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MODELO PARA ALEGAÇÕES FINAIS DA QUESTIONÁVEL CREDIBILIDADE DOS DEPOIMENTOS PRESTADOS PELOS POLIAIS MILITARES : Como procuramos demonstrar com a referência aos trechos dos depoimentos acima destacados, há evidentes contradições e dissonâncias entre os policiais militares ouvidos, além da questionável veracidade das declarações ante as regras de experiência comum e a lógica do razoável. Do panorama extraído da prova oral, portanto, não há que se falar no cabimento in casu da inteligência contida no verbete n.º 70 da Súmula da Jurisprudência Dominante do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (doravante apenas Súmula 70) , aqui criticada a partir dos seguintes perspectivas: a) legal ; b) lógica ; c) científica e; d) jurisprudencial . Desde já, cumpre lembrar que a orientação contida na Súmula 70 não corresponde à presunção de veracidade das declarações dos agentes da segurança pública, sendo de todo descabido qualquer viés interpretativo nesse sentido, como veremos mais detidamente no item D adiante. A) DO ASPECTO LEGAL:

Defensoria Pública do Rio de Janeiro · Web view, a defesa não advoga idêntica solução à preconizada pelo entendimento sumulado, porém, com os “sinais invertidos”. Não

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MODELO PARA ALEGAÇÕES FINAIS

DA QUESTIONÁVEL CREDIBILIDADE DOS DEPOIMENTOS PRESTADOS PELOS POLIAIS MILITARES:

Como procuramos demonstrar com a referência aos

trechos dos depoimentos acima destacados, há evidentes contradições e

dissonâncias entre os policiais militares ouvidos, além da questionável veracidade das

declarações ante as regras de experiência comum e a lógica do razoável. Do

panorama extraído da prova oral, portanto, não há que se falar no cabimento in casu

da inteligência contida no verbete n.º 70 da Súmula da Jurisprudência Dominante do

Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (doravante apenas Súmula 70), aqui criticada a partir dos seguintes perspectivas: a) legal; b) lógica; c) científica e; d)

jurisprudencial.

Desde já, cumpre lembrar que a orientação contida na Súmula 70 não corresponde à presunção de veracidade das declarações dos agentes da segurança pública, sendo de todo descabido qualquer viés interpretativo

nesse sentido, como veremos mais detidamente no item D adiante.

A) DO ASPECTO LEGAL:

Antes de qualquer outra coisa, examinemos o teor do

aludido verbete de Súmula, in verbis:

PROCESSO PENAL

PROVA ORAL

TESTEMUNHO EXCLUSIVAMENTE POLICIAL

VALIDADE

"O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação."1

1 Referência: Súmula da Jurisprudência Predominante (Art. 122 RI) nº 2002.146.00001 (Enunciado Criminal nº 02, do TJRJ) - Julgamento em 04/08/2003 - Votação: unânime - Relator: Des. J. C. Murta Ribeiro - Registro de Acórdão em 05/03/2004 - fls. 565/572. (A Súmula 70 advém do Enunciado 02 aprovado no I Encontro de Desembargadores do

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A própria redação da Súmula não representa a

possibilidade de se emprestar às palavras dos policiais ouvidos maior ou menor

credibilidade em relação às de quaisquer outras provas. Extrai-se do disposto no art.

203 do Código de Processo Penal a confirmação de que não é permitido ao intérprete distanciar-se dos fatos ao valorar quaisquer das provas produzidas em

juízo:

Art. 203.  A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e Ihe for perguntado, devendo declarar seu nome, sua idade, seu

estado e sua residência, sua profissão, lugar onde exerce sua atividade, se é

parente, e em que grau, de alguma das partes, ou quais suas relações com

qualquer delas, e relatar o que souber, explicando sempre as razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa avaliar -se de sua credibilidade.2 (grifamos)

Pela redação sumular, mesmo que se restrinja a prova oral

ao depoimento de policiais, não se desautoriza a condenação. Ao menos quanto à

autoria, a prova dos autos é exclusivamente oral e esta exclusivamente extraída dos

depoimentos dos policiais responsáveis pela diligência que culminou com a captura

do acusado. Portanto, mutatis mutandis, não é que a Súmula 70 “não desautoriza”, mas efetivamente autoriza a condenação. Ainda que a prova da autoria repouse única e exclusivamente nos depoimentos policiais. É o que se questiona em termos de credibilidade. Eis aí aquilo com o que a defesa não pode se resignar e

desde já sublinha.

De fato, nenhuma “tarifação” da prova pode ser extraída da

Súmula 70, menos ainda do Código de Processo Penal (art. 203, parte final)3 na

medida em que todos os elementos de convicção relacionados à credibilidade da

Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro organizado pelo CEDES em Angra dos Reis nos dias 24 a 26 de Agosto de 2001.

2 GUILHERME DE SOUZA NUCCI assim comenta o dispositivo no tópico credibilidade do testemunho: “...é curial ter o julgador a sensibilidade pra compreender que as pessoas são diferentes nas sua forma de agir, captar situações, armazená-las na memória e, finalmente, reproduzi-las. Descortinar e separar o depoimento verdadeiro e crível do falso e infiel é meta das mais árduas no processo, mas imprescindível para chegar ao justo veredicto. ” (Código de processo penal comentado. 13ª Ed. Rio de Janeiro, Forense, 2014, p. 500.)

3

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testemunha devem estar apoiados em dois pressupostos: ou nas “razões de sua [do depoente] ciência” ou nas “circunstâncias” (de fato). Não se admite, portanto,

qualquer supraposição axiológica, vertical e apriorística como vetor determinante da

valoração da prova. No entanto, este tem sido o mais fiel retrato do verbete em

testilha.

Cabe aqui, ad argumentandum, traçarmos um paralelo com

o disposto no art. 155 do Código de Processo Penal, precisamente quando estatui a impossibilidade de fundamentar-se o julgador “exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação”. Justifica-se o comparativo analítico pela

coincidência entre o advérbio de modo “exclusivamente” e a expressão “o fato de

restringir-se a prova oral” constante da redação sumular. Mas se, mutatis mutandis,

tanto na Súmula 70 quanto na redação do art. 155 inaugurada pela Lei 11.690/08, o

mandamento semântico é o mesmo; as conseqüências para a valoração da prova, ao

contrário, são distintas. Vejamos.

No art. 155, o exclusivamente representa um limite ao intérprete - “não podendo”; já na Súmula, é representativo de uma autorização, um desbordamento excepcional que “não desautoriza”, ao mesmo tempo em que, em larga medida, subverte o mandamento legal. A melhor doutrina critica o

dispositivo justamente pela carga inquisitória concentrada na palavra

“exclusivamente”, pela qual se permitirá a higienização retrospectiva do conteúdo

declarado em sede policial, com sua formal reprodução em juízo. Neste sentido é o

lapidar escólio de DENIS SAMPAIO:

“O que se denota, na realidade, é a impossibilidade de uma decisão com elementos

exclusivamente colhidos no Inquérito Policial. Porém, se observados nessa fase e

ratificados em juízo (o que vem sendo a prática judiciária), sua decisão se mostra

regular, colocando, como conteúdo decisório, toda a carga ‘probatória’ produzida em

sede judicial. Mas não podemos nos esquecer que esse material probatório somente pôde ser analisado, na maioria das vezes, a partir daqueles elementos que somente serviriam para criar a possibilidade de exercício da pretensão condenatória pela acusação (...)

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A situação é agravada quando ocorre uma prisão flagrancial, o que na realidade,

tanto a acusação quanto a decisão acabam sendo apenas uma formalização chanceladora da atuação inquisitória (...) estruturando apenas uma ritualização ratificadora da primeira fase exclusivamente inquisitória, como se fosse possível, a partir dessa estrutura, uma segunda fase acusatória.”4

Compreendida a pertinácia da crítica ao disposto no

art. 155 do codex – onde se estabelece um limite – com mais razão se deve ter

cautela na aplicação da inteligência da Súmula 70, tendo em vista que nela se

estabelece uma autorização haurida da jurisprudência; uma autorização

excepcional e que deve ser tomada com o máximo grau crítico na valoração da

prova oral. E não é o que temos visto.

B) DO ASPECTO LÓGICO:

Destacamos a porosidade da prova oral também no que diz

respeito à lógica. A contradição que envolve elementos fáticos – portanto, concretos e verificáveis – não pode subsistir como apto ao livre convencimento

motivado na exata medida em que, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar,

dois enunciados divergentes sobre fatos materiais não podem coexistir,

mormente no processo penal.

Deve estar claro que a narrativa acusatória engendrada na

denúncia carreia uma hipótese, sendo certo que esta pode ou não corresponder à

realidade. Assim, não coincidindo os depoimentos policiais sobre eventos nucleares contidos na denúncia, questionável se torna o espectro probatório e afasta-se a aplicabilidade da Súmula 70. Em consequência, tem-se como não confirmada a hipótese acusatória no ponto sobre o qual recai a divergência . Eis

a lição de MICHELE TARUFFO, in verbis:

“Os fatos materiais existem ou não existem, porém não tem sentido dizer deles que

são verdadeiros ou falsos; somente os enunciados fáticos podem ser verdadeiros, se estão referidos a fatos materiais acontecidos, ou falsos , se

4 SAMPAIO, Denis. A Verdade no Processo Penal: a permanência do sistema inquisitorial através do discurso sobre a verdade real. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010, pp. 136 e 137.

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afirmam fatos materiais não acontecidos. Em consequência, a ‘verdade do fato’ é

unicamente uma forma elíptica para referir-se à verdade do enunciado que tem por

objeto um fato.”5 - grifamos

Bem compreendido este aspecto (lógico), não se pode emprestar credibilidade aos depoimentos prestados. Deve ficar claro que dois enunciados dissonantes que têm por objeto um mesmo fato não podem, ao mesmo tempo, corresponder à verdade. Neste caso, impõe-se afastar a

credibilidade dos depoimentos não só no que toca às circunstâncias sobre as quais

recaem a contradição, mas porque a in-coincidência das versões impõe o descrédito

das declarações no momento da valoração da prova oral.6

Consoante lição de AMILTON BUENO DE CARVALHO

quanto ao dever do E. Juiz no sistema acusatório:

“...é dever constitucional do juiz ingressar no feito convencido da inocência do

acusado: é um pré-juízo constitucional. Logo, a condenação somente poderá explodir quando, apesar de todos os esforços interpretativos, for impossível

absolver. Uma espécie de diálogo se trava com o acusado: ‘tu és inocente e

somente serás condenado se a acusação destruir absolutamente todas as hipóteses defensivas.”7

8

5 TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Madrid: Trotta, 2002, p. 117, apud, PRADO, Geraldo. Prova Penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: 2014, pp. 36-37.

6 Supondo que a finalidade do processo é atravessada pela necessidade de descobrimento da “verdade real”, o julgador deve estar atento ao fato de que “...o convencimento psicológico do juiz é uma condição e uma condição necessária, mas não suficiente, à qual deve acrescentar-se a aplicação, na formação do convencimento do juiz, de critérios de racionalidade e regras da lógica. Assim sendo, o enunciado ‘p está provado’ deve ser entendido como sinônimo de ‘há elementos de prova suficientes a favor de p’. Isso não quer dizer que a proposição, porque está provada, seja verdadeira. Uma hipótese fática pode resultar provada ainda que seja falsa. Assim sendo, afirmar que ‘p está provado’ denota que este enunciado será verdadeiro quando se dispuser de elementos de prova suficientes a favor de p, e falso quando não se dispuser de elementos de prova a favor de p ou quando eles forem insuficientes. Todavia, isso não exclui que o enunciado possa ser considerado verdadeiro, porque confirmado por suficientes elementos de prova, embora não corresponda, efetivamente, à realidade dos fatos.” (BADARÓ, Gustavo. Direito à Prova e os Limites Lógicos de sua Admissão: os conceitos de pertinência e relevância, in Sistema Penal e Poder Punitivo – Estudos em Homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr. Florianópolis, Empório do Direito, 2015, p. 290 e 291 – grifamos).

7 CARVALHO, Amilton Bueno de. Eles, os juízes criminais vistos por nós, os juízes criminais. Porto Alegre, Lumen Juris, 2011, p. 7.

8 “Dizer que a verdade é contingencial significa abrir mão desse fim – busca da verdade – e assumir outro horizonte, no qual o juiz deverá estar predisposto a absolver, por exigência da presunção de inocência: em outras palavras, a presunção de inocência deve ser o elemento estruturante do processo penal, inclusive no que se refere à função do juiz, rompendo com a epistemologia inquisitória orientada à persecução do inimigo .” (KHALED JR., Salah H. A produção analógica da verdade no processo penal, in Sistema Penal e Poder Punitivo – Estudos em Homenagem ao Prof.

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Do que se pode concluir, desde já, não estar provada a hipótese acusatória nos pontos já destacados, precisamente porque os depoimentos transcritos não são uníssonos, daí derivando a conclusão lógica ora

sustentada pela defesa técnica.

C) DO ASPECTO CIENTÍFICO:

Ao tratar da relação do direito processual penal com

outros ramos do direito e ciências auxiliares, TOURINHO FILHO destaca “a

Psicologia Judiciária, fornecendo ao Juiz elementos para avaliar adequadamente a

prova testemunhal, os motivos do crime etc.”9

Neste sentido, o atual estado da arte na Psicologia do Testemunho10 tem ênfase na memória do depoente, tomada como essência do testemunho11, destacando-se a absoluta inconveniência científica de tomar os “ depoimentos de autoridades policiais e seus agentes ” de modo acrítico . O

julgador não está dispensado de considerar apropriadamente as questões

estruturantes da memória12 como forma de se aproximar da verdade e da justiça.

A constatação de que as emissões discursivas das testemunhas são destinadas à produção de lógicas penais casuísticas implica a

necessidade de todos os atores sociais partícipes do processo criminalizador

(concreto) serem erigidos em objeto de estudo, porque “um discurso nunca é fruto do acaso nem da coincidência, antes traduz as crenças, as convicções e as expectativas de quem o emite, podendo ser alterado (acrescido ou diminuído) Aury Lopes Jr. Florianópolis, Empório do Direito, 2015, p. 499 - grifamos)

9 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, Vol. 1, 22ª Ed. São Paulo, 2000, p. 39.

10 A Psicologia do Testemunho visa estudar os depoimentos prestados junto de instâncias de controlo social e, do ponto de vista científico, é um segmento da Psicologia Forense (ou Judiciária) Experimental. Neste sentido, o seu objeto consiste na averiguação da verdade, do erro e da mentira no cenário judicial (Sabaté, Bayés e Munné, 1980, citados por Diges e Alonso-Quecuty, 1993). 

11 A palavra testemunho designa narrativa elaborada e apresentada por um sujeito relativamente a fatos de que tem conhecimento direto (Askevis- Leherpeux, 2001).

12 Pode-se definir a memória como sendo um conjunto de processos que permitem manipular e compreender o mundo.

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pelas crenças de quem for o receptor. Assim, é nítido que o discurso das

testemunhas pretende contribuir para a construção do real a que o Tribunal vai

proceder: essa a razão pela qual devem incidir sobre as testemunhas os focos da Psicologia, procurando conhecer da veracidade dos depoimentos prestados:

esta é, aliás, a lógica estruturante da Psicologia do Testemunho”.13

Na equação que se instaura a partir da instrução probatória

(mais precisamente na fase de valoração da prova), a Súmula 70 acaba tornando

nebuloso o que deve ser tomado com clareza pelo magistrado: a necessidade de

fazer da prova “objeto de estudo” para compreender que um enunciado “nunca é fruto

do acaso nem da coincidência, antes traduz as crenças, as convicções e as expectativas de quem o emite”, como visto.

Ante a referida recomendação do saber científico, a aplicação a-crítica da Súmula 70 afasta-se da ciência e se volta ao retorno da prova tarifada esvaziando o sistema acusatório. Destaque-se, ainda no sentido

aqui explorado, a seguinte lição:

“O testemunho é objeto de uma estratégia transmissora, ou seja, o «[...] sujeito

escolhe, organiza e gere as suas ações com vista a concluir uma tarefa ou atingir um objetivo» (Ducret, 2001, p. 309); reprogramar o discurso, enchendo-o,

porventura, de pormenores, com que quer dar consistência à ideação da ocorrência. Significa isto que ele pode ter perdido a noção dos fatos - ou, até,

nunca a ter tido - construindo uma imagem, virtual ou sucedânea, que crê verdadeira. Imagem do que viu ou ouviu.”14

As questões doutrinárias serão abordadas mais

adiante. Por oportuno, desde logo, pontuamos algumas leituras referentes à

eventual predisposição dos agentes de segurança pública a dirigir suas

declarações “com vista a concluir uma tarefa ou atingir um objetivo”. Vejamos por

exemplo o escólio de GUSTAVO BADARÓ: “se os policiais não podem ser 13 POIARES, Carlos Alberto. Psicologia do Testemunho. Disponível em: https://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=1365&idsc=31626&ida=16962

14 Idem.

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considerados suspeitos, pelo simples fato de serem policiais, por outro lado, e inegável o seu interesse na demonstração da legalidade de sua atuação”15. No

mesmo sentido CAMARGO ARANHA, para quem o policial deve ter suas palavras

valoradas com alguma reserva, “pois ao depor está dando conta do trabalho

realizado, tendo total interesse em demonstrar a legitimidade da investigação.”16

Em sentido contrário, SILVA SANTOS e COSTA NETO

para quem “afigura-se válido dizer que a afirmada tendência natural do policial em

pretender legitimar sua atuação funcional não encontra comprovação na praxe

forense, sendo inferência que, embora de certa forma razoável, conjectura não deixa

de ser”.17

Colacionamos entendimentos divergentes para ressaltar

que a defesa não pretende confrontar o teor da jurisprudência dominante do TJRJ a partir de uma concepção científica que – do mesmo modo verticalizado operado pela Súmula 70 – apenas estabelece outro ponto de partida a priori18. Isto não seria próprio de um argumento que se afirma científico . Em outras

palavras, se a aplicabilidade prática da Súmula 70 tem autorizado o julgador a revestir

as declarações policiais de maior valia do que os demais elementos de convicção19, a

defesa não advoga idêntica solução à preconizada pelo entendimento sumulado,

porém, com os “sinais invertidos”. Não se trata disso.

Neste sentido, invocamos os saberes colhidos e divulgados

na Pesquisa intitulada “Avanços Científicos ao Reconhecimento Pessoal e aos

15 BADARÓ, Gustavo. Direito processual penal – Tomo I. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p.368.

16 CAMARGO ARANHA, Adalberto José Q. T. de.Da Prova no Processo Penal. 5ª Ed. São Paulo, Saraiva, 1999, p. 151.

17 SILVA SANTOS, Silas e COSTA NETO, José Wellington Bezerra da. Considerações Críticas Acerca do Valor do Depoimento de Agente Policial no Processo Penal. RT-901, p. 474.

18 Qual seria: o de que as autoridades policiais e seus agentes têm interesse na condenação, sendo descartáveis os seus depoimentos.

19 E ressaltamos que, de fato, a aplicabilidade prática da Súmula – cuja redação não diz exatamente o que dela tem se extraído – pôs a prova oral calcada nos depoimentos exclusivamente policiais um grau acima dos demais elementos de convicção. Isto porque, como visto, demonstrada a materialidade, a prova da autoria sói advir da prova oral, de modo que vem a assumir uma relevância tão extraordinária quanto impertinente, do ponto de vista do sistema acusatório.

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Depoimentos Forenses”20 apenas para ressaltar a falibilidade da memória, chamando a atenção para a imprestabilidade da solução apriorística cristalizada na Súmula, a justificar também a funda divergência doutrinária já ventilada21. O

respeito ao sistema acusatório exige do julgador que se debruce sobre a prova oral

guiado pelo espírito crítico.

Com efeito, a partir da constatação de que a memória humana não funciona como uma máquina fotográfica ou uma filmadora, a

Pesquisa explora uma noção cara à Psicologia do Testemunho que é a das falsas memórias. Destacamos alguns trechos das conclusões apontadas no referido estudo

precisamente porque guardam íntima relação com a necessidade de redobrar a

atenção no momento instrutório da valoração do testemunho dos agentes de

segurança pública:22

“As falsas memórias são diferentes da mentira, já que na mentira a pessoa conta

intencionalmente algo que ela sabe que não aconteceu (VRIJ, 2008). Porém, ao se

recordar de uma falsa memória, nem o nosso cérebro faz uma distinção de

memórias verdadeira (BERNSTEIN, LOFTUS, 2009). Assim, o individuo tem certeza que viveu aquilo, ainda que seja falso, podendo inclusive sofrer fortes

emoções (com comportamentos de choro, ansiedade) ao se recordar de uma falsa

memória.

(...)

As sugestões estão muito presentes também no âmbito judicial, com graves implicações, como a condenação de pessoas inocentes baseadas em falsas memórias (INNOCENCE PROJECT, 2008).

(...)

20 Avanços Científicos no Reconhecimento Pessoal – Série Pensando o Direito nº 59/2015, pp. 19. Coordenação: LILIAN MILNITSKY STEIN. Disponível em: http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2016/02/PoD_59_Lilian_web-1.pdf - grifamos.

21 Isto é, há posicionamentos distintos, porque partem de premissas distintas quanto à inclinação dos policiais arrolados como testemunhas. Para além da generalização, há pouco de substancioso nas especulações doutrinárias que têm a pretensão de demonstrar a isenção ou a inclinação. O que jamais pode se perder de vista é a falibilidade da memória humana.

22As falsas memórias podem ser de dois tipos: a) espontâneas e; b) sugestivas. As espontâneas “ são criadas por processos internos do próprio sujeito”, ao passo que as falsas memórias sugestivas “se formam a partir de uma sugestão implantada pelo ambiente externo, seja, por exemplo, uma informação falsa inadvertidamente incluída em um questionamento em juízo, ou comentada por outra testemunha.”

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Entretanto, os profissionais que atuam no âmbito jurídico ainda entendem o grau de certeza da testemunha como altamente relacionada a acurácia da memória, quando se avalia a fidedignidade de um testemunho ou reconhecimento.

(...)

O grau de confiança de uma testemunha pode ser baseado em fatores internos e

externos (LINDSAY et al., 2007). Brewer e Wells (2006) apresentam alguns fatores

que buscam dissociar confiança e acurácia: (a) as pessoas tendem a buscar confirmações de suas hipóteses (viés confirmatório), resultando em super-confiança; (b) julgamentos de incerteza não podem ser feitos de forma confiável,

porque não há como ter um controle das possibilidades ou cenários que levaram a

esse julgamento; (c) a dificuldade que os indivíduos têm em mensurar o seu grau de certeza, baseando-se em uma mera impressão subjetiva; e (d) também,

o grau de confiança de uma pessoa que faz um reconhecimento pode ser efetuado

pelo feedback oferecido por policiais, bem como por outras testemunhas.

Enfim, a relação entre grau de certeza e acurácia do testemunho ou reconhecimento depende muito mais do momento de recuperação das memórias (i.e., do momento do testemunho ou reconhecimento) do que da forma como as memórias foram registradas enquanto os fatos ocorriam (ROEDIGER; WIXTED; & DESOTO, 2012).

(...)

Entretanto, cabe lembrar que a memória tem falhas. As falsas memórias são tão ricas em detalhes quanto as memórias verdadeiras. Portanto, as pessoas podem recordá-las com muita convicção apesar de não serem acuradas (STEIN, 2010). Conclui-se com bases nesses estudos que a relação confiança-

acurácia da memória é fraca, pois ao mesmo tempo em que reconhecimentos e testemunhos corretos podem ter muita confiança, o mesmo pode ocorrer para reconhecimentos e testemunhos errôneos.”23

O que se pretende demonstrar é a falibilidade da memória,

mesmo diante da alegada certeza do depoente. Se é certo que não se trata de

advogar a inclinação das autoridades policiais e de seus agentes pela incriminação do

acusado, que o julgador não deixe de manter sobranceira à interpretação dos elementos de convicção, o fato de que a prova oral está sujeita a diversas interferências, dentre as quais assume relevância in casu a tendência “a buscar confirmações de suas hipóteses (viés confirmatório), resultando em super-confiança”.

23 Idem. pp. 23 e 24;

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É no viés confirmatório das hipóteses previamente

cristalizadas na memória dos depoentes que podem estar repousadas as falsas

memórias ensejadoras das dissonâncias destacadas e aqui exploradas. Neste

sentido, o saber científico ora brandido pode e deve auxiliar o intérprete na justa

valoração da prova oral produzida.

Por fim, quanto a este aspecto da valoração probatória

calcado na Psicologia do Testemunho, é certo que a forma de inquirição usualmente adotada em juízo em nada colabora para a extração fidedigna do acervo mnemônico das testemunhas.

“...Fischer e Geiseman (1992) propuseram formas de aprimorar as técnicas para

conduzir a coleta de depoimentos de vitimas e testemunhas através da Entrevista

Cognitiva. A Entrevista Cognitiva é uma das mais respeitadas técnicas de entrevista investigativa, sendo amplamente utilizada no mundo inteiro, principalmente com testemunhas/vitimas adultas, tendo sido adotado como o padrão a ser seguido por lei em vários países como Inglaterra, Nova Zelândia, Austrália, entre outros. Existe um numero expressivo de estudos (por exemplo,

KOHNKEN et al., 1999; MILNE, BULL, 1999; FISHER, ROSS, CAHILL, 2010;

FISHER, SCHREIBER, 2007, RIVARD et al., 2014), incluindo no Brasil (STEIN,

MEMON, 2006), que testaram os efeitos e comprovaram a eficácia desse tipo de

entrevista.

(...)

2. A técnica central para coleta de informações é buscar um relato livre, sem

nenhuma interferência, a não ser estimular que a testemunha fale mais com base no que conseguir recordar. Assim, a instrução dada aos entrevistados e

reportar absolutamente tudo que lembram, mesmo o que considerem irrelevante ou

o que só lembrem parcialmente;

3. Somente após esgotar todas as possibilidades de um relato livre por parte da testemunha/vitima, é que perguntas serão feiras tendo por base informações trazidas neste relato livre. O procedimento de questionamento compatível com a testemunha refere-se a que o entrevistador(a) deve buscar

seguir a linha da narrativa e as informações trazidas, e não deve seguir um roteiro preestabelecido de perguntas. A necessidade de elucidar algum ponto

deve ser feito a partir da adaptação das perguntas a cada situação, com base nas

informações fornecidas pela pessoa. Em outras palavras, deixar a testemunha

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seguir a sua linha de raciocínio e seguir a entrevista através dessa linha, no lugar de o entrevistador guiar a entrevista;”4. Tipos de Perguntas: um dos pontos críticos da entrevista é o formato no qual a

pergunta e formulada. Existe abundante literatura científica mostrando que perguntas abertas (por exemplo, você me falou que viu um carro branco, fale mais

o que lembra disso?) tem maiores chances de produzir informações confiáveis do que perguntas fechadas (p.ex., tinha mais alguém dentro do carro branco?,

quando a testemunha nada falou a respeito de ter visto alguém no carro). Alem

disso, toda e qualquer intervenção por parte do entrevistador(a) que inclua novas informações, ainda não trazidas pela testemunha, devem ser evitadas (por exemplo, outra pessoa que estava na loja disse ter visto uma mulher no carro

branco, você conseguiu vê-la?). Este último tipo de pergunta, ademais de ser no

formato de pergunta fechada também é potencialmente sugestiva, já que inclui informações novas, ainda não trazidas pela testemunha o que pode ser ainda mais deletérias para a fidedignidade do testemunho (FRENDA et. al., 2011).24

Deve ter ficado claro que a atual forma de condução da

inquirição das testemunhas funciona de modo completamente alheio aos avanços

científicos acima pontuados. Na prática forense, ao menor sinal de que o depoente exporá os fatos de que tem conhecimento a partir de um “relato livre”, sói ser interrompido pelo inquiridor, o qual não raro assume o lugar de “guia”, roteirizando a inquirição a partir de “perguntas fechadas”. Neste sentido, todo o modo de extração do conhecimento dos fatos é rechaçado pela literatura científica, o que corrobora para a baixa de credibilidade dos depoimentos assim extraídos , como procuramos demonstrar .

D) ASPECTOS JURÍDICOS E JURISPRUDENCIAIS:

Está claro que os argumentos articulados até aqui não

deixam de lado a ciência jurídica, a qual permeia toda a tese defensiva, ainda que não

predominantemente nos vieses lógico e psicológico abordados. Viu-se que, apesar da divergência, a processualística converge para a necessidade de valoração do testemunho dos agentes policiais. Assim, a Súmula 70 não é um cheque em

branco ao julgador, seja porque não é esse o entendimento doutrinário e

jurisprudencial, seja porque não é o que se extrai da própria redação do verbete.

24 Idem. pp. 25 e 26

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A Súmula 70, portanto, não sufraga a tese de presunção de veracidade dos depoimentos prestados pela autoridade policial ou seus agentes. FERNANDO CAPEZ, por exemplo, opera um evidente e incorreto

deslizamento do sentido ao buscar no direito administrativo a justificativa para tomar

como presumidamente legitimo o depoimento de policiais no processo penal25. A

interpretação segundo qual isso seria possível deve ser rechaçada, porque se vale de

categorias mecanicamente extraídas de um ramo do direito a outro sem cuidar das

peculiaridades regentes que regem a jurisdição criminal. Sobreleva-se o sistema acusatório, onde o onus probandi é inafastavelmente de quem engendra a acusação e jamais pode ser remanejado (por via oblíqua) para que passe a ficar à cargo da defesa. Neste sentido, a lição de RUBENS CASARA:

“...presumir a veracidade do depoimento de policiais é uma idealização incompatível com as opções constitucionais para o processo penal brasileiro.

Em primeiro lugar, porque gera um desequilíbrio na relação processual (o Estado-

Administração, titular do poder de punir, passa contar com elementos probatórios

‘confiáveis’ construídos por seus agentes). Segundo: por inverter o ônus probatório em oposição à normatividade constitucional; por contrariar o princípio da presunção de inocência.”26 grifamos

Em verdade, as determinações concretas e práticas do

processo penal brasileiro não respeitam eficazmente o sistema acusatório27, na

medida em que a fase pré-processual é inquisitória e dos depoimentos colhidos no

inquérito é que se extrai a hipótese acusatória. Se o processo reveste-se de ulterior acusatoriedade, não se pode dizer que seja plena. Menos ainda quando a prova

25 “...os policiais, por serem agentes públicos, também gozam da presunção de legitimidade, atributo dos atos praticados pela Administração Pública" (Curso de Processo Penal, Editora Saraiva, 2ª edição, 1998, p. 271)

26 CASARA, Rubens R. R. Presunção de Veracidade dos Depoimentos dos Agentes Públicos: Testemunhas “Acreditadas”, da Tradição Islâmica ao Autoritarismo Brasileiro, in Processo Penal do Espetáculo: Ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira, Florianópolis: Empório do Direito Editora, 2015, p. 151.

27 Neste sentido, COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda: “...é, no fundo, o anseio punitivo que pauta e motiva as reformas parciais, em que pese o espírito democrático sincero de muitos dos autores das idéias reformistas; e é por isso que o país continua assim: porque se reforma e se reforma para não mudar nada, seguindo na crença que se melhora com mais pena, mais prisão, mais punição. Faz-se reformas pelas mudanças que, de fato, só se darão quando mudar a base epistemológica. Cointudo, quantos sabem, de fato, os juristas, de epistemologia? Se é preciso, efetivamente, mudar o sistema, nota-se que não é algo simples nem fácil: é inquisitório, e se tudo reduzir à aprovação destas reformas parciais, continuará inquisitório.” (As reformas parciais do CPP e a gestão da prova: segue o princípio inquisitivo. Boletim IBCCRIM, nº 188, julho, 2008, p. 13)

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a ser valorada é aquele que se produz sob o crivo de um contraditório que se aperfeiçoa e perfaz tendo como insumo os depoimentos das mesmíssimas pessoas (policiais) que permitiram a confecção da denúncia.

Neste contexto, ao julgador se impõe o dever de cuidar para que o processo não se converta numa repetição (quase teatral) do que se operou na primeira fase (inquérito); em outras palavras, é preciso que a produção

probatória não se resuma à mera reprodução dos elementos indiciários colhidos em

sede policial. Para isso, em nada ajuda a Sumula 70 e sua desvirtuada compreensão

e aplicação. Forte nas palavras de AURY LOPES JR.:

“...a fraude reside no fato de que a prova colhida na inquisição do inquérito, sendo trazida integralmente para dentro do processo e, ao final, basta o belo

discurso do julgador para imunizar a decisão. Esse discurso vem mascarado com as

mais variadas fórmulas, do estilo: a prova do inquérito é corroborada pela prova

judicializada; e assim todo um exercício imunizatório (ou melhor, uma fraude de

etiquetas) para justificar uma condenação, que na verdade está calcada nos elementos colhidos no segredo da inquisição. O processo acaba por converter-se em uma mera repetição ou encenação da primera fase.”28

Inúmeros acórdãos perscrutados no sítio do Tribunal de

Justiça revelam o usual recurso à Súmula 70 (não raro acompanhado de precedente

do STF29) e seguido da constatação de que o depoimento dos policiais merece a

mesma credibilidade dada aos testemunhos em geral, só podendo ser afastada a sua

credibilidade (CPP, art. 203, caput, in fine) quando houver razão concreta para tanto.

Ora, é exatamente esta interpretação do entendimento sumulado que estabelece, na prática, a inversão do ônus probatório no processo

penal, o que pode ser sintetizado em dois motivos: primeiro, porque o depoimento

28 LOPES JR. Aury. Introdução Crítica a o Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Gsarantista). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 165.29

STF representado pelo seguinte aresto: “A prova testemunhal obtida por depoimento de agente policial não se desclassifica tão-só pela sua condição profissional, na suposição de que tende a demonstrar a validade do trabalho realizado; é preciso evidenciar que ele tenha interesse particular na investigação ou, tal como ocorre com as demais testemunhas, que suas declarações não se harmonizem com outras provas idôneas. Precedente.” (HC 74522/AC - 2ª Turma, Rel. Min. Maurício Correa, DJU 13.12.96, p. 50167)

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dos policiais presta-se usualmente à prova da autoria, isto é, quanto à autoria, a prova acusatória é exclusivamente oral – e o caso destes autos é apenas mais um

– de modo que “o belo discurso do julgador” consiste em asseverar que as

declarações dos policiais encontram eco nas demais provas carreadas aos autos

(atinentes à materialidade), quando na verdade em relação à autoria não se produz quaisquer outras provas; segundo, porque eventuais motivos para questionar a credibilidade da testemunha devem ser levantados e demonstrados, pela defesa na medida em que não há qualquer desconfiança crítica a repousar sobre os agentes de segurança pública por força da interpretação que se tem dado à orientação sumulada.

Vejamos, v.g., o que se tem decidido quanto aos aspectos

aqui brandidos em confronto à Súmula 70. Dizem os Relatores:

“...não foi trazido aos autos qualquer dado que retirasse a credibilidade das

oitivas dos agentes da lei.”30

“ os depoimentos dos Policiais Militares são merecedores de

plena credibilidade, pois se apresentam coerentes e harmônicos, além do que não tinham motivos para imputar falsamente ao acusado tão graves crimes, e tal

posicionamento está sumulado neste Tribunal de Justiça pelo Verbete nº 70...”31

“...goza o testemunho policial de presunção de   credibilidade . Assim, para restar

destituído de valor probante é necessária a demonstração de motivo sério e concreto, não sendo suficiente mera alegação desacompanhada de elementos

de convicção.”32

“Não tendo sido comprovada a versão defensiva, não há porque questionar a idoneidade dos depoimentos, diante da segurança com que foram prestados,

conforme a Súmula nº 70 do TJ/RJ.”33

30 Des. Elizabete Alves de Aguiar. 8ª Câmara. Apelação. Proc.: 0001003-67.2015.8.19.0031. Grifamos.31 Des. Adriana Moutinho. 8ª Câmara. Apelação. Proc.: 0200845-21.2015.8.19.0001. Grifamos.32 Des. Cláudio Tavares de A. Junior. 8ª Câmara. Apel. Proc.: 0001110-92.2014.8.19.0081. Grifamos.33 Des. Flávio Marcelo Fernandes. 2ª Câm. Apel. Proc.: 0025658-07.2013.8.19.0021. Grifamos.

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“...só se pode negar valor à vista de algum fato concreto e objetivo, devidamente provado nos autos.”34

“...ao contrário do que alega a defesa, os depoimentos prestados pelos policiais

mostraram-se seguros e congruentes, merecendo, à míngua de prova em contrário, total prestígio, a teor da Súmula nº 70 da Corte.”35

“...não se afigura razoável admitir que o Estado permita fazer-se representar por

agentes indignos de credibilidade. Pensar de outra forma seria subverter por completo a presunção de legalidade, atributo essencial dos atos administrativos, notadamente quando ausente qualquer fato indicativo de que as

declarações dos policiais não possam merecer crédito e aptidão para embasar a

convicção judicial.”36

“A simples alegação de falta de isenção e confiabilidade, desacompanhada de

qualquer elemento objetivo e concreto capaz de abalar a credibilidade da

palavra dos policiais, não basta para afastar o seu valor probatório.”37

“Os depoimentos dos policiais militares possuem inteira credibilidade, porquanto

são harmônicos e firmes quanto à dinâmica dos fatos, divergindo apenas em detalhes que, por si só, não têm o condão de desmerecê-los, especialmente, à

consideração das inúmeras diligências que os policiais realizam diariamente, impedindo recordarem-se de várias minúcias, não havendo como discutir, por

isso, sua validade, incidindo na hipótese o entendimento consolidado nos Tribunais,

inclusive nesse, por meio da Súmula 70.”38

A amostragem colacionada consigna elementos

representativos da inversão do ônus da prova, da credibilidade apriorística e até

mesmo da presunção de legitimidade dos depoimentos, extraída do direito

administrativo. As divergências são minimizadas e, quanto a estas (que aproveitariam

ao acusado), já não se exige a demonstração de elementos objetivos e concretos

devidamente provados, bastando as regras de experiência comum como as que

34 Des. Antônio Carlos Amado. 3ª Câmara. Apelação. Proc.: 0009286-44.2014.8.19.0001. Grifamos.35 Des. Suimei Meira Cavalieri. 3ª Câmara. Apel. Processo: 0295608-48.2014.8.19.0001. Grifamos.36 Des.Jose Muiños Piñeiro Filho. 2ª Câmara. Apel. Processo: 0002156-04.2013.8.19.0065. Grifamos.37 Des.Gizelda Leitão Teixeira. 4ª Câmara. Apelação. Processo: 0045273-12.2015.8.19.0021. Grifamos.38 Des.Katia Jangutta. 2ª Câmara. Apelação. Processo: 0024960-27.2014.8.19.0001. Grifamos.

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atribuem as dissonâncias às inúmeras diligências realizadas diariamente (nenhuma

delas provada nos autos, naturalmente).

Há, no entanto, outros julgados que enfrentam a espinhosa questão da valoração da prova de modo mais acurado e cauteloso para, reconhecendo a aplicabilidade da Súmula 70, afastar sua incidência diante do caso concreto. Merecem menção, neste sentido, os excertos a seguir, nos quais não se exige da defesa que produza qualquer prova, sendo certo – e

acertado – que a própria análise judiciosa e crítica na valoração da prova recomenda que não se empreste credibilidade aos policiais ouvidos:

“...o ônus da prova, no processo penal brasileiro, é unicamente do Ministério Público, isso na hipótese de ação penal pública e em decorrência da presunção de

inocência prevista no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. Descabe ao réu fazer prova de que não praticou o crime que lhe foi cominado pelo órgão

acusador, pois milita em seu favor a presunção de que não o praticou. Compete

àquele que acusa provar, de forma concludente, a existência do fato ensejador da

aplicação da pena bem como sua autoria, porque é precisamente a certeza

evidenciada que legitima a procedência da denúncia, o que não ocorreu in casu.

Assim, descabe invocar proteção da Sumula n° 70 do TJRJ, já que a contradição está nos próprios relatos policiais. Por tais razões, deve ser aplicada a hipótese o princípio in dubio pro reo, que fundamenta a absolvição do

acusado da imputação da exordial.”39

“...devemos afastar a credibilidade dos depoimentos dos policiais responsáveis pela prisão e investigação dos delitos narrados na exordial, pois,

muito embora a súmula 70 deste E. Tribunal disponha sobre a plena credibilidade

dos depoimentos de agentes da polícia, entendo que diante das peculiaridades do caso concreto e de evidências concretas acerca da ilegalidade na atuação policial, não é possível a condenação quando esta possui como sustento basilar os referidos depoimentos dos agentes de polícia.”40

“Importante destacar que, em regra, os depoimentos dos Policiais Militares, são merecedores de plena credibilidade, consoante os termos do enunciado da

Súmula nº 70, editada por este Egrégio Tribunal de Justiça Estadual, porém, in

39 Des. Joaquim D. de Almeida. Neto. 7ª Câm. Apel. Processo: 0045273-12.2015.8.19.0021. Grifamos.40 Des. Cairo Ítalo França David. 5ª Câm. Apel. Processo: 0068058-96.2013.8.19.0001. Grifamos.

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casu , a versão apresentada por eles no que toca a finalidade da droga, não é capaz de manter o decreto condenatório.”41

“Inobstante o verbete nº 70 da súmula deste Egrégio Tribunal de Justiça já ter

firmado o entendimento quanto à possibilidade do juízo de reprovação ser calcado

nos depoimentos de autoridades públicas, desde que firmes e harmônicos com os

demais elementos do processo, constata-se, pelas provas produzidas durante a instrução criminal que este não é o caso trazido aos autos.”42

“Pois bem, não de desconhece a credibilidade que deve merecer os depoimentos

dos agentes policiais na condição de testemunhas, tanto que a matéria está

consolidada no verbete nº 70 da Súmula de Jurisprudência deste Tribunal, todavia,

na situação dos autos, há evidente contradição entre as declarações.”43

O que se verifica nos exemplos destacados é, como pano de fundo das decisões adotadas, a manutenção do ideário segundo o qual, a Súmula 70 dispõe sobre “a plena credibilidade dos depoimentos de agentes de polícia”, mas, apesar disso, diante das evidências apuradas no caso concreto,

afasta-se a sua aplicabilidade. Isso demonstra o desvirtuamento da aplicabilidade prática da Súmula na medida em que a mesma se apresenta como óbice à isenta valoração da prova. Em outras palavras, o intérprete tem que vencer a resistência exsurgida com a jurisprudência que se cristalizou no entendimento sumulado. Sem dúvida, isto desequilibra a paridade de armas no processo. A

maior demonstração disso são os arestos adredemente mencionados nos quais se

faz alusão à carência de provas produzidas pela defesa.

Pretende-se, em sentido já ventilado na presente, que o ponto de partida do intérprete seja o de questionar a credibilidade dos agentes de segurança pública, pena de solapar-se a presunção de inocência. Não porque de

tais agentes se deva desconfiar em razão de seu eventual interesse em ver legitimada

a diligência da qual participara, mas precisamente porque o ônus da prova não é do acusado – e nenhuma operacionalidade prática pode subverter esse cânon –

constituindo dever e vocação ancestral da jurisdição criminal postar-se e

41 Des. Sidney Rosa. 7ª Câm. Apel. Processo: 0034612-81.2013.8.19.0202. Grifamos.42 Des. Elizabete Alves de Aguiar. 8ª Câmara. Apelação. Proc.: 0002751-92.2015.8.19.0045. Grifamos.43 Des. Elizabete Alves de Aguiar. 8ª Câmara. Apelação. Proc.: 0192467-13.2014.2014.8.19.0001. Grifamos.

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comportar-se no feito tendo em mente que o acusado é inocente; jamais o contrário. Neste diapasão, GUILHERME NUCCI:

“Preceitua o art. 202 do CPP que “toda pessoa poderá ser testemunha”, logo, é

indiscutível que os policiais, sejam eles os autores da prisão do réu ou não, podem

testemunhar, sob o compromisso de dizer a verdade e sujeitos às penas do crime

de falso testemunho. Ressaltamos, entretanto, que é preciso cautela, em determinadas peculiares situações, para a aceitação incondicional desses depoimentos. Parece-nos cauteloso que o magistrado, visualizando, em processos de apuração de crime de tráfico ilícito de entorpecentes, um rol de testemunhas de acusação formado somente por policiais, indague dos mesmos a razão pela qual não se obteve nenhuma outra pessoa, como testemunha, estranha aos quadros da polícia. Essa verificação é essencial, pois

uma apreensão de drogas feita à vista de inúmeras pessoas, em local público, por

exemplo, pode perfeitamente contar com o testemunho de pessoas que não sejam

policiais. Por outro lado, uma apreensão ocorrida em lugar ermo, durante a

madrugada, realmente, pode apresentar apenas o depoimento de agentes policiais.

Tudo depende, pois, do caso concreto. Porém, voltamos a insistir que qualquer

policial pode servir como testemunha. A valoração do seu depoimento, entretanto, se confiável ou não, fica, como de praxe, ao critério prudente do julgador”.44

E) CONCLUSÃO:

Procuramos demonstrar que as incongruências apontadas

nos depoimentos dos policiais são suficientes ao esvaziamento da credibilidade que

se lhes poderia emprestar a partir da inteligência usualmente extraída da Súmula 70.

Em outras palavras, em respeito ao ineditismo do caso concreto, tendo a prova da autoria esteio exclusivamente em declarações cujo conteúdo é substantivamente idêntico ao que se extrai do inquérito, o juízo não está autorizado a tomar o conjunto probatório como hígido, ex vi do que dispõe o art. 155 do Código de Processo Penal.

Neste sentido, também, não há lógica que justifique o

crédito a depoimentos conflitantes na medida em que a hipótese acusatória

44 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais comentadas - Vol. 1. 8ª. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 341.

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imprescinde de confirmação para além de qualquer dúvida razoável, exigindo-se a certeza da autoria, o que não se infere da prova oral produzida in casu.

Ao longo dos últimos trinta anos, a Psicologia do

Testemunho reuniu saberes científicos suficientes a afirmação de que o método de inquirição das testemunhas usualmente aplicado no sistema de justiça criminal – e a prova produzida nestes autos não representa exceção – não é o mais

adequado a extrair dos depoentes a mais fidedigna reconstrução histórico-processual

dos fatos. Nestes autos, não se pode afirmar, por exemplo, que “a defesa não

apresentou nenhuma tese que pudesse enfraquecer os elementos de convicção. ”45 na

medida em que as noções de falsas memórias e as técnicas de entrevista ventiladas no presente arrazoado têm lastro teórico suficientemente capaz de inquinar a credibilidade das versões policiais guerreadas.

Por fim, a inteligência da Súmula 70 não autoriza interpretação que tenda à inversão do ônus da prova, tal como procuramos

demonstrar ao elencar os excertos de julgados aqui colacionados. Pelo contrário, o ponto de partida da jurisdição criminal está incondicionalmente adstrito à presunção de inocência do acusado, exigindo do julgador que se debruce sobre o testemunho de policiais de modo crítico. Portanto, deve valorar a prova oral

como ônus exclusivo da acusação. Apenas assim estará conduzindo o processo inspirado pela única postura compatível com as exigências e garantias convencionais e constitucionais estabelecidas pelo sistema acusatório, a

despeito de todas as vicissitudes e contaminações inquisitórias que o cotidiano

forense parecer impor aos atores do sistema de justiça criminal.

45 Des. Gizelda Leitão Teixeira. 4ª Câmara. Apelação. Processo: 0219617-662014.8.19.0001.