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De Ernst Mach e Wittgenstein ao Círculo de Viena: a recusa gnosiológica à ontologia Marcos Moraes Calazans 1 Neste trabalho discutimos os pressupostos fundamentais que orientaram as concepções do neopositivismo a partir de uma análise das concepções do físico austríaco Ernst Mach e do filósofo também austríaco Ludwig Wittgenstein. Estes pensadores influenciaram fortemente o pensamento do século XX, sobretudo, por meio do chamado Círculo de Viena donde emergiram as principais teses do neopositivismo, também conhecido como Empirismo Lógico. Ernst Mach defendeu rigorosos critérios de demarcação da ciência conduzindo seu pensamento à eliminação de qualquer vestígio de metafísica na física teórica como os conceitos de éter, substância, espaço e tempo absolutos, além dos conceitos de átomo ou qualquer elemento básico de constituição da matéria. O segundo pensador Ludwig Wittgenstein, filósofo de origem austríaca, naturalizado britânico, que teve sua primeira e única obra publicada em vida (Tractatus Logico-Philosophicus de 1922), amplamente estudada pelos proeminentes integrantes do Círculo de Viena. Seu pensamento é geralmente dividido em duas fases, o primeiro Wittgenstein cuja obra filosófica consiste do “Tractatus...” e o segundo Wittgenstein que consiste das ideias formuladas pelo autor a partir de 1930 e publicadas postumamente, marcada principalmente pela obra “Investigações filosóficas”. O autor é um dos responsáveis pela chamada “virada linguística”, que propôs uma filosofia com centralidade na linguagem: “Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo”. 2 Em 1922 um grupo de filósofos passou a se reunir sob o nome de “Sociedade Ernst Mach”, em homenagem ao físico que inspirou juntamente com Wittgenstein os estudos que buscavam estabelecer critérios para demarcar a diferenciação entre ciência e metafísica. Mais tarde sendo conhecido como “Círculo de Viena”, Moritz Schlick, Rudolf Carnap, Otto Neurath e Philipp Frank entre outros herdaram do “Tractatus...” e 1 Professor de História da Física no Departamento de Física da Universidade Federal de Ouro Preto. 2 Ponto 5.6 do Tractatus.

De Ernst Mach e Wittgenstein ao Círculo de Viena: a … · O segundo pensador Ludwig Wittgenstein, filósofo de origem austríaca, ... “Diário Filosófico 1914-1916” e o “Tractatus

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De Ernst Mach e Wittgenstein ao Círculo de Viena: a recusa gnosiológica à

ontologia

Marcos Moraes Calazans1

Neste trabalho discutimos os pressupostos fundamentais que orientaram as

concepções do neopositivismo a partir de uma análise das concepções do físico

austríaco Ernst Mach e do filósofo também austríaco Ludwig Wittgenstein. Estes

pensadores influenciaram fortemente o pensamento do século XX, sobretudo, por meio

do chamado Círculo de Viena donde emergiram as principais teses do neopositivismo,

também conhecido como Empirismo Lógico. Ernst Mach defendeu rigorosos critérios

de demarcação da ciência conduzindo seu pensamento à eliminação de qualquer

vestígio de metafísica na física teórica como os conceitos de éter, substância, espaço e

tempo absolutos, além dos conceitos de átomo ou qualquer elemento básico de

constituição da matéria.

O segundo pensador Ludwig Wittgenstein, filósofo de origem austríaca,

naturalizado britânico, que teve sua primeira e única obra publicada em vida (Tractatus

Logico-Philosophicus de 1922), amplamente estudada pelos proeminentes integrantes

do Círculo de Viena. Seu pensamento é geralmente dividido em duas fases, o primeiro

Wittgenstein cuja obra filosófica consiste do “Tractatus...” e o segundo Wittgenstein

que consiste das ideias formuladas pelo autor a partir de 1930 e publicadas

postumamente, marcada principalmente pela obra “Investigações filosóficas”. O autor é

um dos responsáveis pela chamada “virada linguística”, que propôs uma filosofia com

centralidade na linguagem: “Os limites de minha linguagem significam os limites de

meu mundo”. 2

Em 1922 um grupo de filósofos passou a se reunir sob o nome de “Sociedade

Ernst Mach”, em homenagem ao físico que inspirou juntamente com Wittgenstein os

estudos que buscavam estabelecer critérios para demarcar a diferenciação entre ciência

e metafísica. Mais tarde sendo conhecido como “Círculo de Viena”, Moritz Schlick,

Rudolf Carnap, Otto Neurath e Philipp Frank entre outros herdaram do “Tractatus...” e

1 Professor de História da Física no Departamento de Física da Universidade Federal de Ouro Preto. 2 Ponto 5.6 do Tractatus.

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das obras deixadas por Mach a problemática de encontrar por meio da lógica uma

estrutura na linguagem que representasse a estrutura lógica do mundo real.

No trabalho discutimos a recusa a qualquer ontologia (defendida sob a forma de

negação de toda metafísica), que teve sua formulação mais sistemática com o

neopositivismo do Círculo de Viena. Demonstramos que há nos autores

supramencionados os fundamentos desta rejeição gnosiológica da “realidade como

realidade” e apontamos evidências de heranças destas concepções em autores da Nova

Sociologia da Ciência. A objetividade do mundo precisa ser recolocada em um resgate

de caráter ontológico do ser, cuja constituição não pode ser dicotômica, estática ou

mesmo “hibrida”, mas como realidade cujas determinações sempre reciprocamente

determináveis, como em uma Totalidade Social, nos conduzirá a uma correta

constituição do reflexo científico da realidade.

O Círculo de Viena

Embora sua criação formal tenha sido marcada pela chegada do físico alemão e

ex-aluno de Max Planck, Moritz Schlick à cidade de Viena, fala-se de uma pré-história

do Círculo de Viena que poderia remontar até 1907 (QUELBANI, 2009, p. 11). Este

primeiro círculo era composto pelos austríacos Hans Hahn, um matemático, o físico

Philipp Frank e o sociólogo e economista Otto Neurath. O debate entre estes três

cientistas girava em torno das questões suscitadas pela filosofia de Ernst Mach e pelo

convencionalismo francês de Henri Poincaré e Pierre Duhem. O círculo teria seu apogeu

num segundo momento, quando Schlick assume a cátedra de filosofia na Universidade

de Viena em 1929. Outro acontecimento importante neste mesmo ano, e que vai marcar

a existência deste grupo de filósofos e cientistas é a publicação, pelo filósofo alemão

Rudolf Carnap em colaboração com Hans Hahn e Otto Neurath, do texto que viria a ser

considerado o manifesto do Círculo de Viena. O escrito intitulado “A concepção

científica do mundo” reuniu princípios e fundamentos desse movimento que crescia por

várias partes do mundo. Congressos importantes foram realizados como o de Paris em

1935, em Copenhague em 1936, em 1937, novamente na França, em 1938 em

Cambridge, na Inglaterra e por fim em 1939, em Cambridge, Massachusets nos EUA.

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A reconhecida tradição empirista da Universidade de Viena atraia filósofos de

várias partes do mundo conformando distintos grupos de intelectuais. A cátedra que

viria a ser ocupada por Schlick foi batizada por Ernst Mach de “História e teoria das

ciências indutivas”. Este a ocupou de 1895 a 1901 e incapaz de realizar suas atividades

acadêmicas devido a um derrame cerebral aposentou-se cedendo a cadeira ao físico

austríaco Ludwig Boltzmann.

Assim o círculo, amplamente reconhecido como corrente filosófica do

Empirismo Lógico ou Neopositivismo, se tornou o mais importante movimento

filosófico do período entre guerras (QUELBANI, 2009, p. 9). Sua importância para o

pensamento filosófico contemporâneo ainda carece ser mensurada. A influência que

exerceu e ainda exerce sobre os mais diferentes campos do conhecimento requer

sistemáticas investigações.

Para os neopositivistas do Círculo de Viena a filosofia não está habilitada a tratar

do real, esta tarefa seria exclusividade da ciência. Como afirma Schlick “a filosofia não

é um sistema de proposições, ela não é uma ciência”. (Schlick citado por QUELBANI,

2009, p. 24). A crítica formulada pela filosofia científica pretende estabelecer uma

rígida e profunda distinção entre ciência e filosofia, de modo que esta última pare de ser

confundida com a ciência em sua pretensão de fornecer informações sobre o domínio

que pertence à ciência. Qual seria então o domínio da filosofia segundo esta concepção?

Para a filosofia científica, como o próprio nome sugere, o domínio da filosofia é a

própria ciência, e seu método é a análise lógica de suas noções, de suas proposições, de

suas teorias, de suas demonstrações”. Essa filosofia se define então como a “sintaxe e a

semântica da linguagem científica” (QUELBANI, 2009, p. 25). Rudolf Carnap expõe no

Congresso de 1935 os passos que conduziriam à tal filosofia científica. Primeiramente

trata-se de deixar para trás toda filosofia especulativa e toda metafísica. Isto implicaria

em eliminar toda proposição considerada “sintética a priori” Trata-se de rejeitar tudo

que não necessita de constatação experimental. A experiência é sempre particular e

contingente, enquanto o que é a priori, ao contrário, é necessário e universal. Tal

método convida a eliminar proposições que carregam juízos rigorosamente verdadeiros,

isto é, necessários e universais, que independem dos azares da experiência. Toda

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proposição que não pode ser empiricamente verificável deve ser rejeitada se se faz

ciência e não filosofia.

Antes de passarmos à análise das formulações da filosofia de Ernst Mach

pedimos licença ao leitor para trazermos uma longa passagem onde Carnap, em

primeiro lugar, menciona suas influências fazendo referência à Mach, dentre outros,

tornando explícita a presença na essência de seu método da recusa de qualquer teoria

ontológica. Com isto queremos ressaltar que sob o véu da famigerada recusa à

metafísica se encobre uma negação de qualquer teoria ontológica, seja ela de caráter

idealista (fenomenismo) ou materialista (fisicalismo). Em segundo lugar percebe-se na

exposição acerca de seu procedimento o enfoque puramente metodológico

(metodologismo) e convencionalista onde distintos sistemas de linguagens aparecem

como neutros e intercambiáveis.

Quando elaborei a teoria do Aufbau, considerei efetivamente

indiferente que forma de linguagem escolher entre as várias possíveis,

parecendo-me elas simples formas de falar, mais do que formulações

doutrinais. De fato, no decurso do livro, para descrever o sistema

construtivo ou constitutivo, usei três linguagens diferentes, para além

da linguagem neutra da lógica simbólica, com a intenção de facilitar

a compreensão do leitor: isto é, antes de mais, uma mera tradução

das fórmulas definicionais simbólicas na linguagem verbal;

seguidamente, uma versão análoga na linguagem realista, própria

das ciências da natureza; finalmente, uma reformulação das

definições como regras operacionais de processos construtivos,

aplicáveis por quem quer que seja, o sujeito transcendental de Kant

ou uma máquina calculadora. Embora tendo apresentado o sistema

dos conceitos numa base fenomenística, cujos elementos eram

representados por experiências no sentido acima mencionado,

indiquei também de que maneira era possível construir um sistema

conceitual numa base fisicalista. A minha opção por uma base

fenomenista era motivada pelo propósito de determinar, juntamente

com as relações lógicas, as igualmente importantes relações

epistemológicas subsistentes entre os conceitos, bem como de

fornecer, se não uma descrição, ao menos uma reconstituição

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racional do seu efetivo processo genético. Nisso senti a influência de

alguns filósofos alemães do final do século passado, basicamente

empiristas ou positivistas, que estudara com interesse:

fundamentalmente Ernst Mach, depois Richard Avenarius, bem como,

de modo especial, nas construções lógicas russellianas, conservando

uma vez mais, relativamente ao próprio problema da base, um

comportamento ontologicamente neutro. Para mim, tratou-se apenas

de uma questão metodológica, respeitante à escolha da melhor base,

sobre a qual edificasse o sistema, fosse ela fenomenista ou fisicalista.

As teses ontológicas das doutrinas tradicionais do fenomenismo ou do

materialismo estavam completamente ausentes da minha

consideração. (CARNAP citado por PASQUINELLI, 1983, p.26-27).

Embora as mais distintas correntes da sociologia da ciência tenham tentado

estabelecer a crítica à neutralidade, pretendida pela corrente Neopositivista, afirmando

que o conhecimento científico tem um forte componente social de consenso, há

importantes limitações nelas. Há nestes estudos, igualmente, a prevalência de um

fundamento teórico-metodológico baseado em concepções puramente gnosiológicas e

epistemológicas. Esta concepção, atualmente hegemônica, presente nas mais diferentes

correntes de pensamento e em diversos campos do conhecimento humano, é comum,

como veremos, aos fundamentos epistemológicos formulados pelo Neopositivismo.

Mesmo que muitas das tendências da atual sociologia da ciência tenham emergido das

correntes de pensamento que nasceram em luta contra o velho positivismo ou mesmo,

contra o neopositivismo, guardam em comum com estes a negação do real e suas

determinações enquanto categorias ontológico-filosóficas.

Filosofia da Experiência Crítica de Mach e a Teoria Pictográfica da

linguagem de Wittgenstein

A chamada filosofia da “experiência crítica” ou Empiriocriticismo, variedade de

positivismo proposta por Ernst Mach, que influenciou importantes filósofos e cientistas

(como Albert Einstein), pretendia ser a única filosofia científica que pretensamente

conseguiria superar a unilateralidade tanto do materialismo como do idealismo. Leitores

de Mach acusam os materialistas de “caírem no kantismo” ao admitirem a existência da

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“coisa em si”, isto é, coisas fora da nossa consciência. Estariam, assim, “duplicando o

mundo” na medida em que para além dos fenômenos existiria ainda a coisa em si, para

além dos dados imediatos dos sentidos, como uma espécie de fetiche ou ídolo, uma

fonte de metafísica (LENIN, 1982, p.18).

Com a noção de “economia de pensamento” Mach rejeita toda a objetividade do

mundo, chegando, por exemplo, a negar a existência real do átomo, a despeito dos

enormes avanços obtidos pela ciência no período. Com a pretensão de interpor ao

grande debate filosófico entre materialistas e idealistas, da passagem do século XIX

para o século XX, um artifício de suposta neutralidade Mach inventa os chamados

“elementos” do mundo que quer aparentar resolver a dicotomia entre sujeito e objeto,

mas que leva sua filosofia ao solipcismo:

As sensações não são “símbolos” das coisas. A “coisa” é antes um

símbolo mental para um complexo de sensações que possui uma

relativa estabilidade. Não são as coisas (os corpos), mas sim as cores,

os sons, as pressões, os espaços, os tempos (o que nós chamamos

habitualmente sensações), que são os verdadeiros elementos do

mundo” (MACH citado por LENIN, 1982).

Mach substitui os objetos reais do mundo material por entes escusos que chama

de “elementos do mundo” que não seriam nem objetivos nem subjetivos, seriam,

segundo ele, “complexos de sensações”.

Wittgenstein propõe uma filosofia com centralidade na linguagem buscando

encontrar uma lógica na estrutura dos enunciados que reproduzisse fidedignamente a

estrutura do real (fatos e objetos). Segundo sua teoria pictográfica da linguagem existe

uma homologia entre uma proposição e a realidade que esta descreve. Sua doutrina

inicialmente inspirada em Gottlob Frege, matemático, lógico e filósofo alemão, se

distancia relativamente deste caminhando em direção a um anti-platonismo. Em suas

primeiras obras, “Diário Filosófico 1914-1916” e o “Tractatus Logico-Philosophicus”

se encontra a concepção geral desta primeira fase de Wittgenstein. Sua ideia central é a

de encontrar a proposição perfeita, ou a mais adequada para representar um estado

efetivo. (GEYMONAT, 1984, p. 196). Há nesta perspectiva algo em comum com a

noção de economia de pensamento proposta em Mach e concebidas ambas como uma

radicalização do princípio da “navalha de Ocham”. Por exemplo, um acidente

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automobilístico, consiste em representa-lo em escala reduzida, mediante carros em

miniatura que ocupem o lugar dos originais no acidente. A proposição é tomada como

um retrato lógico de seu significado. (GEYMONAT, 1984, p. 196).

Enquanto para Frege as proposições eram autênticos “nomes próprios”, a quem

corresponderia, enquanto significado, um valor de verdade, para Wittgenstein, ao

contrário, o sentido possui um caráter interno à proposição. Não considera que o valor

de verdade de uma proposição esteja vinculado de algum modo com o sentido desta.

Todas as proposições teriam um sentido legítimo, qualquer que seja sua forma lógica. O

significado já se encontraria “inscrito” na proposição, em consequência toda proposição

representaria uma determinada estrutura das coisas.

Estão já presentes na obra Diário Filosófico 1914-1916 as ideias centrais que

comporão o “Tractatus”. A noção de que a forma lógica de uma proposição não pode

ser descrita senão simplesmente “mostrar-se” e que, portanto, a linguagem constitui se

constitui enquanto um limite do mundo, uma fronteira intransponível (GEYMONAT,

1984, p. 196).

O Círculo de Viena e a Nova Sociologia da Ciência

Segundo Carnap por meio da análise lógica é possível revelar que as pretendidas

proposições da metafísica são em realidade pseudoproposições.

Se se justifica nossa tese de que as proposições da metafísica são

pseudoproposições, em uma linguagem construída de um modo

logicamente correto a metafísica não poderia expressar-se. Aqui se

revela a importância filosófica da tarefa de elaborar uma sintaxe

lógica que ocupa aos lógicos na atualidade. (AYER, 1965, p.15)

A recusa, de forma cada vez mais decisiva, a qualquer ontologia (defendida sob

a forma de negação de toda metafísica), teve sua formulação mais sistemática com o

neopositivismo do Círculo de Viena. Do Renascimento ao século XIX, a crescente

matematização da ciência, que proveu enormes contribuições para a apreensão do

mundo pelo homem, veio, também, acompanhada de uma rejeição à filosofia da

natureza, sob a forma de uma “proclamação da superioridade, por princípio, da

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manipulação sobre toda a tentativa de compreender a realidade como realidade”

(LUKÁCS, 2012, p.58). Com o neopositivismo esta tendência alcança seu ápice.

A crítica ao positivismo lógico que pressupunha a ideia de um fideísmo cético

nos dados da experiência (observação fenomênica) como empirismo metodológico é

feita por Popper (2007) a partir da visão de que toda observação está imersa em teorias,

visões de mundo e expectativas. Sobre a base do racionalismo crítico e o método das

conjecturas e refutações, o autor estabelece critérios para estabelecer e demarcar o que é

ciência. As hipóteses, leis e teorias que resistissem aos testes e verificações até o

momento eram tomadas como “verdades provisórias”.

A ideia do falseacionismo de Popper afirmava que a ciência não avançava pelo

método da generalização indutiva como o empirismo lógico defendia. A atividade

científica não deveria mais buscar verificar se as proposições estavam corretas ou não,

mas deveria buscar falseá-las. Quanto mais uma proposição resistisse às “tentativas” de

falseamento, ou seja, o grau de corroboração indicava maior ou menor proximidade com

a “verdade”. Quanto mais uma teoria proíbe mais explica sobre o mundo. O avanço do

conhecimento então está relacionado à busca de leis cada vez mais amplas (gerais),

precisas (ex. “a dilatação dos metais é diretamente proporcional ao aumento da

temperatura” em vez de “os metais se dilatam quando aquecidos”) e simples (menor

número de parâmetros – ex. “os planetas têm órbitas circulares” em vez de “os planetas

têm órbitas elípticas”). (ALVES-MAZZOTTI e GEWANDSZNAJDER, 1999). Embora

Popper rejeite a recusa generalizada à metafísica segue a tradição do empirismo lógico

na busca de demarcações da atividade científica, se mantendo no plano das soluções

epistemológicas com estabelecimento de métodos unívocos e simplificadores.

De acordo com esta nova visão (sociológica e antropológica) da ciência, e,

sobretudo após o advento de uma sociologia crítica (pós-guerra), a pretensão de

neutralidade preconizada pelo positivismo deveria ser criticada dando lugar a uma

concepção de ciência que não pode se justificar apenas por critérios internos de

validação do conhecimento. A atividade científica estaria, segundo esta nova visão

crítica, parametrizada não mais pelo “contexto da justificação” mas, sobretudo, pelo

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“contexto da descoberta” 3, ou seja, critérios de justificação orientados por fatores

sociológicos e até psicológicos (SANTOS, 2000).

Um traço fundamental e comum às diversas correntes da nova sociologia da

ciência é sua orientação em consonância com a chamada virada linguística. Concebendo

a ciência como linguagem, estariam, supostamente, “desconstruindo” toda a pretensão

universalista dela e lhe atribuindo o status de uma construção social, uma “subcultura”

(AIKENHEAD, 1996) dentre uma infinidade de outras, como propõem as tendências do

chamado multiculturalismo, de-colonialismo ou pós-colonialismo e suas variantes

(SANTOS, 2010; QUIJANO, 2014). A crítica destas tendências à ciência aponta para a

impossibilidade de qualquer universal, pretendendo destituí-la de qualquer relação com

a noção de verdade.

Em contraste com o pensamento dos primeiros sociólogos da ciência, (Merton,

Bloor), nos quais a herança do positivismo era bem mais aparente em decorrência da

própria demarcação de um campo da sociologia da ciência, “como estudo daquilo que

na ciência não é científico” (SANTOS, 2000), o pensamento da nova sociologia da

ciência buscou questionar a possibilidade de uma linha de demarcação absoluta entre os

diferentes tipos de conhecimento.

Morin (2000, p. 21), corroborando com o irracionalismo das teses defendidas

por vários dos autores dos campos da epistemologia e sociologia da ciência (FOUREZ,

1995; JAPIASSU, 1999; LATOUR e WOOLGAR, 1997, CHALMERS, 1994) afirma

que “nenhum dispositivo cerebral permite distinguir a alucinação da percepção, o sonho

da vigília, o imaginário do real, o subjetivo do objetivo”. Nesta perspectiva não existe

uma forma objetiva de avaliar se o conhecimento científico é um reflexo “verdadeiro”

do mundo, a noção de “progresso” científico é, portanto, problemática.

A crítica à concepção positivista está contaminada por esta mesma concepção.

Ela não conseguiu ir além da superficial constatação de que as práticas científicas são

práticas sociais e que, portanto estão imersa no universo axiológico do mundo histórico

cultural dos homens. A aparência de neutralidade da ciência vai muito além do não

reconhecimento de que todo o conhecimento é produto de relações socioculturais. Ela

3 A distinção entre contexto de justificação e contexto da descoberta foi cunhada por Hans Reichenbach.

REICHENBACH, H. Experience and prediction: an análisis for the foundations and the structure of

knowledge. Chicago: University of Chicago, 1938.

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decorre, sobretudo, das separações entre sujeito e objeto, natureza e sociedade e ser e

conhecer. O tratamento inadequado deste último complexo (ser e conhecer), que anula

todo o ser ou o fragmenta, homogeniza e reduz, cria metodologias e teorias do

conhecimento (centralidade epistemológica) desligadas do ser objetivo.

Resultam assim contínuos compromissos metodológicos que põem de

lado o problema ontológico fundamental da especificidade ontológica

do ser social e enfrentam as dificuldades cognitivas dos setores

singulares de modo puramente gnosiológico ou puramente

metodológico, epistemológico. (LUKÁCS, 2012. P, 26)

A neutralidade da ciência foi concebida pela pretensão de criar um meio filosófico que

extraditasse do campo do conhecimento toda visão de mundo, toda ontologia. E que “ao

mesmo tempo, criasse um – presumido – terreno gnosiológico que não fosse nem

idealista subjetivo nem materialista-objetivo, mas que, justamente nessa neutralidade,

pudesse oferecer a garantia de um conhecimento puramente científico” (LUKÁCS,

2012). Esta neutralidade conduz necessariamente à ruptura da determinação de

reciprocidade do complexo sujeito-objeto e à consequente centralidade posta na

subjetividade.

Além de anti-histórica a visão de mundo embebida da causalidade matemática

recém-surgida também tinha um compromisso com a igreja e a religião que atenuaram

as mudanças potencialmente profundas que poderiam ocorrer na forma de concepção do

ser caso as consequências das novas descobertas da ciência fossem levadas às últimas

consequências. Tal visão geral de cientificidade tinha seu desenvolvimento assentado

em teorias do conhecimento que fundamentavam seu método (das ciências particulares)

e afastavam os eventuais fundamentos e consequências ontológicas dos métodos e

resultados da ciência. Ou seja, a primazia epistemológica já presente nos métodos da

ciência nascida na revolução científica do século XVII não só evitava os problemas de

natureza ontológica como empreendia uma “luta contra o ser-em-si cognoscível dos

modos do ser” (LUKÁCS, 2010, p.139). Cientistas influenciados por teorias do

conhecimento passam a negar categoricamente a existência real do ser como é o caso de

muitos intelectuais respeitados que durante o século XIX começaram a duvidar da

existência real do átomo. A natureza deixa de ser concebida como objetivamente dada e

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passa, sob o domínio do positivismo e do neopositivismo, a produto intelectual das

respectivas metodologias (LUKÁCS, 2010, p.140).

O reconhecimento do caráter objetivo do conhecimento sobre o ser contrasta de

maneira decisiva com a tendência geral para a manipulação das abordagens que tem a

centralidade na subjetividade. A manipulação se torna um princípio no contexto da

polêmica entre o Cardeal Belarmino e Galileu Galilei relatado no drama “Galileu”,

escrito por Brecht em que a teoria da dupla verdade é enunciada por Belarmino:

“Vamos nos adequar aos tempos, Barberini. Quando novas cartas astronômicas,

baseadas em novas hipóteses, facilitarem a navegação de nossos marinheiros, eles

devem usá-las. A nós desagradam apenas as teorias que falsificam a Escritura”

(LUKÁCS, 2012, p.38). Em momentos anteriores a teoria da dupla verdade foi utilizada

para proteger o desenvolvimento da ciência face ao implacável obscurantismo do

Estado religioso. No entanto o cinismo belarminiano representou uma inflexão, a partir

da qual a manipulação passa a ter a função de preservar o que havia de fundamental na

ontologia religiosa diante do avanço incontido da ciência. O contexto do século XX

representa outra inflexão em que a manipulação é erigida a método geral (no caso da

ciência tem seu ápice com o positivismo) para todas as relações sociais na sociedade

capitalista. O contexto de guerras, ascensão do fascismo, revolução russa de 1917,

guerras frias e o grande aumento da produtividade por meio do aumento da exploração

do trabalho, fizeram do século XX o cenário de um vertiginoso crescimento da

manipulação da práxis econômica, política e da ciência. Lukács (LUKÁCS, 2012, p.46)

acusa a sociologia do conhecimento de então, a de Mannheim, por exemplo, de aderir à

proposta de elaboração de uma “teoria geral da manipulação socialmente consciente das

massas” se colocando integralmente refém do ceticismo e profundo pessimismo do

contexto pós-guerra que acreditava no poder de manipular ilimitadamente as massas. A

moderna sociologia da ciência foi profundamente influenciada por estas correntes, o que

explica sua propensão a tomar a ciência unicamente como um artifício de linguagem

retórica manipulatória.

No entanto a questão de se o conhecimento humano, as verdades produzidas pela

ciência, tem um caráter objetivo, ou seja, se reproduzem efetivamente a realidade

objetiva ou se são apenas artifícios de manipulação sempre foi alvo de disputa e

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contradição para a filosofia burguesa desde o renascimento. As necessidades objetivas

do desenvolvimento capitalista, da moderna industria, o desenvolvimento de novas

tecnologias para acelerar o passo de sua produção de mercadorias e aumentar sua taxa

de lucro, colocava para a classe dominante em ascensão o compromisso com um

conhecimento objetivo das legalidades próprias da natureza como critério de seu êxito.

Por outro, como descrevemos o contexto do século XX, a manutenção de uma ordem

(de desigualdade socialmente injustificável), de guerras e superexploração só é possível

recorrendo à manipulação como forma de manter o obscurantismo inerente à sua

condição de classe dominante.

Embora este seja, pelas razões acima colocadas, um problema presente para a

moderna filosofia burguesa, nem ela nem a atual sociologia do conhecimento

conseguem responder adequadamente à questão da possibilidade ou não do

conhecimento objetivo do mundo. Questão cuja solução passa por compreender

corretamente a relação entre ser e consciência (ou ser e conhecer). As respostas

conduzem, por diferentes caminhos, à mera relação de identidade entre ser e consciência

(presente nas correntes empiristas) ou à relação de ruptura/separação completa (presente

nas correntes agnósticas, em Hume Kant por exemplo).

Marx (2007, p.533) aponta a direção geral para a solução desta contenda

histórica enunciando o princípio da práxis como o único critério de distinção do caráter

objetivo das determinações do pensamento:

A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma verdade

objetiva [gegenständliche Wahrheit] não é uma questão da teoria, mas

uma questão prática. É na prática que o homem tem de provar a

verdade, isto é, a realidade e o poder, a natureza citerior

[Diesseitigkeit] de seu pensamento. A disputa acerca da realidade ou

não realidade do pensamento – que é isolado da prática – é uma

questão puramente escolástica. (MARX, 2007, p.533)

O maior equívoco de todas as modernas teorias do conhecimento, sobretudo as que têm

fundamentado a concepção de ciência na contemporaneidade é o de tratar o problema

do conhecimento isoladamente. Seu tratamento isolado conduziu, ao longo da história, a

definição de métodos universais únivocos e demarcações rígidas entre ciência e outros

saberes. O conhecimento sobre os procedimentos da apreensão das determinações do ser

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pelo pensamento só pode estar invariavelmente ligado ao objeto que se pretende

conhecer.

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