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DEBATE O MARXISMO E A DESAGREGAÇÃO DA UNIÃO SOVIÉTICA Marx e o Colapso da União Soviética JORGE MIGLIOLI* * Professor da Universidade Estadual Paulista (Araraquara). Nas últimas décadas do século XIX e nas duas primeiras do presente século, populistas e marxistas russos muito discutiram a idéia de Marx de que o socialismo somente seria historicamente possível depois que o capitalismo tivesse desenvolvido todas suas forças produtivas. Em sua época, Marx achava que pouquíssimos países se encontravam suficientemente avançados para uma revolução socialista, e entre eles certamente não estava a Rússia czarista. Esta idéia se apoiava em sua concepção de sistema sócio-econômico (ou formação social, para usar um termo mais em moda), e, por exemplo, no Prefácio à Contribuição para a Crítica da Economia Política ele escreveu: "Em certo estágio de desenvolvimento as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que é sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais tinham-se movido até então" e "uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca é substituída por relações de produção novas e superiores antes que as condições materiais de existência dessas relações se produzam no próprio seio da velha sociedade". Portanto, no que se refere a capitalismo e socialismo, este último só é possível quando o primeiro já se encontra em sua plena maturidade, já desenvolveu todas as suas potencialidades. Desta idéia decorrem algumas indagações relevantes para o movimento socialista. Por exemplo: o capitalismo teria um fim automático, resultante de tendências internas degenerativas, ou

Debate o Marxismo e a Desagregação Da União Soviética

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Debate retirado do dossiê elaborado pela Revista Crítica Marxista quando da derrocada da URSS, reunindo intervenções de vários pensadores marxistas.

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DEBATE O MARXISMO E A DESAGREGAO DA UNIO SOVITICA

Marx e o Colapso da Unio Sovitica JORGE MIGLIOLI* * Professor da Universidade Estadual Paulista (Araraquara).

Nas ltimas dcadas do sculo XIX e nas duas primeiras do presente sculo, populistas e marxistas russos muito discutiram a idia de Marx de que o socialismo somente seria historicamente possvel depois que o capitalismo tivesse desenvolvido todas suas foras produtivas. Em sua poca, Marx achava que pouqussimos pases se encontravam suficientemente avanados para uma revoluo socialista, e entre eles certamente no estava a Rssia czarista. Esta idia se apoiava em sua concepo de sistema scio-econmico (ou formao social, para usar um termo mais em moda), e, por exemplo, no Prefcio Contribuio para a Crtica da Economia Poltica ele escreveu: "Em certo estgio de desenvolvimento as foras produtivas materiais da sociedade entram em contradio com as relaes de produo existentes, ou, o que sua expresso jurdica, com as relaes de propriedade no seio das quais tinham-se movido at ento" e "uma organizao social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as foras produtivas que ela capaz de conter; nunca substituda por relaes de produo novas e superiores antes que as condies materiais de existncia dessas relaes se produzam no prprio seio da velha sociedade". Portanto, no que se refere a capitalismo e socialismo, este ltimo s possvel quando o primeiro j se encontra em sua plena maturidade, j desenvolveu todas as suas potencialidades.Desta idia decorrem algumas indagaes relevantes para o movimento socialista. Por exemplo: o capitalismo teria um fim automtico, resultante de tendncias internas degenerativas, ou precisaria ser derrubado por foras sociais revolucionrias? (Este constituiu o tema do grande debate sobre o colapso do capitalismo realizado principalmente nas primeiras dcadas deste sculo).Aceitando a posio no-determinista de que o capitalismo no desmorona por si mesmo, resta a questo de como saber o momento em que esse sistema j desenvolveu todas as suas potencialidades e, portanto, est maduro para ser derrubado, seja de forma progressiva (como pretendiam os social-democratas) ou seja de forma abrupta (como queriam os comunistas). Uma terceira questo, extremamente interessante, mas raramente levantada, refere-se ao sistema socioeconmico que substituiria o capitalismo: ele teria de ser necessariamente o socialismo (como est suposto no pensamento marxista) ou poderia ser um outro sistema ainda no visualizado ou percebido? Neste ponto preciso no descartar a hiptese de que esse "terceiro" sistema poderia at mesmo ser o produto involuntrio de foras sociais favorveis ao socialismo, de acordo com a idia de Marx de que embora sejam os prprios homens que faam a histria, o resultado no necessariamente o desejado por eles.Tudo isso tem a ver com nascimento, crescimento e morte da Unio Sovitica (e de outros pases denominados "socialistas"). A URSS serve como exemplo da tentativa de substituir o capitalismo por um "terceiro" sistema, apesar de o objetivo inicial ter sido a criao do socialismo. Seria uma agresso histria e memria dos comunistas russos que fizeram a revoluo negar-Ihes a inteno de criar um sistema socialista. Contudo, o resultado final, que comeou a se delinear a partir do perodo da NEP - Nova Poltica Econmica (na metade da dcada de 1920) foi a instaurao de um "terceiro" sistema, nem capitalista nem socialista e que tendeu a se afastar cada vez mais deste ltimo.Sem dvida, alguns elementos da teoria marxista, ou do que se interpretava como tal, e quase que exclusivamente na rea econmica, foram incorporados ou experimentados, mas o sistema vigente na Unio Sovitica tinha muito pouco em comum com os princpios do socialismo. O discurso oficial, mascarado de socialista-marxista e que convenceu tanta gente, foi usado para legitimar o sistema dentro e fora da URSS, para captar a simpatia e o apoio dos trabalhadores e dos movimentos socialistas (comunistas) de todo o mundo, em defesa dos interesses do Estado sovitico colocados acima dos interesses desses movimentos.Assim, o que desmoronou no territrio da Unio Sovitica (e de outros pases do Leste Europeu) no foi o ou um sistema socioeconmico socialista, mas sim a tentativa de consolidao de um "terceiro" sistema, que pode ser chamado de sovitico. Mas por que desmoronou? Os dois elementos bsicos para explicar o colapso esto contidos na idia de Marx mencionada anteriormente: 1. o sistema sovitico tentou substituir o capitalismo antes que este desenvolvesse na Rssia as suas foras produtivas, e 2. o sistema sovitico estava em contradio com o desenvolvimento dessas foras.Todo o esforo da URSS se concentrou em promover o desenvolvimento econmico baseado numa industrializao forada e voltado principalmente para as necessidades militares, s custas do consumo popular, de um enorme esforo de trabalho, represso poltica, migraes compulsrias de grandes massas populacionais etc. O desenvolvimento atingido pela URSS poderia ter sido conseguido, embora de maneira mais lenta, porm com menos sacrifcio da populao, dentro do capitalismo, principalmente se este contasse com uma organizao eficiente e o apoio do mundo ocidental (como o Plano Marshall aps a Segunda Guerra Mundial). Para o sistema sovitico, a tentativa de substituir o capitalismo antes que este tivesse alcanado um certo nvel de desenvolvimento (representado por um melhor nvel de renda e de consumo e por um avano dos direitos polticos e individuais, como os conquistados nos pases capitalistas centrais) constituiu um tremendo desgaste junto a sua populao - a qual, na primeira oportunidade, manifestou seu repdio ao sistema.Para atingir seu objetivo fundamental- um desenvolvimento econmico em nada diferente do capitalista -, o sistema sovitico se apoiou numa estrutura cujos pilares principais eram a propriedade estatal dos meios de produo (com algumas concesses para as cooperativas), a forma extremamente centralizada de planejamento e gesto da economia, o trabalho assalariado e o modelo fordista de explorao do trabalho. At a dcada de 1950, baseando-se no uso extensivo de recursos naturais e de mo-de-obra, e mesmo com baixa produtividade, a URSS conseguiu atingir altas taxas de crescimento econmico, quando comparadas com as do mundo capitalista central, que passava por um longo perodo de estagnao. Quando, a partir da, o capitalismo reiniciou sua expanso econmica, acompanhada de importantes avanos sociais e polticos, a Unio Sovitica no conseguiu acompanh-la.Seu sistema mostrou-se incompatvel com o desenvolvimento das foras produtivas e com o progresso social e poltico. Na dcada de 1960 o sistema deu evidentes sinais de crise de esgotamento; as diversas propostas de reforma (grande parte das quais postulava maior aproximao com o capitalismo) no deram certo ou no foram aplicadas; a crise se aprofundou e no final da dcada de 1980 veio o inevitvel colapso.

Socialismo Real e Socializao do Poder PolticoJOS PAULO NETTO** Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A crise do socialismo real, explodindo nos ltimos anos da dcada passada, derivou num panorama espantoso. O que se mostra, sob os escombros do sorex (socialismo realmente existente), no somente o colapso material de regies inteiras que regridem rapidamente em nveis de vida tpicos do "Terceiro Mundo"; este colapso (parece inconteste a emerso de uma criminalidade que se julgava prpria da ordem burguesa) e degradao ideal (os valores do american way of life se atualizam na vida cotidiana, ao lado da revivescncia de particularismos horrendos) e o que podemos chamar de exemplarizao negativa - as implicaes da desmoralizao do projeto socialista, identificado ao "socialismo de caserna", esto custando (e ainda custaro por longo tempo) caro aos legatrios da revoluo.Esta corte de implicaes barbarizantes; bem como as expresses particulares da crise, no deve servir para ocultar o que me parece ser a gnese do processo, tomada em sua universalidade: a dissincronia que se foi instaurando entre as instituies constitutivas do sistema sociopoltico e as exigncias do ordenamento econmico das sociedades ps-revolucionrias. A reduzida socializao do poder poltico (cristalizada pela autocracia stalinista) era congruente com a estrangulada socializao da economia (resumida na estatizao). Enquanto perdurou um padro de desenvolvimento econmico extensivo, suportvel por estruturas sociopolticas rgidas e excludentes, esta relao no teve efeitos que no pudessem ser ultrapassados. Quando, em meados da dcada de 70, tomou-se imperativo (pela exausto do desenvolvimento extensivo, que j consolidara uma sociedade urbano-industrial) um padro de desenvolvimento intensivo, a dissincronia comprometeu-o visceralmente - porque um tal padro incompatvel seja com um ordenamento econmico estatizado burocraticamente, seja com o seu imbricado e correspondente sistema sociopoltico, de baixssima participao autnoma. Paradoxalmente, a crise do socialismo real resultou do seu sucesso em promover, num lapso temporal extremamente apertado, o que seriam as pr-condies para a transio socialista, aquelas inerentes a uma sociedade urbano-industrial: quando logrou criar tais condies, o arcabouo sociopoltico em que se assentava colidiu com as exigncias da lgica de uma economia de que fora suprimida a elementar mediao societal do mercado.Assim vista, a crise do socialismo real tem uma inequvoca centralidade poltica, a que remetem os bloqueios do desenvolvimento econmico: deriva da ausncia de uma plena socializao do poder poltico - s a implementao da democracia socialista, capaz de socializar efetivamente o poder poltico e rebater imediatamente no ordenamento econmico, com reais processos autogestionrios aptos para otimizar (com a liquidao de traos e excrescncias burocrticas) a alocao central de recursos, poderia garantir o desenvolvimento exitoso das experincias ps-revolucionrias.Nesta angulao, a crise do socialismo real apenas comprova que a superao positiva da ordem do capital reclama as substantivas socializaes do poder poltico e da economia, sem as quais a alternativa comunista impensvel. a crise de uma forma histrica precisa de transio, aquela que se processou localizadamente nas reas em que as instituies prprias do mundo burgus mostravam-se atrofiadas. No , pois, afirmao do projeto socialista revolucionrio nem a negao da possibilidade da transio socialista. Seu significado histrico-universal parece-me claro: ela demonstra que a viabilidade da superao da ordem do capital funo de uma radical democratizao da vida econmica, social e poltica to incompatvel com os limites do movimento do capital (e seus loci necessrios, como o mercado) quanto com as restries de uma ditadura exercida, ainda que em seu nome, sobre os trabalhadores.Se esta perspectiva de anlise correta, fica patente a inpcia da referncia a um qualquer "fim da histria". A crise do socialismo real inscreve-se no como a falncia do projeto socialista revolucionrio que visa ao comunismo ou como a derrocada da concepo terica que o funda (a teoria social marxiana), mas antes como um captulo dramtico num processo histrico de longo curso: aquele em que o domnio do capital (que Mszros j indicou ser diferente de domnio do capitalismo) revela a sua crise estrutural geral. De fato, o que peculiariza a quadra atual da histria contempornea o entrecruzamento da crise do socialismo real com a crise da ltima forma "democrtica" do mundo burgus: o chamado Estado de bem-estar social. O que se pode denominar de crise contempornea precisamente a convergncia do fracasso das experincias ps-revolucionrias com o fim das iluses do welfare state.Se se puder conceber o "fim da histria", ento o ponto mega a barbrie (de que a ofensiva neoliberal somente a retrica necessria). Mas o tratamento menos epidrmico do que se passa no Leste e no Oeste assegura que no existe um nico indcio capaz de sugerir que a velha toupeira tenha concludo o seu trabalho eversivo.

A Difcil Supresso das Relaes Mercantis JOO QUARTIM DE MORAES** Professor do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas.

A dificuldade liminar da questo - como se pode compreender, do ponto de vista do marxismo, a desagregao da Unio Sovitica? - est em esclarecer o que devemos entender por ponto de vista do marxismo. No caso, certamente no h de ser a letra dos textos de Marx e Engels. Nenhum dos dois previu nada semelhante Unio Sovitica e ao hoje extinto "campo socialista internacional" ou "socialismo real". Seria ento o esprito de seus escritos? Sem dvida, mas como ele no est na letra como o fruto em sua casca, mais fcil invoc-lo do que defini-lo. Dispomos, entretanto, de uma slida exposio, no mais rigoroso esprito marxista, dos princpios polticos da revoluo socialista. Por uma no casual ironia histrica, O Estado e a Revoluo (j que evidentemente a esta obra maior de Lenin que estamos nos referindo) foi redigido antes (em agosto-setembro de 1917) e publicado logo depois (incio de 1918) da Grande Revoluo de Outubro.Atualizao recapitulada dos escritos de Marx e de Engels sobre as experincias revolucionrias do proletariado parisiense, em especial a da Comuna de Paris, essa sntese lenineana reafirma, contra o rebaixamento terico do programa da Internacional Socialista (sob o influxo preponderante da ala direita conduzida por Bernstein e do centro kautskista), o valor universal das formas de organizao do poder poltico corporificadas na efmera mas grandiosa tentativa revolucionria empreendida em 1871 pelos operrios franceses. A ironia cronolgica de O Estado e a Revoluo est em que, reiterando, s vsperas da Revoluo de Outubro, a concepo marxista do Estado operrio como forma poltica de superao da forma estatal, fixava de antemo o mais ntido parmetro terico para criticar o Estado que iria realmente ser engendrado pela revoluo. Embora tenha vivido o suficiente para apontar as deformaes burocrticas precoces da Repblica dos Sovietes, tampouco Lnin pde preverque a tomada do poder pela classe operria russa, a destruio da mquina burocrtico-militar do czarismo, a coletivizao dos meios essenciais de produo, no conduziriam aos exaltantes objetivos histricos em nome dos quais se fizera a Revoluo.As derrotas sofridas pela classe operria alem, hngara e italiana, notadamente, entre 1918 e 1924, ao bloquear o avano internacional da revoluo proletria, bloquearam tambm as perspectivas de desenvolvimento acelerado da Rssia sovitica. Vale lembrar que no somente Marx, Engels e outros dirigentes socialistas do sculo XIX, mas tambm os bolcheviques e todos os comunistas do primeiro quarto do sculo XX - aqueles que fundaram e dirigiram o Komintern - conceberam a revoluo proletria como um processo internacional. Estavam a tal ponto convencidos de que nos escombros materiais e morais deixados pela grande guerra interimperialista de 1914-18 a "ordem nova" operria e socialista iria se impor no apenas na Rssia, mas em toda a Europa e de que, portanto, Outubro de 1917 havia configurado apenas o incio de um processo de envergadura planetria, que Lenin, em 1919, ao abrir o congresso de fundao do Komintern, saudou os participantes anunciando estar prxima a hora da fundao da Repblica Sovitica Mundial...As medidas ditatoriais adotadas pelos bolcheviques durante o chamado comunismo de guerra (1918-22) foram portanto concebidas como excepcionais. Configuravam sem dvida um desvio de rota relativamente ao paradigma da Comuna de Paris e ao prprio conceito de ditadura do proletariado, j que em vez de direo poltica da sociedade pela classe operria organizada, isto , em vez de ditadura de classe, havia na Rssia sovitica a ditadura do Partido Bolchevique.Com a notvel exceo de Rosa Luxemburgo, os principais tericos e dirigentes marxistas revolucionrios aceitaram a necessidade daquele desvio de rota, entendendo-o como um recuo ttico imposto pela fora das circunstncias. O assassinato de Rosa Luxemburgo em janeiro de 1919 pela contra-revoluo alem, sem destruir seus argumentos a favor da democracia socialista, reforou a opinio dos dirigentes bolcheviques de que violncia contra-revolucionria era imperativo contrapor a violncia revolucionria.Ao recuo ttico da ditadura de classe para a ditadura do Partido somou-se, a partir de 1923, com a adoo da "nova poltica econmica" (NEP), novo recuo, tambm concebido como ttico, mas afetando agora a base econmica da sociedade. A NEP, com efeito, consistiu no apelo ao potencial de desenvolvimento capitalista de amplos setores, principalmente agrrios, da economia sovitica.Embora conservando a propriedade eminente do solo, o Estado operrio cedeu-o lhe a posse pequena e mdia empresa camponesa. A NEP.durou muito menos do que o previsto e a ditadura do Partido muito mais. Nesta dupla dissincronia resume-se o desencontro histrico do poder bolchevique com a poltica marxista. Trotski, como se sabe, foi o primeiro dirigente comunista de envergadura a teorizar este desencontro. A Revoluo Trada, que publicou em 1936, desenvolve uma interpretao global da degenerescncia burocrtica do Estado operrio sovitico, sustentando notadamente que a apropriao do poder poltico pelo Partido Bolchevique e sua conseqente fuso com o aparelho estatal havia engendrado um estrato ou camada burocrtica que preservara as bases econmicas do socialismo (coletivizao dos meios de produo), mas colocando-as a servio de seus interesses particulares de categoria social privilegiada.Embora a crtica de Trotski abrangesse todos os aspectos da sociedade sovitica submetida ditadura staliniana - quela altura j francamente terrorista -, o princpio de explicao em que se apoiava era assumidamente poltico (usurpao burocrtico-ditatorial do poder operrio). O contedo econmico de sua crtica cinge-se ao inventrio das distores e disfuncionamentos resultantes da gesto burocrtica do aparelho produtivo. A natureza das relaes de produo e conseqentemente o prprio modo de produo da economia sovitica no so analisados concretamente em sua singularidade histrica. A Revoluo Trada permanece prisioneira da contradio que pertinentemente formulou: de um lado o carter objetivamente socialista da base econmica; de outro, sua apropriao pela burocracia staliniana. Nesta contradio no resolvida configuram-se a fora e a fraqueza da interpretao de Trotski.A fora: permaneceu vlida at o fim - isto , at Gorbachov - a tese de que o fator estratgico do bloqueio da evoluo socialista da Unio Sovitica residia na autonomizao do poder poltico relativamente sociedade e notadamente em relao classe operria. A apropriao do Estado pela burocracia, a osmose do aparelho de Estado com o aparelho do Partido, a concentrao ditatorial de todos os poderes efetivos na cpula do Partido-Estado, enfim, a metamorfose da ditadura do proletariado em ditadura sobre o proletariado constituram, ao longo das dcadas que seguiram a publicao de A Revoluo Trada, o ponto de referncia do debate marxista sobre a Unio Sovitica.A fraqueza: a insuficincia de sua anlise econmica e, portanto, da elucidao das relaes de produo na URSS. Deixa sem resposta terica a determinao da lgica objetiva da evoluo da economia sovitica.A busca desta resposta passava pela superao crtica do carter superestrutural da explicao trotskista, atravs da hiptese de que a burocracia constitua uma classe social, concebida por alguns como de tipo novo (assim o marxista italiano Umberto Melotti identificou um novo modo de produo na sociedade sovitica, o coletivismo burocrtico), por outros, como restabelecimento do capitalismo (tese sustentada pelos comunistas chineses aps sua ruptura com a URSS).O desmantelamento abrupto do "socialismo real", por menos eclticos que queiramos ser, no desmentiu nem confirmou nenhuma dessas hipteses. A fulminante rapidez com que se processou, primeiro nas "democracias populares", depois na URSS, a tomada do poder pela reao liberal d parcialmente razo s teses trotskistas, na medida em que ficou demonstrada a falta de consistncia histrica da burocracia: ela parece ter se comportado, de fato, no como uma classe dominante, mas como uma categoria superestrutural umbilicalmente ligada s estruturas do Estado e do Partido. Porm o fato, tambm incontestvel, de que a derrocada da burocracia deu lugar no a um avano da classe operria e do socialismo, mas a um retrocesso generalizado, desmente o utopismo messinico da "revoluo permanente" e aponta para a questo decisiva que o trotskismo no pensou: a lgica objetiva das relaes de produo do "socialismo real".Mais ambgua ainda a verificao da tese maosta de que desde Kruchov o capitalismo havia sido restabelecido na URSS. Se a tese fosse verdadeira, ento a capitulao de Gorbatchov diante do liberalismo ranosamente reacionrio de Boris Ieltsin et caterva e a catica demolio das estruturas econmicas soviticas no teriam maior significao, j que de h muito l estaria instaurado o capitalismo. Antiteticamente, porm, cabe notar que a rpida e voraz reconverso ao capitalismo de ampla parcela de funcionrios do Partido e do Estado do extinto socialismo real mostrou que continuava fortemente ativa neste modo de produo sui generis a funo da moeda como cristalizao da riqueza social e, portanto, a possibilidade de restabelecer, mediante a liquidao do coletivismo estatal e da planificao, a lgica da acumulao capitalista.A questo da persistncia da moeda e das relaes mercantis em todos os pases do campo socialista internacional, agora reduzido quase completamente sia, constitui o mais srio desafio terico para o marxismo contemporneo. A URSS e adjacncias desabaram porque no conseguiram ultrapassar a etapa estatal da coletivizao dos meios de produo. Conseqentemente, a planificao central, instncia investida da funo decisiva de coordenar os meios de produo em vista da satisfao das necessidades e objetivos sociais, permaneceu tambm cristalizada em seu momento estatal, aprofundando assim a contradio entre o interesse da burocracia e os interesses da sociedade. Resolver progressivamente essa contradio seria fortalecer o princpio do controle social relativamente ao controle estatal e, portanto, superar a planificao burocrtica pela planificao democrtica. Havia, porm, uma forma historicamente regressiva de supresso da contradio entre a apropriao estatal dos meios de produo e as foras sociais de produo: a instaurao da propriedade capitalista. Foi esta aopo de Gorbatchov, que Boris Ieltsin levou adiante, com efeitos catastrficos.

Marxismo e Capitalismo de EstadoMRCIO BILHARINHO NAVES** Professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas.

Ao significado no apenas do fim de uma experincia supostamente socialista, mas o da impossibilidade mesma do socialismo, e a fortiori, do desintegrao do chamado "socialismo real" passou a ter para muitos marxismo enquanto teoria que empresta um fundamento cientfico ao socialismo. Evidentemente, dbcle da Unio Sovitica e de outros pases do Leste europeu serviu e vem servindo como um instrumento da luta de classes ideolgica que a burguesia utiliza para desarmar terica e politicamente a classe operria. Proclamando o "fim da histria", isto , a eternidade das relaes sociais capitalistas, a classe dominante procura encerrar os trabalhadores em uma vida desprovida de sentido e de razo, em que possa reinar tranqila e definitivamente sobre uma classe operria dcil e conformada com a explorao do capital. Isso, no entanto, no elide a necessidade de os marxistas procurarem pensar com rigor a experincia sovitica, notadamente porque a Unio Sovitica foi, durante um largo perodo histrico, considerada como o "modelo" do socialismo, e no so poucos os que, apesar de tudo, ainda no se libertaram completamente dessa concepo.Para que se possa compreender, do ponto de vista do marxismo, as contradies e a crise do suposto socialismo sovitico, necessrio proceder crtica da representao do socialismo dominante no movimento comunista, que provm diretamente do "marxismo" da Segunda Internacional, e passar ao exame das contradies que permearam a experincia sovitica.Essa representao consiste em identificar o socialismo com a propriedade estatal dos meios de produo, de modo que a simples transferncia para o Estado dos meios de produo a condio necessria e suficiente para que se constituam novas relaes de produo socialistas.

Uma tal concepo implica, assim, definir o socialismo por um elemento jurdico - a transferncia de propriedade -, concedendo a primazia na caracterizao de uma formao social a um elemento da superestrutura, em vez de remeter a determinao desse elemento e de toda a formao social base econmica. Dessa primeira dificuldade de natureza metodolgica decorrem outras, que deixam revelar o quanto essa concepo estranha ao marxismo, e a que interesses de classe ela serve. Ao se identificar o socialismo com uma mera operao que se passa no domnio do direito, perde-se de vista o essencial, que os elementos que permitem caracterizar uma formao social so a natureza das relaes de produo e o carter das foras produtivas. A conquista do poder poltico e a decorrente expropriao da burguesia no so suficientes por si ss para extinguir as relaes sociais capitalistas, que remanescem porque a simples transferncia de titularidade no pode alterar a sua natureza, que no determinada pelo direito, mas por um modo especfico de articulao entre os meios de produo e o trabalhador direto. Aps a revoluo, a luta de classes prossegue, com a classe operria procurando, por um lado, destruir o ncleo duro das relaes sociais capitalistas, justamente aquilo que permite a dominao e a expropriao do trabalhador: uma dada organizao do processo de trabalho que retira do operrio todo e qualquer controle das condies materiais da produo e do produto de seu trabalho, e que se funda na diviso entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, e na diviso entre as tarefas de direo e de execuo. E, por outro lado, procurando destruir o aparelho de Estado burgus, visando, por meio da ditadura do proletariado, transform-lo em algo que j no seja mais propriamente um Estado, isto , procurando criar as condies para a sua extino. O socialismo precisamente esse perodo detransio do capitalismo para o comunismo no qual a classe operria luta para operar essas transformaes na base econmica do capitalismo, e para se apropriar efetivamente - e no apenas formalmente - do poder.Na ausncia desse esforo de revolucionarizao das relaes de produo, com a conseqente instaurao de novas foras produtivas, de carter comunista, e de transformao do Estado com o objetivo final de substitu-lo por organizaes de massa, o modo de produo capitalista no atingido, a lgica do capital continua a prevalecer, e o Estado permanece como uma instncia que separa as massas do poder e as reprime, de tal sorte que os agentes sociais que dirigem o processo de produo, que controlam o produto do trabalho e que dominam o aparelho de Estado, passam a se constituir em uma burguesia de novo tipo, uma burguesia de Estado, que se diferencia da antiga burguesia por no deter o ttulo de proprietria privada dos meios de produo, mas deles se apropriando pela mediao do Estado. isso que autoriza a considerar uma formao social com tais caractersticas como sendo um capitalismo de Estado, no qual os meios de produo pertencem formalmente ao Estado, mas que, na ausncia de uma verdadeira transformao das relaes de produo capitalistas, so controlados e utilizados privada mente por uma nova classe burguesa a partir dos lugares que ela ocupa no processo de produo e no aparelho de Estado(l).E so essas as razes que autorizam tambm a considerar a antiga Unio Sovitica como sendo um capitalismo de Estado. De fato, aps os anos iniciais da Revoluo, no decorrer dos quais assiste-se a um esforo - muito embora parcial e limitado - de transformao das relaes sociais e do Estado, paulatinamente - especialmente a partir do fortalecimento da orientao staliniana - se vai formando uma nova classe dominante, e se vai abandonando a luta por uma real superao do capitalismo. Stalin se constitui no principal agente e no idelogo par excellence do capitalismo de Estado. Consagrando a direo nica nas empresas, eternizando a diviso do trabalho manual e intelectual, retirando dos trabalhadores qualquer possibilidade de gesto das unidades produtivas, Stalin realiza, de uma maneira to brutal quanto no capitalismo "privado", a submisso, a dominao e a extrao de mais-valia da classe operria. A par disso, Stalin no s abandona qualquer esforo de transformao do Estado, como o inspirador de um Estado burgus terrorista, que promove uma violenta represso sobre os comunistas, o campesinato e a classe operria(2).Se no perodo stalinista ocorre um forte crescimento das foras produtivas capitalistas, o esgotamento das fontes de crescimento econmico extensivo e as dificuldades para se passar a uma acumulao intensiva fazem com que as contradies - que j se manifestavam no perodo de Stalin - se tomem insuportveis. Assim, abre-se, no incio dos anos 60, uma poca de crise permanente e de sucessivos esforos de reforma econmica. Essas reformas visavam superar a contradio entre a plena vigncia das categorias mercantis e o controle burocrtico central, por meio de uma maior autonomia para as unidades produtivas e de um esforo - restrito, no entanto - de implantao do taylorismo(3). As reformas de Gorbatchov em nada diferiam dos planos reformistas anteriores, todos incapazes de superar a crise,(4) mas, tendo encontrado condies polticas favorveis, acabaram por ter o seu desfecho mais lgico: a passagem do capitalismo de Estado para o capitalismo "privado".

1. Cf. Charles Bettelheim, Revoluo Cultural e Organizao Industrial na China, Rio de Janeiro, Graal,1979.2. Cf. Charles Bettelheim e Bemard Chavance, "Le Stalinisme en tant qu'Ideologie du Capitalisme d'Etat", inLes Temps Modernes, n 394, 1979, e Charles Bettelheim, A Luta de Classes na Unio Sovitica, v. 2, Rio deJaneiro, Paz e Terra, 1983, eLes Luttes de Classes en URSS, 3 perodo, t. I e 2, Paris, Maspero/Seuil, 1982.3. Cf. Jacques Sapir, Travail et Travailleurs en URSS, Paris, La Decouverte, 1984, e Filippo Bucarelli,L'Organizzazione Sdentifica dei Lavoro in URSS, Milo, Franco Angeli Editori, 1979.4. Na impossibilidade de desenvolver mais amplamente as razes do fracasso das reformas econmicas dos anos 60, remeto ao j citado livro de F. Bucarelli, e ao trabalho de Piero Bernocchi Le "Riforme" in URSS, Milo, La Salamandra, 1977.

A crise que a Unio Sovitica conhece e que leva sua desagregao , assim, a crise de um modo especfico de capitalismo, o capitalismo de Estado, que, quando se esgota o padro de acumulao extensiva, no mais capaz de sustentar o crescimento das foras produtivas. No , portanto, uma crise do socialismo, nem pode ter o significado de um esgotamento do marxismo, pois, como vimos, o socialismo e a teoria marxista no foram "desmentidos" pela experincia sovitica, cujo desenlace refora a necessidade de superar o horizonte do capitalismo sem sucumbir forma mistificadora do capitalismo de Estado.

Sobre a Dissoluo da Unio SoviticaJACOB GORENDER**Historiador.

Em julho de 1991, ouvi de um intelectual cubano, em Havana: "Durante trinta anos, tivemos a certeza de que o campo socialista era eterno. Nesta certeza fundamental, apoivamos o nosso projeto de construo do socialismo em Cuba. Agora, o campo socialista deixou de existir. Ficamos desorientados com relao ao nosso projeto e ao nosso futuro".Em agosto do mesmo ano, encontrava-me em Moscou, no momento em que um grupo da alta burocracia do Partido Comunista da Unio Sovitica desfechou o golpe de Estado visando salvar o predomnio do Partido, minguante e cada vez mais contrado. Chegaram tarde. Quando, no final de agosto, tomei o avio para viajar de Moscou a Varsvia, o Partido Comunista j estava fora da lei. Seu comit central fora dissolvido pelo prprio secretrio-geral, Gorbatchov, seus bens confiscados pelo Estado e suas sedes ocupadas pelo governo da Rssia, presidido por Ieltsin.Poderia a Unio Sovitica sobreviver sem o PCUS? A resposta veio poucos meses em seguida. Em dezembro, a URSS tambm se extinguiu.A fim de compreender origens e causas de acontecimento de tanta repercusso, creio ser imprescindvel remontar ao imprio czarista, do qual a URSS foi sucessora.Fixados desde o sculo V na regio oriental da Europa, os povos eslavos constituram diversos principados, obrigados a enfrentar invases de normandos, suecos e teutes. No sculo X, invasores normandos fundaram o primeiro Estado russo, o Gro-Principado de Kiev. Assim, a primeira Rssia foi criao de conquistadores e, ao mesmo tempo, teve preponderncia ucraniana. A preponderncia dos eslavos russos viria com a transferncia da capital para Moscou. Mas, durante trs sculos, o desenvolvimento estatal russo se viu obstaculizado pelo jugo dos conquistadores mongis. Libertados desse jugo no sculo XVI, o Estado russo unificou os povos eslavos do Oriente europeu e deu incio ao imprio czarista, a partir de Iv IV, o primeiro czar, apelidado o Terrvel.O Imprio czarista russo se expandiu em todas as direes. Tomou a Sibria, dos Urais ao Extremo Oriente, incorporando dezenas de etnias autctones. Penetrou pelo Cucaso e submeteu seus povos. Anexou a Finlndia, a Litunia, Estnia e Letnia, assegurando acesso ao mar Bltico. Dominou grande parte da Polnia, dividindo o territrio desta com a Prssia e a ustria.Em constante hostilidade com o Imprio otomano, ajudou os povos balcnicos a se livrarem da secular opresso turca, mas se apossou de partes do Imprio otomano, como a Crimia e as provncias romenas da Moldvia e da Vlquia.Diante da pretenso russa de uma sada para o mar Mediterrneo, atravs do estreito dos Dardanei os, e a conseqente ameaa de avano at Constantinopla, iniciou-se, em 1854, a chamada Guerra da Crimia, na qual a aliana dos turcos com a Inglaterra, Frana e Piemonte imps a derrota ao Imprio czarista e freou sua arremetida meridional.Em meados do sculo XIX, o Imprio czarista tinha sob sua jurisdio a maior extenso territorial contnua do mundo, com cerca de 23 milhes de quilmetros quadrados. Constitua imenso conglomerado de naes, nacionalidades, minorias nacionais e etnias, em nmero de cerca de centena e meia. Desde o sculo XVI, estabeleceu-se a atroz servido feudal dos camponeses, s parcialmente aliviada com a reforma de 1860, promovida por Alexandre 11. O Estado czarista se apoiava diretamente na nobreza parasitria e numa burocracia imensa, que sugava vorazmente as energias do povo. As nacionalidades no-eslavas e, particularmente, no-russas, sofriam uma opresso duplicada.O Imprio czarista se aliou s foras reacionrias europias contra a Revoluo Francesa e se ops vaga revolucionria de 1848. A interveno direta do Exrcito russo esmagou a insurreio hngara.Marx e Engels consideravam a Rssia o baluarte da reao europia e Lenin chamou o Imprio czarista de "crcere dos povos". Tendo em vista primordialmente a realidade de seu prprio pas, Lnin elaborou teoricamente a questo da autodeterminao das naes, at o direito de separao, travando, a respeito, uma polmica com Rosa Luxemburgo, a qual, erroneamente, considerava que a luta pelo socialismo dispensava a defesa de reivindicaes especificamente nacionais.Mas da formulao doutrinria aplicao prtica dos princpios tericos a distncia iria demonstrar-se enorme.A Primeira Guerra Mundial liqidou os Imprios otomano e austro-hngaro, conglomerados multinacionais e multitnicos assemelhados aoImprio czarista. Contudo, a estrutura deste sobreviveu, dentro da nova entidade estatal chamada Unio Sovitica, formalmente criada em 1922. A extenso territorial da nova entidade se reduziu em pouco com relao antecessora. A Finlndia, os trs Estados blticos Litunia, Letnia e Estnia e a Polnia se tomaram independentes. O novo poder sovitico, comandado pelos boIcheviques, reconheceu-Ihes o direito de autodeterminao, incluindo a separao. Apesar disso, continuaram a coexistir, nos limites da URSS, mais de uma centena de naes e etnias, congregadas sob a supremacia da nao russa.A questo com a Polnia no se resolveu tranqilamente. Diante da invaso da Ucrnia, em 1920, por tropas polonesas comandadas pelo governo Pilsudski, aliado ao general ucraniano contra-revolucionrio Petliura, o Exrcito Vermelho revidou e penetrou em territrio polons. Lenin apoiou o plano de ocupao de toda a Polnia, o que levaria a esta o socialismo boIchevique e daria uma posio estratgica, na fronteira com a Alemanha, onde ainda havia a esperana de um levante anticapitalista. O plano era francamente adverso ao princpio da autodeterminao nacional. Trotski se ops iniciativa, argumentando que, em territrio polons, o Exrcito Vermelho se veria cercado por uma populao hostil, que o confundiria com o odiado exrcito czarista.Nas proximidades de Varsvia, as foras bolcheviques foram detidas e sofreram derrota decisiva infligida pelos poloneses, com o auxlio substancial de militares franceses comandados pelo general Weygand (fez parte desse grupo o ento capito Charles de Gaulle). No tratado de paz afinal assinado, a Polnia ganhou as regies ocidentais da Ucrnia e da Belarus (ento chamada Bielo-Rssia).Tambm com a Gergia, a questo no foi tranqila. Em 1922, o Partido Menchevique venceu as eleies e assumiu o governo. O fato se celebrou, na poca, como a primeira vitria de um partido socialista num pleito eleitoral livre. Stalin e Ordjonikidze no aceitaram a manifestao da vontade da populao georgiana e destituram o governo menchevique pela fora, incorporando o pas caucasiano nascente Unio Sovitica. Lenin protestou com veemncia contra esse comportamento brutal, mas, seriamente enfermo, no conseguiu desfazer o que j estava consumado.Stalin era um georgiano russificado. Desprezava os seus compatriotas, que tratava como "caipiras", e assimilou o chauvinismo e os esteretipos mentais dos gro-russos. Inclusive o anti-semitismo tradicional, que persistiu na era sovitica sem contraposio eficaz no sistema educacional e nos outros meiosde influncia ideolgica.Na questo nacional, a ditadura stalinista seguia o curso espontneo dos fatores objetivos e subjetivos herdados do passado czarista, reforados pela tese da possibilidade da construo do socialismo num s pas. A tese se apoiava numa psicologia social nacionalista e incitava a exaltar as qualidades dos povos soviticos e, est claro, muito particularmente o herosmo dos russos, o povo-guia. Prosseguia a tendncia russificao dos espaos de outras nacionalidades, na medida em que russos dominavam o aparelho do Partido Comunista e do Estado e se transferiam, em grandes contingentes, aos territrios das repblicas. A lngua russa continuou lngua oficial para todos os povos da URSS e o prprio fato da superioridade cultural estimulava a russificao. Assim, antes identificada com o czarismo, a russificao agora se identificava com o marxismo-leninismo.

Numa organizao estatal com tantas nacionalidades e etnias, a ditadura stalinista interveio nas questes nacionais seguindo critrios administrativos e, com freqncia, os mais arbitrrios. No admira que, abertas as comportas pela perestroika, a presso acumulada pelas medidas arbitrrias tenha se manifestado com tanto potencial de dio nos conflitos intertnicos.A arbitrariedade stalinista atingiu o extremo no tratamento dado a vrios povos da URSS, no perodo da Segunda Guerra Mundial. Condenados, sem direito defesa, pelo suposto crime coletivo de traio ao poder sovitico e de colaborao com o invasor nazista, povos inteiros se viram erradicados dos territrios, onde, h sculos, habitavam e, nas condies mais penosas, transferidos e dispersos pela Sibria. Sofreram a pena de expulso coletiva os trtaros da Crimia, os alemes do Volga, os checheno-inguches e os mechktios. Obrigados a se fixar nos territrios de outras nacionalidades, compreensvel que ali suscitassem atritos e ressentimentos. Ao expulsar povos inteiros dos seus lugares ptrios, onde haviam criado culturas originais, o socialismo de Estado stalinista cometeu uma perversidade que o prprio czarismo nunca se atreveu a praticar.O Pacto Germano-Sovitico de 1939 permitiu que a URSS fizesse a reanexao pela fora dos trs pases blticos e da Moldvia, recuperando tambm as regies ocidentais da Ucrnia e da Belarus. Terminada a guerra, a URSS se configurou como uma associao de quinze repblicas federadas, vinte repblicas e dezoito regies autnomas e numerosos territrios autnomos. Havia tambm minorias nacionais, como eram considerados os judeus. Na medida em que se declarava voluntria e baseada nos critrios cientficos do marxismo-leninismo, esta arquitetura poltica parecia slida e prova de contradies. A propaganda alardeava que a Unio Sovitica representava algo indito na histria: uma congregao fraterna e solidria de povos plenamente iguais em direitos e com acesso idntico ao progresso material e cultural conjunto.Compreende-se que, em 1985, ao assumir o cargo de secretrio-geral do Partido Comunista e dar incio perestroika e glasnost, Gorbatchov no fizesse sequer uma aluso questo nacional. Ao propor reformas, naquele momento aparentemente audaciosas, em vrios mbitos, nenhuma dessas reformas se relacionava com problemas de carter nacional. A cpula do PCUS tinha por indubitvel a inexistncia de tais problemas, ao menos com a gravidade que requeresse incluso no plano reformista da perestroika.No demorou para que a realidade surpreendesse os dirigentes comunistas e lhes revelasse contradies nacionais de intensidade alarmante. Sufocadas durante o regime de censura cultural e monoplio oficial das informaes, tais contradies, numa situao de crescente liberdade de expresso, vieram tona com impulso explosivo. J em 1987, os armnios comearam a se engalfinhar, em choques sangrentos, com os azerbaijanos, pelo controle de Nagorno-Karabakh, enclave de populao armnia no territrio do Azerbaijo. Seguiram-se, como sabido, numerosos outros confrontos entre nacionalidades e etnias, no raro com caractersticas de pogroms. Ao mesmo tempo, crescia o comportamento hostil das repblicas contra o poder sovitico-comunista centralizado em Moscou. A reivindicao de independncia e separao ganhou expresso ostensiva nos trs pases blticos e, logo em seguida, na Armnia, Gergia e Ucrnia. As represses brutais de tropas de choque s agravaram os sentimentos de hostilidade. Longamente oprimidas por um poder central desptico, as repblicas agora ansiavam pela autodeterminao plena.Ainda mais na medida em que a situao econmica se deteriorava e a reivindicao nacionalista se associava a posies pr-capitalistas. O poder central, encarnado na fuso do Partido Comunista com o Estado, ganhou a imagem de representante do fracasso do socialismo de Estado.Esta imagem impregnou a conscincia do prprio povo russo, cuja maioria deu apoio a Ieltsin na sua disputa com Gorbatchov. Dessa maneira, o Partido Comunista e o Estado sovitico perderam, em ritmo acelerado, o suporte da nao que constitua a espinha dorsal do sistema poltico multinacional.Em meados de 1991, Gorbatchov empreendeu a ltima tentativa de salvao deste sistema. Fez a proposta de um tratado da Unio, ao qual seria voluntria a adeso das repblicas federadas e que dava a estes direitos amplos jamais antes concedidos. Publicado pela imprensa a 15 de agosto, o tratado receberia, no dia 20, as assinaturas j compromissadas dos presidentes da Rssia (Ieltsin), do Cazaquisto e do Uzbequisto, ficando aberto a posteriores assinaturas dos presidentes das demais repblicas.A cpula da burocracia comunista percebeu que a vigncia do tratado conduziria eliminao dos privilgios, que o sistema estabelecido lhe conferia. Da a deteno de Gorbatchov pelos conspiradores golpistas, a 18 de agosto, e o anncio, no dia seguinte, da tomada do poder por um comit de emergncia. Esvaziados de fora efetiva, os golpistas sofreram rpida derrota. Mas o golpe acentuou nos prprios russos os sentimentos nacionalistas e anti-soviticos. Livrar-se do poder sovitico significava desembaraar-se do sistema poltico responsvel pelo atraso tecnolgico e econmico, pela degradao do padro de vida, pelas desgraas de um passado, que s nos ltimos anos pudera ser revelado em seus tenebrosos detalhes.Ieltsin explorou habilmente esses sentimentos e, assim, com apoio da grande maioria dos russos, os presidentes da Rssia, da Ucrnia e da Belarus assinaram, a 9 de dezembro, o documento que proclamava a cessao da existncia da Unio Sovitica. Logo em seguida, as demais repblicas se associaram a esta proclamao e nove delas anunciaram sua adeso Comunidade de Estados Independentes (CEI), entidade sem carter estatal, nem poder supranacional. Reconhecendo os fatos consumados, a 25 de dezembro Gorbatchov renunciou ao cargo de presidente de uma entidade desaparecida.A dissoluo da URSS ps fim a uma estrutura poltica multinacional que, aps a Primeira Guerra Mundial, s conseguiu uma sobrevida graas ao domnio ditatorial do Partido Comunista como partido nico dirigente, por princpio constitucional. Submetida a poderosas foras centrfugas no curso da perestroika, aquela estrutura no conseguiria manter-se aps a desagregao do Partido Comunista. Seu trmino estava selado.A extino da URSS constitui, por certo, a comprovao histrica mais taxativa acerca do fracasso do socialismo de Estado. Inclusive sob o aspecto de sua incapacidade para resolver os problemas nacionais legados pelos regimes precedentes. O internacionalismo marxista prope a unio voluntria dos povos sob o regime socialista. Ao mesmo tempo, reconhece a cada povo o direito de separao e plena autodeterminao nacional.