verdadeiro

SALAMEComo assim você não entendeu nadade tantos pensamentos que eles expressaram

MOCKINPOTTEu vou te explicar é sempre assimeu ouço algo com muita clareza e penso óé verdade é exatamente assim acertou na moscaassim como foi dito é que é a verdadee fico refletindo mais um instantee aí a verdade desaparece outra veze se fala de outra coisa e eu pergunto como éque você nunca entende nada do que se diz

Os dois anjos aparecem batendo as asas.

OS DOIS ANJOSMiserere Miserereque ele não resista à sua iluminaçãoVede aqui vede nosso bom homemestá bem perto de compreender seu sofrimentoMiserere Miserereque o próprio Deus o honre com sua4 aparição

Os anjos desaparecem batendo as asas.

MOCKINPOTTEles realmente acham que ele teria tempo para algo assime que o caminho até aqui não seria longo demais para eleSALAMEPara aquele que sofre ele mora sempre na casa ao lado

4 Em alemão, as referências a Deus (“ele”, “sua”) permanecem em letra minúscula.

Page 33: DE COMO É EXTIRPADO O SOFRIMENTO DO SENHOR MOCKINPOTT

então vamos pedir informações a ele

Mockinpott e Salame saem.

10º quadro – Diante do Bom Deus

O Bom Deus está vestido com um longo manto de pele. Ele usa uma cartola e dá grandes baforadas num charutão. Mockinpott entra com grande reverência, Salame se mantém no fundo.

O BOM DEUSAhã ahãque felizardo é esse que nós temos aquimais um entre tantos outrosque não cobiçam riquezas mundanasah como esse mundo me alegracomo tudo aqui está colocado da melhor maneira

MOCKINPOTTAmado e venerado senhor Deuspermita-me profunda reverência Mockinpottpeço humildemente porque me interessao que é que está sendo testado em mimEu vivo aqui já há alguns anose o que sempre me aconteceé que como é que eu posso lhe dizerpõe o dedo sobre o narizÉ eu preciso me perguntar toda vezpor que quando alguma coisa écomo ela ée como é que ela seriase não fosse como sempre foiprocura palavras com esforçoEu não sei se o senhor me entende beme percebe que do meu ponto de vistaeu sou surpreendido pela sua ordemO senhor pode me dizer aonde isso vai darbufa, enxuga a testa com o lenço.

O BOM DEUSOnde foi que eu disse isso esses diasmas é sempre especialmente agradávelencontrar tamanha seriedade e tamanha sede de sabere não alguém que diga que nada lhe importa

Salame tem um sobressalto, dá um pulo à frente, põe a mão sobre o peito, começa a usar grandes gestos.

SALAMESenhor diretor o senhor pode governar tudo

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mas eu também sei mergulhar em pensamentostrata-se da seguinte coisasobre a qual eu estou pensandoergue o indicadorComo é a temperatura lá em cima no céuO que se come por lá no almoço e a que horasO senhor e os seus costumam estar acordadosO senhor lê o senhor toma banho o senhor joga xadrez

O Bom Deus nega com a cabeça, irritado, dá uma baforada no charuto, ameaça com o indicador.

SALAMEQuantos coros de anjos o senhor tem ao todoalém de cantar e bater palmas eles sabem dançarE o senhor tem mais um desses belos charutosaí eu não ia precisar ficar olhando a sua fumaça e morrendo de inveja

O Bom Deus dá uma tragada violenta no seu charuto, engasga, tosse. Salame lhe bate nas costas.

O BOM DEUSMe diga o senhor sabe realmente com quem está falandomuito me ofende isso que acabo de ouvirNa minha idade estou acostumadoa ser poupado de aborrecimentos inúteisÉ difícil o bastante administrar a empresae manter tudo coeso e organizadoe controlar todas as entradas e saídasde um dia para outro e zelar pela minha gentee sempre estar atento à concorrênciaaponta para baixopois sempre lhe ocorrem novas surpresasdá uma tragada no charuto.Ah acreditem em mim meus senhoresadoraria poder andar por aí como os senhorese fazer perguntas à vontademas para isso meus senhores não tenho tempoeu nem sei em que medidaminha firma e tudo que se investeem todos os seus setores ainda funcionaAh quem lá não precisa ser retrabalhado e modificadoe o que lá não precisa ser testadoe como a gente tem que se virar e revirar e sempre cortar gastospara pelo menos manter nosso bom e velho nomevirado para SalameMeu senhor eu preciso de conforto e respeitoMas o senhor despertou em mim um sentimento de tristezaEm vez do senhor quero ouvir ainda aquele aliaponta com a mão que segura o charuto para Mockinpottele é modesto e tem uma boa conduta

Page 35: DE COMO É EXTIRPADO O SOFRIMENTO DO SENHOR MOCKINPOTT

por favor senhor Hoppingott5 o senhor tem a palavramostre que o senhor merece minha atenção

MOCKINPOTT faz uma reverência.O que eu queria dizer é por quegargalhaàs vezes quando eu paro torto eu caioe por que quando eu me sento a cadeira some de repentee em vez de me sentar na cadeira eu me sento na merdari altoE o que eu posso fazerme vem de novo essa risada

Mockinpott ri alto. Salame cai na risada também, segura a barriga de tanto rir.

MOCKINPOTT para repentinamente e fica furiosoSe o senhor é responsável por tudopelo trabalho pelo casamento pelos gendarmes pelas finançasentão eu preciso dizer eu fico com tanta raivaporque de tudo isso nada me favoreceEu cheguei a acreditar que haveria uma recompensapara todos os sofrimentos mas agora vejoas injustiças nada importam para o senhorO senhor realmente acha que elas são normais para nósMas isso eu posso lhe dizer dessa enganaçãojá tive o bastante de uma vez por todas

Mockinpott se vira com violência. Quer sair a passos largos, mas tropeça no seu próprio pé. Fica sentado no chão, apalpa suas botas ainda trocadas. O Bom Deus sai devagar, negando com a cabeça, como um homem destruído. O charuto está pendurado de viés no canto da sua boca.

11º quadro – Ao ar livre

Mockinpott está sentado no chão. Apalpa a bota esquerda no pé direito. Desamarra-a. Salame senta-se ao seu lado. Olha Mockinpott por um tempo, pega então sua garrafa, dá um gole. Mockinpott tira a bota, observa-a. Desamarra então a bota direita no pé esquerdo, tira a bota. Calça então cuidadosamente a bota esquerda no pé esquerdo e a bota direita no pé direito. Salame toma mais um gole, arrota, guarda a garrafa de volta. Mockinpott se levanta. Ele fica em pé, inseguro, dá então alguns passos com cuidado. Mockinpott experimenta andar algumas vezes, Salame o olha sorrindo com ironia. Mockinpott desenvolve no seu caminhar uma arte cada vez maior.Os dois anjos aparecem batendo as asas.

OS DOIS ANJOSMiserere Miserereque seu infortúnio também endireite outras pessoasVede aqui vede nosso bom homemque agora consegue se achar no pedaço

5 Hoppingott soa um pouco como “esperança em Deus”.

Page 36: DE COMO É EXTIRPADO O SOFRIMENTO DO SENHOR MOCKINPOTT

Miserere Misererepudesse ele estar liberto de todo sofrimento

Os dois anjos desaparecem com um bater de asas poderoso.Mockinpott, desenvolto como um bailarino, como um patinador, se distancia, em voltas cada vez mais largas. Salame está deitado, estirado sobre as costas, os braços cruzados sob a cabeça, roncando.