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Texto de Paulo Mendes Campos, 1957.
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DE REPENTE
Paulo Mendes Campos
E de repente, caminhando nesse dia de novembro, atribulado de deveres, no
trigsimo quinto ano de minha histria confusa e malbaratada, quando todas as
amarguras j bebi, nem de todo sbio, nem de todo bobo, no tendo outro propsito no
esprito seno o de abrir bem os olhos, pegar os objetos, ouvir, provar os vinhos turvos,
respirar este aroma vegetal de outras tardes antigas, receber, enfim, a ddiva dos
sentidos e cumpri-la, aquecendo-me ao sol, molhando-me na chuva, banhando-me no
mar, de repente, em meu caminho, cruzando por um cego embriagado e crianas de
uniforme, imaginando com remorso que a gente esperdia tempo demais a trabalhar sem
amor, de repente, sem qualquer disposio para o jornalismo, grave e sereno s quatro
horas da tarde, empenhado em no deixar o dia partir inutilmente, dedicando-me com
toda a honestidade a enamorar-me do mundo, pelo menos deste momento irresistvel, de
repente ocorreu-me de novo o milagre, e doeu-me coisa espantosa uma saudade
magnfica de Paris na primavera, os pltanos agitando as ramas no ar silente, os bancos
beira do rio, onde li e reli que sob a ponte Mirabeau corre o Sena, e a alegria sempre
vinha aps a pena, e era uma saudade mais de mim a vadiar pelas ruas e os bosques,
indo e vindo pelo cais da margem esquerda, remexendo livros empoeirados, admirando
a cor e o impondervel, brincando com as pontes todas o eterno jogo da poesia,
afeioando-me at morrer pela ilha de So Lus, as torres gticas encastoadas em luz de
ouro, e outras cores, outras ramagens, ruas que faziam por si mesmas, e o meu destino,
os vinhos tintos do crepsculo, as brisas eufricas, uma saudade, disse eu, sem jeito,
ferica, Rue Gt-Le-Couer, Rue de Hautefeuille, Rue de la Harpe, uma saudade que me
dispersava, fatalizando-me suavemente, inclinando-me s guas quimricas do tempo,
como me perco no olhar de quem amo.
13 nov. 1957