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de JEAN DE LÉRY - digitalis-dsp.uc.pt · 1 Qualquer citação reporta-se à seguinte edição da obra: Jean de Léry, Histoire d'un voyage en terre de Brésil, Paris, Librairie Générale

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Histoire d'un voyage fait en la terra du Brésil, de Jean de Léry

Autor(es): Fernandes, Ana

Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras

URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23900

Accessed : 4-Feb-2019 01:42:14

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MÁTHESIS 5 19% 325-333

HISTOIRE D'UN VOYAGE FAIT EN LA TERRE DU BRÉSIL, de JEAN DE LÉRY

ANA FERNANDES

A Histoire d'un voyage fait en la terre du Brésil, de Jean de Léryl, teve nos últimos anos diversas reedições. Contudo o facto de se reproduzir sempre o texto de 1580 tende a dissimular a evolução da obra.

Quando a Histoire surge em 1580 é com um atraso de vinte anos sobre o acontecimento, visto que a aventura brasileira de Léry remonta a 1557. Jean de Léry tinha vinte e dois anos quando, refugiado de Borgonha em Genébra, e "écolier de théologie", decidiu juntar-se aos missionários calvinistas de que o almirante de Villegagnon tinha pedido os reforços. Nicolas de Villegagnon, cavaleiro de Malta, tinha fundado em 1555 uma colónia francesa na baía de Rio de Janeiro, numa ilha que ainda hoje tem o seu nome. Léry aftrma ser propósito primeiro da sua obra "perpetuer icy la souvenance d'un voyage fait expressément en 1 'Amerique, pour establir le pur service de Dieu" (p. 47).- notemos ainda que esta expedição aos Tupinambás é o primeiro exemplo de uma missão protestante.

Se acaso se insurge contra Villegagnon, "Cain d'Amerique", Léry revolta-se muito mais contra Thevet, autor da Cosmographie Universelle (1575), que considera um contador de "fariboles", um "cerveau de vent". No cosmógrafo do rei Léry vê o exemplo de um grande sucesso mundano que nascera da mentira. Para sua divisa ele escolherá pelo contrário: Mais vale ver do que ter. Thevet, que só permaneceu dez semanas na América, narra como se tivesse percorrido o país de lés a lés. Léry, pelo contrário, indica sempre os limites da sua experiência, no espaço e no tempo (lembremos que ele permaneceu dez meses no Brasil). No seu livro só está presente "ce qu'il a veu et experimenté".

1 Qualquer citação reporta-se à seguinte edição da obra: Jean de Léry, Histoire d'un voyage en terre de Brésil, Paris, Librairie Générale Française, 1994, "Le Livre de Poche - Bibliotheque classique", 0707.

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Toda a narrativa está impregnada pela curiosidade de ver e de observar "ce monde nouveau" e pelo fascínio que Jean de Ury, apaixonado pela vida, sem pensar em conquista nem em fortuna, nem sequer em evangelização, tinha sentido pela terra e seus habitantes. Igualmente manifesta é a sua exigência de verdade a fim de transmitir "des choses si émerveillables et nonjamais cognues, moins écrites des Anciens" por ele descobertas, de que guarda viva recordação e nostalgia: " ... je aye esté si curieux de contempler les grands et les petits, que m' estant advis que je les voye tousjours devant les yeuxj'en aurai àjamais l'idée et l'image en mon entendement" (capt. vrn, p. 233/4). E dirá em seguida: " ... je regrette souvent que je ne suis parmi les sauvages ... " (capt. vrn, p. 508). A favor de um "beau sujet", trata-se de fundar uma literatura do olhar, e a Histoire parece ser um dos primeiros esforços de prosa descritiva. Com efeito, mesmo que só tenha podido explorar alguns lugares, o Brasil de Ury representa "todo um mundo novo", visto que nada do que aí se vê (fauna, flora, sociedades humanas) se assemelha às coisas da Europa. Ury, escritor, está aqui numa situação-limite porque tem de dar a ver "des cho­ses que nul n 'a possible jamais remarquées" (p. 98).

A descrição, que nas retóricas antigas era só um ornamento, torna-se nas narrativas de viagens o próprio objecto do discurso, e esta prosa que desenha estava por inaugurar. A Histoire de Léry ilustra admiravelmente esta problemática. Ele diz temer o parecer de "nos François ( ... ) ayant les oreilles tant delicates et aymans tant les belles fleurs de Rhetorique" (p. 96). O próprio autor confessa utilizar uma linguagem "rude et mal poli", mas se acaso aponta este defeito, é para melhor sublinhar as suas virtudes. Que a "bela linguagem" só sirva para dissimular a mentira, eis o que fazem todos os autores "geográficos". Como o repete Ury, só convém às narrativas de viagens "la vérité dite simplement" (p. 98).

Mas esta sobriedade da linguagem, que é regra na literatura geo­gráfica do século XVI, lião bastaria para distinguir a Histoire d'un voyage en terre de Brésil. A singularidade de Ury consiste, pelo con­trário, em ele ter sabido, realizando com um raro rigor o projecto des­critivo, abrir à expressão de uma sensibilidade pessoal este género se­camente documentário. O aspecto afectivo torna-se por vezes muito no­tório: pensemos no lirismo da evocação das florestas brasileiras que termina em acção de graças (capt. XIV). Esta narrativa é também um "adeus" à América: o que lhe dá a sua vibração sentimental é sobretudo a nostalgia de um mundo onde Léry encontrou mais simplicidade que em França, e mais vontade de viver. Se acaso passa do tom dos salmos ao do panfleto, e da piada à elevação lírica, a sua principal preocupação não deixa de ser a de constituir uma arte da reportagem ou, como se diz mais simples­mente, da relação.

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A exigência de verdade fá-lo portanto rejeitar a "bela linguagem", o estilo "orné" e "fardé", como ele próprio o designa, preferindo um estilo simples, natural, que respeite a expressão justa, evitando a metáfora e a hipérbole, figuras que provocam "un détournement de l'histoire" (p. 95)2 com vista às "fictions de Poetes" (capt. vn, p. 205). Léry fixa já a regra de ouro do estilo da rdação histórica da narrativa de viagem que os viajantes, filósofos e naturalistas, reivindicarão no final do século XVIll e no século XIX: estilo pouco cuidado, "le ton de la chose", "de la simplicité et de la cZarté"3, sem efeitos, mas contudo variado como o é a própria natureza e a temática abordada, abundante em comparações familiares ao leitor, e estabelecendo relações entre o Aqui e o Ali.

Na sua Histoire, Léry só pretende relatar o que ele próprio tenha "pratiqué, veu, ouyetobservé" (capt. l,p. 105), "commeje I 'ayexpérimenté" (capt. IX, p. 239), "veu par expérience" (capt. xn, p. 296). Jean de Léry é um homem que contacta, que se aproxima do outro em qualquer ocasião, por vezes correndo perigo de vida, que deseja ver de perto. Ele assume plenamente o seu papel de informador, não deixando de lembrar a sua presença e a sua experiência em campo.O olho do narrador é o ponto focal, a objectiva através da qual se organiza a narrativa. A enunciação é colocada sob a caução da observação pessoal e seguirá os princípios da exposição racional do autor da Histoire, que é também o seu actor e o seu narrador. Léry distingue claramente o que ele próprio recolheu, que é predominante, daquilo de que foi informado e daí o recurso frequente a expressões como: "on m'a dit", "j'aye ouy dire", "je croys sçavoir", "selon iceux", "ils disaient" ... Notemos ainda que informações e explicações suplementares são geralmente também de primeira mão, fornecidas pelos intérpretes normandos que têm um bom conhecimento do terreno e dos selvagens, e pelos próprios selvagens.

Quanto à sua estrutura, a Histoire reparte-se entre a crónica - diário de bordo seguido da história de Forte Coligny - e uma vasta descrição da terra do Brasil, com "tout ce qui s 'y voit, soit en la façon de vivre des habitans, forme des animaux et en general en ce que la terre produit" (p. 95). O texto nos seus 22 capítulos segue exactamente a ordem do evento. Nos quatro primeiros capítulos, a exposição dos motivos da viagem é seguida da narrativa da navegação.

Contrariamente a outros viajantes, Léry faz poucas referências à Antiguidade clássica. No prefácio, sublinha o facto fundamental,

2 Frank Lestringant, Le Huguenot et le Sauvage, Aux Amateurs de livres, 1990.

3 Jacques Arago, Promenade autour du monde pendant les années 1817, 1818, 1819 et 1820 ... Paris, 1822.

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incontornável, da diferença do mundo americano, da sua novidade: " ... ce pays de I 'Amerique ... estant dissemblable de ce que nous avons en Europe, Asie et Afrique, peut bien estre appelé monde nouveau ... " (p. 95). As únicas referências justificadas poderão ser, de um ponto de vista comparatista, as que foram retiradas da obra dos historiadores contemporâneos do novo mundo. Léry referir-se-á várias vezes ao autor que estima "digne de foi " (capt. XXI, p. 522), a Gomara e à sua Histoire Générale des lndes cuja tradução francesa surge em 1568. Uma razão suplementar para esta escolha consiste no facto de que, na concepção geográfica do século XVI que ainda não tomou consciência da "espessura" do Brasil, este se encontra relativamente perto do Peru, "terra continente" à dos Tupinambás. A comparação entre as populações, para se salientarem semelhanças e diferenças, parece portanto pertinente.

A proximidade do Peru e das minas do Potosi, descobertas em 1547, faz aliás nascer sonhos de riqueza na mente dos Portugueses, desejosos por descobrir "un autre Pérou" nas terras que lhe foram destinadas, onde penetram também Franceses como Thevet. No interior destas terras, na nascente do rio São Francisco, encontra-se uma laguna onde vão desaguar as águas vindas das vertentes dos Andes e que drenam riquezas análogas às dos locais ocupados pelos Espanhóis. Pêro Magalhães de Gândavo, no capítulo final da sua Historia da provincia Sancta Cruz, editada em Lisboa em 1576, repercutia a crença muito divulgada da existência de um Eldorado brasileiro: " ... e é muito conhecido entre eles (os Índios) de que existe no interior um lago onde o rio de São Francisco, de quejáfalei, nasce. Eles dizem que nas ilhas que ele engloba e nas margens existem muitas aldeias onde há muito oiro e em maior quantidade, segundo eles, que noutra parte do país". A busca do lago dourado suscitou as primeiras expedições dos Bandeirantes que partiram de São Salvador em 1554, 1561, 1575-1576, e da região de São Paulo a partir de 1560. Brás Cubas teria nesta época chegado à região do alto de São Francisco, provavelmente até ao rio das Rãs onde descobriu pedras preciosas que qualifica numa carta redigida de Santos, no dia 25 de Abril de 1562, "de pedras verdes que parecem ser belas esmeraldas", que se eleva não longe das nascentes de São Francisco uma outra montanha não menos resplendescente, "a serra resplendescente", a qual se encontraria no sertão do rio Doce, à altura da capitanaria de Espírito Santo. A nova foi divulgada pelos Índios do interior, chegados a Porto Seguro em 1550, e determinou Tomé de Sousa a lançar uma primeira exploração do rio, pensando descobrir "um novo Peru", tal como este o declara numa carta ao Rei de Portugal, datada de 18 de Julho de 1552.

Jean de Léry não se deixa seduzir pelas miragens do ouro, menciona apenas nas embocaduras de Cabo Frio, a "roche estimee d'esmeraude",

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denominada Maq-hé: "sur le bord de la mer on void une grosse roche faite enforme de tour, laquelle quand le soleilfrappe dessus, tresluit et estincelle si tres-fort, qu'aucuns pensent que ce soit une sorte d'Esmeraude: et de faict, les François et Portugallois qui voyagent là, I' appellent I' Esmeraude de Maq-hé" (capt. V, p. 156). O duvidar da natureza "estimada" da rocha e a explicação do seu brilho luminoso por um fenómeno natural, são significativos do espírito de Léry. Nunca mais falará no seu livro de esmeraldas nem de riquezas mineiras, e as comparações com o Peru, retiradas de Gomara, só dirão respeito às gentes e à sua maneira de agir.

As únicas fantasias de Léry ser-lhe-ão inspiradas pela visão, e a recordação muito viva, da natureza luxuriante e fecunda. "La bonté et la fertilité du pays" fazem-no imaginar, numa visão prospectiva, abundantes colheitas: "j'ay veu par l'experience, si les champs estoient cultivez et labourez comme ils sont par-deça, que l'un et l'autre y viendroit bien." (capt. IX, p. 243). Este país poderia tomar-se no país do pão e do vinho em terras que o autor afirma serem "meilleurs qu'il n'y en ait en toute la Beausse" (capt. IX, p. 245), e poderiam assim alimentar uma população ainda mais numerosa: "Et certes comme le pays de nos Toüoupimanbaoults est capable de nourrir dix fois plus de peuple qu 'il n 'y en a" (lbid.), visão original numa época da procura do ouro, e também de bom senso, no meio das grandes penúrias, privações e fomes de que sofre a Europa no século XVI. As constatações de Léry reaparaecerão mais tarde sob a pena de outros viajantes no século XIX, de Auguste de Saint-Rilaire muito particularmente, e de Ferdinand Denis. Poderemos dizer que Léry obedece a uma grande exactidão no que concerne as informações fornecidas a propósito das antigas populações e, por outro lado, a sua visão poderá considerar-se modema relativamente às verdadeiras riquezas relacionadas com a exploração da terra.

O capítulo VI, que pretende ser uma relação sobre o governo de Villegagnon, oferece-nos a crónica de Forte Coligny. Após um breve idtlio, irrompe o conflito entre Villegagnon e os Genoveses.

Todos se esforçam por reanimar, no meio do Guanabara, a velha disputatio teológica - como também se esforçavam por serem transferidos o mais breve possível para melhor se defenderem dessas enormes terras desconhecidas, e da nudez dos selvagens.

O fanatismo cresce. Villegagnon e Cointa, de acordo com Léry, pretendiam "non seulement grossierement, plus tost que spirituellement manger la chair de Jesus Christ, mais qui pis estoit, à la maniere des sauvages nommez Ou-etacas (oo.) ils la vouloyent mascher et avaler toute crue" (p. 176-177). Quanto a Villegagnon, é provável que só tenha descoberto pouco a pouco as características ousadas da Reforma. Seduzido pela teologia, ele decide ordenar que os Genoveses passem fome, os quais,

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após oito meses na ilha Coligny, têm de se refugiar em terra ftrme, e ren­der-se, para sobreviverem, à "humanidade" dos Tupinambás. É esta ruptura brutal, é a descoberta, nos selvagens, de uma "capacidade natural"que produzem em Léry uma conversão do olhar.

Os restantes capítulos formam um quadro da terra do Brasil. À fauna, Léry dedica os três capítulos X, XI e XII; à flora, o capítulo XIII. A descrição participa desse grande esforço, que marca o século XVI, de recenseamento do "mundo universal". Descrever é também ordenar.

Alguns grandes esquemas ordenadores governam a descrição, tais como o princípio da plenitude, e essa imagem da cadeia dos seres que durante tanto tempo in-formaram os sistemas do mundo.

Esta ideia do mundo é uma ideia de Deus. O que anima a descrição é esse espírito de louvor a Deus todo-Criador perante um universo "esmerveillable", "diffonne", "monstrueux". Esta aliança é ainda mais nítida no surpreendente capítulo XI que trata da variedade dos pássaros na América.

Léry reduz-se ao inventário ordenado do espaço limitado onde permaneceu e à observação dos Tupinambás no seu ambiente natural. O espaço tupinambá, conhecido e descrito por ele - espaço físico, humano e cultural-limita-se às margens e às ilhas da baía de Guanabara. Salientemos que, para o leitor, o microcosmo tupinambá é revelador do horizonte brasileiro, ele próprio representativo da América. A designação dos Tupinambás incita-o a este processo sinedáquico de generalização, da parte tomada pelo todo. No capítulo VIII, por exemplo, consagrado à descrição física dos indígenas, Léry utiliza concorrentemente "Toüoupinambaoults" (8 vezes), "Brésiliens" (4 vezes), "Amériquains" (4 vezes). O nome "sauvage" surge 12 vezes nos títulos dados aos diferentes parágrafos, é neste caso o único substantivo empregue, e 4 vezes no texto. Quanto ao título geral do capítulo, este apresenta o seguinte: "des hommes que des femmes sauvages Bresiliens, habitans en l'Amerique". Parece que os Tupinambás se tomam para os Franceses do século XVI, como se pode constatar em Montaigne,pelo seu carácter e pelos seus costumes, no modelo, no arquétipo do selvagem americano.

Viveu com os Tupinambás durante dez meses; oito meses de idas e vindas enquanto Léry morava no forte Coligny, e dois meses de vida, por assim dizer, comum quando, seguido pelos seus companheiros, se retirou "au lieu dit par les François la Briqueterie" (capt. VI, p. 196), à entrada da baía de Guanabara. As aldeias nomeadas e frequentemente situadas com precisão, servem de enquadramento à investigação e às experiências do autor.

Saber para Léry resume-se a ver e compreender. O saber baseia-se na observação do real, o olhar está no centro da história que é para ele um

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objecto de ciência. Mas é preciso também compreender o que se vê, e essa compreensão só pode existir se passar pela comunicação com o Outro.

Desde as suas primeiras experiências no país Tupinambá, Léry toma consciência da importância de entender as maneiras de agir dos selvagens, de interpretar correctamente um código gestual que não lhe pertence, e da necessidade portanto de comunicar. Esforçar-se-á por aprender os rudimentos da linguagem daquele povo e, de acordo com os conselhos do seu intérprete, de adquirir a sua confiança ao adaptar o seu nome a fim de o tornar compreensível para eles. Não conseguindo os Tupinambás pronunciar, nem reter os nomes franceses, "il me falloit accommoder de leur nommer quelque chose qui leur fust cognue" (capt. xvrn, p. 450). A sorte sorriu­-lhe: " ... mon sumom Lery, signifie une huitre en leur langage, je leur dis que je m 'appellois Lery-oussou: c' est à dire une grosse huitre. " (lbid.) O efeito é imediato, partilha-se a alegria do conhecimento e o riso.

A "adaptação" ao Outro permanece uma preocupação constante de Léry. É a ilustração prática de um princípio do humanismo de Thomas More e de Erasmo evidenciado no Elogio da Loucura (1508), "a arte de se colocar à altura de todos", que está na base da sua pedagogia simples e eficaz, tanto para se compreender como para se fazer compreender por outrém.

A Histoire d'un voyage en terre de Brésil oferece uma grande quantidade de termos e expressões usuais da vida quotidiana dos Tupinambás. Estes são por vezes traduzidos, dando-se os diferentes sentidos da palavra, e eventualmente a sua pronúncia. Esta obra é de igual modo um guia de boas maneiras que se devem observar quando se visitarem os Brasileiros para não se entrar em conflito com eles. A propósito, um parágrafo do Capítulo xvrn, que trata da vida social dos selvagens, intitula-se: "Contenance du voyager en I'Amerique". O "Colóquio" que fecha a parte consagrada à descrição do mundo tupinambá (capt. XX) retoma sistematicamente o vocabulário disseminado nos capítulos anteriores, assim como uma sua extensão. Mais uma vez nos apercebemos da importância que Jean de Léry atribui à comunicação e à linguagem. A língua é considerada como utensílio indispensável de penetração e de compreensão, como um instrumento privilegiado de conhecimento.

Léry sabe que o sentimento de estranhamento e o "espanto" são recíprocos e que é preciso transpor o limiar que poderia paralisar a surpresa. É preciso aproximar-se, "acomodar-se" às singularidades do Outro, comunicar, compreender a diferença para a dar a conhecer, e talvez também para encontrar, para além da alteridade, uma semelhança humana.

Ele comunica ao leitor os seus próprios espantos, frequentemente com humor, mostrando como o ou os Franceses, o Outro para os Tupinambás, lhes oferece um espectáculo singular, "ils trouvent nostre façon fort

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estrange ... ", que pode ser um objecto de riso da parte dos selvagens, ou de uma reflexão crítica com marcas de bom senso. Ao espanto dos Europeus quando vêem pela primeira vez mulheres nuas, corresponde a admiração dos Índios quando contemplam mulheres vestidas, que os surpreendem muito mais do que as cerimónias eclesiásticas celebradas no forte Coligny (capt. VI). As maneiras dos Franceses à mesa são assunto de piadas reiteradas da parte dos selvagens que se divertem ao vê-los misturar a bebida com a comida e de os ouvir "tagarelar" durante toda a refeição (capt. IX, p. 250-251). Quanto às armas de que os Franceses se orgulham tanto, depois de os terem "esbahis bien fort", suscitam depressa o gozo dos homens "disans (eomme il est vray) qu' avee leurs ares ils auront plustost delasehé cinq ou sixflesehes qu' onaura ehargé ettiré un eoup d' harquebuze" (capt. XIV, p. 342). Os exemplos da visão do Outro - sendo o Outro o estrangeiro no país tupinambá - são numerosos e pertinentes.

A simplicidade e a coerência do universo de Léry revela-se através do imbricar da vida quotidiana observada na narrativa sagrada: o pão e o vinho são a base do regime alimentar e o centro do ofício divino. Léry parece ser o habitante de um mundo uno, e teológico, em que a solidez das narrativas assegura o quotidiano: ele surpreende-se que os Tupinambás, que ignoram a Génese, vivam numa era sem forma nem direcção. A descoberta dos povos nus ameaça, por si só, a noção de "natureza" humana que Léry retirou da Escritura. Quando fala dos vícios dos selvagens, ou das suas "fantasias" mais absurdas, ele visa através deles a corrupção do seu próprio país. A Histoire é já um exemplo de discurso oblíquo: ao falar do Outro, o viajante etnólogo interpela o mundo de que está dissociado.

A Histoire d'un voyage en terre de Brésil é o olhar de Léry sobre o Outro, é também o seu olhar a partir do Outro e o olhar do Outro, o dos Tupinambás, lançado sobre os Franceses cujo encontro é fonte de espanto, de curiosidade, de riso, de reflexão ... de onde brota a sua plena humanidade, revelada através destes sentimentos diversos, a palavra e o raciocínio. Se o "eu" domina o inventário do mundo tupinambá nos primeiros capítulos consagrados à descrição física do mundo vivo, da natureza (capt. VIII a XIII), os "eles" adquirem cada vez mais importância e impõem-se ao longo dos seis capítulos seguintes que tratam dos costumes e hábitos dos selvagens, melhor dizendo da sua cultura. Léry dá a palavra aos Tupinambás, reproduzindo em discurso directo (capt. XIV a XIX). Expressões como "ils disoyent", "ils disoyent en leur langage", "ã ce qu'ils nous avoient dit", "ils disoyent l'un l'autre" ocupam o primeiro lugar no capítulo XVI que trata do assunto particularmente delicado e controverso de "Ce qu'on peut appeler religion entre les sauvages Ameriquains".

Se o Índio é um objecto de descrição, ele é também um indivíduo por inteiro e um interlocutor ouvido quando se trata da sua própria civilização,

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que Léry não conseguiria apreender e compreender completamente sem ele, fora dele. Léry organiza um espaço de pensamento em que os diferentes protagonistas, em que os "eus", os "eles", os "nós" franceses ou tupinambás, os Tupinambás tomados colectivamente ou individualisados possam exprimir-se. Um diálogo instaura-se em que o pensamento se elabora de acordo com as perguntas e as respostas. A atenção é a mesma de um lado e do outro: "ils sont merveilleusement attentifs à ce qu' on leur dist ... " (capt. XIV, p. 338). Eles são bons faladores, mas não falam levianamente, reflectem e argumentam.

As respostas de Léry são reveladoras da interiorização de certos esquemas de pensamento indígenas que lhe servem para se exprimir, fora dos "acomodamentos" pedagógicos. É por isso que ele utiliza, quando se dirige aos indígenas, expressões que lhes são conhecidas e às quais eles não terão de se adequar.

Um dos maiores méritos de Léry, e a sua originalidade, para além da observação que se pode qualificar de pré-científica e de pré-etnográfica, e a tentativa em elaborar um saber objectivo, é o de ter instaurado uma troca com os Índios, uma troca de pensamento através do diálogo, baseado na atenção ao Outro e no respeito humano. A Histoire d'un voyage en terre de Brésil não é nem um monólogo do descobridor confinado à sua própria cultura, nem um catálogo das singularidades do novo mundo descoberto, é antes uma abertura para o Outro, ao Outro, um "colloque" - termo empregue por Léry (capt. XVI) - quer dizer um diálogo e um debate a várias vozes que revela uma humanidade nova, em que se exprime a realidade tupi na sua verdade humana diferente e, contudo, semelhante - "colloque" é também o título do capítulo XX que termina a estadia no país tupinambá. É o reflexo do microcosmo observado, assim como uma nova abertura para o mundo tupi num último diálogo, cuja ideia permanece como elemento fundamental do conhecimento e da atitude a tomar no encontro com os homens. É por aqui que Léry lança as bases de um saber realmente novo.

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que Léry não conseguiria apreender e compreender completamente sem ele, fora dele. Léry organiza um espaço de pensamento em que os diferentes protagonistas, em que os "eus", os "eles", os "nós" franceses ou tupinambás, os Tupinambás tomados colectivamente ou individualisados possam exprimir-se. Um diálogo instaura-se em que o pensamento se elabora de acordo com as perguntas e as respostas. A atenção é a mesma de um lado e do outro: "ils sont merveilleusement attentifs à ce qu ' on leur dist ... " ( capt. XIV, p. 338). Eles são bons faladores, mas não falam levianamente, reflectem e argumentam.

As respostas de Léry são reveladoras da interiorização de certos esquemas de pensamento indígenas que lhe servem para se exprimir, fora dos "acomodamentos" pedagógicos. É por isso que ele utiliza, quando se dirige aos indígenas, expressões que lhes são conhecidas e às quais eles não terão de se adequar.

Um dos maiores méritos de Léry, e a sua originalidade, para além da observação que se pode qualificar de pré-científica e de pré-etnográfica, e a tentativa em elaborar um saber objectivo, é o de ter instaurado uma troca com os Índios, uma troca de pensamento através do diálogo, baseado na atenção ao Outro e no respeito humano. A Histoire d'un voyage en terre de Brésil não é nem um monólogo do descobridor confinado à sua própria cultura, nem um catálogo das singularidades do novo mundo descoberto, é antes uma abertura para o Outro, ao Outro, um "colloque" - termo empregue por Léry (capt. XVI) - quer dizer um diálogo e um debate a várias vozes que revela uma humanidade nova, em que se exprime a realidade tupi na sua verdade humana diferente e, contudo, semelhante - "colloque" é também o título do capítulo XX que termina a estadia no país tupinambá. É o reflexo do microcosmo observado, assim como uma nova abertura para o mundo tupi num último diálogo, cuja ideia permanece como elemento fundamental do conhecimento e da atitude a tomar no encontro com os homens. É por aqui que Léry lança as bases de um saber realmente novo.