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DECISÕES ALOCATIVAS NO SETOR PÚBLICO: ORGANIZANDO O MOSAICO DAS PROPOSIÇÕES TEÓRICAS COM O AUXÍLIO DE LENTES CONCEITUAIS – UM ENSAIO EXPLORATÓRIO Autoria: Paulo Carlos Du Pin Calmon, Carlos Leonardo Klein Barcelos RESUMO: A alocação dos recursos públicos é sempre uma decisão importante. Não só por apontar a origem de receitas que são escassas, mas também por sinalizar os problemas que se pretende enfrentar. Em boa medida, esse processo reflete as escolhas, em termos de políticas públicas, que são feitas em nome de uma determinada sociedade, retratando sua capacidade de entender e superar os desafios que se apresentam no trajeto de seu desenvolvimento coletivo. Facilmente constatável, a bibliografia que trata do assunto é vigorosa e impressiona por seu volume. Contudo, as abordagens usuais da análise orçamentária focalizam o Estado como um ente meramente residual, auxiliar do mercado, ou simplesmente um reflexo da dinâmica de forças sociais mais profundas. Por conseguinte, acaba-se ofuscando as implicações que as decisões orçamentárias têm sobre a governança democrática. Em face disso, ainda que de forma exploratória e incompleta, o presente texto traz à tona um conjunto de enfoques que destaca, além de aspectos fiscais e econômicos, também as dimensões organizacionais e políticas imbricadas no processo de alocação dos recursos públicos. Com o auxílio de duas lentes conceituais alternativas (ator estritamente racional e comportamento organizacional), examinam-se as opções epistemológicas e metodológicas dos aportes teóricos da economia do bem-estar, da rational choice, do incrementalismo, dos multiple streams, das coalizões de defesa e do equilíbrio pontuado. O texto evidencia que divergências na assunção de premissas em cada enfoque provocam distintas interpretações e conclusões sobre o fenômeno estudado, especialmente em relação à quantidade, ao papel das preferências, à capacidade cognitiva e à lógica de processamento subjacente à decisão dos atores envolvidos na orçamentação. Ao procurar reconhecer caminhos de pesquisa mais proveitosos à compreensão do processo de alocação dos recursos públicos, bem como instigar a reflexão sobre mecanismos de governança orçamentária, observa-se que os enfoques dos multiple streams, das coalizões de defesa e do equilíbrio pontuado apresentam maior potencial explicativo em comparação aos demais, na medida em que admitem (mais realisticamente) a limitação cognitiva dos agentes (indivíduos e organizações), a complexidade e a ambigüidade dos contextos e as múltiplas dimensões que caracterizam as decisões de políticas públicas.

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DECISÕES ALOCATIVAS NO SETOR PÚBLICO:

ORGANIZANDO O MOSAICO DAS PROPOSIÇÕES TEÓRICAS COM

O AUXÍLIO DE LENTES CONCEITUAIS – UM ENSAIO

EXPLORATÓRIO

Autoria: Paulo Carlos Du Pin Calmon, Carlos Leonardo Klein Barcelos RESUMO: A alocação dos recursos públicos é sempre uma decisão importante. Não

só por apontar a origem de receitas que são escassas, mas também por sinalizar os problemas que se pretende enfrentar. Em boa medida, esse processo reflete as escolhas, em termos de políticas públicas, que são feitas em nome de uma determinada sociedade, retratando sua capacidade de entender e superar os desafios que se apresentam no trajeto de seu desenvolvimento coletivo. Facilmente constatável, a bibliografia que trata do assunto é vigorosa e impressiona por seu volume. Contudo, as abordagens usuais da análise orçamentária focalizam o Estado como um ente meramente residual, auxiliar do mercado, ou simplesmente um reflexo da dinâmica de forças sociais mais profundas. Por conseguinte, acaba-se ofuscando as implicações que as decisões orçamentárias têm sobre a governança democrática. Em face disso, ainda que de forma exploratória e incompleta, o presente texto traz à tona um conjunto de enfoques que destaca, além de aspectos fiscais e econômicos, também as dimensões organizacionais e políticas imbricadas no processo de alocação dos recursos públicos. Com o auxílio de duas lentes conceituais alternativas (ator estritamente racional e comportamento organizacional), examinam-se as opções epistemológicas e metodológicas dos aportes teóricos da economia do bem-estar, da rational choice, do incrementalismo, dos multiple streams, das coalizões de defesa e do equilíbrio pontuado. O texto evidencia que divergências na assunção de premissas em cada enfoque provocam distintas interpretações e conclusões sobre o fenômeno estudado, especialmente em relação à quantidade, ao papel das preferências, à capacidade cognitiva e à lógica de processamento subjacente à decisão dos atores envolvidos na orçamentação. Ao procurar reconhecer caminhos de pesquisa mais proveitosos à compreensão do processo de alocação dos recursos públicos, bem como instigar a reflexão sobre mecanismos de governança orçamentária, observa-se que os enfoques dos multiple streams, das coalizões de defesa e do equilíbrio pontuado apresentam maior potencial explicativo em comparação aos demais, na medida em que admitem (mais realisticamente) a limitação cognitiva dos agentes (indivíduos e organizações), a complexidade e a ambigüidade dos contextos e as múltiplas dimensões que caracterizam as decisões de políticas públicas.

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2 INTRODUÇÃO

A alocação dos recursos públicos é sempre uma decisão importante. Ela não só aponta a origem e a aplicação de receitas que são escassas, como também define os instrumentos que serão empregados para esse fim. Nesse sentido, as decisões alocativas sinalizam quais problemas se pretende enfrentar, em que extensão isso será feito e como tais propósitos serão alcançados. Em boa medida, elas refletem as escolhas, em termos de políticas públicas, que são feitas em nome de uma determinada sociedade, retratando sua capacidade de entender e superar os desafios que se apresentam no trajeto de seu desenvolvimento coletivo.

Assim, quando se considera o caso brasileiro, onde as condições sociais e econômicas são sensíveis ao curso das ações governamentais, o assunto ‘decisões orçamentárias’i torna-se ainda mais relevante. Em vista disso, o compromisso intelectual de tentar observar, refletir e compreender como tais decisões se processam, nos seus variados aspectos e estágios, parece algo realmente notável.

Além desta introdução, o presente texto divide-se em mais 5 seções. A seção 2 discute a importância do uso de múltiplas lentes na análise de fenômenos complexos. As seções 3 e 4 apresentam as proposições teóricas de acordo com duas macro-perspectivas. A seção 5 busca contrastar e situar os enfoques e modelos apresentados a partir de suas opções epistemológicas e metodológicas. A seção 6 apresenta uma breve conclusão do trabalho.

3 A IMPORTÂNCIA DE MÚLTIPLAS LENTES NA ANÁLISE DAS DECISÕES

ALOCATIVAS DO SETOR PÚBLICO De fato, sobretudo depois do lamento de V. O Key Jr. (1940), inúmeros acadêmicos e

experts têm empreendido tentativas de descrever, explicar ou, meramente, prescrever como é/deveria ser o processo de alocação dos recursos públicos. Facilmente constatável, a bibliografia que trata do assunto é vigorosa e impressiona, tanto pelo seu volume quanto pela diversidade da sua substância (KHAN & HILDRETH, 2002; RUBIN, 1988, 1992, 2006).

Naturalmente atraente, o processo orçamentário pode ser visto como o espaço onde se define quem recebe/arca com os benefícios/custos da atuação governamental. Por conta de seu largo escopo, esse é um tema que chama a atenção de diversas disciplinas (ou programas de pesquisa). Cada qual seguindo uma tradição de pensamento, comunidades acadêmicas e associações de profissionais costumam examinar, enfatizar e interpretar aspectos distintos do fenômeno que caracteriza as escolhas alocativas.

Com efeito, o problema que motiva esse tipo de decisão está longe de ser considerado ‘bem comportado’.ii O que se observa é que o terreno dos estudos orçamentários está marcado por importantes diferenças em relação às escolhas epistemológicas e metodológicas refletidas nas proposições que o constitui. São inúmeros e distintos os recortes, as heranças intelectuais, os domínios e as ideologias sob os quais esse tema vem sendo tratado.

Essa ausência de consensos mínimos em torno de premissas, frameworks, teorias e modelos adequados ao exame das decisões alocativas transforma o campo orçamentário num confuso mosaico teórico. Por conseguinte, tal estado da arte não parece capaz de orientar a pesquisa e guiar o debate rumo ao aperfeiçoamento da prática orçamentária. Teóricos contemporâneos, como Rubin (2006), Kraan (1996), Bartle (2001) e Khan & Hildreth (2002), alertam para essa dificuldade e apontam a urgência de se encontrar caminhos que auxiliem os pesquisadores na compreensão dos problemas fundamentais do campo, na identificação das suposições e das questões básicas da pesquisa, no reconhecimento do ‘core’ de suas idéias e na organização de um quadro referencial que facilite a acumulação do conhecimento já produzido. Até que se alcance tal estágio, embora intelectualmente excitante, o campo orçamentário permanecerá um pouco confuso (RUBIN, 1992), ambíguo (BARTLE, 2001) e até mesmo misterioso e desconcertante para os que se dispuserem a abordá-lo (NICE, 2002).

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A fim de lidar melhor com tal realidade, propõe-se examinar os aportes teóricos com base em duas diferentes lentes de análise:iii racionalidade econômica estrita (quadro de referência I) e processo/comportamento organizacional (quadro de referência II). Presume-se que essa estratégia confira maior organicidade e sentido lógico a mosaico de proposições teóricas, na medida em que possa facilitar a identificação das fraturas, das tensões e das conexões que caracterizam as idéias mais influentes do campo.

4 A ORÇAMENTAÇÃO PÚBLICA COMO DECISÃO DE UM ATOR RESIDUAL

E ECONOMICAMENTE RACIONAL (QUADRO DE REFERÊNCIA – I) Esta seção apresenta conceitos e teorias fundados na idéia de que a engrenagem central

das decisões orçamentárias é a racionalidade econômica estritaiv que subjaz a elas. Exploram-se duas proposições oriundas da economia neoclássica: ótica do bem-estar (welfare economics) e ótica da public choice. Dentro dessa macro-perspectiva o governo é uma ‘caixa-preta’ que opera/deveria operar apenas com vistas ao cumprimento de sua ‘função residual’ de auxiliar o bom funcionamento do mercado.

4.1 Welfare Economics: Decisões alocativas como resposta às falhas de mercado Tido como referência fundamental no moderno debate orçamentário, V. O. Key Jr.

publicou em 1940 seu mais famoso texto (MEYERS, 1986; DUNCOMBE, 1996). Em “The Lack of a Budgetary Theory” (1940) Key reclama a falta de respostas claras à questão que supunha ser a mais relevante no contexto da alocação dos recursos públicos: “em que se deve basear a decisão de alocar ‘X’ dólares na atividade ‘A’ ao invés fazê-lo na atividade ‘B’?” (KEY, 1940 p. 1138). Implicitamente, a indagação de Key sugere que o problema poderia ser abordado por meio da aplicação da teoria econômica.

Duas grandes Escolas do Pensamento Econômico aportaram contribuições na tentativa de solucionar o problema básico da alocação dos recursos públicos (FOZZARD, 2001, p. 5; MEYERS, 1986, p. 187).v

Fundada nos desenvolvimentos de Pigou (1920), Bergson (1938, 1954), Samuelson (1954, 1969) e Musgrave (1959) (apud Besley, 2006), a primeira tradição neoclássica enfatiza o governo como um ator (racional e ideal) que decide em favor do interesse público (a função-objetivo da sociedade é exógena). Embora nesta visão o papel governamental se limite a apoiar e fortalecer os mecanismos de mercado (definindo, por exemplo, direitos de propriedade e meios de adjudicação), sob certas circunstâncias (falhas de mercado e ajustes redistributivos) o governo atuará com vantagens comparativas, devendo intervir deliberadamente no sistema de preços.

Por esse ponto de vista, o governo deverá criar políticas públicas que regulem as externalidades que o mercado livre é incapaz de internalizar, que corrijam a oferta de bens públicos (ou semi-públicos) e que combatam os abusos de poder nas estruturas sub-ótimas do mercado. Compete ainda ao governo promover uma distribuição de recursos que seja socialmente justa. Assim, sempre que for violada a suposição de que o sistema de livre troca aloca recursos de modo ótimo, surge uma justificativa para o exercício da atividade orçamentária governamental, como coordenadora da ação coletiva (veja-se, por exemplo, MUSGRAVE em Voluntary Exchange Theory of Public Finance, 1959).

A lógica por trás dessas idéias segue os critérios da eficiência paretiana e da equidade, e tem sido largamente desenvolvida pelo que se convencionou chamar de ‘moderna teoria do estado’ segundo a proposição da ‘economia do bem-estar’ ou ‘welfare economics (WE)’ (TRESCH, 2002; BESLEY, 2006; GRUBER, 2007).

Inegavelmente, a WE produziu avanços teóricos e empíricos que permitem, sob certas hipóteses, apontar as melhores ocasiões e estimar o impacto da atividade alocativa do governo sobre o bem-estar social (SMITH, 2008, p. 729). Especialmente após a II Grande Guerra, a

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WE passou a contar com um conjunto de ferramentas analíticas bastante sofisticadas. Se podem citar, por exemplo, os refinamentos conceituais e metodológicos aplicáveis à análise das falhas de mercado, as definições de critérios de redistribuição, os modelos de otimização do sistema de taxação/subsídio, as fórmulas de cálculo de eficiência (paretiana e também o princípio de compensação de Kaldor-Hicks) e as análises de custo-benefício/efetividade.

4.2 Public Choice: Decisões Orçamentárias como Falhas Políticas Uma segunda visão a respeito de como são/deveriam ser alocados os recursos públicos

vem da chamada ‘teoria da escolha pública’ ou ‘public choice theory (PCT)’, na qual o governo é tratado como um ator que tende a decidir em favor de interesses individuais privados. Alvo da ação de rent-seekers, o poder fiscal do Estado é visto como incapaz de promover o interesse público, uma vez que a captura estatal significa tomar decisões enviesadas, em prol dos atores mais poderosos e em detrimento da grande maioria dos cidadãos. Assim, as decisões alocativas não necessariamente vão ao encontro do cumprimento virtuoso das funções econômicas sugeridas pela economia do bem-estar.

Assumindo um eleitorado racionalmente ignorante (problemas de custo da informação, de principal-agente e de ação coletiva), a burocracia auto-interessada passa a decidir em favor de quem melhor a recompensar. O ‘espírito público’ é um incentivo insuficiente para guiar as decisões alocativas na direção do interesse coletivo, de modo que boas políticas públicas tornam-se um bem subofertado por governos democráticos. Nesse caso, não é razoável supor que a alocação governamental, automaticamente, leve a resultados mais eficientes. Conforme advoga Stigler (1993), as falhas de mercado costumam ser muito menores do que as falhas políticas, de modo que mercados não-regulados tornam-se preferíveis àqueles que se poderia obter com a regulação governamental (apud SOBEL, 2004).

Em que pese a PCT partilhar o núcleo teórico da WE, inclusive quanto ao tratamento ‘caixa-preta’ dispensado à dinâmica decisória do governo (Calmon, 2009), essa tradição se vale de heurísticas diametralmente opostas para desenvolver seus argumentos centrais.

Enquanto a WE supõe a existência de um governo que maximize o bem-estar social (lógica da demanda), a PCT alega que as decisões governamentais seguem a preferência egoísta de políticos, burocratas, grupos de interesse e rent-seekers, que ignoram (quase sempre) a vontade dos cidadãos/tax-payers (lógica da oferta). Assim, partindo do modelo teórico do homo economicus, pesquisadores engajados na tradição da PCT têm desenvolvido explicações e prescrições que enquadram o governo como um ente cujo comportamento é socialmente ‘patológico’, requerendo, portanto, controle e redução de sua capacidade de ação.

Dentre os muitos temas focalizados pela PCT (seguidamente referidos como falhas de política), alguns parecem relacionar-se mais diretamente ao debate orçamentário. Log-rolling, por exemplo, diz respeito à barganha de votos, influências e favores entre políticos, com vistas ao apoio na aprovação de matérias legislativas (geralmente de difícil trâmite). Teorizado e pesquisado na tradição da PCT, esse comportamento tem sido interpretado negativamente, entendido como uma atividade quase sempre prejudicial e carente de princípios éticos (ORCHARD & STRETTON, 1997, p. 410).

Grupos de interesse, outro tópico analisado pela PCT, diz respeito à influência de grupos organizados sobre as decisões governamentais. Basicamente, essa atividade é entendida como uma distorção do equilíbrio político, que gera favorecimentos aos setores mais poderosos em detrimento daqueles pior representados.

Decididamente importante no contexto orçamentário, o comportamento da burocracia permeia trabalhos de expoentes como Tullock e Downs. Mas foi Niskanen (1971) quem delineou o burocrata como alguém que jamais tomará decisões baseadas em espírito público. Primeiramente, porque quase sempre ele é movido por retribuição pecuniária, ganhos de reputação, obtenção de patronagem, empoderamento do seu bureau e outras motivações

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típicas do indivíduo egoísta (ORCHARD & STRETTON, 1997, p. 414). Por fim, porque “é impossível para qualquer burocrata agir no interesse público em virtude de suas limitações informacionais e do conflito de interesse com outros burocratas [...],” ainda que ele assim o desejasse. “Em contraste, o burocrata racional está bem posicionado para agir em nome do seu próprio interesse. Afinal, tudo que ele precisa saber é sobre suas próprias preferências” (FREDERICKSON & SMITH, 2003, p.190).

Na seção seguinte examinam-se proposições teóricas sob a perspectiva de que as decisões orçamentárias (e de políticas públicas) se processam sob uma lógica de racionalidade limitada, na qual o Estado é um ente político constituído por inúmeros atores (individuais e coletivos) que interagem em contextos permeados por ambigüidade e incerteza.

5 A ORÇAMENTAÇÃO PÚBLICA COMO DECISÕES DE UM CONJUNTO DE

INDIVÍDUOS, ORGANIZAÇÕES E PROCESSOS SOB RACIONALIDADE LIMITADA (QUADRO DE REFERÊNCIA – II) Embora se reconheça a relevância teórica das proposições baseadas em escolha

estritamente racional, sua aplicabilidade é reduzida no universo das políticas públicas, uma vez que refletem apenas casos particulares da conduta humana. Nesse sentido, há evidências de que o quadro referencial anterior é insuficiente para explicar, de modo mais verossímil, como se processa a maior parte das decisões alocativas. Considerando-se que as decisões orçamentárias refletem a persistência e a mudança nas políticas públicas, examinam-se também as contribuições teóricas que focalizam de modo mais amplo essa dinâmica.

Herbert A. Simon (1947, 1958) questionou duramente as incongruências do modelo da escolha puramente racional e, junto com seus seguidores, demonstrou que mesmo depois de alguns aprimoramentos (tal como o da teoria das expectativas racionais), a escolha racional é incapaz de se sustentar empiricamente (JONES, 1999, 2003; JONES et al. 2006).vi Todavia, o pioneirismo de Simon não se restringiu às críticas.

Simon ainda era aluno de graduação quando retornou à Milwaukee (sua terra natal) em 1935 para examinar como se processavam as decisões orçamentárias. Lá observou que o processo decisório, tanto no nível individual quanto no organizacional, é um tanto mais complexo e ambíguo do que supunham os teóricos da escolha estritamente racional. Simon constatou que as decisões orçamentárias seguem usualmente uma lógica incremental, refletindo compromissos e barganhas típicas da dinâmica política. Percebeu que fatores ambientais e cognitivos, tal como a saliência dos problemas, os prazos exíguos do processo e a interpretação que os indivíduos fazem a respeito das questões públicas influenciam profundamente a busca por soluções (THOMPSON & GREEN, 2001; JONES et al., 2006).

Desafiando o modelo racional-compreensivo do homo economicus, Simon (1947, 1958) propôs a noção de racionalidade limitada, ou ‘Bounded Rationality (BR)’, a qual se reflete profundamente no comportamento do indivíduo por ele cunhado como homo administrativus.

Simon (2000, p. 25) esclarece que BR diz respeito simplesmente ao fato de que as escolhas são fortemente influenciadas pela visão de mundo que os indivíduos carregam, e também por suas habilidades em invocar oportunamente o conhecimento, pelas experiências que trazem consigo, pelo dom de imaginar cada uma das alternativas de ação, pelo modo como medem e antecipam as conseqüências de seus atos, pela maneira como lidam com as incertezas (inclusive aquela que diz respeito à resposta dos demais atores) e, inclusive, pelo talento em reconciliar todos os seus múltiplos e concorrentes (quiçá conflitantes) desejos.

A racionalidade é limitada porque tais habilidades estão sob severa restrição. Assim, a conduta racional no mundo real está tão determinada pelo ‘interior’ das mentes das pessoas (conteúdos de memória e seus processos) como pelo mundo exterior em que elas atuam, o qual também atua sobre elas. Nesse sentido, a BR refere-se muito mais à racionalidade

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procedimental e à qualidade do processo decisório do que propriamente à racionalidade substantiva ou à qualidade dos resultados. Enquanto que para a racionalidade substantiva basta derivar a função de utilidade (dados os incentivos formais do ambiente externo), para a racionalidade procedimental é preciso compreender também a teoria psicológica subjacente às decisões de cada indivíduo, o contexto organizacional e a dinâmica do ambiente no qual se insere o processo (SIMON, 2000, p.25-26; JONES et al. 2006, pp. 40-42). Em face disso, o modo como indivíduos e organizações lidam com suas próprias insuficiências interfere nos julgamentos, na busca de alternativas e nos caminhos escolhidos para tentar resolver seus problemas (BOBROW & DRYZEK, 1987; ALLISON & ZELIKOW, 1999).

Dos insights de Simon surgiram novas e importantes formas de descrever o comportamento de indivíduos e organizações em contextos de decisão. Dentre os mais relevantes, se podem citar os seguintes modelos/enfoques: incrementalista (Wildavsky, 1964), multiple stream (Kingdon, 1985),vii modelo de coalizões de defesa (Sabatier & Jenkins-Smith, 1988) e equilíbrio pontilhado (Baumgartner & Jones, 1993).viii Sob o ‘guarda-chuva’ conceitual do processo organizacional, expõem-se as mencionadas contribuições.

5.1 Orçamentação Baseada em Consenso: o Incrementalismo de Aaron Wildavsky O incrementalismo é uma abordagem ampla e particularmente aplicável ao campo da

política e dos estudos orçamentários. Notadamente apoiados nas construções intelectuais de Simon, Charles E. Lindblom (1959) e Aaron Wildavsky (1964) dedicaram grande atenção a essa abordagem, desenvolvendo hipóteses que até hoje ajudam a explicar certos padrões verificados nas decisões governamentais.

Embora a idéia mais ampla de ajustes graduais seja atribuída a Lindblom, foi Wildavsky (1964) quem esculpiu a reputação de principal teórico da orçamentação incremental (PREMFORS, 1981, p. 211). Em The Politics of the Budgetary Process (1964), Wildavsky sugere que o principal fator determinante do tamanho e do conteúdo do orçamento atual é orçamento do ano anterior. A maior parte de um orçamento é produto de decisões tomadas no passado, de tal sorte que se poderia enxergá-lo como um iceberg, cuja parte mais significativa se encontra abaixo da superfície das escolhas, fora de qualquer discricionariedade. Assim, a orçamentação é um processo incremental e não compreensivo, no qual a grande sabedoria de uma unidade orçamentária está em reconhecer que sua programação não será revista como um todo a cada ano. Ao contrário, apenas uma mínima parte disso receberá efetiva atenção (WILDAVSKY, 1964 pp. 13-15).

Em que pesem as muitas definições diferentes de incrementalismo (vide Berry, 1990), a idéia básica é de que as dotações orçamentárias são relativamente estáveis ao longo do tempo, já que o orçamento corrente é amplamente baseado no orçamento do ano anterior. Wildavsky & Caiden (2003, p. 46-50) argumentam que grande parte da programação orçamentária é padronizada, repetida a cada ano pela simples razão de que não há motivos para contestá-la. Há inúmeras despesas que representam comprometimentos de longo prazo, as quais são replicadas na programação orçamentária do ano seguinte. Analogamente, alguns programas de duração continuada que desempenham satisfatoriamente tornam-se isentos de questionamentos. A realidade política e as limitações cognitivas restringem a atenção possível e, assim, apenas uns poucos programas novos e alguns eventuais cortes em programações problemáticas serão objeto de análise mais profunda.

Essa noção de orçamentação incremental está vinculada aos conceitos de ‘base’ e ‘quinhão justo’. A base diz respeito à expectativa de que os programas sejam mantidos em níveis de despesas similares aos anteriormente executados. Com efeito, ter um projeto incluído na base orçamentária justifica a suposição de que a despesa permanecerá em execução, sem que haja a necessidade de reexaminá-la minuciosamente. Quinhão justo refere-se à expectativa que as unidades orçamentárias têm quanto aos eventuais aumentos/reduções

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na base orçamentária de outras unidades, no sentido de que tais ajustes se refletirão proporcionalmente em suas programações. De acordo com Wildavsky & Caiden (2003), se deveria esperar gradualismo e estabilidade como regra nas decisões orçamentárias porque, caso contrário, os decisores ficariam enleados em escolhas extremamente difíceis, num processo politicamente delicado e temporalmente insustentável. Logo, a obrigação de renegociar políticas já examinadas e adotadas nos orçamentos passados, em busca de espaço para programas novos tende a tornar mais difícil a tarefa da orçamentação. Analogamente, decisões incrementais facilitam a aprendizagem, pois permitem acumular experiências por meio de referenciais históricos, reduzindo o risco das intervenções agudas.

Diante da impossibilidade de se avaliar compreensivamente todas as propostas de alocação, a precedência de análise recai sobre casos onde os ajustes mostram-se mais significativos. Nesse sentido, as instâncias de análise tratam apenas de um fragmento do todo. Por conseguinte, os agentes do processo de orçamentação não tentam maximizá-lo, mas apenas torná-lo satisfatório. Considerando que a cada ano há um novo orçamento e que este resulta de ajustamentos graduais, a única maneira de se corrigir as deficiências é atuar sobre elas quando elas se tornarem salientes (WILDAVSKY & CAIDEN, 2003). Portanto, as unidades de alocação orçamentária não tentam manejar todos os problemas ao mesmo tempo. Ao contrário, evitam tratar de muitos deles num ano em particular. Na verdade, os problemas são tratados em ocasiões e momentos diferentes, serialmente. Quando decisões orçamentárias apontam conflitos entre si, a dificuldade é manejada segundo a ‘tática do bombeiro’, na qual cada problema é tratado por vez e na jurisdição em que ele ocorre. As dificuldades são superadas não tanto pela coordenação ou pelo planejamento central, mas por uma abordagem seqüencial e local, conforme surgem, nas inúmeras instâncias de decisão.

5.2 Idéias, Agendas e Empreendimento Político nas Decisões Alocativas: o Multiple Streams de Kingdon

Basicamente, o enfoque de análise dos fluxos múltiplos, ou Multiple Streams (MS), de John Kingdon (1985, 1995) emprega a GCTix a fim de esclarecer ‘como e por que’ varia a propensão da adoção das políticas públicas. O principal argumento de Kingdon é que a escolha das políticas não decorre de uma simples função de agregação de utilidades ou esforços individuais. O MS assume que esse é um fenômeno bem mais complexo, resultando da combinação entre forças estruturais, processos cognitivos e afetivos, ambos altamente dependentes do contexto. Nesse sentido, a ambigüidade e a triagem temporal são entendidas como condições persistentes, que afetam tanto a definição quanto a solução dos problemas. Assim, uma mesma questão se sujeitará a inúmeras interpretações, provocando dilemas que dificilmente se resolverão pela simples adição de informação (ZAHARIADIS, 2003).

O MS assume que: indivíduos processam informações serialmente; o processamento sistêmico é paralelo, mas sujeito a limitações (JONES, 2003); decisores operam sob significativa pressão do tempo (prazos exíguos, crises e outros indicadores de urgência); e, as preocupações (problemas), as respostas (produtos e soluções) e o clima político possuem vida própria e movimentam-se de forma independente através dos diversos sistemas.

A metáfora de fluxos múltiplos serve para ilustrar o modo como a dinâmica entre problemas (problem stream), soluções (policy stream) e ocasiões politicamente favoráveis (politics stream) determina o surgimento e a adoção das políticas públicas (policy output).

O problem stream explicita o modo como certas situações sociais despertam a atenção de decisores, alcançam o status de problema e se incorporam à agenda governamental. No MS a atenção é um recurso escasso e as situações sociais competem por espaço na agenda decisória. Portanto, a forma como as questões são apresentadas e o modo como os decisores as percebem e as interpretam afetam a propensão de reconhecê-las como problema.

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Três elementos interferem nesse processo. Indicadores, por sua capacidade de sinalizar a amplitude e a severidade de uma circunstância. Eventos relevantes e crises, pela propriedade de reforçar uma percepção pré-existente e focalizar uma dimensão específica da questão; e, feedback sobre uma política pública que está em curso, por sua capacidade de refletir a percepção de principais (ouvidorias) ou por destacar aspectos sobre o desempenho dessas políticas (sistemas de monitoramento e avaliação).

Já o policy stream, origina-se de uma ‘sopa primitiva de idéias/soluções’ que lutam por aceitação dentro de redes de políticas. Nascidas geralmente no interior das comunidades epistêmicas, as idéias são submetidas a diversos fóruns e sob diversas formas, com a finalidade de difundi-las, sensibilizar aliados e angariar apoio para sua adoção. Enquanto algumas se mantêm intactas, outras são combinadas em novas propostas, rejeitadas ou simplesmente desconsideradas. Critérios de viabilidade técnica, razoabilidade de custos e aceitação política importam nesse processo.

Por fim, o politics stream é um constructo de três elementos: ‘clima’ nacional; grupos de interesse; e, alteração na estrutura governamental. O clima nacional é uma espécie de bússola indicadora da opinião publica. Ele estimula os decisores a promoverem ações que vão ao encontro das expectativas gerais. Já o posicionamento dos grupos de interesse na arena política, sinaliza o grau de consenso em torno de uma proposta. A rejeição à emergência de uma questão pode ser vista como um aumento no custo de sua adoção. Mudanças na composição (ou no arranjo de competências do sistema de comando), por sua vez, dizem respeito ao fato de que substituições de lideranças, chefias e outras posições estratégicas propiciam mudanças nas políticas públicas.

Uma vez que os fluxos convirjam num determinado ponto do tempo, abre-se uma janela que oportuniza aos empreendedores políticosx a introdução dos assuntos que eles desejam promover na agenda governamental. Kingdon reconhece que esses movimentos dependem primordialmente do politics stream e do problem stream, e adverte sobre o caráter transitório das janelas, que ao se fecharem encerram a oportunidade de mudança. Por isso mesmo, a atuação dos empreendedores políticos é essencial. São eles que investem tempo, energia e outros recursos para ‘amarrar’ os fluxos e fazer com que uma idéia alcance a janela adequada e oportunamente. Mais do que defensores de uma política pública em particular, esses atores mediam forças e manejam habilmente as preferências e as tecnologias indeterminadas.

Dada a atenção escassa, é necessário algum mecanismo de priorização que limite a quantidade de idéias. Zahariadis (2003) assinala que esse dilema é resolvido em função da estrutura institucional e do tipo de janela de oportunidade. Uma vez que os problemas têm alta complexidade, o sistema como um todo se reparte em inúmeros subsistemas especializados (comunidades de políticas), os quais atuam como filtros primários na incubação de problemas e soluções. Outro aspecto relevante nesse mecanismo é a seqüência na qual os fluxos alcançam as janelas de oportunidade. No MS, as mudanças podem surgir também de soluções (ideológicas), ligadas a problemas independentemente de conexões causais.

Visto que a busca/disponibilidade de soluções ocorre no interior de redes de políticas, o design institucional que elas mantêm (nível de integração) é um atributo fundamental, pois isso afeta o modo como as soluções são geradas, difundidas e debatidas. O tamanho, a disposição à cooperação/ competição, a capacidade administrativa e a facilidade de acesso aos fóruns que uma rede é capaz de sustentar interferem no sucesso/fracasso das idéias desenvolvidas em seu interior (ZAHARIADIS, 2007).

Como bem sintetizou Zahariadis (2007), se a ambigüidade é um fato inescapável à vida política, então o contexto onde os problemas são definidos e as ‘soluções’ são postas em marcha pode ser apenas parcialmente compreendido.

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5.3 Processo Cognitivo na Decisão de Políticas Públicas: as Coalizões de Defesa de Sabatier & Jenkins-Smith

O enfoque das coalizões de defesa, ou Advocacy Coalitions Framework (ACF), foi inicialmente proposto por Paul A. Sabatier, no final da década de 1980, consolidando-se com a edição do livro Policy Change and Learning: an Advocacy Coalition Approach (1993; 1999).xi De lá para cá, o ACF recebeu aprimoramentos em sua estrutura, e mostra-se bastante útil para examinar as mudanças nas políticas públicas, especialmente em relação ao papel dos aspectos cognitivos nesse processo.

Dada a importância e complexidade das decisões de políticas, os diversos participantes do processo buscam meios de anuir e influenciar na definição dos problemas, no debate público, na escolha do curso de ação e na implementação em favor de suas posições.

Nos subsistema encontram-se uma ou mais coalizões de defesa – comunidades semi-autônomas que se reúnem em torno de idéias e compartilham um conjunto de crenças – que atuam de forma mais ou menos coordenada e relativamente estável no tempo. As coalizões de defesa buscam traduzir suas crenças em políticas públicas e programas governamentais. Note-se, no entanto, que participam dessas comunidades não apenas os membros do governo, mas todos os muitos atores implicados em fazer de uma idéia uma política pública.

Assim, as escolhas de políticas públicas no ACF não derivam puramente da racionalidade técnica ou da vontade do ator mais poderoso. Tampouco se processam no vácuo do espaço e do tempo. Ao contrário, o jogo das políticas é intrincado, e com equilíbrios múltiplos e instáveis, conforme o contexto e o momento. Há vieses e cargas valorativas importantes na interpretação dos problemas, na definição de sua amplitude e na escolha dos instrumentos ‘adequados’ ao seu enfrentamento. O modo como se definem as relações causais, os cursos de ação e as metas pretendidas dependem da visão de mundo subjacente, ou mais precisamente, de um sistema de crenças que é próprio a cada coalizão.

Sabatier & Weible (2007) esclarecem que o sistema de crenças no ACF possui três níveis, hierarquicamente relacionados. No nível mais alto está o ‘núcleo profundo’ (deep core beliefs), o qual se constitui de crenças ontológicas e normativas básicas. O nível intermediário corresponde ao ‘núcleo da política’ (policy core), e representa os compromissos normativos e as percepções causais básicas da coalizão. Esse nível de crenças funciona como o catalisador das coalizões, aglutinando-as no interior do subsistema. Por fim, têm-se os ‘aspectos secundários’ (secondary aspects), que compreendem um grande conjunto de crenças mais estreitas – e que não abarcam todo o subsistema. De cima para baixo, essas categorias estruturais impõem resistência às mudanças.

Sendo o sistema de crenças a heurística principal das coalizões, mudanças nas políticas públicas dependerão de acomodações valorativas. Alterações profundas demandarão em transformações substanciais no núcleo da política, enquanto os ajustamentos menores exigirão apenas mudanças nos aspectos secundários.

Sabatier & Weible (2007) argumentam que essa dinâmica responde também ao tipo de recurso disponível às coalizões. Sugerem uma tipologia baseada em seis categorias: (a) autoridade formal/legal para a tomada de decisões; (b) suporte da opinião pública; (c) domínio de informação relevante; (d) tropas prontas para mobilizações; (e) disponibilidade de recursos financeiros; e, (f) habilidades de liderança.

Para explicar a mudança nas políticas públicas Sabatier & Weible (2007) fazem menção a quatro caminhos (ou processos) típicos. O primeiro é de natureza endógena, e decorre de uma atividade cognitiva: aprendizagem por meio da acumulação de conhecimento. O segundo, diz respeito a choques provocados por perturbações externas, as quais afetam o comportamento dos atores de um subsistema. Embora não se constituam em condição suficiente, os choques externos representam reais oportunidades para as mudanças de grande

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escala. Outro caminho refere-se a choques internos, os quais provocariam uma reconfiguração dos recursos de poder e/ou um reforço das crenças das coalizões minoritárias. A quarta via de mudança diz respeito aos acordos negociados e se concretiza quando as coalizões rivais superam um longo histórico de conflitos, unindo-se em torno de acordos substantivos. Na ausência de perturbações externas e de choques internos, essas mudanças podem ser vistas como produtos do processo de aprendizagem ou da resolução alternativa das disputas. Nesse sentido, no ACF as decisões alocativas são entendidas tanto como uma função da competição entre coalizões no interior de um subsistema quanto da influência de eventos externos.xii

5.4 Incrementalismo Interrompido: a Teoria da Atenção de Baumgartner & Jones Numa analogia à teoria paleontológica evolucionista de Gould & Niles, Frank

Baumgartner & Bryan D. Jones utilizam a metáfora do equilíbrio pontuado (punctuated equilibrium theory, 1993 – PET) para explicar por que os processos de políticas, tipicamente marcados por gradualismo e estabilidade, ocasionalmente produzem mudanças em grande escala (True, Jones & Baumgartner – T,J&B, 2007 p. 155).

Especialmente aplicável ao contexto decisório da orçamentação, as explicações que a PET oferece são relevantes e abrangentes, pois alcançam tanto a regularidade dos ajustes incrementais quanto as repentinas e drásticas mudanças (punctuations) que, de tempos em tempos, afetam a programação das políticas públicas.

Seguindo a idéia de ‘processamento desproporcional das informações’ de Padgett (1980),xiii a PET assinala que os elementos centrais para entender a alternância desses movimentos são a geração e a difusão de temas/idéias (issues), a definição da agenda e a estrutura institucional que está presente nas instâncias decisórias (venues).

True, Jones & Baumgartner (T,J&B, 2007) definem as venues em duas categorias principais: subsistemas e macro-sistemas; as quais operam por meio de processos paralelos ou seriais, respectivamente. Considerando a limitação cognitiva dos atores e a complexidade dos problemas enfrentados, os subsistemas podem ser vistos como componentes de uma teia de organizações (tais como repartições governamentais, comunidades epistêmicas, ONGs, grupos de pressão e outras formas de associação coletiva) que abordam problemas de maneira parcelada e especializada. Por conta de aspectos como ideologia, cultura organizacional e rigidez de repertórios de soluções técnicas, os subsistemas tendem a reforçar positivamente as políticas públicas já adotadas, freando mudanças e cortes orçamentários drásticos. Uma vez que os subsistemas políticos compartilham interesses e têm significados de sucesso comuns, eles lançam mão de ‘feedback negativo’ para desencorajar novas idéias e manter issues de interesse em seus domínios, lutando sempre por arranjos institucionais que preservem seus canais de atuação (monopólios de políticas). Por conseguinte, nesse espaço dos subsistemas o padrão natural é a estabilidade por meio de ajustes marginais.

Já os macro-sistemas, representam as instâncias que tratam de questões macro-políticas. Se uma issue ganha proeminência e é capturada por essa esfera, abre-se a oportunidade para as mudanças rápidas e agudas (as quais se refletirão em pontuações no orçamento).

Nessa direção, T,J&B (2007) ressaltam que o enquadramento que se dá às questões de políticas públicas é essencial à dinâmica das venues e, portanto, ao padrão das mudanças. Os monopólios de políticas (que refreiam a escala das mudanças) dependem diretamente da imagem que os subsistemas são capazes de gerar em apoio a seus interesses. No entanto, essa imagem (entendida como forma de definir, difundir, discutir e compreender as questões que envolvem as políticas públicas) tanto influencia quanto é influenciada pelos arranjos institucionais que se interpõem nos espaços políticos. Assim, enquanto os defensores de uma dada política pública buscam enquadrá-la a partir de seus aspectos mais positivos, grupos rivais tendem a difundir imagens de desaprovação dessa mesma política, o que pode ser determinante para a estabilidade das políticas.xiv Na medida em que não há um controle

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absoluto do impacto das imagens nos macro-sistemas, antigos monopólios de políticas públicas podem entrar colapso, enquanto outros surgem à procura do espaço deixado.

Assim, o sucesso do fluxo das issues depende de uma dupla habilidade dos atores. Importa a aptidão em manipular símbolos, retóricas e evidências com o fito de gerar as imagens capazes de mobilizar a atenção dos macro-sistemas. E também a capacidade de reconhecer e escalar as jurisdições (venue shopping) e os rosters apropriados à formação dos consensos que as mudanças requerem. Se isso acontece, é sinal de que o processamento paralelo do subsistema falhou (possivelmente porque não houvesse repertórios e procedimentos operacionais prontos para lidar com um novo problema). O aumento da atenção eleva a issue na direção do macro-sistema, onde o processamento passa ser serial, em virtude da incerteza e da escala envolvidas na eventual mudança. Vale destacar que o PET assume sobrecarga de informação e escassez de tempo e atenção. Tal como no ACF, as imagens competem entre si, impelindo o governo a priorizar a atenção.

Em harmonia com a GCT, a PET não assegura que os problemas capturados na instância macro-política se liguem a soluções estritamente racionais. A eventual adoção de soluções logicamente conectadas aos problemas requer uma ação de empreendimento político. Uma vez que o processamento das informações é ‘desproporcional’, a resposta dada aos problemas governamentais não guarda, necessariamente, relação com a severidade dos sinais (JONES & BAUMGARTNER, 2005). Assim, o governo tanto pode reagir exageradamente a problemas fracamente sinalizados como se omitir diante de sinais contundentes.

B,J&T (2007, pp. 168-169) defendem que, embora a orçamentação seja mormente incremental e estocástica, é possível desenvolver hipóteses seguras sobre a distribuição estatística das mudanças de políticas. Pelo fato de o orçamento mudar marginalmente na maior parte do tempo, com ajustes radicais apenas ocasionalmente, a curva que representa as alterações orçamentárias no tempo/espaço assumirá uma forma leptocúrtica. Assim, a distribuição univariada das decisões orçamentárias terá um pico central alto e delgado (representando a absoluta recorrência de ajustes meramente marginais), ombros fracos (indicando a baixa probabilidade de alterações moderadas) e caldas pronunciadas no limite (retratando as pontuações episódicas). Em grande medida, o PET oferece uma explicação original, sugerindo distribuição não-gaussiana nos ajustes, e choques episódicos decorrentes tanto de fatores endógenos quanto exógenos.

6 CONTRASTANDO PROPOSIÇÕES TEÓRICAS

Como se observou, em alguma medida, cada uma das proposições teóricas oferece algum tipo de subsídio à compreensão das decisões alocativas – especialmente quanto aos fatores/mecanismos que explicam persistência e mudança em políticas públicas. Contudo, o modo de examinar e explicar esse fenômeno varia em função de opções epistemológicas e metodológicas. Embora essas escolhas estejam refletidas nos modelos analíticos, nos esquemas conceituais e, portanto, na forma de enquadrar a realidade observada, as implicações disso nem sempre são muito evidentes.

Inspirada no pioneiro trabalho de Allison (1969), nas consagradas idéias de March (1994) e nas instigantes reflexões de Capano (2009a, 2009b), esta seção traça uma paisagem abrangente e integradora das proposições (embora sinteticamente), auxiliando a esclarecer o impacto das escolhas epistemológicas e metodológicas na abordagem das decisões alocativas.

Para tanto, no Quadro 1 (abaixo) contrastam-se os aportes teóricos quanto aos seguintes aspectos: (a) unidade básica de análise; (b) padrões dominantes de inferência (c) modelo de indivíduo (d) seqüência de progressão das decisões; e, (e) mecanismos e padrões de mudança.

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Quadro 1 – Contraste das proposições teóricas

Quadro 1 – Contraste das proposições teóricas (continuação)

Wefare economics Public choice IncrementalismoGarbage-Can + Multiple streams

Coalizões de defesa

Julgamento serial + Equil. pontuado

Unidade básica de

análise

Decisões alocativas como

uma escolha otimizante.

Governo visto como um monolito

que seleciona o curso de ação que

maximiza o objetivo nacional.

Decisões alocativas como

uma escolha estratégica dos

atores em posição de decidir. Governo

visto como um conjunto de

agentes egoístas que selecionam as

ações que maximizam seus

objetivos pessoais.

Decisões alocativas como

produto de compromissos

políticos prévios e de repertórios

organizacionais (procedimentos

operativos padronizados). Governo visto

como uma constelação de

atores restringidos em suas

capacidades de processar

informações, de comparar

alternativas e de julgar

consequências de todas as suas

ações.

Decisões alocativas como resultantes do

empreendimento político e da

combinação de fluxos de

problemas, soluções e do

contexto político, segundo uma

ordem temporal (componentente

estocástico). Governo visto

como uma rede de interações complexas

marcadas por ambiguidade.

Decisões alocativas como resultantes do

impacto das idéias sobre o sistema de crenças (que estabelecem a

visão de mundo, inclusive quanto à

casuação dos problemas

sociais). Governo visto como um

conjunto de subsistemas

(constituído por coalizões que

competem entre si) que respondem

a eventos econômicos e

sociais, bem como à aprendizagem

política.

Decisões alocativas como resultantes da

competição entre fluxos

informacionais (temas/idéias) que

tentam penetrar num limitado

espaço de agenda (atenção do macro-sistema). Governo

visto como um aglomerado de

subsistemas que produzem e processam informações

(desproporcionalmente) no intuito de

controlar as imagem que

favorecem aos respectivos

monopólios de políticas.

Padrões dominantes de inferência

Se o Estado toma um curso de ação,

esse deve ser entendido como a

decisão que maximiza o

objetivo de corrigir a falha de

mercado. O enigma do

pesquisador é solvido quando se

encontra o propósito da ação.

Se um agente toma um curso de ação em nome do Estado, esse deve

ser entendido como a decisão que maximiza a

utilidade do agente dada uma

estrutura forma de regras. O enigma do pesquisador é solvido quando se mapeia a estrutura institucional formal

e evidencia a preferência do

decisor.

Se um agente toma um curso de

ação hoje, é porque esse está em harmonia com

a expectativa histórica dos

demais atores e, especialmente,

porque a estrutura organizacional

existente já possui as rotinas

necessárias para tratar a alternativa

escolhida. O enigma do

pesquisador é solvido quando se

considera as decisões tomadas no ano anterior e se revela conjunto de repertórios e procedimentos operacionais da

organização.

A adoção de um curso de ação é propiciada pela abertura de uma

janela de oportunidade (acaso) e pelo

empreendimento político (coupling ).

Resulta de disputas e

barganhas no interior de redes de políticas e da

liderança do empreendedor. O

enigma do pesquisador é

solvido parcialmente

devido à ambiguidade

estrutural. Identificar a

cronologia dos fluxos, decifrar a

identidade do empreendedor e mapear o design da rede auxilia a

entender a decisão.

O curso de ação adotado traduz a

posição valorativa da coalizão

dominante ou um compromisso mútuo entre

coalizões competidoras

(mediados por um policy broker ). O

enigma do pesquisador é

solvido em grande parte quando se

compreendem as crenças políticas e

os recursos disponíveis em cada coalizão, a

situação do contexto externo (dinâmico) e os

parâmetros estáveis do

sistema político.

A adoção de um curso de ação

estabilizador(incremental)/drástico(pontuações) deve-se a à imagem

que desviou/mobilizou

a atenção do macro-sistema e

restringiu/promoveu a mudança de

agenda. O enigma do pesquisador é solvido em grande parte quando se compreendem o contexto político,

os arranjos institucionais, a identidade dos

atores e o processo de formação da

atenção.

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Fonte: própria, baseada em Allison & Zelikow (1999) e Capano (2009a)

Wefare economics Public choice IncrementalismoGarbage-Can + Multiple streams

Coalizões de defesa

Julgamento serial + Equil. pontuado

Modelo de indivíduo

Racional, maximizador por meio de cálculo, preferências bem

comportadas, orientado ao

interesse coletivo do Estado, segue

uma lógica de consequência nas

decisões.

Intencionalmente racional,

otimizador por meio de cálculo de

expectativas (updater ),

orientado ao próprio interesse, segue uma lógica de consequências

nas decisões.

Racionalmente limitado, satisficer

por meio de heurísticas

simples (T-1), persegue de modo

amplo a estabilidade das

estruturas e o consenso político.

Racionalmente limitado, satisficer ,

persegue o interesse da

comunidade de políticas públicas

segundo uma lógica de

adequação ao contexto ambíguo.

Racionalmente limitado, satisficer

por meio do sistema de

crenças, persegue os interesses da

coalizão, dentro de uma lógica de adequação à

estrutura valorativa e às condições do contexto externo.

Racionalmente limitado, satisficer

por meio de atenção seletiva,

persegue o interesse do subsistema

político a qual pertence, dentro de

uma lógica de adequação aos

processos cognitivos e afetivos e ao

contexto externo.

Seqüência de progressão

das decisões alocativas

Linear e previsível. Segue um roteiro lógico e causal

tanto nos passos do processo

decisório quanto nos estágios das

políticas.

Linear e previsível. A dinâmica das

escolhas é prestabelecida por

uma regra de otimização das preferências,

dadas as instituições

formais.

Linear e previsível. Decisões se

pautam por um referencial

histórico (T-1) de modo que as

mudanças seguem uma

seqüência unitária e prestabelecida.

Não-linear e imprevisível. A

interação idiossincrática do

empreendedor político com a

natureza randômica dos fluxos torna a

seqüência das decisões

indeterminável. Logo, a trajetória das mudanças é

imprevisível.

Linear e parcialmente previsível. As

decisões seguem linearmente a dinâmica do sistema de crenças. A

amplitude das mudanças está

ancorada no nível de crenças, mas

não se pode prevê-las precisamente

por conta da importância de

fatores de ordem exógena.

Linearidade desconexa e parcialmente

previsível. Existem mecanismos causais que

permitem estimar as respostas

(feedback, redefinição de

imagem, escalada de subsistema ). Todavia, essas

respostas contingentes não

conectam linearmente as

mudanças.

Mecanismos e padrões de

mudança

Falhas de mercado na alocação de

recursos privados geram o espaço para as decisões

governamentais na direção do bem-

estar coletivo.

Falhas políticas (problemas de ação coletiva, informação assimétrica,

instituições mal desenhadas e etc.)

permitem que atores racionais tomem decisões

contrárias ao interesse coletivo.

Preferência pela estabilidade e

limitação cognitiva do agente e da estrutura geram gradualismo nas

decisões. Saliência das

políticas e eventos sociais e

econômicos drásticos

ocasionalmente geram mudanças

abruptas.

Coincidência temporal dos três

fluxos e empreendedorism

o político propiciam as decisões e as

mudanças inesperadas.

(Eventualmente há janelas de

oportunidade periodicamente

definidas).

Perturbações externas, choques

internos, aprendizagem

orientada e acordos

negociados são os caminhos típicos

para as mudanças. A amplitude das

mudanças depende de qual o

nível de crença afetado.

A interação entre as imagens e as

instâncias políticas determina tanto a

estabilidade quanto a mudança

brusca das políticas. As crises

externas e as trocas de partido

favorecem as pontuações. A

estrutura organizacional e a

regulação institucional favorecem à estabilidade.

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Em boa medida, esses elementos que servem ao contraste das proposições conectam-se a quatro dimensões distintivas das modernas teorias da decisão, conforme sugere March (1994, pp. 7-8): (1) autonomia ou interdependência dos atores implicados na decisão; (2) decisão baseada em lógica de conseqüências (choice-based) ou de adequação (rule-based); (3) preferências e alternativas estáveis, consistentes e claras ou instáveis, mal-comportadas e ambíguas; e, (4) conhecimento permite atividade instrumental ou requer interpretação dinâmica nas situações de decisão.

Organizadas em eixos radiais de duplo pólo, essas dimensões propiciam elaborar uma ilustração das proposições analisadas segundo as premissas assumidas. A figura 1 explora essa possibilidade e contrasta graficamente as proposições examinadas no quadro 1.

FIGURA 1 – Contraste gráfico das proposições teóricas

Fonte: própria, baseado em March (1994)

Ainda que de modo impreciso, a figura 1 exibe variações na assunção de premissas por

parte das proposições examinadas. Enquanto as visões estritamente racionais (WE e PCT) ocupam majoritariamente a área direita dos pólos superiores, os enfoques da BR situam-se mais à esquerda dos pólos inferiores do gráfico. Os casos limites de cada macro-perspectiva são, possivelmente, a WE e o MS. Essa diferença de posicionamento reflete as divergências de premissas quanto à lógica de decisão e à quantidade de atores implicados, ao conhecimento e à visão de mundo (objetiva ou ambígua), à forma de processar informações, ao comportamento das preferências e aos objetivos que orientam o processo de decisão alocativa.

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7 CONCLUSÃO O presente texto resgata e contrasta proposições teóricas influentes no moderno debate

sobre alocação de recursos públicos. Com o auxílio de duas lentes conceituais, expõe as implicações que as escolhas epistemológicas e metodológicas produzem na forma de abordar e inferir de cada enfoque/modelo examinado.

O que se observa é que os enfoques MS, ACF e PET apresentam maior potencial explicativo em comparação aos demais, sobretudo por assumirem mais realisticamente a limitação cognitiva dos agentes (indivíduos e organizações), a complexidade e a ambigüidade dos contextos e as múltiplas dimensões que caracterizam as decisões de políticas públicas. Ao conjugarem idéias, instituições, redes de políticas, escolhas e processos sócio-econômicos (John, 2003) o MS, o ACF e o PET disponibilizam categorias analíticas que oportunizam ao pesquisador jogar alguma luz no interior da black-box das decisões alocativas. De modo destacável, o governo é visto nesses enfoques como uma ordem social que transcende o papel residual geralmente atribuído a ele pelas abordagens da economia neoclássica.

Embora a riqueza do fenômeno sócio-político não se esgote nas categorias de análise desses enfoques, há imensas virtudes em sua adoção. Eles permitem capturar a essência do processo alocativo porque combinam diferentes níveis de análise e conectam diversos avanços empíricos e conceituais, clássicos e recentes (tais como teoria de redes, teoria dos prospectos, aprendizagem organizacional, teoria da atenção, path-dependence e tantos outros). Acima de tudo, eles permitem enxergar o indivíduo na presença das relações político-sociais que se desenvolvem no tempo e no espaço.

Em face disso, ainda que de forma exploratória e incompleta, este artigo buscou trazer à tona proposições teóricas que conjuguem também as dimensões organizacionais e políticas implicadas nas decisões alocativas, reconhecendo sua importância no enfrentamento dos problemas contemporâneos. Ao contrastar esses aportes, o texto procurou reconhecer os caminhos de pesquisa mais proveitosos à compreensão do processo de alocação dos recursos públicos, bem como instigar a reflexão sobre mecanismos de governança orçamentária.

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econômica estrita / racionalidade limitada), as quais se orientam por um conjunto fundamental de premissas que é bastante distinto. iv No sentido de que o indivíduo tem preferências completas, transitivas e atua em função delas. (Veja-se, por exemplo, Tresch, 2002, pp. 34-35). v Conforme assinala Besley (2006), essas duas visões mais destacáveis têm exercido grande influência na definição dos métodos de análise, dos procedimentos operacionais e do design das instituições orçamentárias. vi O comportamento real dos indivíduos seguidamente viola as hipóteses de raciocínio estritamente lógico, auto-interessado, otimizante e instantaneamente ajustável aos incentivos (JONES, 1999), sobretudo quando se admite que subsistemas políticos operm em contextos complexos, tipicamente não-estacionários, não-ergódigos, envolvidos por incertezas keynesianas e marcados por equilíbrios múltiplos e/ou instáveis. Mais recentemente, psicólogos comportamentais encontraram suficientes evidências de que os indivíduos enfrentam deficiências na formação de suas preferências, na geração e na comparação de alternativas de ação. Estudos mostram que as pessoas seguidamente tomam decisões desinformadas e, raramente, apóiam-se em ferramentas de análise estritamente racional. De fato, as preferências e as escolhas moldam-se também pelas emoções (JONES, 2001). vii Conforme será visto adiante, o MS assenta-se no garbage can theory de Cohen, March, & Olsen (1972). viii O equilíbrio pontuado vale-se da teoria do julgamento serial de Padgett (1980). ix Essencialmente, a Garbage Can Theory (GCT) sugere que nas chamadas ‘anarquias organizadas’ (universidades, comitês de orçamento e o próprio governo federal como um todo, por exemplo), ao invés de programadas ou previsíveis, as decisões resultam da confluência casual de atores, problemas e soluções (MARCH, 1994). Entendidas na vertente intelectual da BR, essas situações de decisão caracterizam-se particularmente por: preferências problemáticas, tecnologia indeterminada e participação fluida. Dadas tais condições, procurar por alternativas que maximizem o benefício líquido de sua adoção torna-se uma tarefa impossível. Em face disso, a GCT assume que a decisão é regida por uma lógica temporal e exógena (triagem temporal). Seus elementos constituintes (atores, problemas e soluções) são vistos como fluxos independentes, caracterizados em função: do momento no qual se manifestam; da quantidade de energia disponível/exigida (atores e problemas); dos recursos oferecidos (soluções); e, do acesso às situações de decisão. x A competência pessoal (bem como outras características inerentes à figura do empreendedor político) torna-se fundamental no resultado do empreendimento. Analogamente, organizações podem assumir esse papel. xi Em parceria com Hank Jenkins-Smith. xii São considerados exógenos ao subsistema (a) os parâmetros relativamente estáveis do sistema (atributos básicos do setor em que opera o subsistema, distribuição básica dos recursos naturais, valores sócio-culturais e estrutura social e estrutura constitucional); (b) eventos externos dinâmicos (transformação das condições sócio-econômicas, mudança na opinião pública, mudanças na coalizão governamental e no impacto de outros subsistemas); (c) estruturas de oportunidade das coalizões (grau de consenso necessário à mudança e abertura do processo político); e, (d) limitações de recursos dos atores. xiii Padgett (1980) examinou a alocação de recursos nos programas domésticos do governo federal norte-americano e propõe que a decisão orçamentária segue uma lógica de busca seqüencial, dado um conjunto ordenado de alternativas discretas. Embora também parta de um referencial histórico (tal como propuseram Wildavsky, 1964 e Davis et al., 1966), o modelo de Padgett reconhece que a direção da busca por alternativas (aumentar ou reduzir dotações) é decidida conscientemente, sofrendo a interferência de fatores tais como as limitações de ordem legal, técnica e fiscal, o papel institucional e a opinião que cada ator tem diante da programação analisada. Nesse sentido, Padgett defende que a escolha alocativa tem natureza não-determinística, já que decorre de uma busca serial que combina predisposição cognitiva e sensibilidade ao contexto orçamentário. Assim, no ‘julgamento serial’. xiv Note-se que a imagem é formada tanto por aspectos de natureza emocional como puramente racional. Assim, tanto as evidências científicas quanto os apelos ao sentimento servem para direcionar ou desviar a atenção dos macro-sistemas (T,J&B, 2007).