23
,._,r I l l Percepto, Afecto e Conceito . i . j,. il' 'i ,. : r.: l · I •. 1:' 1: r: li I I ,.) !I l • ;, i ·,i', ,, ::1

DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

Embed Size (px)

DESCRIPTION

deleuze

Citation preview

Page 1: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

_r I

l l

Percepto Afecto e Conceito i

j

il i

r lmiddot I bull

11 r

li I

I )

I l bulli middoti

1

O jovem sorri na tela enquanto ela dura O sangue lashyteja sob a pele deste rosto de mulher e o vento agita um ramo um grupo de homens se apressa em partir Num roshymance ou num filme o jovem deixa de sorrir mas comeccedila~ raacute outra vez se voltarmos a tal paacutegina ou a tal momento~-

-~~~ C()IJSeEVltl~ _eeacute_ ~i~i~fl S2~~-~~--~-~lti q~e_ s_5_()ll~~ltl middot Conserva e se conserva em sijqid juris) embora de fato natildeo dure mais que s~~~upo~e-e ~-m~te~Trmiddot rquiZaatildeFn

middot iacuteJeacutectratilde~ -raatilde-zuumlr-~pr~ccedil~~A~~ccedil-i~~-rda--puuml-se~qiie- ti--_- haacute-ci~~-~J anos gesto que natildeo depende mais daquela que o fez O ar guarda a agitaccedilatildeo o sopro e a luz que tinha tal dia do ano passado e natildeo depende mais de quem o resshypirava naquela manhatilde Se a arte conserva natildeo eacute agrave maneira da induacutestria _q~-~ ordfq~sS~uiordf lim~i~bratilde~~~T~middot middotp-~-I~Zeacuter~ecircruacute rar ~-- ~~i~~- Acoisa tornou-se desd~-~Tiacuteecircio~ -i~dependeiiie d~ seu ~odeio mas ela eacute independente tambeacutem de outros

p~so~agens eventuas quesa-oecircies proacuteprios coisas-artistas personagens de pintura respirando este ar de pintura E ela natildeo eacute dependente do espectador ou do auditor atuaisLgJ~

se limitam a experimentaacute-la num segundo momento se tecircm to~ccedil~f2E_i_ep_~~- E o criador~-~-tatildeo middotpf~-eacute i~d-~p~de~te- dotilde

I r middot crialtfJLPe~~-~-tQllQ~iccedilatildeodo~criadoq~~~middot~ -~on$iiji_~~Ccedil~~C I

middot-O que se conservamiddotatilde coisa Ol ~ olgt_r ccedille__qJt~ ~_JlmbQ_ccedilq d_r se~sqccedil_otilde---eiS-to~i~middot~~opsto~d~ perceptos ealectos- --~- ss middot

Os perceptos natildeo mais satildeo percepccedilotildees satildep independenshytes do estado daqueles gue os experimentam os afectos natildeo ~atildeo mais sentimentos ou afec otildees tra sbor~am a for a d-_

i queles que satildeo atravessados_pgr eles s sensaccedilotildees percepshy

tos e afectos~ue valem por si mesmos e excedem middot li qualquer vivido Existem na ausecircncia do homem podemos

dizer porque o homem tal como ele eacute fixado na pedra soshybre a tela ou ao longo das palavras eacute ele proacuteprio um cnmshy

I I posto de perceptos_e de_afectos__ A- obra de arte eacute um ser de

I I

1 1 I -- _ ___

sensaccedilatildeo e nada mais ela existe em si

Percepto Afecto e Conceito 213

Os acordes satildeo afectos Consoantes e dissonantes os acordes de tons ou de cores satildeo os afectos de muacutesica ou de pintura Rameau sublinhava a identidade entre o acorde e o afecto O artista cria blocos de perceptos e de afectos mas a uacutenica lei da criaccedilatildeo eacute que o composto deve ficar de peacute sozishynho o mai-dlfiacute~TrrquumleOatildertista o f~ccedila manter-se de peacute

_~ho Para isso eacute preciso por vezes muita inverossimilhanccedila geomeacutetrica imperfeiccedilatildeofiacutesica anomalia orgacircnica do ponshyto de vista de um modelo suposto do ponto de vista das pershycepccedilotildees e afecccedilotildees vividas mas estes erros sublimes acedem agrave necessidade da arte se satildeo os meios interiores de manter de peacute (ou sentado ou deitado) Haacute uma possibilidade pictural que nada tem a ver com a possi_uacute_liQ_ade fiacutesi~~2 _ ~ middot gue daacute agraves posturas mais acrooaacutetiCatildes--f~ccedila da verticalidade Em conshyt~rgtarticta tatildeiifagraves oEras que aspir-amagrave arte--iiatildeotilde_s_e mantecircm de peacute um soacute instante Manter-se de peacute sozinho natildeo eacute ter um alto e um baixo natildeo eacute ser reto (pois mesmo as c asas satildeo becircshybadas e tortas) eacute somente o ato pelo qual o composto de sensaccedilotildees criado se conserva em si mesmo Um monumenshyto mas o monumento pode sustentar-se em alguns traccedilos ou ein algumas linhas como uni poema de Emily Dickinson Do croqui de um velho burro exausto que maravilha eacute feito com dois traccedilos mas postos sobre bases imutaacuteveis onde a sensaccedilatildeo melhor testemunha anos de trabalho persistente tenaz desdenhoso 1 O modo menor em muacutesica eacute uma proshy

il i va tanto mais essencial quanto lanccedila ao muacutesico o desafio Imiddot

de roubaacute-lo a suas combinaccedilotildees efecircmeras para tornaacute-lo soacutelido e duraacutevel auto-c~rtservante mesmo eUl posiccedilotildees acrobaacutetishycas O som deve tanto ser mantido em sua extinccedilatildeo quanto

1 Edith Wharton Les metteurs en sacircme Ed 10-IacuteS p 263 (Trata-se de um pintor acadecircmico e mundano que remiricia a pintar depois de ter descOberto um pequeno quadro de um contemporacircneo desconhecido EI eu eu natildeo tinha criado nenhuma de minhas obras eu as tinha simplesshyl mente adotado

214 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

r em sua produccedilatildeo e seu desenvolvimento Atraveacutes de sua adshyi miraccedilatildeo por Pissaro por Monet o que Ceacutezanne criticava f nos impressionistas era que a mistura oacuteptica das cores natildeoIi

bastava para fazer um composto suficientemente soacutelido e

I duraacutevel como a arte dos museus como a perpetuidade do sangue em Rubens2 bull Eacute uma maneira de falar porque Ceacutezanne

l-

I natildeo acrescenta algo que conservaria o impressionismo ele procura uma outra solidez outras bases e outros -blocos

l A questatildeo de saber se as drogas ajudam o artista a criar

esses seres de sensaccedilatildeo se fazem parte dos m eios interiores

l se nos conduzem realmente agraves laquoportasda percepccedilatildeo se nos entregam aos perceptos e aos afectos recebe uma resposta geshy

I ral na m edida em que o que foi composto sob efeito de dro-I ga eacute o mais das vezes extraordinariamente friaacutevel incapaz deI I se conservar por si mesmo desfazendo-se ao mesmo tempo I que se faz ou que o olhamos POQlt_I_lo~ tamQeacutelll_ordf_ltili~~--ordmmiddotL _ r

I i desenhos de crianccedilas ou antes comover~~=-E~~-~9E2 e~_i_~-- _ i r~~9_~atildentenham oepeacute e soacute pare cem com coisa de Klee

otilde~ de Miroacute--~atildeo-~-ih~otilde-~ --~itotildemiddot r~~-p-Aspim~~cismiddot--shy_____~ middot------~ - middot-shyloucos ao contraacuterio sustentam-se quase seacutempre m-~~-so2lt

~ondiccedilatildeo de~~em~~~-~d~s-~J~ -~~ordf~i~~=~~~~Ssti~-~~~i~__ Todavia os blocos precisam de bolsotildees de ar e de vaz1o po1s mesrno o vazio eacute uma sensaccedilatildeo toda sensaccedilatildeo se compotildee com o vazio compondo-se consigo tudo se manteacutem sobre a terra e no ar e conserva o vazio se conserva no vazio conservanshydo-se a si mesmo U~J2od~_secterip~iramente RE_~ench_~shy

da a ponto d~l~l~sectI]l_Q_QordfLJatilde() pa_~sect~l~UumlR2Lela_~-~~-shy~m-obra de_~~~~~J _ccedil=Qm~ltj_~2 Qi92E--lt~-~ordf~$~sectf atildea vaziosSUfiCientes__Qara permitirque neles saltem cavalos lt~1~~~ mecircsect_Qio~ja~P~1~v~I~~rad~QI~~osT3~---------middot-middot

2 Conversations avec Ceacutezanne Ed Macula (Gasquet) p 121

3 Cf Franccedilois Cheng Vide et plein Ed du Seuil p 63 (citaccedilatildeo do pintor Huang Pin-Hung)

Percepto Afecto e Conceito 215

Pintamos esculpimos compomos escrevemos com senshysaccedil~es ~intamos esculpimos compomos e~crevemos senshy

sectaccediloesect_ ~~~eacutelccedil~~-~~0 gerc~pt~~~natilde satildeo percepccedilotildees que remetenam a um objeto (referecircncia) se se assemelh~ a algo eacute uma semelhanccedila produzida por seus proacuteprios meios e_~ sorriso s~-~~~re-1~--ampE~~fecircito-ae~cotildereacuteSdeacute traccedilos e so~f)~~-=-1~JuzJe a senel~anccedila pode imp-eg~bra

e arte e porque a sensaccedilao so remete a seu material ela eacute 0 percepto ou o afecto do material mesmo o sorriso de oacuteleo0 gesto de terra cozida o eacutelan de metal o acocorado da pedra

~ J~~middot romana e o elevado da pedra goacutetica E o material eacute tatildeo dishyjtt~_gtverso em cada caso (o suporte da tela o agente do pincel ou

~~ da brocha a cor no tubo) que eacute difiacutecil dizer onde acaba e onde comeccedila a sensaccedilatildeo de fato a preparaccedilatildeo da tela 0t d ~1 d rao o pe o o pmcel fazem evidentemente parte da senshy

saccedilao e muitas outras coisas antes de tudo isso Como a

~=-~accedilatildeo pode_ia c~EY~e sem um material capaz de ~__~as_~ mais curto que seja ~-te~-p~--~~~-t~~p~ middoteacutemiddot-~~ s1derado como d -------------middot--middotmiddot---middot----middotmiddot--middot--middot middotmiddot middotmiddot middot--middot---shy- -----~middot-middot~-~----~~E~--E--~~il9j__ yeremos como o plano do ma-renal sobe irresistivelmente e invade o plano de composiccedilatildeo das sensaccedilotildees mesmas ateacute fazer parte dele ou ser dele indisshyceniacutevel Diz-se neste sentido que o pintor eacute pintor e nada alem de u middot m pmtor com a cor captada -como sai fora do tu~~ com a marca um depois do outro dos pecirclos do pinshy

Imiddot cel com este azul que natildeo eacute um azul de aacutegua mas um azul I middot

de pmtura liacutequida E todavia a sensaccedilatildeo natildeo eacute idecircntica ao material ao menos de direito O que se conserva de direishyto natildeo eacute o material~ que constitui somente a condiccedil~o de fatomiddot mas enquanto eacutepreenchida esta condiccedilatildeo (enquanto a tela a cor ou d - middot - middot a pe ra nao VIrem po) o que se ccedilQnserva em si eacute o percepto ou o afecto ~esmo se o middotmaterial seacute)dura~se alguns

I

sgundos d~ria2~ccedilatildeo o poder de middotexistir e d~-~-~shy_er~__~rn=~i na eternidade que coexiste com estaCu~ta-dushy

_r_atildeo_~~~~~I~~~lltE~I-ordfBillsL~t~m~qi_d~~~

li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

a sensaccedilatildeo desfruta ~~s~~Lesrr2~fl~EtordmEA sensaccedil~ natildeo s~ realiz~ _ -~--~~~~~~~~--~__rl22ll~~ri~J ss~u~m-~~sect$~~__ccedil_agravep no Plt~~pto ()~ n~=~~~Ofldl a ~at~shyriatilde se torna expressiva E o afecto que e metahco cnstahshyno peacutetiacuteeo etc e a sensaccedilatildeo natildeo eacute colorida ela eacute colorante como diz Ceacutezanne Eacute por isso que quem soacute eacute pintor eacute tamshy

beacutem mais que pintor porque ele faz vir diante de noacutes na frente da tela fixa natildeo a semelhanccedila mas a puq sensaccedilatildeo da flor torturada da paisagemcortada sulcada e comprishyda devolvendo a aacutegua da pintura agrave natureza4 Soacute passhysamos de um material a outro como do violatildeo ao piano do pincel agrave brocha do oacuteleo ao pastel se o composto de sensashyccedilotildees o exigir E por mais fortemente que um artis___ se ir_g~_shy

resse pela ciecircnc~j_arpJtis_umcompQSto-deuro-se-FlSaltiOtildees--se -conshy

fundiraacute com as misturas do material que a ciecircncia deter-

rPfi~_ltE~~a~middota~ccedilQiSordf_$ ccedilordmmordmmo~ti~middot~Pi[ordm~D~ill~~i~ -~ d shyo~~r~_QQj~S$=-~- J1SJfiPLeSSJOUlStas

O objetivo da arte om os meios do material eacute arrancar o percep pccedilotildees do objeto e dos estados de um sushyjeito percipiente arr~ri~-~~fecto ~~~~ilt~ssect_ltsectJ como passashygem de um estado a um outro Extrair um bloco de sensaccedilotildees um puro ser de sensaccedilotildees Para isso eacute preciso um meacutetodo que varie com cada aacuteutor e que faccedila parte da obramiddot basta comshyparar Proust e Pessoa nos quais a pesquisa da sensaccedilatildeo como ser inventa procedimentos diferentes5 Os escritores

4 Artaud Van Gogh le suicideacute de la socieacuteteacute Gallimard Ed Paule Thevenin p 74 82 Pintor nada senatildeo pintor Van Gogh dominou os meios d a pura pintura e natildeo os ultrapassou mas o maravilhoso eacute que este pintor que soacute eacute pintor eacute tambeacutem de todos os pintores natos o que mais faz esquecer que temos a ver com a pintura

5 Joseacute Gil consagra um capiacutetulo aos p r ocedimentos pelos quais Pesshysoa extrai o percepto a partir de percepccedilotildees vividas notadamente emmiddotOde mariacutetima (Fernando Pessoa ou la rneacutetaphysique des sensations Ed de la Diffeacuterence cap II)~

I

Percepto Mecto e Conceito 217 216

quanto a isto natildeo estatildeo numa situaccedilatildeo diferente da dos pinshytores dos muacutesicos dos arquitetos O materiaJ~~E~icular dos escritores satildeo as palavras e a sint~xe sintaxe criada que __~~~middot--~gt-~c---bull~middotmiddot bullmiddot~ middot middotmiddot middot- middot~middotobullmiddotmiddot~middot~middot~bullbull~~-~ ~ ~_-=--~~--_~ bull--middot-middotbullbullgtgtgt_ ~ __bull _ ~lt~middot-~bull --~-bullk----bullbull bull-middot_

se ergue irresistivelmente em sua obra e--~~r~~ltl ~~-~~-~-~-a2middot Pacircrltl sai-dacircs perecircepCcediloes-viViecircfatildeS-nmiddota~Otilde--basta __ evidentemente memoacuteria que convoque somente antigas percepccedilotildees nem uma memoacuteria involuntaacuteria que acrescente a reminiscecircncia como fator conservante do presente A memoacuteria interveacutem

J2QIJkO na arte (mesmo e sobretudo em Proust) Eacute verdade que toda a obra de arte eacute um monumento Inas o monumento natildeo eacute aqui o que comemora um passado eacute um bloco de senshy

Salti_lt_esectPJ~_sect_t_QtS~~q_ue_sQ Qlt_Y~ordfsectL9Ssect~UumlYi irsectQFia_conshy I l1iI I servaccedilatildeo e datildeo ao acontecimento o composto que o celebra

I

~gtmiddot (5-tc-d~- --~onumento natildeo eacute a memoacuteria mas a fabulaccedilatildeoI ~ rJ

_eacute N~ s es~reve cot_I lem~ranccedila~-~~_~~~5~~2~3s por bl~os ~~ )ji $ de ~nfa~c1a_ ~~~_lti_evires~cp~~ccedil__~2_g_J2res~E~ A musica

l middot middotl middot esta cheia disso Para tanto e preciso nao memona mas um rS-fC- material complexo que natildeo se encontrana memoacuteria mas nas palavras nos sons Memoacuteria eu te odeio Soacute seatinge o

percepto ou o afecto como seres autocircnomos e suficientes que natildeo devem mais nada agravequeles que os experimentam_ou os exshyperimentaram Combray como jamais foi vivido como natildeo eacute nem seraacute vivido Combray como catedral ou monumento

E se os meacutetodos satildeo muito diferentes natildeo somente seshygundo as artes mas segundo cada autor pode-se no entanshyto caracterizar grandes tipos_El~l1mentais ou variedades de _omostos de s~nsa~~~~ que caracteriza a senshy ~accedilao simE_le~ (mas ela Ja e dtuave~ composta porque ela sobe ou desccedile implica uma diferenccedila de niacutevel constitutiva segue uma corda invisiacutevel mais nervosa que cerebral)~ lace ou o corpo-a-corpo (quando~amps ressoam uma na outra esposando-se tatildeo estreitamente num corposhya-corpo que eacute puramente energeacutetico)() recuo a divisatildeo

distensiiQ uando duacuteatildesse~s~~Otilde~~~~~ ao contraacuteshy

rio se distanciam mas para soacute serem reunidas pela luz o ar oUacuteOtilde~aziOtilde q~ inscrevem entre elas ou nelas como uma cunha ao mesmo tempo tatildeo densa e tatildeo leve que se estenshyde em todos os sentidos agrave medida que a distacircncia cresce e forma um bloco que natildeo tem mais necessidade de qualquer

Imiddot base) Vibrar a sensaccedilatildeo - acoplar a sensaccedilatildeo - abrir ou ff_vder ~-~ecircsViZlatildeii~eii~ordfccedilordfccedil~middot-~scugif~3~E-emiddots-~iiesectsect_es_tL pccedilgts quase em estado puro com suas sensaccedilotildees de pedra de m~rrriC~d_~middot~tCcedilq~~~~ibram segundo a ordem dos temshypos fortes e dos tempos fracos das saliecircncias o~ das reenshytracircnCias seus poderosos corpo-a-corpo que os entrelaccedilam seu arranjo de grandes vazios entre um grupo e outro e no interior de um mesmo grupo onde natildeo mais se sabe se eacute a luz se eacute o ar que esculpe ou eacute esculpido

O romance se elevou frequumlentemente ao percepto natildeo a percepccedilatildeo da charneca mas a charneca como percepto etn

Hardy os perceptos oceacircnicos de Melville os perceptos ur~ banas ou especulares em Virginia Woolf A paisagem vecirc Em geral qual o grande escritor que natildeo soube criar esses seres de sensaccedilatildeo que conservam em si a hora de um dia o grau do calor de um momento (as colinas de Faulkner a estepe

r de Tolstoi ou a de T~hekov) 9 EerceE_~~~r_~~~~~~-~1_1-~--~~ terior ao homem na ausecircncia do homem Mas em todos estesI -

d~~~l~~~~~1~il~~t~~~Ii~~~~~~ I i~E~~J~~J~Jgt~~_ps~~~Jsmamp~lsa~ d-2~tqE ~-- c2~o

a cidadepoderia sermiddotsem h9~nQ~LiDl~lgt JLccedil_J~_Q~sectJ2Cl19_ sentz~Ih~q~~-middot~r~~~~fiacute~t~~esmCcedil=~~~Jecircn~2$~~IB-~rapeje I

middotEcirca-middote-iliacutegffia(f-~qii~nt~~-ie~~~~~~do) deCeacutezanne o ho-~ mem ausente mas inteiro na paisagem Os personagens natildeo podem existir e o autor soacute pode criaacute-los porque eles natildeo percebem mas entraram na paisagem e fazem eles mesmosI parte do composto de sensaccedilotildees Eacute Ahab que tem as percepshyccedilotildees do mar mas soacute as tem porque entrou numa relaccedilatildeo com

218 11 Filosofia Ciecircnci~ Loacutegica e Arte Percepto Afecto eConceito 219

-----

11~11 l i middot11

ili j f li

IJiiJ Moby Dick que o faz tornar-se-baleia e forma um composshy11jli to de sensaccedilotildees que natildeo precisa de ningueacutem mais Oceano jl

1j[i Eacute Mrs Dalloway que percebe a cidade mas porque entrou

lmiddotl middot na cidade como uma lacircmina atraveacutes de tudo e se tornou I i ela mesma imperceptiacutevel Os afectos satildeo precisamente esshy

1 ilJ tf~lfre~Eo httE2L~Z~S2fl-O ~~ifiPi9il middotI 1 tre eles a cidade) satildeoas paisagens 1Ct-EtCcedilJJEfftUreshy

i~ -H- 4a~fe~~~~~~~1~~~ZE~~~e~1i 1i1

1 -lfffr 1

~resta~~=~middotmiddot_~d--~middot~middot~-~~-~sg~~middotmiddot~~Qdo ~noacutes nos

Jiijl 1 tornamos contempla~d~=middot~~~T~dcecircisatildeo devi Tornamoshy- nos universo Devires animal~o ecular devir zero

1 i Kleist eacute sem duacutevida quem mais escreveu por afectos serviushy

11 do-se deles como pedras ou armas apreendendo-os em deshy1 vires de petrificaccedilatildeo brusca ou de aceleraccedilatildeo infinita no 1 1

~ ~ ~~ 1 devir-cadela de Pentesileacuteia e seus perceptos alucinados Isto 1~ I eacute verdadeiro para todas as artes que estranhos devires deshy

) I senca~~iam a muacutesica tr~veacutes de suas aisage~s meloacutedicas 11middot1 e seus personagens ntmtcos como dtz Messtaen componshy

111 do num mesmo ser de sensaccedilatildeo o molecular e o coacutesmiCo

IIJ as estrelas os aacutetomos e os paacutessaros Que terror invade a ~middotJ~ cabeccedila de Van Gogh tomada num devir girassol Sempre eacute

1 middotlj preciso o estilo-- a sintaxe de um escritor os modos e ritshy1~ 1 ~~~ mos de um m~co os traccedilos e as cores de um pintor- para

i1

i~ l fi ~~

1 6 Ceacutezanne op cit p 113 Cf Erwin Straus Du sens des sensEd ji Millon p 519 as grilndes paisagens tecircm todas elas um caraacuteter visioshy

j 111 naacuterio A visatildeo eacute o que d~ invisiacutevel se torna visiacutevel a paisagem eacute invisiacutevel1

I imiddot middot I nos perdemos Para cheshy~ porque quanto mais a conquistamos mais nelamiddotmiddot11middot d

I gar agrave paisagem devemos sacrificar tanto quanto middotpossiacutevel toda etermishy

i i naccedilatildeo temporal espacial objetiva mas este abandoacuteno natildeo~tinge somentei I J o objetivo ele afeta a noacutes mesmos na mesma medida Na paisagem deishy

~ middot xamos de ser seres histoacutericos isto eacute seres eles mesmos objetivaacuteveis Natildeo ~ middot~~ temos memoacuteria para a pai~agem natildeo temos memoacuteria nen1 mesmo para

~ noacutes na paisagem Sonhamos em pleno dia e com os olhos abertos SomomiddotsI 1 furtados ao mundo objetivo mas tambeacutem a noacutes mesmos Eacute o sentir

li 220 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

se elevar das percepccedilotildees vividas ao percepto de afecccedilotildees vividas ao afecto

Insistimos sobre a arte do romance porque eacute a fonte de um malentendido muitas pessoas pensam que se pode fazer um romance com suas percepccedilotildees e suas afecccedilotildees suas lemshybranccedilas ou seus arquivos suas viagens e seus fantasmas seus fiacutelhos e seus pais os personagens interessantes que pocircde enshycontrar e sobretudo o personagem interessante que eacute forccediloshysamente ele mesmo (quem natildeo o eacute) enfim suas opiniotildees para soldar o todo Invocam-se para tagravento grandes autores que soacute teriam contado sua vida Thomas Wolfe ou Miller Obteacutemshyse geralmente obras compostas em que algueacutem se agita muishyto mas na Jf_QCcedil-J~-deum-Paiq_~ soacute poderia encontrar em si mesmo 6-f~()mance do jornalista) Nada nos poupam na aushy

---middot--~ secircncia de qualquerTiatildeotildeatildelnotilderealmente artiacutestico Natildeo precisashy

mos alterar m~ito a cr~ordfdag~~Q_91~~~-P-~9_lt_y~_ nem o d-ecircmiddotshysesperoacute pelo qual se passou para produzir mais-~~---~ez

oacuteptmao que~-_ferjJp~nte~ordfi~-ordfR~fSfj_qsiil~S2ii~ii~i~ --ccedilatildeotildelossellini viu nisso uma razatildeo para renunciar agrave arte a arte atildeelXou-se invadir demais pelo infantilismo e pela crueldade toi nando-se simultaneamente cruel e chorosa gemebunda e satisshyfeita de modo que era_melhor renunciar7 O mais interessante eacute que Rossellini via a mesma invasatildeo na pmtura Mas eacute antes deI

I mais nada a literat~a que natildeo parou de manter este equiacutevoco com o vivido Pode acontecer mesmo que se tenha um grande senso de observaccedilatildeo e muita irrlagill_accediliiotilde~eacutepltSsiacutevel escre~~~n

P~ES~~-afecccedilotildees op~iotildeesMe~Otilde nosmiddotmiddot~an~~~~e~~-middotshyl autobiograacuteficOtildesvemos cOtildentrOtildentarem-se cruzarem-se opiniotildees de uma multidatildeo de personagens cada opiniatildeo sendo funccedilatildeo das percepccedilotildees e afecccedilotildees de cada um segundo sua situaccedilatildeo social e suas aventuras individuais sendo o conjunto tomado numa -8 vasta corrente que seria a opiniatildeo do autor que se divid~ par~ t-)l1--middot~~~ -- --middot-~=~~_~ --~-- shy

I bullmiddotmiddot ~middot ~_7 Rosselini Le cineacutema reacuteveacuteleacute Ed de lEtoile p 80-82

Percepto Afecto e Conceito 221

~ecai~~s-~QfCcedil_Qsect__]2etSQILltl~-UsectQg___~-S~Ccedil9~ls~gtJ~r~~q~~ -~-1~ -~~2~lt22-~ltJ~llli-LiisectEa~eacute e_~~JLW~sectIDamptCcedilJYsccedilPJXeCcedila~agraude JsguacuteadoampQmans~d~JiordfkhtilL(felizmente ele natildeo fica aiacute jusshytamente na base paroacutedica do romance )

AJ~ordf-Igtl1laccedilatildeo criadora nada tem a ver com uma lembranshyo-11 _ middotmiddotmiddot middotmiddotmiddotmiddotmiddot -~ -- middotmiddot ofPmiddotmiddot ccedila mesmo amplificada nem _ccedilgrn_UJll fantasma Com efeito l _ bull bullmiddotmiddot--middotbullmiddotbull middotmiddot middot---middotmiddotmiddotmiddotmiddot-bull middot -_ _ _ _

cJ middot middot ~ artista entre eles QJQII_~2Ccediltsect-ordf+-~~ccedil_ed5_2~~tad_1Eerc~p_shymiddot- ~ t1yo~ C ~~ J~~sagens afetivas do vividQ Eacute um vidente algueacutem

-~~_~ middot bull middotltmiddot~- middotmiddot middot middot bull bull middot middot middot middot - middot~ bull middot middot~-middot bullbull _ ___~ middot bullmiddot -ltuJo-~ middot)o - --middot - -- d gt middotmiddot~middotmiddot - middotbull-middot- middot-~middot~bull-bullgtbullbullbullbullOh __~~~T - -_ bullbull-middotmiddot middotmiddot

_-~g~~~--~~-S-9XA~middot Como contaria ele o que lhe aconteceu ou o que imagina jaacute que eacute uma sombra Ele viu na vida algo muito grande demasiado intoleraacutevel tambeacutem e a luta da vida com o que a ameaccedila de modo que o pedaccedilo de natureza que ele percebe ou os bairros da cidade e seus personagens aceshydem a uma visatildeo que compotildee atraveacutes deles perceptos desshyta vida deste momento fazendo estourar as percepccedilotildees vishyvidas numa espeacutecie de cubismo de simultanismo de luzcrua ou de crepuacutesculo de puacuterpura ou de azul que natildeo tecircm mais outro objeto nem sujeito senatildeo eles mesmos Chama-se de

-~~g2h12~~-~--g_ia~ltm~i ~~~-~-~~~-~~~~pa~~-d~-~2i~~ii9i~otilde ~~~~ Trata-se sempre de hberar a vida laacute onde ela eacute piishysiacuteoneira ou de tentar fazecirc-lo num combate incerto A morshyte do porco-espinho em Lawrence a morte da toupeira em Kafka satildeo atos de romancista quase insuportaacuteveis ~Qr___ vezes eacute preciso deitar na terra como faz o pintor Qara lo-

1~-middotbull--middot bull~~-~-middot-~middot-gt ~bull _ ~ middotmiddot - ~ - middot-~- _ _middotmiddot -middotmiddot~ -- bullbullmiddotmiddot ) middotbullmiddot middot --middot - middotbull - _)~ c _bull __~-----~middot middot ~

~-~~-1~~~a~~lt~--l2~Y2~middot~~~2=~=~J~-~fSltP~ Os perceptos podem ser telescoacutepicos ou microscoacutepicos datildeo aos personagens e agraves paisagens dimensotildees de gigantes como se estivessem repleshytos de uma vida agrave qual nenhuma percepccedilatildeo vivida pode atinshygir Grandeza de Balzac Pouco importa que esses personashygens sejam mediacuteocres ou natildeo eles se tornam giga~tes como Bouvard e Peacutecuchet Bloom e Molly Mercier e Camier sem deixar de ser o que satildeo Eacute por forccedila da mediocridade mes mQde_besteira oU-deinfacircmia_quepndemtrunar~se-natildeo-Sim- ple_tii~JordfisectJgt~~imples) mas gigantesco~Mesmo os anotildees

1

ou os invaacutelidos podem fazecirc-lo toda fabulaccedilatildeo eacute f~~~ ~e gigantesect~ Mediacuteocres ou grandiosos satildeo cellla~iadaflenshy~~_ylyos J2_ar_~-~E~I viviacuteveis ou vividos Thomas W olfe exshytrai de seu pai um gigante e Miller da cidade um planeta negro Wolfe pode descrever os homens do velho Catawha atraveacutes de suas opiniotildees imbecis e sua mania de discussatildeo o que faz eacute erigir o monumento secreto de sua solidatildeo de seu deserto de sua terra eterna e de suas vidas esquecidas despercebidas Faulkner pode criartambeacutem oh homens de Yoknapatawpha Diz-se que o romancista monumental se inspira ele mesmo no vivido e eacute verdade M de Charlus parece muito com Montesquiou mas entre Montesquiou e M de Charlus no final das contas haacute aproximadamente a mesma relaccedilatildeo que entre o catildeo-animal que late e o Catildeo consshytelaccedilatildeo celeste

Como tornar um momento do mundo duraacutevel ou fazecircshylo exititp~r--s-11Virginiwacircotildelfecirclaacute ~~--~~p-~t~q-~~-~i~ patilderacircmiddot a-pIacutenturamiddotOtilde~---ffiliacutesiacutecaiatildeiacuteito quanto para a escrita Sashy

turar cada aacutetomo Eliminar tudlt_lt_9~t eacute rt_~_QE_Qft~ ~middot- -middot

superfluidade~ tudo o que gruda em nossas percep__sotilde~-~-Elt___q

refffes-e-vivecirclas tuClOtilde_Otilde_q_~middot~middot --li~~~t~- otilde~9iii~itordf-P~fliacuteQ_

~~~~_ltfi~~t~~~Eacute~~~E~~sJotilde~i~~~~~~-ordf~-~~~p~r~~P-~ J~s~L ILQ~2IerlQ_Q~ b~iii9Jos_iatos_osoacuterdida~ma~-~I~~ em transparecircncia Colocar aiacute tudo e contudo saturar9

POtilde~t~tiacutengidoo-percepto como a fonte sagrada por ter visto a Vida no vivente ou o Vivente no vivido o romancisshyta ou o pintor voltam com olhos vermelhos e o focirclego curshy

8 No capiacutetulo II das Deux Sources Bergson analisa a fabulaccedilatildeo coshymo uma faculdade visionaacuteria muito diferente da imaginaccedilatildeo que consisshyte em criar deuses e gigantes potecircncias semi-pessoais ou presenccedilas efishycazes Ela se exerce inicialmente nas religiotildees mas desenvolve-se livreshymente na arte e na literatura

9 Virgiacutenia Woolf Journal dun eacutecrivain Ed 10-18 I p 230

222 11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 223

-~

to Satilde~ atletas natildeo atletas que teriam formado bem seus corpos e cultivado o vivido embora muitos escritores natildeo tenham resistido a ver nos _esportes urn meio de aumentar a arte e a vida mas antes atletas bizarros do tipo campeatildeo de jejum ou grande Nadador que natildeo sabia nadar Um Atletismo que natildeo eacute orgacircnico ou muscular mas um atleshy

-tismo afetivo que seria o duplo inorgacircnico do outro um atletismo do devir que revela somente forccedilas que natildeo satildeo as suas espectro plaacutestico 10 Desse ponto de vista os artisshytas satildeo como os filoacutesofos tecircm fregueJ-temente uma saudeshyziacutenha fraacutegil mas natildeo por causa de suas doenccedilas nem de suas neuroses eacute porque eleSViraacutem na_ida atildefgQCfe grande ccedill_ccedil_mais paratildeqliatildefquer um de grande demais para eles e gue QOcircs ndes ~atildedlscreta datildelliuumlrttamp1atildes-~~Jilt2ecirc~mbeacutem a fonte ~o fOcirclego q~llL~YiYJr_atraYi~~49s~clQ~l~ do_civishyflo (o 9~~~~E-~~P--ordf~~Q~-sauacutede) U~ dia saberemos talvez que natildeo havia art~ m~soacuteru~nte_~duumlina 1I

-------c5-[~ct-~iacutetapaa menos ~s afecccedilotildees que o pershycepto as percepccedilotildees Q afecto natildeo eacute a gassagltle um esshytado vivido a um outro mas o deviccedilnatildeqJ~_lJID-ordf9~QO homem __~~~--amp-- -middot---ltC-~=-----lt10-

Ahab natildeo imita Moby Dick e Pentesileacuteia natildeo se comporta como a cadela natildeo eacute uma imitaccedilatildeo uma simpatia vivida nem mesmo uma identificaccedilatildeo imaginaacuteria Natildeo eacute a semelhanshyccedila embora haja semelhanccedila Mas justamente eacute apenas uma semelhanccedila produzida Eacute antes uma extrema contiguumlidade num enlaccedilamento entre duas sensaccedilotildees sem semelhanccedila ou ao contraacuterio no distanciamento de uma luz que capta as duas num mesmo reflexo Andreacute Dhocirctel soube colocar seus pershy

10 Artaud Le theacuteacirctre et son double (Oeuvres completesGallimard IV p 154)

middot 11 Le Cleacutezio HAI Ed Flammarion p -7 (sou um iacutendio emboshyra natildeo saiba cultivar o milho nem talhar uma piroga ) Num texto ceacuteleshybre Michaux falava da sauacutedemiddotproacutepria agrave arte posfaacutecio a Mes proprieacuteshyteacutes La nuit remmue Gallimard p 193

li Filosofia Ciecircilcia Loacutegica e Arte

sonagens em estranhos devires-vegetais tornar-se aacutervore ou tornar-seaacutester natildeo eacute diz ele que um se transforme no outro

ma~~~~a--~um12 outro12 ~~~-~-lgg__ecirceacuteP~e ~~EN~shy

~2IDQ~~l)~sect~Sl9middot Eacute uma zona de indeterminaccedilatildeo de indiscerniacutebilidade como se coisas animais e pessoas (Ahab e Moby Dick Pentesileacuteia e a cadela) tivessem atingido em cada caso este ponto (todavia no infinito) que precede imeshydiatamente sua diferenciaccedilatildeo natural~gQ_JtlJccedil~Jgt~ ccedilhordfmallW---shy

~2-_f~g9_Em Pierre ou les ambiguiteacutes Pierre ganha a zona em que ele natildeo pode mais distinguir-se middotde sua meia-irmatilde Isabelle e torna-se mulher Soacute a vida cria tais zonas em que turbishylhonam os vivos e soacute a arte pode atingi-la e penetraacute-la em sua empresa de co-criaccedilatildeo Eacute que a proacutepria arte vive dessas ( zonas de indeterminaccedilatildeo quando o material entra na sen- - ~

Q) ssaccedilatildeo como numa escultura de Rodin Satildeo blocos A pintu- ri ra precisa d~ uma coisa diferente da habilidade do desenhista f f que marcana a semelhanccedila entre formas humanas e animais ( sect_

e nos faria assistir agrave sua metamorfose ~Jf_ccedilisQJ ~ordfltU~QltaacuteAt5 lltf __-9_~0_lot~_Ei~~EE f~pk~~~ d~-~~~ElaEf ~ de imp_r _a ex~~~~Uuml~~sielm-~~t~J-zonordfdlli1agravelEnios_e_sabeshy

-ffiili~CJllem eacute bulluuumlctrtaJ__~--flYoCcedilJJL~bumordfnordm_pruqw ordflg~Lsect_~J~ vanta como o triunfo ou o __~ony~nro_desuaindjsect~jnccediljig ~ssiacutenmiddot-cotildeyatilde-ou mesino Daumier Redon Eacute preciso que o artista crie os procedimentos e materiais sintaacuteticos ou plaacutesshyticos necessaacuterios a uma empresa tatildeo grande que recria por toda a parte os pacircntanos primitivos da vida (a utilizaccedilatildeo da aacutegua-forte e da aguatinta por Goya) O afecto natildeo opera cershytamente um retorno agraves origens como se se reencontrasse em termos de semelhanccedila a persistecircncia de um homem bestial ou primitivo sob o civilizado Eacute nos meios temperados de nossa civilizaccedilatildeo que agem e prosperam atualmente as zonas equatoriais ou glaciais que se furtam agrave diferenciaccedilatildeo dos gecircshy

12 Andreacute Dhocirctel Terres de meacutemoire Ed Universitaires p 225-226

Percepto Afecto e Conceito 225 224

neros dos sexos das ordens e dos reinos Soacute se trata de noacutes aqui e agora mas o que eacute animal em noacutes vegetal mineral ou humano natildeo mais eacute distinto- embora noacutes noacutes ganheshymos aiacute singularmente em distinccedilatildeo O maacuteximo de determishynaccedilatildeo emerge como _um claratildeo deste bloco de vizinhanccedila

Precisamente porque as opiniotildees satildeo funccedilotildees do vivishydo elas aspiram a um certo conhecimento das afecccedilotildees As opiniotildees insistem nas paixotildees do homem e sua eternidade Mas como observava Bergson temos a impressatildeo de que a oacute opiniatildeo desconhece os estados afetivos eque ela agrupa ou separa os que natildeo deveriam ser agrupados ou separados13 Jt Natildeo basta sequer como faz a psicanaacutelise dar objetos proishybidos agraves afecccedilotildees repertoriadas nem substituir as zonas de t indeterminaccedilatildeo por simples ambivalecircncias Um grande roshy ~

mancista eacute antes de tudo um artista que inventa afectos natildeo conheciacuteoosotildeu desconiiacuteecld(s e --os fazvir agrave luz do dia como- ------- ---------middot---- -------------middot-shy0 devir de seus personagens os estados crepusculares dos

- ~~-lei~~~os middotmiddotc-~middotaneacute~cr~middot-chreacutetien de Troyes (em relaccedilatildeo lI

com um conceito eventual de cavalaria) os estados de reshy 11

pouso quase catatocircnicos que se confundem com o dever segundo Mme de Lafayette (em relaccedilatildeo com um conceito de l

li quietismo) ateacute os estados de Beckett como afectos tanto I

imais grmdiosos quanto satildeo pobres em afecccedilotildees Quando I

Zola sugere a seus leitores prestem atenccedilatildeo natildeo eacute remorshyso que meus personagens sentem natildeo devemos mais ver nisso a expressatildeo de uma tese fisiologista mas a atribuiccedilatildeo de novos afectosque crescem com a criaccedilatildeo de personagens no naturalismo o Mediacuteocre o Perverso o Animal (o que Zola chama de instinto natildeo se separ~ de um devir-animal) Quando Emily Bronte traccedila o liame que_ une Heathcliff e Catherine ela inventa um afeto-violento (que sobretudo natildeo

13 Bergson La penseacutee et e mouvant Ed du Centenaire p 1293shy1294

226 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

v f ~~

c~l~f r1gt(1~~1- 7 (jJ-7JV middot ~

JV-10-shy

deve ser confundido com o amor algQ co~o uma fraternishydade entre dois lobos QuandoP~Oacute~t middot fece descrever tatildeo minuciosamente o ciuacuteme inventatilde-tt middot~fect~porque natildeo deishyxa de inverter a ordem que a opiniab--amptipOtildee nas afecccedilotildees segundo a qual o ciuacuteme seria uma consequecircncia infeliz do amor para ele ao contraacuterio o ciuacuteme eacute finalidade destinaccedilatildeo

e~reC1Suuml~~~CecircJ~~--j)uuml~J~-s~~E~I~~~~~sect~~~~~~~sectmiddotmiddotccedil_sect~e o s~nti9~-~2-~ig~~C2~~-to _ltlt_~_- ~~IP~2cgia _ Q~ando CL1ude Simon descreve o prodigjoso amor passivo da mushylher-terra esculpe um afecto de barro e pode dizer eacute mishynha matildee e acreditamos jaacute que ele diz mas uma matildeemiddotque ele introduz na sensaccedilatildeo e agrave qual ergue um monumento tatildeo original que natildeo eacute mais com seu filho real que ela tem uma relaccedilatildeo mas mais longinquamente com um outro personashygem de criaccedilatildeo a Eula de Faulkner Eacute assim que de um esshy

critor ~ um outro o~_gr~_de~-~f5S9LltJi~~ltim~~-P9si~L~-~ encademiddotar ouder~ampS~illCcedilQlJLlt~tQ~~~~~~-~~~i_es ~~~~~~~ fotildermaacutem vibram se e_nl~_s~_m QllJ~J~nccedil~P= sectiip-estesseres---~ acirceseUumls~CcedilatildeO(~datilde~~ta~da--relaccedilatildeodo_artistuQmo puacuteshy

b)i~~A~ltLasordf~--~~)f~-middot~l~~Jnmiddot-ordf~ul~ JJJJmesmQordf-Uacute~t~-~ll~~~s- _f 14 4

~~g~~ Rllt ~Y~l)tuaJ~Jilll4-sfccedillt ~~E~-~~-~--~nJr~gtI bull O artts- [k ta acrescenta sempre novas variedades ao mundo Os seres dordfsectJ~nsaccedilordf-ordmmiddotmiddotmiddot~ordfQvariltdades~ccedil_omoos~streampdecouccitossacirc~~ var~~ccedil2~~~~Q~~sectSf~~-deJu~_ccedilo _ ~ordfmiddot~-Y~~~i~y~js

Eacute de toda a arte que seria preciso dizer o artista eacute m__Qsect_ tracQId~-ordffeltos inventor de afec~~~E-tlt~oLde_ ordf-f~~ccedilJgsect~m middotICcedilatildeotilde com ~tp~~~E~~~~~-i~-~isOtildeEi~CcedilLU~QQsectgaacute Natildeo eacute soshymeilteeffisuacbraacute que ele os cria ele os daacute para noacutes e nos faz transformarnos com eles ele nos apanha no composto Os girassoacuteis de Van Gogh satildeo devires como os cardos de

14 Estas trecircs questotildees retornam frequentemente em Proust notadashymente Le temps retrouveacute La Pleacuteiade 111 p 895-896 (sobre a vida a vishysatildeo e a arte como criaccedilatildeo de universo)

Percepto Afecto e Conceito 227

Duumlrermiddot ou as mimosas de Bonnard Redon intitulava uma litografia Houve talvez uma visatildeo primeira ensaiada na flor A flor vecirc Puro e simples terror Vecirc vocecirc este girasshysol que olha para dentro pela janela do quarto Ele olha meu quarto todo o dia 15 Uma histoacuteria floral da pintura eacute como a criaccedilatildeo incessantemente retomada e continuada dos afecshytos e dos perceptos das flores A arte eacute a linguagem das senshysaccedilotildees que faz entrar nas palmiddot~r-acircsmiddotmiddotiacuteiatildes cOtilde~~~~-~~middot~~ ilas pearamiddots-x-agraverieuumli(t~iiacute~QfuilJatilde~middotr~uuml ci~aagravez ~IacuteriacuteJlE~~

middotmiddotarmiddotga~lziCcedilatilde() middotordf~i~~~fsiPsj2~-~~~~JiSCcedilsectlr~UJini otildees _ltiuacute~ sll-h~- tiiui por um ill()~E~Etccedilgt_Ccedilg~JEP~lt de ~certo~-de~Jectccedils middote de blo_~~smiddot~~j~-~SCcedilsect~sect91~fltt~~Jl-ordf~-ieze_sdeJing)Jordfg~lmiddot

O escritor se serve de palavras mas criando urna sintaxe que as introduz na sensaccedilatildeo e que faz gaguejar a liacutengua correnshyte ou tremer ou gritar ou mesmo cantar eacute o estilo o tom a linguagem das sensaccedilotildees ou a liacutengua estrangeira na liacutengua a que solicita um povo por vir oh gente do velho Catawba oh gente de Yoknapatawpha O escritor torce a linguagem fj-la vibrar a~accedila-a fende-a para arrancar o percepto middotdas percepccedilotildees o afecto das afecccedilotildees a sensaccedilatildeo da opiniatildeo_ ~---shy_________ -shyvisando esperamos esse povo que ainda natildeo existe Mishynha memoacuteria natildeo eacute amor mas hostilidade e ela trabalha natildeo para reproduzir mas para descartar o passado Que queshyria dizer minha famiacutelia eu natildeo sei Ela era gaga de nascenshyccedila e contudo tinha algo para dizer Sobre mim e sobre muishy

tos de meus contemporacircneos pesa a gagueira de nascenccedila Aprendemos natildeo a falar mas a balbuciar e eacute soacute ouvindo o ruiacutedo crescente do seacuteculo e uma vez lavados pela espuma de sua onda mais alta que noacutes dquiijmos uma liacutengua 16

Precisamente eacute a tarefa de toda arte e -a pintura a muacutesica

15 Lowry Au-dessous du fOlcan Ed Buchet-Chastel p 203

16 Mandelstam Le bruit du temps Ed LAge dhomme p 77

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

natildeo arrancam menos 4as cores e dos sons acordes novosmiddot paisagens plaacutesticas ou ~eloacutedicas personagens riacutetmicos que os elevam ateacute o canto 1a terra e o grito dos homens- o que constitui o tom a sauacutede o devir um bloco visual e sonoro Um monumento natildeo comemora natildeo celebra algo que se passou mas transmit~ para o futuro as sensaccedilotildees persistenshytes que encarnam o a ntecimento o sofrimento sempre reshynovado dos homens eu protesto recriado sua luta sempre retomada Tudo seri vatildeo por ue o sofrimento LeteIlO_~ as revoluccedilotildees natildeo so revivem agrave sua vitoacuteria Mas o sucesso dmiddot~ uumlmarevotildeTuCcedilatildeos9-resid~ela me~~-precisamente nas vibraccedilotildees nos enlace~ nas aberturas que deu aos homens no ~--=----=-----1-o----------------~-middot momento em que se fazia e que compotildeem em si um monushy

middotm-eirto sempre em vir como esses tuacutemulos aos quais cada novo viajante acresagraventa uma pedra A vitoacuteria de uma revolushyccedilatildeo eacute imanente e consiste nos novos liames que instaura entre os homens mesmo se estes natildeo duram mais Q1Je sua mateacuteshy

r~ em fusatilde5_gt_j~~~--~Jiga_peng-ordfillYisectatildeQ_acirc traiccedilatildeo As figuras esteacuteticas (e o estilo que as cria) natildeo tecircm nada

a ver com a retoacuterica SiiQsect~Otildees 12erceptos~-~~~~shy~ordf~nserostnsrisotildees_e_d~yius_Mas natildeb eacute tambeacutem pelo devir que definimos o conceito filosoacutefico e quase nos mesmos tershymos Todavia as figUumlras esteacuteticas natildeo satildeo idecircnticas aos pershysonagens cmiddotonceituais Talvez entrem uns nos outros num ~entido ou no outro como Igitur ou como Zaratustra mas

eacute na medida em que -~~~~sect~s cJ~-~onceicto2_~S2-Seit~-~ q~ sccedilg~ordfccedilotildee_s Nao eacute o mesmo devir O devir sensiacutevel eacute o ato pelo qual algo ou algueacutem natildeo paacutera de deVir-outro (continuanshydo a ser o que eacute) girassol ou Ahab enquanto que o devir

~

conceitual eacute o ato pelo qual o acontecimento comum ele mesmo esquiva o que eacute Este eacute heterogeneidade compreenshydida numa forma absoluta aquele a alteridad~ empenhada numa mateacuteria de expressatildeo O monumento natildeo atualiza o acontecimento virtual mas o incorpora ou o encarna acirca--shy

middot--~--middot---- middot~----------~middot---middot-middot--middot~~--middotmiddot- ---middotmiddotmiddotmiddot

Percepto Afecto e Conceito 228 229

lhe um corpo uma vida um universo Eacute assim que Proust definia a arte-monumento por esta via SU_I)erior ao vivido suas diferenccedilas qualitativas seus universos que consshytroem seus proacuteprios limites seus distanciamentos e suas aproshyximaccedilotildees suas constelaccedilotildees os blocos de sensaccedilotildees que eles fazem rolar o universo-Rembrandt ou universo-Debussy Estes universos natildeo satildeo nem virtuais nem atuais satildeo possiacuteshyveis o possiacutevel como categoria esteacutetica (possiacutevel por favor senatildeo eu sufoco) a existecircncia do possiacutevel enquanto que os acontecimentos satildeo a realidade do virtual formas de um penshysamento-Natureza que sobrevoam todos os universos posshysiacuteveis Natildeo significa dizer que o conceito precede de direito a sensaccedilatildeo mesmo um conceito de sensaccedilatildeo deve ser criashydo com seus meios proacuteprios e uma sensaccedilatildeo existe em seu universo possiacutevel sem que o conceito exista necessariamente em sua forma absoluta

Pode a sensaccedilatildeo ser assimilada a uma opiniatildeo originaacuteshyria Urdoxa como fundaccedilatildeo do mundo ou base imutaacutevel A fenlt_~~~~ogiltl encontra a sensaccedilatildeo em a priori materiais shyperceptivos e afectivos que transcendem acircs per-cepCcedilOtildees ecirc afecshy

Ccedilotilde~~middot~iVfd-atilde$ middototildemiddot-aillatildere-iotildeecircleVail cuumlgKmiddotocirc~--~s -~ens~Ccedilotilde~s middot ~acirc-middotratildes de Ceianne A fenomenologia deve fazer-se fenomenoshylogia da arte jaacute vimos porque a imanecircncia do vivido a um sujeito transcendental precisa exprimir-se em funccedilotildees transshycendentes que natildeo determinam somente a experiecircncia em geral mas que atravessam aqui e agora o proacuteprio vivido e I se encarnam nele constituindo sensaccedilotildees vivas O ser da senshy I

I I middot

I saccedil-ordf9_ _Q__blQccedilQ d_d percepto ~=fo ~feccedil~Q ltPareceraacute ~ornomiddot middot middot I

_Unidade ou a reversibilidade daquele que s~t~ - ~ middotd~-~-e~d- I doseu1ntiffiuuml eacute~t~r~ccedilmiddota~ento c()~uuml matilde~~ middotq~~i-~~~_middot- bullI

1 middot-middotmiddoteacute-~a--~arne que vai se libertar ao mesmo tempmiddoto do corpo vivishydo do mundo percebido e da intencionalidade de um ao outro ainda muito ligada agrave experiecircncia - enquanto a carshyne nos daacute o ser da sensaccedilatildeo e carrega a opiniatildeo originaacuteria

230 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

distinta do juiacutezo de experiecircncia Carne do mundo e carne do corpo como correlatos que se trocam coincidecircncia ideaF7

Eacute um curioso Carnismo que inspira este uacuteltimo avatar da fenomenologia e a precipita no misteacuterio da encarnaccedilatildeo eacute uma noccedilatildeo piedosa e sensual ao mesmo tempo uma misshytura de sensualidade e de religiatildeo sem a qual a carne talshymiddotvez natildeo ficaria de peacute sozinha (ela desceria ao longo dos ossos como nas figuras de Bacon) A questatildeo de saber se a carne eacute adequada agrave arte pode se enunciar assim eacute ela capaz de carshyregar o percepto e o afecto de constituir o ser de sensaccedilatildeo ou entatildeo eacute ela mesma que deve ser carregada e ingressar em outras potecircncias de vida

A carne natildeo eacute a sensaccedilatildeo mesmo se ela participa de sua middot revelaccedilatildeo Era precipitado dizer que a sensaccedilatildeo encarna A pintura faz a carne ora com o encarnado (superposiccedilotildees do vermelho e do branco) ora com tons justapostos (jUstaposhysiccedilatildeo de complementares em proporccedilotildees desiguais) Mas o que constitui a sensaccedilatildeo eacute o devir-animal vegetal etc que monta sob as praias de encarnado no nu mais gracioso mais delicado corria a presenccedila de um animal descarnado de um fruto descascado Vecircnus no espelho ou que surge na fusatildeo no cozimento no derramar de tons justapostos como a zona

17 Desde a Pheacutenomeacutenologie de lexpeacuterience estheacutetique (PUF 1953) Mikel Dufrenne fazia uma espeacutecie de analiacutetica dos a priori perceptivos e afetivos que fundavam a sensaccedilatildeo como relaccedilatildeo do corpo e do mundo Permanecia proacuteximo de Erwin Straus Mas haacute um ser de sensaccedilatildeo que se manifestaria na carne Era middota via de Merleau-Ponty no Le visible et linshyvisible Dufrenne fazia muit~s r~ervas a uma tal ontologia da carne (Loeil et loreille Ed LHexagone) Recentemente Didier Franck retomou o tema de Merleau-Ponty mostrando a importacircncia decisiva da carne segundo Heidegger e jaacute Husserl (Heidegger et le probleme de [espace Chair et corps Ed de Minuit) Todo este problema estaacute no centro de umafenoshymenologia da arte Talvez o livro ainda ineacutedito de Foucault Les aveux de la chair nos informe sobre as origens mais gerais da noccedilatildeo de carne e seu alcance na Patriacutestica

Percepto Afecto e Conceito 231

de indiscernibilidade do animal e do homem Talvez fosse um embaralhamento ou um caos se natildeo houvesse um segunshydo elemento para dar consistecircncia agrave carne_ A carne eacute apeshynas o termocircmetro de um devir A carne eacute tenra demais O segundo elemento eacute menos o osso ou a ossatura que a casa

rltmiddotr a armadura O corpo desabrocha na casa (ou num equivashylente numa fonte num bosque) Ora o que define a casa

( I satildeo as extensotildees isto eacute os pedaccedilos de planos diversamente orientados que datildeo agrave carne sua armadura primeiro-plano e plano-de-fundo paredes horizontais verticais esquerda dishyreita retos e obliacutequos retiliacuteneos ou curvos 18 Essas extenshysotildees satildeo muros mas tambeacutem solos portas j arielas portasshyjanelas espelhos que datildeo precisamente agrave sensaccedilatildeo o poder de manter-se sozinha em molduras autocircnomas Satildeo as faces do bloco de sensaccedilatildeo E haacute certamente dois signos do gecircnio dos grandes pintores bem como de sua humildade o respeishyto quase um terror com o qual eles se aproximam da cor e entram nela o cuidado com o qual operam a junccedilatildeo dos

Imiddot planos da qual depende o tipo de profundidade Sem este respeito e este cuidado a pintura eacute nula sem trabagravelho sem pensamento O difiacutecil eacute juntar natildeo as matildeos mas os planos Fazer relevos com planos que se juntam ou ao contraacuterio escarificaacute-los cortaacute-los Os dois problemas a arquitetura dos planos e o regime da cor se confundem frequumlentemente A junccedilatildeo dos planos horizontais e verticais em Ceacutezanne os planos na cor os planos o lugar colorido ou a alma dos planos entra em fusatildeo ~~_grandes P~_esou mesmo duas grandes obras que operem da mesma ~~nei-

-----=~Haacute todavia tendecircncias num pintotilderem middotGiaco~ettipo-18

Como mostra Georges Didi-Huberman a-carne middot~~gendra uma i duacutevida ela eacute proacutexima demais do caos donde a necessidade de uma

complernentariedade entre o encarnado e a extensatildeo tema essencial de La peinture incarneacutee retomada e desenvolvida em Devant limage Ed de Minuit

232 II Filosofia Ciecircncia middotLOacutegica e Arte

exemplo os planos horizontais fugidios diferem agrave direita e middot agrave esquerda e parecem se reunir na coisa (a carne da pequeshyna maccedilatilde) mas como uma pinccedila que a puxaria para traacutes e a faria desaparecer se uni plano vertical do qual soacute se vecirc o fio sem espessura natildeo viesse fixaacute-la retecirc-la no uacuteltimo moshymento dar-lhe uma existecircncia duraacutevel agrave maneira de um longo alfinete que a atravessa e a tornafiliforme por sua vez A casa participa de todo um devir Ela eacute vida ~vida natildeo

orgacircnica das coisas De todos 9s modos possiacute~sect~a_ LYD~-~ ccedilatildeo do~_planos~e mitorientaccedilOtildees que define t_casa-sens~-~-~---~ ccedilatildeo Aiacute~asa mesma (o_u-middotseu equivalente) eacute a junccedilatilde9T~itaii~------planos cQlruicles____

middot middot-middot--~rceiro elemento eacute o universo o qgtsmos Natildeo eacute soshymentea-Catildesatildeabeitaque secirc-cotildelliiriic co~ ~ p~i~agem por ~ffiatilde )atildeiieratilde- middoto-tr-uumlm espeino iiiatildes--atildemiddot-~8middot-middot~middotas~fe~~~~ ~~atilde__ atilde5e~t~-sotildebreuumlmuiiiacutevecircrsomiddot middotx- middotcamiddotsacirc-eacutefe viuuml~ecirct s~ vecirc sempre ~~pi~dmiddot -p-~i~~ fccedil~~- ~egetais de um jardim incontrolaacutevel cosmo das rosas Um universo-cosmos natildeo eacute carne Nem mesmo plano pedaccedilos de planos que se juntam planos dishyversamente orientados embora a junCcedilatildeo de todos os planos ateacute o infinito possa constituiacute-lo Mas o universo se apresenshyta no limite como o fundo da tela o uacutenico grande plano o vazio colorido o infinito monocromaacutetico A porta-janela como em Matisse soacute se abre sobre um fundo negro A carne ou antes a figura natildeo mais eacute o habitante do lugar da casa mas o habitante de um universo que suporta a casa (devir) Eacute como uma passagem do finito ao infinito mas tambeacutem do territoacuterio agrave desterritorializaccedilatildeo Eacute bem o momento do infishynito infinitos infinitamente variados Em Van Gogh em Gauguin em Bacon hoje vemos surgir a imediata tensatildeo da carne e do fundo dos derrames de tons justapostos e da praia

I

infinita de uma pura cor homogecircnea viva e saturada (em lugar de pintar a parede banal do mesquinho apartamento eu pinto o infinito faccedilo um fundo simples do azul mais rico

233Percepto Afecto e Conceito

mais intenso ) 19 Eacute verdade que o fundo monocromaacutetico

eacute mais do que um fundo E quando a pintura quer comeccedilar do zero construindo o percepto como um miacutenimo antes do vazio ou aproximando ao maacuteximo do conceito ela proceshy~e por monocromia liberada de toda casa ou de toda carne E notadamente o azul que se encarrega do infinito e qu~ faz do percepto uma sensibilidade coacutesmica ou o que haacute de mais conceitual na natureza ou de mais proposicional a cor na ausecircncia do homem o homem mergulhado na cor mas se o azul (ou o negro ou o branco) eacute perfeitamente idecircnshytico no quadro ou de um quadro a outro eacute a pintura que se torna azul- Yves o monocromo- segundo um puro afecto que faz o universo mergulhar no vazio e natildeo deixa mais nada por fazer ao pintor por excelecircncia20_

O vazio colorido ou antes colorante jaacute eacute forccedila A maior parte dos grandes monocromos da pintura moderna natildeo mais tecircm necessidade de recorrer a pequenos buquecircs murais mas apresentam variaccedilotildees sutis imperceptiacuteveis (todavia constishytutivas de um percepto) seja porque satildeo cortados ou conshy

19 Van Gogh carta a Theacuteo Correspondance complete Gallimardshy

Grasset III p 165 Os tons justapostos e sua relaccedilatildeo com o fundo satildeo um tema frequumlente da correspondecircncia Tambeacutem Gauguin carta a Schuffeshynecker 8 de outubro de 1888 Lettres Ed Grasset p 140 Eu fiz urn retra to de mim para Vincent Eacute acredito eu uma das minhas melhores coisas absolutamente incompreensiacutevel (por exemplo) de tal maneira eacute abstra~o o seu d~senho eacute inteiramente arbitraacuterio abstraccedilatildeo cornpl~ta a c~r ~uma co~ d1sta1te da natureza imagine uma vaga lembranccedila de ceram1ca retor~rda pelo fogo forte Todos os vermelhos os violetas rajashydas pelos claroes de fogo como uma fornalha radiante aos olhos sede das lutas do pensamento do pintor O todo sobre um fundo cromo seshymeado de buquecircs infantis Quarto de moccedila pura Eaacute ideacuteia do coloriacutesta arbitraacuterio segundo Van Gogh

~~ Cf Artst~dio no 16 Monochromes (sobre Klein artigos de Genev1eve Monmer e de Denys Riout e sobre os avatares atuais do monocromo artigo de Pierre Sterckx)

234 IL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tornados de um lado por uma fita um faixa uma extensatildeo de uma outra cor ou de um outro tom que mudam a intenshysidade do fundo por vizinhanccedila ou distanciamento seja porshyque apresentam figuras lineares ou circulares quase virtuais tom sobre torit seja porque satildeo esburacados ou fendidos satildeo problemas de junccedilatildeo ainda mas singularmente ampliados

Numa palavra o fundo vibra se enlaccedila ou se fende poque eacute portador de forccedilas apenas vislumbradas E o q~e fazia de iniacutecio a pintura abstrata convocar asforccedilas povoar o funshydo com as forccedilas que ele abriga fazer ver nelas mesmas as forshyccedilas invisiacuteveis traccedilar figuras de aparecircncia geomeacutetrica mas que natildeo seriam mais do que forccedilas forccedila de gravitaccedilatildeo de peso de rotaccedilatildeo de turbilhatildeo de explosatildeo de expansatildeo de gershyminaccedilatildeo forccedila do tempo (como se pode dizer da muacutesica que ela faz ouvir a forccedila sonora do tempo por exemplo com Messhysiaen ou da literatura com Proust que faz ler e conceber a forccedilaacute ilegiacutevel do tempo) Natildeo eacute esta a definiccedilatildeo do percepto em pessoa tornar sensiacuteveis as forccedilas insensiacuteveis que povoam o mundo e que nos afetam nos faze~ devir O que Mondrian obteacutem por simples diferenccedilas entre lados de um quadrado e Kandinsky pelas tensotildees lineares e Kupka pelos planos curvos em torno do ponto Do fundodas eras nos vem o que Worringer chamava a linha setentrional abstrata e infinita linha do uacuteniverso que forma fitas e tiras rodas e turbinas toda uma geometria viva elevando agrave intuiccedilatildeo as forccedilas mecacircshynicas constituindo uma poderosa vida natildeo-orgacircnica21

O eterno objeto da pintura pintar as forccedilas como Tintoretto

Encontraremos tambeacutem talvez a casa e o corpo E que o fundo infinito eacute frequumlentemente aquilo sobre o que se abre a janela ou a porta ou entatildeo eacute o muro da proacutepria casa ou o solo Van Gogh e Gauguin semeiam o fundo de pequenos buquecircs de flores para fazer deles o papel mural

21 Worringer Lart gothique Gallimard

Percepto Afecto e Conceito 235

sobre o qual se destaca o rosto de tons justapostos E com efeito a casa natildeo nos abriga das forccedilas coacutesmicas no maacutexishymo ela as filtra elas as seleciona Ela as transforma algushymas vezes em forccedilas benevolentes jamais a pintuacutera fez ver a forccedila de Arquimedes a forccedila do empuxltgt da aacutegua sobre um corpo gracioso que flutua na banheira da casa como Bonnard conseguiu em o Nuacute no banho Mas tambeacutem as forccedilas mais maleacuteficas podem entrar pela porta entreabershyta ou fechada satildeo as forccedilas coacutesmicas que provocam elas mesmas as zonas de indiscernibilidade nos_tons justapostos de um rosto esbofeteando-o arranhando-o fundindo-o em todos os sentidos e satildeo estas zonas de indiscernibilidade que revelam as forccedilas escondidas no fundo (Bacon) Haacute plena complementariedade enlace de forccedilas como perceptos e de devires como afectos A linha de forccedila abstrata segundo ~orringer eacute rica em motivos animalescos Agraves forccedilas coacutesshymicas ou cosmogeneacuteticas correspondem devires-aniinais veshy

geta1s moleculares ateacute que o corpo desapareccedila no fundo ou entre no muro ou inversamente que o fundo se contorshyccedila e turbilhone na zona de indiscernibilidade d~ corpo~ Numa palavra o ser de sensaccedilatildeo natildeo eacute a carne mas o comshyposto das forccedilas natildeo-humanas do cosmos dos devires natildeo humanos do homem e da casa ambiacutegua que os troccedila e os ajusta os faz turbilhonar como os ventos A carne eacute somenshyte o revelador que desaparece no que revela o composto de sensaccedilotildees Como toda pintura a pintura abstrata eacute senshysaccedilatildeo nada mais que sensaccedilatildeo Em Mondrian eacute o quarto que acede ao ser de sensaccedilatildeo dividindo por extensotildees coshyloridas o plano vazio infinito que lhe daacute de volta um infishy

d b 22 mto e a ertura Em Kandinsky as casa~ satildeo uma das

22 Mondrian Reacutealiteacute naturelle et reacutealiteacute abstraite (in Seuphor Piet

Mondnan sa vie son oeuvre Ed Flammarion) sobre o quarto e seu desdobramento Michel Butor analisou este desdobramento do quarto em

236 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

fontes da abstraccedilatildeo que consiste menos em figuras geomeacuteshytricas que em trajetos dinacircmicos e linhas de erracircncia cashyminhos que caminham nos arredores Em Kupka eacute de iniacuteshycio sobre o corpo que o pintor talha fitas ou extensotildees coshyloridas que produziratildeo no vazio os planos curos que o povoam tornando-se sensaccedilotildees cosmogeneacuteticas__ ~--~--~~~~

ccedilatildeoe~_pi_rjtual ou j~ um _~Ol~-~-i_g_viSgt= O _q~-~~t-~ lt1 ~~-~~- uacuten1verso A ~r~~ - aJs~rata_~ s~P25 a ~rte _C()flC~I~~~_Elt~~~-- middot-Pmiddot cacirc~dTmiddot~tamente a questatildeo que impregna toda pintura ---- --middot-shys~~ - ~-eiacute~Ccedilatilde-uumlcocircffi o ~~~~~ito~sti-a relaccedilatildeo com a funccedilatildeo middot_

A arte comeccedila talv-ez--com o animal ao menos com o animal que recorta um territoacuterio e faz uma casa (os dois satildeo correlativos ou ateacute mesmo se confundem por vezes no que se chama de habitat) Com o sistema territoacuterio-casa muitas funccedilotildees orgacircnicas se transformam sexualidade procriaccedilatildeo agressiyidade alimentaccedilatildeo mas natildeo eacute esta transformaccedilatildeo que explica a apariccedilatildeo do territoacuterio e da casa seria antes o

inverso o territoacuterio impli~a na emergecirc~lti~ e 91-ali_cll~~-~sel~ siacuteveis pu~- ~~-ibiIacuteia qua~ixacirciiacuteiacute -de ser unicaii1~_Ilt_e ushyecirc(ocircOtildeagraveisecirc cse- ioacuternani-tragraveCcediluumlsmiddotae express~Otilde__ tormiddotn~~~~J~~s~V~l tiffiagravetiansfocirciinaCcedilatildeo (G$iacute~i1Ccedilotildees23 s~ni duacutevida esta expresshysivlamp1deTaacuteestacirc dltu~ch~E~~~middot Vida~ pode-se dizer que o simshyples liacuterio dos campos celebra a gloacuteria dos ceacuteus Mas eacute com o territoacuterio e a casa que ela se torna construtiva e ergue os monumentos rituais de uma missa animal que celebra as quashylidades antes de tirar delas novas causalidades e finalidades Esta emergecircncia jaacute eacute arte natildeo somente no tratamento dos materiais exteriores mas nas posturas e cores do corpo nos

quadrados ou retacircngulos e a abertura sobre um quadrado interior vazio e branco como promessa de quarto futuro Reacutepertoire III Le carreacute et son habitant Ed de Minuit p 307-309314-315

23 Parece-nos que eacute um engano de Lorenz querer explicar o terrishytoacuterio por uma evoluccedilatildeo das funccedilotildees L agression Ed Flammarion

Percepto Afecto e Conceito 237

cantos e nos gritos que marcam o territoacuterio Eacute um jorro de traccedilos de~-~2E~~- e de sons inseparaacuteveisna dtecTda em que s~ -~riill _ ~xpr~~isiV_9_~ ~-(~i~~~i-~ill~~9l0_~_4~ middotr~ritoacute~i~fCcedil Scenopoietes dentirostris paacutessaro das florestas chuvosas da Austraacutelia faz cair da aacutervore as folhas que corta cada manhatilde vira-as para que sua face interna mais paacutelida contraste com a terra constroacutei para si assim uma cena co_mo um readyshymade e canta exatamente em cima sobre um cipoacute ou-um galho um canto complexo composto de suas proacuteprias noshytas e das de outros paacutessaros que imita nos intervalos mosshytrando a raiacutez amarela das plumas sob seubico eacute um artista completo24

bull Natildeo satildeo as sinestesias em plena carne satildeo esshytes blocos de sensaccedilotildees no territoacuterio cores posturas e sons que esboccedilam uma obra de arte total Estes blocos satildeo rishytorneios mas haacute tambeacutem ritornelos posturais e de cores e tanto posturas quanto cores se introduzem sempre nos ritor~ nelas Reverecircncias e posiccedilotildees eretas rondas traccedilos de coshyres O ritornelo inteiro eacute o ser de sensaccedilatildeo Os monumenshytos satildeo ritornelos Desse ponto de vista a arte natildeo deixaraacute de ser habitada pelo animal A arte deKafka seraacute a mais prbshy

funda meditaccedilatildeo sobre o territoacuterio e a casa o terreiro as pos~ turas~retrato (a cabeccedila pendida do habitante com o queixo enterrado no peito ou ao contraacuterio o grande tiacutemido que fura o teto com seu cracircnio anguloso) os sons-muacutesica (os catildees que satildeo muacutesicos por suas proacuteprias posturas Josephine a ratinha cantora da qual ja~ais saberemos se canta Gregoire que une seu piadoao violino de sua irmatilde numa relaccedilatildeo comshyplexa quarto-casa~territoacuterio) Eis tudo o que eacute preciso para fazer arte uma casa posturas cores e cantos - sob a conshy ~

I diccedilatildeo de que tudo isso se abra e se lance sobre ummiddotvetor louco como uma vassoura de bruxa uma linha d~ universo ou de

24 Marshall Bowler Birds Oxford at the Clarendon Press Gilliord Birds of Paradise and Bowler Birds Weidenfeld

desterritorializaccedilatildeoPerspectiva de um quarto com seus hashybitantes (Klee )

Cada territoacuterio cada habitat junt a seus planos ou suas extensotildees natildeo apenas espaccedilo-temporais mas qualitativos por exemplo uma postura e um canto um canto e urna cor perceptos e afectos E cada territoacuterio engloba ou recorta ter~ ritoacuterios de outras espeacutecies ou intercepta trajetos de animais sem territoacuterio formando junccedilotildees inUacuterespeciacuteficltlS Eacute neste sentido que Uexkuumlhl num primeiro aspecto desenvolve urna concepccedilatildeo da Natureza meloacutedica polifocircnica contrapontual Natildeo apenas o canto de um paacutessaro tem suas relaccedilotildees de conshytraponto mas pode fazer contraponto com o canto de oushytras espeacutecies e pode ele mesmo imitar estes outros cantos como se se tratasse de ocupar um maacuteximo de frequumlecircnciacuteas A teia de aranha conteacutem um retrato muito sutil da mosca que lhe serve de contraponto A concha como casa do moshylusco~ se torna quando ele morre o contraponto do Bershynardo-eremita que faz dela seu proacuteprio habitat graccedilas a sua cauda que natildeo eacute nadadeira mas preecircnsil e lhe permite capshyturar a concha vazia O Carrapato eacute organicamente consshytruiacutedo de modo a encontrar seu contraponto no mamiacutefero qualquer que passa sob seu galho como as folhas de carvashylho arranjadas como telhas nas gotas de chuva que escorshyrem Natildeo eacute uma concepccedilatildeo finalista mas meloacutedica em que natildeo mais sabemos o que eacute arte ou natureza (a teacutecnica nashytural) haacute contraponto toda vez que uma melodia interveacutem como motivo numa outra melodia como nas bodas enshytre a mamangava e a boca-de-leatildeo Essas relaccedilotildees de contrashyponto juntam planos formam compostos de sensaccedilotildees bloshycos e determinam devires Mas natildeo satildeo somente estes comshypostos meloacutedicos determinados que constituem a natureza mesmo generalizados eacute preciso tambeacutem sob um outro asshypecto um plano de composiccedilatildeo sinfocircnica infinio da Casa ao universo Da endo-sensaccedilatildeo agrave exo-sensaccedilatildeo E que o tershy

bull 238 li Filosofia Ciecircnci~ Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 239

r I I I-- --- --

~ -

middot1

ritoacuterio natildeo se limita a isolar e juntar ele abre para forccedilas coacutesmicas que sobem de dentro ou que vecircm de fora e torna sensiacuteveis seu efeito sobre o habitante Eacute um plano de comshyposiccedilatildeo do carvalho que porta ou comporta a forCcedila de deshysenvolvimento da bolota e a forccedila de formaccedilatildeo das gotas ou o do carrapato que tem a forccedila da luz capaz de atrair o animal ateacute a ponta de um galho numa altura suficiente e a forccedila de peso com a qual se deixa cair sobre o mamiacutefero que passa -e entre os dois nada um vazio assustador que pode durar anos se o mamiacutefero natildeo passa25bull E ora as forccedilas se fundem umas nas outras em transiccedilotildees sutis decompotildeemshyse tatildeo logo vislumbradas ora se alternam ou se enfrentam Ora deixam-se selecionar pelo territoacuterio e satildeo as mais beshynevolentes que entram na casa Ora lanccedilam um apelo misshyterioso que arranca o habitante do territoacuterio e o precipita numa viagem irresistiacutevel como os pintassilgos que se reuacuteshynem frequentemente aos milhotildees ou as lagostas que empreshyendem uma imensa peregrinaccedilatildeo no fundo da aacutegua Ora se abatem sobre o territoacuterio e o invertem malevolentes restaushyrando o caos de onde ele mal saiacutea Mas sempre se a nature za eacute como a arte eacute porque ela conjuga de todas as maneiras esses dois elementos vivos a Casa e o Universo o Heimlich e o Unheimlich o territoacuterio e a desterritorializaccedilatildeo os comshypostos meloacutedicos finitos e o grande plano de composiccedilatildeo infinito o pequeno e o grande ritornelo

A arte comeccedila natildeo com a carne mas com a casa eacute por isso que a arquitetura eacute a primeira das artes Quando Dushybuffet procura delifuitar um certo estado bruto de arte eacute a princiacutepio na direccedilatildeo da casa que ele se volta e toda sua obra se ergue entre a arquitetura a escultura e a -pintUra E limishy

25 Cf a obra-prima de J von Uexkuumlhl Mondes animaux et monde humain Theacuteorie de la signification Ed Gonthier (p 137-142 o contrashyponto motivo do desenvolvimento e da morfogecircnese)

II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tando-nos agrave forma a arquitetura mais saacutebia natildeo deixa de fazer planos extensotildees e de juntaacute-los Eacute por isso que se pode defini-la pela moldura um encaixe de molduras diversashymente orientadas que se imporiam agraves outras artes da pinshytura ao Cinema Jaacute se apresentou a preacute-histoacuteria do quadro como passando pelo afresco na moldura da parede o vitral ha moldura da janela o mosaico na moldura do solo A moldura eacute o umbigo que liga o quadro ao monujllento do qual ele eacute a reduccedilatildeo como a moldura goacutetica com coluneshytas ogiva e flecha26 Fazendo da arquitetura a arte primeira da moldura Bernard Cache pode enumerar um certo nuacutemero de formas enquadrantes que natildeo prejulgam nenhum conteuacuteshydo concreto nem funccedilatildeo do edifiacutecio o mu~o que isola ajashynela que capta ou seleciona (em conexatildeo com o territoacuterio) o solo-chatildeo que conjura ou rarifica (rarificar o relevo da terra para dar livre curso agraves trajetoacuterias humanas) o teto que envolve a singularidade do lugar (o teto em declive coloca o edifiacutecio sobre uma colina ) Encaixar essas molshyduras ou juntar todos estes planos extensatildeo de muro exshytensatildeo de janela extensatildeo de solo extensatildeo de declive eacute todo um sistema composto rico em pontos e contrapontos As molduras e suas junccedilotildees sustentam os compostos de sensashyccedilotildees datildeo consistecircncia agraves figuras confundem-se com seu dar consistecircncia seu proacuteprio tocircnus Aiacute estatildeo as faces de um cubo de sensaccedilatildeo As molduras ou as extensotildees natildeo satildeo coordeshynadas pertencem aos compostos de sensaccedilotildees dos quais consshytituem as faces as interfaces Mas por mais extensiacutevel que seja este sistema eacute preciso ainda um vasto plano de composhysiccedilatildeo que opere uma espeacutecie de desenquadramento segunshydo linhas de fuga que soacute passe pelo territoacuterio para abri-lo sobre o universo que vaacute da casa-territoacuterio agrave cidade-cosmos

26 Henry van de Velde Deacuteblaientent dart Archives darchitecture moderne p 20

Percepto Afecto e Conceito 240 241

-~-_--- middot-middotmiddot

e que dissolva agora a identidade do lugar na variaccedilatildeo da Natildeo parece que a literatura e particularmente o romance Terra uma cidade que tem menos um lugar do que vetores estejam imma outra situaccedilatildeo O que conta natildeo satildeo as opiniotildees pregueando a linha abstrata do relevo Eacute sobre este plano de dos personagens segundo seus tipos sociais e seu caraacuteter composiccedilatildeo como sobre um espaccedilo vetorial abstrato que como nos maus romances mas as relaccedilotildees de contraponto nos se traccedilam figuras geomeacutetricas cone prisma diedro plano quais entram e os compostos de sensaccedilotildees que esses persoshyestrito que nada mais satildeo do que forccedilas coacutesmicas capazes nagens experimentam eles mesmos ou fazem experimentar em de se fundir se transformar se enfrentar alternar mundo seus devires e suas visotildees O contraponto natildeo serve para reshyde antes do homem mesmo se eacute produto do homem27 Eacute latar conversas reais ou fictiacutecias mas para fazer mostrar a preciso agora desarticular os planos para remetecirc-los a seus loucura de qualquer conversa de qualquer diaacutelogo mesmo

j intervalos em vez de remetecirc-los uns aos outros para criar interior Eacute tudo isso que o romancista deve extrair das pershy

novos afectos28 Ora~ vimos que a pintura seguia o mesmo cepccedilotildees afecccedilotildees e opiniotildees de seus modelos psicossociais I

I movimento A moldura ou a borda do quadro eacute em primeiro que se integram inteiramente nos perceptos e os afectos aos ~ I

lugar o invoacutelucro externo de uma seacuterie de molduras ou de quais o personagem deve ser elevado sem conservar outra vida I

I extensotildees que se juntam operando contrapontos de linhas E isso implica num vasto plano de composiccedilatildeo natildeo preconshyi

I

e de cores determinando compostos de sensaccedilotildees Mas o cebido abstratamente mas que se constroacutei agrave medida que a obraI

quadro eacute atravessado tambeacutem por uma potecircncia de desenshy avanccedila abrindo misturando desfazendo e refazendo composshy

I I quadramento que o abre para um plano de composiccedilatildeo oumiddot tos cada vez mais ilimitados segundo a penetraccedilatildeo de forccedilasI

um campo de forccedilas infinito Estes procedimentos podem ser coacutesmicas A teoria do romance de Bakhtin vai nesse sentido muito diversos mesmo no nivel da moldura exterior formas mostrando de Rabelais a Dostoievski a coexistecircncia dos comshy

[I irregulares lados que natildeo se juntam molduras pintadas oacuteu ponentes contrapontuais polifocircnicos e plurivocais com um I pontilhados de Seurat quadrados sobre ponta de Mondrian plano de composiccedilatildeo arquitetocircnico ou sinfocircnico29 Um roshyi li tudo o que daacute ao quadro o poder de sair da tela Jamais o mancista como Dos Passos soube atingir uma arte inaudita

shy__jl

gesto do pintor fica na moldura ele sai da moldura e natildeo do contraponto nos compostos que forma entre personagens comeccedila com ela atualidades biografias olhos de cacircmera ao mesmo teropo queI

um plano de composiccedilatildeo se alarga ao infinito para arrastar tudo para a Vida para a Morte para a cidade-cosmos E se27 Sobre todos estes pontos a anaacutelise das formas enquadrantes e da

cidade-cosmos (exemplo de Lausanne) cf Bernard Cache L ameublement retornamos a Proust eacute porque mais do que qualquer outro du territoire (a sair) ele fez com que os dois elementos quase se sucedessem emboshy

28 Eacute Pascal Bonitzer que formou o conceito de desenquadramento ra presentes um no outro o plano de composiccedilatildeo aparece poushypara aplicar ao cinema novas rdaccedilotildees entre os planos ( Cahiers du cineacutema co a pouco para a vida para a morte compostos de sensashyndeg 284 janeiro de 1978) planos disjuntos triturados ou fragmentados ccedilatildeo que ele edifica no curso do tempo perdido ateacute aparecer graccedilas aos quais o cinema se torna uma arte depurando-se das emoccedilotildees

em si mesmo com o tempo reencontrado a forccedila ou antes asmais comuns que arriscam de lhe impedir o desenvolvimento esteacutetico e produzindo-lhe afetos novos (Le champ aveugle Ed Cahiers du cineacutema Gallirnard sisteme des eacutemotions ) 29 Bakhtin Estheacutetique et theacuteorie du roman Gallimard

242 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 243

-- ---

forccedilas do tempo puro tornadas sensiacuteveis Tudo comeccedila peshylas Casas que devem todas juntar suas dimensotildees e dar conshysistecircncia a compostos Combray o palacete de Guermantes o salatildeo Verdurin e as casas elas mesmas se ajuntam segundo interfaces mas um Cosmos planetaacuterio jaacute estaacute laacute visiacutevel ao telescoacutepio arruinando-as ou transformando-as e absorvenshydo-as no infinito do fundo Tudo comeccedila por titornelos cada

i

um dos quais como a pequena frase da sonata de Vinteuil natildeo se compotildee apenas em si mesmo mas com -outras sensashy

ccedilotildees variaacuteveis a de uma passante desconhecida a do rosto de Odette a das folhagens do bosque de Boulogne- e tudo tershy I mina no infinito no grade Ritornelo a frase do seacuteptuor em Iperpeacutetua metamorfose o canto dos universos o mundo de antes do homem ou de depois De cada coisa finita Proust faz uni ser de sensaccedilatildeo que natildeo deixa de se conservar mas fushygindo sobre um plano de composiccedilatildeo do Ser seres de fuga

EXEMPLO XII

Natildeo parece que a muacutesica esteja numa outra situashyccedilatildeo talvez mesmo a encarne com mais poder ainda Dizshyse todavia que o som natildeo tem moldura Mas os comshypostos de sensaccedilotildees os blocos sonoros tampouco tecircm extensotildees ou formas enquadrantes que devem em cada caso se ajuntar assegurando um certo fechamento Os casos mais simples satildeo a aacuteria meloacutedica que eacute um ritorshynelo monofocircnico o motivo que jaacute eacute polifocircnico um elemento de Uacutema melodia interveniente no desenvolvishymento de uma outra e fazendo contraponto o tema como objeto de modificaccedilotildees harm-ecircnicas atrav~s das linhas meloacutedicas Essas trecircs formas elementares consshytroacuteem a casa sonora e seu territoacuterio Elas correspondem agraves trecircs modalidades de um ser de sensaccedilatildeo pois a aacuteria eacute uma vibraccedilatildeo o motivo eacute um enlace um acoplamen-

I244 lIL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

jbull

to enquanto o tema natildeo fecha sem se descerrar fender e tambeacutem abrir Com efeito o fenocircmeno musical mais importante que aparece agrave medida que os compostos de sensaccedilotildees sonoras se tornam mais complexos eacute que sua clausura ou fechamento (por junccedilatildeo de suas molduras de suas extensotildees) se acompanha de uma possibilidade de abertura sobre um plano de composiccedilatildeo cada vez mais ilimitado Os seres de muacutesica satildeo como os seres vivos segundo Bergson que compensam sua clausura individuante por uma abertura feita de modulaccedilatildeo reshypeticcedilatildeo transposiccedilatildeo justaposiccedilatildeo Se consideramos a sonata encontramos aiacute uma forma enquadraacutente parshyticularmente riacutegida fundada sobre um bitematismo e da qual o primeiro movimento apresenta as seguintes dimensotildees exposiccedilatildeo do primeiro tema transiccedilatildeo exshyposiccedilatildeo do segundo tema desenvolvimentos sobre o pric rileiro ou o segundo coda desenvolvimento do primeiro com modulaccedilatildeo etc Eacute toda uma casa com seus aposhysentos Mas eacute antes o primeiro movimento que forma assim uma ceacutelula e eacute raro que uiacuten grande muacutesico siga a forma canocircnica os outros moviacutementos podem abrirshyse notadamente o segundo pel~ tema e variaccedilatildeo ateacute que Liszt asseg~re uma fusatildeo dos movimentos no poeshyma sinfocircnico A sonata aparece entatildeo antes como uma forma-cruzamento em que da junccedilatildeo das dimensotildees musicais da clausura dos compostos sonoros nasce a abertura de um plano de composiccedilatildeo

Deste ponto de vista o velho procedimento tema e variaccedilatildeo que manteacutem a moldura harmocircnica do tema daacute lugar a uma espeacutecie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composiccedilatildeo (Chopin Schumann Liszt eacute um novo momento essencial porshyque o trabalho criador natildeo mais versa sobre os comshyponentes sonoros motivos e temas abrindo um plano

245Percepto Mecto e Conceito

~~

mas ao contraacuterio versa diretamente sobre o proacuteprio plano de composiccedilatildeo para fazer nascer dele composshytos bem mais livres e desenquadrados quase agregados incompletos ou sobrecarregados em desequiliacutebrio pershymanente Eacute a cor do som que conta cada vez mais Passa-se da Casa ao Cosmos (segundo uma foacutermula que a obra de Stockhausen retomaraacute) O trabalho do plano de composiccedilatildeo se desenvolve em duas direccedilotildees que engendraratildeo uma desagregaccedilatildeo da moldura tonal os imensos fundos da variaccedilatildeo contiacutenua que fazem enshylaccedilar e se unir as forccedilas tornadas sonoras em Wagner ou os tons justapostos que separam e dispersam as forshyccedilas agenciando suas passagens reversiacuteveis em Debussy Universo-Wagner universo-Debussy Todas as aacuterias todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquashydrados infantis domeacutesticos profissionais nacionais territoriais satildeo carregados no grande Ritornelo um potente canto da terra - o desterritorializado - que se eleva com Mahler Berg ou Bartoacutek E sem duacutevida o plano de composiccedilatildeo engendra sempre novas clausuras como na seacuterie Mas sempre o gesto do muacutesico consiste em desenquadrar encontrar a abertura retornar o plashyno de composiccedilatildeo segundo a foacutermula que obceca Boushylez traccedilar uina transversal irredutiacutevel agrave vertical harmocircshynica como agrave horizontal meloacutedica que conduz blocos soshynoros agrave individualizaccedilatildeo variaacutevel mas tambeacutem abri-las ou fendecirc-las num espaccedilo-tempo que determina sua denshysidaae e seu percurso sobre o plano30 O grande ritorshynelo se eleva agrave medida que nos afastamos dacasa messhy

30 Boulez notadamente Points de repere Ed Bourgois-Le Seuil p 159 e segs (Pensez la musique aujourdhui Ed Gonthier p 59-62) A eXtensatildeo da seacuterie em duraccedilotildees intensidades e timbres natildeo eacute um ato de clausura mas ao contraacuterio uma abertura do que se fechava na middotseacuterie das alturas

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte246

--~=shyq

mo se eacute para retornar a ela jaacute que ningueacutem mais nos reconheceraacute quando retornarmos

Composiccedilatildeo composiccedilatildeo eis a uacutenica definiccedilatildeo da arte A composiccedilatildeo eacute esteacutetica e o que natildeo eacute composto natildeo eacute uma obra de arte Natildeo confundiremos todavia a composiccedilatildeo teacutecshynica trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciecircncia (matemaacutetica fiacutesica quiacutemica anatomia) e a comshyposiccedilatildeo esteacutetica que eacute o trabalho da sensaccedilatildeo Soacute este uacuteltishymo merece plenamente o nome de composiccedilatildeo e nunca uma obra de arte eacute feita por teacutecnica ou pela teacutecnica Certamente a teacutecnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra as palavras e a sintaxe em literatura natildeo apenas a tela em pintura mas sua preparashyccedilatildeo os pigmentos suas misturas os meacutetodos de perspectiva ou ent~o os doze sons da muacutesica ocidental os instrumentos as escalas as alturas E a relaccedilatildeo entre os dois planos oacute

plano de composiccedilatildeo teacutecnica e o plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica natildeo cessa de variar historicamente Sejam dois estados oponiacuteveis na pintura a oacuteleo num primeiro caso o quadro eacute preparado por um fundo branco sobre o qual se desenha e se dilui o desenho (esboccedilo) enfim se potildee a cor as sombras e as luzes No outro caso o fundo se torna cada vez mais espesso opaco e absorvente de modo que ele se colore na divisatildeo e o trabalho se faz em plena massa sobre uma gama escura as correccedilotildees substituindo o esboccedilo o pintor pintaraacute sobre cor depois cor ao lado de cor as cores se tornando cada vez mais relevos a arquitetura sendo assegurada pelo contraste dos complementares e a concordacircncia dos anaacuteshylogos (Van Gogh) eacute por e nagrave cor que se encontraraacute a arshyquitetura mesmo se eacute preciso renunciar aos relevos parareshyconstituir grandes unidades colorantes Eacute verdade que Xavier de Langlais vecirc em todo este segundo caso uma longa decashydecircncia que caino efecircmero e natildeo chega a restaurar uma ar-

Percepto Mecto e Conceito 247

quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem duacutevida esta observaccedilatildeo coloca ao meshynos negativamente a questatildeo do progresso na arte jaacute que Langlais considera que a decadecircncia comeccedila jaacute depois de Van Eyck (um pouco como alguns param a muacutesica no canto greshygoriano ou a filosofia em Santo Tomaacutes) Mas eacute uma obsershyvaccedilatildeo teacutecnica que concerne somente ao material aleacutem de que a duraccedilatildeo do material eacute muito relativa a sensaccedilatildeo eacute de uma outra ordem e possui uma existecircncia em si enquanto o mashyterial dura A relaccedilatildeo da sensaccedilatildeo com o material deve pois ser avaliada nos limites da duraccedilatildeo do material qualquer que ela seja Se haacute progressatildeo em arte eacute porque a arte soacute pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retonws linhas de partilha mudanccedilas de niacuteveis e de escashy

I las Deste ponto de vista a distinccedilatildeo de dois estados da lf

pintura a oacuteleo toma um aspecto inteiramente diferente esshyI

teacutetico e natildeo mais teacutecnico- esta distinccedilatildeo natildeo conduz evishydentemente ao representativo ou natildeo jaacute que nenhuma arte nenhuma sensaccedilatildeo jamais foram representativas

li No primeiro caso a sensaccedilatildeo se realiza no material e natildeo existe fora desta realizaccedilatildeo Diriacuteamos que a sensaccedilatildeo (o composto de sensaccedilotildees) se projeta sobre o plano de composhysiccedilatildeo teacutecnica bem preparado de sorte que o plano -de comshyposiccedilatildeo esteacutetica venha recobri-lo Eacute preciso pois que o mashyterial compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graccedilas aos quais a sensaccedilatildeo projetada natildeo se realiza somenshyte cobrindo o qu1dro mas segundo uma profundidade A arte desfruta entatildeo de uma aparecircncia de transcendecircncia que se exprime natildeo numa coisa por representar mas no caraacuteter paradigmaacutetico da projeccedilatildeo e no caraacuteter simboacutelico da persshypectiva A Figura eacute como a fabulaccedilatildeo segundo Bergson tem

31 Xavier de Langlais La technique de la peinture agrave lhuile Ed Flammarion (E Goethe Traiteacute des couleurs Ed Triades sect 902-909)

248 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 249

middot i

uma origem religiosa Mas quando ela se torna esteacutetica sua transcendecircncia sensitiva entra numa oposiccedilatildeo surda ou abe-rshyta com a transcendecircncia suprasensiacutevel das religiotildees

No segundo caso natildeo eacute mais a sensaccedilatildeo que se realiza no material eacute antes o material que entra na sensaccedilatildeo Cershytamente a sensaccedilatildeo natildeo existe mais fora dessa entrada e o plano de composiccedilatildeo teacutecnica natildeo mais tem autonomia a natildeo ser no primeiro caso natildeo vale jamais por si mesmo Mas diriacuteamos agora que ele sobe no plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica e lhe daacute uma espessura proacutepria como diz Damisch inshydependente de qualquer perspectiva e profundidade Eacute o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transshycendecircncia aparente ou-de um modelo paradigmaacutetico e conshyfessam seu ateiacutesmo inocente seu paganismo E sem duacutevida entre estes dois casos estes dois estados da sensaccedilatildeo estes dois poacutelos da teacutecnica as transiccedilotildees as combinaccedilotildees e as coexistecircncias se fazem constantemente (por exemplo o trashybalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens) satildeo poacutelos abstratos ao inveacutes de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com oacuteleo e solvente se volta cada vez mais na direccedilatildeo do segundo poacutelo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composiccedilatilde~ esteacutetica -Eacute por isso -que eacute tatildeo falso definir a sensaccedilatildeo na pintura moderna pela admissatildeo de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a esshypessura natildeo precisa ser larga ou profunda Pocircde-se dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfiacuteshycie basta-lhe apoiar-se sobre os vazios e os plenos do pashypel Canson Eacute uma pintura que natildeo mais tem fundo porshyque o baixo emerge a superfiacutecie eacute esburacaacutevel ou o plashyno de composiccedilatildeo ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspecshytiva independentemente das sombras e mesmo da ordem

i r I li

I 32 Cf Christian Bonnefbi intervieweacute et commenteacute par Yvesshy

I Alain Bois Macula S-6

33 Damisch Fenecirctre jaime cadmium ou les dessous de la peinture Ed du Seuil pp 275-305 (e p 80 a espessura do plano em Pollock) Dashy

li misch eacute o autor que mais insistiu sobre a relaccedilatildeo -arte-pertsamento pinshytura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instauraacute-la Mallarmeacute fazia da espessura do livro uma dimensatildeo distinta da proshy) fundidade cf Jacques Scheacuterer Le livre de Mallarmeacute Gallimard p 55shy

I tema que Boulez retoma por sua vez para a muacutesica (Points de repere p 161) iI

li 250 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

I I

cromaacutetica da cor (o colorista arbitraacuterio) Natildeo mais se recoshybre faz-se subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar Eacute uma promoccedilatildeo do solo e a escultura pode torshy

I nar-se plana jaacute que o plano se estratifica Natildeo magraveis se pinshyI ta sobre mas sob A arte informal levou muito longe

estas novas potecircncias da textura essa elevaccedilatildeo do solo com I Dubuffet e tambeacutem o expressionismo abstrato a arte mishy

nimalista procedendo por impregnaccedilotildees fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atraacutes de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem agrave vista do pintor o que enshytregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes estados a pintura eacute-penshysamento a visatildeo existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta

Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdashydeiro conceito mostrando que o tranccedilado poderia bem preencher para a pintura futura funccedilatildeo anaacuteloga agravequela que foi a da perspectiva O quemiddotnatildeo eacute proacuteprio da pintura jaacute que Damisch reencontra a mesma distinccedilatildeo no niacutevel do plano arquitetura quando Scarpa por exemplo rejeita o movishymento da projeccedilatildeo e os mecanismos da perspectiva para ins~ crever os volumes na espessura do proacuteprio plano33 bull E da literatura agrave muacutesica uma espessura material se afirma que

--~ middot

natildeo se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal Eacute umr I traccedilo caracteriacutestico da literatura moderna quando as palashyr vras e a sintaxe sobem no plano de composiccedilatildeo e o cavam I em lugar de colocaacute-lo em perspectiva E a muacutesica quando

renuncia agrave projeccedilatildeo como agraves perspeCtivas que impotildeem a alshyI tura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano soshynoro uma espessura singular da qual testemunham elemenshy

I tos muito diferentes a evoluccedilatildeo dos estudos parapiano que deixam de ser somente teacutecnicas para tornar-se estudos de

jmiddot composiccedilatildeo (com a extensatildeo que lhes daacute Debussy) a imshy

portacircncia decisiva que toma a orquestraccedilatildeo em Berlioz a i subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferashyI I ccedilatildeo dos afectos de percussatildeo com os metais as peles e as mashy

deiras e sua ligaccedilatildeo com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparaacuteveis do material (Varese) a redeshy

I finiccedilatildeo do percepto em funccedilatildeo do ruiacutedo do som bruto e I complexo (Cage) natildeo apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendecircnshy

cia a uma apariccedilatildeo natildeo-cromaacutetica do som num continuum infiiuumlto (muacutesica eletrocircnica ou eletro-acuacutestica)I

I Soacute haacute um plano uacutenico no sentido em que a arte natildeo

I comporta outro plano diferente do da composiccedilatildeo esteacutetica

I o plano teacutecnico com efeito eacute necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composiccedilatildeo esteacutetica Eacute sob esta conshydiccedilatildeo que a mateacuteria se torna expressiva o composto de senshysaccedilotildees se realiza no material ou o material entra no comshyI posto mas sempre de modo a se situar sobre um plano deI

I composiccedilatildeo propriamente esteacutetico Haacute muitos problemasI teacutecnicos em arte e a ciecircncia pode intervir em sua soluccedilatildeo

mas eles soacute se colocam em funccedilatildeo de problemas de composhysiccedilatildeo esteacutetica que concernem aos compostos de sensaccedilotildees e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus mateshyriais Toda sensaccedilatildeo eacute uma questatildeo mesmo se soacute o silecircncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em enshy

251Percepto Afecto e Conceito

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 2: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

O jovem sorri na tela enquanto ela dura O sangue lashyteja sob a pele deste rosto de mulher e o vento agita um ramo um grupo de homens se apressa em partir Num roshymance ou num filme o jovem deixa de sorrir mas comeccedila~ raacute outra vez se voltarmos a tal paacutegina ou a tal momento~-

-~~~ C()IJSeEVltl~ _eeacute_ ~i~i~fl S2~~-~~--~-~lti q~e_ s_5_()ll~~ltl middot Conserva e se conserva em sijqid juris) embora de fato natildeo dure mais que s~~~upo~e-e ~-m~te~Trmiddot rquiZaatildeFn

middot iacuteJeacutectratilde~ -raatilde-zuumlr-~pr~ccedil~~A~~ccedil-i~~-rda--puuml-se~qiie- ti--_- haacute-ci~~-~J anos gesto que natildeo depende mais daquela que o fez O ar guarda a agitaccedilatildeo o sopro e a luz que tinha tal dia do ano passado e natildeo depende mais de quem o resshypirava naquela manhatilde Se a arte conserva natildeo eacute agrave maneira da induacutestria _q~-~ ordfq~sS~uiordf lim~i~bratilde~~~T~middot middotp-~-I~Zeacuter~ecircruacute rar ~-- ~~i~~- Acoisa tornou-se desd~-~Tiacuteecircio~ -i~dependeiiie d~ seu ~odeio mas ela eacute independente tambeacutem de outros

p~so~agens eventuas quesa-oecircies proacuteprios coisas-artistas personagens de pintura respirando este ar de pintura E ela natildeo eacute dependente do espectador ou do auditor atuaisLgJ~

se limitam a experimentaacute-la num segundo momento se tecircm to~ccedil~f2E_i_ep_~~- E o criador~-~-tatildeo middotpf~-eacute i~d-~p~de~te- dotilde

I r middot crialtfJLPe~~-~-tQllQ~iccedilatildeodo~criadoq~~~middot~ -~on$iiji_~~Ccedil~~C I

middot-O que se conservamiddotatilde coisa Ol ~ olgt_r ccedille__qJt~ ~_JlmbQ_ccedilq d_r se~sqccedil_otilde---eiS-to~i~middot~~opsto~d~ perceptos ealectos- --~- ss middot

Os perceptos natildeo mais satildeo percepccedilotildees satildep independenshytes do estado daqueles gue os experimentam os afectos natildeo ~atildeo mais sentimentos ou afec otildees tra sbor~am a for a d-_

i queles que satildeo atravessados_pgr eles s sensaccedilotildees percepshy

tos e afectos~ue valem por si mesmos e excedem middot li qualquer vivido Existem na ausecircncia do homem podemos

dizer porque o homem tal como ele eacute fixado na pedra soshybre a tela ou ao longo das palavras eacute ele proacuteprio um cnmshy

I I posto de perceptos_e de_afectos__ A- obra de arte eacute um ser de

I I

1 1 I -- _ ___

sensaccedilatildeo e nada mais ela existe em si

Percepto Afecto e Conceito 213

Os acordes satildeo afectos Consoantes e dissonantes os acordes de tons ou de cores satildeo os afectos de muacutesica ou de pintura Rameau sublinhava a identidade entre o acorde e o afecto O artista cria blocos de perceptos e de afectos mas a uacutenica lei da criaccedilatildeo eacute que o composto deve ficar de peacute sozishynho o mai-dlfiacute~TrrquumleOatildertista o f~ccedila manter-se de peacute

_~ho Para isso eacute preciso por vezes muita inverossimilhanccedila geomeacutetrica imperfeiccedilatildeofiacutesica anomalia orgacircnica do ponshyto de vista de um modelo suposto do ponto de vista das pershycepccedilotildees e afecccedilotildees vividas mas estes erros sublimes acedem agrave necessidade da arte se satildeo os meios interiores de manter de peacute (ou sentado ou deitado) Haacute uma possibilidade pictural que nada tem a ver com a possi_uacute_liQ_ade fiacutesi~~2 _ ~ middot gue daacute agraves posturas mais acrooaacutetiCatildes--f~ccedila da verticalidade Em conshyt~rgtarticta tatildeiifagraves oEras que aspir-amagrave arte--iiatildeotilde_s_e mantecircm de peacute um soacute instante Manter-se de peacute sozinho natildeo eacute ter um alto e um baixo natildeo eacute ser reto (pois mesmo as c asas satildeo becircshybadas e tortas) eacute somente o ato pelo qual o composto de sensaccedilotildees criado se conserva em si mesmo Um monumenshyto mas o monumento pode sustentar-se em alguns traccedilos ou ein algumas linhas como uni poema de Emily Dickinson Do croqui de um velho burro exausto que maravilha eacute feito com dois traccedilos mas postos sobre bases imutaacuteveis onde a sensaccedilatildeo melhor testemunha anos de trabalho persistente tenaz desdenhoso 1 O modo menor em muacutesica eacute uma proshy

il i va tanto mais essencial quanto lanccedila ao muacutesico o desafio Imiddot

de roubaacute-lo a suas combinaccedilotildees efecircmeras para tornaacute-lo soacutelido e duraacutevel auto-c~rtservante mesmo eUl posiccedilotildees acrobaacutetishycas O som deve tanto ser mantido em sua extinccedilatildeo quanto

1 Edith Wharton Les metteurs en sacircme Ed 10-IacuteS p 263 (Trata-se de um pintor acadecircmico e mundano que remiricia a pintar depois de ter descOberto um pequeno quadro de um contemporacircneo desconhecido EI eu eu natildeo tinha criado nenhuma de minhas obras eu as tinha simplesshyl mente adotado

214 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

r em sua produccedilatildeo e seu desenvolvimento Atraveacutes de sua adshyi miraccedilatildeo por Pissaro por Monet o que Ceacutezanne criticava f nos impressionistas era que a mistura oacuteptica das cores natildeoIi

bastava para fazer um composto suficientemente soacutelido e

I duraacutevel como a arte dos museus como a perpetuidade do sangue em Rubens2 bull Eacute uma maneira de falar porque Ceacutezanne

l-

I natildeo acrescenta algo que conservaria o impressionismo ele procura uma outra solidez outras bases e outros -blocos

l A questatildeo de saber se as drogas ajudam o artista a criar

esses seres de sensaccedilatildeo se fazem parte dos m eios interiores

l se nos conduzem realmente agraves laquoportasda percepccedilatildeo se nos entregam aos perceptos e aos afectos recebe uma resposta geshy

I ral na m edida em que o que foi composto sob efeito de dro-I ga eacute o mais das vezes extraordinariamente friaacutevel incapaz deI I se conservar por si mesmo desfazendo-se ao mesmo tempo I que se faz ou que o olhamos POQlt_I_lo~ tamQeacutelll_ordf_ltili~~--ordmmiddotL _ r

I i desenhos de crianccedilas ou antes comover~~=-E~~-~9E2 e~_i_~-- _ i r~~9_~atildentenham oepeacute e soacute pare cem com coisa de Klee

otilde~ de Miroacute--~atildeo-~-ih~otilde-~ --~itotildemiddot r~~-p-Aspim~~cismiddot--shy_____~ middot------~ - middot-shyloucos ao contraacuterio sustentam-se quase seacutempre m-~~-so2lt

~ondiccedilatildeo de~~em~~~-~d~s-~J~ -~~ordf~i~~=~~~~Ssti~-~~~i~__ Todavia os blocos precisam de bolsotildees de ar e de vaz1o po1s mesrno o vazio eacute uma sensaccedilatildeo toda sensaccedilatildeo se compotildee com o vazio compondo-se consigo tudo se manteacutem sobre a terra e no ar e conserva o vazio se conserva no vazio conservanshydo-se a si mesmo U~J2od~_secterip~iramente RE_~ench_~shy

da a ponto d~l~l~sectI]l_Q_QordfLJatilde() pa_~sect~l~UumlR2Lela_~-~~-shy~m-obra de_~~~~~J _ccedil=Qm~ltj_~2 Qi92E--lt~-~ordf~$~sectf atildea vaziosSUfiCientes__Qara permitirque neles saltem cavalos lt~1~~~ mecircsect_Qio~ja~P~1~v~I~~rad~QI~~osT3~---------middot-middot

2 Conversations avec Ceacutezanne Ed Macula (Gasquet) p 121

3 Cf Franccedilois Cheng Vide et plein Ed du Seuil p 63 (citaccedilatildeo do pintor Huang Pin-Hung)

Percepto Afecto e Conceito 215

Pintamos esculpimos compomos escrevemos com senshysaccedil~es ~intamos esculpimos compomos e~crevemos senshy

sectaccediloesect_ ~~~eacutelccedil~~-~~0 gerc~pt~~~natilde satildeo percepccedilotildees que remetenam a um objeto (referecircncia) se se assemelh~ a algo eacute uma semelhanccedila produzida por seus proacuteprios meios e_~ sorriso s~-~~~re-1~--ampE~~fecircito-ae~cotildereacuteSdeacute traccedilos e so~f)~~-=-1~JuzJe a senel~anccedila pode imp-eg~bra

e arte e porque a sensaccedilao so remete a seu material ela eacute 0 percepto ou o afecto do material mesmo o sorriso de oacuteleo0 gesto de terra cozida o eacutelan de metal o acocorado da pedra

~ J~~middot romana e o elevado da pedra goacutetica E o material eacute tatildeo dishyjtt~_gtverso em cada caso (o suporte da tela o agente do pincel ou

~~ da brocha a cor no tubo) que eacute difiacutecil dizer onde acaba e onde comeccedila a sensaccedilatildeo de fato a preparaccedilatildeo da tela 0t d ~1 d rao o pe o o pmcel fazem evidentemente parte da senshy

saccedilao e muitas outras coisas antes de tudo isso Como a

~=-~accedilatildeo pode_ia c~EY~e sem um material capaz de ~__~as_~ mais curto que seja ~-te~-p~--~~~-t~~p~ middoteacutemiddot-~~ s1derado como d -------------middot--middotmiddot---middot----middotmiddot--middot--middot middotmiddot middotmiddot middot--middot---shy- -----~middot-middot~-~----~~E~--E--~~il9j__ yeremos como o plano do ma-renal sobe irresistivelmente e invade o plano de composiccedilatildeo das sensaccedilotildees mesmas ateacute fazer parte dele ou ser dele indisshyceniacutevel Diz-se neste sentido que o pintor eacute pintor e nada alem de u middot m pmtor com a cor captada -como sai fora do tu~~ com a marca um depois do outro dos pecirclos do pinshy

Imiddot cel com este azul que natildeo eacute um azul de aacutegua mas um azul I middot

de pmtura liacutequida E todavia a sensaccedilatildeo natildeo eacute idecircntica ao material ao menos de direito O que se conserva de direishyto natildeo eacute o material~ que constitui somente a condiccedil~o de fatomiddot mas enquanto eacutepreenchida esta condiccedilatildeo (enquanto a tela a cor ou d - middot - middot a pe ra nao VIrem po) o que se ccedilQnserva em si eacute o percepto ou o afecto ~esmo se o middotmaterial seacute)dura~se alguns

I

sgundos d~ria2~ccedilatildeo o poder de middotexistir e d~-~-~shy_er~__~rn=~i na eternidade que coexiste com estaCu~ta-dushy

_r_atildeo_~~~~~I~~~lltE~I-ordfBillsL~t~m~qi_d~~~

li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

a sensaccedilatildeo desfruta ~~s~~Lesrr2~fl~EtordmEA sensaccedil~ natildeo s~ realiz~ _ -~--~~~~~~~~--~__rl22ll~~ri~J ss~u~m-~~sect$~~__ccedil_agravep no Plt~~pto ()~ n~=~~~Ofldl a ~at~shyriatilde se torna expressiva E o afecto que e metahco cnstahshyno peacutetiacuteeo etc e a sensaccedilatildeo natildeo eacute colorida ela eacute colorante como diz Ceacutezanne Eacute por isso que quem soacute eacute pintor eacute tamshy

beacutem mais que pintor porque ele faz vir diante de noacutes na frente da tela fixa natildeo a semelhanccedila mas a puq sensaccedilatildeo da flor torturada da paisagemcortada sulcada e comprishyda devolvendo a aacutegua da pintura agrave natureza4 Soacute passhysamos de um material a outro como do violatildeo ao piano do pincel agrave brocha do oacuteleo ao pastel se o composto de sensashyccedilotildees o exigir E por mais fortemente que um artis___ se ir_g~_shy

resse pela ciecircnc~j_arpJtis_umcompQSto-deuro-se-FlSaltiOtildees--se -conshy

fundiraacute com as misturas do material que a ciecircncia deter-

rPfi~_ltE~~a~middota~ccedilQiSordf_$ ccedilordmmordmmo~ti~middot~Pi[ordm~D~ill~~i~ -~ d shyo~~r~_QQj~S$=-~- J1SJfiPLeSSJOUlStas

O objetivo da arte om os meios do material eacute arrancar o percep pccedilotildees do objeto e dos estados de um sushyjeito percipiente arr~ri~-~~fecto ~~~~ilt~ssect_ltsectJ como passashygem de um estado a um outro Extrair um bloco de sensaccedilotildees um puro ser de sensaccedilotildees Para isso eacute preciso um meacutetodo que varie com cada aacuteutor e que faccedila parte da obramiddot basta comshyparar Proust e Pessoa nos quais a pesquisa da sensaccedilatildeo como ser inventa procedimentos diferentes5 Os escritores

4 Artaud Van Gogh le suicideacute de la socieacuteteacute Gallimard Ed Paule Thevenin p 74 82 Pintor nada senatildeo pintor Van Gogh dominou os meios d a pura pintura e natildeo os ultrapassou mas o maravilhoso eacute que este pintor que soacute eacute pintor eacute tambeacutem de todos os pintores natos o que mais faz esquecer que temos a ver com a pintura

5 Joseacute Gil consagra um capiacutetulo aos p r ocedimentos pelos quais Pesshysoa extrai o percepto a partir de percepccedilotildees vividas notadamente emmiddotOde mariacutetima (Fernando Pessoa ou la rneacutetaphysique des sensations Ed de la Diffeacuterence cap II)~

I

Percepto Mecto e Conceito 217 216

quanto a isto natildeo estatildeo numa situaccedilatildeo diferente da dos pinshytores dos muacutesicos dos arquitetos O materiaJ~~E~icular dos escritores satildeo as palavras e a sint~xe sintaxe criada que __~~~middot--~gt-~c---bull~middotmiddot bullmiddot~ middot middotmiddot middot- middot~middotobullmiddotmiddot~middot~middot~bullbull~~-~ ~ ~_-=--~~--_~ bull--middot-middotbullbullgtgtgt_ ~ __bull _ ~lt~middot-~bull --~-bullk----bullbull bull-middot_

se ergue irresistivelmente em sua obra e--~~r~~ltl ~~-~~-~-~-a2middot Pacircrltl sai-dacircs perecircepCcediloes-viViecircfatildeS-nmiddota~Otilde--basta __ evidentemente memoacuteria que convoque somente antigas percepccedilotildees nem uma memoacuteria involuntaacuteria que acrescente a reminiscecircncia como fator conservante do presente A memoacuteria interveacutem

J2QIJkO na arte (mesmo e sobretudo em Proust) Eacute verdade que toda a obra de arte eacute um monumento Inas o monumento natildeo eacute aqui o que comemora um passado eacute um bloco de senshy

Salti_lt_esectPJ~_sect_t_QtS~~q_ue_sQ Qlt_Y~ordfsectL9Ssect~UumlYi irsectQFia_conshy I l1iI I servaccedilatildeo e datildeo ao acontecimento o composto que o celebra

I

~gtmiddot (5-tc-d~- --~onumento natildeo eacute a memoacuteria mas a fabulaccedilatildeoI ~ rJ

_eacute N~ s es~reve cot_I lem~ranccedila~-~~_~~~5~~2~3s por bl~os ~~ )ji $ de ~nfa~c1a_ ~~~_lti_evires~cp~~ccedil__~2_g_J2res~E~ A musica

l middot middotl middot esta cheia disso Para tanto e preciso nao memona mas um rS-fC- material complexo que natildeo se encontrana memoacuteria mas nas palavras nos sons Memoacuteria eu te odeio Soacute seatinge o

percepto ou o afecto como seres autocircnomos e suficientes que natildeo devem mais nada agravequeles que os experimentam_ou os exshyperimentaram Combray como jamais foi vivido como natildeo eacute nem seraacute vivido Combray como catedral ou monumento

E se os meacutetodos satildeo muito diferentes natildeo somente seshygundo as artes mas segundo cada autor pode-se no entanshyto caracterizar grandes tipos_El~l1mentais ou variedades de _omostos de s~nsa~~~~ que caracteriza a senshy ~accedilao simE_le~ (mas ela Ja e dtuave~ composta porque ela sobe ou desccedile implica uma diferenccedila de niacutevel constitutiva segue uma corda invisiacutevel mais nervosa que cerebral)~ lace ou o corpo-a-corpo (quando~amps ressoam uma na outra esposando-se tatildeo estreitamente num corposhya-corpo que eacute puramente energeacutetico)() recuo a divisatildeo

distensiiQ uando duacuteatildesse~s~~Otilde~~~~~ ao contraacuteshy

rio se distanciam mas para soacute serem reunidas pela luz o ar oUacuteOtilde~aziOtilde q~ inscrevem entre elas ou nelas como uma cunha ao mesmo tempo tatildeo densa e tatildeo leve que se estenshyde em todos os sentidos agrave medida que a distacircncia cresce e forma um bloco que natildeo tem mais necessidade de qualquer

Imiddot base) Vibrar a sensaccedilatildeo - acoplar a sensaccedilatildeo - abrir ou ff_vder ~-~ecircsViZlatildeii~eii~ordfccedilordfccedil~middot-~scugif~3~E-emiddots-~iiesectsect_es_tL pccedilgts quase em estado puro com suas sensaccedilotildees de pedra de m~rrriC~d_~middot~tCcedilq~~~~ibram segundo a ordem dos temshypos fortes e dos tempos fracos das saliecircncias o~ das reenshytracircnCias seus poderosos corpo-a-corpo que os entrelaccedilam seu arranjo de grandes vazios entre um grupo e outro e no interior de um mesmo grupo onde natildeo mais se sabe se eacute a luz se eacute o ar que esculpe ou eacute esculpido

O romance se elevou frequumlentemente ao percepto natildeo a percepccedilatildeo da charneca mas a charneca como percepto etn

Hardy os perceptos oceacircnicos de Melville os perceptos ur~ banas ou especulares em Virginia Woolf A paisagem vecirc Em geral qual o grande escritor que natildeo soube criar esses seres de sensaccedilatildeo que conservam em si a hora de um dia o grau do calor de um momento (as colinas de Faulkner a estepe

r de Tolstoi ou a de T~hekov) 9 EerceE_~~~r_~~~~~~-~1_1-~--~~ terior ao homem na ausecircncia do homem Mas em todos estesI -

d~~~l~~~~~1~il~~t~~~Ii~~~~~~ I i~E~~J~~J~Jgt~~_ps~~~Jsmamp~lsa~ d-2~tqE ~-- c2~o

a cidadepoderia sermiddotsem h9~nQ~LiDl~lgt JLccedil_J~_Q~sectJ2Cl19_ sentz~Ih~q~~-middot~r~~~~fiacute~t~~esmCcedil=~~~Jecircn~2$~~IB-~rapeje I

middotEcirca-middote-iliacutegffia(f-~qii~nt~~-ie~~~~~~do) deCeacutezanne o ho-~ mem ausente mas inteiro na paisagem Os personagens natildeo podem existir e o autor soacute pode criaacute-los porque eles natildeo percebem mas entraram na paisagem e fazem eles mesmosI parte do composto de sensaccedilotildees Eacute Ahab que tem as percepshyccedilotildees do mar mas soacute as tem porque entrou numa relaccedilatildeo com

218 11 Filosofia Ciecircnci~ Loacutegica e Arte Percepto Afecto eConceito 219

-----

11~11 l i middot11

ili j f li

IJiiJ Moby Dick que o faz tornar-se-baleia e forma um composshy11jli to de sensaccedilotildees que natildeo precisa de ningueacutem mais Oceano jl

1j[i Eacute Mrs Dalloway que percebe a cidade mas porque entrou

lmiddotl middot na cidade como uma lacircmina atraveacutes de tudo e se tornou I i ela mesma imperceptiacutevel Os afectos satildeo precisamente esshy

1 ilJ tf~lfre~Eo httE2L~Z~S2fl-O ~~ifiPi9il middotI 1 tre eles a cidade) satildeoas paisagens 1Ct-EtCcedilJJEfftUreshy

i~ -H- 4a~fe~~~~~~~1~~~ZE~~~e~1i 1i1

1 -lfffr 1

~resta~~=~middotmiddot_~d--~middot~middot~-~~-~sg~~middotmiddot~~Qdo ~noacutes nos

Jiijl 1 tornamos contempla~d~=middot~~~T~dcecircisatildeo devi Tornamoshy- nos universo Devires animal~o ecular devir zero

1 i Kleist eacute sem duacutevida quem mais escreveu por afectos serviushy

11 do-se deles como pedras ou armas apreendendo-os em deshy1 vires de petrificaccedilatildeo brusca ou de aceleraccedilatildeo infinita no 1 1

~ ~ ~~ 1 devir-cadela de Pentesileacuteia e seus perceptos alucinados Isto 1~ I eacute verdadeiro para todas as artes que estranhos devires deshy

) I senca~~iam a muacutesica tr~veacutes de suas aisage~s meloacutedicas 11middot1 e seus personagens ntmtcos como dtz Messtaen componshy

111 do num mesmo ser de sensaccedilatildeo o molecular e o coacutesmiCo

IIJ as estrelas os aacutetomos e os paacutessaros Que terror invade a ~middotJ~ cabeccedila de Van Gogh tomada num devir girassol Sempre eacute

1 middotlj preciso o estilo-- a sintaxe de um escritor os modos e ritshy1~ 1 ~~~ mos de um m~co os traccedilos e as cores de um pintor- para

i1

i~ l fi ~~

1 6 Ceacutezanne op cit p 113 Cf Erwin Straus Du sens des sensEd ji Millon p 519 as grilndes paisagens tecircm todas elas um caraacuteter visioshy

j 111 naacuterio A visatildeo eacute o que d~ invisiacutevel se torna visiacutevel a paisagem eacute invisiacutevel1

I imiddot middot I nos perdemos Para cheshy~ porque quanto mais a conquistamos mais nelamiddotmiddot11middot d

I gar agrave paisagem devemos sacrificar tanto quanto middotpossiacutevel toda etermishy

i i naccedilatildeo temporal espacial objetiva mas este abandoacuteno natildeo~tinge somentei I J o objetivo ele afeta a noacutes mesmos na mesma medida Na paisagem deishy

~ middot xamos de ser seres histoacutericos isto eacute seres eles mesmos objetivaacuteveis Natildeo ~ middot~~ temos memoacuteria para a pai~agem natildeo temos memoacuteria nen1 mesmo para

~ noacutes na paisagem Sonhamos em pleno dia e com os olhos abertos SomomiddotsI 1 furtados ao mundo objetivo mas tambeacutem a noacutes mesmos Eacute o sentir

li 220 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

se elevar das percepccedilotildees vividas ao percepto de afecccedilotildees vividas ao afecto

Insistimos sobre a arte do romance porque eacute a fonte de um malentendido muitas pessoas pensam que se pode fazer um romance com suas percepccedilotildees e suas afecccedilotildees suas lemshybranccedilas ou seus arquivos suas viagens e seus fantasmas seus fiacutelhos e seus pais os personagens interessantes que pocircde enshycontrar e sobretudo o personagem interessante que eacute forccediloshysamente ele mesmo (quem natildeo o eacute) enfim suas opiniotildees para soldar o todo Invocam-se para tagravento grandes autores que soacute teriam contado sua vida Thomas Wolfe ou Miller Obteacutemshyse geralmente obras compostas em que algueacutem se agita muishyto mas na Jf_QCcedil-J~-deum-Paiq_~ soacute poderia encontrar em si mesmo 6-f~()mance do jornalista) Nada nos poupam na aushy

---middot--~ secircncia de qualquerTiatildeotildeatildelnotilderealmente artiacutestico Natildeo precisashy

mos alterar m~ito a cr~ordfdag~~Q_91~~~-P-~9_lt_y~_ nem o d-ecircmiddotshysesperoacute pelo qual se passou para produzir mais-~~---~ez

oacuteptmao que~-_ferjJp~nte~ordfi~-ordfR~fSfj_qsiil~S2ii~ii~i~ --ccedilatildeotildelossellini viu nisso uma razatildeo para renunciar agrave arte a arte atildeelXou-se invadir demais pelo infantilismo e pela crueldade toi nando-se simultaneamente cruel e chorosa gemebunda e satisshyfeita de modo que era_melhor renunciar7 O mais interessante eacute que Rossellini via a mesma invasatildeo na pmtura Mas eacute antes deI

I mais nada a literat~a que natildeo parou de manter este equiacutevoco com o vivido Pode acontecer mesmo que se tenha um grande senso de observaccedilatildeo e muita irrlagill_accediliiotilde~eacutepltSsiacutevel escre~~~n

P~ES~~-afecccedilotildees op~iotildeesMe~Otilde nosmiddotmiddot~an~~~~e~~-middotshyl autobiograacuteficOtildesvemos cOtildentrOtildentarem-se cruzarem-se opiniotildees de uma multidatildeo de personagens cada opiniatildeo sendo funccedilatildeo das percepccedilotildees e afecccedilotildees de cada um segundo sua situaccedilatildeo social e suas aventuras individuais sendo o conjunto tomado numa -8 vasta corrente que seria a opiniatildeo do autor que se divid~ par~ t-)l1--middot~~~ -- --middot-~=~~_~ --~-- shy

I bullmiddotmiddot ~middot ~_7 Rosselini Le cineacutema reacuteveacuteleacute Ed de lEtoile p 80-82

Percepto Afecto e Conceito 221

~ecai~~s-~QfCcedil_Qsect__]2etSQILltl~-UsectQg___~-S~Ccedil9~ls~gtJ~r~~q~~ -~-1~ -~~2~lt22-~ltJ~llli-LiisectEa~eacute e_~~JLW~sectIDamptCcedilJYsccedilPJXeCcedila~agraude JsguacuteadoampQmans~d~JiordfkhtilL(felizmente ele natildeo fica aiacute jusshytamente na base paroacutedica do romance )

AJ~ordf-Igtl1laccedilatildeo criadora nada tem a ver com uma lembranshyo-11 _ middotmiddotmiddot middotmiddotmiddotmiddotmiddot -~ -- middotmiddot ofPmiddotmiddot ccedila mesmo amplificada nem _ccedilgrn_UJll fantasma Com efeito l _ bull bullmiddotmiddot--middotbullmiddotbull middotmiddot middot---middotmiddotmiddotmiddotmiddot-bull middot -_ _ _ _

cJ middot middot ~ artista entre eles QJQII_~2Ccediltsect-ordf+-~~ccedil_ed5_2~~tad_1Eerc~p_shymiddot- ~ t1yo~ C ~~ J~~sagens afetivas do vividQ Eacute um vidente algueacutem

-~~_~ middot bull middotltmiddot~- middotmiddot middot middot bull bull middot middot middot middot - middot~ bull middot middot~-middot bullbull _ ___~ middot bullmiddot -ltuJo-~ middot)o - --middot - -- d gt middotmiddot~middotmiddot - middotbull-middot- middot-~middot~bull-bullgtbullbullbullbullOh __~~~T - -_ bullbull-middotmiddot middotmiddot

_-~g~~~--~~-S-9XA~middot Como contaria ele o que lhe aconteceu ou o que imagina jaacute que eacute uma sombra Ele viu na vida algo muito grande demasiado intoleraacutevel tambeacutem e a luta da vida com o que a ameaccedila de modo que o pedaccedilo de natureza que ele percebe ou os bairros da cidade e seus personagens aceshydem a uma visatildeo que compotildee atraveacutes deles perceptos desshyta vida deste momento fazendo estourar as percepccedilotildees vishyvidas numa espeacutecie de cubismo de simultanismo de luzcrua ou de crepuacutesculo de puacuterpura ou de azul que natildeo tecircm mais outro objeto nem sujeito senatildeo eles mesmos Chama-se de

-~~g2h12~~-~--g_ia~ltm~i ~~~-~-~~~-~~~~pa~~-d~-~2i~~ii9i~otilde ~~~~ Trata-se sempre de hberar a vida laacute onde ela eacute piishysiacuteoneira ou de tentar fazecirc-lo num combate incerto A morshyte do porco-espinho em Lawrence a morte da toupeira em Kafka satildeo atos de romancista quase insuportaacuteveis ~Qr___ vezes eacute preciso deitar na terra como faz o pintor Qara lo-

1~-middotbull--middot bull~~-~-middot-~middot-gt ~bull _ ~ middotmiddot - ~ - middot-~- _ _middotmiddot -middotmiddot~ -- bullbullmiddotmiddot ) middotbullmiddot middot --middot - middotbull - _)~ c _bull __~-----~middot middot ~

~-~~-1~~~a~~lt~--l2~Y2~middot~~~2=~=~J~-~fSltP~ Os perceptos podem ser telescoacutepicos ou microscoacutepicos datildeo aos personagens e agraves paisagens dimensotildees de gigantes como se estivessem repleshytos de uma vida agrave qual nenhuma percepccedilatildeo vivida pode atinshygir Grandeza de Balzac Pouco importa que esses personashygens sejam mediacuteocres ou natildeo eles se tornam giga~tes como Bouvard e Peacutecuchet Bloom e Molly Mercier e Camier sem deixar de ser o que satildeo Eacute por forccedila da mediocridade mes mQde_besteira oU-deinfacircmia_quepndemtrunar~se-natildeo-Sim- ple_tii~JordfisectJgt~~imples) mas gigantesco~Mesmo os anotildees

1

ou os invaacutelidos podem fazecirc-lo toda fabulaccedilatildeo eacute f~~~ ~e gigantesect~ Mediacuteocres ou grandiosos satildeo cellla~iadaflenshy~~_ylyos J2_ar_~-~E~I viviacuteveis ou vividos Thomas W olfe exshytrai de seu pai um gigante e Miller da cidade um planeta negro Wolfe pode descrever os homens do velho Catawha atraveacutes de suas opiniotildees imbecis e sua mania de discussatildeo o que faz eacute erigir o monumento secreto de sua solidatildeo de seu deserto de sua terra eterna e de suas vidas esquecidas despercebidas Faulkner pode criartambeacutem oh homens de Yoknapatawpha Diz-se que o romancista monumental se inspira ele mesmo no vivido e eacute verdade M de Charlus parece muito com Montesquiou mas entre Montesquiou e M de Charlus no final das contas haacute aproximadamente a mesma relaccedilatildeo que entre o catildeo-animal que late e o Catildeo consshytelaccedilatildeo celeste

Como tornar um momento do mundo duraacutevel ou fazecircshylo exititp~r--s-11Virginiwacircotildelfecirclaacute ~~--~~p-~t~q-~~-~i~ patilderacircmiddot a-pIacutenturamiddotOtilde~---ffiliacutesiacutecaiatildeiacuteito quanto para a escrita Sashy

turar cada aacutetomo Eliminar tudlt_lt_9~t eacute rt_~_QE_Qft~ ~middot- -middot

superfluidade~ tudo o que gruda em nossas percep__sotilde~-~-Elt___q

refffes-e-vivecirclas tuClOtilde_Otilde_q_~middot~middot --li~~~t~- otilde~9iii~itordf-P~fliacuteQ_

~~~~_ltfi~~t~~~Eacute~~~E~~sJotilde~i~~~~~~-ordf~-~~~p~r~~P-~ J~s~L ILQ~2IerlQ_Q~ b~iii9Jos_iatos_osoacuterdida~ma~-~I~~ em transparecircncia Colocar aiacute tudo e contudo saturar9

POtilde~t~tiacutengidoo-percepto como a fonte sagrada por ter visto a Vida no vivente ou o Vivente no vivido o romancisshyta ou o pintor voltam com olhos vermelhos e o focirclego curshy

8 No capiacutetulo II das Deux Sources Bergson analisa a fabulaccedilatildeo coshymo uma faculdade visionaacuteria muito diferente da imaginaccedilatildeo que consisshyte em criar deuses e gigantes potecircncias semi-pessoais ou presenccedilas efishycazes Ela se exerce inicialmente nas religiotildees mas desenvolve-se livreshymente na arte e na literatura

9 Virgiacutenia Woolf Journal dun eacutecrivain Ed 10-18 I p 230

222 11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 223

-~

to Satilde~ atletas natildeo atletas que teriam formado bem seus corpos e cultivado o vivido embora muitos escritores natildeo tenham resistido a ver nos _esportes urn meio de aumentar a arte e a vida mas antes atletas bizarros do tipo campeatildeo de jejum ou grande Nadador que natildeo sabia nadar Um Atletismo que natildeo eacute orgacircnico ou muscular mas um atleshy

-tismo afetivo que seria o duplo inorgacircnico do outro um atletismo do devir que revela somente forccedilas que natildeo satildeo as suas espectro plaacutestico 10 Desse ponto de vista os artisshytas satildeo como os filoacutesofos tecircm fregueJ-temente uma saudeshyziacutenha fraacutegil mas natildeo por causa de suas doenccedilas nem de suas neuroses eacute porque eleSViraacutem na_ida atildefgQCfe grande ccedill_ccedil_mais paratildeqliatildefquer um de grande demais para eles e gue QOcircs ndes ~atildedlscreta datildelliuumlrttamp1atildes-~~Jilt2ecirc~mbeacutem a fonte ~o fOcirclego q~llL~YiYJr_atraYi~~49s~clQ~l~ do_civishyflo (o 9~~~~E-~~P--ordf~~Q~-sauacutede) U~ dia saberemos talvez que natildeo havia art~ m~soacuteru~nte_~duumlina 1I

-------c5-[~ct-~iacutetapaa menos ~s afecccedilotildees que o pershycepto as percepccedilotildees Q afecto natildeo eacute a gassagltle um esshytado vivido a um outro mas o deviccedilnatildeqJ~_lJID-ordf9~QO homem __~~~--amp-- -middot---ltC-~=-----lt10-

Ahab natildeo imita Moby Dick e Pentesileacuteia natildeo se comporta como a cadela natildeo eacute uma imitaccedilatildeo uma simpatia vivida nem mesmo uma identificaccedilatildeo imaginaacuteria Natildeo eacute a semelhanshyccedila embora haja semelhanccedila Mas justamente eacute apenas uma semelhanccedila produzida Eacute antes uma extrema contiguumlidade num enlaccedilamento entre duas sensaccedilotildees sem semelhanccedila ou ao contraacuterio no distanciamento de uma luz que capta as duas num mesmo reflexo Andreacute Dhocirctel soube colocar seus pershy

10 Artaud Le theacuteacirctre et son double (Oeuvres completesGallimard IV p 154)

middot 11 Le Cleacutezio HAI Ed Flammarion p -7 (sou um iacutendio emboshyra natildeo saiba cultivar o milho nem talhar uma piroga ) Num texto ceacuteleshybre Michaux falava da sauacutedemiddotproacutepria agrave arte posfaacutecio a Mes proprieacuteshyteacutes La nuit remmue Gallimard p 193

li Filosofia Ciecircilcia Loacutegica e Arte

sonagens em estranhos devires-vegetais tornar-se aacutervore ou tornar-seaacutester natildeo eacute diz ele que um se transforme no outro

ma~~~~a--~um12 outro12 ~~~-~-lgg__ecirceacuteP~e ~~EN~shy

~2IDQ~~l)~sect~Sl9middot Eacute uma zona de indeterminaccedilatildeo de indiscerniacutebilidade como se coisas animais e pessoas (Ahab e Moby Dick Pentesileacuteia e a cadela) tivessem atingido em cada caso este ponto (todavia no infinito) que precede imeshydiatamente sua diferenciaccedilatildeo natural~gQ_JtlJccedil~Jgt~ ccedilhordfmallW---shy

~2-_f~g9_Em Pierre ou les ambiguiteacutes Pierre ganha a zona em que ele natildeo pode mais distinguir-se middotde sua meia-irmatilde Isabelle e torna-se mulher Soacute a vida cria tais zonas em que turbishylhonam os vivos e soacute a arte pode atingi-la e penetraacute-la em sua empresa de co-criaccedilatildeo Eacute que a proacutepria arte vive dessas ( zonas de indeterminaccedilatildeo quando o material entra na sen- - ~

Q) ssaccedilatildeo como numa escultura de Rodin Satildeo blocos A pintu- ri ra precisa d~ uma coisa diferente da habilidade do desenhista f f que marcana a semelhanccedila entre formas humanas e animais ( sect_

e nos faria assistir agrave sua metamorfose ~Jf_ccedilisQJ ~ordfltU~QltaacuteAt5 lltf __-9_~0_lot~_Ei~~EE f~pk~~~ d~-~~~ElaEf ~ de imp_r _a ex~~~~Uuml~~sielm-~~t~J-zonordfdlli1agravelEnios_e_sabeshy

-ffiili~CJllem eacute bulluuumlctrtaJ__~--flYoCcedilJJL~bumordfnordm_pruqw ordflg~Lsect_~J~ vanta como o triunfo ou o __~ony~nro_desuaindjsect~jnccediljig ~ssiacutenmiddot-cotildeyatilde-ou mesino Daumier Redon Eacute preciso que o artista crie os procedimentos e materiais sintaacuteticos ou plaacutesshyticos necessaacuterios a uma empresa tatildeo grande que recria por toda a parte os pacircntanos primitivos da vida (a utilizaccedilatildeo da aacutegua-forte e da aguatinta por Goya) O afecto natildeo opera cershytamente um retorno agraves origens como se se reencontrasse em termos de semelhanccedila a persistecircncia de um homem bestial ou primitivo sob o civilizado Eacute nos meios temperados de nossa civilizaccedilatildeo que agem e prosperam atualmente as zonas equatoriais ou glaciais que se furtam agrave diferenciaccedilatildeo dos gecircshy

12 Andreacute Dhocirctel Terres de meacutemoire Ed Universitaires p 225-226

Percepto Afecto e Conceito 225 224

neros dos sexos das ordens e dos reinos Soacute se trata de noacutes aqui e agora mas o que eacute animal em noacutes vegetal mineral ou humano natildeo mais eacute distinto- embora noacutes noacutes ganheshymos aiacute singularmente em distinccedilatildeo O maacuteximo de determishynaccedilatildeo emerge como _um claratildeo deste bloco de vizinhanccedila

Precisamente porque as opiniotildees satildeo funccedilotildees do vivishydo elas aspiram a um certo conhecimento das afecccedilotildees As opiniotildees insistem nas paixotildees do homem e sua eternidade Mas como observava Bergson temos a impressatildeo de que a oacute opiniatildeo desconhece os estados afetivos eque ela agrupa ou separa os que natildeo deveriam ser agrupados ou separados13 Jt Natildeo basta sequer como faz a psicanaacutelise dar objetos proishybidos agraves afecccedilotildees repertoriadas nem substituir as zonas de t indeterminaccedilatildeo por simples ambivalecircncias Um grande roshy ~

mancista eacute antes de tudo um artista que inventa afectos natildeo conheciacuteoosotildeu desconiiacuteecld(s e --os fazvir agrave luz do dia como- ------- ---------middot---- -------------middot-shy0 devir de seus personagens os estados crepusculares dos

- ~~-lei~~~os middotmiddotc-~middotaneacute~cr~middot-chreacutetien de Troyes (em relaccedilatildeo lI

com um conceito eventual de cavalaria) os estados de reshy 11

pouso quase catatocircnicos que se confundem com o dever segundo Mme de Lafayette (em relaccedilatildeo com um conceito de l

li quietismo) ateacute os estados de Beckett como afectos tanto I

imais grmdiosos quanto satildeo pobres em afecccedilotildees Quando I

Zola sugere a seus leitores prestem atenccedilatildeo natildeo eacute remorshyso que meus personagens sentem natildeo devemos mais ver nisso a expressatildeo de uma tese fisiologista mas a atribuiccedilatildeo de novos afectosque crescem com a criaccedilatildeo de personagens no naturalismo o Mediacuteocre o Perverso o Animal (o que Zola chama de instinto natildeo se separ~ de um devir-animal) Quando Emily Bronte traccedila o liame que_ une Heathcliff e Catherine ela inventa um afeto-violento (que sobretudo natildeo

13 Bergson La penseacutee et e mouvant Ed du Centenaire p 1293shy1294

226 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

v f ~~

c~l~f r1gt(1~~1- 7 (jJ-7JV middot ~

JV-10-shy

deve ser confundido com o amor algQ co~o uma fraternishydade entre dois lobos QuandoP~Oacute~t middot fece descrever tatildeo minuciosamente o ciuacuteme inventatilde-tt middot~fect~porque natildeo deishyxa de inverter a ordem que a opiniab--amptipOtildee nas afecccedilotildees segundo a qual o ciuacuteme seria uma consequecircncia infeliz do amor para ele ao contraacuterio o ciuacuteme eacute finalidade destinaccedilatildeo

e~reC1Suuml~~~CecircJ~~--j)uuml~J~-s~~E~I~~~~~sect~~~~~~~sectmiddotmiddotccedil_sect~e o s~nti9~-~2-~ig~~C2~~-to _ltlt_~_- ~~IP~2cgia _ Q~ando CL1ude Simon descreve o prodigjoso amor passivo da mushylher-terra esculpe um afecto de barro e pode dizer eacute mishynha matildee e acreditamos jaacute que ele diz mas uma matildeemiddotque ele introduz na sensaccedilatildeo e agrave qual ergue um monumento tatildeo original que natildeo eacute mais com seu filho real que ela tem uma relaccedilatildeo mas mais longinquamente com um outro personashygem de criaccedilatildeo a Eula de Faulkner Eacute assim que de um esshy

critor ~ um outro o~_gr~_de~-~f5S9LltJi~~ltim~~-P9si~L~-~ encademiddotar ouder~ampS~illCcedilQlJLlt~tQ~~~~~~-~~~i_es ~~~~~~~ fotildermaacutem vibram se e_nl~_s~_m QllJ~J~nccedil~P= sectiip-estesseres---~ acirceseUumls~CcedilatildeO(~datilde~~ta~da--relaccedilatildeodo_artistuQmo puacuteshy

b)i~~A~ltLasordf~--~~)f~-middot~l~~Jnmiddot-ordf~ul~ JJJJmesmQordf-Uacute~t~-~ll~~~s- _f 14 4

~~g~~ Rllt ~Y~l)tuaJ~Jilll4-sfccedillt ~~E~-~~-~--~nJr~gtI bull O artts- [k ta acrescenta sempre novas variedades ao mundo Os seres dordfsectJ~nsaccedilordf-ordmmiddotmiddotmiddot~ordfQvariltdades~ccedil_omoos~streampdecouccitossacirc~~ var~~ccedil2~~~~Q~~sectSf~~-deJu~_ccedilo _ ~ordfmiddot~-Y~~~i~y~js

Eacute de toda a arte que seria preciso dizer o artista eacute m__Qsect_ tracQId~-ordffeltos inventor de afec~~~E-tlt~oLde_ ordf-f~~ccedilJgsect~m middotICcedilatildeotilde com ~tp~~~E~~~~~-i~-~isOtildeEi~CcedilLU~QQsectgaacute Natildeo eacute soshymeilteeffisuacbraacute que ele os cria ele os daacute para noacutes e nos faz transformarnos com eles ele nos apanha no composto Os girassoacuteis de Van Gogh satildeo devires como os cardos de

14 Estas trecircs questotildees retornam frequentemente em Proust notadashymente Le temps retrouveacute La Pleacuteiade 111 p 895-896 (sobre a vida a vishysatildeo e a arte como criaccedilatildeo de universo)

Percepto Afecto e Conceito 227

Duumlrermiddot ou as mimosas de Bonnard Redon intitulava uma litografia Houve talvez uma visatildeo primeira ensaiada na flor A flor vecirc Puro e simples terror Vecirc vocecirc este girasshysol que olha para dentro pela janela do quarto Ele olha meu quarto todo o dia 15 Uma histoacuteria floral da pintura eacute como a criaccedilatildeo incessantemente retomada e continuada dos afecshytos e dos perceptos das flores A arte eacute a linguagem das senshysaccedilotildees que faz entrar nas palmiddot~r-acircsmiddotmiddotiacuteiatildes cOtilde~~~~-~~middot~~ ilas pearamiddots-x-agraverieuumli(t~iiacute~QfuilJatilde~middotr~uuml ci~aagravez ~IacuteriacuteJlE~~

middotmiddotarmiddotga~lziCcedilatilde() middotordf~i~~~fsiPsj2~-~~~~JiSCcedilsectlr~UJini otildees _ltiuacute~ sll-h~- tiiui por um ill()~E~Etccedilgt_Ccedilg~JEP~lt de ~certo~-de~Jectccedils middote de blo_~~smiddot~~j~-~SCcedilsect~sect91~fltt~~Jl-ordf~-ieze_sdeJing)Jordfg~lmiddot

O escritor se serve de palavras mas criando urna sintaxe que as introduz na sensaccedilatildeo e que faz gaguejar a liacutengua correnshyte ou tremer ou gritar ou mesmo cantar eacute o estilo o tom a linguagem das sensaccedilotildees ou a liacutengua estrangeira na liacutengua a que solicita um povo por vir oh gente do velho Catawba oh gente de Yoknapatawpha O escritor torce a linguagem fj-la vibrar a~accedila-a fende-a para arrancar o percepto middotdas percepccedilotildees o afecto das afecccedilotildees a sensaccedilatildeo da opiniatildeo_ ~---shy_________ -shyvisando esperamos esse povo que ainda natildeo existe Mishynha memoacuteria natildeo eacute amor mas hostilidade e ela trabalha natildeo para reproduzir mas para descartar o passado Que queshyria dizer minha famiacutelia eu natildeo sei Ela era gaga de nascenshyccedila e contudo tinha algo para dizer Sobre mim e sobre muishy

tos de meus contemporacircneos pesa a gagueira de nascenccedila Aprendemos natildeo a falar mas a balbuciar e eacute soacute ouvindo o ruiacutedo crescente do seacuteculo e uma vez lavados pela espuma de sua onda mais alta que noacutes dquiijmos uma liacutengua 16

Precisamente eacute a tarefa de toda arte e -a pintura a muacutesica

15 Lowry Au-dessous du fOlcan Ed Buchet-Chastel p 203

16 Mandelstam Le bruit du temps Ed LAge dhomme p 77

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

natildeo arrancam menos 4as cores e dos sons acordes novosmiddot paisagens plaacutesticas ou ~eloacutedicas personagens riacutetmicos que os elevam ateacute o canto 1a terra e o grito dos homens- o que constitui o tom a sauacutede o devir um bloco visual e sonoro Um monumento natildeo comemora natildeo celebra algo que se passou mas transmit~ para o futuro as sensaccedilotildees persistenshytes que encarnam o a ntecimento o sofrimento sempre reshynovado dos homens eu protesto recriado sua luta sempre retomada Tudo seri vatildeo por ue o sofrimento LeteIlO_~ as revoluccedilotildees natildeo so revivem agrave sua vitoacuteria Mas o sucesso dmiddot~ uumlmarevotildeTuCcedilatildeos9-resid~ela me~~-precisamente nas vibraccedilotildees nos enlace~ nas aberturas que deu aos homens no ~--=----=-----1-o----------------~-middot momento em que se fazia e que compotildeem em si um monushy

middotm-eirto sempre em vir como esses tuacutemulos aos quais cada novo viajante acresagraventa uma pedra A vitoacuteria de uma revolushyccedilatildeo eacute imanente e consiste nos novos liames que instaura entre os homens mesmo se estes natildeo duram mais Q1Je sua mateacuteshy

r~ em fusatilde5_gt_j~~~--~Jiga_peng-ordfillYisectatildeQ_acirc traiccedilatildeo As figuras esteacuteticas (e o estilo que as cria) natildeo tecircm nada

a ver com a retoacuterica SiiQsect~Otildees 12erceptos~-~~~~shy~ordf~nserostnsrisotildees_e_d~yius_Mas natildeb eacute tambeacutem pelo devir que definimos o conceito filosoacutefico e quase nos mesmos tershymos Todavia as figUumlras esteacuteticas natildeo satildeo idecircnticas aos pershysonagens cmiddotonceituais Talvez entrem uns nos outros num ~entido ou no outro como Igitur ou como Zaratustra mas

eacute na medida em que -~~~~sect~s cJ~-~onceicto2_~S2-Seit~-~ q~ sccedilg~ordfccedilotildee_s Nao eacute o mesmo devir O devir sensiacutevel eacute o ato pelo qual algo ou algueacutem natildeo paacutera de deVir-outro (continuanshydo a ser o que eacute) girassol ou Ahab enquanto que o devir

~

conceitual eacute o ato pelo qual o acontecimento comum ele mesmo esquiva o que eacute Este eacute heterogeneidade compreenshydida numa forma absoluta aquele a alteridad~ empenhada numa mateacuteria de expressatildeo O monumento natildeo atualiza o acontecimento virtual mas o incorpora ou o encarna acirca--shy

middot--~--middot---- middot~----------~middot---middot-middot--middot~~--middotmiddot- ---middotmiddotmiddotmiddot

Percepto Afecto e Conceito 228 229

lhe um corpo uma vida um universo Eacute assim que Proust definia a arte-monumento por esta via SU_I)erior ao vivido suas diferenccedilas qualitativas seus universos que consshytroem seus proacuteprios limites seus distanciamentos e suas aproshyximaccedilotildees suas constelaccedilotildees os blocos de sensaccedilotildees que eles fazem rolar o universo-Rembrandt ou universo-Debussy Estes universos natildeo satildeo nem virtuais nem atuais satildeo possiacuteshyveis o possiacutevel como categoria esteacutetica (possiacutevel por favor senatildeo eu sufoco) a existecircncia do possiacutevel enquanto que os acontecimentos satildeo a realidade do virtual formas de um penshysamento-Natureza que sobrevoam todos os universos posshysiacuteveis Natildeo significa dizer que o conceito precede de direito a sensaccedilatildeo mesmo um conceito de sensaccedilatildeo deve ser criashydo com seus meios proacuteprios e uma sensaccedilatildeo existe em seu universo possiacutevel sem que o conceito exista necessariamente em sua forma absoluta

Pode a sensaccedilatildeo ser assimilada a uma opiniatildeo originaacuteshyria Urdoxa como fundaccedilatildeo do mundo ou base imutaacutevel A fenlt_~~~~ogiltl encontra a sensaccedilatildeo em a priori materiais shyperceptivos e afectivos que transcendem acircs per-cepCcedilOtildees ecirc afecshy

Ccedilotilde~~middot~iVfd-atilde$ middototildemiddot-aillatildere-iotildeecircleVail cuumlgKmiddotocirc~--~s -~ens~Ccedilotilde~s middot ~acirc-middotratildes de Ceianne A fenomenologia deve fazer-se fenomenoshylogia da arte jaacute vimos porque a imanecircncia do vivido a um sujeito transcendental precisa exprimir-se em funccedilotildees transshycendentes que natildeo determinam somente a experiecircncia em geral mas que atravessam aqui e agora o proacuteprio vivido e I se encarnam nele constituindo sensaccedilotildees vivas O ser da senshy I

I I middot

I saccedil-ordf9_ _Q__blQccedilQ d_d percepto ~=fo ~feccedil~Q ltPareceraacute ~ornomiddot middot middot I

_Unidade ou a reversibilidade daquele que s~t~ - ~ middotd~-~-e~d- I doseu1ntiffiuuml eacute~t~r~ccedilmiddota~ento c()~uuml matilde~~ middotq~~i-~~~_middot- bullI

1 middot-middotmiddoteacute-~a--~arne que vai se libertar ao mesmo tempmiddoto do corpo vivishydo do mundo percebido e da intencionalidade de um ao outro ainda muito ligada agrave experiecircncia - enquanto a carshyne nos daacute o ser da sensaccedilatildeo e carrega a opiniatildeo originaacuteria

230 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

distinta do juiacutezo de experiecircncia Carne do mundo e carne do corpo como correlatos que se trocam coincidecircncia ideaF7

Eacute um curioso Carnismo que inspira este uacuteltimo avatar da fenomenologia e a precipita no misteacuterio da encarnaccedilatildeo eacute uma noccedilatildeo piedosa e sensual ao mesmo tempo uma misshytura de sensualidade e de religiatildeo sem a qual a carne talshymiddotvez natildeo ficaria de peacute sozinha (ela desceria ao longo dos ossos como nas figuras de Bacon) A questatildeo de saber se a carne eacute adequada agrave arte pode se enunciar assim eacute ela capaz de carshyregar o percepto e o afecto de constituir o ser de sensaccedilatildeo ou entatildeo eacute ela mesma que deve ser carregada e ingressar em outras potecircncias de vida

A carne natildeo eacute a sensaccedilatildeo mesmo se ela participa de sua middot revelaccedilatildeo Era precipitado dizer que a sensaccedilatildeo encarna A pintura faz a carne ora com o encarnado (superposiccedilotildees do vermelho e do branco) ora com tons justapostos (jUstaposhysiccedilatildeo de complementares em proporccedilotildees desiguais) Mas o que constitui a sensaccedilatildeo eacute o devir-animal vegetal etc que monta sob as praias de encarnado no nu mais gracioso mais delicado corria a presenccedila de um animal descarnado de um fruto descascado Vecircnus no espelho ou que surge na fusatildeo no cozimento no derramar de tons justapostos como a zona

17 Desde a Pheacutenomeacutenologie de lexpeacuterience estheacutetique (PUF 1953) Mikel Dufrenne fazia uma espeacutecie de analiacutetica dos a priori perceptivos e afetivos que fundavam a sensaccedilatildeo como relaccedilatildeo do corpo e do mundo Permanecia proacuteximo de Erwin Straus Mas haacute um ser de sensaccedilatildeo que se manifestaria na carne Era middota via de Merleau-Ponty no Le visible et linshyvisible Dufrenne fazia muit~s r~ervas a uma tal ontologia da carne (Loeil et loreille Ed LHexagone) Recentemente Didier Franck retomou o tema de Merleau-Ponty mostrando a importacircncia decisiva da carne segundo Heidegger e jaacute Husserl (Heidegger et le probleme de [espace Chair et corps Ed de Minuit) Todo este problema estaacute no centro de umafenoshymenologia da arte Talvez o livro ainda ineacutedito de Foucault Les aveux de la chair nos informe sobre as origens mais gerais da noccedilatildeo de carne e seu alcance na Patriacutestica

Percepto Afecto e Conceito 231

de indiscernibilidade do animal e do homem Talvez fosse um embaralhamento ou um caos se natildeo houvesse um segunshydo elemento para dar consistecircncia agrave carne_ A carne eacute apeshynas o termocircmetro de um devir A carne eacute tenra demais O segundo elemento eacute menos o osso ou a ossatura que a casa

rltmiddotr a armadura O corpo desabrocha na casa (ou num equivashylente numa fonte num bosque) Ora o que define a casa

( I satildeo as extensotildees isto eacute os pedaccedilos de planos diversamente orientados que datildeo agrave carne sua armadura primeiro-plano e plano-de-fundo paredes horizontais verticais esquerda dishyreita retos e obliacutequos retiliacuteneos ou curvos 18 Essas extenshysotildees satildeo muros mas tambeacutem solos portas j arielas portasshyjanelas espelhos que datildeo precisamente agrave sensaccedilatildeo o poder de manter-se sozinha em molduras autocircnomas Satildeo as faces do bloco de sensaccedilatildeo E haacute certamente dois signos do gecircnio dos grandes pintores bem como de sua humildade o respeishyto quase um terror com o qual eles se aproximam da cor e entram nela o cuidado com o qual operam a junccedilatildeo dos

Imiddot planos da qual depende o tipo de profundidade Sem este respeito e este cuidado a pintura eacute nula sem trabagravelho sem pensamento O difiacutecil eacute juntar natildeo as matildeos mas os planos Fazer relevos com planos que se juntam ou ao contraacuterio escarificaacute-los cortaacute-los Os dois problemas a arquitetura dos planos e o regime da cor se confundem frequumlentemente A junccedilatildeo dos planos horizontais e verticais em Ceacutezanne os planos na cor os planos o lugar colorido ou a alma dos planos entra em fusatildeo ~~_grandes P~_esou mesmo duas grandes obras que operem da mesma ~~nei-

-----=~Haacute todavia tendecircncias num pintotilderem middotGiaco~ettipo-18

Como mostra Georges Didi-Huberman a-carne middot~~gendra uma i duacutevida ela eacute proacutexima demais do caos donde a necessidade de uma

complernentariedade entre o encarnado e a extensatildeo tema essencial de La peinture incarneacutee retomada e desenvolvida em Devant limage Ed de Minuit

232 II Filosofia Ciecircncia middotLOacutegica e Arte

exemplo os planos horizontais fugidios diferem agrave direita e middot agrave esquerda e parecem se reunir na coisa (a carne da pequeshyna maccedilatilde) mas como uma pinccedila que a puxaria para traacutes e a faria desaparecer se uni plano vertical do qual soacute se vecirc o fio sem espessura natildeo viesse fixaacute-la retecirc-la no uacuteltimo moshymento dar-lhe uma existecircncia duraacutevel agrave maneira de um longo alfinete que a atravessa e a tornafiliforme por sua vez A casa participa de todo um devir Ela eacute vida ~vida natildeo

orgacircnica das coisas De todos 9s modos possiacute~sect~a_ LYD~-~ ccedilatildeo do~_planos~e mitorientaccedilOtildees que define t_casa-sens~-~-~---~ ccedilatildeo Aiacute~asa mesma (o_u-middotseu equivalente) eacute a junccedilatilde9T~itaii~------planos cQlruicles____

middot middot-middot--~rceiro elemento eacute o universo o qgtsmos Natildeo eacute soshymentea-Catildesatildeabeitaque secirc-cotildelliiriic co~ ~ p~i~agem por ~ffiatilde )atildeiieratilde- middoto-tr-uumlm espeino iiiatildes--atildemiddot-~8middot-middot~middotas~fe~~~~ ~~atilde__ atilde5e~t~-sotildebreuumlmuiiiacutevecircrsomiddot middotx- middotcamiddotsacirc-eacutefe viuuml~ecirct s~ vecirc sempre ~~pi~dmiddot -p-~i~~ fccedil~~- ~egetais de um jardim incontrolaacutevel cosmo das rosas Um universo-cosmos natildeo eacute carne Nem mesmo plano pedaccedilos de planos que se juntam planos dishyversamente orientados embora a junCcedilatildeo de todos os planos ateacute o infinito possa constituiacute-lo Mas o universo se apresenshyta no limite como o fundo da tela o uacutenico grande plano o vazio colorido o infinito monocromaacutetico A porta-janela como em Matisse soacute se abre sobre um fundo negro A carne ou antes a figura natildeo mais eacute o habitante do lugar da casa mas o habitante de um universo que suporta a casa (devir) Eacute como uma passagem do finito ao infinito mas tambeacutem do territoacuterio agrave desterritorializaccedilatildeo Eacute bem o momento do infishynito infinitos infinitamente variados Em Van Gogh em Gauguin em Bacon hoje vemos surgir a imediata tensatildeo da carne e do fundo dos derrames de tons justapostos e da praia

I

infinita de uma pura cor homogecircnea viva e saturada (em lugar de pintar a parede banal do mesquinho apartamento eu pinto o infinito faccedilo um fundo simples do azul mais rico

233Percepto Afecto e Conceito

mais intenso ) 19 Eacute verdade que o fundo monocromaacutetico

eacute mais do que um fundo E quando a pintura quer comeccedilar do zero construindo o percepto como um miacutenimo antes do vazio ou aproximando ao maacuteximo do conceito ela proceshy~e por monocromia liberada de toda casa ou de toda carne E notadamente o azul que se encarrega do infinito e qu~ faz do percepto uma sensibilidade coacutesmica ou o que haacute de mais conceitual na natureza ou de mais proposicional a cor na ausecircncia do homem o homem mergulhado na cor mas se o azul (ou o negro ou o branco) eacute perfeitamente idecircnshytico no quadro ou de um quadro a outro eacute a pintura que se torna azul- Yves o monocromo- segundo um puro afecto que faz o universo mergulhar no vazio e natildeo deixa mais nada por fazer ao pintor por excelecircncia20_

O vazio colorido ou antes colorante jaacute eacute forccedila A maior parte dos grandes monocromos da pintura moderna natildeo mais tecircm necessidade de recorrer a pequenos buquecircs murais mas apresentam variaccedilotildees sutis imperceptiacuteveis (todavia constishytutivas de um percepto) seja porque satildeo cortados ou conshy

19 Van Gogh carta a Theacuteo Correspondance complete Gallimardshy

Grasset III p 165 Os tons justapostos e sua relaccedilatildeo com o fundo satildeo um tema frequumlente da correspondecircncia Tambeacutem Gauguin carta a Schuffeshynecker 8 de outubro de 1888 Lettres Ed Grasset p 140 Eu fiz urn retra to de mim para Vincent Eacute acredito eu uma das minhas melhores coisas absolutamente incompreensiacutevel (por exemplo) de tal maneira eacute abstra~o o seu d~senho eacute inteiramente arbitraacuterio abstraccedilatildeo cornpl~ta a c~r ~uma co~ d1sta1te da natureza imagine uma vaga lembranccedila de ceram1ca retor~rda pelo fogo forte Todos os vermelhos os violetas rajashydas pelos claroes de fogo como uma fornalha radiante aos olhos sede das lutas do pensamento do pintor O todo sobre um fundo cromo seshymeado de buquecircs infantis Quarto de moccedila pura Eaacute ideacuteia do coloriacutesta arbitraacuterio segundo Van Gogh

~~ Cf Artst~dio no 16 Monochromes (sobre Klein artigos de Genev1eve Monmer e de Denys Riout e sobre os avatares atuais do monocromo artigo de Pierre Sterckx)

234 IL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tornados de um lado por uma fita um faixa uma extensatildeo de uma outra cor ou de um outro tom que mudam a intenshysidade do fundo por vizinhanccedila ou distanciamento seja porshyque apresentam figuras lineares ou circulares quase virtuais tom sobre torit seja porque satildeo esburacados ou fendidos satildeo problemas de junccedilatildeo ainda mas singularmente ampliados

Numa palavra o fundo vibra se enlaccedila ou se fende poque eacute portador de forccedilas apenas vislumbradas E o q~e fazia de iniacutecio a pintura abstrata convocar asforccedilas povoar o funshydo com as forccedilas que ele abriga fazer ver nelas mesmas as forshyccedilas invisiacuteveis traccedilar figuras de aparecircncia geomeacutetrica mas que natildeo seriam mais do que forccedilas forccedila de gravitaccedilatildeo de peso de rotaccedilatildeo de turbilhatildeo de explosatildeo de expansatildeo de gershyminaccedilatildeo forccedila do tempo (como se pode dizer da muacutesica que ela faz ouvir a forccedila sonora do tempo por exemplo com Messhysiaen ou da literatura com Proust que faz ler e conceber a forccedilaacute ilegiacutevel do tempo) Natildeo eacute esta a definiccedilatildeo do percepto em pessoa tornar sensiacuteveis as forccedilas insensiacuteveis que povoam o mundo e que nos afetam nos faze~ devir O que Mondrian obteacutem por simples diferenccedilas entre lados de um quadrado e Kandinsky pelas tensotildees lineares e Kupka pelos planos curvos em torno do ponto Do fundodas eras nos vem o que Worringer chamava a linha setentrional abstrata e infinita linha do uacuteniverso que forma fitas e tiras rodas e turbinas toda uma geometria viva elevando agrave intuiccedilatildeo as forccedilas mecacircshynicas constituindo uma poderosa vida natildeo-orgacircnica21

O eterno objeto da pintura pintar as forccedilas como Tintoretto

Encontraremos tambeacutem talvez a casa e o corpo E que o fundo infinito eacute frequumlentemente aquilo sobre o que se abre a janela ou a porta ou entatildeo eacute o muro da proacutepria casa ou o solo Van Gogh e Gauguin semeiam o fundo de pequenos buquecircs de flores para fazer deles o papel mural

21 Worringer Lart gothique Gallimard

Percepto Afecto e Conceito 235

sobre o qual se destaca o rosto de tons justapostos E com efeito a casa natildeo nos abriga das forccedilas coacutesmicas no maacutexishymo ela as filtra elas as seleciona Ela as transforma algushymas vezes em forccedilas benevolentes jamais a pintuacutera fez ver a forccedila de Arquimedes a forccedila do empuxltgt da aacutegua sobre um corpo gracioso que flutua na banheira da casa como Bonnard conseguiu em o Nuacute no banho Mas tambeacutem as forccedilas mais maleacuteficas podem entrar pela porta entreabershyta ou fechada satildeo as forccedilas coacutesmicas que provocam elas mesmas as zonas de indiscernibilidade nos_tons justapostos de um rosto esbofeteando-o arranhando-o fundindo-o em todos os sentidos e satildeo estas zonas de indiscernibilidade que revelam as forccedilas escondidas no fundo (Bacon) Haacute plena complementariedade enlace de forccedilas como perceptos e de devires como afectos A linha de forccedila abstrata segundo ~orringer eacute rica em motivos animalescos Agraves forccedilas coacutesshymicas ou cosmogeneacuteticas correspondem devires-aniinais veshy

geta1s moleculares ateacute que o corpo desapareccedila no fundo ou entre no muro ou inversamente que o fundo se contorshyccedila e turbilhone na zona de indiscernibilidade d~ corpo~ Numa palavra o ser de sensaccedilatildeo natildeo eacute a carne mas o comshyposto das forccedilas natildeo-humanas do cosmos dos devires natildeo humanos do homem e da casa ambiacutegua que os troccedila e os ajusta os faz turbilhonar como os ventos A carne eacute somenshyte o revelador que desaparece no que revela o composto de sensaccedilotildees Como toda pintura a pintura abstrata eacute senshysaccedilatildeo nada mais que sensaccedilatildeo Em Mondrian eacute o quarto que acede ao ser de sensaccedilatildeo dividindo por extensotildees coshyloridas o plano vazio infinito que lhe daacute de volta um infishy

d b 22 mto e a ertura Em Kandinsky as casa~ satildeo uma das

22 Mondrian Reacutealiteacute naturelle et reacutealiteacute abstraite (in Seuphor Piet

Mondnan sa vie son oeuvre Ed Flammarion) sobre o quarto e seu desdobramento Michel Butor analisou este desdobramento do quarto em

236 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

fontes da abstraccedilatildeo que consiste menos em figuras geomeacuteshytricas que em trajetos dinacircmicos e linhas de erracircncia cashyminhos que caminham nos arredores Em Kupka eacute de iniacuteshycio sobre o corpo que o pintor talha fitas ou extensotildees coshyloridas que produziratildeo no vazio os planos curos que o povoam tornando-se sensaccedilotildees cosmogeneacuteticas__ ~--~--~~~~

ccedilatildeoe~_pi_rjtual ou j~ um _~Ol~-~-i_g_viSgt= O _q~-~~t-~ lt1 ~~-~~- uacuten1verso A ~r~~ - aJs~rata_~ s~P25 a ~rte _C()flC~I~~~_Elt~~~-- middot-Pmiddot cacirc~dTmiddot~tamente a questatildeo que impregna toda pintura ---- --middot-shys~~ - ~-eiacute~Ccedilatilde-uumlcocircffi o ~~~~~ito~sti-a relaccedilatildeo com a funccedilatildeo middot_

A arte comeccedila talv-ez--com o animal ao menos com o animal que recorta um territoacuterio e faz uma casa (os dois satildeo correlativos ou ateacute mesmo se confundem por vezes no que se chama de habitat) Com o sistema territoacuterio-casa muitas funccedilotildees orgacircnicas se transformam sexualidade procriaccedilatildeo agressiyidade alimentaccedilatildeo mas natildeo eacute esta transformaccedilatildeo que explica a apariccedilatildeo do territoacuterio e da casa seria antes o

inverso o territoacuterio impli~a na emergecirc~lti~ e 91-ali_cll~~-~sel~ siacuteveis pu~- ~~-ibiIacuteia qua~ixacirciiacuteiacute -de ser unicaii1~_Ilt_e ushyecirc(ocircOtildeagraveisecirc cse- ioacuternani-tragraveCcediluumlsmiddotae express~Otilde__ tormiddotn~~~~J~~s~V~l tiffiagravetiansfocirciinaCcedilatildeo (G$iacute~i1Ccedilotildees23 s~ni duacutevida esta expresshysivlamp1deTaacuteestacirc dltu~ch~E~~~middot Vida~ pode-se dizer que o simshyples liacuterio dos campos celebra a gloacuteria dos ceacuteus Mas eacute com o territoacuterio e a casa que ela se torna construtiva e ergue os monumentos rituais de uma missa animal que celebra as quashylidades antes de tirar delas novas causalidades e finalidades Esta emergecircncia jaacute eacute arte natildeo somente no tratamento dos materiais exteriores mas nas posturas e cores do corpo nos

quadrados ou retacircngulos e a abertura sobre um quadrado interior vazio e branco como promessa de quarto futuro Reacutepertoire III Le carreacute et son habitant Ed de Minuit p 307-309314-315

23 Parece-nos que eacute um engano de Lorenz querer explicar o terrishytoacuterio por uma evoluccedilatildeo das funccedilotildees L agression Ed Flammarion

Percepto Afecto e Conceito 237

cantos e nos gritos que marcam o territoacuterio Eacute um jorro de traccedilos de~-~2E~~- e de sons inseparaacuteveisna dtecTda em que s~ -~riill _ ~xpr~~isiV_9_~ ~-(~i~~~i-~ill~~9l0_~_4~ middotr~ritoacute~i~fCcedil Scenopoietes dentirostris paacutessaro das florestas chuvosas da Austraacutelia faz cair da aacutervore as folhas que corta cada manhatilde vira-as para que sua face interna mais paacutelida contraste com a terra constroacutei para si assim uma cena co_mo um readyshymade e canta exatamente em cima sobre um cipoacute ou-um galho um canto complexo composto de suas proacuteprias noshytas e das de outros paacutessaros que imita nos intervalos mosshytrando a raiacutez amarela das plumas sob seubico eacute um artista completo24

bull Natildeo satildeo as sinestesias em plena carne satildeo esshytes blocos de sensaccedilotildees no territoacuterio cores posturas e sons que esboccedilam uma obra de arte total Estes blocos satildeo rishytorneios mas haacute tambeacutem ritornelos posturais e de cores e tanto posturas quanto cores se introduzem sempre nos ritor~ nelas Reverecircncias e posiccedilotildees eretas rondas traccedilos de coshyres O ritornelo inteiro eacute o ser de sensaccedilatildeo Os monumenshytos satildeo ritornelos Desse ponto de vista a arte natildeo deixaraacute de ser habitada pelo animal A arte deKafka seraacute a mais prbshy

funda meditaccedilatildeo sobre o territoacuterio e a casa o terreiro as pos~ turas~retrato (a cabeccedila pendida do habitante com o queixo enterrado no peito ou ao contraacuterio o grande tiacutemido que fura o teto com seu cracircnio anguloso) os sons-muacutesica (os catildees que satildeo muacutesicos por suas proacuteprias posturas Josephine a ratinha cantora da qual ja~ais saberemos se canta Gregoire que une seu piadoao violino de sua irmatilde numa relaccedilatildeo comshyplexa quarto-casa~territoacuterio) Eis tudo o que eacute preciso para fazer arte uma casa posturas cores e cantos - sob a conshy ~

I diccedilatildeo de que tudo isso se abra e se lance sobre ummiddotvetor louco como uma vassoura de bruxa uma linha d~ universo ou de

24 Marshall Bowler Birds Oxford at the Clarendon Press Gilliord Birds of Paradise and Bowler Birds Weidenfeld

desterritorializaccedilatildeoPerspectiva de um quarto com seus hashybitantes (Klee )

Cada territoacuterio cada habitat junt a seus planos ou suas extensotildees natildeo apenas espaccedilo-temporais mas qualitativos por exemplo uma postura e um canto um canto e urna cor perceptos e afectos E cada territoacuterio engloba ou recorta ter~ ritoacuterios de outras espeacutecies ou intercepta trajetos de animais sem territoacuterio formando junccedilotildees inUacuterespeciacuteficltlS Eacute neste sentido que Uexkuumlhl num primeiro aspecto desenvolve urna concepccedilatildeo da Natureza meloacutedica polifocircnica contrapontual Natildeo apenas o canto de um paacutessaro tem suas relaccedilotildees de conshytraponto mas pode fazer contraponto com o canto de oushytras espeacutecies e pode ele mesmo imitar estes outros cantos como se se tratasse de ocupar um maacuteximo de frequumlecircnciacuteas A teia de aranha conteacutem um retrato muito sutil da mosca que lhe serve de contraponto A concha como casa do moshylusco~ se torna quando ele morre o contraponto do Bershynardo-eremita que faz dela seu proacuteprio habitat graccedilas a sua cauda que natildeo eacute nadadeira mas preecircnsil e lhe permite capshyturar a concha vazia O Carrapato eacute organicamente consshytruiacutedo de modo a encontrar seu contraponto no mamiacutefero qualquer que passa sob seu galho como as folhas de carvashylho arranjadas como telhas nas gotas de chuva que escorshyrem Natildeo eacute uma concepccedilatildeo finalista mas meloacutedica em que natildeo mais sabemos o que eacute arte ou natureza (a teacutecnica nashytural) haacute contraponto toda vez que uma melodia interveacutem como motivo numa outra melodia como nas bodas enshytre a mamangava e a boca-de-leatildeo Essas relaccedilotildees de contrashyponto juntam planos formam compostos de sensaccedilotildees bloshycos e determinam devires Mas natildeo satildeo somente estes comshypostos meloacutedicos determinados que constituem a natureza mesmo generalizados eacute preciso tambeacutem sob um outro asshypecto um plano de composiccedilatildeo sinfocircnica infinio da Casa ao universo Da endo-sensaccedilatildeo agrave exo-sensaccedilatildeo E que o tershy

bull 238 li Filosofia Ciecircnci~ Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 239

r I I I-- --- --

~ -

middot1

ritoacuterio natildeo se limita a isolar e juntar ele abre para forccedilas coacutesmicas que sobem de dentro ou que vecircm de fora e torna sensiacuteveis seu efeito sobre o habitante Eacute um plano de comshyposiccedilatildeo do carvalho que porta ou comporta a forCcedila de deshysenvolvimento da bolota e a forccedila de formaccedilatildeo das gotas ou o do carrapato que tem a forccedila da luz capaz de atrair o animal ateacute a ponta de um galho numa altura suficiente e a forccedila de peso com a qual se deixa cair sobre o mamiacutefero que passa -e entre os dois nada um vazio assustador que pode durar anos se o mamiacutefero natildeo passa25bull E ora as forccedilas se fundem umas nas outras em transiccedilotildees sutis decompotildeemshyse tatildeo logo vislumbradas ora se alternam ou se enfrentam Ora deixam-se selecionar pelo territoacuterio e satildeo as mais beshynevolentes que entram na casa Ora lanccedilam um apelo misshyterioso que arranca o habitante do territoacuterio e o precipita numa viagem irresistiacutevel como os pintassilgos que se reuacuteshynem frequentemente aos milhotildees ou as lagostas que empreshyendem uma imensa peregrinaccedilatildeo no fundo da aacutegua Ora se abatem sobre o territoacuterio e o invertem malevolentes restaushyrando o caos de onde ele mal saiacutea Mas sempre se a nature za eacute como a arte eacute porque ela conjuga de todas as maneiras esses dois elementos vivos a Casa e o Universo o Heimlich e o Unheimlich o territoacuterio e a desterritorializaccedilatildeo os comshypostos meloacutedicos finitos e o grande plano de composiccedilatildeo infinito o pequeno e o grande ritornelo

A arte comeccedila natildeo com a carne mas com a casa eacute por isso que a arquitetura eacute a primeira das artes Quando Dushybuffet procura delifuitar um certo estado bruto de arte eacute a princiacutepio na direccedilatildeo da casa que ele se volta e toda sua obra se ergue entre a arquitetura a escultura e a -pintUra E limishy

25 Cf a obra-prima de J von Uexkuumlhl Mondes animaux et monde humain Theacuteorie de la signification Ed Gonthier (p 137-142 o contrashyponto motivo do desenvolvimento e da morfogecircnese)

II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tando-nos agrave forma a arquitetura mais saacutebia natildeo deixa de fazer planos extensotildees e de juntaacute-los Eacute por isso que se pode defini-la pela moldura um encaixe de molduras diversashymente orientadas que se imporiam agraves outras artes da pinshytura ao Cinema Jaacute se apresentou a preacute-histoacuteria do quadro como passando pelo afresco na moldura da parede o vitral ha moldura da janela o mosaico na moldura do solo A moldura eacute o umbigo que liga o quadro ao monujllento do qual ele eacute a reduccedilatildeo como a moldura goacutetica com coluneshytas ogiva e flecha26 Fazendo da arquitetura a arte primeira da moldura Bernard Cache pode enumerar um certo nuacutemero de formas enquadrantes que natildeo prejulgam nenhum conteuacuteshydo concreto nem funccedilatildeo do edifiacutecio o mu~o que isola ajashynela que capta ou seleciona (em conexatildeo com o territoacuterio) o solo-chatildeo que conjura ou rarifica (rarificar o relevo da terra para dar livre curso agraves trajetoacuterias humanas) o teto que envolve a singularidade do lugar (o teto em declive coloca o edifiacutecio sobre uma colina ) Encaixar essas molshyduras ou juntar todos estes planos extensatildeo de muro exshytensatildeo de janela extensatildeo de solo extensatildeo de declive eacute todo um sistema composto rico em pontos e contrapontos As molduras e suas junccedilotildees sustentam os compostos de sensashyccedilotildees datildeo consistecircncia agraves figuras confundem-se com seu dar consistecircncia seu proacuteprio tocircnus Aiacute estatildeo as faces de um cubo de sensaccedilatildeo As molduras ou as extensotildees natildeo satildeo coordeshynadas pertencem aos compostos de sensaccedilotildees dos quais consshytituem as faces as interfaces Mas por mais extensiacutevel que seja este sistema eacute preciso ainda um vasto plano de composhysiccedilatildeo que opere uma espeacutecie de desenquadramento segunshydo linhas de fuga que soacute passe pelo territoacuterio para abri-lo sobre o universo que vaacute da casa-territoacuterio agrave cidade-cosmos

26 Henry van de Velde Deacuteblaientent dart Archives darchitecture moderne p 20

Percepto Afecto e Conceito 240 241

-~-_--- middot-middotmiddot

e que dissolva agora a identidade do lugar na variaccedilatildeo da Natildeo parece que a literatura e particularmente o romance Terra uma cidade que tem menos um lugar do que vetores estejam imma outra situaccedilatildeo O que conta natildeo satildeo as opiniotildees pregueando a linha abstrata do relevo Eacute sobre este plano de dos personagens segundo seus tipos sociais e seu caraacuteter composiccedilatildeo como sobre um espaccedilo vetorial abstrato que como nos maus romances mas as relaccedilotildees de contraponto nos se traccedilam figuras geomeacutetricas cone prisma diedro plano quais entram e os compostos de sensaccedilotildees que esses persoshyestrito que nada mais satildeo do que forccedilas coacutesmicas capazes nagens experimentam eles mesmos ou fazem experimentar em de se fundir se transformar se enfrentar alternar mundo seus devires e suas visotildees O contraponto natildeo serve para reshyde antes do homem mesmo se eacute produto do homem27 Eacute latar conversas reais ou fictiacutecias mas para fazer mostrar a preciso agora desarticular os planos para remetecirc-los a seus loucura de qualquer conversa de qualquer diaacutelogo mesmo

j intervalos em vez de remetecirc-los uns aos outros para criar interior Eacute tudo isso que o romancista deve extrair das pershy

novos afectos28 Ora~ vimos que a pintura seguia o mesmo cepccedilotildees afecccedilotildees e opiniotildees de seus modelos psicossociais I

I movimento A moldura ou a borda do quadro eacute em primeiro que se integram inteiramente nos perceptos e os afectos aos ~ I

lugar o invoacutelucro externo de uma seacuterie de molduras ou de quais o personagem deve ser elevado sem conservar outra vida I

I extensotildees que se juntam operando contrapontos de linhas E isso implica num vasto plano de composiccedilatildeo natildeo preconshyi

I

e de cores determinando compostos de sensaccedilotildees Mas o cebido abstratamente mas que se constroacutei agrave medida que a obraI

quadro eacute atravessado tambeacutem por uma potecircncia de desenshy avanccedila abrindo misturando desfazendo e refazendo composshy

I I quadramento que o abre para um plano de composiccedilatildeo oumiddot tos cada vez mais ilimitados segundo a penetraccedilatildeo de forccedilasI

um campo de forccedilas infinito Estes procedimentos podem ser coacutesmicas A teoria do romance de Bakhtin vai nesse sentido muito diversos mesmo no nivel da moldura exterior formas mostrando de Rabelais a Dostoievski a coexistecircncia dos comshy

[I irregulares lados que natildeo se juntam molduras pintadas oacuteu ponentes contrapontuais polifocircnicos e plurivocais com um I pontilhados de Seurat quadrados sobre ponta de Mondrian plano de composiccedilatildeo arquitetocircnico ou sinfocircnico29 Um roshyi li tudo o que daacute ao quadro o poder de sair da tela Jamais o mancista como Dos Passos soube atingir uma arte inaudita

shy__jl

gesto do pintor fica na moldura ele sai da moldura e natildeo do contraponto nos compostos que forma entre personagens comeccedila com ela atualidades biografias olhos de cacircmera ao mesmo teropo queI

um plano de composiccedilatildeo se alarga ao infinito para arrastar tudo para a Vida para a Morte para a cidade-cosmos E se27 Sobre todos estes pontos a anaacutelise das formas enquadrantes e da

cidade-cosmos (exemplo de Lausanne) cf Bernard Cache L ameublement retornamos a Proust eacute porque mais do que qualquer outro du territoire (a sair) ele fez com que os dois elementos quase se sucedessem emboshy

28 Eacute Pascal Bonitzer que formou o conceito de desenquadramento ra presentes um no outro o plano de composiccedilatildeo aparece poushypara aplicar ao cinema novas rdaccedilotildees entre os planos ( Cahiers du cineacutema co a pouco para a vida para a morte compostos de sensashyndeg 284 janeiro de 1978) planos disjuntos triturados ou fragmentados ccedilatildeo que ele edifica no curso do tempo perdido ateacute aparecer graccedilas aos quais o cinema se torna uma arte depurando-se das emoccedilotildees

em si mesmo com o tempo reencontrado a forccedila ou antes asmais comuns que arriscam de lhe impedir o desenvolvimento esteacutetico e produzindo-lhe afetos novos (Le champ aveugle Ed Cahiers du cineacutema Gallirnard sisteme des eacutemotions ) 29 Bakhtin Estheacutetique et theacuteorie du roman Gallimard

242 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 243

-- ---

forccedilas do tempo puro tornadas sensiacuteveis Tudo comeccedila peshylas Casas que devem todas juntar suas dimensotildees e dar conshysistecircncia a compostos Combray o palacete de Guermantes o salatildeo Verdurin e as casas elas mesmas se ajuntam segundo interfaces mas um Cosmos planetaacuterio jaacute estaacute laacute visiacutevel ao telescoacutepio arruinando-as ou transformando-as e absorvenshydo-as no infinito do fundo Tudo comeccedila por titornelos cada

i

um dos quais como a pequena frase da sonata de Vinteuil natildeo se compotildee apenas em si mesmo mas com -outras sensashy

ccedilotildees variaacuteveis a de uma passante desconhecida a do rosto de Odette a das folhagens do bosque de Boulogne- e tudo tershy I mina no infinito no grade Ritornelo a frase do seacuteptuor em Iperpeacutetua metamorfose o canto dos universos o mundo de antes do homem ou de depois De cada coisa finita Proust faz uni ser de sensaccedilatildeo que natildeo deixa de se conservar mas fushygindo sobre um plano de composiccedilatildeo do Ser seres de fuga

EXEMPLO XII

Natildeo parece que a muacutesica esteja numa outra situashyccedilatildeo talvez mesmo a encarne com mais poder ainda Dizshyse todavia que o som natildeo tem moldura Mas os comshypostos de sensaccedilotildees os blocos sonoros tampouco tecircm extensotildees ou formas enquadrantes que devem em cada caso se ajuntar assegurando um certo fechamento Os casos mais simples satildeo a aacuteria meloacutedica que eacute um ritorshynelo monofocircnico o motivo que jaacute eacute polifocircnico um elemento de Uacutema melodia interveniente no desenvolvishymento de uma outra e fazendo contraponto o tema como objeto de modificaccedilotildees harm-ecircnicas atrav~s das linhas meloacutedicas Essas trecircs formas elementares consshytroacuteem a casa sonora e seu territoacuterio Elas correspondem agraves trecircs modalidades de um ser de sensaccedilatildeo pois a aacuteria eacute uma vibraccedilatildeo o motivo eacute um enlace um acoplamen-

I244 lIL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

jbull

to enquanto o tema natildeo fecha sem se descerrar fender e tambeacutem abrir Com efeito o fenocircmeno musical mais importante que aparece agrave medida que os compostos de sensaccedilotildees sonoras se tornam mais complexos eacute que sua clausura ou fechamento (por junccedilatildeo de suas molduras de suas extensotildees) se acompanha de uma possibilidade de abertura sobre um plano de composiccedilatildeo cada vez mais ilimitado Os seres de muacutesica satildeo como os seres vivos segundo Bergson que compensam sua clausura individuante por uma abertura feita de modulaccedilatildeo reshypeticcedilatildeo transposiccedilatildeo justaposiccedilatildeo Se consideramos a sonata encontramos aiacute uma forma enquadraacutente parshyticularmente riacutegida fundada sobre um bitematismo e da qual o primeiro movimento apresenta as seguintes dimensotildees exposiccedilatildeo do primeiro tema transiccedilatildeo exshyposiccedilatildeo do segundo tema desenvolvimentos sobre o pric rileiro ou o segundo coda desenvolvimento do primeiro com modulaccedilatildeo etc Eacute toda uma casa com seus aposhysentos Mas eacute antes o primeiro movimento que forma assim uma ceacutelula e eacute raro que uiacuten grande muacutesico siga a forma canocircnica os outros moviacutementos podem abrirshyse notadamente o segundo pel~ tema e variaccedilatildeo ateacute que Liszt asseg~re uma fusatildeo dos movimentos no poeshyma sinfocircnico A sonata aparece entatildeo antes como uma forma-cruzamento em que da junccedilatildeo das dimensotildees musicais da clausura dos compostos sonoros nasce a abertura de um plano de composiccedilatildeo

Deste ponto de vista o velho procedimento tema e variaccedilatildeo que manteacutem a moldura harmocircnica do tema daacute lugar a uma espeacutecie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composiccedilatildeo (Chopin Schumann Liszt eacute um novo momento essencial porshyque o trabalho criador natildeo mais versa sobre os comshyponentes sonoros motivos e temas abrindo um plano

245Percepto Mecto e Conceito

~~

mas ao contraacuterio versa diretamente sobre o proacuteprio plano de composiccedilatildeo para fazer nascer dele composshytos bem mais livres e desenquadrados quase agregados incompletos ou sobrecarregados em desequiliacutebrio pershymanente Eacute a cor do som que conta cada vez mais Passa-se da Casa ao Cosmos (segundo uma foacutermula que a obra de Stockhausen retomaraacute) O trabalho do plano de composiccedilatildeo se desenvolve em duas direccedilotildees que engendraratildeo uma desagregaccedilatildeo da moldura tonal os imensos fundos da variaccedilatildeo contiacutenua que fazem enshylaccedilar e se unir as forccedilas tornadas sonoras em Wagner ou os tons justapostos que separam e dispersam as forshyccedilas agenciando suas passagens reversiacuteveis em Debussy Universo-Wagner universo-Debussy Todas as aacuterias todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquashydrados infantis domeacutesticos profissionais nacionais territoriais satildeo carregados no grande Ritornelo um potente canto da terra - o desterritorializado - que se eleva com Mahler Berg ou Bartoacutek E sem duacutevida o plano de composiccedilatildeo engendra sempre novas clausuras como na seacuterie Mas sempre o gesto do muacutesico consiste em desenquadrar encontrar a abertura retornar o plashyno de composiccedilatildeo segundo a foacutermula que obceca Boushylez traccedilar uina transversal irredutiacutevel agrave vertical harmocircshynica como agrave horizontal meloacutedica que conduz blocos soshynoros agrave individualizaccedilatildeo variaacutevel mas tambeacutem abri-las ou fendecirc-las num espaccedilo-tempo que determina sua denshysidaae e seu percurso sobre o plano30 O grande ritorshynelo se eleva agrave medida que nos afastamos dacasa messhy

30 Boulez notadamente Points de repere Ed Bourgois-Le Seuil p 159 e segs (Pensez la musique aujourdhui Ed Gonthier p 59-62) A eXtensatildeo da seacuterie em duraccedilotildees intensidades e timbres natildeo eacute um ato de clausura mas ao contraacuterio uma abertura do que se fechava na middotseacuterie das alturas

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte246

--~=shyq

mo se eacute para retornar a ela jaacute que ningueacutem mais nos reconheceraacute quando retornarmos

Composiccedilatildeo composiccedilatildeo eis a uacutenica definiccedilatildeo da arte A composiccedilatildeo eacute esteacutetica e o que natildeo eacute composto natildeo eacute uma obra de arte Natildeo confundiremos todavia a composiccedilatildeo teacutecshynica trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciecircncia (matemaacutetica fiacutesica quiacutemica anatomia) e a comshyposiccedilatildeo esteacutetica que eacute o trabalho da sensaccedilatildeo Soacute este uacuteltishymo merece plenamente o nome de composiccedilatildeo e nunca uma obra de arte eacute feita por teacutecnica ou pela teacutecnica Certamente a teacutecnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra as palavras e a sintaxe em literatura natildeo apenas a tela em pintura mas sua preparashyccedilatildeo os pigmentos suas misturas os meacutetodos de perspectiva ou ent~o os doze sons da muacutesica ocidental os instrumentos as escalas as alturas E a relaccedilatildeo entre os dois planos oacute

plano de composiccedilatildeo teacutecnica e o plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica natildeo cessa de variar historicamente Sejam dois estados oponiacuteveis na pintura a oacuteleo num primeiro caso o quadro eacute preparado por um fundo branco sobre o qual se desenha e se dilui o desenho (esboccedilo) enfim se potildee a cor as sombras e as luzes No outro caso o fundo se torna cada vez mais espesso opaco e absorvente de modo que ele se colore na divisatildeo e o trabalho se faz em plena massa sobre uma gama escura as correccedilotildees substituindo o esboccedilo o pintor pintaraacute sobre cor depois cor ao lado de cor as cores se tornando cada vez mais relevos a arquitetura sendo assegurada pelo contraste dos complementares e a concordacircncia dos anaacuteshylogos (Van Gogh) eacute por e nagrave cor que se encontraraacute a arshyquitetura mesmo se eacute preciso renunciar aos relevos parareshyconstituir grandes unidades colorantes Eacute verdade que Xavier de Langlais vecirc em todo este segundo caso uma longa decashydecircncia que caino efecircmero e natildeo chega a restaurar uma ar-

Percepto Mecto e Conceito 247

quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem duacutevida esta observaccedilatildeo coloca ao meshynos negativamente a questatildeo do progresso na arte jaacute que Langlais considera que a decadecircncia comeccedila jaacute depois de Van Eyck (um pouco como alguns param a muacutesica no canto greshygoriano ou a filosofia em Santo Tomaacutes) Mas eacute uma obsershyvaccedilatildeo teacutecnica que concerne somente ao material aleacutem de que a duraccedilatildeo do material eacute muito relativa a sensaccedilatildeo eacute de uma outra ordem e possui uma existecircncia em si enquanto o mashyterial dura A relaccedilatildeo da sensaccedilatildeo com o material deve pois ser avaliada nos limites da duraccedilatildeo do material qualquer que ela seja Se haacute progressatildeo em arte eacute porque a arte soacute pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retonws linhas de partilha mudanccedilas de niacuteveis e de escashy

I las Deste ponto de vista a distinccedilatildeo de dois estados da lf

pintura a oacuteleo toma um aspecto inteiramente diferente esshyI

teacutetico e natildeo mais teacutecnico- esta distinccedilatildeo natildeo conduz evishydentemente ao representativo ou natildeo jaacute que nenhuma arte nenhuma sensaccedilatildeo jamais foram representativas

li No primeiro caso a sensaccedilatildeo se realiza no material e natildeo existe fora desta realizaccedilatildeo Diriacuteamos que a sensaccedilatildeo (o composto de sensaccedilotildees) se projeta sobre o plano de composhysiccedilatildeo teacutecnica bem preparado de sorte que o plano -de comshyposiccedilatildeo esteacutetica venha recobri-lo Eacute preciso pois que o mashyterial compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graccedilas aos quais a sensaccedilatildeo projetada natildeo se realiza somenshyte cobrindo o qu1dro mas segundo uma profundidade A arte desfruta entatildeo de uma aparecircncia de transcendecircncia que se exprime natildeo numa coisa por representar mas no caraacuteter paradigmaacutetico da projeccedilatildeo e no caraacuteter simboacutelico da persshypectiva A Figura eacute como a fabulaccedilatildeo segundo Bergson tem

31 Xavier de Langlais La technique de la peinture agrave lhuile Ed Flammarion (E Goethe Traiteacute des couleurs Ed Triades sect 902-909)

248 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 249

middot i

uma origem religiosa Mas quando ela se torna esteacutetica sua transcendecircncia sensitiva entra numa oposiccedilatildeo surda ou abe-rshyta com a transcendecircncia suprasensiacutevel das religiotildees

No segundo caso natildeo eacute mais a sensaccedilatildeo que se realiza no material eacute antes o material que entra na sensaccedilatildeo Cershytamente a sensaccedilatildeo natildeo existe mais fora dessa entrada e o plano de composiccedilatildeo teacutecnica natildeo mais tem autonomia a natildeo ser no primeiro caso natildeo vale jamais por si mesmo Mas diriacuteamos agora que ele sobe no plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica e lhe daacute uma espessura proacutepria como diz Damisch inshydependente de qualquer perspectiva e profundidade Eacute o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transshycendecircncia aparente ou-de um modelo paradigmaacutetico e conshyfessam seu ateiacutesmo inocente seu paganismo E sem duacutevida entre estes dois casos estes dois estados da sensaccedilatildeo estes dois poacutelos da teacutecnica as transiccedilotildees as combinaccedilotildees e as coexistecircncias se fazem constantemente (por exemplo o trashybalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens) satildeo poacutelos abstratos ao inveacutes de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com oacuteleo e solvente se volta cada vez mais na direccedilatildeo do segundo poacutelo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composiccedilatilde~ esteacutetica -Eacute por isso -que eacute tatildeo falso definir a sensaccedilatildeo na pintura moderna pela admissatildeo de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a esshypessura natildeo precisa ser larga ou profunda Pocircde-se dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfiacuteshycie basta-lhe apoiar-se sobre os vazios e os plenos do pashypel Canson Eacute uma pintura que natildeo mais tem fundo porshyque o baixo emerge a superfiacutecie eacute esburacaacutevel ou o plashyno de composiccedilatildeo ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspecshytiva independentemente das sombras e mesmo da ordem

i r I li

I 32 Cf Christian Bonnefbi intervieweacute et commenteacute par Yvesshy

I Alain Bois Macula S-6

33 Damisch Fenecirctre jaime cadmium ou les dessous de la peinture Ed du Seuil pp 275-305 (e p 80 a espessura do plano em Pollock) Dashy

li misch eacute o autor que mais insistiu sobre a relaccedilatildeo -arte-pertsamento pinshytura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instauraacute-la Mallarmeacute fazia da espessura do livro uma dimensatildeo distinta da proshy) fundidade cf Jacques Scheacuterer Le livre de Mallarmeacute Gallimard p 55shy

I tema que Boulez retoma por sua vez para a muacutesica (Points de repere p 161) iI

li 250 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

I I

cromaacutetica da cor (o colorista arbitraacuterio) Natildeo mais se recoshybre faz-se subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar Eacute uma promoccedilatildeo do solo e a escultura pode torshy

I nar-se plana jaacute que o plano se estratifica Natildeo magraveis se pinshyI ta sobre mas sob A arte informal levou muito longe

estas novas potecircncias da textura essa elevaccedilatildeo do solo com I Dubuffet e tambeacutem o expressionismo abstrato a arte mishy

nimalista procedendo por impregnaccedilotildees fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atraacutes de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem agrave vista do pintor o que enshytregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes estados a pintura eacute-penshysamento a visatildeo existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta

Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdashydeiro conceito mostrando que o tranccedilado poderia bem preencher para a pintura futura funccedilatildeo anaacuteloga agravequela que foi a da perspectiva O quemiddotnatildeo eacute proacuteprio da pintura jaacute que Damisch reencontra a mesma distinccedilatildeo no niacutevel do plano arquitetura quando Scarpa por exemplo rejeita o movishymento da projeccedilatildeo e os mecanismos da perspectiva para ins~ crever os volumes na espessura do proacuteprio plano33 bull E da literatura agrave muacutesica uma espessura material se afirma que

--~ middot

natildeo se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal Eacute umr I traccedilo caracteriacutestico da literatura moderna quando as palashyr vras e a sintaxe sobem no plano de composiccedilatildeo e o cavam I em lugar de colocaacute-lo em perspectiva E a muacutesica quando

renuncia agrave projeccedilatildeo como agraves perspeCtivas que impotildeem a alshyI tura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano soshynoro uma espessura singular da qual testemunham elemenshy

I tos muito diferentes a evoluccedilatildeo dos estudos parapiano que deixam de ser somente teacutecnicas para tornar-se estudos de

jmiddot composiccedilatildeo (com a extensatildeo que lhes daacute Debussy) a imshy

portacircncia decisiva que toma a orquestraccedilatildeo em Berlioz a i subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferashyI I ccedilatildeo dos afectos de percussatildeo com os metais as peles e as mashy

deiras e sua ligaccedilatildeo com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparaacuteveis do material (Varese) a redeshy

I finiccedilatildeo do percepto em funccedilatildeo do ruiacutedo do som bruto e I complexo (Cage) natildeo apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendecircnshy

cia a uma apariccedilatildeo natildeo-cromaacutetica do som num continuum infiiuumlto (muacutesica eletrocircnica ou eletro-acuacutestica)I

I Soacute haacute um plano uacutenico no sentido em que a arte natildeo

I comporta outro plano diferente do da composiccedilatildeo esteacutetica

I o plano teacutecnico com efeito eacute necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composiccedilatildeo esteacutetica Eacute sob esta conshydiccedilatildeo que a mateacuteria se torna expressiva o composto de senshysaccedilotildees se realiza no material ou o material entra no comshyI posto mas sempre de modo a se situar sobre um plano deI

I composiccedilatildeo propriamente esteacutetico Haacute muitos problemasI teacutecnicos em arte e a ciecircncia pode intervir em sua soluccedilatildeo

mas eles soacute se colocam em funccedilatildeo de problemas de composhysiccedilatildeo esteacutetica que concernem aos compostos de sensaccedilotildees e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus mateshyriais Toda sensaccedilatildeo eacute uma questatildeo mesmo se soacute o silecircncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em enshy

251Percepto Afecto e Conceito

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 3: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

Os acordes satildeo afectos Consoantes e dissonantes os acordes de tons ou de cores satildeo os afectos de muacutesica ou de pintura Rameau sublinhava a identidade entre o acorde e o afecto O artista cria blocos de perceptos e de afectos mas a uacutenica lei da criaccedilatildeo eacute que o composto deve ficar de peacute sozishynho o mai-dlfiacute~TrrquumleOatildertista o f~ccedila manter-se de peacute

_~ho Para isso eacute preciso por vezes muita inverossimilhanccedila geomeacutetrica imperfeiccedilatildeofiacutesica anomalia orgacircnica do ponshyto de vista de um modelo suposto do ponto de vista das pershycepccedilotildees e afecccedilotildees vividas mas estes erros sublimes acedem agrave necessidade da arte se satildeo os meios interiores de manter de peacute (ou sentado ou deitado) Haacute uma possibilidade pictural que nada tem a ver com a possi_uacute_liQ_ade fiacutesi~~2 _ ~ middot gue daacute agraves posturas mais acrooaacutetiCatildes--f~ccedila da verticalidade Em conshyt~rgtarticta tatildeiifagraves oEras que aspir-amagrave arte--iiatildeotilde_s_e mantecircm de peacute um soacute instante Manter-se de peacute sozinho natildeo eacute ter um alto e um baixo natildeo eacute ser reto (pois mesmo as c asas satildeo becircshybadas e tortas) eacute somente o ato pelo qual o composto de sensaccedilotildees criado se conserva em si mesmo Um monumenshyto mas o monumento pode sustentar-se em alguns traccedilos ou ein algumas linhas como uni poema de Emily Dickinson Do croqui de um velho burro exausto que maravilha eacute feito com dois traccedilos mas postos sobre bases imutaacuteveis onde a sensaccedilatildeo melhor testemunha anos de trabalho persistente tenaz desdenhoso 1 O modo menor em muacutesica eacute uma proshy

il i va tanto mais essencial quanto lanccedila ao muacutesico o desafio Imiddot

de roubaacute-lo a suas combinaccedilotildees efecircmeras para tornaacute-lo soacutelido e duraacutevel auto-c~rtservante mesmo eUl posiccedilotildees acrobaacutetishycas O som deve tanto ser mantido em sua extinccedilatildeo quanto

1 Edith Wharton Les metteurs en sacircme Ed 10-IacuteS p 263 (Trata-se de um pintor acadecircmico e mundano que remiricia a pintar depois de ter descOberto um pequeno quadro de um contemporacircneo desconhecido EI eu eu natildeo tinha criado nenhuma de minhas obras eu as tinha simplesshyl mente adotado

214 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

r em sua produccedilatildeo e seu desenvolvimento Atraveacutes de sua adshyi miraccedilatildeo por Pissaro por Monet o que Ceacutezanne criticava f nos impressionistas era que a mistura oacuteptica das cores natildeoIi

bastava para fazer um composto suficientemente soacutelido e

I duraacutevel como a arte dos museus como a perpetuidade do sangue em Rubens2 bull Eacute uma maneira de falar porque Ceacutezanne

l-

I natildeo acrescenta algo que conservaria o impressionismo ele procura uma outra solidez outras bases e outros -blocos

l A questatildeo de saber se as drogas ajudam o artista a criar

esses seres de sensaccedilatildeo se fazem parte dos m eios interiores

l se nos conduzem realmente agraves laquoportasda percepccedilatildeo se nos entregam aos perceptos e aos afectos recebe uma resposta geshy

I ral na m edida em que o que foi composto sob efeito de dro-I ga eacute o mais das vezes extraordinariamente friaacutevel incapaz deI I se conservar por si mesmo desfazendo-se ao mesmo tempo I que se faz ou que o olhamos POQlt_I_lo~ tamQeacutelll_ordf_ltili~~--ordmmiddotL _ r

I i desenhos de crianccedilas ou antes comover~~=-E~~-~9E2 e~_i_~-- _ i r~~9_~atildentenham oepeacute e soacute pare cem com coisa de Klee

otilde~ de Miroacute--~atildeo-~-ih~otilde-~ --~itotildemiddot r~~-p-Aspim~~cismiddot--shy_____~ middot------~ - middot-shyloucos ao contraacuterio sustentam-se quase seacutempre m-~~-so2lt

~ondiccedilatildeo de~~em~~~-~d~s-~J~ -~~ordf~i~~=~~~~Ssti~-~~~i~__ Todavia os blocos precisam de bolsotildees de ar e de vaz1o po1s mesrno o vazio eacute uma sensaccedilatildeo toda sensaccedilatildeo se compotildee com o vazio compondo-se consigo tudo se manteacutem sobre a terra e no ar e conserva o vazio se conserva no vazio conservanshydo-se a si mesmo U~J2od~_secterip~iramente RE_~ench_~shy

da a ponto d~l~l~sectI]l_Q_QordfLJatilde() pa_~sect~l~UumlR2Lela_~-~~-shy~m-obra de_~~~~~J _ccedil=Qm~ltj_~2 Qi92E--lt~-~ordf~$~sectf atildea vaziosSUfiCientes__Qara permitirque neles saltem cavalos lt~1~~~ mecircsect_Qio~ja~P~1~v~I~~rad~QI~~osT3~---------middot-middot

2 Conversations avec Ceacutezanne Ed Macula (Gasquet) p 121

3 Cf Franccedilois Cheng Vide et plein Ed du Seuil p 63 (citaccedilatildeo do pintor Huang Pin-Hung)

Percepto Afecto e Conceito 215

Pintamos esculpimos compomos escrevemos com senshysaccedil~es ~intamos esculpimos compomos e~crevemos senshy

sectaccediloesect_ ~~~eacutelccedil~~-~~0 gerc~pt~~~natilde satildeo percepccedilotildees que remetenam a um objeto (referecircncia) se se assemelh~ a algo eacute uma semelhanccedila produzida por seus proacuteprios meios e_~ sorriso s~-~~~re-1~--ampE~~fecircito-ae~cotildereacuteSdeacute traccedilos e so~f)~~-=-1~JuzJe a senel~anccedila pode imp-eg~bra

e arte e porque a sensaccedilao so remete a seu material ela eacute 0 percepto ou o afecto do material mesmo o sorriso de oacuteleo0 gesto de terra cozida o eacutelan de metal o acocorado da pedra

~ J~~middot romana e o elevado da pedra goacutetica E o material eacute tatildeo dishyjtt~_gtverso em cada caso (o suporte da tela o agente do pincel ou

~~ da brocha a cor no tubo) que eacute difiacutecil dizer onde acaba e onde comeccedila a sensaccedilatildeo de fato a preparaccedilatildeo da tela 0t d ~1 d rao o pe o o pmcel fazem evidentemente parte da senshy

saccedilao e muitas outras coisas antes de tudo isso Como a

~=-~accedilatildeo pode_ia c~EY~e sem um material capaz de ~__~as_~ mais curto que seja ~-te~-p~--~~~-t~~p~ middoteacutemiddot-~~ s1derado como d -------------middot--middotmiddot---middot----middotmiddot--middot--middot middotmiddot middotmiddot middot--middot---shy- -----~middot-middot~-~----~~E~--E--~~il9j__ yeremos como o plano do ma-renal sobe irresistivelmente e invade o plano de composiccedilatildeo das sensaccedilotildees mesmas ateacute fazer parte dele ou ser dele indisshyceniacutevel Diz-se neste sentido que o pintor eacute pintor e nada alem de u middot m pmtor com a cor captada -como sai fora do tu~~ com a marca um depois do outro dos pecirclos do pinshy

Imiddot cel com este azul que natildeo eacute um azul de aacutegua mas um azul I middot

de pmtura liacutequida E todavia a sensaccedilatildeo natildeo eacute idecircntica ao material ao menos de direito O que se conserva de direishyto natildeo eacute o material~ que constitui somente a condiccedil~o de fatomiddot mas enquanto eacutepreenchida esta condiccedilatildeo (enquanto a tela a cor ou d - middot - middot a pe ra nao VIrem po) o que se ccedilQnserva em si eacute o percepto ou o afecto ~esmo se o middotmaterial seacute)dura~se alguns

I

sgundos d~ria2~ccedilatildeo o poder de middotexistir e d~-~-~shy_er~__~rn=~i na eternidade que coexiste com estaCu~ta-dushy

_r_atildeo_~~~~~I~~~lltE~I-ordfBillsL~t~m~qi_d~~~

li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

a sensaccedilatildeo desfruta ~~s~~Lesrr2~fl~EtordmEA sensaccedil~ natildeo s~ realiz~ _ -~--~~~~~~~~--~__rl22ll~~ri~J ss~u~m-~~sect$~~__ccedil_agravep no Plt~~pto ()~ n~=~~~Ofldl a ~at~shyriatilde se torna expressiva E o afecto que e metahco cnstahshyno peacutetiacuteeo etc e a sensaccedilatildeo natildeo eacute colorida ela eacute colorante como diz Ceacutezanne Eacute por isso que quem soacute eacute pintor eacute tamshy

beacutem mais que pintor porque ele faz vir diante de noacutes na frente da tela fixa natildeo a semelhanccedila mas a puq sensaccedilatildeo da flor torturada da paisagemcortada sulcada e comprishyda devolvendo a aacutegua da pintura agrave natureza4 Soacute passhysamos de um material a outro como do violatildeo ao piano do pincel agrave brocha do oacuteleo ao pastel se o composto de sensashyccedilotildees o exigir E por mais fortemente que um artis___ se ir_g~_shy

resse pela ciecircnc~j_arpJtis_umcompQSto-deuro-se-FlSaltiOtildees--se -conshy

fundiraacute com as misturas do material que a ciecircncia deter-

rPfi~_ltE~~a~middota~ccedilQiSordf_$ ccedilordmmordmmo~ti~middot~Pi[ordm~D~ill~~i~ -~ d shyo~~r~_QQj~S$=-~- J1SJfiPLeSSJOUlStas

O objetivo da arte om os meios do material eacute arrancar o percep pccedilotildees do objeto e dos estados de um sushyjeito percipiente arr~ri~-~~fecto ~~~~ilt~ssect_ltsectJ como passashygem de um estado a um outro Extrair um bloco de sensaccedilotildees um puro ser de sensaccedilotildees Para isso eacute preciso um meacutetodo que varie com cada aacuteutor e que faccedila parte da obramiddot basta comshyparar Proust e Pessoa nos quais a pesquisa da sensaccedilatildeo como ser inventa procedimentos diferentes5 Os escritores

4 Artaud Van Gogh le suicideacute de la socieacuteteacute Gallimard Ed Paule Thevenin p 74 82 Pintor nada senatildeo pintor Van Gogh dominou os meios d a pura pintura e natildeo os ultrapassou mas o maravilhoso eacute que este pintor que soacute eacute pintor eacute tambeacutem de todos os pintores natos o que mais faz esquecer que temos a ver com a pintura

5 Joseacute Gil consagra um capiacutetulo aos p r ocedimentos pelos quais Pesshysoa extrai o percepto a partir de percepccedilotildees vividas notadamente emmiddotOde mariacutetima (Fernando Pessoa ou la rneacutetaphysique des sensations Ed de la Diffeacuterence cap II)~

I

Percepto Mecto e Conceito 217 216

quanto a isto natildeo estatildeo numa situaccedilatildeo diferente da dos pinshytores dos muacutesicos dos arquitetos O materiaJ~~E~icular dos escritores satildeo as palavras e a sint~xe sintaxe criada que __~~~middot--~gt-~c---bull~middotmiddot bullmiddot~ middot middotmiddot middot- middot~middotobullmiddotmiddot~middot~middot~bullbull~~-~ ~ ~_-=--~~--_~ bull--middot-middotbullbullgtgtgt_ ~ __bull _ ~lt~middot-~bull --~-bullk----bullbull bull-middot_

se ergue irresistivelmente em sua obra e--~~r~~ltl ~~-~~-~-~-a2middot Pacircrltl sai-dacircs perecircepCcediloes-viViecircfatildeS-nmiddota~Otilde--basta __ evidentemente memoacuteria que convoque somente antigas percepccedilotildees nem uma memoacuteria involuntaacuteria que acrescente a reminiscecircncia como fator conservante do presente A memoacuteria interveacutem

J2QIJkO na arte (mesmo e sobretudo em Proust) Eacute verdade que toda a obra de arte eacute um monumento Inas o monumento natildeo eacute aqui o que comemora um passado eacute um bloco de senshy

Salti_lt_esectPJ~_sect_t_QtS~~q_ue_sQ Qlt_Y~ordfsectL9Ssect~UumlYi irsectQFia_conshy I l1iI I servaccedilatildeo e datildeo ao acontecimento o composto que o celebra

I

~gtmiddot (5-tc-d~- --~onumento natildeo eacute a memoacuteria mas a fabulaccedilatildeoI ~ rJ

_eacute N~ s es~reve cot_I lem~ranccedila~-~~_~~~5~~2~3s por bl~os ~~ )ji $ de ~nfa~c1a_ ~~~_lti_evires~cp~~ccedil__~2_g_J2res~E~ A musica

l middot middotl middot esta cheia disso Para tanto e preciso nao memona mas um rS-fC- material complexo que natildeo se encontrana memoacuteria mas nas palavras nos sons Memoacuteria eu te odeio Soacute seatinge o

percepto ou o afecto como seres autocircnomos e suficientes que natildeo devem mais nada agravequeles que os experimentam_ou os exshyperimentaram Combray como jamais foi vivido como natildeo eacute nem seraacute vivido Combray como catedral ou monumento

E se os meacutetodos satildeo muito diferentes natildeo somente seshygundo as artes mas segundo cada autor pode-se no entanshyto caracterizar grandes tipos_El~l1mentais ou variedades de _omostos de s~nsa~~~~ que caracteriza a senshy ~accedilao simE_le~ (mas ela Ja e dtuave~ composta porque ela sobe ou desccedile implica uma diferenccedila de niacutevel constitutiva segue uma corda invisiacutevel mais nervosa que cerebral)~ lace ou o corpo-a-corpo (quando~amps ressoam uma na outra esposando-se tatildeo estreitamente num corposhya-corpo que eacute puramente energeacutetico)() recuo a divisatildeo

distensiiQ uando duacuteatildesse~s~~Otilde~~~~~ ao contraacuteshy

rio se distanciam mas para soacute serem reunidas pela luz o ar oUacuteOtilde~aziOtilde q~ inscrevem entre elas ou nelas como uma cunha ao mesmo tempo tatildeo densa e tatildeo leve que se estenshyde em todos os sentidos agrave medida que a distacircncia cresce e forma um bloco que natildeo tem mais necessidade de qualquer

Imiddot base) Vibrar a sensaccedilatildeo - acoplar a sensaccedilatildeo - abrir ou ff_vder ~-~ecircsViZlatildeii~eii~ordfccedilordfccedil~middot-~scugif~3~E-emiddots-~iiesectsect_es_tL pccedilgts quase em estado puro com suas sensaccedilotildees de pedra de m~rrriC~d_~middot~tCcedilq~~~~ibram segundo a ordem dos temshypos fortes e dos tempos fracos das saliecircncias o~ das reenshytracircnCias seus poderosos corpo-a-corpo que os entrelaccedilam seu arranjo de grandes vazios entre um grupo e outro e no interior de um mesmo grupo onde natildeo mais se sabe se eacute a luz se eacute o ar que esculpe ou eacute esculpido

O romance se elevou frequumlentemente ao percepto natildeo a percepccedilatildeo da charneca mas a charneca como percepto etn

Hardy os perceptos oceacircnicos de Melville os perceptos ur~ banas ou especulares em Virginia Woolf A paisagem vecirc Em geral qual o grande escritor que natildeo soube criar esses seres de sensaccedilatildeo que conservam em si a hora de um dia o grau do calor de um momento (as colinas de Faulkner a estepe

r de Tolstoi ou a de T~hekov) 9 EerceE_~~~r_~~~~~~-~1_1-~--~~ terior ao homem na ausecircncia do homem Mas em todos estesI -

d~~~l~~~~~1~il~~t~~~Ii~~~~~~ I i~E~~J~~J~Jgt~~_ps~~~Jsmamp~lsa~ d-2~tqE ~-- c2~o

a cidadepoderia sermiddotsem h9~nQ~LiDl~lgt JLccedil_J~_Q~sectJ2Cl19_ sentz~Ih~q~~-middot~r~~~~fiacute~t~~esmCcedil=~~~Jecircn~2$~~IB-~rapeje I

middotEcirca-middote-iliacutegffia(f-~qii~nt~~-ie~~~~~~do) deCeacutezanne o ho-~ mem ausente mas inteiro na paisagem Os personagens natildeo podem existir e o autor soacute pode criaacute-los porque eles natildeo percebem mas entraram na paisagem e fazem eles mesmosI parte do composto de sensaccedilotildees Eacute Ahab que tem as percepshyccedilotildees do mar mas soacute as tem porque entrou numa relaccedilatildeo com

218 11 Filosofia Ciecircnci~ Loacutegica e Arte Percepto Afecto eConceito 219

-----

11~11 l i middot11

ili j f li

IJiiJ Moby Dick que o faz tornar-se-baleia e forma um composshy11jli to de sensaccedilotildees que natildeo precisa de ningueacutem mais Oceano jl

1j[i Eacute Mrs Dalloway que percebe a cidade mas porque entrou

lmiddotl middot na cidade como uma lacircmina atraveacutes de tudo e se tornou I i ela mesma imperceptiacutevel Os afectos satildeo precisamente esshy

1 ilJ tf~lfre~Eo httE2L~Z~S2fl-O ~~ifiPi9il middotI 1 tre eles a cidade) satildeoas paisagens 1Ct-EtCcedilJJEfftUreshy

i~ -H- 4a~fe~~~~~~~1~~~ZE~~~e~1i 1i1

1 -lfffr 1

~resta~~=~middotmiddot_~d--~middot~middot~-~~-~sg~~middotmiddot~~Qdo ~noacutes nos

Jiijl 1 tornamos contempla~d~=middot~~~T~dcecircisatildeo devi Tornamoshy- nos universo Devires animal~o ecular devir zero

1 i Kleist eacute sem duacutevida quem mais escreveu por afectos serviushy

11 do-se deles como pedras ou armas apreendendo-os em deshy1 vires de petrificaccedilatildeo brusca ou de aceleraccedilatildeo infinita no 1 1

~ ~ ~~ 1 devir-cadela de Pentesileacuteia e seus perceptos alucinados Isto 1~ I eacute verdadeiro para todas as artes que estranhos devires deshy

) I senca~~iam a muacutesica tr~veacutes de suas aisage~s meloacutedicas 11middot1 e seus personagens ntmtcos como dtz Messtaen componshy

111 do num mesmo ser de sensaccedilatildeo o molecular e o coacutesmiCo

IIJ as estrelas os aacutetomos e os paacutessaros Que terror invade a ~middotJ~ cabeccedila de Van Gogh tomada num devir girassol Sempre eacute

1 middotlj preciso o estilo-- a sintaxe de um escritor os modos e ritshy1~ 1 ~~~ mos de um m~co os traccedilos e as cores de um pintor- para

i1

i~ l fi ~~

1 6 Ceacutezanne op cit p 113 Cf Erwin Straus Du sens des sensEd ji Millon p 519 as grilndes paisagens tecircm todas elas um caraacuteter visioshy

j 111 naacuterio A visatildeo eacute o que d~ invisiacutevel se torna visiacutevel a paisagem eacute invisiacutevel1

I imiddot middot I nos perdemos Para cheshy~ porque quanto mais a conquistamos mais nelamiddotmiddot11middot d

I gar agrave paisagem devemos sacrificar tanto quanto middotpossiacutevel toda etermishy

i i naccedilatildeo temporal espacial objetiva mas este abandoacuteno natildeo~tinge somentei I J o objetivo ele afeta a noacutes mesmos na mesma medida Na paisagem deishy

~ middot xamos de ser seres histoacutericos isto eacute seres eles mesmos objetivaacuteveis Natildeo ~ middot~~ temos memoacuteria para a pai~agem natildeo temos memoacuteria nen1 mesmo para

~ noacutes na paisagem Sonhamos em pleno dia e com os olhos abertos SomomiddotsI 1 furtados ao mundo objetivo mas tambeacutem a noacutes mesmos Eacute o sentir

li 220 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

se elevar das percepccedilotildees vividas ao percepto de afecccedilotildees vividas ao afecto

Insistimos sobre a arte do romance porque eacute a fonte de um malentendido muitas pessoas pensam que se pode fazer um romance com suas percepccedilotildees e suas afecccedilotildees suas lemshybranccedilas ou seus arquivos suas viagens e seus fantasmas seus fiacutelhos e seus pais os personagens interessantes que pocircde enshycontrar e sobretudo o personagem interessante que eacute forccediloshysamente ele mesmo (quem natildeo o eacute) enfim suas opiniotildees para soldar o todo Invocam-se para tagravento grandes autores que soacute teriam contado sua vida Thomas Wolfe ou Miller Obteacutemshyse geralmente obras compostas em que algueacutem se agita muishyto mas na Jf_QCcedil-J~-deum-Paiq_~ soacute poderia encontrar em si mesmo 6-f~()mance do jornalista) Nada nos poupam na aushy

---middot--~ secircncia de qualquerTiatildeotildeatildelnotilderealmente artiacutestico Natildeo precisashy

mos alterar m~ito a cr~ordfdag~~Q_91~~~-P-~9_lt_y~_ nem o d-ecircmiddotshysesperoacute pelo qual se passou para produzir mais-~~---~ez

oacuteptmao que~-_ferjJp~nte~ordfi~-ordfR~fSfj_qsiil~S2ii~ii~i~ --ccedilatildeotildelossellini viu nisso uma razatildeo para renunciar agrave arte a arte atildeelXou-se invadir demais pelo infantilismo e pela crueldade toi nando-se simultaneamente cruel e chorosa gemebunda e satisshyfeita de modo que era_melhor renunciar7 O mais interessante eacute que Rossellini via a mesma invasatildeo na pmtura Mas eacute antes deI

I mais nada a literat~a que natildeo parou de manter este equiacutevoco com o vivido Pode acontecer mesmo que se tenha um grande senso de observaccedilatildeo e muita irrlagill_accediliiotilde~eacutepltSsiacutevel escre~~~n

P~ES~~-afecccedilotildees op~iotildeesMe~Otilde nosmiddotmiddot~an~~~~e~~-middotshyl autobiograacuteficOtildesvemos cOtildentrOtildentarem-se cruzarem-se opiniotildees de uma multidatildeo de personagens cada opiniatildeo sendo funccedilatildeo das percepccedilotildees e afecccedilotildees de cada um segundo sua situaccedilatildeo social e suas aventuras individuais sendo o conjunto tomado numa -8 vasta corrente que seria a opiniatildeo do autor que se divid~ par~ t-)l1--middot~~~ -- --middot-~=~~_~ --~-- shy

I bullmiddotmiddot ~middot ~_7 Rosselini Le cineacutema reacuteveacuteleacute Ed de lEtoile p 80-82

Percepto Afecto e Conceito 221

~ecai~~s-~QfCcedil_Qsect__]2etSQILltl~-UsectQg___~-S~Ccedil9~ls~gtJ~r~~q~~ -~-1~ -~~2~lt22-~ltJ~llli-LiisectEa~eacute e_~~JLW~sectIDamptCcedilJYsccedilPJXeCcedila~agraude JsguacuteadoampQmans~d~JiordfkhtilL(felizmente ele natildeo fica aiacute jusshytamente na base paroacutedica do romance )

AJ~ordf-Igtl1laccedilatildeo criadora nada tem a ver com uma lembranshyo-11 _ middotmiddotmiddot middotmiddotmiddotmiddotmiddot -~ -- middotmiddot ofPmiddotmiddot ccedila mesmo amplificada nem _ccedilgrn_UJll fantasma Com efeito l _ bull bullmiddotmiddot--middotbullmiddotbull middotmiddot middot---middotmiddotmiddotmiddotmiddot-bull middot -_ _ _ _

cJ middot middot ~ artista entre eles QJQII_~2Ccediltsect-ordf+-~~ccedil_ed5_2~~tad_1Eerc~p_shymiddot- ~ t1yo~ C ~~ J~~sagens afetivas do vividQ Eacute um vidente algueacutem

-~~_~ middot bull middotltmiddot~- middotmiddot middot middot bull bull middot middot middot middot - middot~ bull middot middot~-middot bullbull _ ___~ middot bullmiddot -ltuJo-~ middot)o - --middot - -- d gt middotmiddot~middotmiddot - middotbull-middot- middot-~middot~bull-bullgtbullbullbullbullOh __~~~T - -_ bullbull-middotmiddot middotmiddot

_-~g~~~--~~-S-9XA~middot Como contaria ele o que lhe aconteceu ou o que imagina jaacute que eacute uma sombra Ele viu na vida algo muito grande demasiado intoleraacutevel tambeacutem e a luta da vida com o que a ameaccedila de modo que o pedaccedilo de natureza que ele percebe ou os bairros da cidade e seus personagens aceshydem a uma visatildeo que compotildee atraveacutes deles perceptos desshyta vida deste momento fazendo estourar as percepccedilotildees vishyvidas numa espeacutecie de cubismo de simultanismo de luzcrua ou de crepuacutesculo de puacuterpura ou de azul que natildeo tecircm mais outro objeto nem sujeito senatildeo eles mesmos Chama-se de

-~~g2h12~~-~--g_ia~ltm~i ~~~-~-~~~-~~~~pa~~-d~-~2i~~ii9i~otilde ~~~~ Trata-se sempre de hberar a vida laacute onde ela eacute piishysiacuteoneira ou de tentar fazecirc-lo num combate incerto A morshyte do porco-espinho em Lawrence a morte da toupeira em Kafka satildeo atos de romancista quase insuportaacuteveis ~Qr___ vezes eacute preciso deitar na terra como faz o pintor Qara lo-

1~-middotbull--middot bull~~-~-middot-~middot-gt ~bull _ ~ middotmiddot - ~ - middot-~- _ _middotmiddot -middotmiddot~ -- bullbullmiddotmiddot ) middotbullmiddot middot --middot - middotbull - _)~ c _bull __~-----~middot middot ~

~-~~-1~~~a~~lt~--l2~Y2~middot~~~2=~=~J~-~fSltP~ Os perceptos podem ser telescoacutepicos ou microscoacutepicos datildeo aos personagens e agraves paisagens dimensotildees de gigantes como se estivessem repleshytos de uma vida agrave qual nenhuma percepccedilatildeo vivida pode atinshygir Grandeza de Balzac Pouco importa que esses personashygens sejam mediacuteocres ou natildeo eles se tornam giga~tes como Bouvard e Peacutecuchet Bloom e Molly Mercier e Camier sem deixar de ser o que satildeo Eacute por forccedila da mediocridade mes mQde_besteira oU-deinfacircmia_quepndemtrunar~se-natildeo-Sim- ple_tii~JordfisectJgt~~imples) mas gigantesco~Mesmo os anotildees

1

ou os invaacutelidos podem fazecirc-lo toda fabulaccedilatildeo eacute f~~~ ~e gigantesect~ Mediacuteocres ou grandiosos satildeo cellla~iadaflenshy~~_ylyos J2_ar_~-~E~I viviacuteveis ou vividos Thomas W olfe exshytrai de seu pai um gigante e Miller da cidade um planeta negro Wolfe pode descrever os homens do velho Catawha atraveacutes de suas opiniotildees imbecis e sua mania de discussatildeo o que faz eacute erigir o monumento secreto de sua solidatildeo de seu deserto de sua terra eterna e de suas vidas esquecidas despercebidas Faulkner pode criartambeacutem oh homens de Yoknapatawpha Diz-se que o romancista monumental se inspira ele mesmo no vivido e eacute verdade M de Charlus parece muito com Montesquiou mas entre Montesquiou e M de Charlus no final das contas haacute aproximadamente a mesma relaccedilatildeo que entre o catildeo-animal que late e o Catildeo consshytelaccedilatildeo celeste

Como tornar um momento do mundo duraacutevel ou fazecircshylo exititp~r--s-11Virginiwacircotildelfecirclaacute ~~--~~p-~t~q-~~-~i~ patilderacircmiddot a-pIacutenturamiddotOtilde~---ffiliacutesiacutecaiatildeiacuteito quanto para a escrita Sashy

turar cada aacutetomo Eliminar tudlt_lt_9~t eacute rt_~_QE_Qft~ ~middot- -middot

superfluidade~ tudo o que gruda em nossas percep__sotilde~-~-Elt___q

refffes-e-vivecirclas tuClOtilde_Otilde_q_~middot~middot --li~~~t~- otilde~9iii~itordf-P~fliacuteQ_

~~~~_ltfi~~t~~~Eacute~~~E~~sJotilde~i~~~~~~-ordf~-~~~p~r~~P-~ J~s~L ILQ~2IerlQ_Q~ b~iii9Jos_iatos_osoacuterdida~ma~-~I~~ em transparecircncia Colocar aiacute tudo e contudo saturar9

POtilde~t~tiacutengidoo-percepto como a fonte sagrada por ter visto a Vida no vivente ou o Vivente no vivido o romancisshyta ou o pintor voltam com olhos vermelhos e o focirclego curshy

8 No capiacutetulo II das Deux Sources Bergson analisa a fabulaccedilatildeo coshymo uma faculdade visionaacuteria muito diferente da imaginaccedilatildeo que consisshyte em criar deuses e gigantes potecircncias semi-pessoais ou presenccedilas efishycazes Ela se exerce inicialmente nas religiotildees mas desenvolve-se livreshymente na arte e na literatura

9 Virgiacutenia Woolf Journal dun eacutecrivain Ed 10-18 I p 230

222 11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 223

-~

to Satilde~ atletas natildeo atletas que teriam formado bem seus corpos e cultivado o vivido embora muitos escritores natildeo tenham resistido a ver nos _esportes urn meio de aumentar a arte e a vida mas antes atletas bizarros do tipo campeatildeo de jejum ou grande Nadador que natildeo sabia nadar Um Atletismo que natildeo eacute orgacircnico ou muscular mas um atleshy

-tismo afetivo que seria o duplo inorgacircnico do outro um atletismo do devir que revela somente forccedilas que natildeo satildeo as suas espectro plaacutestico 10 Desse ponto de vista os artisshytas satildeo como os filoacutesofos tecircm fregueJ-temente uma saudeshyziacutenha fraacutegil mas natildeo por causa de suas doenccedilas nem de suas neuroses eacute porque eleSViraacutem na_ida atildefgQCfe grande ccedill_ccedil_mais paratildeqliatildefquer um de grande demais para eles e gue QOcircs ndes ~atildedlscreta datildelliuumlrttamp1atildes-~~Jilt2ecirc~mbeacutem a fonte ~o fOcirclego q~llL~YiYJr_atraYi~~49s~clQ~l~ do_civishyflo (o 9~~~~E-~~P--ordf~~Q~-sauacutede) U~ dia saberemos talvez que natildeo havia art~ m~soacuteru~nte_~duumlina 1I

-------c5-[~ct-~iacutetapaa menos ~s afecccedilotildees que o pershycepto as percepccedilotildees Q afecto natildeo eacute a gassagltle um esshytado vivido a um outro mas o deviccedilnatildeqJ~_lJID-ordf9~QO homem __~~~--amp-- -middot---ltC-~=-----lt10-

Ahab natildeo imita Moby Dick e Pentesileacuteia natildeo se comporta como a cadela natildeo eacute uma imitaccedilatildeo uma simpatia vivida nem mesmo uma identificaccedilatildeo imaginaacuteria Natildeo eacute a semelhanshyccedila embora haja semelhanccedila Mas justamente eacute apenas uma semelhanccedila produzida Eacute antes uma extrema contiguumlidade num enlaccedilamento entre duas sensaccedilotildees sem semelhanccedila ou ao contraacuterio no distanciamento de uma luz que capta as duas num mesmo reflexo Andreacute Dhocirctel soube colocar seus pershy

10 Artaud Le theacuteacirctre et son double (Oeuvres completesGallimard IV p 154)

middot 11 Le Cleacutezio HAI Ed Flammarion p -7 (sou um iacutendio emboshyra natildeo saiba cultivar o milho nem talhar uma piroga ) Num texto ceacuteleshybre Michaux falava da sauacutedemiddotproacutepria agrave arte posfaacutecio a Mes proprieacuteshyteacutes La nuit remmue Gallimard p 193

li Filosofia Ciecircilcia Loacutegica e Arte

sonagens em estranhos devires-vegetais tornar-se aacutervore ou tornar-seaacutester natildeo eacute diz ele que um se transforme no outro

ma~~~~a--~um12 outro12 ~~~-~-lgg__ecirceacuteP~e ~~EN~shy

~2IDQ~~l)~sect~Sl9middot Eacute uma zona de indeterminaccedilatildeo de indiscerniacutebilidade como se coisas animais e pessoas (Ahab e Moby Dick Pentesileacuteia e a cadela) tivessem atingido em cada caso este ponto (todavia no infinito) que precede imeshydiatamente sua diferenciaccedilatildeo natural~gQ_JtlJccedil~Jgt~ ccedilhordfmallW---shy

~2-_f~g9_Em Pierre ou les ambiguiteacutes Pierre ganha a zona em que ele natildeo pode mais distinguir-se middotde sua meia-irmatilde Isabelle e torna-se mulher Soacute a vida cria tais zonas em que turbishylhonam os vivos e soacute a arte pode atingi-la e penetraacute-la em sua empresa de co-criaccedilatildeo Eacute que a proacutepria arte vive dessas ( zonas de indeterminaccedilatildeo quando o material entra na sen- - ~

Q) ssaccedilatildeo como numa escultura de Rodin Satildeo blocos A pintu- ri ra precisa d~ uma coisa diferente da habilidade do desenhista f f que marcana a semelhanccedila entre formas humanas e animais ( sect_

e nos faria assistir agrave sua metamorfose ~Jf_ccedilisQJ ~ordfltU~QltaacuteAt5 lltf __-9_~0_lot~_Ei~~EE f~pk~~~ d~-~~~ElaEf ~ de imp_r _a ex~~~~Uuml~~sielm-~~t~J-zonordfdlli1agravelEnios_e_sabeshy

-ffiili~CJllem eacute bulluuumlctrtaJ__~--flYoCcedilJJL~bumordfnordm_pruqw ordflg~Lsect_~J~ vanta como o triunfo ou o __~ony~nro_desuaindjsect~jnccediljig ~ssiacutenmiddot-cotildeyatilde-ou mesino Daumier Redon Eacute preciso que o artista crie os procedimentos e materiais sintaacuteticos ou plaacutesshyticos necessaacuterios a uma empresa tatildeo grande que recria por toda a parte os pacircntanos primitivos da vida (a utilizaccedilatildeo da aacutegua-forte e da aguatinta por Goya) O afecto natildeo opera cershytamente um retorno agraves origens como se se reencontrasse em termos de semelhanccedila a persistecircncia de um homem bestial ou primitivo sob o civilizado Eacute nos meios temperados de nossa civilizaccedilatildeo que agem e prosperam atualmente as zonas equatoriais ou glaciais que se furtam agrave diferenciaccedilatildeo dos gecircshy

12 Andreacute Dhocirctel Terres de meacutemoire Ed Universitaires p 225-226

Percepto Afecto e Conceito 225 224

neros dos sexos das ordens e dos reinos Soacute se trata de noacutes aqui e agora mas o que eacute animal em noacutes vegetal mineral ou humano natildeo mais eacute distinto- embora noacutes noacutes ganheshymos aiacute singularmente em distinccedilatildeo O maacuteximo de determishynaccedilatildeo emerge como _um claratildeo deste bloco de vizinhanccedila

Precisamente porque as opiniotildees satildeo funccedilotildees do vivishydo elas aspiram a um certo conhecimento das afecccedilotildees As opiniotildees insistem nas paixotildees do homem e sua eternidade Mas como observava Bergson temos a impressatildeo de que a oacute opiniatildeo desconhece os estados afetivos eque ela agrupa ou separa os que natildeo deveriam ser agrupados ou separados13 Jt Natildeo basta sequer como faz a psicanaacutelise dar objetos proishybidos agraves afecccedilotildees repertoriadas nem substituir as zonas de t indeterminaccedilatildeo por simples ambivalecircncias Um grande roshy ~

mancista eacute antes de tudo um artista que inventa afectos natildeo conheciacuteoosotildeu desconiiacuteecld(s e --os fazvir agrave luz do dia como- ------- ---------middot---- -------------middot-shy0 devir de seus personagens os estados crepusculares dos

- ~~-lei~~~os middotmiddotc-~middotaneacute~cr~middot-chreacutetien de Troyes (em relaccedilatildeo lI

com um conceito eventual de cavalaria) os estados de reshy 11

pouso quase catatocircnicos que se confundem com o dever segundo Mme de Lafayette (em relaccedilatildeo com um conceito de l

li quietismo) ateacute os estados de Beckett como afectos tanto I

imais grmdiosos quanto satildeo pobres em afecccedilotildees Quando I

Zola sugere a seus leitores prestem atenccedilatildeo natildeo eacute remorshyso que meus personagens sentem natildeo devemos mais ver nisso a expressatildeo de uma tese fisiologista mas a atribuiccedilatildeo de novos afectosque crescem com a criaccedilatildeo de personagens no naturalismo o Mediacuteocre o Perverso o Animal (o que Zola chama de instinto natildeo se separ~ de um devir-animal) Quando Emily Bronte traccedila o liame que_ une Heathcliff e Catherine ela inventa um afeto-violento (que sobretudo natildeo

13 Bergson La penseacutee et e mouvant Ed du Centenaire p 1293shy1294

226 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

v f ~~

c~l~f r1gt(1~~1- 7 (jJ-7JV middot ~

JV-10-shy

deve ser confundido com o amor algQ co~o uma fraternishydade entre dois lobos QuandoP~Oacute~t middot fece descrever tatildeo minuciosamente o ciuacuteme inventatilde-tt middot~fect~porque natildeo deishyxa de inverter a ordem que a opiniab--amptipOtildee nas afecccedilotildees segundo a qual o ciuacuteme seria uma consequecircncia infeliz do amor para ele ao contraacuterio o ciuacuteme eacute finalidade destinaccedilatildeo

e~reC1Suuml~~~CecircJ~~--j)uuml~J~-s~~E~I~~~~~sect~~~~~~~sectmiddotmiddotccedil_sect~e o s~nti9~-~2-~ig~~C2~~-to _ltlt_~_- ~~IP~2cgia _ Q~ando CL1ude Simon descreve o prodigjoso amor passivo da mushylher-terra esculpe um afecto de barro e pode dizer eacute mishynha matildee e acreditamos jaacute que ele diz mas uma matildeemiddotque ele introduz na sensaccedilatildeo e agrave qual ergue um monumento tatildeo original que natildeo eacute mais com seu filho real que ela tem uma relaccedilatildeo mas mais longinquamente com um outro personashygem de criaccedilatildeo a Eula de Faulkner Eacute assim que de um esshy

critor ~ um outro o~_gr~_de~-~f5S9LltJi~~ltim~~-P9si~L~-~ encademiddotar ouder~ampS~illCcedilQlJLlt~tQ~~~~~~-~~~i_es ~~~~~~~ fotildermaacutem vibram se e_nl~_s~_m QllJ~J~nccedil~P= sectiip-estesseres---~ acirceseUumls~CcedilatildeO(~datilde~~ta~da--relaccedilatildeodo_artistuQmo puacuteshy

b)i~~A~ltLasordf~--~~)f~-middot~l~~Jnmiddot-ordf~ul~ JJJJmesmQordf-Uacute~t~-~ll~~~s- _f 14 4

~~g~~ Rllt ~Y~l)tuaJ~Jilll4-sfccedillt ~~E~-~~-~--~nJr~gtI bull O artts- [k ta acrescenta sempre novas variedades ao mundo Os seres dordfsectJ~nsaccedilordf-ordmmiddotmiddotmiddot~ordfQvariltdades~ccedil_omoos~streampdecouccitossacirc~~ var~~ccedil2~~~~Q~~sectSf~~-deJu~_ccedilo _ ~ordfmiddot~-Y~~~i~y~js

Eacute de toda a arte que seria preciso dizer o artista eacute m__Qsect_ tracQId~-ordffeltos inventor de afec~~~E-tlt~oLde_ ordf-f~~ccedilJgsect~m middotICcedilatildeotilde com ~tp~~~E~~~~~-i~-~isOtildeEi~CcedilLU~QQsectgaacute Natildeo eacute soshymeilteeffisuacbraacute que ele os cria ele os daacute para noacutes e nos faz transformarnos com eles ele nos apanha no composto Os girassoacuteis de Van Gogh satildeo devires como os cardos de

14 Estas trecircs questotildees retornam frequentemente em Proust notadashymente Le temps retrouveacute La Pleacuteiade 111 p 895-896 (sobre a vida a vishysatildeo e a arte como criaccedilatildeo de universo)

Percepto Afecto e Conceito 227

Duumlrermiddot ou as mimosas de Bonnard Redon intitulava uma litografia Houve talvez uma visatildeo primeira ensaiada na flor A flor vecirc Puro e simples terror Vecirc vocecirc este girasshysol que olha para dentro pela janela do quarto Ele olha meu quarto todo o dia 15 Uma histoacuteria floral da pintura eacute como a criaccedilatildeo incessantemente retomada e continuada dos afecshytos e dos perceptos das flores A arte eacute a linguagem das senshysaccedilotildees que faz entrar nas palmiddot~r-acircsmiddotmiddotiacuteiatildes cOtilde~~~~-~~middot~~ ilas pearamiddots-x-agraverieuumli(t~iiacute~QfuilJatilde~middotr~uuml ci~aagravez ~IacuteriacuteJlE~~

middotmiddotarmiddotga~lziCcedilatilde() middotordf~i~~~fsiPsj2~-~~~~JiSCcedilsectlr~UJini otildees _ltiuacute~ sll-h~- tiiui por um ill()~E~Etccedilgt_Ccedilg~JEP~lt de ~certo~-de~Jectccedils middote de blo_~~smiddot~~j~-~SCcedilsect~sect91~fltt~~Jl-ordf~-ieze_sdeJing)Jordfg~lmiddot

O escritor se serve de palavras mas criando urna sintaxe que as introduz na sensaccedilatildeo e que faz gaguejar a liacutengua correnshyte ou tremer ou gritar ou mesmo cantar eacute o estilo o tom a linguagem das sensaccedilotildees ou a liacutengua estrangeira na liacutengua a que solicita um povo por vir oh gente do velho Catawba oh gente de Yoknapatawpha O escritor torce a linguagem fj-la vibrar a~accedila-a fende-a para arrancar o percepto middotdas percepccedilotildees o afecto das afecccedilotildees a sensaccedilatildeo da opiniatildeo_ ~---shy_________ -shyvisando esperamos esse povo que ainda natildeo existe Mishynha memoacuteria natildeo eacute amor mas hostilidade e ela trabalha natildeo para reproduzir mas para descartar o passado Que queshyria dizer minha famiacutelia eu natildeo sei Ela era gaga de nascenshyccedila e contudo tinha algo para dizer Sobre mim e sobre muishy

tos de meus contemporacircneos pesa a gagueira de nascenccedila Aprendemos natildeo a falar mas a balbuciar e eacute soacute ouvindo o ruiacutedo crescente do seacuteculo e uma vez lavados pela espuma de sua onda mais alta que noacutes dquiijmos uma liacutengua 16

Precisamente eacute a tarefa de toda arte e -a pintura a muacutesica

15 Lowry Au-dessous du fOlcan Ed Buchet-Chastel p 203

16 Mandelstam Le bruit du temps Ed LAge dhomme p 77

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

natildeo arrancam menos 4as cores e dos sons acordes novosmiddot paisagens plaacutesticas ou ~eloacutedicas personagens riacutetmicos que os elevam ateacute o canto 1a terra e o grito dos homens- o que constitui o tom a sauacutede o devir um bloco visual e sonoro Um monumento natildeo comemora natildeo celebra algo que se passou mas transmit~ para o futuro as sensaccedilotildees persistenshytes que encarnam o a ntecimento o sofrimento sempre reshynovado dos homens eu protesto recriado sua luta sempre retomada Tudo seri vatildeo por ue o sofrimento LeteIlO_~ as revoluccedilotildees natildeo so revivem agrave sua vitoacuteria Mas o sucesso dmiddot~ uumlmarevotildeTuCcedilatildeos9-resid~ela me~~-precisamente nas vibraccedilotildees nos enlace~ nas aberturas que deu aos homens no ~--=----=-----1-o----------------~-middot momento em que se fazia e que compotildeem em si um monushy

middotm-eirto sempre em vir como esses tuacutemulos aos quais cada novo viajante acresagraventa uma pedra A vitoacuteria de uma revolushyccedilatildeo eacute imanente e consiste nos novos liames que instaura entre os homens mesmo se estes natildeo duram mais Q1Je sua mateacuteshy

r~ em fusatilde5_gt_j~~~--~Jiga_peng-ordfillYisectatildeQ_acirc traiccedilatildeo As figuras esteacuteticas (e o estilo que as cria) natildeo tecircm nada

a ver com a retoacuterica SiiQsect~Otildees 12erceptos~-~~~~shy~ordf~nserostnsrisotildees_e_d~yius_Mas natildeb eacute tambeacutem pelo devir que definimos o conceito filosoacutefico e quase nos mesmos tershymos Todavia as figUumlras esteacuteticas natildeo satildeo idecircnticas aos pershysonagens cmiddotonceituais Talvez entrem uns nos outros num ~entido ou no outro como Igitur ou como Zaratustra mas

eacute na medida em que -~~~~sect~s cJ~-~onceicto2_~S2-Seit~-~ q~ sccedilg~ordfccedilotildee_s Nao eacute o mesmo devir O devir sensiacutevel eacute o ato pelo qual algo ou algueacutem natildeo paacutera de deVir-outro (continuanshydo a ser o que eacute) girassol ou Ahab enquanto que o devir

~

conceitual eacute o ato pelo qual o acontecimento comum ele mesmo esquiva o que eacute Este eacute heterogeneidade compreenshydida numa forma absoluta aquele a alteridad~ empenhada numa mateacuteria de expressatildeo O monumento natildeo atualiza o acontecimento virtual mas o incorpora ou o encarna acirca--shy

middot--~--middot---- middot~----------~middot---middot-middot--middot~~--middotmiddot- ---middotmiddotmiddotmiddot

Percepto Afecto e Conceito 228 229

lhe um corpo uma vida um universo Eacute assim que Proust definia a arte-monumento por esta via SU_I)erior ao vivido suas diferenccedilas qualitativas seus universos que consshytroem seus proacuteprios limites seus distanciamentos e suas aproshyximaccedilotildees suas constelaccedilotildees os blocos de sensaccedilotildees que eles fazem rolar o universo-Rembrandt ou universo-Debussy Estes universos natildeo satildeo nem virtuais nem atuais satildeo possiacuteshyveis o possiacutevel como categoria esteacutetica (possiacutevel por favor senatildeo eu sufoco) a existecircncia do possiacutevel enquanto que os acontecimentos satildeo a realidade do virtual formas de um penshysamento-Natureza que sobrevoam todos os universos posshysiacuteveis Natildeo significa dizer que o conceito precede de direito a sensaccedilatildeo mesmo um conceito de sensaccedilatildeo deve ser criashydo com seus meios proacuteprios e uma sensaccedilatildeo existe em seu universo possiacutevel sem que o conceito exista necessariamente em sua forma absoluta

Pode a sensaccedilatildeo ser assimilada a uma opiniatildeo originaacuteshyria Urdoxa como fundaccedilatildeo do mundo ou base imutaacutevel A fenlt_~~~~ogiltl encontra a sensaccedilatildeo em a priori materiais shyperceptivos e afectivos que transcendem acircs per-cepCcedilOtildees ecirc afecshy

Ccedilotilde~~middot~iVfd-atilde$ middototildemiddot-aillatildere-iotildeecircleVail cuumlgKmiddotocirc~--~s -~ens~Ccedilotilde~s middot ~acirc-middotratildes de Ceianne A fenomenologia deve fazer-se fenomenoshylogia da arte jaacute vimos porque a imanecircncia do vivido a um sujeito transcendental precisa exprimir-se em funccedilotildees transshycendentes que natildeo determinam somente a experiecircncia em geral mas que atravessam aqui e agora o proacuteprio vivido e I se encarnam nele constituindo sensaccedilotildees vivas O ser da senshy I

I I middot

I saccedil-ordf9_ _Q__blQccedilQ d_d percepto ~=fo ~feccedil~Q ltPareceraacute ~ornomiddot middot middot I

_Unidade ou a reversibilidade daquele que s~t~ - ~ middotd~-~-e~d- I doseu1ntiffiuuml eacute~t~r~ccedilmiddota~ento c()~uuml matilde~~ middotq~~i-~~~_middot- bullI

1 middot-middotmiddoteacute-~a--~arne que vai se libertar ao mesmo tempmiddoto do corpo vivishydo do mundo percebido e da intencionalidade de um ao outro ainda muito ligada agrave experiecircncia - enquanto a carshyne nos daacute o ser da sensaccedilatildeo e carrega a opiniatildeo originaacuteria

230 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

distinta do juiacutezo de experiecircncia Carne do mundo e carne do corpo como correlatos que se trocam coincidecircncia ideaF7

Eacute um curioso Carnismo que inspira este uacuteltimo avatar da fenomenologia e a precipita no misteacuterio da encarnaccedilatildeo eacute uma noccedilatildeo piedosa e sensual ao mesmo tempo uma misshytura de sensualidade e de religiatildeo sem a qual a carne talshymiddotvez natildeo ficaria de peacute sozinha (ela desceria ao longo dos ossos como nas figuras de Bacon) A questatildeo de saber se a carne eacute adequada agrave arte pode se enunciar assim eacute ela capaz de carshyregar o percepto e o afecto de constituir o ser de sensaccedilatildeo ou entatildeo eacute ela mesma que deve ser carregada e ingressar em outras potecircncias de vida

A carne natildeo eacute a sensaccedilatildeo mesmo se ela participa de sua middot revelaccedilatildeo Era precipitado dizer que a sensaccedilatildeo encarna A pintura faz a carne ora com o encarnado (superposiccedilotildees do vermelho e do branco) ora com tons justapostos (jUstaposhysiccedilatildeo de complementares em proporccedilotildees desiguais) Mas o que constitui a sensaccedilatildeo eacute o devir-animal vegetal etc que monta sob as praias de encarnado no nu mais gracioso mais delicado corria a presenccedila de um animal descarnado de um fruto descascado Vecircnus no espelho ou que surge na fusatildeo no cozimento no derramar de tons justapostos como a zona

17 Desde a Pheacutenomeacutenologie de lexpeacuterience estheacutetique (PUF 1953) Mikel Dufrenne fazia uma espeacutecie de analiacutetica dos a priori perceptivos e afetivos que fundavam a sensaccedilatildeo como relaccedilatildeo do corpo e do mundo Permanecia proacuteximo de Erwin Straus Mas haacute um ser de sensaccedilatildeo que se manifestaria na carne Era middota via de Merleau-Ponty no Le visible et linshyvisible Dufrenne fazia muit~s r~ervas a uma tal ontologia da carne (Loeil et loreille Ed LHexagone) Recentemente Didier Franck retomou o tema de Merleau-Ponty mostrando a importacircncia decisiva da carne segundo Heidegger e jaacute Husserl (Heidegger et le probleme de [espace Chair et corps Ed de Minuit) Todo este problema estaacute no centro de umafenoshymenologia da arte Talvez o livro ainda ineacutedito de Foucault Les aveux de la chair nos informe sobre as origens mais gerais da noccedilatildeo de carne e seu alcance na Patriacutestica

Percepto Afecto e Conceito 231

de indiscernibilidade do animal e do homem Talvez fosse um embaralhamento ou um caos se natildeo houvesse um segunshydo elemento para dar consistecircncia agrave carne_ A carne eacute apeshynas o termocircmetro de um devir A carne eacute tenra demais O segundo elemento eacute menos o osso ou a ossatura que a casa

rltmiddotr a armadura O corpo desabrocha na casa (ou num equivashylente numa fonte num bosque) Ora o que define a casa

( I satildeo as extensotildees isto eacute os pedaccedilos de planos diversamente orientados que datildeo agrave carne sua armadura primeiro-plano e plano-de-fundo paredes horizontais verticais esquerda dishyreita retos e obliacutequos retiliacuteneos ou curvos 18 Essas extenshysotildees satildeo muros mas tambeacutem solos portas j arielas portasshyjanelas espelhos que datildeo precisamente agrave sensaccedilatildeo o poder de manter-se sozinha em molduras autocircnomas Satildeo as faces do bloco de sensaccedilatildeo E haacute certamente dois signos do gecircnio dos grandes pintores bem como de sua humildade o respeishyto quase um terror com o qual eles se aproximam da cor e entram nela o cuidado com o qual operam a junccedilatildeo dos

Imiddot planos da qual depende o tipo de profundidade Sem este respeito e este cuidado a pintura eacute nula sem trabagravelho sem pensamento O difiacutecil eacute juntar natildeo as matildeos mas os planos Fazer relevos com planos que se juntam ou ao contraacuterio escarificaacute-los cortaacute-los Os dois problemas a arquitetura dos planos e o regime da cor se confundem frequumlentemente A junccedilatildeo dos planos horizontais e verticais em Ceacutezanne os planos na cor os planos o lugar colorido ou a alma dos planos entra em fusatildeo ~~_grandes P~_esou mesmo duas grandes obras que operem da mesma ~~nei-

-----=~Haacute todavia tendecircncias num pintotilderem middotGiaco~ettipo-18

Como mostra Georges Didi-Huberman a-carne middot~~gendra uma i duacutevida ela eacute proacutexima demais do caos donde a necessidade de uma

complernentariedade entre o encarnado e a extensatildeo tema essencial de La peinture incarneacutee retomada e desenvolvida em Devant limage Ed de Minuit

232 II Filosofia Ciecircncia middotLOacutegica e Arte

exemplo os planos horizontais fugidios diferem agrave direita e middot agrave esquerda e parecem se reunir na coisa (a carne da pequeshyna maccedilatilde) mas como uma pinccedila que a puxaria para traacutes e a faria desaparecer se uni plano vertical do qual soacute se vecirc o fio sem espessura natildeo viesse fixaacute-la retecirc-la no uacuteltimo moshymento dar-lhe uma existecircncia duraacutevel agrave maneira de um longo alfinete que a atravessa e a tornafiliforme por sua vez A casa participa de todo um devir Ela eacute vida ~vida natildeo

orgacircnica das coisas De todos 9s modos possiacute~sect~a_ LYD~-~ ccedilatildeo do~_planos~e mitorientaccedilOtildees que define t_casa-sens~-~-~---~ ccedilatildeo Aiacute~asa mesma (o_u-middotseu equivalente) eacute a junccedilatilde9T~itaii~------planos cQlruicles____

middot middot-middot--~rceiro elemento eacute o universo o qgtsmos Natildeo eacute soshymentea-Catildesatildeabeitaque secirc-cotildelliiriic co~ ~ p~i~agem por ~ffiatilde )atildeiieratilde- middoto-tr-uumlm espeino iiiatildes--atildemiddot-~8middot-middot~middotas~fe~~~~ ~~atilde__ atilde5e~t~-sotildebreuumlmuiiiacutevecircrsomiddot middotx- middotcamiddotsacirc-eacutefe viuuml~ecirct s~ vecirc sempre ~~pi~dmiddot -p-~i~~ fccedil~~- ~egetais de um jardim incontrolaacutevel cosmo das rosas Um universo-cosmos natildeo eacute carne Nem mesmo plano pedaccedilos de planos que se juntam planos dishyversamente orientados embora a junCcedilatildeo de todos os planos ateacute o infinito possa constituiacute-lo Mas o universo se apresenshyta no limite como o fundo da tela o uacutenico grande plano o vazio colorido o infinito monocromaacutetico A porta-janela como em Matisse soacute se abre sobre um fundo negro A carne ou antes a figura natildeo mais eacute o habitante do lugar da casa mas o habitante de um universo que suporta a casa (devir) Eacute como uma passagem do finito ao infinito mas tambeacutem do territoacuterio agrave desterritorializaccedilatildeo Eacute bem o momento do infishynito infinitos infinitamente variados Em Van Gogh em Gauguin em Bacon hoje vemos surgir a imediata tensatildeo da carne e do fundo dos derrames de tons justapostos e da praia

I

infinita de uma pura cor homogecircnea viva e saturada (em lugar de pintar a parede banal do mesquinho apartamento eu pinto o infinito faccedilo um fundo simples do azul mais rico

233Percepto Afecto e Conceito

mais intenso ) 19 Eacute verdade que o fundo monocromaacutetico

eacute mais do que um fundo E quando a pintura quer comeccedilar do zero construindo o percepto como um miacutenimo antes do vazio ou aproximando ao maacuteximo do conceito ela proceshy~e por monocromia liberada de toda casa ou de toda carne E notadamente o azul que se encarrega do infinito e qu~ faz do percepto uma sensibilidade coacutesmica ou o que haacute de mais conceitual na natureza ou de mais proposicional a cor na ausecircncia do homem o homem mergulhado na cor mas se o azul (ou o negro ou o branco) eacute perfeitamente idecircnshytico no quadro ou de um quadro a outro eacute a pintura que se torna azul- Yves o monocromo- segundo um puro afecto que faz o universo mergulhar no vazio e natildeo deixa mais nada por fazer ao pintor por excelecircncia20_

O vazio colorido ou antes colorante jaacute eacute forccedila A maior parte dos grandes monocromos da pintura moderna natildeo mais tecircm necessidade de recorrer a pequenos buquecircs murais mas apresentam variaccedilotildees sutis imperceptiacuteveis (todavia constishytutivas de um percepto) seja porque satildeo cortados ou conshy

19 Van Gogh carta a Theacuteo Correspondance complete Gallimardshy

Grasset III p 165 Os tons justapostos e sua relaccedilatildeo com o fundo satildeo um tema frequumlente da correspondecircncia Tambeacutem Gauguin carta a Schuffeshynecker 8 de outubro de 1888 Lettres Ed Grasset p 140 Eu fiz urn retra to de mim para Vincent Eacute acredito eu uma das minhas melhores coisas absolutamente incompreensiacutevel (por exemplo) de tal maneira eacute abstra~o o seu d~senho eacute inteiramente arbitraacuterio abstraccedilatildeo cornpl~ta a c~r ~uma co~ d1sta1te da natureza imagine uma vaga lembranccedila de ceram1ca retor~rda pelo fogo forte Todos os vermelhos os violetas rajashydas pelos claroes de fogo como uma fornalha radiante aos olhos sede das lutas do pensamento do pintor O todo sobre um fundo cromo seshymeado de buquecircs infantis Quarto de moccedila pura Eaacute ideacuteia do coloriacutesta arbitraacuterio segundo Van Gogh

~~ Cf Artst~dio no 16 Monochromes (sobre Klein artigos de Genev1eve Monmer e de Denys Riout e sobre os avatares atuais do monocromo artigo de Pierre Sterckx)

234 IL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tornados de um lado por uma fita um faixa uma extensatildeo de uma outra cor ou de um outro tom que mudam a intenshysidade do fundo por vizinhanccedila ou distanciamento seja porshyque apresentam figuras lineares ou circulares quase virtuais tom sobre torit seja porque satildeo esburacados ou fendidos satildeo problemas de junccedilatildeo ainda mas singularmente ampliados

Numa palavra o fundo vibra se enlaccedila ou se fende poque eacute portador de forccedilas apenas vislumbradas E o q~e fazia de iniacutecio a pintura abstrata convocar asforccedilas povoar o funshydo com as forccedilas que ele abriga fazer ver nelas mesmas as forshyccedilas invisiacuteveis traccedilar figuras de aparecircncia geomeacutetrica mas que natildeo seriam mais do que forccedilas forccedila de gravitaccedilatildeo de peso de rotaccedilatildeo de turbilhatildeo de explosatildeo de expansatildeo de gershyminaccedilatildeo forccedila do tempo (como se pode dizer da muacutesica que ela faz ouvir a forccedila sonora do tempo por exemplo com Messhysiaen ou da literatura com Proust que faz ler e conceber a forccedilaacute ilegiacutevel do tempo) Natildeo eacute esta a definiccedilatildeo do percepto em pessoa tornar sensiacuteveis as forccedilas insensiacuteveis que povoam o mundo e que nos afetam nos faze~ devir O que Mondrian obteacutem por simples diferenccedilas entre lados de um quadrado e Kandinsky pelas tensotildees lineares e Kupka pelos planos curvos em torno do ponto Do fundodas eras nos vem o que Worringer chamava a linha setentrional abstrata e infinita linha do uacuteniverso que forma fitas e tiras rodas e turbinas toda uma geometria viva elevando agrave intuiccedilatildeo as forccedilas mecacircshynicas constituindo uma poderosa vida natildeo-orgacircnica21

O eterno objeto da pintura pintar as forccedilas como Tintoretto

Encontraremos tambeacutem talvez a casa e o corpo E que o fundo infinito eacute frequumlentemente aquilo sobre o que se abre a janela ou a porta ou entatildeo eacute o muro da proacutepria casa ou o solo Van Gogh e Gauguin semeiam o fundo de pequenos buquecircs de flores para fazer deles o papel mural

21 Worringer Lart gothique Gallimard

Percepto Afecto e Conceito 235

sobre o qual se destaca o rosto de tons justapostos E com efeito a casa natildeo nos abriga das forccedilas coacutesmicas no maacutexishymo ela as filtra elas as seleciona Ela as transforma algushymas vezes em forccedilas benevolentes jamais a pintuacutera fez ver a forccedila de Arquimedes a forccedila do empuxltgt da aacutegua sobre um corpo gracioso que flutua na banheira da casa como Bonnard conseguiu em o Nuacute no banho Mas tambeacutem as forccedilas mais maleacuteficas podem entrar pela porta entreabershyta ou fechada satildeo as forccedilas coacutesmicas que provocam elas mesmas as zonas de indiscernibilidade nos_tons justapostos de um rosto esbofeteando-o arranhando-o fundindo-o em todos os sentidos e satildeo estas zonas de indiscernibilidade que revelam as forccedilas escondidas no fundo (Bacon) Haacute plena complementariedade enlace de forccedilas como perceptos e de devires como afectos A linha de forccedila abstrata segundo ~orringer eacute rica em motivos animalescos Agraves forccedilas coacutesshymicas ou cosmogeneacuteticas correspondem devires-aniinais veshy

geta1s moleculares ateacute que o corpo desapareccedila no fundo ou entre no muro ou inversamente que o fundo se contorshyccedila e turbilhone na zona de indiscernibilidade d~ corpo~ Numa palavra o ser de sensaccedilatildeo natildeo eacute a carne mas o comshyposto das forccedilas natildeo-humanas do cosmos dos devires natildeo humanos do homem e da casa ambiacutegua que os troccedila e os ajusta os faz turbilhonar como os ventos A carne eacute somenshyte o revelador que desaparece no que revela o composto de sensaccedilotildees Como toda pintura a pintura abstrata eacute senshysaccedilatildeo nada mais que sensaccedilatildeo Em Mondrian eacute o quarto que acede ao ser de sensaccedilatildeo dividindo por extensotildees coshyloridas o plano vazio infinito que lhe daacute de volta um infishy

d b 22 mto e a ertura Em Kandinsky as casa~ satildeo uma das

22 Mondrian Reacutealiteacute naturelle et reacutealiteacute abstraite (in Seuphor Piet

Mondnan sa vie son oeuvre Ed Flammarion) sobre o quarto e seu desdobramento Michel Butor analisou este desdobramento do quarto em

236 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

fontes da abstraccedilatildeo que consiste menos em figuras geomeacuteshytricas que em trajetos dinacircmicos e linhas de erracircncia cashyminhos que caminham nos arredores Em Kupka eacute de iniacuteshycio sobre o corpo que o pintor talha fitas ou extensotildees coshyloridas que produziratildeo no vazio os planos curos que o povoam tornando-se sensaccedilotildees cosmogeneacuteticas__ ~--~--~~~~

ccedilatildeoe~_pi_rjtual ou j~ um _~Ol~-~-i_g_viSgt= O _q~-~~t-~ lt1 ~~-~~- uacuten1verso A ~r~~ - aJs~rata_~ s~P25 a ~rte _C()flC~I~~~_Elt~~~-- middot-Pmiddot cacirc~dTmiddot~tamente a questatildeo que impregna toda pintura ---- --middot-shys~~ - ~-eiacute~Ccedilatilde-uumlcocircffi o ~~~~~ito~sti-a relaccedilatildeo com a funccedilatildeo middot_

A arte comeccedila talv-ez--com o animal ao menos com o animal que recorta um territoacuterio e faz uma casa (os dois satildeo correlativos ou ateacute mesmo se confundem por vezes no que se chama de habitat) Com o sistema territoacuterio-casa muitas funccedilotildees orgacircnicas se transformam sexualidade procriaccedilatildeo agressiyidade alimentaccedilatildeo mas natildeo eacute esta transformaccedilatildeo que explica a apariccedilatildeo do territoacuterio e da casa seria antes o

inverso o territoacuterio impli~a na emergecirc~lti~ e 91-ali_cll~~-~sel~ siacuteveis pu~- ~~-ibiIacuteia qua~ixacirciiacuteiacute -de ser unicaii1~_Ilt_e ushyecirc(ocircOtildeagraveisecirc cse- ioacuternani-tragraveCcediluumlsmiddotae express~Otilde__ tormiddotn~~~~J~~s~V~l tiffiagravetiansfocirciinaCcedilatildeo (G$iacute~i1Ccedilotildees23 s~ni duacutevida esta expresshysivlamp1deTaacuteestacirc dltu~ch~E~~~middot Vida~ pode-se dizer que o simshyples liacuterio dos campos celebra a gloacuteria dos ceacuteus Mas eacute com o territoacuterio e a casa que ela se torna construtiva e ergue os monumentos rituais de uma missa animal que celebra as quashylidades antes de tirar delas novas causalidades e finalidades Esta emergecircncia jaacute eacute arte natildeo somente no tratamento dos materiais exteriores mas nas posturas e cores do corpo nos

quadrados ou retacircngulos e a abertura sobre um quadrado interior vazio e branco como promessa de quarto futuro Reacutepertoire III Le carreacute et son habitant Ed de Minuit p 307-309314-315

23 Parece-nos que eacute um engano de Lorenz querer explicar o terrishytoacuterio por uma evoluccedilatildeo das funccedilotildees L agression Ed Flammarion

Percepto Afecto e Conceito 237

cantos e nos gritos que marcam o territoacuterio Eacute um jorro de traccedilos de~-~2E~~- e de sons inseparaacuteveisna dtecTda em que s~ -~riill _ ~xpr~~isiV_9_~ ~-(~i~~~i-~ill~~9l0_~_4~ middotr~ritoacute~i~fCcedil Scenopoietes dentirostris paacutessaro das florestas chuvosas da Austraacutelia faz cair da aacutervore as folhas que corta cada manhatilde vira-as para que sua face interna mais paacutelida contraste com a terra constroacutei para si assim uma cena co_mo um readyshymade e canta exatamente em cima sobre um cipoacute ou-um galho um canto complexo composto de suas proacuteprias noshytas e das de outros paacutessaros que imita nos intervalos mosshytrando a raiacutez amarela das plumas sob seubico eacute um artista completo24

bull Natildeo satildeo as sinestesias em plena carne satildeo esshytes blocos de sensaccedilotildees no territoacuterio cores posturas e sons que esboccedilam uma obra de arte total Estes blocos satildeo rishytorneios mas haacute tambeacutem ritornelos posturais e de cores e tanto posturas quanto cores se introduzem sempre nos ritor~ nelas Reverecircncias e posiccedilotildees eretas rondas traccedilos de coshyres O ritornelo inteiro eacute o ser de sensaccedilatildeo Os monumenshytos satildeo ritornelos Desse ponto de vista a arte natildeo deixaraacute de ser habitada pelo animal A arte deKafka seraacute a mais prbshy

funda meditaccedilatildeo sobre o territoacuterio e a casa o terreiro as pos~ turas~retrato (a cabeccedila pendida do habitante com o queixo enterrado no peito ou ao contraacuterio o grande tiacutemido que fura o teto com seu cracircnio anguloso) os sons-muacutesica (os catildees que satildeo muacutesicos por suas proacuteprias posturas Josephine a ratinha cantora da qual ja~ais saberemos se canta Gregoire que une seu piadoao violino de sua irmatilde numa relaccedilatildeo comshyplexa quarto-casa~territoacuterio) Eis tudo o que eacute preciso para fazer arte uma casa posturas cores e cantos - sob a conshy ~

I diccedilatildeo de que tudo isso se abra e se lance sobre ummiddotvetor louco como uma vassoura de bruxa uma linha d~ universo ou de

24 Marshall Bowler Birds Oxford at the Clarendon Press Gilliord Birds of Paradise and Bowler Birds Weidenfeld

desterritorializaccedilatildeoPerspectiva de um quarto com seus hashybitantes (Klee )

Cada territoacuterio cada habitat junt a seus planos ou suas extensotildees natildeo apenas espaccedilo-temporais mas qualitativos por exemplo uma postura e um canto um canto e urna cor perceptos e afectos E cada territoacuterio engloba ou recorta ter~ ritoacuterios de outras espeacutecies ou intercepta trajetos de animais sem territoacuterio formando junccedilotildees inUacuterespeciacuteficltlS Eacute neste sentido que Uexkuumlhl num primeiro aspecto desenvolve urna concepccedilatildeo da Natureza meloacutedica polifocircnica contrapontual Natildeo apenas o canto de um paacutessaro tem suas relaccedilotildees de conshytraponto mas pode fazer contraponto com o canto de oushytras espeacutecies e pode ele mesmo imitar estes outros cantos como se se tratasse de ocupar um maacuteximo de frequumlecircnciacuteas A teia de aranha conteacutem um retrato muito sutil da mosca que lhe serve de contraponto A concha como casa do moshylusco~ se torna quando ele morre o contraponto do Bershynardo-eremita que faz dela seu proacuteprio habitat graccedilas a sua cauda que natildeo eacute nadadeira mas preecircnsil e lhe permite capshyturar a concha vazia O Carrapato eacute organicamente consshytruiacutedo de modo a encontrar seu contraponto no mamiacutefero qualquer que passa sob seu galho como as folhas de carvashylho arranjadas como telhas nas gotas de chuva que escorshyrem Natildeo eacute uma concepccedilatildeo finalista mas meloacutedica em que natildeo mais sabemos o que eacute arte ou natureza (a teacutecnica nashytural) haacute contraponto toda vez que uma melodia interveacutem como motivo numa outra melodia como nas bodas enshytre a mamangava e a boca-de-leatildeo Essas relaccedilotildees de contrashyponto juntam planos formam compostos de sensaccedilotildees bloshycos e determinam devires Mas natildeo satildeo somente estes comshypostos meloacutedicos determinados que constituem a natureza mesmo generalizados eacute preciso tambeacutem sob um outro asshypecto um plano de composiccedilatildeo sinfocircnica infinio da Casa ao universo Da endo-sensaccedilatildeo agrave exo-sensaccedilatildeo E que o tershy

bull 238 li Filosofia Ciecircnci~ Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 239

r I I I-- --- --

~ -

middot1

ritoacuterio natildeo se limita a isolar e juntar ele abre para forccedilas coacutesmicas que sobem de dentro ou que vecircm de fora e torna sensiacuteveis seu efeito sobre o habitante Eacute um plano de comshyposiccedilatildeo do carvalho que porta ou comporta a forCcedila de deshysenvolvimento da bolota e a forccedila de formaccedilatildeo das gotas ou o do carrapato que tem a forccedila da luz capaz de atrair o animal ateacute a ponta de um galho numa altura suficiente e a forccedila de peso com a qual se deixa cair sobre o mamiacutefero que passa -e entre os dois nada um vazio assustador que pode durar anos se o mamiacutefero natildeo passa25bull E ora as forccedilas se fundem umas nas outras em transiccedilotildees sutis decompotildeemshyse tatildeo logo vislumbradas ora se alternam ou se enfrentam Ora deixam-se selecionar pelo territoacuterio e satildeo as mais beshynevolentes que entram na casa Ora lanccedilam um apelo misshyterioso que arranca o habitante do territoacuterio e o precipita numa viagem irresistiacutevel como os pintassilgos que se reuacuteshynem frequentemente aos milhotildees ou as lagostas que empreshyendem uma imensa peregrinaccedilatildeo no fundo da aacutegua Ora se abatem sobre o territoacuterio e o invertem malevolentes restaushyrando o caos de onde ele mal saiacutea Mas sempre se a nature za eacute como a arte eacute porque ela conjuga de todas as maneiras esses dois elementos vivos a Casa e o Universo o Heimlich e o Unheimlich o territoacuterio e a desterritorializaccedilatildeo os comshypostos meloacutedicos finitos e o grande plano de composiccedilatildeo infinito o pequeno e o grande ritornelo

A arte comeccedila natildeo com a carne mas com a casa eacute por isso que a arquitetura eacute a primeira das artes Quando Dushybuffet procura delifuitar um certo estado bruto de arte eacute a princiacutepio na direccedilatildeo da casa que ele se volta e toda sua obra se ergue entre a arquitetura a escultura e a -pintUra E limishy

25 Cf a obra-prima de J von Uexkuumlhl Mondes animaux et monde humain Theacuteorie de la signification Ed Gonthier (p 137-142 o contrashyponto motivo do desenvolvimento e da morfogecircnese)

II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tando-nos agrave forma a arquitetura mais saacutebia natildeo deixa de fazer planos extensotildees e de juntaacute-los Eacute por isso que se pode defini-la pela moldura um encaixe de molduras diversashymente orientadas que se imporiam agraves outras artes da pinshytura ao Cinema Jaacute se apresentou a preacute-histoacuteria do quadro como passando pelo afresco na moldura da parede o vitral ha moldura da janela o mosaico na moldura do solo A moldura eacute o umbigo que liga o quadro ao monujllento do qual ele eacute a reduccedilatildeo como a moldura goacutetica com coluneshytas ogiva e flecha26 Fazendo da arquitetura a arte primeira da moldura Bernard Cache pode enumerar um certo nuacutemero de formas enquadrantes que natildeo prejulgam nenhum conteuacuteshydo concreto nem funccedilatildeo do edifiacutecio o mu~o que isola ajashynela que capta ou seleciona (em conexatildeo com o territoacuterio) o solo-chatildeo que conjura ou rarifica (rarificar o relevo da terra para dar livre curso agraves trajetoacuterias humanas) o teto que envolve a singularidade do lugar (o teto em declive coloca o edifiacutecio sobre uma colina ) Encaixar essas molshyduras ou juntar todos estes planos extensatildeo de muro exshytensatildeo de janela extensatildeo de solo extensatildeo de declive eacute todo um sistema composto rico em pontos e contrapontos As molduras e suas junccedilotildees sustentam os compostos de sensashyccedilotildees datildeo consistecircncia agraves figuras confundem-se com seu dar consistecircncia seu proacuteprio tocircnus Aiacute estatildeo as faces de um cubo de sensaccedilatildeo As molduras ou as extensotildees natildeo satildeo coordeshynadas pertencem aos compostos de sensaccedilotildees dos quais consshytituem as faces as interfaces Mas por mais extensiacutevel que seja este sistema eacute preciso ainda um vasto plano de composhysiccedilatildeo que opere uma espeacutecie de desenquadramento segunshydo linhas de fuga que soacute passe pelo territoacuterio para abri-lo sobre o universo que vaacute da casa-territoacuterio agrave cidade-cosmos

26 Henry van de Velde Deacuteblaientent dart Archives darchitecture moderne p 20

Percepto Afecto e Conceito 240 241

-~-_--- middot-middotmiddot

e que dissolva agora a identidade do lugar na variaccedilatildeo da Natildeo parece que a literatura e particularmente o romance Terra uma cidade que tem menos um lugar do que vetores estejam imma outra situaccedilatildeo O que conta natildeo satildeo as opiniotildees pregueando a linha abstrata do relevo Eacute sobre este plano de dos personagens segundo seus tipos sociais e seu caraacuteter composiccedilatildeo como sobre um espaccedilo vetorial abstrato que como nos maus romances mas as relaccedilotildees de contraponto nos se traccedilam figuras geomeacutetricas cone prisma diedro plano quais entram e os compostos de sensaccedilotildees que esses persoshyestrito que nada mais satildeo do que forccedilas coacutesmicas capazes nagens experimentam eles mesmos ou fazem experimentar em de se fundir se transformar se enfrentar alternar mundo seus devires e suas visotildees O contraponto natildeo serve para reshyde antes do homem mesmo se eacute produto do homem27 Eacute latar conversas reais ou fictiacutecias mas para fazer mostrar a preciso agora desarticular os planos para remetecirc-los a seus loucura de qualquer conversa de qualquer diaacutelogo mesmo

j intervalos em vez de remetecirc-los uns aos outros para criar interior Eacute tudo isso que o romancista deve extrair das pershy

novos afectos28 Ora~ vimos que a pintura seguia o mesmo cepccedilotildees afecccedilotildees e opiniotildees de seus modelos psicossociais I

I movimento A moldura ou a borda do quadro eacute em primeiro que se integram inteiramente nos perceptos e os afectos aos ~ I

lugar o invoacutelucro externo de uma seacuterie de molduras ou de quais o personagem deve ser elevado sem conservar outra vida I

I extensotildees que se juntam operando contrapontos de linhas E isso implica num vasto plano de composiccedilatildeo natildeo preconshyi

I

e de cores determinando compostos de sensaccedilotildees Mas o cebido abstratamente mas que se constroacutei agrave medida que a obraI

quadro eacute atravessado tambeacutem por uma potecircncia de desenshy avanccedila abrindo misturando desfazendo e refazendo composshy

I I quadramento que o abre para um plano de composiccedilatildeo oumiddot tos cada vez mais ilimitados segundo a penetraccedilatildeo de forccedilasI

um campo de forccedilas infinito Estes procedimentos podem ser coacutesmicas A teoria do romance de Bakhtin vai nesse sentido muito diversos mesmo no nivel da moldura exterior formas mostrando de Rabelais a Dostoievski a coexistecircncia dos comshy

[I irregulares lados que natildeo se juntam molduras pintadas oacuteu ponentes contrapontuais polifocircnicos e plurivocais com um I pontilhados de Seurat quadrados sobre ponta de Mondrian plano de composiccedilatildeo arquitetocircnico ou sinfocircnico29 Um roshyi li tudo o que daacute ao quadro o poder de sair da tela Jamais o mancista como Dos Passos soube atingir uma arte inaudita

shy__jl

gesto do pintor fica na moldura ele sai da moldura e natildeo do contraponto nos compostos que forma entre personagens comeccedila com ela atualidades biografias olhos de cacircmera ao mesmo teropo queI

um plano de composiccedilatildeo se alarga ao infinito para arrastar tudo para a Vida para a Morte para a cidade-cosmos E se27 Sobre todos estes pontos a anaacutelise das formas enquadrantes e da

cidade-cosmos (exemplo de Lausanne) cf Bernard Cache L ameublement retornamos a Proust eacute porque mais do que qualquer outro du territoire (a sair) ele fez com que os dois elementos quase se sucedessem emboshy

28 Eacute Pascal Bonitzer que formou o conceito de desenquadramento ra presentes um no outro o plano de composiccedilatildeo aparece poushypara aplicar ao cinema novas rdaccedilotildees entre os planos ( Cahiers du cineacutema co a pouco para a vida para a morte compostos de sensashyndeg 284 janeiro de 1978) planos disjuntos triturados ou fragmentados ccedilatildeo que ele edifica no curso do tempo perdido ateacute aparecer graccedilas aos quais o cinema se torna uma arte depurando-se das emoccedilotildees

em si mesmo com o tempo reencontrado a forccedila ou antes asmais comuns que arriscam de lhe impedir o desenvolvimento esteacutetico e produzindo-lhe afetos novos (Le champ aveugle Ed Cahiers du cineacutema Gallirnard sisteme des eacutemotions ) 29 Bakhtin Estheacutetique et theacuteorie du roman Gallimard

242 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 243

-- ---

forccedilas do tempo puro tornadas sensiacuteveis Tudo comeccedila peshylas Casas que devem todas juntar suas dimensotildees e dar conshysistecircncia a compostos Combray o palacete de Guermantes o salatildeo Verdurin e as casas elas mesmas se ajuntam segundo interfaces mas um Cosmos planetaacuterio jaacute estaacute laacute visiacutevel ao telescoacutepio arruinando-as ou transformando-as e absorvenshydo-as no infinito do fundo Tudo comeccedila por titornelos cada

i

um dos quais como a pequena frase da sonata de Vinteuil natildeo se compotildee apenas em si mesmo mas com -outras sensashy

ccedilotildees variaacuteveis a de uma passante desconhecida a do rosto de Odette a das folhagens do bosque de Boulogne- e tudo tershy I mina no infinito no grade Ritornelo a frase do seacuteptuor em Iperpeacutetua metamorfose o canto dos universos o mundo de antes do homem ou de depois De cada coisa finita Proust faz uni ser de sensaccedilatildeo que natildeo deixa de se conservar mas fushygindo sobre um plano de composiccedilatildeo do Ser seres de fuga

EXEMPLO XII

Natildeo parece que a muacutesica esteja numa outra situashyccedilatildeo talvez mesmo a encarne com mais poder ainda Dizshyse todavia que o som natildeo tem moldura Mas os comshypostos de sensaccedilotildees os blocos sonoros tampouco tecircm extensotildees ou formas enquadrantes que devem em cada caso se ajuntar assegurando um certo fechamento Os casos mais simples satildeo a aacuteria meloacutedica que eacute um ritorshynelo monofocircnico o motivo que jaacute eacute polifocircnico um elemento de Uacutema melodia interveniente no desenvolvishymento de uma outra e fazendo contraponto o tema como objeto de modificaccedilotildees harm-ecircnicas atrav~s das linhas meloacutedicas Essas trecircs formas elementares consshytroacuteem a casa sonora e seu territoacuterio Elas correspondem agraves trecircs modalidades de um ser de sensaccedilatildeo pois a aacuteria eacute uma vibraccedilatildeo o motivo eacute um enlace um acoplamen-

I244 lIL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

jbull

to enquanto o tema natildeo fecha sem se descerrar fender e tambeacutem abrir Com efeito o fenocircmeno musical mais importante que aparece agrave medida que os compostos de sensaccedilotildees sonoras se tornam mais complexos eacute que sua clausura ou fechamento (por junccedilatildeo de suas molduras de suas extensotildees) se acompanha de uma possibilidade de abertura sobre um plano de composiccedilatildeo cada vez mais ilimitado Os seres de muacutesica satildeo como os seres vivos segundo Bergson que compensam sua clausura individuante por uma abertura feita de modulaccedilatildeo reshypeticcedilatildeo transposiccedilatildeo justaposiccedilatildeo Se consideramos a sonata encontramos aiacute uma forma enquadraacutente parshyticularmente riacutegida fundada sobre um bitematismo e da qual o primeiro movimento apresenta as seguintes dimensotildees exposiccedilatildeo do primeiro tema transiccedilatildeo exshyposiccedilatildeo do segundo tema desenvolvimentos sobre o pric rileiro ou o segundo coda desenvolvimento do primeiro com modulaccedilatildeo etc Eacute toda uma casa com seus aposhysentos Mas eacute antes o primeiro movimento que forma assim uma ceacutelula e eacute raro que uiacuten grande muacutesico siga a forma canocircnica os outros moviacutementos podem abrirshyse notadamente o segundo pel~ tema e variaccedilatildeo ateacute que Liszt asseg~re uma fusatildeo dos movimentos no poeshyma sinfocircnico A sonata aparece entatildeo antes como uma forma-cruzamento em que da junccedilatildeo das dimensotildees musicais da clausura dos compostos sonoros nasce a abertura de um plano de composiccedilatildeo

Deste ponto de vista o velho procedimento tema e variaccedilatildeo que manteacutem a moldura harmocircnica do tema daacute lugar a uma espeacutecie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composiccedilatildeo (Chopin Schumann Liszt eacute um novo momento essencial porshyque o trabalho criador natildeo mais versa sobre os comshyponentes sonoros motivos e temas abrindo um plano

245Percepto Mecto e Conceito

~~

mas ao contraacuterio versa diretamente sobre o proacuteprio plano de composiccedilatildeo para fazer nascer dele composshytos bem mais livres e desenquadrados quase agregados incompletos ou sobrecarregados em desequiliacutebrio pershymanente Eacute a cor do som que conta cada vez mais Passa-se da Casa ao Cosmos (segundo uma foacutermula que a obra de Stockhausen retomaraacute) O trabalho do plano de composiccedilatildeo se desenvolve em duas direccedilotildees que engendraratildeo uma desagregaccedilatildeo da moldura tonal os imensos fundos da variaccedilatildeo contiacutenua que fazem enshylaccedilar e se unir as forccedilas tornadas sonoras em Wagner ou os tons justapostos que separam e dispersam as forshyccedilas agenciando suas passagens reversiacuteveis em Debussy Universo-Wagner universo-Debussy Todas as aacuterias todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquashydrados infantis domeacutesticos profissionais nacionais territoriais satildeo carregados no grande Ritornelo um potente canto da terra - o desterritorializado - que se eleva com Mahler Berg ou Bartoacutek E sem duacutevida o plano de composiccedilatildeo engendra sempre novas clausuras como na seacuterie Mas sempre o gesto do muacutesico consiste em desenquadrar encontrar a abertura retornar o plashyno de composiccedilatildeo segundo a foacutermula que obceca Boushylez traccedilar uina transversal irredutiacutevel agrave vertical harmocircshynica como agrave horizontal meloacutedica que conduz blocos soshynoros agrave individualizaccedilatildeo variaacutevel mas tambeacutem abri-las ou fendecirc-las num espaccedilo-tempo que determina sua denshysidaae e seu percurso sobre o plano30 O grande ritorshynelo se eleva agrave medida que nos afastamos dacasa messhy

30 Boulez notadamente Points de repere Ed Bourgois-Le Seuil p 159 e segs (Pensez la musique aujourdhui Ed Gonthier p 59-62) A eXtensatildeo da seacuterie em duraccedilotildees intensidades e timbres natildeo eacute um ato de clausura mas ao contraacuterio uma abertura do que se fechava na middotseacuterie das alturas

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte246

--~=shyq

mo se eacute para retornar a ela jaacute que ningueacutem mais nos reconheceraacute quando retornarmos

Composiccedilatildeo composiccedilatildeo eis a uacutenica definiccedilatildeo da arte A composiccedilatildeo eacute esteacutetica e o que natildeo eacute composto natildeo eacute uma obra de arte Natildeo confundiremos todavia a composiccedilatildeo teacutecshynica trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciecircncia (matemaacutetica fiacutesica quiacutemica anatomia) e a comshyposiccedilatildeo esteacutetica que eacute o trabalho da sensaccedilatildeo Soacute este uacuteltishymo merece plenamente o nome de composiccedilatildeo e nunca uma obra de arte eacute feita por teacutecnica ou pela teacutecnica Certamente a teacutecnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra as palavras e a sintaxe em literatura natildeo apenas a tela em pintura mas sua preparashyccedilatildeo os pigmentos suas misturas os meacutetodos de perspectiva ou ent~o os doze sons da muacutesica ocidental os instrumentos as escalas as alturas E a relaccedilatildeo entre os dois planos oacute

plano de composiccedilatildeo teacutecnica e o plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica natildeo cessa de variar historicamente Sejam dois estados oponiacuteveis na pintura a oacuteleo num primeiro caso o quadro eacute preparado por um fundo branco sobre o qual se desenha e se dilui o desenho (esboccedilo) enfim se potildee a cor as sombras e as luzes No outro caso o fundo se torna cada vez mais espesso opaco e absorvente de modo que ele se colore na divisatildeo e o trabalho se faz em plena massa sobre uma gama escura as correccedilotildees substituindo o esboccedilo o pintor pintaraacute sobre cor depois cor ao lado de cor as cores se tornando cada vez mais relevos a arquitetura sendo assegurada pelo contraste dos complementares e a concordacircncia dos anaacuteshylogos (Van Gogh) eacute por e nagrave cor que se encontraraacute a arshyquitetura mesmo se eacute preciso renunciar aos relevos parareshyconstituir grandes unidades colorantes Eacute verdade que Xavier de Langlais vecirc em todo este segundo caso uma longa decashydecircncia que caino efecircmero e natildeo chega a restaurar uma ar-

Percepto Mecto e Conceito 247

quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem duacutevida esta observaccedilatildeo coloca ao meshynos negativamente a questatildeo do progresso na arte jaacute que Langlais considera que a decadecircncia comeccedila jaacute depois de Van Eyck (um pouco como alguns param a muacutesica no canto greshygoriano ou a filosofia em Santo Tomaacutes) Mas eacute uma obsershyvaccedilatildeo teacutecnica que concerne somente ao material aleacutem de que a duraccedilatildeo do material eacute muito relativa a sensaccedilatildeo eacute de uma outra ordem e possui uma existecircncia em si enquanto o mashyterial dura A relaccedilatildeo da sensaccedilatildeo com o material deve pois ser avaliada nos limites da duraccedilatildeo do material qualquer que ela seja Se haacute progressatildeo em arte eacute porque a arte soacute pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retonws linhas de partilha mudanccedilas de niacuteveis e de escashy

I las Deste ponto de vista a distinccedilatildeo de dois estados da lf

pintura a oacuteleo toma um aspecto inteiramente diferente esshyI

teacutetico e natildeo mais teacutecnico- esta distinccedilatildeo natildeo conduz evishydentemente ao representativo ou natildeo jaacute que nenhuma arte nenhuma sensaccedilatildeo jamais foram representativas

li No primeiro caso a sensaccedilatildeo se realiza no material e natildeo existe fora desta realizaccedilatildeo Diriacuteamos que a sensaccedilatildeo (o composto de sensaccedilotildees) se projeta sobre o plano de composhysiccedilatildeo teacutecnica bem preparado de sorte que o plano -de comshyposiccedilatildeo esteacutetica venha recobri-lo Eacute preciso pois que o mashyterial compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graccedilas aos quais a sensaccedilatildeo projetada natildeo se realiza somenshyte cobrindo o qu1dro mas segundo uma profundidade A arte desfruta entatildeo de uma aparecircncia de transcendecircncia que se exprime natildeo numa coisa por representar mas no caraacuteter paradigmaacutetico da projeccedilatildeo e no caraacuteter simboacutelico da persshypectiva A Figura eacute como a fabulaccedilatildeo segundo Bergson tem

31 Xavier de Langlais La technique de la peinture agrave lhuile Ed Flammarion (E Goethe Traiteacute des couleurs Ed Triades sect 902-909)

248 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 249

middot i

uma origem religiosa Mas quando ela se torna esteacutetica sua transcendecircncia sensitiva entra numa oposiccedilatildeo surda ou abe-rshyta com a transcendecircncia suprasensiacutevel das religiotildees

No segundo caso natildeo eacute mais a sensaccedilatildeo que se realiza no material eacute antes o material que entra na sensaccedilatildeo Cershytamente a sensaccedilatildeo natildeo existe mais fora dessa entrada e o plano de composiccedilatildeo teacutecnica natildeo mais tem autonomia a natildeo ser no primeiro caso natildeo vale jamais por si mesmo Mas diriacuteamos agora que ele sobe no plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica e lhe daacute uma espessura proacutepria como diz Damisch inshydependente de qualquer perspectiva e profundidade Eacute o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transshycendecircncia aparente ou-de um modelo paradigmaacutetico e conshyfessam seu ateiacutesmo inocente seu paganismo E sem duacutevida entre estes dois casos estes dois estados da sensaccedilatildeo estes dois poacutelos da teacutecnica as transiccedilotildees as combinaccedilotildees e as coexistecircncias se fazem constantemente (por exemplo o trashybalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens) satildeo poacutelos abstratos ao inveacutes de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com oacuteleo e solvente se volta cada vez mais na direccedilatildeo do segundo poacutelo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composiccedilatilde~ esteacutetica -Eacute por isso -que eacute tatildeo falso definir a sensaccedilatildeo na pintura moderna pela admissatildeo de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a esshypessura natildeo precisa ser larga ou profunda Pocircde-se dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfiacuteshycie basta-lhe apoiar-se sobre os vazios e os plenos do pashypel Canson Eacute uma pintura que natildeo mais tem fundo porshyque o baixo emerge a superfiacutecie eacute esburacaacutevel ou o plashyno de composiccedilatildeo ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspecshytiva independentemente das sombras e mesmo da ordem

i r I li

I 32 Cf Christian Bonnefbi intervieweacute et commenteacute par Yvesshy

I Alain Bois Macula S-6

33 Damisch Fenecirctre jaime cadmium ou les dessous de la peinture Ed du Seuil pp 275-305 (e p 80 a espessura do plano em Pollock) Dashy

li misch eacute o autor que mais insistiu sobre a relaccedilatildeo -arte-pertsamento pinshytura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instauraacute-la Mallarmeacute fazia da espessura do livro uma dimensatildeo distinta da proshy) fundidade cf Jacques Scheacuterer Le livre de Mallarmeacute Gallimard p 55shy

I tema que Boulez retoma por sua vez para a muacutesica (Points de repere p 161) iI

li 250 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

I I

cromaacutetica da cor (o colorista arbitraacuterio) Natildeo mais se recoshybre faz-se subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar Eacute uma promoccedilatildeo do solo e a escultura pode torshy

I nar-se plana jaacute que o plano se estratifica Natildeo magraveis se pinshyI ta sobre mas sob A arte informal levou muito longe

estas novas potecircncias da textura essa elevaccedilatildeo do solo com I Dubuffet e tambeacutem o expressionismo abstrato a arte mishy

nimalista procedendo por impregnaccedilotildees fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atraacutes de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem agrave vista do pintor o que enshytregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes estados a pintura eacute-penshysamento a visatildeo existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta

Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdashydeiro conceito mostrando que o tranccedilado poderia bem preencher para a pintura futura funccedilatildeo anaacuteloga agravequela que foi a da perspectiva O quemiddotnatildeo eacute proacuteprio da pintura jaacute que Damisch reencontra a mesma distinccedilatildeo no niacutevel do plano arquitetura quando Scarpa por exemplo rejeita o movishymento da projeccedilatildeo e os mecanismos da perspectiva para ins~ crever os volumes na espessura do proacuteprio plano33 bull E da literatura agrave muacutesica uma espessura material se afirma que

--~ middot

natildeo se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal Eacute umr I traccedilo caracteriacutestico da literatura moderna quando as palashyr vras e a sintaxe sobem no plano de composiccedilatildeo e o cavam I em lugar de colocaacute-lo em perspectiva E a muacutesica quando

renuncia agrave projeccedilatildeo como agraves perspeCtivas que impotildeem a alshyI tura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano soshynoro uma espessura singular da qual testemunham elemenshy

I tos muito diferentes a evoluccedilatildeo dos estudos parapiano que deixam de ser somente teacutecnicas para tornar-se estudos de

jmiddot composiccedilatildeo (com a extensatildeo que lhes daacute Debussy) a imshy

portacircncia decisiva que toma a orquestraccedilatildeo em Berlioz a i subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferashyI I ccedilatildeo dos afectos de percussatildeo com os metais as peles e as mashy

deiras e sua ligaccedilatildeo com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparaacuteveis do material (Varese) a redeshy

I finiccedilatildeo do percepto em funccedilatildeo do ruiacutedo do som bruto e I complexo (Cage) natildeo apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendecircnshy

cia a uma apariccedilatildeo natildeo-cromaacutetica do som num continuum infiiuumlto (muacutesica eletrocircnica ou eletro-acuacutestica)I

I Soacute haacute um plano uacutenico no sentido em que a arte natildeo

I comporta outro plano diferente do da composiccedilatildeo esteacutetica

I o plano teacutecnico com efeito eacute necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composiccedilatildeo esteacutetica Eacute sob esta conshydiccedilatildeo que a mateacuteria se torna expressiva o composto de senshysaccedilotildees se realiza no material ou o material entra no comshyI posto mas sempre de modo a se situar sobre um plano deI

I composiccedilatildeo propriamente esteacutetico Haacute muitos problemasI teacutecnicos em arte e a ciecircncia pode intervir em sua soluccedilatildeo

mas eles soacute se colocam em funccedilatildeo de problemas de composhysiccedilatildeo esteacutetica que concernem aos compostos de sensaccedilotildees e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus mateshyriais Toda sensaccedilatildeo eacute uma questatildeo mesmo se soacute o silecircncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em enshy

251Percepto Afecto e Conceito

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 4: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

Pintamos esculpimos compomos escrevemos com senshysaccedil~es ~intamos esculpimos compomos e~crevemos senshy

sectaccediloesect_ ~~~eacutelccedil~~-~~0 gerc~pt~~~natilde satildeo percepccedilotildees que remetenam a um objeto (referecircncia) se se assemelh~ a algo eacute uma semelhanccedila produzida por seus proacuteprios meios e_~ sorriso s~-~~~re-1~--ampE~~fecircito-ae~cotildereacuteSdeacute traccedilos e so~f)~~-=-1~JuzJe a senel~anccedila pode imp-eg~bra

e arte e porque a sensaccedilao so remete a seu material ela eacute 0 percepto ou o afecto do material mesmo o sorriso de oacuteleo0 gesto de terra cozida o eacutelan de metal o acocorado da pedra

~ J~~middot romana e o elevado da pedra goacutetica E o material eacute tatildeo dishyjtt~_gtverso em cada caso (o suporte da tela o agente do pincel ou

~~ da brocha a cor no tubo) que eacute difiacutecil dizer onde acaba e onde comeccedila a sensaccedilatildeo de fato a preparaccedilatildeo da tela 0t d ~1 d rao o pe o o pmcel fazem evidentemente parte da senshy

saccedilao e muitas outras coisas antes de tudo isso Como a

~=-~accedilatildeo pode_ia c~EY~e sem um material capaz de ~__~as_~ mais curto que seja ~-te~-p~--~~~-t~~p~ middoteacutemiddot-~~ s1derado como d -------------middot--middotmiddot---middot----middotmiddot--middot--middot middotmiddot middotmiddot middot--middot---shy- -----~middot-middot~-~----~~E~--E--~~il9j__ yeremos como o plano do ma-renal sobe irresistivelmente e invade o plano de composiccedilatildeo das sensaccedilotildees mesmas ateacute fazer parte dele ou ser dele indisshyceniacutevel Diz-se neste sentido que o pintor eacute pintor e nada alem de u middot m pmtor com a cor captada -como sai fora do tu~~ com a marca um depois do outro dos pecirclos do pinshy

Imiddot cel com este azul que natildeo eacute um azul de aacutegua mas um azul I middot

de pmtura liacutequida E todavia a sensaccedilatildeo natildeo eacute idecircntica ao material ao menos de direito O que se conserva de direishyto natildeo eacute o material~ que constitui somente a condiccedil~o de fatomiddot mas enquanto eacutepreenchida esta condiccedilatildeo (enquanto a tela a cor ou d - middot - middot a pe ra nao VIrem po) o que se ccedilQnserva em si eacute o percepto ou o afecto ~esmo se o middotmaterial seacute)dura~se alguns

I

sgundos d~ria2~ccedilatildeo o poder de middotexistir e d~-~-~shy_er~__~rn=~i na eternidade que coexiste com estaCu~ta-dushy

_r_atildeo_~~~~~I~~~lltE~I-ordfBillsL~t~m~qi_d~~~

li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

a sensaccedilatildeo desfruta ~~s~~Lesrr2~fl~EtordmEA sensaccedil~ natildeo s~ realiz~ _ -~--~~~~~~~~--~__rl22ll~~ri~J ss~u~m-~~sect$~~__ccedil_agravep no Plt~~pto ()~ n~=~~~Ofldl a ~at~shyriatilde se torna expressiva E o afecto que e metahco cnstahshyno peacutetiacuteeo etc e a sensaccedilatildeo natildeo eacute colorida ela eacute colorante como diz Ceacutezanne Eacute por isso que quem soacute eacute pintor eacute tamshy

beacutem mais que pintor porque ele faz vir diante de noacutes na frente da tela fixa natildeo a semelhanccedila mas a puq sensaccedilatildeo da flor torturada da paisagemcortada sulcada e comprishyda devolvendo a aacutegua da pintura agrave natureza4 Soacute passhysamos de um material a outro como do violatildeo ao piano do pincel agrave brocha do oacuteleo ao pastel se o composto de sensashyccedilotildees o exigir E por mais fortemente que um artis___ se ir_g~_shy

resse pela ciecircnc~j_arpJtis_umcompQSto-deuro-se-FlSaltiOtildees--se -conshy

fundiraacute com as misturas do material que a ciecircncia deter-

rPfi~_ltE~~a~middota~ccedilQiSordf_$ ccedilordmmordmmo~ti~middot~Pi[ordm~D~ill~~i~ -~ d shyo~~r~_QQj~S$=-~- J1SJfiPLeSSJOUlStas

O objetivo da arte om os meios do material eacute arrancar o percep pccedilotildees do objeto e dos estados de um sushyjeito percipiente arr~ri~-~~fecto ~~~~ilt~ssect_ltsectJ como passashygem de um estado a um outro Extrair um bloco de sensaccedilotildees um puro ser de sensaccedilotildees Para isso eacute preciso um meacutetodo que varie com cada aacuteutor e que faccedila parte da obramiddot basta comshyparar Proust e Pessoa nos quais a pesquisa da sensaccedilatildeo como ser inventa procedimentos diferentes5 Os escritores

4 Artaud Van Gogh le suicideacute de la socieacuteteacute Gallimard Ed Paule Thevenin p 74 82 Pintor nada senatildeo pintor Van Gogh dominou os meios d a pura pintura e natildeo os ultrapassou mas o maravilhoso eacute que este pintor que soacute eacute pintor eacute tambeacutem de todos os pintores natos o que mais faz esquecer que temos a ver com a pintura

5 Joseacute Gil consagra um capiacutetulo aos p r ocedimentos pelos quais Pesshysoa extrai o percepto a partir de percepccedilotildees vividas notadamente emmiddotOde mariacutetima (Fernando Pessoa ou la rneacutetaphysique des sensations Ed de la Diffeacuterence cap II)~

I

Percepto Mecto e Conceito 217 216

quanto a isto natildeo estatildeo numa situaccedilatildeo diferente da dos pinshytores dos muacutesicos dos arquitetos O materiaJ~~E~icular dos escritores satildeo as palavras e a sint~xe sintaxe criada que __~~~middot--~gt-~c---bull~middotmiddot bullmiddot~ middot middotmiddot middot- middot~middotobullmiddotmiddot~middot~middot~bullbull~~-~ ~ ~_-=--~~--_~ bull--middot-middotbullbullgtgtgt_ ~ __bull _ ~lt~middot-~bull --~-bullk----bullbull bull-middot_

se ergue irresistivelmente em sua obra e--~~r~~ltl ~~-~~-~-~-a2middot Pacircrltl sai-dacircs perecircepCcediloes-viViecircfatildeS-nmiddota~Otilde--basta __ evidentemente memoacuteria que convoque somente antigas percepccedilotildees nem uma memoacuteria involuntaacuteria que acrescente a reminiscecircncia como fator conservante do presente A memoacuteria interveacutem

J2QIJkO na arte (mesmo e sobretudo em Proust) Eacute verdade que toda a obra de arte eacute um monumento Inas o monumento natildeo eacute aqui o que comemora um passado eacute um bloco de senshy

Salti_lt_esectPJ~_sect_t_QtS~~q_ue_sQ Qlt_Y~ordfsectL9Ssect~UumlYi irsectQFia_conshy I l1iI I servaccedilatildeo e datildeo ao acontecimento o composto que o celebra

I

~gtmiddot (5-tc-d~- --~onumento natildeo eacute a memoacuteria mas a fabulaccedilatildeoI ~ rJ

_eacute N~ s es~reve cot_I lem~ranccedila~-~~_~~~5~~2~3s por bl~os ~~ )ji $ de ~nfa~c1a_ ~~~_lti_evires~cp~~ccedil__~2_g_J2res~E~ A musica

l middot middotl middot esta cheia disso Para tanto e preciso nao memona mas um rS-fC- material complexo que natildeo se encontrana memoacuteria mas nas palavras nos sons Memoacuteria eu te odeio Soacute seatinge o

percepto ou o afecto como seres autocircnomos e suficientes que natildeo devem mais nada agravequeles que os experimentam_ou os exshyperimentaram Combray como jamais foi vivido como natildeo eacute nem seraacute vivido Combray como catedral ou monumento

E se os meacutetodos satildeo muito diferentes natildeo somente seshygundo as artes mas segundo cada autor pode-se no entanshyto caracterizar grandes tipos_El~l1mentais ou variedades de _omostos de s~nsa~~~~ que caracteriza a senshy ~accedilao simE_le~ (mas ela Ja e dtuave~ composta porque ela sobe ou desccedile implica uma diferenccedila de niacutevel constitutiva segue uma corda invisiacutevel mais nervosa que cerebral)~ lace ou o corpo-a-corpo (quando~amps ressoam uma na outra esposando-se tatildeo estreitamente num corposhya-corpo que eacute puramente energeacutetico)() recuo a divisatildeo

distensiiQ uando duacuteatildesse~s~~Otilde~~~~~ ao contraacuteshy

rio se distanciam mas para soacute serem reunidas pela luz o ar oUacuteOtilde~aziOtilde q~ inscrevem entre elas ou nelas como uma cunha ao mesmo tempo tatildeo densa e tatildeo leve que se estenshyde em todos os sentidos agrave medida que a distacircncia cresce e forma um bloco que natildeo tem mais necessidade de qualquer

Imiddot base) Vibrar a sensaccedilatildeo - acoplar a sensaccedilatildeo - abrir ou ff_vder ~-~ecircsViZlatildeii~eii~ordfccedilordfccedil~middot-~scugif~3~E-emiddots-~iiesectsect_es_tL pccedilgts quase em estado puro com suas sensaccedilotildees de pedra de m~rrriC~d_~middot~tCcedilq~~~~ibram segundo a ordem dos temshypos fortes e dos tempos fracos das saliecircncias o~ das reenshytracircnCias seus poderosos corpo-a-corpo que os entrelaccedilam seu arranjo de grandes vazios entre um grupo e outro e no interior de um mesmo grupo onde natildeo mais se sabe se eacute a luz se eacute o ar que esculpe ou eacute esculpido

O romance se elevou frequumlentemente ao percepto natildeo a percepccedilatildeo da charneca mas a charneca como percepto etn

Hardy os perceptos oceacircnicos de Melville os perceptos ur~ banas ou especulares em Virginia Woolf A paisagem vecirc Em geral qual o grande escritor que natildeo soube criar esses seres de sensaccedilatildeo que conservam em si a hora de um dia o grau do calor de um momento (as colinas de Faulkner a estepe

r de Tolstoi ou a de T~hekov) 9 EerceE_~~~r_~~~~~~-~1_1-~--~~ terior ao homem na ausecircncia do homem Mas em todos estesI -

d~~~l~~~~~1~il~~t~~~Ii~~~~~~ I i~E~~J~~J~Jgt~~_ps~~~Jsmamp~lsa~ d-2~tqE ~-- c2~o

a cidadepoderia sermiddotsem h9~nQ~LiDl~lgt JLccedil_J~_Q~sectJ2Cl19_ sentz~Ih~q~~-middot~r~~~~fiacute~t~~esmCcedil=~~~Jecircn~2$~~IB-~rapeje I

middotEcirca-middote-iliacutegffia(f-~qii~nt~~-ie~~~~~~do) deCeacutezanne o ho-~ mem ausente mas inteiro na paisagem Os personagens natildeo podem existir e o autor soacute pode criaacute-los porque eles natildeo percebem mas entraram na paisagem e fazem eles mesmosI parte do composto de sensaccedilotildees Eacute Ahab que tem as percepshyccedilotildees do mar mas soacute as tem porque entrou numa relaccedilatildeo com

218 11 Filosofia Ciecircnci~ Loacutegica e Arte Percepto Afecto eConceito 219

-----

11~11 l i middot11

ili j f li

IJiiJ Moby Dick que o faz tornar-se-baleia e forma um composshy11jli to de sensaccedilotildees que natildeo precisa de ningueacutem mais Oceano jl

1j[i Eacute Mrs Dalloway que percebe a cidade mas porque entrou

lmiddotl middot na cidade como uma lacircmina atraveacutes de tudo e se tornou I i ela mesma imperceptiacutevel Os afectos satildeo precisamente esshy

1 ilJ tf~lfre~Eo httE2L~Z~S2fl-O ~~ifiPi9il middotI 1 tre eles a cidade) satildeoas paisagens 1Ct-EtCcedilJJEfftUreshy

i~ -H- 4a~fe~~~~~~~1~~~ZE~~~e~1i 1i1

1 -lfffr 1

~resta~~=~middotmiddot_~d--~middot~middot~-~~-~sg~~middotmiddot~~Qdo ~noacutes nos

Jiijl 1 tornamos contempla~d~=middot~~~T~dcecircisatildeo devi Tornamoshy- nos universo Devires animal~o ecular devir zero

1 i Kleist eacute sem duacutevida quem mais escreveu por afectos serviushy

11 do-se deles como pedras ou armas apreendendo-os em deshy1 vires de petrificaccedilatildeo brusca ou de aceleraccedilatildeo infinita no 1 1

~ ~ ~~ 1 devir-cadela de Pentesileacuteia e seus perceptos alucinados Isto 1~ I eacute verdadeiro para todas as artes que estranhos devires deshy

) I senca~~iam a muacutesica tr~veacutes de suas aisage~s meloacutedicas 11middot1 e seus personagens ntmtcos como dtz Messtaen componshy

111 do num mesmo ser de sensaccedilatildeo o molecular e o coacutesmiCo

IIJ as estrelas os aacutetomos e os paacutessaros Que terror invade a ~middotJ~ cabeccedila de Van Gogh tomada num devir girassol Sempre eacute

1 middotlj preciso o estilo-- a sintaxe de um escritor os modos e ritshy1~ 1 ~~~ mos de um m~co os traccedilos e as cores de um pintor- para

i1

i~ l fi ~~

1 6 Ceacutezanne op cit p 113 Cf Erwin Straus Du sens des sensEd ji Millon p 519 as grilndes paisagens tecircm todas elas um caraacuteter visioshy

j 111 naacuterio A visatildeo eacute o que d~ invisiacutevel se torna visiacutevel a paisagem eacute invisiacutevel1

I imiddot middot I nos perdemos Para cheshy~ porque quanto mais a conquistamos mais nelamiddotmiddot11middot d

I gar agrave paisagem devemos sacrificar tanto quanto middotpossiacutevel toda etermishy

i i naccedilatildeo temporal espacial objetiva mas este abandoacuteno natildeo~tinge somentei I J o objetivo ele afeta a noacutes mesmos na mesma medida Na paisagem deishy

~ middot xamos de ser seres histoacutericos isto eacute seres eles mesmos objetivaacuteveis Natildeo ~ middot~~ temos memoacuteria para a pai~agem natildeo temos memoacuteria nen1 mesmo para

~ noacutes na paisagem Sonhamos em pleno dia e com os olhos abertos SomomiddotsI 1 furtados ao mundo objetivo mas tambeacutem a noacutes mesmos Eacute o sentir

li 220 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

se elevar das percepccedilotildees vividas ao percepto de afecccedilotildees vividas ao afecto

Insistimos sobre a arte do romance porque eacute a fonte de um malentendido muitas pessoas pensam que se pode fazer um romance com suas percepccedilotildees e suas afecccedilotildees suas lemshybranccedilas ou seus arquivos suas viagens e seus fantasmas seus fiacutelhos e seus pais os personagens interessantes que pocircde enshycontrar e sobretudo o personagem interessante que eacute forccediloshysamente ele mesmo (quem natildeo o eacute) enfim suas opiniotildees para soldar o todo Invocam-se para tagravento grandes autores que soacute teriam contado sua vida Thomas Wolfe ou Miller Obteacutemshyse geralmente obras compostas em que algueacutem se agita muishyto mas na Jf_QCcedil-J~-deum-Paiq_~ soacute poderia encontrar em si mesmo 6-f~()mance do jornalista) Nada nos poupam na aushy

---middot--~ secircncia de qualquerTiatildeotildeatildelnotilderealmente artiacutestico Natildeo precisashy

mos alterar m~ito a cr~ordfdag~~Q_91~~~-P-~9_lt_y~_ nem o d-ecircmiddotshysesperoacute pelo qual se passou para produzir mais-~~---~ez

oacuteptmao que~-_ferjJp~nte~ordfi~-ordfR~fSfj_qsiil~S2ii~ii~i~ --ccedilatildeotildelossellini viu nisso uma razatildeo para renunciar agrave arte a arte atildeelXou-se invadir demais pelo infantilismo e pela crueldade toi nando-se simultaneamente cruel e chorosa gemebunda e satisshyfeita de modo que era_melhor renunciar7 O mais interessante eacute que Rossellini via a mesma invasatildeo na pmtura Mas eacute antes deI

I mais nada a literat~a que natildeo parou de manter este equiacutevoco com o vivido Pode acontecer mesmo que se tenha um grande senso de observaccedilatildeo e muita irrlagill_accediliiotilde~eacutepltSsiacutevel escre~~~n

P~ES~~-afecccedilotildees op~iotildeesMe~Otilde nosmiddotmiddot~an~~~~e~~-middotshyl autobiograacuteficOtildesvemos cOtildentrOtildentarem-se cruzarem-se opiniotildees de uma multidatildeo de personagens cada opiniatildeo sendo funccedilatildeo das percepccedilotildees e afecccedilotildees de cada um segundo sua situaccedilatildeo social e suas aventuras individuais sendo o conjunto tomado numa -8 vasta corrente que seria a opiniatildeo do autor que se divid~ par~ t-)l1--middot~~~ -- --middot-~=~~_~ --~-- shy

I bullmiddotmiddot ~middot ~_7 Rosselini Le cineacutema reacuteveacuteleacute Ed de lEtoile p 80-82

Percepto Afecto e Conceito 221

~ecai~~s-~QfCcedil_Qsect__]2etSQILltl~-UsectQg___~-S~Ccedil9~ls~gtJ~r~~q~~ -~-1~ -~~2~lt22-~ltJ~llli-LiisectEa~eacute e_~~JLW~sectIDamptCcedilJYsccedilPJXeCcedila~agraude JsguacuteadoampQmans~d~JiordfkhtilL(felizmente ele natildeo fica aiacute jusshytamente na base paroacutedica do romance )

AJ~ordf-Igtl1laccedilatildeo criadora nada tem a ver com uma lembranshyo-11 _ middotmiddotmiddot middotmiddotmiddotmiddotmiddot -~ -- middotmiddot ofPmiddotmiddot ccedila mesmo amplificada nem _ccedilgrn_UJll fantasma Com efeito l _ bull bullmiddotmiddot--middotbullmiddotbull middotmiddot middot---middotmiddotmiddotmiddotmiddot-bull middot -_ _ _ _

cJ middot middot ~ artista entre eles QJQII_~2Ccediltsect-ordf+-~~ccedil_ed5_2~~tad_1Eerc~p_shymiddot- ~ t1yo~ C ~~ J~~sagens afetivas do vividQ Eacute um vidente algueacutem

-~~_~ middot bull middotltmiddot~- middotmiddot middot middot bull bull middot middot middot middot - middot~ bull middot middot~-middot bullbull _ ___~ middot bullmiddot -ltuJo-~ middot)o - --middot - -- d gt middotmiddot~middotmiddot - middotbull-middot- middot-~middot~bull-bullgtbullbullbullbullOh __~~~T - -_ bullbull-middotmiddot middotmiddot

_-~g~~~--~~-S-9XA~middot Como contaria ele o que lhe aconteceu ou o que imagina jaacute que eacute uma sombra Ele viu na vida algo muito grande demasiado intoleraacutevel tambeacutem e a luta da vida com o que a ameaccedila de modo que o pedaccedilo de natureza que ele percebe ou os bairros da cidade e seus personagens aceshydem a uma visatildeo que compotildee atraveacutes deles perceptos desshyta vida deste momento fazendo estourar as percepccedilotildees vishyvidas numa espeacutecie de cubismo de simultanismo de luzcrua ou de crepuacutesculo de puacuterpura ou de azul que natildeo tecircm mais outro objeto nem sujeito senatildeo eles mesmos Chama-se de

-~~g2h12~~-~--g_ia~ltm~i ~~~-~-~~~-~~~~pa~~-d~-~2i~~ii9i~otilde ~~~~ Trata-se sempre de hberar a vida laacute onde ela eacute piishysiacuteoneira ou de tentar fazecirc-lo num combate incerto A morshyte do porco-espinho em Lawrence a morte da toupeira em Kafka satildeo atos de romancista quase insuportaacuteveis ~Qr___ vezes eacute preciso deitar na terra como faz o pintor Qara lo-

1~-middotbull--middot bull~~-~-middot-~middot-gt ~bull _ ~ middotmiddot - ~ - middot-~- _ _middotmiddot -middotmiddot~ -- bullbullmiddotmiddot ) middotbullmiddot middot --middot - middotbull - _)~ c _bull __~-----~middot middot ~

~-~~-1~~~a~~lt~--l2~Y2~middot~~~2=~=~J~-~fSltP~ Os perceptos podem ser telescoacutepicos ou microscoacutepicos datildeo aos personagens e agraves paisagens dimensotildees de gigantes como se estivessem repleshytos de uma vida agrave qual nenhuma percepccedilatildeo vivida pode atinshygir Grandeza de Balzac Pouco importa que esses personashygens sejam mediacuteocres ou natildeo eles se tornam giga~tes como Bouvard e Peacutecuchet Bloom e Molly Mercier e Camier sem deixar de ser o que satildeo Eacute por forccedila da mediocridade mes mQde_besteira oU-deinfacircmia_quepndemtrunar~se-natildeo-Sim- ple_tii~JordfisectJgt~~imples) mas gigantesco~Mesmo os anotildees

1

ou os invaacutelidos podem fazecirc-lo toda fabulaccedilatildeo eacute f~~~ ~e gigantesect~ Mediacuteocres ou grandiosos satildeo cellla~iadaflenshy~~_ylyos J2_ar_~-~E~I viviacuteveis ou vividos Thomas W olfe exshytrai de seu pai um gigante e Miller da cidade um planeta negro Wolfe pode descrever os homens do velho Catawha atraveacutes de suas opiniotildees imbecis e sua mania de discussatildeo o que faz eacute erigir o monumento secreto de sua solidatildeo de seu deserto de sua terra eterna e de suas vidas esquecidas despercebidas Faulkner pode criartambeacutem oh homens de Yoknapatawpha Diz-se que o romancista monumental se inspira ele mesmo no vivido e eacute verdade M de Charlus parece muito com Montesquiou mas entre Montesquiou e M de Charlus no final das contas haacute aproximadamente a mesma relaccedilatildeo que entre o catildeo-animal que late e o Catildeo consshytelaccedilatildeo celeste

Como tornar um momento do mundo duraacutevel ou fazecircshylo exititp~r--s-11Virginiwacircotildelfecirclaacute ~~--~~p-~t~q-~~-~i~ patilderacircmiddot a-pIacutenturamiddotOtilde~---ffiliacutesiacutecaiatildeiacuteito quanto para a escrita Sashy

turar cada aacutetomo Eliminar tudlt_lt_9~t eacute rt_~_QE_Qft~ ~middot- -middot

superfluidade~ tudo o que gruda em nossas percep__sotilde~-~-Elt___q

refffes-e-vivecirclas tuClOtilde_Otilde_q_~middot~middot --li~~~t~- otilde~9iii~itordf-P~fliacuteQ_

~~~~_ltfi~~t~~~Eacute~~~E~~sJotilde~i~~~~~~-ordf~-~~~p~r~~P-~ J~s~L ILQ~2IerlQ_Q~ b~iii9Jos_iatos_osoacuterdida~ma~-~I~~ em transparecircncia Colocar aiacute tudo e contudo saturar9

POtilde~t~tiacutengidoo-percepto como a fonte sagrada por ter visto a Vida no vivente ou o Vivente no vivido o romancisshyta ou o pintor voltam com olhos vermelhos e o focirclego curshy

8 No capiacutetulo II das Deux Sources Bergson analisa a fabulaccedilatildeo coshymo uma faculdade visionaacuteria muito diferente da imaginaccedilatildeo que consisshyte em criar deuses e gigantes potecircncias semi-pessoais ou presenccedilas efishycazes Ela se exerce inicialmente nas religiotildees mas desenvolve-se livreshymente na arte e na literatura

9 Virgiacutenia Woolf Journal dun eacutecrivain Ed 10-18 I p 230

222 11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 223

-~

to Satilde~ atletas natildeo atletas que teriam formado bem seus corpos e cultivado o vivido embora muitos escritores natildeo tenham resistido a ver nos _esportes urn meio de aumentar a arte e a vida mas antes atletas bizarros do tipo campeatildeo de jejum ou grande Nadador que natildeo sabia nadar Um Atletismo que natildeo eacute orgacircnico ou muscular mas um atleshy

-tismo afetivo que seria o duplo inorgacircnico do outro um atletismo do devir que revela somente forccedilas que natildeo satildeo as suas espectro plaacutestico 10 Desse ponto de vista os artisshytas satildeo como os filoacutesofos tecircm fregueJ-temente uma saudeshyziacutenha fraacutegil mas natildeo por causa de suas doenccedilas nem de suas neuroses eacute porque eleSViraacutem na_ida atildefgQCfe grande ccedill_ccedil_mais paratildeqliatildefquer um de grande demais para eles e gue QOcircs ndes ~atildedlscreta datildelliuumlrttamp1atildes-~~Jilt2ecirc~mbeacutem a fonte ~o fOcirclego q~llL~YiYJr_atraYi~~49s~clQ~l~ do_civishyflo (o 9~~~~E-~~P--ordf~~Q~-sauacutede) U~ dia saberemos talvez que natildeo havia art~ m~soacuteru~nte_~duumlina 1I

-------c5-[~ct-~iacutetapaa menos ~s afecccedilotildees que o pershycepto as percepccedilotildees Q afecto natildeo eacute a gassagltle um esshytado vivido a um outro mas o deviccedilnatildeqJ~_lJID-ordf9~QO homem __~~~--amp-- -middot---ltC-~=-----lt10-

Ahab natildeo imita Moby Dick e Pentesileacuteia natildeo se comporta como a cadela natildeo eacute uma imitaccedilatildeo uma simpatia vivida nem mesmo uma identificaccedilatildeo imaginaacuteria Natildeo eacute a semelhanshyccedila embora haja semelhanccedila Mas justamente eacute apenas uma semelhanccedila produzida Eacute antes uma extrema contiguumlidade num enlaccedilamento entre duas sensaccedilotildees sem semelhanccedila ou ao contraacuterio no distanciamento de uma luz que capta as duas num mesmo reflexo Andreacute Dhocirctel soube colocar seus pershy

10 Artaud Le theacuteacirctre et son double (Oeuvres completesGallimard IV p 154)

middot 11 Le Cleacutezio HAI Ed Flammarion p -7 (sou um iacutendio emboshyra natildeo saiba cultivar o milho nem talhar uma piroga ) Num texto ceacuteleshybre Michaux falava da sauacutedemiddotproacutepria agrave arte posfaacutecio a Mes proprieacuteshyteacutes La nuit remmue Gallimard p 193

li Filosofia Ciecircilcia Loacutegica e Arte

sonagens em estranhos devires-vegetais tornar-se aacutervore ou tornar-seaacutester natildeo eacute diz ele que um se transforme no outro

ma~~~~a--~um12 outro12 ~~~-~-lgg__ecirceacuteP~e ~~EN~shy

~2IDQ~~l)~sect~Sl9middot Eacute uma zona de indeterminaccedilatildeo de indiscerniacutebilidade como se coisas animais e pessoas (Ahab e Moby Dick Pentesileacuteia e a cadela) tivessem atingido em cada caso este ponto (todavia no infinito) que precede imeshydiatamente sua diferenciaccedilatildeo natural~gQ_JtlJccedil~Jgt~ ccedilhordfmallW---shy

~2-_f~g9_Em Pierre ou les ambiguiteacutes Pierre ganha a zona em que ele natildeo pode mais distinguir-se middotde sua meia-irmatilde Isabelle e torna-se mulher Soacute a vida cria tais zonas em que turbishylhonam os vivos e soacute a arte pode atingi-la e penetraacute-la em sua empresa de co-criaccedilatildeo Eacute que a proacutepria arte vive dessas ( zonas de indeterminaccedilatildeo quando o material entra na sen- - ~

Q) ssaccedilatildeo como numa escultura de Rodin Satildeo blocos A pintu- ri ra precisa d~ uma coisa diferente da habilidade do desenhista f f que marcana a semelhanccedila entre formas humanas e animais ( sect_

e nos faria assistir agrave sua metamorfose ~Jf_ccedilisQJ ~ordfltU~QltaacuteAt5 lltf __-9_~0_lot~_Ei~~EE f~pk~~~ d~-~~~ElaEf ~ de imp_r _a ex~~~~Uuml~~sielm-~~t~J-zonordfdlli1agravelEnios_e_sabeshy

-ffiili~CJllem eacute bulluuumlctrtaJ__~--flYoCcedilJJL~bumordfnordm_pruqw ordflg~Lsect_~J~ vanta como o triunfo ou o __~ony~nro_desuaindjsect~jnccediljig ~ssiacutenmiddot-cotildeyatilde-ou mesino Daumier Redon Eacute preciso que o artista crie os procedimentos e materiais sintaacuteticos ou plaacutesshyticos necessaacuterios a uma empresa tatildeo grande que recria por toda a parte os pacircntanos primitivos da vida (a utilizaccedilatildeo da aacutegua-forte e da aguatinta por Goya) O afecto natildeo opera cershytamente um retorno agraves origens como se se reencontrasse em termos de semelhanccedila a persistecircncia de um homem bestial ou primitivo sob o civilizado Eacute nos meios temperados de nossa civilizaccedilatildeo que agem e prosperam atualmente as zonas equatoriais ou glaciais que se furtam agrave diferenciaccedilatildeo dos gecircshy

12 Andreacute Dhocirctel Terres de meacutemoire Ed Universitaires p 225-226

Percepto Afecto e Conceito 225 224

neros dos sexos das ordens e dos reinos Soacute se trata de noacutes aqui e agora mas o que eacute animal em noacutes vegetal mineral ou humano natildeo mais eacute distinto- embora noacutes noacutes ganheshymos aiacute singularmente em distinccedilatildeo O maacuteximo de determishynaccedilatildeo emerge como _um claratildeo deste bloco de vizinhanccedila

Precisamente porque as opiniotildees satildeo funccedilotildees do vivishydo elas aspiram a um certo conhecimento das afecccedilotildees As opiniotildees insistem nas paixotildees do homem e sua eternidade Mas como observava Bergson temos a impressatildeo de que a oacute opiniatildeo desconhece os estados afetivos eque ela agrupa ou separa os que natildeo deveriam ser agrupados ou separados13 Jt Natildeo basta sequer como faz a psicanaacutelise dar objetos proishybidos agraves afecccedilotildees repertoriadas nem substituir as zonas de t indeterminaccedilatildeo por simples ambivalecircncias Um grande roshy ~

mancista eacute antes de tudo um artista que inventa afectos natildeo conheciacuteoosotildeu desconiiacuteecld(s e --os fazvir agrave luz do dia como- ------- ---------middot---- -------------middot-shy0 devir de seus personagens os estados crepusculares dos

- ~~-lei~~~os middotmiddotc-~middotaneacute~cr~middot-chreacutetien de Troyes (em relaccedilatildeo lI

com um conceito eventual de cavalaria) os estados de reshy 11

pouso quase catatocircnicos que se confundem com o dever segundo Mme de Lafayette (em relaccedilatildeo com um conceito de l

li quietismo) ateacute os estados de Beckett como afectos tanto I

imais grmdiosos quanto satildeo pobres em afecccedilotildees Quando I

Zola sugere a seus leitores prestem atenccedilatildeo natildeo eacute remorshyso que meus personagens sentem natildeo devemos mais ver nisso a expressatildeo de uma tese fisiologista mas a atribuiccedilatildeo de novos afectosque crescem com a criaccedilatildeo de personagens no naturalismo o Mediacuteocre o Perverso o Animal (o que Zola chama de instinto natildeo se separ~ de um devir-animal) Quando Emily Bronte traccedila o liame que_ une Heathcliff e Catherine ela inventa um afeto-violento (que sobretudo natildeo

13 Bergson La penseacutee et e mouvant Ed du Centenaire p 1293shy1294

226 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

v f ~~

c~l~f r1gt(1~~1- 7 (jJ-7JV middot ~

JV-10-shy

deve ser confundido com o amor algQ co~o uma fraternishydade entre dois lobos QuandoP~Oacute~t middot fece descrever tatildeo minuciosamente o ciuacuteme inventatilde-tt middot~fect~porque natildeo deishyxa de inverter a ordem que a opiniab--amptipOtildee nas afecccedilotildees segundo a qual o ciuacuteme seria uma consequecircncia infeliz do amor para ele ao contraacuterio o ciuacuteme eacute finalidade destinaccedilatildeo

e~reC1Suuml~~~CecircJ~~--j)uuml~J~-s~~E~I~~~~~sect~~~~~~~sectmiddotmiddotccedil_sect~e o s~nti9~-~2-~ig~~C2~~-to _ltlt_~_- ~~IP~2cgia _ Q~ando CL1ude Simon descreve o prodigjoso amor passivo da mushylher-terra esculpe um afecto de barro e pode dizer eacute mishynha matildee e acreditamos jaacute que ele diz mas uma matildeemiddotque ele introduz na sensaccedilatildeo e agrave qual ergue um monumento tatildeo original que natildeo eacute mais com seu filho real que ela tem uma relaccedilatildeo mas mais longinquamente com um outro personashygem de criaccedilatildeo a Eula de Faulkner Eacute assim que de um esshy

critor ~ um outro o~_gr~_de~-~f5S9LltJi~~ltim~~-P9si~L~-~ encademiddotar ouder~ampS~illCcedilQlJLlt~tQ~~~~~~-~~~i_es ~~~~~~~ fotildermaacutem vibram se e_nl~_s~_m QllJ~J~nccedil~P= sectiip-estesseres---~ acirceseUumls~CcedilatildeO(~datilde~~ta~da--relaccedilatildeodo_artistuQmo puacuteshy

b)i~~A~ltLasordf~--~~)f~-middot~l~~Jnmiddot-ordf~ul~ JJJJmesmQordf-Uacute~t~-~ll~~~s- _f 14 4

~~g~~ Rllt ~Y~l)tuaJ~Jilll4-sfccedillt ~~E~-~~-~--~nJr~gtI bull O artts- [k ta acrescenta sempre novas variedades ao mundo Os seres dordfsectJ~nsaccedilordf-ordmmiddotmiddotmiddot~ordfQvariltdades~ccedil_omoos~streampdecouccitossacirc~~ var~~ccedil2~~~~Q~~sectSf~~-deJu~_ccedilo _ ~ordfmiddot~-Y~~~i~y~js

Eacute de toda a arte que seria preciso dizer o artista eacute m__Qsect_ tracQId~-ordffeltos inventor de afec~~~E-tlt~oLde_ ordf-f~~ccedilJgsect~m middotICcedilatildeotilde com ~tp~~~E~~~~~-i~-~isOtildeEi~CcedilLU~QQsectgaacute Natildeo eacute soshymeilteeffisuacbraacute que ele os cria ele os daacute para noacutes e nos faz transformarnos com eles ele nos apanha no composto Os girassoacuteis de Van Gogh satildeo devires como os cardos de

14 Estas trecircs questotildees retornam frequentemente em Proust notadashymente Le temps retrouveacute La Pleacuteiade 111 p 895-896 (sobre a vida a vishysatildeo e a arte como criaccedilatildeo de universo)

Percepto Afecto e Conceito 227

Duumlrermiddot ou as mimosas de Bonnard Redon intitulava uma litografia Houve talvez uma visatildeo primeira ensaiada na flor A flor vecirc Puro e simples terror Vecirc vocecirc este girasshysol que olha para dentro pela janela do quarto Ele olha meu quarto todo o dia 15 Uma histoacuteria floral da pintura eacute como a criaccedilatildeo incessantemente retomada e continuada dos afecshytos e dos perceptos das flores A arte eacute a linguagem das senshysaccedilotildees que faz entrar nas palmiddot~r-acircsmiddotmiddotiacuteiatildes cOtilde~~~~-~~middot~~ ilas pearamiddots-x-agraverieuumli(t~iiacute~QfuilJatilde~middotr~uuml ci~aagravez ~IacuteriacuteJlE~~

middotmiddotarmiddotga~lziCcedilatilde() middotordf~i~~~fsiPsj2~-~~~~JiSCcedilsectlr~UJini otildees _ltiuacute~ sll-h~- tiiui por um ill()~E~Etccedilgt_Ccedilg~JEP~lt de ~certo~-de~Jectccedils middote de blo_~~smiddot~~j~-~SCcedilsect~sect91~fltt~~Jl-ordf~-ieze_sdeJing)Jordfg~lmiddot

O escritor se serve de palavras mas criando urna sintaxe que as introduz na sensaccedilatildeo e que faz gaguejar a liacutengua correnshyte ou tremer ou gritar ou mesmo cantar eacute o estilo o tom a linguagem das sensaccedilotildees ou a liacutengua estrangeira na liacutengua a que solicita um povo por vir oh gente do velho Catawba oh gente de Yoknapatawpha O escritor torce a linguagem fj-la vibrar a~accedila-a fende-a para arrancar o percepto middotdas percepccedilotildees o afecto das afecccedilotildees a sensaccedilatildeo da opiniatildeo_ ~---shy_________ -shyvisando esperamos esse povo que ainda natildeo existe Mishynha memoacuteria natildeo eacute amor mas hostilidade e ela trabalha natildeo para reproduzir mas para descartar o passado Que queshyria dizer minha famiacutelia eu natildeo sei Ela era gaga de nascenshyccedila e contudo tinha algo para dizer Sobre mim e sobre muishy

tos de meus contemporacircneos pesa a gagueira de nascenccedila Aprendemos natildeo a falar mas a balbuciar e eacute soacute ouvindo o ruiacutedo crescente do seacuteculo e uma vez lavados pela espuma de sua onda mais alta que noacutes dquiijmos uma liacutengua 16

Precisamente eacute a tarefa de toda arte e -a pintura a muacutesica

15 Lowry Au-dessous du fOlcan Ed Buchet-Chastel p 203

16 Mandelstam Le bruit du temps Ed LAge dhomme p 77

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

natildeo arrancam menos 4as cores e dos sons acordes novosmiddot paisagens plaacutesticas ou ~eloacutedicas personagens riacutetmicos que os elevam ateacute o canto 1a terra e o grito dos homens- o que constitui o tom a sauacutede o devir um bloco visual e sonoro Um monumento natildeo comemora natildeo celebra algo que se passou mas transmit~ para o futuro as sensaccedilotildees persistenshytes que encarnam o a ntecimento o sofrimento sempre reshynovado dos homens eu protesto recriado sua luta sempre retomada Tudo seri vatildeo por ue o sofrimento LeteIlO_~ as revoluccedilotildees natildeo so revivem agrave sua vitoacuteria Mas o sucesso dmiddot~ uumlmarevotildeTuCcedilatildeos9-resid~ela me~~-precisamente nas vibraccedilotildees nos enlace~ nas aberturas que deu aos homens no ~--=----=-----1-o----------------~-middot momento em que se fazia e que compotildeem em si um monushy

middotm-eirto sempre em vir como esses tuacutemulos aos quais cada novo viajante acresagraventa uma pedra A vitoacuteria de uma revolushyccedilatildeo eacute imanente e consiste nos novos liames que instaura entre os homens mesmo se estes natildeo duram mais Q1Je sua mateacuteshy

r~ em fusatilde5_gt_j~~~--~Jiga_peng-ordfillYisectatildeQ_acirc traiccedilatildeo As figuras esteacuteticas (e o estilo que as cria) natildeo tecircm nada

a ver com a retoacuterica SiiQsect~Otildees 12erceptos~-~~~~shy~ordf~nserostnsrisotildees_e_d~yius_Mas natildeb eacute tambeacutem pelo devir que definimos o conceito filosoacutefico e quase nos mesmos tershymos Todavia as figUumlras esteacuteticas natildeo satildeo idecircnticas aos pershysonagens cmiddotonceituais Talvez entrem uns nos outros num ~entido ou no outro como Igitur ou como Zaratustra mas

eacute na medida em que -~~~~sect~s cJ~-~onceicto2_~S2-Seit~-~ q~ sccedilg~ordfccedilotildee_s Nao eacute o mesmo devir O devir sensiacutevel eacute o ato pelo qual algo ou algueacutem natildeo paacutera de deVir-outro (continuanshydo a ser o que eacute) girassol ou Ahab enquanto que o devir

~

conceitual eacute o ato pelo qual o acontecimento comum ele mesmo esquiva o que eacute Este eacute heterogeneidade compreenshydida numa forma absoluta aquele a alteridad~ empenhada numa mateacuteria de expressatildeo O monumento natildeo atualiza o acontecimento virtual mas o incorpora ou o encarna acirca--shy

middot--~--middot---- middot~----------~middot---middot-middot--middot~~--middotmiddot- ---middotmiddotmiddotmiddot

Percepto Afecto e Conceito 228 229

lhe um corpo uma vida um universo Eacute assim que Proust definia a arte-monumento por esta via SU_I)erior ao vivido suas diferenccedilas qualitativas seus universos que consshytroem seus proacuteprios limites seus distanciamentos e suas aproshyximaccedilotildees suas constelaccedilotildees os blocos de sensaccedilotildees que eles fazem rolar o universo-Rembrandt ou universo-Debussy Estes universos natildeo satildeo nem virtuais nem atuais satildeo possiacuteshyveis o possiacutevel como categoria esteacutetica (possiacutevel por favor senatildeo eu sufoco) a existecircncia do possiacutevel enquanto que os acontecimentos satildeo a realidade do virtual formas de um penshysamento-Natureza que sobrevoam todos os universos posshysiacuteveis Natildeo significa dizer que o conceito precede de direito a sensaccedilatildeo mesmo um conceito de sensaccedilatildeo deve ser criashydo com seus meios proacuteprios e uma sensaccedilatildeo existe em seu universo possiacutevel sem que o conceito exista necessariamente em sua forma absoluta

Pode a sensaccedilatildeo ser assimilada a uma opiniatildeo originaacuteshyria Urdoxa como fundaccedilatildeo do mundo ou base imutaacutevel A fenlt_~~~~ogiltl encontra a sensaccedilatildeo em a priori materiais shyperceptivos e afectivos que transcendem acircs per-cepCcedilOtildees ecirc afecshy

Ccedilotilde~~middot~iVfd-atilde$ middototildemiddot-aillatildere-iotildeecircleVail cuumlgKmiddotocirc~--~s -~ens~Ccedilotilde~s middot ~acirc-middotratildes de Ceianne A fenomenologia deve fazer-se fenomenoshylogia da arte jaacute vimos porque a imanecircncia do vivido a um sujeito transcendental precisa exprimir-se em funccedilotildees transshycendentes que natildeo determinam somente a experiecircncia em geral mas que atravessam aqui e agora o proacuteprio vivido e I se encarnam nele constituindo sensaccedilotildees vivas O ser da senshy I

I I middot

I saccedil-ordf9_ _Q__blQccedilQ d_d percepto ~=fo ~feccedil~Q ltPareceraacute ~ornomiddot middot middot I

_Unidade ou a reversibilidade daquele que s~t~ - ~ middotd~-~-e~d- I doseu1ntiffiuuml eacute~t~r~ccedilmiddota~ento c()~uuml matilde~~ middotq~~i-~~~_middot- bullI

1 middot-middotmiddoteacute-~a--~arne que vai se libertar ao mesmo tempmiddoto do corpo vivishydo do mundo percebido e da intencionalidade de um ao outro ainda muito ligada agrave experiecircncia - enquanto a carshyne nos daacute o ser da sensaccedilatildeo e carrega a opiniatildeo originaacuteria

230 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

distinta do juiacutezo de experiecircncia Carne do mundo e carne do corpo como correlatos que se trocam coincidecircncia ideaF7

Eacute um curioso Carnismo que inspira este uacuteltimo avatar da fenomenologia e a precipita no misteacuterio da encarnaccedilatildeo eacute uma noccedilatildeo piedosa e sensual ao mesmo tempo uma misshytura de sensualidade e de religiatildeo sem a qual a carne talshymiddotvez natildeo ficaria de peacute sozinha (ela desceria ao longo dos ossos como nas figuras de Bacon) A questatildeo de saber se a carne eacute adequada agrave arte pode se enunciar assim eacute ela capaz de carshyregar o percepto e o afecto de constituir o ser de sensaccedilatildeo ou entatildeo eacute ela mesma que deve ser carregada e ingressar em outras potecircncias de vida

A carne natildeo eacute a sensaccedilatildeo mesmo se ela participa de sua middot revelaccedilatildeo Era precipitado dizer que a sensaccedilatildeo encarna A pintura faz a carne ora com o encarnado (superposiccedilotildees do vermelho e do branco) ora com tons justapostos (jUstaposhysiccedilatildeo de complementares em proporccedilotildees desiguais) Mas o que constitui a sensaccedilatildeo eacute o devir-animal vegetal etc que monta sob as praias de encarnado no nu mais gracioso mais delicado corria a presenccedila de um animal descarnado de um fruto descascado Vecircnus no espelho ou que surge na fusatildeo no cozimento no derramar de tons justapostos como a zona

17 Desde a Pheacutenomeacutenologie de lexpeacuterience estheacutetique (PUF 1953) Mikel Dufrenne fazia uma espeacutecie de analiacutetica dos a priori perceptivos e afetivos que fundavam a sensaccedilatildeo como relaccedilatildeo do corpo e do mundo Permanecia proacuteximo de Erwin Straus Mas haacute um ser de sensaccedilatildeo que se manifestaria na carne Era middota via de Merleau-Ponty no Le visible et linshyvisible Dufrenne fazia muit~s r~ervas a uma tal ontologia da carne (Loeil et loreille Ed LHexagone) Recentemente Didier Franck retomou o tema de Merleau-Ponty mostrando a importacircncia decisiva da carne segundo Heidegger e jaacute Husserl (Heidegger et le probleme de [espace Chair et corps Ed de Minuit) Todo este problema estaacute no centro de umafenoshymenologia da arte Talvez o livro ainda ineacutedito de Foucault Les aveux de la chair nos informe sobre as origens mais gerais da noccedilatildeo de carne e seu alcance na Patriacutestica

Percepto Afecto e Conceito 231

de indiscernibilidade do animal e do homem Talvez fosse um embaralhamento ou um caos se natildeo houvesse um segunshydo elemento para dar consistecircncia agrave carne_ A carne eacute apeshynas o termocircmetro de um devir A carne eacute tenra demais O segundo elemento eacute menos o osso ou a ossatura que a casa

rltmiddotr a armadura O corpo desabrocha na casa (ou num equivashylente numa fonte num bosque) Ora o que define a casa

( I satildeo as extensotildees isto eacute os pedaccedilos de planos diversamente orientados que datildeo agrave carne sua armadura primeiro-plano e plano-de-fundo paredes horizontais verticais esquerda dishyreita retos e obliacutequos retiliacuteneos ou curvos 18 Essas extenshysotildees satildeo muros mas tambeacutem solos portas j arielas portasshyjanelas espelhos que datildeo precisamente agrave sensaccedilatildeo o poder de manter-se sozinha em molduras autocircnomas Satildeo as faces do bloco de sensaccedilatildeo E haacute certamente dois signos do gecircnio dos grandes pintores bem como de sua humildade o respeishyto quase um terror com o qual eles se aproximam da cor e entram nela o cuidado com o qual operam a junccedilatildeo dos

Imiddot planos da qual depende o tipo de profundidade Sem este respeito e este cuidado a pintura eacute nula sem trabagravelho sem pensamento O difiacutecil eacute juntar natildeo as matildeos mas os planos Fazer relevos com planos que se juntam ou ao contraacuterio escarificaacute-los cortaacute-los Os dois problemas a arquitetura dos planos e o regime da cor se confundem frequumlentemente A junccedilatildeo dos planos horizontais e verticais em Ceacutezanne os planos na cor os planos o lugar colorido ou a alma dos planos entra em fusatildeo ~~_grandes P~_esou mesmo duas grandes obras que operem da mesma ~~nei-

-----=~Haacute todavia tendecircncias num pintotilderem middotGiaco~ettipo-18

Como mostra Georges Didi-Huberman a-carne middot~~gendra uma i duacutevida ela eacute proacutexima demais do caos donde a necessidade de uma

complernentariedade entre o encarnado e a extensatildeo tema essencial de La peinture incarneacutee retomada e desenvolvida em Devant limage Ed de Minuit

232 II Filosofia Ciecircncia middotLOacutegica e Arte

exemplo os planos horizontais fugidios diferem agrave direita e middot agrave esquerda e parecem se reunir na coisa (a carne da pequeshyna maccedilatilde) mas como uma pinccedila que a puxaria para traacutes e a faria desaparecer se uni plano vertical do qual soacute se vecirc o fio sem espessura natildeo viesse fixaacute-la retecirc-la no uacuteltimo moshymento dar-lhe uma existecircncia duraacutevel agrave maneira de um longo alfinete que a atravessa e a tornafiliforme por sua vez A casa participa de todo um devir Ela eacute vida ~vida natildeo

orgacircnica das coisas De todos 9s modos possiacute~sect~a_ LYD~-~ ccedilatildeo do~_planos~e mitorientaccedilOtildees que define t_casa-sens~-~-~---~ ccedilatildeo Aiacute~asa mesma (o_u-middotseu equivalente) eacute a junccedilatilde9T~itaii~------planos cQlruicles____

middot middot-middot--~rceiro elemento eacute o universo o qgtsmos Natildeo eacute soshymentea-Catildesatildeabeitaque secirc-cotildelliiriic co~ ~ p~i~agem por ~ffiatilde )atildeiieratilde- middoto-tr-uumlm espeino iiiatildes--atildemiddot-~8middot-middot~middotas~fe~~~~ ~~atilde__ atilde5e~t~-sotildebreuumlmuiiiacutevecircrsomiddot middotx- middotcamiddotsacirc-eacutefe viuuml~ecirct s~ vecirc sempre ~~pi~dmiddot -p-~i~~ fccedil~~- ~egetais de um jardim incontrolaacutevel cosmo das rosas Um universo-cosmos natildeo eacute carne Nem mesmo plano pedaccedilos de planos que se juntam planos dishyversamente orientados embora a junCcedilatildeo de todos os planos ateacute o infinito possa constituiacute-lo Mas o universo se apresenshyta no limite como o fundo da tela o uacutenico grande plano o vazio colorido o infinito monocromaacutetico A porta-janela como em Matisse soacute se abre sobre um fundo negro A carne ou antes a figura natildeo mais eacute o habitante do lugar da casa mas o habitante de um universo que suporta a casa (devir) Eacute como uma passagem do finito ao infinito mas tambeacutem do territoacuterio agrave desterritorializaccedilatildeo Eacute bem o momento do infishynito infinitos infinitamente variados Em Van Gogh em Gauguin em Bacon hoje vemos surgir a imediata tensatildeo da carne e do fundo dos derrames de tons justapostos e da praia

I

infinita de uma pura cor homogecircnea viva e saturada (em lugar de pintar a parede banal do mesquinho apartamento eu pinto o infinito faccedilo um fundo simples do azul mais rico

233Percepto Afecto e Conceito

mais intenso ) 19 Eacute verdade que o fundo monocromaacutetico

eacute mais do que um fundo E quando a pintura quer comeccedilar do zero construindo o percepto como um miacutenimo antes do vazio ou aproximando ao maacuteximo do conceito ela proceshy~e por monocromia liberada de toda casa ou de toda carne E notadamente o azul que se encarrega do infinito e qu~ faz do percepto uma sensibilidade coacutesmica ou o que haacute de mais conceitual na natureza ou de mais proposicional a cor na ausecircncia do homem o homem mergulhado na cor mas se o azul (ou o negro ou o branco) eacute perfeitamente idecircnshytico no quadro ou de um quadro a outro eacute a pintura que se torna azul- Yves o monocromo- segundo um puro afecto que faz o universo mergulhar no vazio e natildeo deixa mais nada por fazer ao pintor por excelecircncia20_

O vazio colorido ou antes colorante jaacute eacute forccedila A maior parte dos grandes monocromos da pintura moderna natildeo mais tecircm necessidade de recorrer a pequenos buquecircs murais mas apresentam variaccedilotildees sutis imperceptiacuteveis (todavia constishytutivas de um percepto) seja porque satildeo cortados ou conshy

19 Van Gogh carta a Theacuteo Correspondance complete Gallimardshy

Grasset III p 165 Os tons justapostos e sua relaccedilatildeo com o fundo satildeo um tema frequumlente da correspondecircncia Tambeacutem Gauguin carta a Schuffeshynecker 8 de outubro de 1888 Lettres Ed Grasset p 140 Eu fiz urn retra to de mim para Vincent Eacute acredito eu uma das minhas melhores coisas absolutamente incompreensiacutevel (por exemplo) de tal maneira eacute abstra~o o seu d~senho eacute inteiramente arbitraacuterio abstraccedilatildeo cornpl~ta a c~r ~uma co~ d1sta1te da natureza imagine uma vaga lembranccedila de ceram1ca retor~rda pelo fogo forte Todos os vermelhos os violetas rajashydas pelos claroes de fogo como uma fornalha radiante aos olhos sede das lutas do pensamento do pintor O todo sobre um fundo cromo seshymeado de buquecircs infantis Quarto de moccedila pura Eaacute ideacuteia do coloriacutesta arbitraacuterio segundo Van Gogh

~~ Cf Artst~dio no 16 Monochromes (sobre Klein artigos de Genev1eve Monmer e de Denys Riout e sobre os avatares atuais do monocromo artigo de Pierre Sterckx)

234 IL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tornados de um lado por uma fita um faixa uma extensatildeo de uma outra cor ou de um outro tom que mudam a intenshysidade do fundo por vizinhanccedila ou distanciamento seja porshyque apresentam figuras lineares ou circulares quase virtuais tom sobre torit seja porque satildeo esburacados ou fendidos satildeo problemas de junccedilatildeo ainda mas singularmente ampliados

Numa palavra o fundo vibra se enlaccedila ou se fende poque eacute portador de forccedilas apenas vislumbradas E o q~e fazia de iniacutecio a pintura abstrata convocar asforccedilas povoar o funshydo com as forccedilas que ele abriga fazer ver nelas mesmas as forshyccedilas invisiacuteveis traccedilar figuras de aparecircncia geomeacutetrica mas que natildeo seriam mais do que forccedilas forccedila de gravitaccedilatildeo de peso de rotaccedilatildeo de turbilhatildeo de explosatildeo de expansatildeo de gershyminaccedilatildeo forccedila do tempo (como se pode dizer da muacutesica que ela faz ouvir a forccedila sonora do tempo por exemplo com Messhysiaen ou da literatura com Proust que faz ler e conceber a forccedilaacute ilegiacutevel do tempo) Natildeo eacute esta a definiccedilatildeo do percepto em pessoa tornar sensiacuteveis as forccedilas insensiacuteveis que povoam o mundo e que nos afetam nos faze~ devir O que Mondrian obteacutem por simples diferenccedilas entre lados de um quadrado e Kandinsky pelas tensotildees lineares e Kupka pelos planos curvos em torno do ponto Do fundodas eras nos vem o que Worringer chamava a linha setentrional abstrata e infinita linha do uacuteniverso que forma fitas e tiras rodas e turbinas toda uma geometria viva elevando agrave intuiccedilatildeo as forccedilas mecacircshynicas constituindo uma poderosa vida natildeo-orgacircnica21

O eterno objeto da pintura pintar as forccedilas como Tintoretto

Encontraremos tambeacutem talvez a casa e o corpo E que o fundo infinito eacute frequumlentemente aquilo sobre o que se abre a janela ou a porta ou entatildeo eacute o muro da proacutepria casa ou o solo Van Gogh e Gauguin semeiam o fundo de pequenos buquecircs de flores para fazer deles o papel mural

21 Worringer Lart gothique Gallimard

Percepto Afecto e Conceito 235

sobre o qual se destaca o rosto de tons justapostos E com efeito a casa natildeo nos abriga das forccedilas coacutesmicas no maacutexishymo ela as filtra elas as seleciona Ela as transforma algushymas vezes em forccedilas benevolentes jamais a pintuacutera fez ver a forccedila de Arquimedes a forccedila do empuxltgt da aacutegua sobre um corpo gracioso que flutua na banheira da casa como Bonnard conseguiu em o Nuacute no banho Mas tambeacutem as forccedilas mais maleacuteficas podem entrar pela porta entreabershyta ou fechada satildeo as forccedilas coacutesmicas que provocam elas mesmas as zonas de indiscernibilidade nos_tons justapostos de um rosto esbofeteando-o arranhando-o fundindo-o em todos os sentidos e satildeo estas zonas de indiscernibilidade que revelam as forccedilas escondidas no fundo (Bacon) Haacute plena complementariedade enlace de forccedilas como perceptos e de devires como afectos A linha de forccedila abstrata segundo ~orringer eacute rica em motivos animalescos Agraves forccedilas coacutesshymicas ou cosmogeneacuteticas correspondem devires-aniinais veshy

geta1s moleculares ateacute que o corpo desapareccedila no fundo ou entre no muro ou inversamente que o fundo se contorshyccedila e turbilhone na zona de indiscernibilidade d~ corpo~ Numa palavra o ser de sensaccedilatildeo natildeo eacute a carne mas o comshyposto das forccedilas natildeo-humanas do cosmos dos devires natildeo humanos do homem e da casa ambiacutegua que os troccedila e os ajusta os faz turbilhonar como os ventos A carne eacute somenshyte o revelador que desaparece no que revela o composto de sensaccedilotildees Como toda pintura a pintura abstrata eacute senshysaccedilatildeo nada mais que sensaccedilatildeo Em Mondrian eacute o quarto que acede ao ser de sensaccedilatildeo dividindo por extensotildees coshyloridas o plano vazio infinito que lhe daacute de volta um infishy

d b 22 mto e a ertura Em Kandinsky as casa~ satildeo uma das

22 Mondrian Reacutealiteacute naturelle et reacutealiteacute abstraite (in Seuphor Piet

Mondnan sa vie son oeuvre Ed Flammarion) sobre o quarto e seu desdobramento Michel Butor analisou este desdobramento do quarto em

236 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

fontes da abstraccedilatildeo que consiste menos em figuras geomeacuteshytricas que em trajetos dinacircmicos e linhas de erracircncia cashyminhos que caminham nos arredores Em Kupka eacute de iniacuteshycio sobre o corpo que o pintor talha fitas ou extensotildees coshyloridas que produziratildeo no vazio os planos curos que o povoam tornando-se sensaccedilotildees cosmogeneacuteticas__ ~--~--~~~~

ccedilatildeoe~_pi_rjtual ou j~ um _~Ol~-~-i_g_viSgt= O _q~-~~t-~ lt1 ~~-~~- uacuten1verso A ~r~~ - aJs~rata_~ s~P25 a ~rte _C()flC~I~~~_Elt~~~-- middot-Pmiddot cacirc~dTmiddot~tamente a questatildeo que impregna toda pintura ---- --middot-shys~~ - ~-eiacute~Ccedilatilde-uumlcocircffi o ~~~~~ito~sti-a relaccedilatildeo com a funccedilatildeo middot_

A arte comeccedila talv-ez--com o animal ao menos com o animal que recorta um territoacuterio e faz uma casa (os dois satildeo correlativos ou ateacute mesmo se confundem por vezes no que se chama de habitat) Com o sistema territoacuterio-casa muitas funccedilotildees orgacircnicas se transformam sexualidade procriaccedilatildeo agressiyidade alimentaccedilatildeo mas natildeo eacute esta transformaccedilatildeo que explica a apariccedilatildeo do territoacuterio e da casa seria antes o

inverso o territoacuterio impli~a na emergecirc~lti~ e 91-ali_cll~~-~sel~ siacuteveis pu~- ~~-ibiIacuteia qua~ixacirciiacuteiacute -de ser unicaii1~_Ilt_e ushyecirc(ocircOtildeagraveisecirc cse- ioacuternani-tragraveCcediluumlsmiddotae express~Otilde__ tormiddotn~~~~J~~s~V~l tiffiagravetiansfocirciinaCcedilatildeo (G$iacute~i1Ccedilotildees23 s~ni duacutevida esta expresshysivlamp1deTaacuteestacirc dltu~ch~E~~~middot Vida~ pode-se dizer que o simshyples liacuterio dos campos celebra a gloacuteria dos ceacuteus Mas eacute com o territoacuterio e a casa que ela se torna construtiva e ergue os monumentos rituais de uma missa animal que celebra as quashylidades antes de tirar delas novas causalidades e finalidades Esta emergecircncia jaacute eacute arte natildeo somente no tratamento dos materiais exteriores mas nas posturas e cores do corpo nos

quadrados ou retacircngulos e a abertura sobre um quadrado interior vazio e branco como promessa de quarto futuro Reacutepertoire III Le carreacute et son habitant Ed de Minuit p 307-309314-315

23 Parece-nos que eacute um engano de Lorenz querer explicar o terrishytoacuterio por uma evoluccedilatildeo das funccedilotildees L agression Ed Flammarion

Percepto Afecto e Conceito 237

cantos e nos gritos que marcam o territoacuterio Eacute um jorro de traccedilos de~-~2E~~- e de sons inseparaacuteveisna dtecTda em que s~ -~riill _ ~xpr~~isiV_9_~ ~-(~i~~~i-~ill~~9l0_~_4~ middotr~ritoacute~i~fCcedil Scenopoietes dentirostris paacutessaro das florestas chuvosas da Austraacutelia faz cair da aacutervore as folhas que corta cada manhatilde vira-as para que sua face interna mais paacutelida contraste com a terra constroacutei para si assim uma cena co_mo um readyshymade e canta exatamente em cima sobre um cipoacute ou-um galho um canto complexo composto de suas proacuteprias noshytas e das de outros paacutessaros que imita nos intervalos mosshytrando a raiacutez amarela das plumas sob seubico eacute um artista completo24

bull Natildeo satildeo as sinestesias em plena carne satildeo esshytes blocos de sensaccedilotildees no territoacuterio cores posturas e sons que esboccedilam uma obra de arte total Estes blocos satildeo rishytorneios mas haacute tambeacutem ritornelos posturais e de cores e tanto posturas quanto cores se introduzem sempre nos ritor~ nelas Reverecircncias e posiccedilotildees eretas rondas traccedilos de coshyres O ritornelo inteiro eacute o ser de sensaccedilatildeo Os monumenshytos satildeo ritornelos Desse ponto de vista a arte natildeo deixaraacute de ser habitada pelo animal A arte deKafka seraacute a mais prbshy

funda meditaccedilatildeo sobre o territoacuterio e a casa o terreiro as pos~ turas~retrato (a cabeccedila pendida do habitante com o queixo enterrado no peito ou ao contraacuterio o grande tiacutemido que fura o teto com seu cracircnio anguloso) os sons-muacutesica (os catildees que satildeo muacutesicos por suas proacuteprias posturas Josephine a ratinha cantora da qual ja~ais saberemos se canta Gregoire que une seu piadoao violino de sua irmatilde numa relaccedilatildeo comshyplexa quarto-casa~territoacuterio) Eis tudo o que eacute preciso para fazer arte uma casa posturas cores e cantos - sob a conshy ~

I diccedilatildeo de que tudo isso se abra e se lance sobre ummiddotvetor louco como uma vassoura de bruxa uma linha d~ universo ou de

24 Marshall Bowler Birds Oxford at the Clarendon Press Gilliord Birds of Paradise and Bowler Birds Weidenfeld

desterritorializaccedilatildeoPerspectiva de um quarto com seus hashybitantes (Klee )

Cada territoacuterio cada habitat junt a seus planos ou suas extensotildees natildeo apenas espaccedilo-temporais mas qualitativos por exemplo uma postura e um canto um canto e urna cor perceptos e afectos E cada territoacuterio engloba ou recorta ter~ ritoacuterios de outras espeacutecies ou intercepta trajetos de animais sem territoacuterio formando junccedilotildees inUacuterespeciacuteficltlS Eacute neste sentido que Uexkuumlhl num primeiro aspecto desenvolve urna concepccedilatildeo da Natureza meloacutedica polifocircnica contrapontual Natildeo apenas o canto de um paacutessaro tem suas relaccedilotildees de conshytraponto mas pode fazer contraponto com o canto de oushytras espeacutecies e pode ele mesmo imitar estes outros cantos como se se tratasse de ocupar um maacuteximo de frequumlecircnciacuteas A teia de aranha conteacutem um retrato muito sutil da mosca que lhe serve de contraponto A concha como casa do moshylusco~ se torna quando ele morre o contraponto do Bershynardo-eremita que faz dela seu proacuteprio habitat graccedilas a sua cauda que natildeo eacute nadadeira mas preecircnsil e lhe permite capshyturar a concha vazia O Carrapato eacute organicamente consshytruiacutedo de modo a encontrar seu contraponto no mamiacutefero qualquer que passa sob seu galho como as folhas de carvashylho arranjadas como telhas nas gotas de chuva que escorshyrem Natildeo eacute uma concepccedilatildeo finalista mas meloacutedica em que natildeo mais sabemos o que eacute arte ou natureza (a teacutecnica nashytural) haacute contraponto toda vez que uma melodia interveacutem como motivo numa outra melodia como nas bodas enshytre a mamangava e a boca-de-leatildeo Essas relaccedilotildees de contrashyponto juntam planos formam compostos de sensaccedilotildees bloshycos e determinam devires Mas natildeo satildeo somente estes comshypostos meloacutedicos determinados que constituem a natureza mesmo generalizados eacute preciso tambeacutem sob um outro asshypecto um plano de composiccedilatildeo sinfocircnica infinio da Casa ao universo Da endo-sensaccedilatildeo agrave exo-sensaccedilatildeo E que o tershy

bull 238 li Filosofia Ciecircnci~ Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 239

r I I I-- --- --

~ -

middot1

ritoacuterio natildeo se limita a isolar e juntar ele abre para forccedilas coacutesmicas que sobem de dentro ou que vecircm de fora e torna sensiacuteveis seu efeito sobre o habitante Eacute um plano de comshyposiccedilatildeo do carvalho que porta ou comporta a forCcedila de deshysenvolvimento da bolota e a forccedila de formaccedilatildeo das gotas ou o do carrapato que tem a forccedila da luz capaz de atrair o animal ateacute a ponta de um galho numa altura suficiente e a forccedila de peso com a qual se deixa cair sobre o mamiacutefero que passa -e entre os dois nada um vazio assustador que pode durar anos se o mamiacutefero natildeo passa25bull E ora as forccedilas se fundem umas nas outras em transiccedilotildees sutis decompotildeemshyse tatildeo logo vislumbradas ora se alternam ou se enfrentam Ora deixam-se selecionar pelo territoacuterio e satildeo as mais beshynevolentes que entram na casa Ora lanccedilam um apelo misshyterioso que arranca o habitante do territoacuterio e o precipita numa viagem irresistiacutevel como os pintassilgos que se reuacuteshynem frequentemente aos milhotildees ou as lagostas que empreshyendem uma imensa peregrinaccedilatildeo no fundo da aacutegua Ora se abatem sobre o territoacuterio e o invertem malevolentes restaushyrando o caos de onde ele mal saiacutea Mas sempre se a nature za eacute como a arte eacute porque ela conjuga de todas as maneiras esses dois elementos vivos a Casa e o Universo o Heimlich e o Unheimlich o territoacuterio e a desterritorializaccedilatildeo os comshypostos meloacutedicos finitos e o grande plano de composiccedilatildeo infinito o pequeno e o grande ritornelo

A arte comeccedila natildeo com a carne mas com a casa eacute por isso que a arquitetura eacute a primeira das artes Quando Dushybuffet procura delifuitar um certo estado bruto de arte eacute a princiacutepio na direccedilatildeo da casa que ele se volta e toda sua obra se ergue entre a arquitetura a escultura e a -pintUra E limishy

25 Cf a obra-prima de J von Uexkuumlhl Mondes animaux et monde humain Theacuteorie de la signification Ed Gonthier (p 137-142 o contrashyponto motivo do desenvolvimento e da morfogecircnese)

II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tando-nos agrave forma a arquitetura mais saacutebia natildeo deixa de fazer planos extensotildees e de juntaacute-los Eacute por isso que se pode defini-la pela moldura um encaixe de molduras diversashymente orientadas que se imporiam agraves outras artes da pinshytura ao Cinema Jaacute se apresentou a preacute-histoacuteria do quadro como passando pelo afresco na moldura da parede o vitral ha moldura da janela o mosaico na moldura do solo A moldura eacute o umbigo que liga o quadro ao monujllento do qual ele eacute a reduccedilatildeo como a moldura goacutetica com coluneshytas ogiva e flecha26 Fazendo da arquitetura a arte primeira da moldura Bernard Cache pode enumerar um certo nuacutemero de formas enquadrantes que natildeo prejulgam nenhum conteuacuteshydo concreto nem funccedilatildeo do edifiacutecio o mu~o que isola ajashynela que capta ou seleciona (em conexatildeo com o territoacuterio) o solo-chatildeo que conjura ou rarifica (rarificar o relevo da terra para dar livre curso agraves trajetoacuterias humanas) o teto que envolve a singularidade do lugar (o teto em declive coloca o edifiacutecio sobre uma colina ) Encaixar essas molshyduras ou juntar todos estes planos extensatildeo de muro exshytensatildeo de janela extensatildeo de solo extensatildeo de declive eacute todo um sistema composto rico em pontos e contrapontos As molduras e suas junccedilotildees sustentam os compostos de sensashyccedilotildees datildeo consistecircncia agraves figuras confundem-se com seu dar consistecircncia seu proacuteprio tocircnus Aiacute estatildeo as faces de um cubo de sensaccedilatildeo As molduras ou as extensotildees natildeo satildeo coordeshynadas pertencem aos compostos de sensaccedilotildees dos quais consshytituem as faces as interfaces Mas por mais extensiacutevel que seja este sistema eacute preciso ainda um vasto plano de composhysiccedilatildeo que opere uma espeacutecie de desenquadramento segunshydo linhas de fuga que soacute passe pelo territoacuterio para abri-lo sobre o universo que vaacute da casa-territoacuterio agrave cidade-cosmos

26 Henry van de Velde Deacuteblaientent dart Archives darchitecture moderne p 20

Percepto Afecto e Conceito 240 241

-~-_--- middot-middotmiddot

e que dissolva agora a identidade do lugar na variaccedilatildeo da Natildeo parece que a literatura e particularmente o romance Terra uma cidade que tem menos um lugar do que vetores estejam imma outra situaccedilatildeo O que conta natildeo satildeo as opiniotildees pregueando a linha abstrata do relevo Eacute sobre este plano de dos personagens segundo seus tipos sociais e seu caraacuteter composiccedilatildeo como sobre um espaccedilo vetorial abstrato que como nos maus romances mas as relaccedilotildees de contraponto nos se traccedilam figuras geomeacutetricas cone prisma diedro plano quais entram e os compostos de sensaccedilotildees que esses persoshyestrito que nada mais satildeo do que forccedilas coacutesmicas capazes nagens experimentam eles mesmos ou fazem experimentar em de se fundir se transformar se enfrentar alternar mundo seus devires e suas visotildees O contraponto natildeo serve para reshyde antes do homem mesmo se eacute produto do homem27 Eacute latar conversas reais ou fictiacutecias mas para fazer mostrar a preciso agora desarticular os planos para remetecirc-los a seus loucura de qualquer conversa de qualquer diaacutelogo mesmo

j intervalos em vez de remetecirc-los uns aos outros para criar interior Eacute tudo isso que o romancista deve extrair das pershy

novos afectos28 Ora~ vimos que a pintura seguia o mesmo cepccedilotildees afecccedilotildees e opiniotildees de seus modelos psicossociais I

I movimento A moldura ou a borda do quadro eacute em primeiro que se integram inteiramente nos perceptos e os afectos aos ~ I

lugar o invoacutelucro externo de uma seacuterie de molduras ou de quais o personagem deve ser elevado sem conservar outra vida I

I extensotildees que se juntam operando contrapontos de linhas E isso implica num vasto plano de composiccedilatildeo natildeo preconshyi

I

e de cores determinando compostos de sensaccedilotildees Mas o cebido abstratamente mas que se constroacutei agrave medida que a obraI

quadro eacute atravessado tambeacutem por uma potecircncia de desenshy avanccedila abrindo misturando desfazendo e refazendo composshy

I I quadramento que o abre para um plano de composiccedilatildeo oumiddot tos cada vez mais ilimitados segundo a penetraccedilatildeo de forccedilasI

um campo de forccedilas infinito Estes procedimentos podem ser coacutesmicas A teoria do romance de Bakhtin vai nesse sentido muito diversos mesmo no nivel da moldura exterior formas mostrando de Rabelais a Dostoievski a coexistecircncia dos comshy

[I irregulares lados que natildeo se juntam molduras pintadas oacuteu ponentes contrapontuais polifocircnicos e plurivocais com um I pontilhados de Seurat quadrados sobre ponta de Mondrian plano de composiccedilatildeo arquitetocircnico ou sinfocircnico29 Um roshyi li tudo o que daacute ao quadro o poder de sair da tela Jamais o mancista como Dos Passos soube atingir uma arte inaudita

shy__jl

gesto do pintor fica na moldura ele sai da moldura e natildeo do contraponto nos compostos que forma entre personagens comeccedila com ela atualidades biografias olhos de cacircmera ao mesmo teropo queI

um plano de composiccedilatildeo se alarga ao infinito para arrastar tudo para a Vida para a Morte para a cidade-cosmos E se27 Sobre todos estes pontos a anaacutelise das formas enquadrantes e da

cidade-cosmos (exemplo de Lausanne) cf Bernard Cache L ameublement retornamos a Proust eacute porque mais do que qualquer outro du territoire (a sair) ele fez com que os dois elementos quase se sucedessem emboshy

28 Eacute Pascal Bonitzer que formou o conceito de desenquadramento ra presentes um no outro o plano de composiccedilatildeo aparece poushypara aplicar ao cinema novas rdaccedilotildees entre os planos ( Cahiers du cineacutema co a pouco para a vida para a morte compostos de sensashyndeg 284 janeiro de 1978) planos disjuntos triturados ou fragmentados ccedilatildeo que ele edifica no curso do tempo perdido ateacute aparecer graccedilas aos quais o cinema se torna uma arte depurando-se das emoccedilotildees

em si mesmo com o tempo reencontrado a forccedila ou antes asmais comuns que arriscam de lhe impedir o desenvolvimento esteacutetico e produzindo-lhe afetos novos (Le champ aveugle Ed Cahiers du cineacutema Gallirnard sisteme des eacutemotions ) 29 Bakhtin Estheacutetique et theacuteorie du roman Gallimard

242 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 243

-- ---

forccedilas do tempo puro tornadas sensiacuteveis Tudo comeccedila peshylas Casas que devem todas juntar suas dimensotildees e dar conshysistecircncia a compostos Combray o palacete de Guermantes o salatildeo Verdurin e as casas elas mesmas se ajuntam segundo interfaces mas um Cosmos planetaacuterio jaacute estaacute laacute visiacutevel ao telescoacutepio arruinando-as ou transformando-as e absorvenshydo-as no infinito do fundo Tudo comeccedila por titornelos cada

i

um dos quais como a pequena frase da sonata de Vinteuil natildeo se compotildee apenas em si mesmo mas com -outras sensashy

ccedilotildees variaacuteveis a de uma passante desconhecida a do rosto de Odette a das folhagens do bosque de Boulogne- e tudo tershy I mina no infinito no grade Ritornelo a frase do seacuteptuor em Iperpeacutetua metamorfose o canto dos universos o mundo de antes do homem ou de depois De cada coisa finita Proust faz uni ser de sensaccedilatildeo que natildeo deixa de se conservar mas fushygindo sobre um plano de composiccedilatildeo do Ser seres de fuga

EXEMPLO XII

Natildeo parece que a muacutesica esteja numa outra situashyccedilatildeo talvez mesmo a encarne com mais poder ainda Dizshyse todavia que o som natildeo tem moldura Mas os comshypostos de sensaccedilotildees os blocos sonoros tampouco tecircm extensotildees ou formas enquadrantes que devem em cada caso se ajuntar assegurando um certo fechamento Os casos mais simples satildeo a aacuteria meloacutedica que eacute um ritorshynelo monofocircnico o motivo que jaacute eacute polifocircnico um elemento de Uacutema melodia interveniente no desenvolvishymento de uma outra e fazendo contraponto o tema como objeto de modificaccedilotildees harm-ecircnicas atrav~s das linhas meloacutedicas Essas trecircs formas elementares consshytroacuteem a casa sonora e seu territoacuterio Elas correspondem agraves trecircs modalidades de um ser de sensaccedilatildeo pois a aacuteria eacute uma vibraccedilatildeo o motivo eacute um enlace um acoplamen-

I244 lIL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

jbull

to enquanto o tema natildeo fecha sem se descerrar fender e tambeacutem abrir Com efeito o fenocircmeno musical mais importante que aparece agrave medida que os compostos de sensaccedilotildees sonoras se tornam mais complexos eacute que sua clausura ou fechamento (por junccedilatildeo de suas molduras de suas extensotildees) se acompanha de uma possibilidade de abertura sobre um plano de composiccedilatildeo cada vez mais ilimitado Os seres de muacutesica satildeo como os seres vivos segundo Bergson que compensam sua clausura individuante por uma abertura feita de modulaccedilatildeo reshypeticcedilatildeo transposiccedilatildeo justaposiccedilatildeo Se consideramos a sonata encontramos aiacute uma forma enquadraacutente parshyticularmente riacutegida fundada sobre um bitematismo e da qual o primeiro movimento apresenta as seguintes dimensotildees exposiccedilatildeo do primeiro tema transiccedilatildeo exshyposiccedilatildeo do segundo tema desenvolvimentos sobre o pric rileiro ou o segundo coda desenvolvimento do primeiro com modulaccedilatildeo etc Eacute toda uma casa com seus aposhysentos Mas eacute antes o primeiro movimento que forma assim uma ceacutelula e eacute raro que uiacuten grande muacutesico siga a forma canocircnica os outros moviacutementos podem abrirshyse notadamente o segundo pel~ tema e variaccedilatildeo ateacute que Liszt asseg~re uma fusatildeo dos movimentos no poeshyma sinfocircnico A sonata aparece entatildeo antes como uma forma-cruzamento em que da junccedilatildeo das dimensotildees musicais da clausura dos compostos sonoros nasce a abertura de um plano de composiccedilatildeo

Deste ponto de vista o velho procedimento tema e variaccedilatildeo que manteacutem a moldura harmocircnica do tema daacute lugar a uma espeacutecie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composiccedilatildeo (Chopin Schumann Liszt eacute um novo momento essencial porshyque o trabalho criador natildeo mais versa sobre os comshyponentes sonoros motivos e temas abrindo um plano

245Percepto Mecto e Conceito

~~

mas ao contraacuterio versa diretamente sobre o proacuteprio plano de composiccedilatildeo para fazer nascer dele composshytos bem mais livres e desenquadrados quase agregados incompletos ou sobrecarregados em desequiliacutebrio pershymanente Eacute a cor do som que conta cada vez mais Passa-se da Casa ao Cosmos (segundo uma foacutermula que a obra de Stockhausen retomaraacute) O trabalho do plano de composiccedilatildeo se desenvolve em duas direccedilotildees que engendraratildeo uma desagregaccedilatildeo da moldura tonal os imensos fundos da variaccedilatildeo contiacutenua que fazem enshylaccedilar e se unir as forccedilas tornadas sonoras em Wagner ou os tons justapostos que separam e dispersam as forshyccedilas agenciando suas passagens reversiacuteveis em Debussy Universo-Wagner universo-Debussy Todas as aacuterias todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquashydrados infantis domeacutesticos profissionais nacionais territoriais satildeo carregados no grande Ritornelo um potente canto da terra - o desterritorializado - que se eleva com Mahler Berg ou Bartoacutek E sem duacutevida o plano de composiccedilatildeo engendra sempre novas clausuras como na seacuterie Mas sempre o gesto do muacutesico consiste em desenquadrar encontrar a abertura retornar o plashyno de composiccedilatildeo segundo a foacutermula que obceca Boushylez traccedilar uina transversal irredutiacutevel agrave vertical harmocircshynica como agrave horizontal meloacutedica que conduz blocos soshynoros agrave individualizaccedilatildeo variaacutevel mas tambeacutem abri-las ou fendecirc-las num espaccedilo-tempo que determina sua denshysidaae e seu percurso sobre o plano30 O grande ritorshynelo se eleva agrave medida que nos afastamos dacasa messhy

30 Boulez notadamente Points de repere Ed Bourgois-Le Seuil p 159 e segs (Pensez la musique aujourdhui Ed Gonthier p 59-62) A eXtensatildeo da seacuterie em duraccedilotildees intensidades e timbres natildeo eacute um ato de clausura mas ao contraacuterio uma abertura do que se fechava na middotseacuterie das alturas

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte246

--~=shyq

mo se eacute para retornar a ela jaacute que ningueacutem mais nos reconheceraacute quando retornarmos

Composiccedilatildeo composiccedilatildeo eis a uacutenica definiccedilatildeo da arte A composiccedilatildeo eacute esteacutetica e o que natildeo eacute composto natildeo eacute uma obra de arte Natildeo confundiremos todavia a composiccedilatildeo teacutecshynica trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciecircncia (matemaacutetica fiacutesica quiacutemica anatomia) e a comshyposiccedilatildeo esteacutetica que eacute o trabalho da sensaccedilatildeo Soacute este uacuteltishymo merece plenamente o nome de composiccedilatildeo e nunca uma obra de arte eacute feita por teacutecnica ou pela teacutecnica Certamente a teacutecnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra as palavras e a sintaxe em literatura natildeo apenas a tela em pintura mas sua preparashyccedilatildeo os pigmentos suas misturas os meacutetodos de perspectiva ou ent~o os doze sons da muacutesica ocidental os instrumentos as escalas as alturas E a relaccedilatildeo entre os dois planos oacute

plano de composiccedilatildeo teacutecnica e o plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica natildeo cessa de variar historicamente Sejam dois estados oponiacuteveis na pintura a oacuteleo num primeiro caso o quadro eacute preparado por um fundo branco sobre o qual se desenha e se dilui o desenho (esboccedilo) enfim se potildee a cor as sombras e as luzes No outro caso o fundo se torna cada vez mais espesso opaco e absorvente de modo que ele se colore na divisatildeo e o trabalho se faz em plena massa sobre uma gama escura as correccedilotildees substituindo o esboccedilo o pintor pintaraacute sobre cor depois cor ao lado de cor as cores se tornando cada vez mais relevos a arquitetura sendo assegurada pelo contraste dos complementares e a concordacircncia dos anaacuteshylogos (Van Gogh) eacute por e nagrave cor que se encontraraacute a arshyquitetura mesmo se eacute preciso renunciar aos relevos parareshyconstituir grandes unidades colorantes Eacute verdade que Xavier de Langlais vecirc em todo este segundo caso uma longa decashydecircncia que caino efecircmero e natildeo chega a restaurar uma ar-

Percepto Mecto e Conceito 247

quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem duacutevida esta observaccedilatildeo coloca ao meshynos negativamente a questatildeo do progresso na arte jaacute que Langlais considera que a decadecircncia comeccedila jaacute depois de Van Eyck (um pouco como alguns param a muacutesica no canto greshygoriano ou a filosofia em Santo Tomaacutes) Mas eacute uma obsershyvaccedilatildeo teacutecnica que concerne somente ao material aleacutem de que a duraccedilatildeo do material eacute muito relativa a sensaccedilatildeo eacute de uma outra ordem e possui uma existecircncia em si enquanto o mashyterial dura A relaccedilatildeo da sensaccedilatildeo com o material deve pois ser avaliada nos limites da duraccedilatildeo do material qualquer que ela seja Se haacute progressatildeo em arte eacute porque a arte soacute pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retonws linhas de partilha mudanccedilas de niacuteveis e de escashy

I las Deste ponto de vista a distinccedilatildeo de dois estados da lf

pintura a oacuteleo toma um aspecto inteiramente diferente esshyI

teacutetico e natildeo mais teacutecnico- esta distinccedilatildeo natildeo conduz evishydentemente ao representativo ou natildeo jaacute que nenhuma arte nenhuma sensaccedilatildeo jamais foram representativas

li No primeiro caso a sensaccedilatildeo se realiza no material e natildeo existe fora desta realizaccedilatildeo Diriacuteamos que a sensaccedilatildeo (o composto de sensaccedilotildees) se projeta sobre o plano de composhysiccedilatildeo teacutecnica bem preparado de sorte que o plano -de comshyposiccedilatildeo esteacutetica venha recobri-lo Eacute preciso pois que o mashyterial compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graccedilas aos quais a sensaccedilatildeo projetada natildeo se realiza somenshyte cobrindo o qu1dro mas segundo uma profundidade A arte desfruta entatildeo de uma aparecircncia de transcendecircncia que se exprime natildeo numa coisa por representar mas no caraacuteter paradigmaacutetico da projeccedilatildeo e no caraacuteter simboacutelico da persshypectiva A Figura eacute como a fabulaccedilatildeo segundo Bergson tem

31 Xavier de Langlais La technique de la peinture agrave lhuile Ed Flammarion (E Goethe Traiteacute des couleurs Ed Triades sect 902-909)

248 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 249

middot i

uma origem religiosa Mas quando ela se torna esteacutetica sua transcendecircncia sensitiva entra numa oposiccedilatildeo surda ou abe-rshyta com a transcendecircncia suprasensiacutevel das religiotildees

No segundo caso natildeo eacute mais a sensaccedilatildeo que se realiza no material eacute antes o material que entra na sensaccedilatildeo Cershytamente a sensaccedilatildeo natildeo existe mais fora dessa entrada e o plano de composiccedilatildeo teacutecnica natildeo mais tem autonomia a natildeo ser no primeiro caso natildeo vale jamais por si mesmo Mas diriacuteamos agora que ele sobe no plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica e lhe daacute uma espessura proacutepria como diz Damisch inshydependente de qualquer perspectiva e profundidade Eacute o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transshycendecircncia aparente ou-de um modelo paradigmaacutetico e conshyfessam seu ateiacutesmo inocente seu paganismo E sem duacutevida entre estes dois casos estes dois estados da sensaccedilatildeo estes dois poacutelos da teacutecnica as transiccedilotildees as combinaccedilotildees e as coexistecircncias se fazem constantemente (por exemplo o trashybalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens) satildeo poacutelos abstratos ao inveacutes de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com oacuteleo e solvente se volta cada vez mais na direccedilatildeo do segundo poacutelo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composiccedilatilde~ esteacutetica -Eacute por isso -que eacute tatildeo falso definir a sensaccedilatildeo na pintura moderna pela admissatildeo de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a esshypessura natildeo precisa ser larga ou profunda Pocircde-se dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfiacuteshycie basta-lhe apoiar-se sobre os vazios e os plenos do pashypel Canson Eacute uma pintura que natildeo mais tem fundo porshyque o baixo emerge a superfiacutecie eacute esburacaacutevel ou o plashyno de composiccedilatildeo ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspecshytiva independentemente das sombras e mesmo da ordem

i r I li

I 32 Cf Christian Bonnefbi intervieweacute et commenteacute par Yvesshy

I Alain Bois Macula S-6

33 Damisch Fenecirctre jaime cadmium ou les dessous de la peinture Ed du Seuil pp 275-305 (e p 80 a espessura do plano em Pollock) Dashy

li misch eacute o autor que mais insistiu sobre a relaccedilatildeo -arte-pertsamento pinshytura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instauraacute-la Mallarmeacute fazia da espessura do livro uma dimensatildeo distinta da proshy) fundidade cf Jacques Scheacuterer Le livre de Mallarmeacute Gallimard p 55shy

I tema que Boulez retoma por sua vez para a muacutesica (Points de repere p 161) iI

li 250 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

I I

cromaacutetica da cor (o colorista arbitraacuterio) Natildeo mais se recoshybre faz-se subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar Eacute uma promoccedilatildeo do solo e a escultura pode torshy

I nar-se plana jaacute que o plano se estratifica Natildeo magraveis se pinshyI ta sobre mas sob A arte informal levou muito longe

estas novas potecircncias da textura essa elevaccedilatildeo do solo com I Dubuffet e tambeacutem o expressionismo abstrato a arte mishy

nimalista procedendo por impregnaccedilotildees fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atraacutes de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem agrave vista do pintor o que enshytregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes estados a pintura eacute-penshysamento a visatildeo existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta

Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdashydeiro conceito mostrando que o tranccedilado poderia bem preencher para a pintura futura funccedilatildeo anaacuteloga agravequela que foi a da perspectiva O quemiddotnatildeo eacute proacuteprio da pintura jaacute que Damisch reencontra a mesma distinccedilatildeo no niacutevel do plano arquitetura quando Scarpa por exemplo rejeita o movishymento da projeccedilatildeo e os mecanismos da perspectiva para ins~ crever os volumes na espessura do proacuteprio plano33 bull E da literatura agrave muacutesica uma espessura material se afirma que

--~ middot

natildeo se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal Eacute umr I traccedilo caracteriacutestico da literatura moderna quando as palashyr vras e a sintaxe sobem no plano de composiccedilatildeo e o cavam I em lugar de colocaacute-lo em perspectiva E a muacutesica quando

renuncia agrave projeccedilatildeo como agraves perspeCtivas que impotildeem a alshyI tura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano soshynoro uma espessura singular da qual testemunham elemenshy

I tos muito diferentes a evoluccedilatildeo dos estudos parapiano que deixam de ser somente teacutecnicas para tornar-se estudos de

jmiddot composiccedilatildeo (com a extensatildeo que lhes daacute Debussy) a imshy

portacircncia decisiva que toma a orquestraccedilatildeo em Berlioz a i subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferashyI I ccedilatildeo dos afectos de percussatildeo com os metais as peles e as mashy

deiras e sua ligaccedilatildeo com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparaacuteveis do material (Varese) a redeshy

I finiccedilatildeo do percepto em funccedilatildeo do ruiacutedo do som bruto e I complexo (Cage) natildeo apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendecircnshy

cia a uma apariccedilatildeo natildeo-cromaacutetica do som num continuum infiiuumlto (muacutesica eletrocircnica ou eletro-acuacutestica)I

I Soacute haacute um plano uacutenico no sentido em que a arte natildeo

I comporta outro plano diferente do da composiccedilatildeo esteacutetica

I o plano teacutecnico com efeito eacute necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composiccedilatildeo esteacutetica Eacute sob esta conshydiccedilatildeo que a mateacuteria se torna expressiva o composto de senshysaccedilotildees se realiza no material ou o material entra no comshyI posto mas sempre de modo a se situar sobre um plano deI

I composiccedilatildeo propriamente esteacutetico Haacute muitos problemasI teacutecnicos em arte e a ciecircncia pode intervir em sua soluccedilatildeo

mas eles soacute se colocam em funccedilatildeo de problemas de composhysiccedilatildeo esteacutetica que concernem aos compostos de sensaccedilotildees e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus mateshyriais Toda sensaccedilatildeo eacute uma questatildeo mesmo se soacute o silecircncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em enshy

251Percepto Afecto e Conceito

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 5: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

quanto a isto natildeo estatildeo numa situaccedilatildeo diferente da dos pinshytores dos muacutesicos dos arquitetos O materiaJ~~E~icular dos escritores satildeo as palavras e a sint~xe sintaxe criada que __~~~middot--~gt-~c---bull~middotmiddot bullmiddot~ middot middotmiddot middot- middot~middotobullmiddotmiddot~middot~middot~bullbull~~-~ ~ ~_-=--~~--_~ bull--middot-middotbullbullgtgtgt_ ~ __bull _ ~lt~middot-~bull --~-bullk----bullbull bull-middot_

se ergue irresistivelmente em sua obra e--~~r~~ltl ~~-~~-~-~-a2middot Pacircrltl sai-dacircs perecircepCcediloes-viViecircfatildeS-nmiddota~Otilde--basta __ evidentemente memoacuteria que convoque somente antigas percepccedilotildees nem uma memoacuteria involuntaacuteria que acrescente a reminiscecircncia como fator conservante do presente A memoacuteria interveacutem

J2QIJkO na arte (mesmo e sobretudo em Proust) Eacute verdade que toda a obra de arte eacute um monumento Inas o monumento natildeo eacute aqui o que comemora um passado eacute um bloco de senshy

Salti_lt_esectPJ~_sect_t_QtS~~q_ue_sQ Qlt_Y~ordfsectL9Ssect~UumlYi irsectQFia_conshy I l1iI I servaccedilatildeo e datildeo ao acontecimento o composto que o celebra

I

~gtmiddot (5-tc-d~- --~onumento natildeo eacute a memoacuteria mas a fabulaccedilatildeoI ~ rJ

_eacute N~ s es~reve cot_I lem~ranccedila~-~~_~~~5~~2~3s por bl~os ~~ )ji $ de ~nfa~c1a_ ~~~_lti_evires~cp~~ccedil__~2_g_J2res~E~ A musica

l middot middotl middot esta cheia disso Para tanto e preciso nao memona mas um rS-fC- material complexo que natildeo se encontrana memoacuteria mas nas palavras nos sons Memoacuteria eu te odeio Soacute seatinge o

percepto ou o afecto como seres autocircnomos e suficientes que natildeo devem mais nada agravequeles que os experimentam_ou os exshyperimentaram Combray como jamais foi vivido como natildeo eacute nem seraacute vivido Combray como catedral ou monumento

E se os meacutetodos satildeo muito diferentes natildeo somente seshygundo as artes mas segundo cada autor pode-se no entanshyto caracterizar grandes tipos_El~l1mentais ou variedades de _omostos de s~nsa~~~~ que caracteriza a senshy ~accedilao simE_le~ (mas ela Ja e dtuave~ composta porque ela sobe ou desccedile implica uma diferenccedila de niacutevel constitutiva segue uma corda invisiacutevel mais nervosa que cerebral)~ lace ou o corpo-a-corpo (quando~amps ressoam uma na outra esposando-se tatildeo estreitamente num corposhya-corpo que eacute puramente energeacutetico)() recuo a divisatildeo

distensiiQ uando duacuteatildesse~s~~Otilde~~~~~ ao contraacuteshy

rio se distanciam mas para soacute serem reunidas pela luz o ar oUacuteOtilde~aziOtilde q~ inscrevem entre elas ou nelas como uma cunha ao mesmo tempo tatildeo densa e tatildeo leve que se estenshyde em todos os sentidos agrave medida que a distacircncia cresce e forma um bloco que natildeo tem mais necessidade de qualquer

Imiddot base) Vibrar a sensaccedilatildeo - acoplar a sensaccedilatildeo - abrir ou ff_vder ~-~ecircsViZlatildeii~eii~ordfccedilordfccedil~middot-~scugif~3~E-emiddots-~iiesectsect_es_tL pccedilgts quase em estado puro com suas sensaccedilotildees de pedra de m~rrriC~d_~middot~tCcedilq~~~~ibram segundo a ordem dos temshypos fortes e dos tempos fracos das saliecircncias o~ das reenshytracircnCias seus poderosos corpo-a-corpo que os entrelaccedilam seu arranjo de grandes vazios entre um grupo e outro e no interior de um mesmo grupo onde natildeo mais se sabe se eacute a luz se eacute o ar que esculpe ou eacute esculpido

O romance se elevou frequumlentemente ao percepto natildeo a percepccedilatildeo da charneca mas a charneca como percepto etn

Hardy os perceptos oceacircnicos de Melville os perceptos ur~ banas ou especulares em Virginia Woolf A paisagem vecirc Em geral qual o grande escritor que natildeo soube criar esses seres de sensaccedilatildeo que conservam em si a hora de um dia o grau do calor de um momento (as colinas de Faulkner a estepe

r de Tolstoi ou a de T~hekov) 9 EerceE_~~~r_~~~~~~-~1_1-~--~~ terior ao homem na ausecircncia do homem Mas em todos estesI -

d~~~l~~~~~1~il~~t~~~Ii~~~~~~ I i~E~~J~~J~Jgt~~_ps~~~Jsmamp~lsa~ d-2~tqE ~-- c2~o

a cidadepoderia sermiddotsem h9~nQ~LiDl~lgt JLccedil_J~_Q~sectJ2Cl19_ sentz~Ih~q~~-middot~r~~~~fiacute~t~~esmCcedil=~~~Jecircn~2$~~IB-~rapeje I

middotEcirca-middote-iliacutegffia(f-~qii~nt~~-ie~~~~~~do) deCeacutezanne o ho-~ mem ausente mas inteiro na paisagem Os personagens natildeo podem existir e o autor soacute pode criaacute-los porque eles natildeo percebem mas entraram na paisagem e fazem eles mesmosI parte do composto de sensaccedilotildees Eacute Ahab que tem as percepshyccedilotildees do mar mas soacute as tem porque entrou numa relaccedilatildeo com

218 11 Filosofia Ciecircnci~ Loacutegica e Arte Percepto Afecto eConceito 219

-----

11~11 l i middot11

ili j f li

IJiiJ Moby Dick que o faz tornar-se-baleia e forma um composshy11jli to de sensaccedilotildees que natildeo precisa de ningueacutem mais Oceano jl

1j[i Eacute Mrs Dalloway que percebe a cidade mas porque entrou

lmiddotl middot na cidade como uma lacircmina atraveacutes de tudo e se tornou I i ela mesma imperceptiacutevel Os afectos satildeo precisamente esshy

1 ilJ tf~lfre~Eo httE2L~Z~S2fl-O ~~ifiPi9il middotI 1 tre eles a cidade) satildeoas paisagens 1Ct-EtCcedilJJEfftUreshy

i~ -H- 4a~fe~~~~~~~1~~~ZE~~~e~1i 1i1

1 -lfffr 1

~resta~~=~middotmiddot_~d--~middot~middot~-~~-~sg~~middotmiddot~~Qdo ~noacutes nos

Jiijl 1 tornamos contempla~d~=middot~~~T~dcecircisatildeo devi Tornamoshy- nos universo Devires animal~o ecular devir zero

1 i Kleist eacute sem duacutevida quem mais escreveu por afectos serviushy

11 do-se deles como pedras ou armas apreendendo-os em deshy1 vires de petrificaccedilatildeo brusca ou de aceleraccedilatildeo infinita no 1 1

~ ~ ~~ 1 devir-cadela de Pentesileacuteia e seus perceptos alucinados Isto 1~ I eacute verdadeiro para todas as artes que estranhos devires deshy

) I senca~~iam a muacutesica tr~veacutes de suas aisage~s meloacutedicas 11middot1 e seus personagens ntmtcos como dtz Messtaen componshy

111 do num mesmo ser de sensaccedilatildeo o molecular e o coacutesmiCo

IIJ as estrelas os aacutetomos e os paacutessaros Que terror invade a ~middotJ~ cabeccedila de Van Gogh tomada num devir girassol Sempre eacute

1 middotlj preciso o estilo-- a sintaxe de um escritor os modos e ritshy1~ 1 ~~~ mos de um m~co os traccedilos e as cores de um pintor- para

i1

i~ l fi ~~

1 6 Ceacutezanne op cit p 113 Cf Erwin Straus Du sens des sensEd ji Millon p 519 as grilndes paisagens tecircm todas elas um caraacuteter visioshy

j 111 naacuterio A visatildeo eacute o que d~ invisiacutevel se torna visiacutevel a paisagem eacute invisiacutevel1

I imiddot middot I nos perdemos Para cheshy~ porque quanto mais a conquistamos mais nelamiddotmiddot11middot d

I gar agrave paisagem devemos sacrificar tanto quanto middotpossiacutevel toda etermishy

i i naccedilatildeo temporal espacial objetiva mas este abandoacuteno natildeo~tinge somentei I J o objetivo ele afeta a noacutes mesmos na mesma medida Na paisagem deishy

~ middot xamos de ser seres histoacutericos isto eacute seres eles mesmos objetivaacuteveis Natildeo ~ middot~~ temos memoacuteria para a pai~agem natildeo temos memoacuteria nen1 mesmo para

~ noacutes na paisagem Sonhamos em pleno dia e com os olhos abertos SomomiddotsI 1 furtados ao mundo objetivo mas tambeacutem a noacutes mesmos Eacute o sentir

li 220 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

se elevar das percepccedilotildees vividas ao percepto de afecccedilotildees vividas ao afecto

Insistimos sobre a arte do romance porque eacute a fonte de um malentendido muitas pessoas pensam que se pode fazer um romance com suas percepccedilotildees e suas afecccedilotildees suas lemshybranccedilas ou seus arquivos suas viagens e seus fantasmas seus fiacutelhos e seus pais os personagens interessantes que pocircde enshycontrar e sobretudo o personagem interessante que eacute forccediloshysamente ele mesmo (quem natildeo o eacute) enfim suas opiniotildees para soldar o todo Invocam-se para tagravento grandes autores que soacute teriam contado sua vida Thomas Wolfe ou Miller Obteacutemshyse geralmente obras compostas em que algueacutem se agita muishyto mas na Jf_QCcedil-J~-deum-Paiq_~ soacute poderia encontrar em si mesmo 6-f~()mance do jornalista) Nada nos poupam na aushy

---middot--~ secircncia de qualquerTiatildeotildeatildelnotilderealmente artiacutestico Natildeo precisashy

mos alterar m~ito a cr~ordfdag~~Q_91~~~-P-~9_lt_y~_ nem o d-ecircmiddotshysesperoacute pelo qual se passou para produzir mais-~~---~ez

oacuteptmao que~-_ferjJp~nte~ordfi~-ordfR~fSfj_qsiil~S2ii~ii~i~ --ccedilatildeotildelossellini viu nisso uma razatildeo para renunciar agrave arte a arte atildeelXou-se invadir demais pelo infantilismo e pela crueldade toi nando-se simultaneamente cruel e chorosa gemebunda e satisshyfeita de modo que era_melhor renunciar7 O mais interessante eacute que Rossellini via a mesma invasatildeo na pmtura Mas eacute antes deI

I mais nada a literat~a que natildeo parou de manter este equiacutevoco com o vivido Pode acontecer mesmo que se tenha um grande senso de observaccedilatildeo e muita irrlagill_accediliiotilde~eacutepltSsiacutevel escre~~~n

P~ES~~-afecccedilotildees op~iotildeesMe~Otilde nosmiddotmiddot~an~~~~e~~-middotshyl autobiograacuteficOtildesvemos cOtildentrOtildentarem-se cruzarem-se opiniotildees de uma multidatildeo de personagens cada opiniatildeo sendo funccedilatildeo das percepccedilotildees e afecccedilotildees de cada um segundo sua situaccedilatildeo social e suas aventuras individuais sendo o conjunto tomado numa -8 vasta corrente que seria a opiniatildeo do autor que se divid~ par~ t-)l1--middot~~~ -- --middot-~=~~_~ --~-- shy

I bullmiddotmiddot ~middot ~_7 Rosselini Le cineacutema reacuteveacuteleacute Ed de lEtoile p 80-82

Percepto Afecto e Conceito 221

~ecai~~s-~QfCcedil_Qsect__]2etSQILltl~-UsectQg___~-S~Ccedil9~ls~gtJ~r~~q~~ -~-1~ -~~2~lt22-~ltJ~llli-LiisectEa~eacute e_~~JLW~sectIDamptCcedilJYsccedilPJXeCcedila~agraude JsguacuteadoampQmans~d~JiordfkhtilL(felizmente ele natildeo fica aiacute jusshytamente na base paroacutedica do romance )

AJ~ordf-Igtl1laccedilatildeo criadora nada tem a ver com uma lembranshyo-11 _ middotmiddotmiddot middotmiddotmiddotmiddotmiddot -~ -- middotmiddot ofPmiddotmiddot ccedila mesmo amplificada nem _ccedilgrn_UJll fantasma Com efeito l _ bull bullmiddotmiddot--middotbullmiddotbull middotmiddot middot---middotmiddotmiddotmiddotmiddot-bull middot -_ _ _ _

cJ middot middot ~ artista entre eles QJQII_~2Ccediltsect-ordf+-~~ccedil_ed5_2~~tad_1Eerc~p_shymiddot- ~ t1yo~ C ~~ J~~sagens afetivas do vividQ Eacute um vidente algueacutem

-~~_~ middot bull middotltmiddot~- middotmiddot middot middot bull bull middot middot middot middot - middot~ bull middot middot~-middot bullbull _ ___~ middot bullmiddot -ltuJo-~ middot)o - --middot - -- d gt middotmiddot~middotmiddot - middotbull-middot- middot-~middot~bull-bullgtbullbullbullbullOh __~~~T - -_ bullbull-middotmiddot middotmiddot

_-~g~~~--~~-S-9XA~middot Como contaria ele o que lhe aconteceu ou o que imagina jaacute que eacute uma sombra Ele viu na vida algo muito grande demasiado intoleraacutevel tambeacutem e a luta da vida com o que a ameaccedila de modo que o pedaccedilo de natureza que ele percebe ou os bairros da cidade e seus personagens aceshydem a uma visatildeo que compotildee atraveacutes deles perceptos desshyta vida deste momento fazendo estourar as percepccedilotildees vishyvidas numa espeacutecie de cubismo de simultanismo de luzcrua ou de crepuacutesculo de puacuterpura ou de azul que natildeo tecircm mais outro objeto nem sujeito senatildeo eles mesmos Chama-se de

-~~g2h12~~-~--g_ia~ltm~i ~~~-~-~~~-~~~~pa~~-d~-~2i~~ii9i~otilde ~~~~ Trata-se sempre de hberar a vida laacute onde ela eacute piishysiacuteoneira ou de tentar fazecirc-lo num combate incerto A morshyte do porco-espinho em Lawrence a morte da toupeira em Kafka satildeo atos de romancista quase insuportaacuteveis ~Qr___ vezes eacute preciso deitar na terra como faz o pintor Qara lo-

1~-middotbull--middot bull~~-~-middot-~middot-gt ~bull _ ~ middotmiddot - ~ - middot-~- _ _middotmiddot -middotmiddot~ -- bullbullmiddotmiddot ) middotbullmiddot middot --middot - middotbull - _)~ c _bull __~-----~middot middot ~

~-~~-1~~~a~~lt~--l2~Y2~middot~~~2=~=~J~-~fSltP~ Os perceptos podem ser telescoacutepicos ou microscoacutepicos datildeo aos personagens e agraves paisagens dimensotildees de gigantes como se estivessem repleshytos de uma vida agrave qual nenhuma percepccedilatildeo vivida pode atinshygir Grandeza de Balzac Pouco importa que esses personashygens sejam mediacuteocres ou natildeo eles se tornam giga~tes como Bouvard e Peacutecuchet Bloom e Molly Mercier e Camier sem deixar de ser o que satildeo Eacute por forccedila da mediocridade mes mQde_besteira oU-deinfacircmia_quepndemtrunar~se-natildeo-Sim- ple_tii~JordfisectJgt~~imples) mas gigantesco~Mesmo os anotildees

1

ou os invaacutelidos podem fazecirc-lo toda fabulaccedilatildeo eacute f~~~ ~e gigantesect~ Mediacuteocres ou grandiosos satildeo cellla~iadaflenshy~~_ylyos J2_ar_~-~E~I viviacuteveis ou vividos Thomas W olfe exshytrai de seu pai um gigante e Miller da cidade um planeta negro Wolfe pode descrever os homens do velho Catawha atraveacutes de suas opiniotildees imbecis e sua mania de discussatildeo o que faz eacute erigir o monumento secreto de sua solidatildeo de seu deserto de sua terra eterna e de suas vidas esquecidas despercebidas Faulkner pode criartambeacutem oh homens de Yoknapatawpha Diz-se que o romancista monumental se inspira ele mesmo no vivido e eacute verdade M de Charlus parece muito com Montesquiou mas entre Montesquiou e M de Charlus no final das contas haacute aproximadamente a mesma relaccedilatildeo que entre o catildeo-animal que late e o Catildeo consshytelaccedilatildeo celeste

Como tornar um momento do mundo duraacutevel ou fazecircshylo exititp~r--s-11Virginiwacircotildelfecirclaacute ~~--~~p-~t~q-~~-~i~ patilderacircmiddot a-pIacutenturamiddotOtilde~---ffiliacutesiacutecaiatildeiacuteito quanto para a escrita Sashy

turar cada aacutetomo Eliminar tudlt_lt_9~t eacute rt_~_QE_Qft~ ~middot- -middot

superfluidade~ tudo o que gruda em nossas percep__sotilde~-~-Elt___q

refffes-e-vivecirclas tuClOtilde_Otilde_q_~middot~middot --li~~~t~- otilde~9iii~itordf-P~fliacuteQ_

~~~~_ltfi~~t~~~Eacute~~~E~~sJotilde~i~~~~~~-ordf~-~~~p~r~~P-~ J~s~L ILQ~2IerlQ_Q~ b~iii9Jos_iatos_osoacuterdida~ma~-~I~~ em transparecircncia Colocar aiacute tudo e contudo saturar9

POtilde~t~tiacutengidoo-percepto como a fonte sagrada por ter visto a Vida no vivente ou o Vivente no vivido o romancisshyta ou o pintor voltam com olhos vermelhos e o focirclego curshy

8 No capiacutetulo II das Deux Sources Bergson analisa a fabulaccedilatildeo coshymo uma faculdade visionaacuteria muito diferente da imaginaccedilatildeo que consisshyte em criar deuses e gigantes potecircncias semi-pessoais ou presenccedilas efishycazes Ela se exerce inicialmente nas religiotildees mas desenvolve-se livreshymente na arte e na literatura

9 Virgiacutenia Woolf Journal dun eacutecrivain Ed 10-18 I p 230

222 11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 223

-~

to Satilde~ atletas natildeo atletas que teriam formado bem seus corpos e cultivado o vivido embora muitos escritores natildeo tenham resistido a ver nos _esportes urn meio de aumentar a arte e a vida mas antes atletas bizarros do tipo campeatildeo de jejum ou grande Nadador que natildeo sabia nadar Um Atletismo que natildeo eacute orgacircnico ou muscular mas um atleshy

-tismo afetivo que seria o duplo inorgacircnico do outro um atletismo do devir que revela somente forccedilas que natildeo satildeo as suas espectro plaacutestico 10 Desse ponto de vista os artisshytas satildeo como os filoacutesofos tecircm fregueJ-temente uma saudeshyziacutenha fraacutegil mas natildeo por causa de suas doenccedilas nem de suas neuroses eacute porque eleSViraacutem na_ida atildefgQCfe grande ccedill_ccedil_mais paratildeqliatildefquer um de grande demais para eles e gue QOcircs ndes ~atildedlscreta datildelliuumlrttamp1atildes-~~Jilt2ecirc~mbeacutem a fonte ~o fOcirclego q~llL~YiYJr_atraYi~~49s~clQ~l~ do_civishyflo (o 9~~~~E-~~P--ordf~~Q~-sauacutede) U~ dia saberemos talvez que natildeo havia art~ m~soacuteru~nte_~duumlina 1I

-------c5-[~ct-~iacutetapaa menos ~s afecccedilotildees que o pershycepto as percepccedilotildees Q afecto natildeo eacute a gassagltle um esshytado vivido a um outro mas o deviccedilnatildeqJ~_lJID-ordf9~QO homem __~~~--amp-- -middot---ltC-~=-----lt10-

Ahab natildeo imita Moby Dick e Pentesileacuteia natildeo se comporta como a cadela natildeo eacute uma imitaccedilatildeo uma simpatia vivida nem mesmo uma identificaccedilatildeo imaginaacuteria Natildeo eacute a semelhanshyccedila embora haja semelhanccedila Mas justamente eacute apenas uma semelhanccedila produzida Eacute antes uma extrema contiguumlidade num enlaccedilamento entre duas sensaccedilotildees sem semelhanccedila ou ao contraacuterio no distanciamento de uma luz que capta as duas num mesmo reflexo Andreacute Dhocirctel soube colocar seus pershy

10 Artaud Le theacuteacirctre et son double (Oeuvres completesGallimard IV p 154)

middot 11 Le Cleacutezio HAI Ed Flammarion p -7 (sou um iacutendio emboshyra natildeo saiba cultivar o milho nem talhar uma piroga ) Num texto ceacuteleshybre Michaux falava da sauacutedemiddotproacutepria agrave arte posfaacutecio a Mes proprieacuteshyteacutes La nuit remmue Gallimard p 193

li Filosofia Ciecircilcia Loacutegica e Arte

sonagens em estranhos devires-vegetais tornar-se aacutervore ou tornar-seaacutester natildeo eacute diz ele que um se transforme no outro

ma~~~~a--~um12 outro12 ~~~-~-lgg__ecirceacuteP~e ~~EN~shy

~2IDQ~~l)~sect~Sl9middot Eacute uma zona de indeterminaccedilatildeo de indiscerniacutebilidade como se coisas animais e pessoas (Ahab e Moby Dick Pentesileacuteia e a cadela) tivessem atingido em cada caso este ponto (todavia no infinito) que precede imeshydiatamente sua diferenciaccedilatildeo natural~gQ_JtlJccedil~Jgt~ ccedilhordfmallW---shy

~2-_f~g9_Em Pierre ou les ambiguiteacutes Pierre ganha a zona em que ele natildeo pode mais distinguir-se middotde sua meia-irmatilde Isabelle e torna-se mulher Soacute a vida cria tais zonas em que turbishylhonam os vivos e soacute a arte pode atingi-la e penetraacute-la em sua empresa de co-criaccedilatildeo Eacute que a proacutepria arte vive dessas ( zonas de indeterminaccedilatildeo quando o material entra na sen- - ~

Q) ssaccedilatildeo como numa escultura de Rodin Satildeo blocos A pintu- ri ra precisa d~ uma coisa diferente da habilidade do desenhista f f que marcana a semelhanccedila entre formas humanas e animais ( sect_

e nos faria assistir agrave sua metamorfose ~Jf_ccedilisQJ ~ordfltU~QltaacuteAt5 lltf __-9_~0_lot~_Ei~~EE f~pk~~~ d~-~~~ElaEf ~ de imp_r _a ex~~~~Uuml~~sielm-~~t~J-zonordfdlli1agravelEnios_e_sabeshy

-ffiili~CJllem eacute bulluuumlctrtaJ__~--flYoCcedilJJL~bumordfnordm_pruqw ordflg~Lsect_~J~ vanta como o triunfo ou o __~ony~nro_desuaindjsect~jnccediljig ~ssiacutenmiddot-cotildeyatilde-ou mesino Daumier Redon Eacute preciso que o artista crie os procedimentos e materiais sintaacuteticos ou plaacutesshyticos necessaacuterios a uma empresa tatildeo grande que recria por toda a parte os pacircntanos primitivos da vida (a utilizaccedilatildeo da aacutegua-forte e da aguatinta por Goya) O afecto natildeo opera cershytamente um retorno agraves origens como se se reencontrasse em termos de semelhanccedila a persistecircncia de um homem bestial ou primitivo sob o civilizado Eacute nos meios temperados de nossa civilizaccedilatildeo que agem e prosperam atualmente as zonas equatoriais ou glaciais que se furtam agrave diferenciaccedilatildeo dos gecircshy

12 Andreacute Dhocirctel Terres de meacutemoire Ed Universitaires p 225-226

Percepto Afecto e Conceito 225 224

neros dos sexos das ordens e dos reinos Soacute se trata de noacutes aqui e agora mas o que eacute animal em noacutes vegetal mineral ou humano natildeo mais eacute distinto- embora noacutes noacutes ganheshymos aiacute singularmente em distinccedilatildeo O maacuteximo de determishynaccedilatildeo emerge como _um claratildeo deste bloco de vizinhanccedila

Precisamente porque as opiniotildees satildeo funccedilotildees do vivishydo elas aspiram a um certo conhecimento das afecccedilotildees As opiniotildees insistem nas paixotildees do homem e sua eternidade Mas como observava Bergson temos a impressatildeo de que a oacute opiniatildeo desconhece os estados afetivos eque ela agrupa ou separa os que natildeo deveriam ser agrupados ou separados13 Jt Natildeo basta sequer como faz a psicanaacutelise dar objetos proishybidos agraves afecccedilotildees repertoriadas nem substituir as zonas de t indeterminaccedilatildeo por simples ambivalecircncias Um grande roshy ~

mancista eacute antes de tudo um artista que inventa afectos natildeo conheciacuteoosotildeu desconiiacuteecld(s e --os fazvir agrave luz do dia como- ------- ---------middot---- -------------middot-shy0 devir de seus personagens os estados crepusculares dos

- ~~-lei~~~os middotmiddotc-~middotaneacute~cr~middot-chreacutetien de Troyes (em relaccedilatildeo lI

com um conceito eventual de cavalaria) os estados de reshy 11

pouso quase catatocircnicos que se confundem com o dever segundo Mme de Lafayette (em relaccedilatildeo com um conceito de l

li quietismo) ateacute os estados de Beckett como afectos tanto I

imais grmdiosos quanto satildeo pobres em afecccedilotildees Quando I

Zola sugere a seus leitores prestem atenccedilatildeo natildeo eacute remorshyso que meus personagens sentem natildeo devemos mais ver nisso a expressatildeo de uma tese fisiologista mas a atribuiccedilatildeo de novos afectosque crescem com a criaccedilatildeo de personagens no naturalismo o Mediacuteocre o Perverso o Animal (o que Zola chama de instinto natildeo se separ~ de um devir-animal) Quando Emily Bronte traccedila o liame que_ une Heathcliff e Catherine ela inventa um afeto-violento (que sobretudo natildeo

13 Bergson La penseacutee et e mouvant Ed du Centenaire p 1293shy1294

226 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

v f ~~

c~l~f r1gt(1~~1- 7 (jJ-7JV middot ~

JV-10-shy

deve ser confundido com o amor algQ co~o uma fraternishydade entre dois lobos QuandoP~Oacute~t middot fece descrever tatildeo minuciosamente o ciuacuteme inventatilde-tt middot~fect~porque natildeo deishyxa de inverter a ordem que a opiniab--amptipOtildee nas afecccedilotildees segundo a qual o ciuacuteme seria uma consequecircncia infeliz do amor para ele ao contraacuterio o ciuacuteme eacute finalidade destinaccedilatildeo

e~reC1Suuml~~~CecircJ~~--j)uuml~J~-s~~E~I~~~~~sect~~~~~~~sectmiddotmiddotccedil_sect~e o s~nti9~-~2-~ig~~C2~~-to _ltlt_~_- ~~IP~2cgia _ Q~ando CL1ude Simon descreve o prodigjoso amor passivo da mushylher-terra esculpe um afecto de barro e pode dizer eacute mishynha matildee e acreditamos jaacute que ele diz mas uma matildeemiddotque ele introduz na sensaccedilatildeo e agrave qual ergue um monumento tatildeo original que natildeo eacute mais com seu filho real que ela tem uma relaccedilatildeo mas mais longinquamente com um outro personashygem de criaccedilatildeo a Eula de Faulkner Eacute assim que de um esshy

critor ~ um outro o~_gr~_de~-~f5S9LltJi~~ltim~~-P9si~L~-~ encademiddotar ouder~ampS~illCcedilQlJLlt~tQ~~~~~~-~~~i_es ~~~~~~~ fotildermaacutem vibram se e_nl~_s~_m QllJ~J~nccedil~P= sectiip-estesseres---~ acirceseUumls~CcedilatildeO(~datilde~~ta~da--relaccedilatildeodo_artistuQmo puacuteshy

b)i~~A~ltLasordf~--~~)f~-middot~l~~Jnmiddot-ordf~ul~ JJJJmesmQordf-Uacute~t~-~ll~~~s- _f 14 4

~~g~~ Rllt ~Y~l)tuaJ~Jilll4-sfccedillt ~~E~-~~-~--~nJr~gtI bull O artts- [k ta acrescenta sempre novas variedades ao mundo Os seres dordfsectJ~nsaccedilordf-ordmmiddotmiddotmiddot~ordfQvariltdades~ccedil_omoos~streampdecouccitossacirc~~ var~~ccedil2~~~~Q~~sectSf~~-deJu~_ccedilo _ ~ordfmiddot~-Y~~~i~y~js

Eacute de toda a arte que seria preciso dizer o artista eacute m__Qsect_ tracQId~-ordffeltos inventor de afec~~~E-tlt~oLde_ ordf-f~~ccedilJgsect~m middotICcedilatildeotilde com ~tp~~~E~~~~~-i~-~isOtildeEi~CcedilLU~QQsectgaacute Natildeo eacute soshymeilteeffisuacbraacute que ele os cria ele os daacute para noacutes e nos faz transformarnos com eles ele nos apanha no composto Os girassoacuteis de Van Gogh satildeo devires como os cardos de

14 Estas trecircs questotildees retornam frequentemente em Proust notadashymente Le temps retrouveacute La Pleacuteiade 111 p 895-896 (sobre a vida a vishysatildeo e a arte como criaccedilatildeo de universo)

Percepto Afecto e Conceito 227

Duumlrermiddot ou as mimosas de Bonnard Redon intitulava uma litografia Houve talvez uma visatildeo primeira ensaiada na flor A flor vecirc Puro e simples terror Vecirc vocecirc este girasshysol que olha para dentro pela janela do quarto Ele olha meu quarto todo o dia 15 Uma histoacuteria floral da pintura eacute como a criaccedilatildeo incessantemente retomada e continuada dos afecshytos e dos perceptos das flores A arte eacute a linguagem das senshysaccedilotildees que faz entrar nas palmiddot~r-acircsmiddotmiddotiacuteiatildes cOtilde~~~~-~~middot~~ ilas pearamiddots-x-agraverieuumli(t~iiacute~QfuilJatilde~middotr~uuml ci~aagravez ~IacuteriacuteJlE~~

middotmiddotarmiddotga~lziCcedilatilde() middotordf~i~~~fsiPsj2~-~~~~JiSCcedilsectlr~UJini otildees _ltiuacute~ sll-h~- tiiui por um ill()~E~Etccedilgt_Ccedilg~JEP~lt de ~certo~-de~Jectccedils middote de blo_~~smiddot~~j~-~SCcedilsect~sect91~fltt~~Jl-ordf~-ieze_sdeJing)Jordfg~lmiddot

O escritor se serve de palavras mas criando urna sintaxe que as introduz na sensaccedilatildeo e que faz gaguejar a liacutengua correnshyte ou tremer ou gritar ou mesmo cantar eacute o estilo o tom a linguagem das sensaccedilotildees ou a liacutengua estrangeira na liacutengua a que solicita um povo por vir oh gente do velho Catawba oh gente de Yoknapatawpha O escritor torce a linguagem fj-la vibrar a~accedila-a fende-a para arrancar o percepto middotdas percepccedilotildees o afecto das afecccedilotildees a sensaccedilatildeo da opiniatildeo_ ~---shy_________ -shyvisando esperamos esse povo que ainda natildeo existe Mishynha memoacuteria natildeo eacute amor mas hostilidade e ela trabalha natildeo para reproduzir mas para descartar o passado Que queshyria dizer minha famiacutelia eu natildeo sei Ela era gaga de nascenshyccedila e contudo tinha algo para dizer Sobre mim e sobre muishy

tos de meus contemporacircneos pesa a gagueira de nascenccedila Aprendemos natildeo a falar mas a balbuciar e eacute soacute ouvindo o ruiacutedo crescente do seacuteculo e uma vez lavados pela espuma de sua onda mais alta que noacutes dquiijmos uma liacutengua 16

Precisamente eacute a tarefa de toda arte e -a pintura a muacutesica

15 Lowry Au-dessous du fOlcan Ed Buchet-Chastel p 203

16 Mandelstam Le bruit du temps Ed LAge dhomme p 77

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

natildeo arrancam menos 4as cores e dos sons acordes novosmiddot paisagens plaacutesticas ou ~eloacutedicas personagens riacutetmicos que os elevam ateacute o canto 1a terra e o grito dos homens- o que constitui o tom a sauacutede o devir um bloco visual e sonoro Um monumento natildeo comemora natildeo celebra algo que se passou mas transmit~ para o futuro as sensaccedilotildees persistenshytes que encarnam o a ntecimento o sofrimento sempre reshynovado dos homens eu protesto recriado sua luta sempre retomada Tudo seri vatildeo por ue o sofrimento LeteIlO_~ as revoluccedilotildees natildeo so revivem agrave sua vitoacuteria Mas o sucesso dmiddot~ uumlmarevotildeTuCcedilatildeos9-resid~ela me~~-precisamente nas vibraccedilotildees nos enlace~ nas aberturas que deu aos homens no ~--=----=-----1-o----------------~-middot momento em que se fazia e que compotildeem em si um monushy

middotm-eirto sempre em vir como esses tuacutemulos aos quais cada novo viajante acresagraventa uma pedra A vitoacuteria de uma revolushyccedilatildeo eacute imanente e consiste nos novos liames que instaura entre os homens mesmo se estes natildeo duram mais Q1Je sua mateacuteshy

r~ em fusatilde5_gt_j~~~--~Jiga_peng-ordfillYisectatildeQ_acirc traiccedilatildeo As figuras esteacuteticas (e o estilo que as cria) natildeo tecircm nada

a ver com a retoacuterica SiiQsect~Otildees 12erceptos~-~~~~shy~ordf~nserostnsrisotildees_e_d~yius_Mas natildeb eacute tambeacutem pelo devir que definimos o conceito filosoacutefico e quase nos mesmos tershymos Todavia as figUumlras esteacuteticas natildeo satildeo idecircnticas aos pershysonagens cmiddotonceituais Talvez entrem uns nos outros num ~entido ou no outro como Igitur ou como Zaratustra mas

eacute na medida em que -~~~~sect~s cJ~-~onceicto2_~S2-Seit~-~ q~ sccedilg~ordfccedilotildee_s Nao eacute o mesmo devir O devir sensiacutevel eacute o ato pelo qual algo ou algueacutem natildeo paacutera de deVir-outro (continuanshydo a ser o que eacute) girassol ou Ahab enquanto que o devir

~

conceitual eacute o ato pelo qual o acontecimento comum ele mesmo esquiva o que eacute Este eacute heterogeneidade compreenshydida numa forma absoluta aquele a alteridad~ empenhada numa mateacuteria de expressatildeo O monumento natildeo atualiza o acontecimento virtual mas o incorpora ou o encarna acirca--shy

middot--~--middot---- middot~----------~middot---middot-middot--middot~~--middotmiddot- ---middotmiddotmiddotmiddot

Percepto Afecto e Conceito 228 229

lhe um corpo uma vida um universo Eacute assim que Proust definia a arte-monumento por esta via SU_I)erior ao vivido suas diferenccedilas qualitativas seus universos que consshytroem seus proacuteprios limites seus distanciamentos e suas aproshyximaccedilotildees suas constelaccedilotildees os blocos de sensaccedilotildees que eles fazem rolar o universo-Rembrandt ou universo-Debussy Estes universos natildeo satildeo nem virtuais nem atuais satildeo possiacuteshyveis o possiacutevel como categoria esteacutetica (possiacutevel por favor senatildeo eu sufoco) a existecircncia do possiacutevel enquanto que os acontecimentos satildeo a realidade do virtual formas de um penshysamento-Natureza que sobrevoam todos os universos posshysiacuteveis Natildeo significa dizer que o conceito precede de direito a sensaccedilatildeo mesmo um conceito de sensaccedilatildeo deve ser criashydo com seus meios proacuteprios e uma sensaccedilatildeo existe em seu universo possiacutevel sem que o conceito exista necessariamente em sua forma absoluta

Pode a sensaccedilatildeo ser assimilada a uma opiniatildeo originaacuteshyria Urdoxa como fundaccedilatildeo do mundo ou base imutaacutevel A fenlt_~~~~ogiltl encontra a sensaccedilatildeo em a priori materiais shyperceptivos e afectivos que transcendem acircs per-cepCcedilOtildees ecirc afecshy

Ccedilotilde~~middot~iVfd-atilde$ middototildemiddot-aillatildere-iotildeecircleVail cuumlgKmiddotocirc~--~s -~ens~Ccedilotilde~s middot ~acirc-middotratildes de Ceianne A fenomenologia deve fazer-se fenomenoshylogia da arte jaacute vimos porque a imanecircncia do vivido a um sujeito transcendental precisa exprimir-se em funccedilotildees transshycendentes que natildeo determinam somente a experiecircncia em geral mas que atravessam aqui e agora o proacuteprio vivido e I se encarnam nele constituindo sensaccedilotildees vivas O ser da senshy I

I I middot

I saccedil-ordf9_ _Q__blQccedilQ d_d percepto ~=fo ~feccedil~Q ltPareceraacute ~ornomiddot middot middot I

_Unidade ou a reversibilidade daquele que s~t~ - ~ middotd~-~-e~d- I doseu1ntiffiuuml eacute~t~r~ccedilmiddota~ento c()~uuml matilde~~ middotq~~i-~~~_middot- bullI

1 middot-middotmiddoteacute-~a--~arne que vai se libertar ao mesmo tempmiddoto do corpo vivishydo do mundo percebido e da intencionalidade de um ao outro ainda muito ligada agrave experiecircncia - enquanto a carshyne nos daacute o ser da sensaccedilatildeo e carrega a opiniatildeo originaacuteria

230 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

distinta do juiacutezo de experiecircncia Carne do mundo e carne do corpo como correlatos que se trocam coincidecircncia ideaF7

Eacute um curioso Carnismo que inspira este uacuteltimo avatar da fenomenologia e a precipita no misteacuterio da encarnaccedilatildeo eacute uma noccedilatildeo piedosa e sensual ao mesmo tempo uma misshytura de sensualidade e de religiatildeo sem a qual a carne talshymiddotvez natildeo ficaria de peacute sozinha (ela desceria ao longo dos ossos como nas figuras de Bacon) A questatildeo de saber se a carne eacute adequada agrave arte pode se enunciar assim eacute ela capaz de carshyregar o percepto e o afecto de constituir o ser de sensaccedilatildeo ou entatildeo eacute ela mesma que deve ser carregada e ingressar em outras potecircncias de vida

A carne natildeo eacute a sensaccedilatildeo mesmo se ela participa de sua middot revelaccedilatildeo Era precipitado dizer que a sensaccedilatildeo encarna A pintura faz a carne ora com o encarnado (superposiccedilotildees do vermelho e do branco) ora com tons justapostos (jUstaposhysiccedilatildeo de complementares em proporccedilotildees desiguais) Mas o que constitui a sensaccedilatildeo eacute o devir-animal vegetal etc que monta sob as praias de encarnado no nu mais gracioso mais delicado corria a presenccedila de um animal descarnado de um fruto descascado Vecircnus no espelho ou que surge na fusatildeo no cozimento no derramar de tons justapostos como a zona

17 Desde a Pheacutenomeacutenologie de lexpeacuterience estheacutetique (PUF 1953) Mikel Dufrenne fazia uma espeacutecie de analiacutetica dos a priori perceptivos e afetivos que fundavam a sensaccedilatildeo como relaccedilatildeo do corpo e do mundo Permanecia proacuteximo de Erwin Straus Mas haacute um ser de sensaccedilatildeo que se manifestaria na carne Era middota via de Merleau-Ponty no Le visible et linshyvisible Dufrenne fazia muit~s r~ervas a uma tal ontologia da carne (Loeil et loreille Ed LHexagone) Recentemente Didier Franck retomou o tema de Merleau-Ponty mostrando a importacircncia decisiva da carne segundo Heidegger e jaacute Husserl (Heidegger et le probleme de [espace Chair et corps Ed de Minuit) Todo este problema estaacute no centro de umafenoshymenologia da arte Talvez o livro ainda ineacutedito de Foucault Les aveux de la chair nos informe sobre as origens mais gerais da noccedilatildeo de carne e seu alcance na Patriacutestica

Percepto Afecto e Conceito 231

de indiscernibilidade do animal e do homem Talvez fosse um embaralhamento ou um caos se natildeo houvesse um segunshydo elemento para dar consistecircncia agrave carne_ A carne eacute apeshynas o termocircmetro de um devir A carne eacute tenra demais O segundo elemento eacute menos o osso ou a ossatura que a casa

rltmiddotr a armadura O corpo desabrocha na casa (ou num equivashylente numa fonte num bosque) Ora o que define a casa

( I satildeo as extensotildees isto eacute os pedaccedilos de planos diversamente orientados que datildeo agrave carne sua armadura primeiro-plano e plano-de-fundo paredes horizontais verticais esquerda dishyreita retos e obliacutequos retiliacuteneos ou curvos 18 Essas extenshysotildees satildeo muros mas tambeacutem solos portas j arielas portasshyjanelas espelhos que datildeo precisamente agrave sensaccedilatildeo o poder de manter-se sozinha em molduras autocircnomas Satildeo as faces do bloco de sensaccedilatildeo E haacute certamente dois signos do gecircnio dos grandes pintores bem como de sua humildade o respeishyto quase um terror com o qual eles se aproximam da cor e entram nela o cuidado com o qual operam a junccedilatildeo dos

Imiddot planos da qual depende o tipo de profundidade Sem este respeito e este cuidado a pintura eacute nula sem trabagravelho sem pensamento O difiacutecil eacute juntar natildeo as matildeos mas os planos Fazer relevos com planos que se juntam ou ao contraacuterio escarificaacute-los cortaacute-los Os dois problemas a arquitetura dos planos e o regime da cor se confundem frequumlentemente A junccedilatildeo dos planos horizontais e verticais em Ceacutezanne os planos na cor os planos o lugar colorido ou a alma dos planos entra em fusatildeo ~~_grandes P~_esou mesmo duas grandes obras que operem da mesma ~~nei-

-----=~Haacute todavia tendecircncias num pintotilderem middotGiaco~ettipo-18

Como mostra Georges Didi-Huberman a-carne middot~~gendra uma i duacutevida ela eacute proacutexima demais do caos donde a necessidade de uma

complernentariedade entre o encarnado e a extensatildeo tema essencial de La peinture incarneacutee retomada e desenvolvida em Devant limage Ed de Minuit

232 II Filosofia Ciecircncia middotLOacutegica e Arte

exemplo os planos horizontais fugidios diferem agrave direita e middot agrave esquerda e parecem se reunir na coisa (a carne da pequeshyna maccedilatilde) mas como uma pinccedila que a puxaria para traacutes e a faria desaparecer se uni plano vertical do qual soacute se vecirc o fio sem espessura natildeo viesse fixaacute-la retecirc-la no uacuteltimo moshymento dar-lhe uma existecircncia duraacutevel agrave maneira de um longo alfinete que a atravessa e a tornafiliforme por sua vez A casa participa de todo um devir Ela eacute vida ~vida natildeo

orgacircnica das coisas De todos 9s modos possiacute~sect~a_ LYD~-~ ccedilatildeo do~_planos~e mitorientaccedilOtildees que define t_casa-sens~-~-~---~ ccedilatildeo Aiacute~asa mesma (o_u-middotseu equivalente) eacute a junccedilatilde9T~itaii~------planos cQlruicles____

middot middot-middot--~rceiro elemento eacute o universo o qgtsmos Natildeo eacute soshymentea-Catildesatildeabeitaque secirc-cotildelliiriic co~ ~ p~i~agem por ~ffiatilde )atildeiieratilde- middoto-tr-uumlm espeino iiiatildes--atildemiddot-~8middot-middot~middotas~fe~~~~ ~~atilde__ atilde5e~t~-sotildebreuumlmuiiiacutevecircrsomiddot middotx- middotcamiddotsacirc-eacutefe viuuml~ecirct s~ vecirc sempre ~~pi~dmiddot -p-~i~~ fccedil~~- ~egetais de um jardim incontrolaacutevel cosmo das rosas Um universo-cosmos natildeo eacute carne Nem mesmo plano pedaccedilos de planos que se juntam planos dishyversamente orientados embora a junCcedilatildeo de todos os planos ateacute o infinito possa constituiacute-lo Mas o universo se apresenshyta no limite como o fundo da tela o uacutenico grande plano o vazio colorido o infinito monocromaacutetico A porta-janela como em Matisse soacute se abre sobre um fundo negro A carne ou antes a figura natildeo mais eacute o habitante do lugar da casa mas o habitante de um universo que suporta a casa (devir) Eacute como uma passagem do finito ao infinito mas tambeacutem do territoacuterio agrave desterritorializaccedilatildeo Eacute bem o momento do infishynito infinitos infinitamente variados Em Van Gogh em Gauguin em Bacon hoje vemos surgir a imediata tensatildeo da carne e do fundo dos derrames de tons justapostos e da praia

I

infinita de uma pura cor homogecircnea viva e saturada (em lugar de pintar a parede banal do mesquinho apartamento eu pinto o infinito faccedilo um fundo simples do azul mais rico

233Percepto Afecto e Conceito

mais intenso ) 19 Eacute verdade que o fundo monocromaacutetico

eacute mais do que um fundo E quando a pintura quer comeccedilar do zero construindo o percepto como um miacutenimo antes do vazio ou aproximando ao maacuteximo do conceito ela proceshy~e por monocromia liberada de toda casa ou de toda carne E notadamente o azul que se encarrega do infinito e qu~ faz do percepto uma sensibilidade coacutesmica ou o que haacute de mais conceitual na natureza ou de mais proposicional a cor na ausecircncia do homem o homem mergulhado na cor mas se o azul (ou o negro ou o branco) eacute perfeitamente idecircnshytico no quadro ou de um quadro a outro eacute a pintura que se torna azul- Yves o monocromo- segundo um puro afecto que faz o universo mergulhar no vazio e natildeo deixa mais nada por fazer ao pintor por excelecircncia20_

O vazio colorido ou antes colorante jaacute eacute forccedila A maior parte dos grandes monocromos da pintura moderna natildeo mais tecircm necessidade de recorrer a pequenos buquecircs murais mas apresentam variaccedilotildees sutis imperceptiacuteveis (todavia constishytutivas de um percepto) seja porque satildeo cortados ou conshy

19 Van Gogh carta a Theacuteo Correspondance complete Gallimardshy

Grasset III p 165 Os tons justapostos e sua relaccedilatildeo com o fundo satildeo um tema frequumlente da correspondecircncia Tambeacutem Gauguin carta a Schuffeshynecker 8 de outubro de 1888 Lettres Ed Grasset p 140 Eu fiz urn retra to de mim para Vincent Eacute acredito eu uma das minhas melhores coisas absolutamente incompreensiacutevel (por exemplo) de tal maneira eacute abstra~o o seu d~senho eacute inteiramente arbitraacuterio abstraccedilatildeo cornpl~ta a c~r ~uma co~ d1sta1te da natureza imagine uma vaga lembranccedila de ceram1ca retor~rda pelo fogo forte Todos os vermelhos os violetas rajashydas pelos claroes de fogo como uma fornalha radiante aos olhos sede das lutas do pensamento do pintor O todo sobre um fundo cromo seshymeado de buquecircs infantis Quarto de moccedila pura Eaacute ideacuteia do coloriacutesta arbitraacuterio segundo Van Gogh

~~ Cf Artst~dio no 16 Monochromes (sobre Klein artigos de Genev1eve Monmer e de Denys Riout e sobre os avatares atuais do monocromo artigo de Pierre Sterckx)

234 IL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tornados de um lado por uma fita um faixa uma extensatildeo de uma outra cor ou de um outro tom que mudam a intenshysidade do fundo por vizinhanccedila ou distanciamento seja porshyque apresentam figuras lineares ou circulares quase virtuais tom sobre torit seja porque satildeo esburacados ou fendidos satildeo problemas de junccedilatildeo ainda mas singularmente ampliados

Numa palavra o fundo vibra se enlaccedila ou se fende poque eacute portador de forccedilas apenas vislumbradas E o q~e fazia de iniacutecio a pintura abstrata convocar asforccedilas povoar o funshydo com as forccedilas que ele abriga fazer ver nelas mesmas as forshyccedilas invisiacuteveis traccedilar figuras de aparecircncia geomeacutetrica mas que natildeo seriam mais do que forccedilas forccedila de gravitaccedilatildeo de peso de rotaccedilatildeo de turbilhatildeo de explosatildeo de expansatildeo de gershyminaccedilatildeo forccedila do tempo (como se pode dizer da muacutesica que ela faz ouvir a forccedila sonora do tempo por exemplo com Messhysiaen ou da literatura com Proust que faz ler e conceber a forccedilaacute ilegiacutevel do tempo) Natildeo eacute esta a definiccedilatildeo do percepto em pessoa tornar sensiacuteveis as forccedilas insensiacuteveis que povoam o mundo e que nos afetam nos faze~ devir O que Mondrian obteacutem por simples diferenccedilas entre lados de um quadrado e Kandinsky pelas tensotildees lineares e Kupka pelos planos curvos em torno do ponto Do fundodas eras nos vem o que Worringer chamava a linha setentrional abstrata e infinita linha do uacuteniverso que forma fitas e tiras rodas e turbinas toda uma geometria viva elevando agrave intuiccedilatildeo as forccedilas mecacircshynicas constituindo uma poderosa vida natildeo-orgacircnica21

O eterno objeto da pintura pintar as forccedilas como Tintoretto

Encontraremos tambeacutem talvez a casa e o corpo E que o fundo infinito eacute frequumlentemente aquilo sobre o que se abre a janela ou a porta ou entatildeo eacute o muro da proacutepria casa ou o solo Van Gogh e Gauguin semeiam o fundo de pequenos buquecircs de flores para fazer deles o papel mural

21 Worringer Lart gothique Gallimard

Percepto Afecto e Conceito 235

sobre o qual se destaca o rosto de tons justapostos E com efeito a casa natildeo nos abriga das forccedilas coacutesmicas no maacutexishymo ela as filtra elas as seleciona Ela as transforma algushymas vezes em forccedilas benevolentes jamais a pintuacutera fez ver a forccedila de Arquimedes a forccedila do empuxltgt da aacutegua sobre um corpo gracioso que flutua na banheira da casa como Bonnard conseguiu em o Nuacute no banho Mas tambeacutem as forccedilas mais maleacuteficas podem entrar pela porta entreabershyta ou fechada satildeo as forccedilas coacutesmicas que provocam elas mesmas as zonas de indiscernibilidade nos_tons justapostos de um rosto esbofeteando-o arranhando-o fundindo-o em todos os sentidos e satildeo estas zonas de indiscernibilidade que revelam as forccedilas escondidas no fundo (Bacon) Haacute plena complementariedade enlace de forccedilas como perceptos e de devires como afectos A linha de forccedila abstrata segundo ~orringer eacute rica em motivos animalescos Agraves forccedilas coacutesshymicas ou cosmogeneacuteticas correspondem devires-aniinais veshy

geta1s moleculares ateacute que o corpo desapareccedila no fundo ou entre no muro ou inversamente que o fundo se contorshyccedila e turbilhone na zona de indiscernibilidade d~ corpo~ Numa palavra o ser de sensaccedilatildeo natildeo eacute a carne mas o comshyposto das forccedilas natildeo-humanas do cosmos dos devires natildeo humanos do homem e da casa ambiacutegua que os troccedila e os ajusta os faz turbilhonar como os ventos A carne eacute somenshyte o revelador que desaparece no que revela o composto de sensaccedilotildees Como toda pintura a pintura abstrata eacute senshysaccedilatildeo nada mais que sensaccedilatildeo Em Mondrian eacute o quarto que acede ao ser de sensaccedilatildeo dividindo por extensotildees coshyloridas o plano vazio infinito que lhe daacute de volta um infishy

d b 22 mto e a ertura Em Kandinsky as casa~ satildeo uma das

22 Mondrian Reacutealiteacute naturelle et reacutealiteacute abstraite (in Seuphor Piet

Mondnan sa vie son oeuvre Ed Flammarion) sobre o quarto e seu desdobramento Michel Butor analisou este desdobramento do quarto em

236 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

fontes da abstraccedilatildeo que consiste menos em figuras geomeacuteshytricas que em trajetos dinacircmicos e linhas de erracircncia cashyminhos que caminham nos arredores Em Kupka eacute de iniacuteshycio sobre o corpo que o pintor talha fitas ou extensotildees coshyloridas que produziratildeo no vazio os planos curos que o povoam tornando-se sensaccedilotildees cosmogeneacuteticas__ ~--~--~~~~

ccedilatildeoe~_pi_rjtual ou j~ um _~Ol~-~-i_g_viSgt= O _q~-~~t-~ lt1 ~~-~~- uacuten1verso A ~r~~ - aJs~rata_~ s~P25 a ~rte _C()flC~I~~~_Elt~~~-- middot-Pmiddot cacirc~dTmiddot~tamente a questatildeo que impregna toda pintura ---- --middot-shys~~ - ~-eiacute~Ccedilatilde-uumlcocircffi o ~~~~~ito~sti-a relaccedilatildeo com a funccedilatildeo middot_

A arte comeccedila talv-ez--com o animal ao menos com o animal que recorta um territoacuterio e faz uma casa (os dois satildeo correlativos ou ateacute mesmo se confundem por vezes no que se chama de habitat) Com o sistema territoacuterio-casa muitas funccedilotildees orgacircnicas se transformam sexualidade procriaccedilatildeo agressiyidade alimentaccedilatildeo mas natildeo eacute esta transformaccedilatildeo que explica a apariccedilatildeo do territoacuterio e da casa seria antes o

inverso o territoacuterio impli~a na emergecirc~lti~ e 91-ali_cll~~-~sel~ siacuteveis pu~- ~~-ibiIacuteia qua~ixacirciiacuteiacute -de ser unicaii1~_Ilt_e ushyecirc(ocircOtildeagraveisecirc cse- ioacuternani-tragraveCcediluumlsmiddotae express~Otilde__ tormiddotn~~~~J~~s~V~l tiffiagravetiansfocirciinaCcedilatildeo (G$iacute~i1Ccedilotildees23 s~ni duacutevida esta expresshysivlamp1deTaacuteestacirc dltu~ch~E~~~middot Vida~ pode-se dizer que o simshyples liacuterio dos campos celebra a gloacuteria dos ceacuteus Mas eacute com o territoacuterio e a casa que ela se torna construtiva e ergue os monumentos rituais de uma missa animal que celebra as quashylidades antes de tirar delas novas causalidades e finalidades Esta emergecircncia jaacute eacute arte natildeo somente no tratamento dos materiais exteriores mas nas posturas e cores do corpo nos

quadrados ou retacircngulos e a abertura sobre um quadrado interior vazio e branco como promessa de quarto futuro Reacutepertoire III Le carreacute et son habitant Ed de Minuit p 307-309314-315

23 Parece-nos que eacute um engano de Lorenz querer explicar o terrishytoacuterio por uma evoluccedilatildeo das funccedilotildees L agression Ed Flammarion

Percepto Afecto e Conceito 237

cantos e nos gritos que marcam o territoacuterio Eacute um jorro de traccedilos de~-~2E~~- e de sons inseparaacuteveisna dtecTda em que s~ -~riill _ ~xpr~~isiV_9_~ ~-(~i~~~i-~ill~~9l0_~_4~ middotr~ritoacute~i~fCcedil Scenopoietes dentirostris paacutessaro das florestas chuvosas da Austraacutelia faz cair da aacutervore as folhas que corta cada manhatilde vira-as para que sua face interna mais paacutelida contraste com a terra constroacutei para si assim uma cena co_mo um readyshymade e canta exatamente em cima sobre um cipoacute ou-um galho um canto complexo composto de suas proacuteprias noshytas e das de outros paacutessaros que imita nos intervalos mosshytrando a raiacutez amarela das plumas sob seubico eacute um artista completo24

bull Natildeo satildeo as sinestesias em plena carne satildeo esshytes blocos de sensaccedilotildees no territoacuterio cores posturas e sons que esboccedilam uma obra de arte total Estes blocos satildeo rishytorneios mas haacute tambeacutem ritornelos posturais e de cores e tanto posturas quanto cores se introduzem sempre nos ritor~ nelas Reverecircncias e posiccedilotildees eretas rondas traccedilos de coshyres O ritornelo inteiro eacute o ser de sensaccedilatildeo Os monumenshytos satildeo ritornelos Desse ponto de vista a arte natildeo deixaraacute de ser habitada pelo animal A arte deKafka seraacute a mais prbshy

funda meditaccedilatildeo sobre o territoacuterio e a casa o terreiro as pos~ turas~retrato (a cabeccedila pendida do habitante com o queixo enterrado no peito ou ao contraacuterio o grande tiacutemido que fura o teto com seu cracircnio anguloso) os sons-muacutesica (os catildees que satildeo muacutesicos por suas proacuteprias posturas Josephine a ratinha cantora da qual ja~ais saberemos se canta Gregoire que une seu piadoao violino de sua irmatilde numa relaccedilatildeo comshyplexa quarto-casa~territoacuterio) Eis tudo o que eacute preciso para fazer arte uma casa posturas cores e cantos - sob a conshy ~

I diccedilatildeo de que tudo isso se abra e se lance sobre ummiddotvetor louco como uma vassoura de bruxa uma linha d~ universo ou de

24 Marshall Bowler Birds Oxford at the Clarendon Press Gilliord Birds of Paradise and Bowler Birds Weidenfeld

desterritorializaccedilatildeoPerspectiva de um quarto com seus hashybitantes (Klee )

Cada territoacuterio cada habitat junt a seus planos ou suas extensotildees natildeo apenas espaccedilo-temporais mas qualitativos por exemplo uma postura e um canto um canto e urna cor perceptos e afectos E cada territoacuterio engloba ou recorta ter~ ritoacuterios de outras espeacutecies ou intercepta trajetos de animais sem territoacuterio formando junccedilotildees inUacuterespeciacuteficltlS Eacute neste sentido que Uexkuumlhl num primeiro aspecto desenvolve urna concepccedilatildeo da Natureza meloacutedica polifocircnica contrapontual Natildeo apenas o canto de um paacutessaro tem suas relaccedilotildees de conshytraponto mas pode fazer contraponto com o canto de oushytras espeacutecies e pode ele mesmo imitar estes outros cantos como se se tratasse de ocupar um maacuteximo de frequumlecircnciacuteas A teia de aranha conteacutem um retrato muito sutil da mosca que lhe serve de contraponto A concha como casa do moshylusco~ se torna quando ele morre o contraponto do Bershynardo-eremita que faz dela seu proacuteprio habitat graccedilas a sua cauda que natildeo eacute nadadeira mas preecircnsil e lhe permite capshyturar a concha vazia O Carrapato eacute organicamente consshytruiacutedo de modo a encontrar seu contraponto no mamiacutefero qualquer que passa sob seu galho como as folhas de carvashylho arranjadas como telhas nas gotas de chuva que escorshyrem Natildeo eacute uma concepccedilatildeo finalista mas meloacutedica em que natildeo mais sabemos o que eacute arte ou natureza (a teacutecnica nashytural) haacute contraponto toda vez que uma melodia interveacutem como motivo numa outra melodia como nas bodas enshytre a mamangava e a boca-de-leatildeo Essas relaccedilotildees de contrashyponto juntam planos formam compostos de sensaccedilotildees bloshycos e determinam devires Mas natildeo satildeo somente estes comshypostos meloacutedicos determinados que constituem a natureza mesmo generalizados eacute preciso tambeacutem sob um outro asshypecto um plano de composiccedilatildeo sinfocircnica infinio da Casa ao universo Da endo-sensaccedilatildeo agrave exo-sensaccedilatildeo E que o tershy

bull 238 li Filosofia Ciecircnci~ Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 239

r I I I-- --- --

~ -

middot1

ritoacuterio natildeo se limita a isolar e juntar ele abre para forccedilas coacutesmicas que sobem de dentro ou que vecircm de fora e torna sensiacuteveis seu efeito sobre o habitante Eacute um plano de comshyposiccedilatildeo do carvalho que porta ou comporta a forCcedila de deshysenvolvimento da bolota e a forccedila de formaccedilatildeo das gotas ou o do carrapato que tem a forccedila da luz capaz de atrair o animal ateacute a ponta de um galho numa altura suficiente e a forccedila de peso com a qual se deixa cair sobre o mamiacutefero que passa -e entre os dois nada um vazio assustador que pode durar anos se o mamiacutefero natildeo passa25bull E ora as forccedilas se fundem umas nas outras em transiccedilotildees sutis decompotildeemshyse tatildeo logo vislumbradas ora se alternam ou se enfrentam Ora deixam-se selecionar pelo territoacuterio e satildeo as mais beshynevolentes que entram na casa Ora lanccedilam um apelo misshyterioso que arranca o habitante do territoacuterio e o precipita numa viagem irresistiacutevel como os pintassilgos que se reuacuteshynem frequentemente aos milhotildees ou as lagostas que empreshyendem uma imensa peregrinaccedilatildeo no fundo da aacutegua Ora se abatem sobre o territoacuterio e o invertem malevolentes restaushyrando o caos de onde ele mal saiacutea Mas sempre se a nature za eacute como a arte eacute porque ela conjuga de todas as maneiras esses dois elementos vivos a Casa e o Universo o Heimlich e o Unheimlich o territoacuterio e a desterritorializaccedilatildeo os comshypostos meloacutedicos finitos e o grande plano de composiccedilatildeo infinito o pequeno e o grande ritornelo

A arte comeccedila natildeo com a carne mas com a casa eacute por isso que a arquitetura eacute a primeira das artes Quando Dushybuffet procura delifuitar um certo estado bruto de arte eacute a princiacutepio na direccedilatildeo da casa que ele se volta e toda sua obra se ergue entre a arquitetura a escultura e a -pintUra E limishy

25 Cf a obra-prima de J von Uexkuumlhl Mondes animaux et monde humain Theacuteorie de la signification Ed Gonthier (p 137-142 o contrashyponto motivo do desenvolvimento e da morfogecircnese)

II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tando-nos agrave forma a arquitetura mais saacutebia natildeo deixa de fazer planos extensotildees e de juntaacute-los Eacute por isso que se pode defini-la pela moldura um encaixe de molduras diversashymente orientadas que se imporiam agraves outras artes da pinshytura ao Cinema Jaacute se apresentou a preacute-histoacuteria do quadro como passando pelo afresco na moldura da parede o vitral ha moldura da janela o mosaico na moldura do solo A moldura eacute o umbigo que liga o quadro ao monujllento do qual ele eacute a reduccedilatildeo como a moldura goacutetica com coluneshytas ogiva e flecha26 Fazendo da arquitetura a arte primeira da moldura Bernard Cache pode enumerar um certo nuacutemero de formas enquadrantes que natildeo prejulgam nenhum conteuacuteshydo concreto nem funccedilatildeo do edifiacutecio o mu~o que isola ajashynela que capta ou seleciona (em conexatildeo com o territoacuterio) o solo-chatildeo que conjura ou rarifica (rarificar o relevo da terra para dar livre curso agraves trajetoacuterias humanas) o teto que envolve a singularidade do lugar (o teto em declive coloca o edifiacutecio sobre uma colina ) Encaixar essas molshyduras ou juntar todos estes planos extensatildeo de muro exshytensatildeo de janela extensatildeo de solo extensatildeo de declive eacute todo um sistema composto rico em pontos e contrapontos As molduras e suas junccedilotildees sustentam os compostos de sensashyccedilotildees datildeo consistecircncia agraves figuras confundem-se com seu dar consistecircncia seu proacuteprio tocircnus Aiacute estatildeo as faces de um cubo de sensaccedilatildeo As molduras ou as extensotildees natildeo satildeo coordeshynadas pertencem aos compostos de sensaccedilotildees dos quais consshytituem as faces as interfaces Mas por mais extensiacutevel que seja este sistema eacute preciso ainda um vasto plano de composhysiccedilatildeo que opere uma espeacutecie de desenquadramento segunshydo linhas de fuga que soacute passe pelo territoacuterio para abri-lo sobre o universo que vaacute da casa-territoacuterio agrave cidade-cosmos

26 Henry van de Velde Deacuteblaientent dart Archives darchitecture moderne p 20

Percepto Afecto e Conceito 240 241

-~-_--- middot-middotmiddot

e que dissolva agora a identidade do lugar na variaccedilatildeo da Natildeo parece que a literatura e particularmente o romance Terra uma cidade que tem menos um lugar do que vetores estejam imma outra situaccedilatildeo O que conta natildeo satildeo as opiniotildees pregueando a linha abstrata do relevo Eacute sobre este plano de dos personagens segundo seus tipos sociais e seu caraacuteter composiccedilatildeo como sobre um espaccedilo vetorial abstrato que como nos maus romances mas as relaccedilotildees de contraponto nos se traccedilam figuras geomeacutetricas cone prisma diedro plano quais entram e os compostos de sensaccedilotildees que esses persoshyestrito que nada mais satildeo do que forccedilas coacutesmicas capazes nagens experimentam eles mesmos ou fazem experimentar em de se fundir se transformar se enfrentar alternar mundo seus devires e suas visotildees O contraponto natildeo serve para reshyde antes do homem mesmo se eacute produto do homem27 Eacute latar conversas reais ou fictiacutecias mas para fazer mostrar a preciso agora desarticular os planos para remetecirc-los a seus loucura de qualquer conversa de qualquer diaacutelogo mesmo

j intervalos em vez de remetecirc-los uns aos outros para criar interior Eacute tudo isso que o romancista deve extrair das pershy

novos afectos28 Ora~ vimos que a pintura seguia o mesmo cepccedilotildees afecccedilotildees e opiniotildees de seus modelos psicossociais I

I movimento A moldura ou a borda do quadro eacute em primeiro que se integram inteiramente nos perceptos e os afectos aos ~ I

lugar o invoacutelucro externo de uma seacuterie de molduras ou de quais o personagem deve ser elevado sem conservar outra vida I

I extensotildees que se juntam operando contrapontos de linhas E isso implica num vasto plano de composiccedilatildeo natildeo preconshyi

I

e de cores determinando compostos de sensaccedilotildees Mas o cebido abstratamente mas que se constroacutei agrave medida que a obraI

quadro eacute atravessado tambeacutem por uma potecircncia de desenshy avanccedila abrindo misturando desfazendo e refazendo composshy

I I quadramento que o abre para um plano de composiccedilatildeo oumiddot tos cada vez mais ilimitados segundo a penetraccedilatildeo de forccedilasI

um campo de forccedilas infinito Estes procedimentos podem ser coacutesmicas A teoria do romance de Bakhtin vai nesse sentido muito diversos mesmo no nivel da moldura exterior formas mostrando de Rabelais a Dostoievski a coexistecircncia dos comshy

[I irregulares lados que natildeo se juntam molduras pintadas oacuteu ponentes contrapontuais polifocircnicos e plurivocais com um I pontilhados de Seurat quadrados sobre ponta de Mondrian plano de composiccedilatildeo arquitetocircnico ou sinfocircnico29 Um roshyi li tudo o que daacute ao quadro o poder de sair da tela Jamais o mancista como Dos Passos soube atingir uma arte inaudita

shy__jl

gesto do pintor fica na moldura ele sai da moldura e natildeo do contraponto nos compostos que forma entre personagens comeccedila com ela atualidades biografias olhos de cacircmera ao mesmo teropo queI

um plano de composiccedilatildeo se alarga ao infinito para arrastar tudo para a Vida para a Morte para a cidade-cosmos E se27 Sobre todos estes pontos a anaacutelise das formas enquadrantes e da

cidade-cosmos (exemplo de Lausanne) cf Bernard Cache L ameublement retornamos a Proust eacute porque mais do que qualquer outro du territoire (a sair) ele fez com que os dois elementos quase se sucedessem emboshy

28 Eacute Pascal Bonitzer que formou o conceito de desenquadramento ra presentes um no outro o plano de composiccedilatildeo aparece poushypara aplicar ao cinema novas rdaccedilotildees entre os planos ( Cahiers du cineacutema co a pouco para a vida para a morte compostos de sensashyndeg 284 janeiro de 1978) planos disjuntos triturados ou fragmentados ccedilatildeo que ele edifica no curso do tempo perdido ateacute aparecer graccedilas aos quais o cinema se torna uma arte depurando-se das emoccedilotildees

em si mesmo com o tempo reencontrado a forccedila ou antes asmais comuns que arriscam de lhe impedir o desenvolvimento esteacutetico e produzindo-lhe afetos novos (Le champ aveugle Ed Cahiers du cineacutema Gallirnard sisteme des eacutemotions ) 29 Bakhtin Estheacutetique et theacuteorie du roman Gallimard

242 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 243

-- ---

forccedilas do tempo puro tornadas sensiacuteveis Tudo comeccedila peshylas Casas que devem todas juntar suas dimensotildees e dar conshysistecircncia a compostos Combray o palacete de Guermantes o salatildeo Verdurin e as casas elas mesmas se ajuntam segundo interfaces mas um Cosmos planetaacuterio jaacute estaacute laacute visiacutevel ao telescoacutepio arruinando-as ou transformando-as e absorvenshydo-as no infinito do fundo Tudo comeccedila por titornelos cada

i

um dos quais como a pequena frase da sonata de Vinteuil natildeo se compotildee apenas em si mesmo mas com -outras sensashy

ccedilotildees variaacuteveis a de uma passante desconhecida a do rosto de Odette a das folhagens do bosque de Boulogne- e tudo tershy I mina no infinito no grade Ritornelo a frase do seacuteptuor em Iperpeacutetua metamorfose o canto dos universos o mundo de antes do homem ou de depois De cada coisa finita Proust faz uni ser de sensaccedilatildeo que natildeo deixa de se conservar mas fushygindo sobre um plano de composiccedilatildeo do Ser seres de fuga

EXEMPLO XII

Natildeo parece que a muacutesica esteja numa outra situashyccedilatildeo talvez mesmo a encarne com mais poder ainda Dizshyse todavia que o som natildeo tem moldura Mas os comshypostos de sensaccedilotildees os blocos sonoros tampouco tecircm extensotildees ou formas enquadrantes que devem em cada caso se ajuntar assegurando um certo fechamento Os casos mais simples satildeo a aacuteria meloacutedica que eacute um ritorshynelo monofocircnico o motivo que jaacute eacute polifocircnico um elemento de Uacutema melodia interveniente no desenvolvishymento de uma outra e fazendo contraponto o tema como objeto de modificaccedilotildees harm-ecircnicas atrav~s das linhas meloacutedicas Essas trecircs formas elementares consshytroacuteem a casa sonora e seu territoacuterio Elas correspondem agraves trecircs modalidades de um ser de sensaccedilatildeo pois a aacuteria eacute uma vibraccedilatildeo o motivo eacute um enlace um acoplamen-

I244 lIL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

jbull

to enquanto o tema natildeo fecha sem se descerrar fender e tambeacutem abrir Com efeito o fenocircmeno musical mais importante que aparece agrave medida que os compostos de sensaccedilotildees sonoras se tornam mais complexos eacute que sua clausura ou fechamento (por junccedilatildeo de suas molduras de suas extensotildees) se acompanha de uma possibilidade de abertura sobre um plano de composiccedilatildeo cada vez mais ilimitado Os seres de muacutesica satildeo como os seres vivos segundo Bergson que compensam sua clausura individuante por uma abertura feita de modulaccedilatildeo reshypeticcedilatildeo transposiccedilatildeo justaposiccedilatildeo Se consideramos a sonata encontramos aiacute uma forma enquadraacutente parshyticularmente riacutegida fundada sobre um bitematismo e da qual o primeiro movimento apresenta as seguintes dimensotildees exposiccedilatildeo do primeiro tema transiccedilatildeo exshyposiccedilatildeo do segundo tema desenvolvimentos sobre o pric rileiro ou o segundo coda desenvolvimento do primeiro com modulaccedilatildeo etc Eacute toda uma casa com seus aposhysentos Mas eacute antes o primeiro movimento que forma assim uma ceacutelula e eacute raro que uiacuten grande muacutesico siga a forma canocircnica os outros moviacutementos podem abrirshyse notadamente o segundo pel~ tema e variaccedilatildeo ateacute que Liszt asseg~re uma fusatildeo dos movimentos no poeshyma sinfocircnico A sonata aparece entatildeo antes como uma forma-cruzamento em que da junccedilatildeo das dimensotildees musicais da clausura dos compostos sonoros nasce a abertura de um plano de composiccedilatildeo

Deste ponto de vista o velho procedimento tema e variaccedilatildeo que manteacutem a moldura harmocircnica do tema daacute lugar a uma espeacutecie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composiccedilatildeo (Chopin Schumann Liszt eacute um novo momento essencial porshyque o trabalho criador natildeo mais versa sobre os comshyponentes sonoros motivos e temas abrindo um plano

245Percepto Mecto e Conceito

~~

mas ao contraacuterio versa diretamente sobre o proacuteprio plano de composiccedilatildeo para fazer nascer dele composshytos bem mais livres e desenquadrados quase agregados incompletos ou sobrecarregados em desequiliacutebrio pershymanente Eacute a cor do som que conta cada vez mais Passa-se da Casa ao Cosmos (segundo uma foacutermula que a obra de Stockhausen retomaraacute) O trabalho do plano de composiccedilatildeo se desenvolve em duas direccedilotildees que engendraratildeo uma desagregaccedilatildeo da moldura tonal os imensos fundos da variaccedilatildeo contiacutenua que fazem enshylaccedilar e se unir as forccedilas tornadas sonoras em Wagner ou os tons justapostos que separam e dispersam as forshyccedilas agenciando suas passagens reversiacuteveis em Debussy Universo-Wagner universo-Debussy Todas as aacuterias todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquashydrados infantis domeacutesticos profissionais nacionais territoriais satildeo carregados no grande Ritornelo um potente canto da terra - o desterritorializado - que se eleva com Mahler Berg ou Bartoacutek E sem duacutevida o plano de composiccedilatildeo engendra sempre novas clausuras como na seacuterie Mas sempre o gesto do muacutesico consiste em desenquadrar encontrar a abertura retornar o plashyno de composiccedilatildeo segundo a foacutermula que obceca Boushylez traccedilar uina transversal irredutiacutevel agrave vertical harmocircshynica como agrave horizontal meloacutedica que conduz blocos soshynoros agrave individualizaccedilatildeo variaacutevel mas tambeacutem abri-las ou fendecirc-las num espaccedilo-tempo que determina sua denshysidaae e seu percurso sobre o plano30 O grande ritorshynelo se eleva agrave medida que nos afastamos dacasa messhy

30 Boulez notadamente Points de repere Ed Bourgois-Le Seuil p 159 e segs (Pensez la musique aujourdhui Ed Gonthier p 59-62) A eXtensatildeo da seacuterie em duraccedilotildees intensidades e timbres natildeo eacute um ato de clausura mas ao contraacuterio uma abertura do que se fechava na middotseacuterie das alturas

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte246

--~=shyq

mo se eacute para retornar a ela jaacute que ningueacutem mais nos reconheceraacute quando retornarmos

Composiccedilatildeo composiccedilatildeo eis a uacutenica definiccedilatildeo da arte A composiccedilatildeo eacute esteacutetica e o que natildeo eacute composto natildeo eacute uma obra de arte Natildeo confundiremos todavia a composiccedilatildeo teacutecshynica trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciecircncia (matemaacutetica fiacutesica quiacutemica anatomia) e a comshyposiccedilatildeo esteacutetica que eacute o trabalho da sensaccedilatildeo Soacute este uacuteltishymo merece plenamente o nome de composiccedilatildeo e nunca uma obra de arte eacute feita por teacutecnica ou pela teacutecnica Certamente a teacutecnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra as palavras e a sintaxe em literatura natildeo apenas a tela em pintura mas sua preparashyccedilatildeo os pigmentos suas misturas os meacutetodos de perspectiva ou ent~o os doze sons da muacutesica ocidental os instrumentos as escalas as alturas E a relaccedilatildeo entre os dois planos oacute

plano de composiccedilatildeo teacutecnica e o plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica natildeo cessa de variar historicamente Sejam dois estados oponiacuteveis na pintura a oacuteleo num primeiro caso o quadro eacute preparado por um fundo branco sobre o qual se desenha e se dilui o desenho (esboccedilo) enfim se potildee a cor as sombras e as luzes No outro caso o fundo se torna cada vez mais espesso opaco e absorvente de modo que ele se colore na divisatildeo e o trabalho se faz em plena massa sobre uma gama escura as correccedilotildees substituindo o esboccedilo o pintor pintaraacute sobre cor depois cor ao lado de cor as cores se tornando cada vez mais relevos a arquitetura sendo assegurada pelo contraste dos complementares e a concordacircncia dos anaacuteshylogos (Van Gogh) eacute por e nagrave cor que se encontraraacute a arshyquitetura mesmo se eacute preciso renunciar aos relevos parareshyconstituir grandes unidades colorantes Eacute verdade que Xavier de Langlais vecirc em todo este segundo caso uma longa decashydecircncia que caino efecircmero e natildeo chega a restaurar uma ar-

Percepto Mecto e Conceito 247

quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem duacutevida esta observaccedilatildeo coloca ao meshynos negativamente a questatildeo do progresso na arte jaacute que Langlais considera que a decadecircncia comeccedila jaacute depois de Van Eyck (um pouco como alguns param a muacutesica no canto greshygoriano ou a filosofia em Santo Tomaacutes) Mas eacute uma obsershyvaccedilatildeo teacutecnica que concerne somente ao material aleacutem de que a duraccedilatildeo do material eacute muito relativa a sensaccedilatildeo eacute de uma outra ordem e possui uma existecircncia em si enquanto o mashyterial dura A relaccedilatildeo da sensaccedilatildeo com o material deve pois ser avaliada nos limites da duraccedilatildeo do material qualquer que ela seja Se haacute progressatildeo em arte eacute porque a arte soacute pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retonws linhas de partilha mudanccedilas de niacuteveis e de escashy

I las Deste ponto de vista a distinccedilatildeo de dois estados da lf

pintura a oacuteleo toma um aspecto inteiramente diferente esshyI

teacutetico e natildeo mais teacutecnico- esta distinccedilatildeo natildeo conduz evishydentemente ao representativo ou natildeo jaacute que nenhuma arte nenhuma sensaccedilatildeo jamais foram representativas

li No primeiro caso a sensaccedilatildeo se realiza no material e natildeo existe fora desta realizaccedilatildeo Diriacuteamos que a sensaccedilatildeo (o composto de sensaccedilotildees) se projeta sobre o plano de composhysiccedilatildeo teacutecnica bem preparado de sorte que o plano -de comshyposiccedilatildeo esteacutetica venha recobri-lo Eacute preciso pois que o mashyterial compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graccedilas aos quais a sensaccedilatildeo projetada natildeo se realiza somenshyte cobrindo o qu1dro mas segundo uma profundidade A arte desfruta entatildeo de uma aparecircncia de transcendecircncia que se exprime natildeo numa coisa por representar mas no caraacuteter paradigmaacutetico da projeccedilatildeo e no caraacuteter simboacutelico da persshypectiva A Figura eacute como a fabulaccedilatildeo segundo Bergson tem

31 Xavier de Langlais La technique de la peinture agrave lhuile Ed Flammarion (E Goethe Traiteacute des couleurs Ed Triades sect 902-909)

248 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 249

middot i

uma origem religiosa Mas quando ela se torna esteacutetica sua transcendecircncia sensitiva entra numa oposiccedilatildeo surda ou abe-rshyta com a transcendecircncia suprasensiacutevel das religiotildees

No segundo caso natildeo eacute mais a sensaccedilatildeo que se realiza no material eacute antes o material que entra na sensaccedilatildeo Cershytamente a sensaccedilatildeo natildeo existe mais fora dessa entrada e o plano de composiccedilatildeo teacutecnica natildeo mais tem autonomia a natildeo ser no primeiro caso natildeo vale jamais por si mesmo Mas diriacuteamos agora que ele sobe no plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica e lhe daacute uma espessura proacutepria como diz Damisch inshydependente de qualquer perspectiva e profundidade Eacute o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transshycendecircncia aparente ou-de um modelo paradigmaacutetico e conshyfessam seu ateiacutesmo inocente seu paganismo E sem duacutevida entre estes dois casos estes dois estados da sensaccedilatildeo estes dois poacutelos da teacutecnica as transiccedilotildees as combinaccedilotildees e as coexistecircncias se fazem constantemente (por exemplo o trashybalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens) satildeo poacutelos abstratos ao inveacutes de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com oacuteleo e solvente se volta cada vez mais na direccedilatildeo do segundo poacutelo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composiccedilatilde~ esteacutetica -Eacute por isso -que eacute tatildeo falso definir a sensaccedilatildeo na pintura moderna pela admissatildeo de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a esshypessura natildeo precisa ser larga ou profunda Pocircde-se dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfiacuteshycie basta-lhe apoiar-se sobre os vazios e os plenos do pashypel Canson Eacute uma pintura que natildeo mais tem fundo porshyque o baixo emerge a superfiacutecie eacute esburacaacutevel ou o plashyno de composiccedilatildeo ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspecshytiva independentemente das sombras e mesmo da ordem

i r I li

I 32 Cf Christian Bonnefbi intervieweacute et commenteacute par Yvesshy

I Alain Bois Macula S-6

33 Damisch Fenecirctre jaime cadmium ou les dessous de la peinture Ed du Seuil pp 275-305 (e p 80 a espessura do plano em Pollock) Dashy

li misch eacute o autor que mais insistiu sobre a relaccedilatildeo -arte-pertsamento pinshytura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instauraacute-la Mallarmeacute fazia da espessura do livro uma dimensatildeo distinta da proshy) fundidade cf Jacques Scheacuterer Le livre de Mallarmeacute Gallimard p 55shy

I tema que Boulez retoma por sua vez para a muacutesica (Points de repere p 161) iI

li 250 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

I I

cromaacutetica da cor (o colorista arbitraacuterio) Natildeo mais se recoshybre faz-se subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar Eacute uma promoccedilatildeo do solo e a escultura pode torshy

I nar-se plana jaacute que o plano se estratifica Natildeo magraveis se pinshyI ta sobre mas sob A arte informal levou muito longe

estas novas potecircncias da textura essa elevaccedilatildeo do solo com I Dubuffet e tambeacutem o expressionismo abstrato a arte mishy

nimalista procedendo por impregnaccedilotildees fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atraacutes de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem agrave vista do pintor o que enshytregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes estados a pintura eacute-penshysamento a visatildeo existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta

Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdashydeiro conceito mostrando que o tranccedilado poderia bem preencher para a pintura futura funccedilatildeo anaacuteloga agravequela que foi a da perspectiva O quemiddotnatildeo eacute proacuteprio da pintura jaacute que Damisch reencontra a mesma distinccedilatildeo no niacutevel do plano arquitetura quando Scarpa por exemplo rejeita o movishymento da projeccedilatildeo e os mecanismos da perspectiva para ins~ crever os volumes na espessura do proacuteprio plano33 bull E da literatura agrave muacutesica uma espessura material se afirma que

--~ middot

natildeo se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal Eacute umr I traccedilo caracteriacutestico da literatura moderna quando as palashyr vras e a sintaxe sobem no plano de composiccedilatildeo e o cavam I em lugar de colocaacute-lo em perspectiva E a muacutesica quando

renuncia agrave projeccedilatildeo como agraves perspeCtivas que impotildeem a alshyI tura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano soshynoro uma espessura singular da qual testemunham elemenshy

I tos muito diferentes a evoluccedilatildeo dos estudos parapiano que deixam de ser somente teacutecnicas para tornar-se estudos de

jmiddot composiccedilatildeo (com a extensatildeo que lhes daacute Debussy) a imshy

portacircncia decisiva que toma a orquestraccedilatildeo em Berlioz a i subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferashyI I ccedilatildeo dos afectos de percussatildeo com os metais as peles e as mashy

deiras e sua ligaccedilatildeo com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparaacuteveis do material (Varese) a redeshy

I finiccedilatildeo do percepto em funccedilatildeo do ruiacutedo do som bruto e I complexo (Cage) natildeo apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendecircnshy

cia a uma apariccedilatildeo natildeo-cromaacutetica do som num continuum infiiuumlto (muacutesica eletrocircnica ou eletro-acuacutestica)I

I Soacute haacute um plano uacutenico no sentido em que a arte natildeo

I comporta outro plano diferente do da composiccedilatildeo esteacutetica

I o plano teacutecnico com efeito eacute necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composiccedilatildeo esteacutetica Eacute sob esta conshydiccedilatildeo que a mateacuteria se torna expressiva o composto de senshysaccedilotildees se realiza no material ou o material entra no comshyI posto mas sempre de modo a se situar sobre um plano deI

I composiccedilatildeo propriamente esteacutetico Haacute muitos problemasI teacutecnicos em arte e a ciecircncia pode intervir em sua soluccedilatildeo

mas eles soacute se colocam em funccedilatildeo de problemas de composhysiccedilatildeo esteacutetica que concernem aos compostos de sensaccedilotildees e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus mateshyriais Toda sensaccedilatildeo eacute uma questatildeo mesmo se soacute o silecircncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em enshy

251Percepto Afecto e Conceito

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 6: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

-----

11~11 l i middot11

ili j f li

IJiiJ Moby Dick que o faz tornar-se-baleia e forma um composshy11jli to de sensaccedilotildees que natildeo precisa de ningueacutem mais Oceano jl

1j[i Eacute Mrs Dalloway que percebe a cidade mas porque entrou

lmiddotl middot na cidade como uma lacircmina atraveacutes de tudo e se tornou I i ela mesma imperceptiacutevel Os afectos satildeo precisamente esshy

1 ilJ tf~lfre~Eo httE2L~Z~S2fl-O ~~ifiPi9il middotI 1 tre eles a cidade) satildeoas paisagens 1Ct-EtCcedilJJEfftUreshy

i~ -H- 4a~fe~~~~~~~1~~~ZE~~~e~1i 1i1

1 -lfffr 1

~resta~~=~middotmiddot_~d--~middot~middot~-~~-~sg~~middotmiddot~~Qdo ~noacutes nos

Jiijl 1 tornamos contempla~d~=middot~~~T~dcecircisatildeo devi Tornamoshy- nos universo Devires animal~o ecular devir zero

1 i Kleist eacute sem duacutevida quem mais escreveu por afectos serviushy

11 do-se deles como pedras ou armas apreendendo-os em deshy1 vires de petrificaccedilatildeo brusca ou de aceleraccedilatildeo infinita no 1 1

~ ~ ~~ 1 devir-cadela de Pentesileacuteia e seus perceptos alucinados Isto 1~ I eacute verdadeiro para todas as artes que estranhos devires deshy

) I senca~~iam a muacutesica tr~veacutes de suas aisage~s meloacutedicas 11middot1 e seus personagens ntmtcos como dtz Messtaen componshy

111 do num mesmo ser de sensaccedilatildeo o molecular e o coacutesmiCo

IIJ as estrelas os aacutetomos e os paacutessaros Que terror invade a ~middotJ~ cabeccedila de Van Gogh tomada num devir girassol Sempre eacute

1 middotlj preciso o estilo-- a sintaxe de um escritor os modos e ritshy1~ 1 ~~~ mos de um m~co os traccedilos e as cores de um pintor- para

i1

i~ l fi ~~

1 6 Ceacutezanne op cit p 113 Cf Erwin Straus Du sens des sensEd ji Millon p 519 as grilndes paisagens tecircm todas elas um caraacuteter visioshy

j 111 naacuterio A visatildeo eacute o que d~ invisiacutevel se torna visiacutevel a paisagem eacute invisiacutevel1

I imiddot middot I nos perdemos Para cheshy~ porque quanto mais a conquistamos mais nelamiddotmiddot11middot d

I gar agrave paisagem devemos sacrificar tanto quanto middotpossiacutevel toda etermishy

i i naccedilatildeo temporal espacial objetiva mas este abandoacuteno natildeo~tinge somentei I J o objetivo ele afeta a noacutes mesmos na mesma medida Na paisagem deishy

~ middot xamos de ser seres histoacutericos isto eacute seres eles mesmos objetivaacuteveis Natildeo ~ middot~~ temos memoacuteria para a pai~agem natildeo temos memoacuteria nen1 mesmo para

~ noacutes na paisagem Sonhamos em pleno dia e com os olhos abertos SomomiddotsI 1 furtados ao mundo objetivo mas tambeacutem a noacutes mesmos Eacute o sentir

li 220 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

se elevar das percepccedilotildees vividas ao percepto de afecccedilotildees vividas ao afecto

Insistimos sobre a arte do romance porque eacute a fonte de um malentendido muitas pessoas pensam que se pode fazer um romance com suas percepccedilotildees e suas afecccedilotildees suas lemshybranccedilas ou seus arquivos suas viagens e seus fantasmas seus fiacutelhos e seus pais os personagens interessantes que pocircde enshycontrar e sobretudo o personagem interessante que eacute forccediloshysamente ele mesmo (quem natildeo o eacute) enfim suas opiniotildees para soldar o todo Invocam-se para tagravento grandes autores que soacute teriam contado sua vida Thomas Wolfe ou Miller Obteacutemshyse geralmente obras compostas em que algueacutem se agita muishyto mas na Jf_QCcedil-J~-deum-Paiq_~ soacute poderia encontrar em si mesmo 6-f~()mance do jornalista) Nada nos poupam na aushy

---middot--~ secircncia de qualquerTiatildeotildeatildelnotilderealmente artiacutestico Natildeo precisashy

mos alterar m~ito a cr~ordfdag~~Q_91~~~-P-~9_lt_y~_ nem o d-ecircmiddotshysesperoacute pelo qual se passou para produzir mais-~~---~ez

oacuteptmao que~-_ferjJp~nte~ordfi~-ordfR~fSfj_qsiil~S2ii~ii~i~ --ccedilatildeotildelossellini viu nisso uma razatildeo para renunciar agrave arte a arte atildeelXou-se invadir demais pelo infantilismo e pela crueldade toi nando-se simultaneamente cruel e chorosa gemebunda e satisshyfeita de modo que era_melhor renunciar7 O mais interessante eacute que Rossellini via a mesma invasatildeo na pmtura Mas eacute antes deI

I mais nada a literat~a que natildeo parou de manter este equiacutevoco com o vivido Pode acontecer mesmo que se tenha um grande senso de observaccedilatildeo e muita irrlagill_accediliiotilde~eacutepltSsiacutevel escre~~~n

P~ES~~-afecccedilotildees op~iotildeesMe~Otilde nosmiddotmiddot~an~~~~e~~-middotshyl autobiograacuteficOtildesvemos cOtildentrOtildentarem-se cruzarem-se opiniotildees de uma multidatildeo de personagens cada opiniatildeo sendo funccedilatildeo das percepccedilotildees e afecccedilotildees de cada um segundo sua situaccedilatildeo social e suas aventuras individuais sendo o conjunto tomado numa -8 vasta corrente que seria a opiniatildeo do autor que se divid~ par~ t-)l1--middot~~~ -- --middot-~=~~_~ --~-- shy

I bullmiddotmiddot ~middot ~_7 Rosselini Le cineacutema reacuteveacuteleacute Ed de lEtoile p 80-82

Percepto Afecto e Conceito 221

~ecai~~s-~QfCcedil_Qsect__]2etSQILltl~-UsectQg___~-S~Ccedil9~ls~gtJ~r~~q~~ -~-1~ -~~2~lt22-~ltJ~llli-LiisectEa~eacute e_~~JLW~sectIDamptCcedilJYsccedilPJXeCcedila~agraude JsguacuteadoampQmans~d~JiordfkhtilL(felizmente ele natildeo fica aiacute jusshytamente na base paroacutedica do romance )

AJ~ordf-Igtl1laccedilatildeo criadora nada tem a ver com uma lembranshyo-11 _ middotmiddotmiddot middotmiddotmiddotmiddotmiddot -~ -- middotmiddot ofPmiddotmiddot ccedila mesmo amplificada nem _ccedilgrn_UJll fantasma Com efeito l _ bull bullmiddotmiddot--middotbullmiddotbull middotmiddot middot---middotmiddotmiddotmiddotmiddot-bull middot -_ _ _ _

cJ middot middot ~ artista entre eles QJQII_~2Ccediltsect-ordf+-~~ccedil_ed5_2~~tad_1Eerc~p_shymiddot- ~ t1yo~ C ~~ J~~sagens afetivas do vividQ Eacute um vidente algueacutem

-~~_~ middot bull middotltmiddot~- middotmiddot middot middot bull bull middot middot middot middot - middot~ bull middot middot~-middot bullbull _ ___~ middot bullmiddot -ltuJo-~ middot)o - --middot - -- d gt middotmiddot~middotmiddot - middotbull-middot- middot-~middot~bull-bullgtbullbullbullbullOh __~~~T - -_ bullbull-middotmiddot middotmiddot

_-~g~~~--~~-S-9XA~middot Como contaria ele o que lhe aconteceu ou o que imagina jaacute que eacute uma sombra Ele viu na vida algo muito grande demasiado intoleraacutevel tambeacutem e a luta da vida com o que a ameaccedila de modo que o pedaccedilo de natureza que ele percebe ou os bairros da cidade e seus personagens aceshydem a uma visatildeo que compotildee atraveacutes deles perceptos desshyta vida deste momento fazendo estourar as percepccedilotildees vishyvidas numa espeacutecie de cubismo de simultanismo de luzcrua ou de crepuacutesculo de puacuterpura ou de azul que natildeo tecircm mais outro objeto nem sujeito senatildeo eles mesmos Chama-se de

-~~g2h12~~-~--g_ia~ltm~i ~~~-~-~~~-~~~~pa~~-d~-~2i~~ii9i~otilde ~~~~ Trata-se sempre de hberar a vida laacute onde ela eacute piishysiacuteoneira ou de tentar fazecirc-lo num combate incerto A morshyte do porco-espinho em Lawrence a morte da toupeira em Kafka satildeo atos de romancista quase insuportaacuteveis ~Qr___ vezes eacute preciso deitar na terra como faz o pintor Qara lo-

1~-middotbull--middot bull~~-~-middot-~middot-gt ~bull _ ~ middotmiddot - ~ - middot-~- _ _middotmiddot -middotmiddot~ -- bullbullmiddotmiddot ) middotbullmiddot middot --middot - middotbull - _)~ c _bull __~-----~middot middot ~

~-~~-1~~~a~~lt~--l2~Y2~middot~~~2=~=~J~-~fSltP~ Os perceptos podem ser telescoacutepicos ou microscoacutepicos datildeo aos personagens e agraves paisagens dimensotildees de gigantes como se estivessem repleshytos de uma vida agrave qual nenhuma percepccedilatildeo vivida pode atinshygir Grandeza de Balzac Pouco importa que esses personashygens sejam mediacuteocres ou natildeo eles se tornam giga~tes como Bouvard e Peacutecuchet Bloom e Molly Mercier e Camier sem deixar de ser o que satildeo Eacute por forccedila da mediocridade mes mQde_besteira oU-deinfacircmia_quepndemtrunar~se-natildeo-Sim- ple_tii~JordfisectJgt~~imples) mas gigantesco~Mesmo os anotildees

1

ou os invaacutelidos podem fazecirc-lo toda fabulaccedilatildeo eacute f~~~ ~e gigantesect~ Mediacuteocres ou grandiosos satildeo cellla~iadaflenshy~~_ylyos J2_ar_~-~E~I viviacuteveis ou vividos Thomas W olfe exshytrai de seu pai um gigante e Miller da cidade um planeta negro Wolfe pode descrever os homens do velho Catawha atraveacutes de suas opiniotildees imbecis e sua mania de discussatildeo o que faz eacute erigir o monumento secreto de sua solidatildeo de seu deserto de sua terra eterna e de suas vidas esquecidas despercebidas Faulkner pode criartambeacutem oh homens de Yoknapatawpha Diz-se que o romancista monumental se inspira ele mesmo no vivido e eacute verdade M de Charlus parece muito com Montesquiou mas entre Montesquiou e M de Charlus no final das contas haacute aproximadamente a mesma relaccedilatildeo que entre o catildeo-animal que late e o Catildeo consshytelaccedilatildeo celeste

Como tornar um momento do mundo duraacutevel ou fazecircshylo exititp~r--s-11Virginiwacircotildelfecirclaacute ~~--~~p-~t~q-~~-~i~ patilderacircmiddot a-pIacutenturamiddotOtilde~---ffiliacutesiacutecaiatildeiacuteito quanto para a escrita Sashy

turar cada aacutetomo Eliminar tudlt_lt_9~t eacute rt_~_QE_Qft~ ~middot- -middot

superfluidade~ tudo o que gruda em nossas percep__sotilde~-~-Elt___q

refffes-e-vivecirclas tuClOtilde_Otilde_q_~middot~middot --li~~~t~- otilde~9iii~itordf-P~fliacuteQ_

~~~~_ltfi~~t~~~Eacute~~~E~~sJotilde~i~~~~~~-ordf~-~~~p~r~~P-~ J~s~L ILQ~2IerlQ_Q~ b~iii9Jos_iatos_osoacuterdida~ma~-~I~~ em transparecircncia Colocar aiacute tudo e contudo saturar9

POtilde~t~tiacutengidoo-percepto como a fonte sagrada por ter visto a Vida no vivente ou o Vivente no vivido o romancisshyta ou o pintor voltam com olhos vermelhos e o focirclego curshy

8 No capiacutetulo II das Deux Sources Bergson analisa a fabulaccedilatildeo coshymo uma faculdade visionaacuteria muito diferente da imaginaccedilatildeo que consisshyte em criar deuses e gigantes potecircncias semi-pessoais ou presenccedilas efishycazes Ela se exerce inicialmente nas religiotildees mas desenvolve-se livreshymente na arte e na literatura

9 Virgiacutenia Woolf Journal dun eacutecrivain Ed 10-18 I p 230

222 11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 223

-~

to Satilde~ atletas natildeo atletas que teriam formado bem seus corpos e cultivado o vivido embora muitos escritores natildeo tenham resistido a ver nos _esportes urn meio de aumentar a arte e a vida mas antes atletas bizarros do tipo campeatildeo de jejum ou grande Nadador que natildeo sabia nadar Um Atletismo que natildeo eacute orgacircnico ou muscular mas um atleshy

-tismo afetivo que seria o duplo inorgacircnico do outro um atletismo do devir que revela somente forccedilas que natildeo satildeo as suas espectro plaacutestico 10 Desse ponto de vista os artisshytas satildeo como os filoacutesofos tecircm fregueJ-temente uma saudeshyziacutenha fraacutegil mas natildeo por causa de suas doenccedilas nem de suas neuroses eacute porque eleSViraacutem na_ida atildefgQCfe grande ccedill_ccedil_mais paratildeqliatildefquer um de grande demais para eles e gue QOcircs ndes ~atildedlscreta datildelliuumlrttamp1atildes-~~Jilt2ecirc~mbeacutem a fonte ~o fOcirclego q~llL~YiYJr_atraYi~~49s~clQ~l~ do_civishyflo (o 9~~~~E-~~P--ordf~~Q~-sauacutede) U~ dia saberemos talvez que natildeo havia art~ m~soacuteru~nte_~duumlina 1I

-------c5-[~ct-~iacutetapaa menos ~s afecccedilotildees que o pershycepto as percepccedilotildees Q afecto natildeo eacute a gassagltle um esshytado vivido a um outro mas o deviccedilnatildeqJ~_lJID-ordf9~QO homem __~~~--amp-- -middot---ltC-~=-----lt10-

Ahab natildeo imita Moby Dick e Pentesileacuteia natildeo se comporta como a cadela natildeo eacute uma imitaccedilatildeo uma simpatia vivida nem mesmo uma identificaccedilatildeo imaginaacuteria Natildeo eacute a semelhanshyccedila embora haja semelhanccedila Mas justamente eacute apenas uma semelhanccedila produzida Eacute antes uma extrema contiguumlidade num enlaccedilamento entre duas sensaccedilotildees sem semelhanccedila ou ao contraacuterio no distanciamento de uma luz que capta as duas num mesmo reflexo Andreacute Dhocirctel soube colocar seus pershy

10 Artaud Le theacuteacirctre et son double (Oeuvres completesGallimard IV p 154)

middot 11 Le Cleacutezio HAI Ed Flammarion p -7 (sou um iacutendio emboshyra natildeo saiba cultivar o milho nem talhar uma piroga ) Num texto ceacuteleshybre Michaux falava da sauacutedemiddotproacutepria agrave arte posfaacutecio a Mes proprieacuteshyteacutes La nuit remmue Gallimard p 193

li Filosofia Ciecircilcia Loacutegica e Arte

sonagens em estranhos devires-vegetais tornar-se aacutervore ou tornar-seaacutester natildeo eacute diz ele que um se transforme no outro

ma~~~~a--~um12 outro12 ~~~-~-lgg__ecirceacuteP~e ~~EN~shy

~2IDQ~~l)~sect~Sl9middot Eacute uma zona de indeterminaccedilatildeo de indiscerniacutebilidade como se coisas animais e pessoas (Ahab e Moby Dick Pentesileacuteia e a cadela) tivessem atingido em cada caso este ponto (todavia no infinito) que precede imeshydiatamente sua diferenciaccedilatildeo natural~gQ_JtlJccedil~Jgt~ ccedilhordfmallW---shy

~2-_f~g9_Em Pierre ou les ambiguiteacutes Pierre ganha a zona em que ele natildeo pode mais distinguir-se middotde sua meia-irmatilde Isabelle e torna-se mulher Soacute a vida cria tais zonas em que turbishylhonam os vivos e soacute a arte pode atingi-la e penetraacute-la em sua empresa de co-criaccedilatildeo Eacute que a proacutepria arte vive dessas ( zonas de indeterminaccedilatildeo quando o material entra na sen- - ~

Q) ssaccedilatildeo como numa escultura de Rodin Satildeo blocos A pintu- ri ra precisa d~ uma coisa diferente da habilidade do desenhista f f que marcana a semelhanccedila entre formas humanas e animais ( sect_

e nos faria assistir agrave sua metamorfose ~Jf_ccedilisQJ ~ordfltU~QltaacuteAt5 lltf __-9_~0_lot~_Ei~~EE f~pk~~~ d~-~~~ElaEf ~ de imp_r _a ex~~~~Uuml~~sielm-~~t~J-zonordfdlli1agravelEnios_e_sabeshy

-ffiili~CJllem eacute bulluuumlctrtaJ__~--flYoCcedilJJL~bumordfnordm_pruqw ordflg~Lsect_~J~ vanta como o triunfo ou o __~ony~nro_desuaindjsect~jnccediljig ~ssiacutenmiddot-cotildeyatilde-ou mesino Daumier Redon Eacute preciso que o artista crie os procedimentos e materiais sintaacuteticos ou plaacutesshyticos necessaacuterios a uma empresa tatildeo grande que recria por toda a parte os pacircntanos primitivos da vida (a utilizaccedilatildeo da aacutegua-forte e da aguatinta por Goya) O afecto natildeo opera cershytamente um retorno agraves origens como se se reencontrasse em termos de semelhanccedila a persistecircncia de um homem bestial ou primitivo sob o civilizado Eacute nos meios temperados de nossa civilizaccedilatildeo que agem e prosperam atualmente as zonas equatoriais ou glaciais que se furtam agrave diferenciaccedilatildeo dos gecircshy

12 Andreacute Dhocirctel Terres de meacutemoire Ed Universitaires p 225-226

Percepto Afecto e Conceito 225 224

neros dos sexos das ordens e dos reinos Soacute se trata de noacutes aqui e agora mas o que eacute animal em noacutes vegetal mineral ou humano natildeo mais eacute distinto- embora noacutes noacutes ganheshymos aiacute singularmente em distinccedilatildeo O maacuteximo de determishynaccedilatildeo emerge como _um claratildeo deste bloco de vizinhanccedila

Precisamente porque as opiniotildees satildeo funccedilotildees do vivishydo elas aspiram a um certo conhecimento das afecccedilotildees As opiniotildees insistem nas paixotildees do homem e sua eternidade Mas como observava Bergson temos a impressatildeo de que a oacute opiniatildeo desconhece os estados afetivos eque ela agrupa ou separa os que natildeo deveriam ser agrupados ou separados13 Jt Natildeo basta sequer como faz a psicanaacutelise dar objetos proishybidos agraves afecccedilotildees repertoriadas nem substituir as zonas de t indeterminaccedilatildeo por simples ambivalecircncias Um grande roshy ~

mancista eacute antes de tudo um artista que inventa afectos natildeo conheciacuteoosotildeu desconiiacuteecld(s e --os fazvir agrave luz do dia como- ------- ---------middot---- -------------middot-shy0 devir de seus personagens os estados crepusculares dos

- ~~-lei~~~os middotmiddotc-~middotaneacute~cr~middot-chreacutetien de Troyes (em relaccedilatildeo lI

com um conceito eventual de cavalaria) os estados de reshy 11

pouso quase catatocircnicos que se confundem com o dever segundo Mme de Lafayette (em relaccedilatildeo com um conceito de l

li quietismo) ateacute os estados de Beckett como afectos tanto I

imais grmdiosos quanto satildeo pobres em afecccedilotildees Quando I

Zola sugere a seus leitores prestem atenccedilatildeo natildeo eacute remorshyso que meus personagens sentem natildeo devemos mais ver nisso a expressatildeo de uma tese fisiologista mas a atribuiccedilatildeo de novos afectosque crescem com a criaccedilatildeo de personagens no naturalismo o Mediacuteocre o Perverso o Animal (o que Zola chama de instinto natildeo se separ~ de um devir-animal) Quando Emily Bronte traccedila o liame que_ une Heathcliff e Catherine ela inventa um afeto-violento (que sobretudo natildeo

13 Bergson La penseacutee et e mouvant Ed du Centenaire p 1293shy1294

226 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

v f ~~

c~l~f r1gt(1~~1- 7 (jJ-7JV middot ~

JV-10-shy

deve ser confundido com o amor algQ co~o uma fraternishydade entre dois lobos QuandoP~Oacute~t middot fece descrever tatildeo minuciosamente o ciuacuteme inventatilde-tt middot~fect~porque natildeo deishyxa de inverter a ordem que a opiniab--amptipOtildee nas afecccedilotildees segundo a qual o ciuacuteme seria uma consequecircncia infeliz do amor para ele ao contraacuterio o ciuacuteme eacute finalidade destinaccedilatildeo

e~reC1Suuml~~~CecircJ~~--j)uuml~J~-s~~E~I~~~~~sect~~~~~~~sectmiddotmiddotccedil_sect~e o s~nti9~-~2-~ig~~C2~~-to _ltlt_~_- ~~IP~2cgia _ Q~ando CL1ude Simon descreve o prodigjoso amor passivo da mushylher-terra esculpe um afecto de barro e pode dizer eacute mishynha matildee e acreditamos jaacute que ele diz mas uma matildeemiddotque ele introduz na sensaccedilatildeo e agrave qual ergue um monumento tatildeo original que natildeo eacute mais com seu filho real que ela tem uma relaccedilatildeo mas mais longinquamente com um outro personashygem de criaccedilatildeo a Eula de Faulkner Eacute assim que de um esshy

critor ~ um outro o~_gr~_de~-~f5S9LltJi~~ltim~~-P9si~L~-~ encademiddotar ouder~ampS~illCcedilQlJLlt~tQ~~~~~~-~~~i_es ~~~~~~~ fotildermaacutem vibram se e_nl~_s~_m QllJ~J~nccedil~P= sectiip-estesseres---~ acirceseUumls~CcedilatildeO(~datilde~~ta~da--relaccedilatildeodo_artistuQmo puacuteshy

b)i~~A~ltLasordf~--~~)f~-middot~l~~Jnmiddot-ordf~ul~ JJJJmesmQordf-Uacute~t~-~ll~~~s- _f 14 4

~~g~~ Rllt ~Y~l)tuaJ~Jilll4-sfccedillt ~~E~-~~-~--~nJr~gtI bull O artts- [k ta acrescenta sempre novas variedades ao mundo Os seres dordfsectJ~nsaccedilordf-ordmmiddotmiddotmiddot~ordfQvariltdades~ccedil_omoos~streampdecouccitossacirc~~ var~~ccedil2~~~~Q~~sectSf~~-deJu~_ccedilo _ ~ordfmiddot~-Y~~~i~y~js

Eacute de toda a arte que seria preciso dizer o artista eacute m__Qsect_ tracQId~-ordffeltos inventor de afec~~~E-tlt~oLde_ ordf-f~~ccedilJgsect~m middotICcedilatildeotilde com ~tp~~~E~~~~~-i~-~isOtildeEi~CcedilLU~QQsectgaacute Natildeo eacute soshymeilteeffisuacbraacute que ele os cria ele os daacute para noacutes e nos faz transformarnos com eles ele nos apanha no composto Os girassoacuteis de Van Gogh satildeo devires como os cardos de

14 Estas trecircs questotildees retornam frequentemente em Proust notadashymente Le temps retrouveacute La Pleacuteiade 111 p 895-896 (sobre a vida a vishysatildeo e a arte como criaccedilatildeo de universo)

Percepto Afecto e Conceito 227

Duumlrermiddot ou as mimosas de Bonnard Redon intitulava uma litografia Houve talvez uma visatildeo primeira ensaiada na flor A flor vecirc Puro e simples terror Vecirc vocecirc este girasshysol que olha para dentro pela janela do quarto Ele olha meu quarto todo o dia 15 Uma histoacuteria floral da pintura eacute como a criaccedilatildeo incessantemente retomada e continuada dos afecshytos e dos perceptos das flores A arte eacute a linguagem das senshysaccedilotildees que faz entrar nas palmiddot~r-acircsmiddotmiddotiacuteiatildes cOtilde~~~~-~~middot~~ ilas pearamiddots-x-agraverieuumli(t~iiacute~QfuilJatilde~middotr~uuml ci~aagravez ~IacuteriacuteJlE~~

middotmiddotarmiddotga~lziCcedilatilde() middotordf~i~~~fsiPsj2~-~~~~JiSCcedilsectlr~UJini otildees _ltiuacute~ sll-h~- tiiui por um ill()~E~Etccedilgt_Ccedilg~JEP~lt de ~certo~-de~Jectccedils middote de blo_~~smiddot~~j~-~SCcedilsect~sect91~fltt~~Jl-ordf~-ieze_sdeJing)Jordfg~lmiddot

O escritor se serve de palavras mas criando urna sintaxe que as introduz na sensaccedilatildeo e que faz gaguejar a liacutengua correnshyte ou tremer ou gritar ou mesmo cantar eacute o estilo o tom a linguagem das sensaccedilotildees ou a liacutengua estrangeira na liacutengua a que solicita um povo por vir oh gente do velho Catawba oh gente de Yoknapatawpha O escritor torce a linguagem fj-la vibrar a~accedila-a fende-a para arrancar o percepto middotdas percepccedilotildees o afecto das afecccedilotildees a sensaccedilatildeo da opiniatildeo_ ~---shy_________ -shyvisando esperamos esse povo que ainda natildeo existe Mishynha memoacuteria natildeo eacute amor mas hostilidade e ela trabalha natildeo para reproduzir mas para descartar o passado Que queshyria dizer minha famiacutelia eu natildeo sei Ela era gaga de nascenshyccedila e contudo tinha algo para dizer Sobre mim e sobre muishy

tos de meus contemporacircneos pesa a gagueira de nascenccedila Aprendemos natildeo a falar mas a balbuciar e eacute soacute ouvindo o ruiacutedo crescente do seacuteculo e uma vez lavados pela espuma de sua onda mais alta que noacutes dquiijmos uma liacutengua 16

Precisamente eacute a tarefa de toda arte e -a pintura a muacutesica

15 Lowry Au-dessous du fOlcan Ed Buchet-Chastel p 203

16 Mandelstam Le bruit du temps Ed LAge dhomme p 77

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

natildeo arrancam menos 4as cores e dos sons acordes novosmiddot paisagens plaacutesticas ou ~eloacutedicas personagens riacutetmicos que os elevam ateacute o canto 1a terra e o grito dos homens- o que constitui o tom a sauacutede o devir um bloco visual e sonoro Um monumento natildeo comemora natildeo celebra algo que se passou mas transmit~ para o futuro as sensaccedilotildees persistenshytes que encarnam o a ntecimento o sofrimento sempre reshynovado dos homens eu protesto recriado sua luta sempre retomada Tudo seri vatildeo por ue o sofrimento LeteIlO_~ as revoluccedilotildees natildeo so revivem agrave sua vitoacuteria Mas o sucesso dmiddot~ uumlmarevotildeTuCcedilatildeos9-resid~ela me~~-precisamente nas vibraccedilotildees nos enlace~ nas aberturas que deu aos homens no ~--=----=-----1-o----------------~-middot momento em que se fazia e que compotildeem em si um monushy

middotm-eirto sempre em vir como esses tuacutemulos aos quais cada novo viajante acresagraventa uma pedra A vitoacuteria de uma revolushyccedilatildeo eacute imanente e consiste nos novos liames que instaura entre os homens mesmo se estes natildeo duram mais Q1Je sua mateacuteshy

r~ em fusatilde5_gt_j~~~--~Jiga_peng-ordfillYisectatildeQ_acirc traiccedilatildeo As figuras esteacuteticas (e o estilo que as cria) natildeo tecircm nada

a ver com a retoacuterica SiiQsect~Otildees 12erceptos~-~~~~shy~ordf~nserostnsrisotildees_e_d~yius_Mas natildeb eacute tambeacutem pelo devir que definimos o conceito filosoacutefico e quase nos mesmos tershymos Todavia as figUumlras esteacuteticas natildeo satildeo idecircnticas aos pershysonagens cmiddotonceituais Talvez entrem uns nos outros num ~entido ou no outro como Igitur ou como Zaratustra mas

eacute na medida em que -~~~~sect~s cJ~-~onceicto2_~S2-Seit~-~ q~ sccedilg~ordfccedilotildee_s Nao eacute o mesmo devir O devir sensiacutevel eacute o ato pelo qual algo ou algueacutem natildeo paacutera de deVir-outro (continuanshydo a ser o que eacute) girassol ou Ahab enquanto que o devir

~

conceitual eacute o ato pelo qual o acontecimento comum ele mesmo esquiva o que eacute Este eacute heterogeneidade compreenshydida numa forma absoluta aquele a alteridad~ empenhada numa mateacuteria de expressatildeo O monumento natildeo atualiza o acontecimento virtual mas o incorpora ou o encarna acirca--shy

middot--~--middot---- middot~----------~middot---middot-middot--middot~~--middotmiddot- ---middotmiddotmiddotmiddot

Percepto Afecto e Conceito 228 229

lhe um corpo uma vida um universo Eacute assim que Proust definia a arte-monumento por esta via SU_I)erior ao vivido suas diferenccedilas qualitativas seus universos que consshytroem seus proacuteprios limites seus distanciamentos e suas aproshyximaccedilotildees suas constelaccedilotildees os blocos de sensaccedilotildees que eles fazem rolar o universo-Rembrandt ou universo-Debussy Estes universos natildeo satildeo nem virtuais nem atuais satildeo possiacuteshyveis o possiacutevel como categoria esteacutetica (possiacutevel por favor senatildeo eu sufoco) a existecircncia do possiacutevel enquanto que os acontecimentos satildeo a realidade do virtual formas de um penshysamento-Natureza que sobrevoam todos os universos posshysiacuteveis Natildeo significa dizer que o conceito precede de direito a sensaccedilatildeo mesmo um conceito de sensaccedilatildeo deve ser criashydo com seus meios proacuteprios e uma sensaccedilatildeo existe em seu universo possiacutevel sem que o conceito exista necessariamente em sua forma absoluta

Pode a sensaccedilatildeo ser assimilada a uma opiniatildeo originaacuteshyria Urdoxa como fundaccedilatildeo do mundo ou base imutaacutevel A fenlt_~~~~ogiltl encontra a sensaccedilatildeo em a priori materiais shyperceptivos e afectivos que transcendem acircs per-cepCcedilOtildees ecirc afecshy

Ccedilotilde~~middot~iVfd-atilde$ middototildemiddot-aillatildere-iotildeecircleVail cuumlgKmiddotocirc~--~s -~ens~Ccedilotilde~s middot ~acirc-middotratildes de Ceianne A fenomenologia deve fazer-se fenomenoshylogia da arte jaacute vimos porque a imanecircncia do vivido a um sujeito transcendental precisa exprimir-se em funccedilotildees transshycendentes que natildeo determinam somente a experiecircncia em geral mas que atravessam aqui e agora o proacuteprio vivido e I se encarnam nele constituindo sensaccedilotildees vivas O ser da senshy I

I I middot

I saccedil-ordf9_ _Q__blQccedilQ d_d percepto ~=fo ~feccedil~Q ltPareceraacute ~ornomiddot middot middot I

_Unidade ou a reversibilidade daquele que s~t~ - ~ middotd~-~-e~d- I doseu1ntiffiuuml eacute~t~r~ccedilmiddota~ento c()~uuml matilde~~ middotq~~i-~~~_middot- bullI

1 middot-middotmiddoteacute-~a--~arne que vai se libertar ao mesmo tempmiddoto do corpo vivishydo do mundo percebido e da intencionalidade de um ao outro ainda muito ligada agrave experiecircncia - enquanto a carshyne nos daacute o ser da sensaccedilatildeo e carrega a opiniatildeo originaacuteria

230 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

distinta do juiacutezo de experiecircncia Carne do mundo e carne do corpo como correlatos que se trocam coincidecircncia ideaF7

Eacute um curioso Carnismo que inspira este uacuteltimo avatar da fenomenologia e a precipita no misteacuterio da encarnaccedilatildeo eacute uma noccedilatildeo piedosa e sensual ao mesmo tempo uma misshytura de sensualidade e de religiatildeo sem a qual a carne talshymiddotvez natildeo ficaria de peacute sozinha (ela desceria ao longo dos ossos como nas figuras de Bacon) A questatildeo de saber se a carne eacute adequada agrave arte pode se enunciar assim eacute ela capaz de carshyregar o percepto e o afecto de constituir o ser de sensaccedilatildeo ou entatildeo eacute ela mesma que deve ser carregada e ingressar em outras potecircncias de vida

A carne natildeo eacute a sensaccedilatildeo mesmo se ela participa de sua middot revelaccedilatildeo Era precipitado dizer que a sensaccedilatildeo encarna A pintura faz a carne ora com o encarnado (superposiccedilotildees do vermelho e do branco) ora com tons justapostos (jUstaposhysiccedilatildeo de complementares em proporccedilotildees desiguais) Mas o que constitui a sensaccedilatildeo eacute o devir-animal vegetal etc que monta sob as praias de encarnado no nu mais gracioso mais delicado corria a presenccedila de um animal descarnado de um fruto descascado Vecircnus no espelho ou que surge na fusatildeo no cozimento no derramar de tons justapostos como a zona

17 Desde a Pheacutenomeacutenologie de lexpeacuterience estheacutetique (PUF 1953) Mikel Dufrenne fazia uma espeacutecie de analiacutetica dos a priori perceptivos e afetivos que fundavam a sensaccedilatildeo como relaccedilatildeo do corpo e do mundo Permanecia proacuteximo de Erwin Straus Mas haacute um ser de sensaccedilatildeo que se manifestaria na carne Era middota via de Merleau-Ponty no Le visible et linshyvisible Dufrenne fazia muit~s r~ervas a uma tal ontologia da carne (Loeil et loreille Ed LHexagone) Recentemente Didier Franck retomou o tema de Merleau-Ponty mostrando a importacircncia decisiva da carne segundo Heidegger e jaacute Husserl (Heidegger et le probleme de [espace Chair et corps Ed de Minuit) Todo este problema estaacute no centro de umafenoshymenologia da arte Talvez o livro ainda ineacutedito de Foucault Les aveux de la chair nos informe sobre as origens mais gerais da noccedilatildeo de carne e seu alcance na Patriacutestica

Percepto Afecto e Conceito 231

de indiscernibilidade do animal e do homem Talvez fosse um embaralhamento ou um caos se natildeo houvesse um segunshydo elemento para dar consistecircncia agrave carne_ A carne eacute apeshynas o termocircmetro de um devir A carne eacute tenra demais O segundo elemento eacute menos o osso ou a ossatura que a casa

rltmiddotr a armadura O corpo desabrocha na casa (ou num equivashylente numa fonte num bosque) Ora o que define a casa

( I satildeo as extensotildees isto eacute os pedaccedilos de planos diversamente orientados que datildeo agrave carne sua armadura primeiro-plano e plano-de-fundo paredes horizontais verticais esquerda dishyreita retos e obliacutequos retiliacuteneos ou curvos 18 Essas extenshysotildees satildeo muros mas tambeacutem solos portas j arielas portasshyjanelas espelhos que datildeo precisamente agrave sensaccedilatildeo o poder de manter-se sozinha em molduras autocircnomas Satildeo as faces do bloco de sensaccedilatildeo E haacute certamente dois signos do gecircnio dos grandes pintores bem como de sua humildade o respeishyto quase um terror com o qual eles se aproximam da cor e entram nela o cuidado com o qual operam a junccedilatildeo dos

Imiddot planos da qual depende o tipo de profundidade Sem este respeito e este cuidado a pintura eacute nula sem trabagravelho sem pensamento O difiacutecil eacute juntar natildeo as matildeos mas os planos Fazer relevos com planos que se juntam ou ao contraacuterio escarificaacute-los cortaacute-los Os dois problemas a arquitetura dos planos e o regime da cor se confundem frequumlentemente A junccedilatildeo dos planos horizontais e verticais em Ceacutezanne os planos na cor os planos o lugar colorido ou a alma dos planos entra em fusatildeo ~~_grandes P~_esou mesmo duas grandes obras que operem da mesma ~~nei-

-----=~Haacute todavia tendecircncias num pintotilderem middotGiaco~ettipo-18

Como mostra Georges Didi-Huberman a-carne middot~~gendra uma i duacutevida ela eacute proacutexima demais do caos donde a necessidade de uma

complernentariedade entre o encarnado e a extensatildeo tema essencial de La peinture incarneacutee retomada e desenvolvida em Devant limage Ed de Minuit

232 II Filosofia Ciecircncia middotLOacutegica e Arte

exemplo os planos horizontais fugidios diferem agrave direita e middot agrave esquerda e parecem se reunir na coisa (a carne da pequeshyna maccedilatilde) mas como uma pinccedila que a puxaria para traacutes e a faria desaparecer se uni plano vertical do qual soacute se vecirc o fio sem espessura natildeo viesse fixaacute-la retecirc-la no uacuteltimo moshymento dar-lhe uma existecircncia duraacutevel agrave maneira de um longo alfinete que a atravessa e a tornafiliforme por sua vez A casa participa de todo um devir Ela eacute vida ~vida natildeo

orgacircnica das coisas De todos 9s modos possiacute~sect~a_ LYD~-~ ccedilatildeo do~_planos~e mitorientaccedilOtildees que define t_casa-sens~-~-~---~ ccedilatildeo Aiacute~asa mesma (o_u-middotseu equivalente) eacute a junccedilatilde9T~itaii~------planos cQlruicles____

middot middot-middot--~rceiro elemento eacute o universo o qgtsmos Natildeo eacute soshymentea-Catildesatildeabeitaque secirc-cotildelliiriic co~ ~ p~i~agem por ~ffiatilde )atildeiieratilde- middoto-tr-uumlm espeino iiiatildes--atildemiddot-~8middot-middot~middotas~fe~~~~ ~~atilde__ atilde5e~t~-sotildebreuumlmuiiiacutevecircrsomiddot middotx- middotcamiddotsacirc-eacutefe viuuml~ecirct s~ vecirc sempre ~~pi~dmiddot -p-~i~~ fccedil~~- ~egetais de um jardim incontrolaacutevel cosmo das rosas Um universo-cosmos natildeo eacute carne Nem mesmo plano pedaccedilos de planos que se juntam planos dishyversamente orientados embora a junCcedilatildeo de todos os planos ateacute o infinito possa constituiacute-lo Mas o universo se apresenshyta no limite como o fundo da tela o uacutenico grande plano o vazio colorido o infinito monocromaacutetico A porta-janela como em Matisse soacute se abre sobre um fundo negro A carne ou antes a figura natildeo mais eacute o habitante do lugar da casa mas o habitante de um universo que suporta a casa (devir) Eacute como uma passagem do finito ao infinito mas tambeacutem do territoacuterio agrave desterritorializaccedilatildeo Eacute bem o momento do infishynito infinitos infinitamente variados Em Van Gogh em Gauguin em Bacon hoje vemos surgir a imediata tensatildeo da carne e do fundo dos derrames de tons justapostos e da praia

I

infinita de uma pura cor homogecircnea viva e saturada (em lugar de pintar a parede banal do mesquinho apartamento eu pinto o infinito faccedilo um fundo simples do azul mais rico

233Percepto Afecto e Conceito

mais intenso ) 19 Eacute verdade que o fundo monocromaacutetico

eacute mais do que um fundo E quando a pintura quer comeccedilar do zero construindo o percepto como um miacutenimo antes do vazio ou aproximando ao maacuteximo do conceito ela proceshy~e por monocromia liberada de toda casa ou de toda carne E notadamente o azul que se encarrega do infinito e qu~ faz do percepto uma sensibilidade coacutesmica ou o que haacute de mais conceitual na natureza ou de mais proposicional a cor na ausecircncia do homem o homem mergulhado na cor mas se o azul (ou o negro ou o branco) eacute perfeitamente idecircnshytico no quadro ou de um quadro a outro eacute a pintura que se torna azul- Yves o monocromo- segundo um puro afecto que faz o universo mergulhar no vazio e natildeo deixa mais nada por fazer ao pintor por excelecircncia20_

O vazio colorido ou antes colorante jaacute eacute forccedila A maior parte dos grandes monocromos da pintura moderna natildeo mais tecircm necessidade de recorrer a pequenos buquecircs murais mas apresentam variaccedilotildees sutis imperceptiacuteveis (todavia constishytutivas de um percepto) seja porque satildeo cortados ou conshy

19 Van Gogh carta a Theacuteo Correspondance complete Gallimardshy

Grasset III p 165 Os tons justapostos e sua relaccedilatildeo com o fundo satildeo um tema frequumlente da correspondecircncia Tambeacutem Gauguin carta a Schuffeshynecker 8 de outubro de 1888 Lettres Ed Grasset p 140 Eu fiz urn retra to de mim para Vincent Eacute acredito eu uma das minhas melhores coisas absolutamente incompreensiacutevel (por exemplo) de tal maneira eacute abstra~o o seu d~senho eacute inteiramente arbitraacuterio abstraccedilatildeo cornpl~ta a c~r ~uma co~ d1sta1te da natureza imagine uma vaga lembranccedila de ceram1ca retor~rda pelo fogo forte Todos os vermelhos os violetas rajashydas pelos claroes de fogo como uma fornalha radiante aos olhos sede das lutas do pensamento do pintor O todo sobre um fundo cromo seshymeado de buquecircs infantis Quarto de moccedila pura Eaacute ideacuteia do coloriacutesta arbitraacuterio segundo Van Gogh

~~ Cf Artst~dio no 16 Monochromes (sobre Klein artigos de Genev1eve Monmer e de Denys Riout e sobre os avatares atuais do monocromo artigo de Pierre Sterckx)

234 IL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tornados de um lado por uma fita um faixa uma extensatildeo de uma outra cor ou de um outro tom que mudam a intenshysidade do fundo por vizinhanccedila ou distanciamento seja porshyque apresentam figuras lineares ou circulares quase virtuais tom sobre torit seja porque satildeo esburacados ou fendidos satildeo problemas de junccedilatildeo ainda mas singularmente ampliados

Numa palavra o fundo vibra se enlaccedila ou se fende poque eacute portador de forccedilas apenas vislumbradas E o q~e fazia de iniacutecio a pintura abstrata convocar asforccedilas povoar o funshydo com as forccedilas que ele abriga fazer ver nelas mesmas as forshyccedilas invisiacuteveis traccedilar figuras de aparecircncia geomeacutetrica mas que natildeo seriam mais do que forccedilas forccedila de gravitaccedilatildeo de peso de rotaccedilatildeo de turbilhatildeo de explosatildeo de expansatildeo de gershyminaccedilatildeo forccedila do tempo (como se pode dizer da muacutesica que ela faz ouvir a forccedila sonora do tempo por exemplo com Messhysiaen ou da literatura com Proust que faz ler e conceber a forccedilaacute ilegiacutevel do tempo) Natildeo eacute esta a definiccedilatildeo do percepto em pessoa tornar sensiacuteveis as forccedilas insensiacuteveis que povoam o mundo e que nos afetam nos faze~ devir O que Mondrian obteacutem por simples diferenccedilas entre lados de um quadrado e Kandinsky pelas tensotildees lineares e Kupka pelos planos curvos em torno do ponto Do fundodas eras nos vem o que Worringer chamava a linha setentrional abstrata e infinita linha do uacuteniverso que forma fitas e tiras rodas e turbinas toda uma geometria viva elevando agrave intuiccedilatildeo as forccedilas mecacircshynicas constituindo uma poderosa vida natildeo-orgacircnica21

O eterno objeto da pintura pintar as forccedilas como Tintoretto

Encontraremos tambeacutem talvez a casa e o corpo E que o fundo infinito eacute frequumlentemente aquilo sobre o que se abre a janela ou a porta ou entatildeo eacute o muro da proacutepria casa ou o solo Van Gogh e Gauguin semeiam o fundo de pequenos buquecircs de flores para fazer deles o papel mural

21 Worringer Lart gothique Gallimard

Percepto Afecto e Conceito 235

sobre o qual se destaca o rosto de tons justapostos E com efeito a casa natildeo nos abriga das forccedilas coacutesmicas no maacutexishymo ela as filtra elas as seleciona Ela as transforma algushymas vezes em forccedilas benevolentes jamais a pintuacutera fez ver a forccedila de Arquimedes a forccedila do empuxltgt da aacutegua sobre um corpo gracioso que flutua na banheira da casa como Bonnard conseguiu em o Nuacute no banho Mas tambeacutem as forccedilas mais maleacuteficas podem entrar pela porta entreabershyta ou fechada satildeo as forccedilas coacutesmicas que provocam elas mesmas as zonas de indiscernibilidade nos_tons justapostos de um rosto esbofeteando-o arranhando-o fundindo-o em todos os sentidos e satildeo estas zonas de indiscernibilidade que revelam as forccedilas escondidas no fundo (Bacon) Haacute plena complementariedade enlace de forccedilas como perceptos e de devires como afectos A linha de forccedila abstrata segundo ~orringer eacute rica em motivos animalescos Agraves forccedilas coacutesshymicas ou cosmogeneacuteticas correspondem devires-aniinais veshy

geta1s moleculares ateacute que o corpo desapareccedila no fundo ou entre no muro ou inversamente que o fundo se contorshyccedila e turbilhone na zona de indiscernibilidade d~ corpo~ Numa palavra o ser de sensaccedilatildeo natildeo eacute a carne mas o comshyposto das forccedilas natildeo-humanas do cosmos dos devires natildeo humanos do homem e da casa ambiacutegua que os troccedila e os ajusta os faz turbilhonar como os ventos A carne eacute somenshyte o revelador que desaparece no que revela o composto de sensaccedilotildees Como toda pintura a pintura abstrata eacute senshysaccedilatildeo nada mais que sensaccedilatildeo Em Mondrian eacute o quarto que acede ao ser de sensaccedilatildeo dividindo por extensotildees coshyloridas o plano vazio infinito que lhe daacute de volta um infishy

d b 22 mto e a ertura Em Kandinsky as casa~ satildeo uma das

22 Mondrian Reacutealiteacute naturelle et reacutealiteacute abstraite (in Seuphor Piet

Mondnan sa vie son oeuvre Ed Flammarion) sobre o quarto e seu desdobramento Michel Butor analisou este desdobramento do quarto em

236 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

fontes da abstraccedilatildeo que consiste menos em figuras geomeacuteshytricas que em trajetos dinacircmicos e linhas de erracircncia cashyminhos que caminham nos arredores Em Kupka eacute de iniacuteshycio sobre o corpo que o pintor talha fitas ou extensotildees coshyloridas que produziratildeo no vazio os planos curos que o povoam tornando-se sensaccedilotildees cosmogeneacuteticas__ ~--~--~~~~

ccedilatildeoe~_pi_rjtual ou j~ um _~Ol~-~-i_g_viSgt= O _q~-~~t-~ lt1 ~~-~~- uacuten1verso A ~r~~ - aJs~rata_~ s~P25 a ~rte _C()flC~I~~~_Elt~~~-- middot-Pmiddot cacirc~dTmiddot~tamente a questatildeo que impregna toda pintura ---- --middot-shys~~ - ~-eiacute~Ccedilatilde-uumlcocircffi o ~~~~~ito~sti-a relaccedilatildeo com a funccedilatildeo middot_

A arte comeccedila talv-ez--com o animal ao menos com o animal que recorta um territoacuterio e faz uma casa (os dois satildeo correlativos ou ateacute mesmo se confundem por vezes no que se chama de habitat) Com o sistema territoacuterio-casa muitas funccedilotildees orgacircnicas se transformam sexualidade procriaccedilatildeo agressiyidade alimentaccedilatildeo mas natildeo eacute esta transformaccedilatildeo que explica a apariccedilatildeo do territoacuterio e da casa seria antes o

inverso o territoacuterio impli~a na emergecirc~lti~ e 91-ali_cll~~-~sel~ siacuteveis pu~- ~~-ibiIacuteia qua~ixacirciiacuteiacute -de ser unicaii1~_Ilt_e ushyecirc(ocircOtildeagraveisecirc cse- ioacuternani-tragraveCcediluumlsmiddotae express~Otilde__ tormiddotn~~~~J~~s~V~l tiffiagravetiansfocirciinaCcedilatildeo (G$iacute~i1Ccedilotildees23 s~ni duacutevida esta expresshysivlamp1deTaacuteestacirc dltu~ch~E~~~middot Vida~ pode-se dizer que o simshyples liacuterio dos campos celebra a gloacuteria dos ceacuteus Mas eacute com o territoacuterio e a casa que ela se torna construtiva e ergue os monumentos rituais de uma missa animal que celebra as quashylidades antes de tirar delas novas causalidades e finalidades Esta emergecircncia jaacute eacute arte natildeo somente no tratamento dos materiais exteriores mas nas posturas e cores do corpo nos

quadrados ou retacircngulos e a abertura sobre um quadrado interior vazio e branco como promessa de quarto futuro Reacutepertoire III Le carreacute et son habitant Ed de Minuit p 307-309314-315

23 Parece-nos que eacute um engano de Lorenz querer explicar o terrishytoacuterio por uma evoluccedilatildeo das funccedilotildees L agression Ed Flammarion

Percepto Afecto e Conceito 237

cantos e nos gritos que marcam o territoacuterio Eacute um jorro de traccedilos de~-~2E~~- e de sons inseparaacuteveisna dtecTda em que s~ -~riill _ ~xpr~~isiV_9_~ ~-(~i~~~i-~ill~~9l0_~_4~ middotr~ritoacute~i~fCcedil Scenopoietes dentirostris paacutessaro das florestas chuvosas da Austraacutelia faz cair da aacutervore as folhas que corta cada manhatilde vira-as para que sua face interna mais paacutelida contraste com a terra constroacutei para si assim uma cena co_mo um readyshymade e canta exatamente em cima sobre um cipoacute ou-um galho um canto complexo composto de suas proacuteprias noshytas e das de outros paacutessaros que imita nos intervalos mosshytrando a raiacutez amarela das plumas sob seubico eacute um artista completo24

bull Natildeo satildeo as sinestesias em plena carne satildeo esshytes blocos de sensaccedilotildees no territoacuterio cores posturas e sons que esboccedilam uma obra de arte total Estes blocos satildeo rishytorneios mas haacute tambeacutem ritornelos posturais e de cores e tanto posturas quanto cores se introduzem sempre nos ritor~ nelas Reverecircncias e posiccedilotildees eretas rondas traccedilos de coshyres O ritornelo inteiro eacute o ser de sensaccedilatildeo Os monumenshytos satildeo ritornelos Desse ponto de vista a arte natildeo deixaraacute de ser habitada pelo animal A arte deKafka seraacute a mais prbshy

funda meditaccedilatildeo sobre o territoacuterio e a casa o terreiro as pos~ turas~retrato (a cabeccedila pendida do habitante com o queixo enterrado no peito ou ao contraacuterio o grande tiacutemido que fura o teto com seu cracircnio anguloso) os sons-muacutesica (os catildees que satildeo muacutesicos por suas proacuteprias posturas Josephine a ratinha cantora da qual ja~ais saberemos se canta Gregoire que une seu piadoao violino de sua irmatilde numa relaccedilatildeo comshyplexa quarto-casa~territoacuterio) Eis tudo o que eacute preciso para fazer arte uma casa posturas cores e cantos - sob a conshy ~

I diccedilatildeo de que tudo isso se abra e se lance sobre ummiddotvetor louco como uma vassoura de bruxa uma linha d~ universo ou de

24 Marshall Bowler Birds Oxford at the Clarendon Press Gilliord Birds of Paradise and Bowler Birds Weidenfeld

desterritorializaccedilatildeoPerspectiva de um quarto com seus hashybitantes (Klee )

Cada territoacuterio cada habitat junt a seus planos ou suas extensotildees natildeo apenas espaccedilo-temporais mas qualitativos por exemplo uma postura e um canto um canto e urna cor perceptos e afectos E cada territoacuterio engloba ou recorta ter~ ritoacuterios de outras espeacutecies ou intercepta trajetos de animais sem territoacuterio formando junccedilotildees inUacuterespeciacuteficltlS Eacute neste sentido que Uexkuumlhl num primeiro aspecto desenvolve urna concepccedilatildeo da Natureza meloacutedica polifocircnica contrapontual Natildeo apenas o canto de um paacutessaro tem suas relaccedilotildees de conshytraponto mas pode fazer contraponto com o canto de oushytras espeacutecies e pode ele mesmo imitar estes outros cantos como se se tratasse de ocupar um maacuteximo de frequumlecircnciacuteas A teia de aranha conteacutem um retrato muito sutil da mosca que lhe serve de contraponto A concha como casa do moshylusco~ se torna quando ele morre o contraponto do Bershynardo-eremita que faz dela seu proacuteprio habitat graccedilas a sua cauda que natildeo eacute nadadeira mas preecircnsil e lhe permite capshyturar a concha vazia O Carrapato eacute organicamente consshytruiacutedo de modo a encontrar seu contraponto no mamiacutefero qualquer que passa sob seu galho como as folhas de carvashylho arranjadas como telhas nas gotas de chuva que escorshyrem Natildeo eacute uma concepccedilatildeo finalista mas meloacutedica em que natildeo mais sabemos o que eacute arte ou natureza (a teacutecnica nashytural) haacute contraponto toda vez que uma melodia interveacutem como motivo numa outra melodia como nas bodas enshytre a mamangava e a boca-de-leatildeo Essas relaccedilotildees de contrashyponto juntam planos formam compostos de sensaccedilotildees bloshycos e determinam devires Mas natildeo satildeo somente estes comshypostos meloacutedicos determinados que constituem a natureza mesmo generalizados eacute preciso tambeacutem sob um outro asshypecto um plano de composiccedilatildeo sinfocircnica infinio da Casa ao universo Da endo-sensaccedilatildeo agrave exo-sensaccedilatildeo E que o tershy

bull 238 li Filosofia Ciecircnci~ Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 239

r I I I-- --- --

~ -

middot1

ritoacuterio natildeo se limita a isolar e juntar ele abre para forccedilas coacutesmicas que sobem de dentro ou que vecircm de fora e torna sensiacuteveis seu efeito sobre o habitante Eacute um plano de comshyposiccedilatildeo do carvalho que porta ou comporta a forCcedila de deshysenvolvimento da bolota e a forccedila de formaccedilatildeo das gotas ou o do carrapato que tem a forccedila da luz capaz de atrair o animal ateacute a ponta de um galho numa altura suficiente e a forccedila de peso com a qual se deixa cair sobre o mamiacutefero que passa -e entre os dois nada um vazio assustador que pode durar anos se o mamiacutefero natildeo passa25bull E ora as forccedilas se fundem umas nas outras em transiccedilotildees sutis decompotildeemshyse tatildeo logo vislumbradas ora se alternam ou se enfrentam Ora deixam-se selecionar pelo territoacuterio e satildeo as mais beshynevolentes que entram na casa Ora lanccedilam um apelo misshyterioso que arranca o habitante do territoacuterio e o precipita numa viagem irresistiacutevel como os pintassilgos que se reuacuteshynem frequentemente aos milhotildees ou as lagostas que empreshyendem uma imensa peregrinaccedilatildeo no fundo da aacutegua Ora se abatem sobre o territoacuterio e o invertem malevolentes restaushyrando o caos de onde ele mal saiacutea Mas sempre se a nature za eacute como a arte eacute porque ela conjuga de todas as maneiras esses dois elementos vivos a Casa e o Universo o Heimlich e o Unheimlich o territoacuterio e a desterritorializaccedilatildeo os comshypostos meloacutedicos finitos e o grande plano de composiccedilatildeo infinito o pequeno e o grande ritornelo

A arte comeccedila natildeo com a carne mas com a casa eacute por isso que a arquitetura eacute a primeira das artes Quando Dushybuffet procura delifuitar um certo estado bruto de arte eacute a princiacutepio na direccedilatildeo da casa que ele se volta e toda sua obra se ergue entre a arquitetura a escultura e a -pintUra E limishy

25 Cf a obra-prima de J von Uexkuumlhl Mondes animaux et monde humain Theacuteorie de la signification Ed Gonthier (p 137-142 o contrashyponto motivo do desenvolvimento e da morfogecircnese)

II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tando-nos agrave forma a arquitetura mais saacutebia natildeo deixa de fazer planos extensotildees e de juntaacute-los Eacute por isso que se pode defini-la pela moldura um encaixe de molduras diversashymente orientadas que se imporiam agraves outras artes da pinshytura ao Cinema Jaacute se apresentou a preacute-histoacuteria do quadro como passando pelo afresco na moldura da parede o vitral ha moldura da janela o mosaico na moldura do solo A moldura eacute o umbigo que liga o quadro ao monujllento do qual ele eacute a reduccedilatildeo como a moldura goacutetica com coluneshytas ogiva e flecha26 Fazendo da arquitetura a arte primeira da moldura Bernard Cache pode enumerar um certo nuacutemero de formas enquadrantes que natildeo prejulgam nenhum conteuacuteshydo concreto nem funccedilatildeo do edifiacutecio o mu~o que isola ajashynela que capta ou seleciona (em conexatildeo com o territoacuterio) o solo-chatildeo que conjura ou rarifica (rarificar o relevo da terra para dar livre curso agraves trajetoacuterias humanas) o teto que envolve a singularidade do lugar (o teto em declive coloca o edifiacutecio sobre uma colina ) Encaixar essas molshyduras ou juntar todos estes planos extensatildeo de muro exshytensatildeo de janela extensatildeo de solo extensatildeo de declive eacute todo um sistema composto rico em pontos e contrapontos As molduras e suas junccedilotildees sustentam os compostos de sensashyccedilotildees datildeo consistecircncia agraves figuras confundem-se com seu dar consistecircncia seu proacuteprio tocircnus Aiacute estatildeo as faces de um cubo de sensaccedilatildeo As molduras ou as extensotildees natildeo satildeo coordeshynadas pertencem aos compostos de sensaccedilotildees dos quais consshytituem as faces as interfaces Mas por mais extensiacutevel que seja este sistema eacute preciso ainda um vasto plano de composhysiccedilatildeo que opere uma espeacutecie de desenquadramento segunshydo linhas de fuga que soacute passe pelo territoacuterio para abri-lo sobre o universo que vaacute da casa-territoacuterio agrave cidade-cosmos

26 Henry van de Velde Deacuteblaientent dart Archives darchitecture moderne p 20

Percepto Afecto e Conceito 240 241

-~-_--- middot-middotmiddot

e que dissolva agora a identidade do lugar na variaccedilatildeo da Natildeo parece que a literatura e particularmente o romance Terra uma cidade que tem menos um lugar do que vetores estejam imma outra situaccedilatildeo O que conta natildeo satildeo as opiniotildees pregueando a linha abstrata do relevo Eacute sobre este plano de dos personagens segundo seus tipos sociais e seu caraacuteter composiccedilatildeo como sobre um espaccedilo vetorial abstrato que como nos maus romances mas as relaccedilotildees de contraponto nos se traccedilam figuras geomeacutetricas cone prisma diedro plano quais entram e os compostos de sensaccedilotildees que esses persoshyestrito que nada mais satildeo do que forccedilas coacutesmicas capazes nagens experimentam eles mesmos ou fazem experimentar em de se fundir se transformar se enfrentar alternar mundo seus devires e suas visotildees O contraponto natildeo serve para reshyde antes do homem mesmo se eacute produto do homem27 Eacute latar conversas reais ou fictiacutecias mas para fazer mostrar a preciso agora desarticular os planos para remetecirc-los a seus loucura de qualquer conversa de qualquer diaacutelogo mesmo

j intervalos em vez de remetecirc-los uns aos outros para criar interior Eacute tudo isso que o romancista deve extrair das pershy

novos afectos28 Ora~ vimos que a pintura seguia o mesmo cepccedilotildees afecccedilotildees e opiniotildees de seus modelos psicossociais I

I movimento A moldura ou a borda do quadro eacute em primeiro que se integram inteiramente nos perceptos e os afectos aos ~ I

lugar o invoacutelucro externo de uma seacuterie de molduras ou de quais o personagem deve ser elevado sem conservar outra vida I

I extensotildees que se juntam operando contrapontos de linhas E isso implica num vasto plano de composiccedilatildeo natildeo preconshyi

I

e de cores determinando compostos de sensaccedilotildees Mas o cebido abstratamente mas que se constroacutei agrave medida que a obraI

quadro eacute atravessado tambeacutem por uma potecircncia de desenshy avanccedila abrindo misturando desfazendo e refazendo composshy

I I quadramento que o abre para um plano de composiccedilatildeo oumiddot tos cada vez mais ilimitados segundo a penetraccedilatildeo de forccedilasI

um campo de forccedilas infinito Estes procedimentos podem ser coacutesmicas A teoria do romance de Bakhtin vai nesse sentido muito diversos mesmo no nivel da moldura exterior formas mostrando de Rabelais a Dostoievski a coexistecircncia dos comshy

[I irregulares lados que natildeo se juntam molduras pintadas oacuteu ponentes contrapontuais polifocircnicos e plurivocais com um I pontilhados de Seurat quadrados sobre ponta de Mondrian plano de composiccedilatildeo arquitetocircnico ou sinfocircnico29 Um roshyi li tudo o que daacute ao quadro o poder de sair da tela Jamais o mancista como Dos Passos soube atingir uma arte inaudita

shy__jl

gesto do pintor fica na moldura ele sai da moldura e natildeo do contraponto nos compostos que forma entre personagens comeccedila com ela atualidades biografias olhos de cacircmera ao mesmo teropo queI

um plano de composiccedilatildeo se alarga ao infinito para arrastar tudo para a Vida para a Morte para a cidade-cosmos E se27 Sobre todos estes pontos a anaacutelise das formas enquadrantes e da

cidade-cosmos (exemplo de Lausanne) cf Bernard Cache L ameublement retornamos a Proust eacute porque mais do que qualquer outro du territoire (a sair) ele fez com que os dois elementos quase se sucedessem emboshy

28 Eacute Pascal Bonitzer que formou o conceito de desenquadramento ra presentes um no outro o plano de composiccedilatildeo aparece poushypara aplicar ao cinema novas rdaccedilotildees entre os planos ( Cahiers du cineacutema co a pouco para a vida para a morte compostos de sensashyndeg 284 janeiro de 1978) planos disjuntos triturados ou fragmentados ccedilatildeo que ele edifica no curso do tempo perdido ateacute aparecer graccedilas aos quais o cinema se torna uma arte depurando-se das emoccedilotildees

em si mesmo com o tempo reencontrado a forccedila ou antes asmais comuns que arriscam de lhe impedir o desenvolvimento esteacutetico e produzindo-lhe afetos novos (Le champ aveugle Ed Cahiers du cineacutema Gallirnard sisteme des eacutemotions ) 29 Bakhtin Estheacutetique et theacuteorie du roman Gallimard

242 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 243

-- ---

forccedilas do tempo puro tornadas sensiacuteveis Tudo comeccedila peshylas Casas que devem todas juntar suas dimensotildees e dar conshysistecircncia a compostos Combray o palacete de Guermantes o salatildeo Verdurin e as casas elas mesmas se ajuntam segundo interfaces mas um Cosmos planetaacuterio jaacute estaacute laacute visiacutevel ao telescoacutepio arruinando-as ou transformando-as e absorvenshydo-as no infinito do fundo Tudo comeccedila por titornelos cada

i

um dos quais como a pequena frase da sonata de Vinteuil natildeo se compotildee apenas em si mesmo mas com -outras sensashy

ccedilotildees variaacuteveis a de uma passante desconhecida a do rosto de Odette a das folhagens do bosque de Boulogne- e tudo tershy I mina no infinito no grade Ritornelo a frase do seacuteptuor em Iperpeacutetua metamorfose o canto dos universos o mundo de antes do homem ou de depois De cada coisa finita Proust faz uni ser de sensaccedilatildeo que natildeo deixa de se conservar mas fushygindo sobre um plano de composiccedilatildeo do Ser seres de fuga

EXEMPLO XII

Natildeo parece que a muacutesica esteja numa outra situashyccedilatildeo talvez mesmo a encarne com mais poder ainda Dizshyse todavia que o som natildeo tem moldura Mas os comshypostos de sensaccedilotildees os blocos sonoros tampouco tecircm extensotildees ou formas enquadrantes que devem em cada caso se ajuntar assegurando um certo fechamento Os casos mais simples satildeo a aacuteria meloacutedica que eacute um ritorshynelo monofocircnico o motivo que jaacute eacute polifocircnico um elemento de Uacutema melodia interveniente no desenvolvishymento de uma outra e fazendo contraponto o tema como objeto de modificaccedilotildees harm-ecircnicas atrav~s das linhas meloacutedicas Essas trecircs formas elementares consshytroacuteem a casa sonora e seu territoacuterio Elas correspondem agraves trecircs modalidades de um ser de sensaccedilatildeo pois a aacuteria eacute uma vibraccedilatildeo o motivo eacute um enlace um acoplamen-

I244 lIL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

jbull

to enquanto o tema natildeo fecha sem se descerrar fender e tambeacutem abrir Com efeito o fenocircmeno musical mais importante que aparece agrave medida que os compostos de sensaccedilotildees sonoras se tornam mais complexos eacute que sua clausura ou fechamento (por junccedilatildeo de suas molduras de suas extensotildees) se acompanha de uma possibilidade de abertura sobre um plano de composiccedilatildeo cada vez mais ilimitado Os seres de muacutesica satildeo como os seres vivos segundo Bergson que compensam sua clausura individuante por uma abertura feita de modulaccedilatildeo reshypeticcedilatildeo transposiccedilatildeo justaposiccedilatildeo Se consideramos a sonata encontramos aiacute uma forma enquadraacutente parshyticularmente riacutegida fundada sobre um bitematismo e da qual o primeiro movimento apresenta as seguintes dimensotildees exposiccedilatildeo do primeiro tema transiccedilatildeo exshyposiccedilatildeo do segundo tema desenvolvimentos sobre o pric rileiro ou o segundo coda desenvolvimento do primeiro com modulaccedilatildeo etc Eacute toda uma casa com seus aposhysentos Mas eacute antes o primeiro movimento que forma assim uma ceacutelula e eacute raro que uiacuten grande muacutesico siga a forma canocircnica os outros moviacutementos podem abrirshyse notadamente o segundo pel~ tema e variaccedilatildeo ateacute que Liszt asseg~re uma fusatildeo dos movimentos no poeshyma sinfocircnico A sonata aparece entatildeo antes como uma forma-cruzamento em que da junccedilatildeo das dimensotildees musicais da clausura dos compostos sonoros nasce a abertura de um plano de composiccedilatildeo

Deste ponto de vista o velho procedimento tema e variaccedilatildeo que manteacutem a moldura harmocircnica do tema daacute lugar a uma espeacutecie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composiccedilatildeo (Chopin Schumann Liszt eacute um novo momento essencial porshyque o trabalho criador natildeo mais versa sobre os comshyponentes sonoros motivos e temas abrindo um plano

245Percepto Mecto e Conceito

~~

mas ao contraacuterio versa diretamente sobre o proacuteprio plano de composiccedilatildeo para fazer nascer dele composshytos bem mais livres e desenquadrados quase agregados incompletos ou sobrecarregados em desequiliacutebrio pershymanente Eacute a cor do som que conta cada vez mais Passa-se da Casa ao Cosmos (segundo uma foacutermula que a obra de Stockhausen retomaraacute) O trabalho do plano de composiccedilatildeo se desenvolve em duas direccedilotildees que engendraratildeo uma desagregaccedilatildeo da moldura tonal os imensos fundos da variaccedilatildeo contiacutenua que fazem enshylaccedilar e se unir as forccedilas tornadas sonoras em Wagner ou os tons justapostos que separam e dispersam as forshyccedilas agenciando suas passagens reversiacuteveis em Debussy Universo-Wagner universo-Debussy Todas as aacuterias todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquashydrados infantis domeacutesticos profissionais nacionais territoriais satildeo carregados no grande Ritornelo um potente canto da terra - o desterritorializado - que se eleva com Mahler Berg ou Bartoacutek E sem duacutevida o plano de composiccedilatildeo engendra sempre novas clausuras como na seacuterie Mas sempre o gesto do muacutesico consiste em desenquadrar encontrar a abertura retornar o plashyno de composiccedilatildeo segundo a foacutermula que obceca Boushylez traccedilar uina transversal irredutiacutevel agrave vertical harmocircshynica como agrave horizontal meloacutedica que conduz blocos soshynoros agrave individualizaccedilatildeo variaacutevel mas tambeacutem abri-las ou fendecirc-las num espaccedilo-tempo que determina sua denshysidaae e seu percurso sobre o plano30 O grande ritorshynelo se eleva agrave medida que nos afastamos dacasa messhy

30 Boulez notadamente Points de repere Ed Bourgois-Le Seuil p 159 e segs (Pensez la musique aujourdhui Ed Gonthier p 59-62) A eXtensatildeo da seacuterie em duraccedilotildees intensidades e timbres natildeo eacute um ato de clausura mas ao contraacuterio uma abertura do que se fechava na middotseacuterie das alturas

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte246

--~=shyq

mo se eacute para retornar a ela jaacute que ningueacutem mais nos reconheceraacute quando retornarmos

Composiccedilatildeo composiccedilatildeo eis a uacutenica definiccedilatildeo da arte A composiccedilatildeo eacute esteacutetica e o que natildeo eacute composto natildeo eacute uma obra de arte Natildeo confundiremos todavia a composiccedilatildeo teacutecshynica trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciecircncia (matemaacutetica fiacutesica quiacutemica anatomia) e a comshyposiccedilatildeo esteacutetica que eacute o trabalho da sensaccedilatildeo Soacute este uacuteltishymo merece plenamente o nome de composiccedilatildeo e nunca uma obra de arte eacute feita por teacutecnica ou pela teacutecnica Certamente a teacutecnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra as palavras e a sintaxe em literatura natildeo apenas a tela em pintura mas sua preparashyccedilatildeo os pigmentos suas misturas os meacutetodos de perspectiva ou ent~o os doze sons da muacutesica ocidental os instrumentos as escalas as alturas E a relaccedilatildeo entre os dois planos oacute

plano de composiccedilatildeo teacutecnica e o plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica natildeo cessa de variar historicamente Sejam dois estados oponiacuteveis na pintura a oacuteleo num primeiro caso o quadro eacute preparado por um fundo branco sobre o qual se desenha e se dilui o desenho (esboccedilo) enfim se potildee a cor as sombras e as luzes No outro caso o fundo se torna cada vez mais espesso opaco e absorvente de modo que ele se colore na divisatildeo e o trabalho se faz em plena massa sobre uma gama escura as correccedilotildees substituindo o esboccedilo o pintor pintaraacute sobre cor depois cor ao lado de cor as cores se tornando cada vez mais relevos a arquitetura sendo assegurada pelo contraste dos complementares e a concordacircncia dos anaacuteshylogos (Van Gogh) eacute por e nagrave cor que se encontraraacute a arshyquitetura mesmo se eacute preciso renunciar aos relevos parareshyconstituir grandes unidades colorantes Eacute verdade que Xavier de Langlais vecirc em todo este segundo caso uma longa decashydecircncia que caino efecircmero e natildeo chega a restaurar uma ar-

Percepto Mecto e Conceito 247

quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem duacutevida esta observaccedilatildeo coloca ao meshynos negativamente a questatildeo do progresso na arte jaacute que Langlais considera que a decadecircncia comeccedila jaacute depois de Van Eyck (um pouco como alguns param a muacutesica no canto greshygoriano ou a filosofia em Santo Tomaacutes) Mas eacute uma obsershyvaccedilatildeo teacutecnica que concerne somente ao material aleacutem de que a duraccedilatildeo do material eacute muito relativa a sensaccedilatildeo eacute de uma outra ordem e possui uma existecircncia em si enquanto o mashyterial dura A relaccedilatildeo da sensaccedilatildeo com o material deve pois ser avaliada nos limites da duraccedilatildeo do material qualquer que ela seja Se haacute progressatildeo em arte eacute porque a arte soacute pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retonws linhas de partilha mudanccedilas de niacuteveis e de escashy

I las Deste ponto de vista a distinccedilatildeo de dois estados da lf

pintura a oacuteleo toma um aspecto inteiramente diferente esshyI

teacutetico e natildeo mais teacutecnico- esta distinccedilatildeo natildeo conduz evishydentemente ao representativo ou natildeo jaacute que nenhuma arte nenhuma sensaccedilatildeo jamais foram representativas

li No primeiro caso a sensaccedilatildeo se realiza no material e natildeo existe fora desta realizaccedilatildeo Diriacuteamos que a sensaccedilatildeo (o composto de sensaccedilotildees) se projeta sobre o plano de composhysiccedilatildeo teacutecnica bem preparado de sorte que o plano -de comshyposiccedilatildeo esteacutetica venha recobri-lo Eacute preciso pois que o mashyterial compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graccedilas aos quais a sensaccedilatildeo projetada natildeo se realiza somenshyte cobrindo o qu1dro mas segundo uma profundidade A arte desfruta entatildeo de uma aparecircncia de transcendecircncia que se exprime natildeo numa coisa por representar mas no caraacuteter paradigmaacutetico da projeccedilatildeo e no caraacuteter simboacutelico da persshypectiva A Figura eacute como a fabulaccedilatildeo segundo Bergson tem

31 Xavier de Langlais La technique de la peinture agrave lhuile Ed Flammarion (E Goethe Traiteacute des couleurs Ed Triades sect 902-909)

248 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 249

middot i

uma origem religiosa Mas quando ela se torna esteacutetica sua transcendecircncia sensitiva entra numa oposiccedilatildeo surda ou abe-rshyta com a transcendecircncia suprasensiacutevel das religiotildees

No segundo caso natildeo eacute mais a sensaccedilatildeo que se realiza no material eacute antes o material que entra na sensaccedilatildeo Cershytamente a sensaccedilatildeo natildeo existe mais fora dessa entrada e o plano de composiccedilatildeo teacutecnica natildeo mais tem autonomia a natildeo ser no primeiro caso natildeo vale jamais por si mesmo Mas diriacuteamos agora que ele sobe no plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica e lhe daacute uma espessura proacutepria como diz Damisch inshydependente de qualquer perspectiva e profundidade Eacute o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transshycendecircncia aparente ou-de um modelo paradigmaacutetico e conshyfessam seu ateiacutesmo inocente seu paganismo E sem duacutevida entre estes dois casos estes dois estados da sensaccedilatildeo estes dois poacutelos da teacutecnica as transiccedilotildees as combinaccedilotildees e as coexistecircncias se fazem constantemente (por exemplo o trashybalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens) satildeo poacutelos abstratos ao inveacutes de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com oacuteleo e solvente se volta cada vez mais na direccedilatildeo do segundo poacutelo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composiccedilatilde~ esteacutetica -Eacute por isso -que eacute tatildeo falso definir a sensaccedilatildeo na pintura moderna pela admissatildeo de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a esshypessura natildeo precisa ser larga ou profunda Pocircde-se dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfiacuteshycie basta-lhe apoiar-se sobre os vazios e os plenos do pashypel Canson Eacute uma pintura que natildeo mais tem fundo porshyque o baixo emerge a superfiacutecie eacute esburacaacutevel ou o plashyno de composiccedilatildeo ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspecshytiva independentemente das sombras e mesmo da ordem

i r I li

I 32 Cf Christian Bonnefbi intervieweacute et commenteacute par Yvesshy

I Alain Bois Macula S-6

33 Damisch Fenecirctre jaime cadmium ou les dessous de la peinture Ed du Seuil pp 275-305 (e p 80 a espessura do plano em Pollock) Dashy

li misch eacute o autor que mais insistiu sobre a relaccedilatildeo -arte-pertsamento pinshytura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instauraacute-la Mallarmeacute fazia da espessura do livro uma dimensatildeo distinta da proshy) fundidade cf Jacques Scheacuterer Le livre de Mallarmeacute Gallimard p 55shy

I tema que Boulez retoma por sua vez para a muacutesica (Points de repere p 161) iI

li 250 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

I I

cromaacutetica da cor (o colorista arbitraacuterio) Natildeo mais se recoshybre faz-se subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar Eacute uma promoccedilatildeo do solo e a escultura pode torshy

I nar-se plana jaacute que o plano se estratifica Natildeo magraveis se pinshyI ta sobre mas sob A arte informal levou muito longe

estas novas potecircncias da textura essa elevaccedilatildeo do solo com I Dubuffet e tambeacutem o expressionismo abstrato a arte mishy

nimalista procedendo por impregnaccedilotildees fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atraacutes de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem agrave vista do pintor o que enshytregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes estados a pintura eacute-penshysamento a visatildeo existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta

Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdashydeiro conceito mostrando que o tranccedilado poderia bem preencher para a pintura futura funccedilatildeo anaacuteloga agravequela que foi a da perspectiva O quemiddotnatildeo eacute proacuteprio da pintura jaacute que Damisch reencontra a mesma distinccedilatildeo no niacutevel do plano arquitetura quando Scarpa por exemplo rejeita o movishymento da projeccedilatildeo e os mecanismos da perspectiva para ins~ crever os volumes na espessura do proacuteprio plano33 bull E da literatura agrave muacutesica uma espessura material se afirma que

--~ middot

natildeo se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal Eacute umr I traccedilo caracteriacutestico da literatura moderna quando as palashyr vras e a sintaxe sobem no plano de composiccedilatildeo e o cavam I em lugar de colocaacute-lo em perspectiva E a muacutesica quando

renuncia agrave projeccedilatildeo como agraves perspeCtivas que impotildeem a alshyI tura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano soshynoro uma espessura singular da qual testemunham elemenshy

I tos muito diferentes a evoluccedilatildeo dos estudos parapiano que deixam de ser somente teacutecnicas para tornar-se estudos de

jmiddot composiccedilatildeo (com a extensatildeo que lhes daacute Debussy) a imshy

portacircncia decisiva que toma a orquestraccedilatildeo em Berlioz a i subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferashyI I ccedilatildeo dos afectos de percussatildeo com os metais as peles e as mashy

deiras e sua ligaccedilatildeo com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparaacuteveis do material (Varese) a redeshy

I finiccedilatildeo do percepto em funccedilatildeo do ruiacutedo do som bruto e I complexo (Cage) natildeo apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendecircnshy

cia a uma apariccedilatildeo natildeo-cromaacutetica do som num continuum infiiuumlto (muacutesica eletrocircnica ou eletro-acuacutestica)I

I Soacute haacute um plano uacutenico no sentido em que a arte natildeo

I comporta outro plano diferente do da composiccedilatildeo esteacutetica

I o plano teacutecnico com efeito eacute necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composiccedilatildeo esteacutetica Eacute sob esta conshydiccedilatildeo que a mateacuteria se torna expressiva o composto de senshysaccedilotildees se realiza no material ou o material entra no comshyI posto mas sempre de modo a se situar sobre um plano deI

I composiccedilatildeo propriamente esteacutetico Haacute muitos problemasI teacutecnicos em arte e a ciecircncia pode intervir em sua soluccedilatildeo

mas eles soacute se colocam em funccedilatildeo de problemas de composhysiccedilatildeo esteacutetica que concernem aos compostos de sensaccedilotildees e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus mateshyriais Toda sensaccedilatildeo eacute uma questatildeo mesmo se soacute o silecircncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em enshy

251Percepto Afecto e Conceito

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 7: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

~ecai~~s-~QfCcedil_Qsect__]2etSQILltl~-UsectQg___~-S~Ccedil9~ls~gtJ~r~~q~~ -~-1~ -~~2~lt22-~ltJ~llli-LiisectEa~eacute e_~~JLW~sectIDamptCcedilJYsccedilPJXeCcedila~agraude JsguacuteadoampQmans~d~JiordfkhtilL(felizmente ele natildeo fica aiacute jusshytamente na base paroacutedica do romance )

AJ~ordf-Igtl1laccedilatildeo criadora nada tem a ver com uma lembranshyo-11 _ middotmiddotmiddot middotmiddotmiddotmiddotmiddot -~ -- middotmiddot ofPmiddotmiddot ccedila mesmo amplificada nem _ccedilgrn_UJll fantasma Com efeito l _ bull bullmiddotmiddot--middotbullmiddotbull middotmiddot middot---middotmiddotmiddotmiddotmiddot-bull middot -_ _ _ _

cJ middot middot ~ artista entre eles QJQII_~2Ccediltsect-ordf+-~~ccedil_ed5_2~~tad_1Eerc~p_shymiddot- ~ t1yo~ C ~~ J~~sagens afetivas do vividQ Eacute um vidente algueacutem

-~~_~ middot bull middotltmiddot~- middotmiddot middot middot bull bull middot middot middot middot - middot~ bull middot middot~-middot bullbull _ ___~ middot bullmiddot -ltuJo-~ middot)o - --middot - -- d gt middotmiddot~middotmiddot - middotbull-middot- middot-~middot~bull-bullgtbullbullbullbullOh __~~~T - -_ bullbull-middotmiddot middotmiddot

_-~g~~~--~~-S-9XA~middot Como contaria ele o que lhe aconteceu ou o que imagina jaacute que eacute uma sombra Ele viu na vida algo muito grande demasiado intoleraacutevel tambeacutem e a luta da vida com o que a ameaccedila de modo que o pedaccedilo de natureza que ele percebe ou os bairros da cidade e seus personagens aceshydem a uma visatildeo que compotildee atraveacutes deles perceptos desshyta vida deste momento fazendo estourar as percepccedilotildees vishyvidas numa espeacutecie de cubismo de simultanismo de luzcrua ou de crepuacutesculo de puacuterpura ou de azul que natildeo tecircm mais outro objeto nem sujeito senatildeo eles mesmos Chama-se de

-~~g2h12~~-~--g_ia~ltm~i ~~~-~-~~~-~~~~pa~~-d~-~2i~~ii9i~otilde ~~~~ Trata-se sempre de hberar a vida laacute onde ela eacute piishysiacuteoneira ou de tentar fazecirc-lo num combate incerto A morshyte do porco-espinho em Lawrence a morte da toupeira em Kafka satildeo atos de romancista quase insuportaacuteveis ~Qr___ vezes eacute preciso deitar na terra como faz o pintor Qara lo-

1~-middotbull--middot bull~~-~-middot-~middot-gt ~bull _ ~ middotmiddot - ~ - middot-~- _ _middotmiddot -middotmiddot~ -- bullbullmiddotmiddot ) middotbullmiddot middot --middot - middotbull - _)~ c _bull __~-----~middot middot ~

~-~~-1~~~a~~lt~--l2~Y2~middot~~~2=~=~J~-~fSltP~ Os perceptos podem ser telescoacutepicos ou microscoacutepicos datildeo aos personagens e agraves paisagens dimensotildees de gigantes como se estivessem repleshytos de uma vida agrave qual nenhuma percepccedilatildeo vivida pode atinshygir Grandeza de Balzac Pouco importa que esses personashygens sejam mediacuteocres ou natildeo eles se tornam giga~tes como Bouvard e Peacutecuchet Bloom e Molly Mercier e Camier sem deixar de ser o que satildeo Eacute por forccedila da mediocridade mes mQde_besteira oU-deinfacircmia_quepndemtrunar~se-natildeo-Sim- ple_tii~JordfisectJgt~~imples) mas gigantesco~Mesmo os anotildees

1

ou os invaacutelidos podem fazecirc-lo toda fabulaccedilatildeo eacute f~~~ ~e gigantesect~ Mediacuteocres ou grandiosos satildeo cellla~iadaflenshy~~_ylyos J2_ar_~-~E~I viviacuteveis ou vividos Thomas W olfe exshytrai de seu pai um gigante e Miller da cidade um planeta negro Wolfe pode descrever os homens do velho Catawha atraveacutes de suas opiniotildees imbecis e sua mania de discussatildeo o que faz eacute erigir o monumento secreto de sua solidatildeo de seu deserto de sua terra eterna e de suas vidas esquecidas despercebidas Faulkner pode criartambeacutem oh homens de Yoknapatawpha Diz-se que o romancista monumental se inspira ele mesmo no vivido e eacute verdade M de Charlus parece muito com Montesquiou mas entre Montesquiou e M de Charlus no final das contas haacute aproximadamente a mesma relaccedilatildeo que entre o catildeo-animal que late e o Catildeo consshytelaccedilatildeo celeste

Como tornar um momento do mundo duraacutevel ou fazecircshylo exititp~r--s-11Virginiwacircotildelfecirclaacute ~~--~~p-~t~q-~~-~i~ patilderacircmiddot a-pIacutenturamiddotOtilde~---ffiliacutesiacutecaiatildeiacuteito quanto para a escrita Sashy

turar cada aacutetomo Eliminar tudlt_lt_9~t eacute rt_~_QE_Qft~ ~middot- -middot

superfluidade~ tudo o que gruda em nossas percep__sotilde~-~-Elt___q

refffes-e-vivecirclas tuClOtilde_Otilde_q_~middot~middot --li~~~t~- otilde~9iii~itordf-P~fliacuteQ_

~~~~_ltfi~~t~~~Eacute~~~E~~sJotilde~i~~~~~~-ordf~-~~~p~r~~P-~ J~s~L ILQ~2IerlQ_Q~ b~iii9Jos_iatos_osoacuterdida~ma~-~I~~ em transparecircncia Colocar aiacute tudo e contudo saturar9

POtilde~t~tiacutengidoo-percepto como a fonte sagrada por ter visto a Vida no vivente ou o Vivente no vivido o romancisshyta ou o pintor voltam com olhos vermelhos e o focirclego curshy

8 No capiacutetulo II das Deux Sources Bergson analisa a fabulaccedilatildeo coshymo uma faculdade visionaacuteria muito diferente da imaginaccedilatildeo que consisshyte em criar deuses e gigantes potecircncias semi-pessoais ou presenccedilas efishycazes Ela se exerce inicialmente nas religiotildees mas desenvolve-se livreshymente na arte e na literatura

9 Virgiacutenia Woolf Journal dun eacutecrivain Ed 10-18 I p 230

222 11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 223

-~

to Satilde~ atletas natildeo atletas que teriam formado bem seus corpos e cultivado o vivido embora muitos escritores natildeo tenham resistido a ver nos _esportes urn meio de aumentar a arte e a vida mas antes atletas bizarros do tipo campeatildeo de jejum ou grande Nadador que natildeo sabia nadar Um Atletismo que natildeo eacute orgacircnico ou muscular mas um atleshy

-tismo afetivo que seria o duplo inorgacircnico do outro um atletismo do devir que revela somente forccedilas que natildeo satildeo as suas espectro plaacutestico 10 Desse ponto de vista os artisshytas satildeo como os filoacutesofos tecircm fregueJ-temente uma saudeshyziacutenha fraacutegil mas natildeo por causa de suas doenccedilas nem de suas neuroses eacute porque eleSViraacutem na_ida atildefgQCfe grande ccedill_ccedil_mais paratildeqliatildefquer um de grande demais para eles e gue QOcircs ndes ~atildedlscreta datildelliuumlrttamp1atildes-~~Jilt2ecirc~mbeacutem a fonte ~o fOcirclego q~llL~YiYJr_atraYi~~49s~clQ~l~ do_civishyflo (o 9~~~~E-~~P--ordf~~Q~-sauacutede) U~ dia saberemos talvez que natildeo havia art~ m~soacuteru~nte_~duumlina 1I

-------c5-[~ct-~iacutetapaa menos ~s afecccedilotildees que o pershycepto as percepccedilotildees Q afecto natildeo eacute a gassagltle um esshytado vivido a um outro mas o deviccedilnatildeqJ~_lJID-ordf9~QO homem __~~~--amp-- -middot---ltC-~=-----lt10-

Ahab natildeo imita Moby Dick e Pentesileacuteia natildeo se comporta como a cadela natildeo eacute uma imitaccedilatildeo uma simpatia vivida nem mesmo uma identificaccedilatildeo imaginaacuteria Natildeo eacute a semelhanshyccedila embora haja semelhanccedila Mas justamente eacute apenas uma semelhanccedila produzida Eacute antes uma extrema contiguumlidade num enlaccedilamento entre duas sensaccedilotildees sem semelhanccedila ou ao contraacuterio no distanciamento de uma luz que capta as duas num mesmo reflexo Andreacute Dhocirctel soube colocar seus pershy

10 Artaud Le theacuteacirctre et son double (Oeuvres completesGallimard IV p 154)

middot 11 Le Cleacutezio HAI Ed Flammarion p -7 (sou um iacutendio emboshyra natildeo saiba cultivar o milho nem talhar uma piroga ) Num texto ceacuteleshybre Michaux falava da sauacutedemiddotproacutepria agrave arte posfaacutecio a Mes proprieacuteshyteacutes La nuit remmue Gallimard p 193

li Filosofia Ciecircilcia Loacutegica e Arte

sonagens em estranhos devires-vegetais tornar-se aacutervore ou tornar-seaacutester natildeo eacute diz ele que um se transforme no outro

ma~~~~a--~um12 outro12 ~~~-~-lgg__ecirceacuteP~e ~~EN~shy

~2IDQ~~l)~sect~Sl9middot Eacute uma zona de indeterminaccedilatildeo de indiscerniacutebilidade como se coisas animais e pessoas (Ahab e Moby Dick Pentesileacuteia e a cadela) tivessem atingido em cada caso este ponto (todavia no infinito) que precede imeshydiatamente sua diferenciaccedilatildeo natural~gQ_JtlJccedil~Jgt~ ccedilhordfmallW---shy

~2-_f~g9_Em Pierre ou les ambiguiteacutes Pierre ganha a zona em que ele natildeo pode mais distinguir-se middotde sua meia-irmatilde Isabelle e torna-se mulher Soacute a vida cria tais zonas em que turbishylhonam os vivos e soacute a arte pode atingi-la e penetraacute-la em sua empresa de co-criaccedilatildeo Eacute que a proacutepria arte vive dessas ( zonas de indeterminaccedilatildeo quando o material entra na sen- - ~

Q) ssaccedilatildeo como numa escultura de Rodin Satildeo blocos A pintu- ri ra precisa d~ uma coisa diferente da habilidade do desenhista f f que marcana a semelhanccedila entre formas humanas e animais ( sect_

e nos faria assistir agrave sua metamorfose ~Jf_ccedilisQJ ~ordfltU~QltaacuteAt5 lltf __-9_~0_lot~_Ei~~EE f~pk~~~ d~-~~~ElaEf ~ de imp_r _a ex~~~~Uuml~~sielm-~~t~J-zonordfdlli1agravelEnios_e_sabeshy

-ffiili~CJllem eacute bulluuumlctrtaJ__~--flYoCcedilJJL~bumordfnordm_pruqw ordflg~Lsect_~J~ vanta como o triunfo ou o __~ony~nro_desuaindjsect~jnccediljig ~ssiacutenmiddot-cotildeyatilde-ou mesino Daumier Redon Eacute preciso que o artista crie os procedimentos e materiais sintaacuteticos ou plaacutesshyticos necessaacuterios a uma empresa tatildeo grande que recria por toda a parte os pacircntanos primitivos da vida (a utilizaccedilatildeo da aacutegua-forte e da aguatinta por Goya) O afecto natildeo opera cershytamente um retorno agraves origens como se se reencontrasse em termos de semelhanccedila a persistecircncia de um homem bestial ou primitivo sob o civilizado Eacute nos meios temperados de nossa civilizaccedilatildeo que agem e prosperam atualmente as zonas equatoriais ou glaciais que se furtam agrave diferenciaccedilatildeo dos gecircshy

12 Andreacute Dhocirctel Terres de meacutemoire Ed Universitaires p 225-226

Percepto Afecto e Conceito 225 224

neros dos sexos das ordens e dos reinos Soacute se trata de noacutes aqui e agora mas o que eacute animal em noacutes vegetal mineral ou humano natildeo mais eacute distinto- embora noacutes noacutes ganheshymos aiacute singularmente em distinccedilatildeo O maacuteximo de determishynaccedilatildeo emerge como _um claratildeo deste bloco de vizinhanccedila

Precisamente porque as opiniotildees satildeo funccedilotildees do vivishydo elas aspiram a um certo conhecimento das afecccedilotildees As opiniotildees insistem nas paixotildees do homem e sua eternidade Mas como observava Bergson temos a impressatildeo de que a oacute opiniatildeo desconhece os estados afetivos eque ela agrupa ou separa os que natildeo deveriam ser agrupados ou separados13 Jt Natildeo basta sequer como faz a psicanaacutelise dar objetos proishybidos agraves afecccedilotildees repertoriadas nem substituir as zonas de t indeterminaccedilatildeo por simples ambivalecircncias Um grande roshy ~

mancista eacute antes de tudo um artista que inventa afectos natildeo conheciacuteoosotildeu desconiiacuteecld(s e --os fazvir agrave luz do dia como- ------- ---------middot---- -------------middot-shy0 devir de seus personagens os estados crepusculares dos

- ~~-lei~~~os middotmiddotc-~middotaneacute~cr~middot-chreacutetien de Troyes (em relaccedilatildeo lI

com um conceito eventual de cavalaria) os estados de reshy 11

pouso quase catatocircnicos que se confundem com o dever segundo Mme de Lafayette (em relaccedilatildeo com um conceito de l

li quietismo) ateacute os estados de Beckett como afectos tanto I

imais grmdiosos quanto satildeo pobres em afecccedilotildees Quando I

Zola sugere a seus leitores prestem atenccedilatildeo natildeo eacute remorshyso que meus personagens sentem natildeo devemos mais ver nisso a expressatildeo de uma tese fisiologista mas a atribuiccedilatildeo de novos afectosque crescem com a criaccedilatildeo de personagens no naturalismo o Mediacuteocre o Perverso o Animal (o que Zola chama de instinto natildeo se separ~ de um devir-animal) Quando Emily Bronte traccedila o liame que_ une Heathcliff e Catherine ela inventa um afeto-violento (que sobretudo natildeo

13 Bergson La penseacutee et e mouvant Ed du Centenaire p 1293shy1294

226 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

v f ~~

c~l~f r1gt(1~~1- 7 (jJ-7JV middot ~

JV-10-shy

deve ser confundido com o amor algQ co~o uma fraternishydade entre dois lobos QuandoP~Oacute~t middot fece descrever tatildeo minuciosamente o ciuacuteme inventatilde-tt middot~fect~porque natildeo deishyxa de inverter a ordem que a opiniab--amptipOtildee nas afecccedilotildees segundo a qual o ciuacuteme seria uma consequecircncia infeliz do amor para ele ao contraacuterio o ciuacuteme eacute finalidade destinaccedilatildeo

e~reC1Suuml~~~CecircJ~~--j)uuml~J~-s~~E~I~~~~~sect~~~~~~~sectmiddotmiddotccedil_sect~e o s~nti9~-~2-~ig~~C2~~-to _ltlt_~_- ~~IP~2cgia _ Q~ando CL1ude Simon descreve o prodigjoso amor passivo da mushylher-terra esculpe um afecto de barro e pode dizer eacute mishynha matildee e acreditamos jaacute que ele diz mas uma matildeemiddotque ele introduz na sensaccedilatildeo e agrave qual ergue um monumento tatildeo original que natildeo eacute mais com seu filho real que ela tem uma relaccedilatildeo mas mais longinquamente com um outro personashygem de criaccedilatildeo a Eula de Faulkner Eacute assim que de um esshy

critor ~ um outro o~_gr~_de~-~f5S9LltJi~~ltim~~-P9si~L~-~ encademiddotar ouder~ampS~illCcedilQlJLlt~tQ~~~~~~-~~~i_es ~~~~~~~ fotildermaacutem vibram se e_nl~_s~_m QllJ~J~nccedil~P= sectiip-estesseres---~ acirceseUumls~CcedilatildeO(~datilde~~ta~da--relaccedilatildeodo_artistuQmo puacuteshy

b)i~~A~ltLasordf~--~~)f~-middot~l~~Jnmiddot-ordf~ul~ JJJJmesmQordf-Uacute~t~-~ll~~~s- _f 14 4

~~g~~ Rllt ~Y~l)tuaJ~Jilll4-sfccedillt ~~E~-~~-~--~nJr~gtI bull O artts- [k ta acrescenta sempre novas variedades ao mundo Os seres dordfsectJ~nsaccedilordf-ordmmiddotmiddotmiddot~ordfQvariltdades~ccedil_omoos~streampdecouccitossacirc~~ var~~ccedil2~~~~Q~~sectSf~~-deJu~_ccedilo _ ~ordfmiddot~-Y~~~i~y~js

Eacute de toda a arte que seria preciso dizer o artista eacute m__Qsect_ tracQId~-ordffeltos inventor de afec~~~E-tlt~oLde_ ordf-f~~ccedilJgsect~m middotICcedilatildeotilde com ~tp~~~E~~~~~-i~-~isOtildeEi~CcedilLU~QQsectgaacute Natildeo eacute soshymeilteeffisuacbraacute que ele os cria ele os daacute para noacutes e nos faz transformarnos com eles ele nos apanha no composto Os girassoacuteis de Van Gogh satildeo devires como os cardos de

14 Estas trecircs questotildees retornam frequentemente em Proust notadashymente Le temps retrouveacute La Pleacuteiade 111 p 895-896 (sobre a vida a vishysatildeo e a arte como criaccedilatildeo de universo)

Percepto Afecto e Conceito 227

Duumlrermiddot ou as mimosas de Bonnard Redon intitulava uma litografia Houve talvez uma visatildeo primeira ensaiada na flor A flor vecirc Puro e simples terror Vecirc vocecirc este girasshysol que olha para dentro pela janela do quarto Ele olha meu quarto todo o dia 15 Uma histoacuteria floral da pintura eacute como a criaccedilatildeo incessantemente retomada e continuada dos afecshytos e dos perceptos das flores A arte eacute a linguagem das senshysaccedilotildees que faz entrar nas palmiddot~r-acircsmiddotmiddotiacuteiatildes cOtilde~~~~-~~middot~~ ilas pearamiddots-x-agraverieuumli(t~iiacute~QfuilJatilde~middotr~uuml ci~aagravez ~IacuteriacuteJlE~~

middotmiddotarmiddotga~lziCcedilatilde() middotordf~i~~~fsiPsj2~-~~~~JiSCcedilsectlr~UJini otildees _ltiuacute~ sll-h~- tiiui por um ill()~E~Etccedilgt_Ccedilg~JEP~lt de ~certo~-de~Jectccedils middote de blo_~~smiddot~~j~-~SCcedilsect~sect91~fltt~~Jl-ordf~-ieze_sdeJing)Jordfg~lmiddot

O escritor se serve de palavras mas criando urna sintaxe que as introduz na sensaccedilatildeo e que faz gaguejar a liacutengua correnshyte ou tremer ou gritar ou mesmo cantar eacute o estilo o tom a linguagem das sensaccedilotildees ou a liacutengua estrangeira na liacutengua a que solicita um povo por vir oh gente do velho Catawba oh gente de Yoknapatawpha O escritor torce a linguagem fj-la vibrar a~accedila-a fende-a para arrancar o percepto middotdas percepccedilotildees o afecto das afecccedilotildees a sensaccedilatildeo da opiniatildeo_ ~---shy_________ -shyvisando esperamos esse povo que ainda natildeo existe Mishynha memoacuteria natildeo eacute amor mas hostilidade e ela trabalha natildeo para reproduzir mas para descartar o passado Que queshyria dizer minha famiacutelia eu natildeo sei Ela era gaga de nascenshyccedila e contudo tinha algo para dizer Sobre mim e sobre muishy

tos de meus contemporacircneos pesa a gagueira de nascenccedila Aprendemos natildeo a falar mas a balbuciar e eacute soacute ouvindo o ruiacutedo crescente do seacuteculo e uma vez lavados pela espuma de sua onda mais alta que noacutes dquiijmos uma liacutengua 16

Precisamente eacute a tarefa de toda arte e -a pintura a muacutesica

15 Lowry Au-dessous du fOlcan Ed Buchet-Chastel p 203

16 Mandelstam Le bruit du temps Ed LAge dhomme p 77

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

natildeo arrancam menos 4as cores e dos sons acordes novosmiddot paisagens plaacutesticas ou ~eloacutedicas personagens riacutetmicos que os elevam ateacute o canto 1a terra e o grito dos homens- o que constitui o tom a sauacutede o devir um bloco visual e sonoro Um monumento natildeo comemora natildeo celebra algo que se passou mas transmit~ para o futuro as sensaccedilotildees persistenshytes que encarnam o a ntecimento o sofrimento sempre reshynovado dos homens eu protesto recriado sua luta sempre retomada Tudo seri vatildeo por ue o sofrimento LeteIlO_~ as revoluccedilotildees natildeo so revivem agrave sua vitoacuteria Mas o sucesso dmiddot~ uumlmarevotildeTuCcedilatildeos9-resid~ela me~~-precisamente nas vibraccedilotildees nos enlace~ nas aberturas que deu aos homens no ~--=----=-----1-o----------------~-middot momento em que se fazia e que compotildeem em si um monushy

middotm-eirto sempre em vir como esses tuacutemulos aos quais cada novo viajante acresagraventa uma pedra A vitoacuteria de uma revolushyccedilatildeo eacute imanente e consiste nos novos liames que instaura entre os homens mesmo se estes natildeo duram mais Q1Je sua mateacuteshy

r~ em fusatilde5_gt_j~~~--~Jiga_peng-ordfillYisectatildeQ_acirc traiccedilatildeo As figuras esteacuteticas (e o estilo que as cria) natildeo tecircm nada

a ver com a retoacuterica SiiQsect~Otildees 12erceptos~-~~~~shy~ordf~nserostnsrisotildees_e_d~yius_Mas natildeb eacute tambeacutem pelo devir que definimos o conceito filosoacutefico e quase nos mesmos tershymos Todavia as figUumlras esteacuteticas natildeo satildeo idecircnticas aos pershysonagens cmiddotonceituais Talvez entrem uns nos outros num ~entido ou no outro como Igitur ou como Zaratustra mas

eacute na medida em que -~~~~sect~s cJ~-~onceicto2_~S2-Seit~-~ q~ sccedilg~ordfccedilotildee_s Nao eacute o mesmo devir O devir sensiacutevel eacute o ato pelo qual algo ou algueacutem natildeo paacutera de deVir-outro (continuanshydo a ser o que eacute) girassol ou Ahab enquanto que o devir

~

conceitual eacute o ato pelo qual o acontecimento comum ele mesmo esquiva o que eacute Este eacute heterogeneidade compreenshydida numa forma absoluta aquele a alteridad~ empenhada numa mateacuteria de expressatildeo O monumento natildeo atualiza o acontecimento virtual mas o incorpora ou o encarna acirca--shy

middot--~--middot---- middot~----------~middot---middot-middot--middot~~--middotmiddot- ---middotmiddotmiddotmiddot

Percepto Afecto e Conceito 228 229

lhe um corpo uma vida um universo Eacute assim que Proust definia a arte-monumento por esta via SU_I)erior ao vivido suas diferenccedilas qualitativas seus universos que consshytroem seus proacuteprios limites seus distanciamentos e suas aproshyximaccedilotildees suas constelaccedilotildees os blocos de sensaccedilotildees que eles fazem rolar o universo-Rembrandt ou universo-Debussy Estes universos natildeo satildeo nem virtuais nem atuais satildeo possiacuteshyveis o possiacutevel como categoria esteacutetica (possiacutevel por favor senatildeo eu sufoco) a existecircncia do possiacutevel enquanto que os acontecimentos satildeo a realidade do virtual formas de um penshysamento-Natureza que sobrevoam todos os universos posshysiacuteveis Natildeo significa dizer que o conceito precede de direito a sensaccedilatildeo mesmo um conceito de sensaccedilatildeo deve ser criashydo com seus meios proacuteprios e uma sensaccedilatildeo existe em seu universo possiacutevel sem que o conceito exista necessariamente em sua forma absoluta

Pode a sensaccedilatildeo ser assimilada a uma opiniatildeo originaacuteshyria Urdoxa como fundaccedilatildeo do mundo ou base imutaacutevel A fenlt_~~~~ogiltl encontra a sensaccedilatildeo em a priori materiais shyperceptivos e afectivos que transcendem acircs per-cepCcedilOtildees ecirc afecshy

Ccedilotilde~~middot~iVfd-atilde$ middototildemiddot-aillatildere-iotildeecircleVail cuumlgKmiddotocirc~--~s -~ens~Ccedilotilde~s middot ~acirc-middotratildes de Ceianne A fenomenologia deve fazer-se fenomenoshylogia da arte jaacute vimos porque a imanecircncia do vivido a um sujeito transcendental precisa exprimir-se em funccedilotildees transshycendentes que natildeo determinam somente a experiecircncia em geral mas que atravessam aqui e agora o proacuteprio vivido e I se encarnam nele constituindo sensaccedilotildees vivas O ser da senshy I

I I middot

I saccedil-ordf9_ _Q__blQccedilQ d_d percepto ~=fo ~feccedil~Q ltPareceraacute ~ornomiddot middot middot I

_Unidade ou a reversibilidade daquele que s~t~ - ~ middotd~-~-e~d- I doseu1ntiffiuuml eacute~t~r~ccedilmiddota~ento c()~uuml matilde~~ middotq~~i-~~~_middot- bullI

1 middot-middotmiddoteacute-~a--~arne que vai se libertar ao mesmo tempmiddoto do corpo vivishydo do mundo percebido e da intencionalidade de um ao outro ainda muito ligada agrave experiecircncia - enquanto a carshyne nos daacute o ser da sensaccedilatildeo e carrega a opiniatildeo originaacuteria

230 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

distinta do juiacutezo de experiecircncia Carne do mundo e carne do corpo como correlatos que se trocam coincidecircncia ideaF7

Eacute um curioso Carnismo que inspira este uacuteltimo avatar da fenomenologia e a precipita no misteacuterio da encarnaccedilatildeo eacute uma noccedilatildeo piedosa e sensual ao mesmo tempo uma misshytura de sensualidade e de religiatildeo sem a qual a carne talshymiddotvez natildeo ficaria de peacute sozinha (ela desceria ao longo dos ossos como nas figuras de Bacon) A questatildeo de saber se a carne eacute adequada agrave arte pode se enunciar assim eacute ela capaz de carshyregar o percepto e o afecto de constituir o ser de sensaccedilatildeo ou entatildeo eacute ela mesma que deve ser carregada e ingressar em outras potecircncias de vida

A carne natildeo eacute a sensaccedilatildeo mesmo se ela participa de sua middot revelaccedilatildeo Era precipitado dizer que a sensaccedilatildeo encarna A pintura faz a carne ora com o encarnado (superposiccedilotildees do vermelho e do branco) ora com tons justapostos (jUstaposhysiccedilatildeo de complementares em proporccedilotildees desiguais) Mas o que constitui a sensaccedilatildeo eacute o devir-animal vegetal etc que monta sob as praias de encarnado no nu mais gracioso mais delicado corria a presenccedila de um animal descarnado de um fruto descascado Vecircnus no espelho ou que surge na fusatildeo no cozimento no derramar de tons justapostos como a zona

17 Desde a Pheacutenomeacutenologie de lexpeacuterience estheacutetique (PUF 1953) Mikel Dufrenne fazia uma espeacutecie de analiacutetica dos a priori perceptivos e afetivos que fundavam a sensaccedilatildeo como relaccedilatildeo do corpo e do mundo Permanecia proacuteximo de Erwin Straus Mas haacute um ser de sensaccedilatildeo que se manifestaria na carne Era middota via de Merleau-Ponty no Le visible et linshyvisible Dufrenne fazia muit~s r~ervas a uma tal ontologia da carne (Loeil et loreille Ed LHexagone) Recentemente Didier Franck retomou o tema de Merleau-Ponty mostrando a importacircncia decisiva da carne segundo Heidegger e jaacute Husserl (Heidegger et le probleme de [espace Chair et corps Ed de Minuit) Todo este problema estaacute no centro de umafenoshymenologia da arte Talvez o livro ainda ineacutedito de Foucault Les aveux de la chair nos informe sobre as origens mais gerais da noccedilatildeo de carne e seu alcance na Patriacutestica

Percepto Afecto e Conceito 231

de indiscernibilidade do animal e do homem Talvez fosse um embaralhamento ou um caos se natildeo houvesse um segunshydo elemento para dar consistecircncia agrave carne_ A carne eacute apeshynas o termocircmetro de um devir A carne eacute tenra demais O segundo elemento eacute menos o osso ou a ossatura que a casa

rltmiddotr a armadura O corpo desabrocha na casa (ou num equivashylente numa fonte num bosque) Ora o que define a casa

( I satildeo as extensotildees isto eacute os pedaccedilos de planos diversamente orientados que datildeo agrave carne sua armadura primeiro-plano e plano-de-fundo paredes horizontais verticais esquerda dishyreita retos e obliacutequos retiliacuteneos ou curvos 18 Essas extenshysotildees satildeo muros mas tambeacutem solos portas j arielas portasshyjanelas espelhos que datildeo precisamente agrave sensaccedilatildeo o poder de manter-se sozinha em molduras autocircnomas Satildeo as faces do bloco de sensaccedilatildeo E haacute certamente dois signos do gecircnio dos grandes pintores bem como de sua humildade o respeishyto quase um terror com o qual eles se aproximam da cor e entram nela o cuidado com o qual operam a junccedilatildeo dos

Imiddot planos da qual depende o tipo de profundidade Sem este respeito e este cuidado a pintura eacute nula sem trabagravelho sem pensamento O difiacutecil eacute juntar natildeo as matildeos mas os planos Fazer relevos com planos que se juntam ou ao contraacuterio escarificaacute-los cortaacute-los Os dois problemas a arquitetura dos planos e o regime da cor se confundem frequumlentemente A junccedilatildeo dos planos horizontais e verticais em Ceacutezanne os planos na cor os planos o lugar colorido ou a alma dos planos entra em fusatildeo ~~_grandes P~_esou mesmo duas grandes obras que operem da mesma ~~nei-

-----=~Haacute todavia tendecircncias num pintotilderem middotGiaco~ettipo-18

Como mostra Georges Didi-Huberman a-carne middot~~gendra uma i duacutevida ela eacute proacutexima demais do caos donde a necessidade de uma

complernentariedade entre o encarnado e a extensatildeo tema essencial de La peinture incarneacutee retomada e desenvolvida em Devant limage Ed de Minuit

232 II Filosofia Ciecircncia middotLOacutegica e Arte

exemplo os planos horizontais fugidios diferem agrave direita e middot agrave esquerda e parecem se reunir na coisa (a carne da pequeshyna maccedilatilde) mas como uma pinccedila que a puxaria para traacutes e a faria desaparecer se uni plano vertical do qual soacute se vecirc o fio sem espessura natildeo viesse fixaacute-la retecirc-la no uacuteltimo moshymento dar-lhe uma existecircncia duraacutevel agrave maneira de um longo alfinete que a atravessa e a tornafiliforme por sua vez A casa participa de todo um devir Ela eacute vida ~vida natildeo

orgacircnica das coisas De todos 9s modos possiacute~sect~a_ LYD~-~ ccedilatildeo do~_planos~e mitorientaccedilOtildees que define t_casa-sens~-~-~---~ ccedilatildeo Aiacute~asa mesma (o_u-middotseu equivalente) eacute a junccedilatilde9T~itaii~------planos cQlruicles____

middot middot-middot--~rceiro elemento eacute o universo o qgtsmos Natildeo eacute soshymentea-Catildesatildeabeitaque secirc-cotildelliiriic co~ ~ p~i~agem por ~ffiatilde )atildeiieratilde- middoto-tr-uumlm espeino iiiatildes--atildemiddot-~8middot-middot~middotas~fe~~~~ ~~atilde__ atilde5e~t~-sotildebreuumlmuiiiacutevecircrsomiddot middotx- middotcamiddotsacirc-eacutefe viuuml~ecirct s~ vecirc sempre ~~pi~dmiddot -p-~i~~ fccedil~~- ~egetais de um jardim incontrolaacutevel cosmo das rosas Um universo-cosmos natildeo eacute carne Nem mesmo plano pedaccedilos de planos que se juntam planos dishyversamente orientados embora a junCcedilatildeo de todos os planos ateacute o infinito possa constituiacute-lo Mas o universo se apresenshyta no limite como o fundo da tela o uacutenico grande plano o vazio colorido o infinito monocromaacutetico A porta-janela como em Matisse soacute se abre sobre um fundo negro A carne ou antes a figura natildeo mais eacute o habitante do lugar da casa mas o habitante de um universo que suporta a casa (devir) Eacute como uma passagem do finito ao infinito mas tambeacutem do territoacuterio agrave desterritorializaccedilatildeo Eacute bem o momento do infishynito infinitos infinitamente variados Em Van Gogh em Gauguin em Bacon hoje vemos surgir a imediata tensatildeo da carne e do fundo dos derrames de tons justapostos e da praia

I

infinita de uma pura cor homogecircnea viva e saturada (em lugar de pintar a parede banal do mesquinho apartamento eu pinto o infinito faccedilo um fundo simples do azul mais rico

233Percepto Afecto e Conceito

mais intenso ) 19 Eacute verdade que o fundo monocromaacutetico

eacute mais do que um fundo E quando a pintura quer comeccedilar do zero construindo o percepto como um miacutenimo antes do vazio ou aproximando ao maacuteximo do conceito ela proceshy~e por monocromia liberada de toda casa ou de toda carne E notadamente o azul que se encarrega do infinito e qu~ faz do percepto uma sensibilidade coacutesmica ou o que haacute de mais conceitual na natureza ou de mais proposicional a cor na ausecircncia do homem o homem mergulhado na cor mas se o azul (ou o negro ou o branco) eacute perfeitamente idecircnshytico no quadro ou de um quadro a outro eacute a pintura que se torna azul- Yves o monocromo- segundo um puro afecto que faz o universo mergulhar no vazio e natildeo deixa mais nada por fazer ao pintor por excelecircncia20_

O vazio colorido ou antes colorante jaacute eacute forccedila A maior parte dos grandes monocromos da pintura moderna natildeo mais tecircm necessidade de recorrer a pequenos buquecircs murais mas apresentam variaccedilotildees sutis imperceptiacuteveis (todavia constishytutivas de um percepto) seja porque satildeo cortados ou conshy

19 Van Gogh carta a Theacuteo Correspondance complete Gallimardshy

Grasset III p 165 Os tons justapostos e sua relaccedilatildeo com o fundo satildeo um tema frequumlente da correspondecircncia Tambeacutem Gauguin carta a Schuffeshynecker 8 de outubro de 1888 Lettres Ed Grasset p 140 Eu fiz urn retra to de mim para Vincent Eacute acredito eu uma das minhas melhores coisas absolutamente incompreensiacutevel (por exemplo) de tal maneira eacute abstra~o o seu d~senho eacute inteiramente arbitraacuterio abstraccedilatildeo cornpl~ta a c~r ~uma co~ d1sta1te da natureza imagine uma vaga lembranccedila de ceram1ca retor~rda pelo fogo forte Todos os vermelhos os violetas rajashydas pelos claroes de fogo como uma fornalha radiante aos olhos sede das lutas do pensamento do pintor O todo sobre um fundo cromo seshymeado de buquecircs infantis Quarto de moccedila pura Eaacute ideacuteia do coloriacutesta arbitraacuterio segundo Van Gogh

~~ Cf Artst~dio no 16 Monochromes (sobre Klein artigos de Genev1eve Monmer e de Denys Riout e sobre os avatares atuais do monocromo artigo de Pierre Sterckx)

234 IL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tornados de um lado por uma fita um faixa uma extensatildeo de uma outra cor ou de um outro tom que mudam a intenshysidade do fundo por vizinhanccedila ou distanciamento seja porshyque apresentam figuras lineares ou circulares quase virtuais tom sobre torit seja porque satildeo esburacados ou fendidos satildeo problemas de junccedilatildeo ainda mas singularmente ampliados

Numa palavra o fundo vibra se enlaccedila ou se fende poque eacute portador de forccedilas apenas vislumbradas E o q~e fazia de iniacutecio a pintura abstrata convocar asforccedilas povoar o funshydo com as forccedilas que ele abriga fazer ver nelas mesmas as forshyccedilas invisiacuteveis traccedilar figuras de aparecircncia geomeacutetrica mas que natildeo seriam mais do que forccedilas forccedila de gravitaccedilatildeo de peso de rotaccedilatildeo de turbilhatildeo de explosatildeo de expansatildeo de gershyminaccedilatildeo forccedila do tempo (como se pode dizer da muacutesica que ela faz ouvir a forccedila sonora do tempo por exemplo com Messhysiaen ou da literatura com Proust que faz ler e conceber a forccedilaacute ilegiacutevel do tempo) Natildeo eacute esta a definiccedilatildeo do percepto em pessoa tornar sensiacuteveis as forccedilas insensiacuteveis que povoam o mundo e que nos afetam nos faze~ devir O que Mondrian obteacutem por simples diferenccedilas entre lados de um quadrado e Kandinsky pelas tensotildees lineares e Kupka pelos planos curvos em torno do ponto Do fundodas eras nos vem o que Worringer chamava a linha setentrional abstrata e infinita linha do uacuteniverso que forma fitas e tiras rodas e turbinas toda uma geometria viva elevando agrave intuiccedilatildeo as forccedilas mecacircshynicas constituindo uma poderosa vida natildeo-orgacircnica21

O eterno objeto da pintura pintar as forccedilas como Tintoretto

Encontraremos tambeacutem talvez a casa e o corpo E que o fundo infinito eacute frequumlentemente aquilo sobre o que se abre a janela ou a porta ou entatildeo eacute o muro da proacutepria casa ou o solo Van Gogh e Gauguin semeiam o fundo de pequenos buquecircs de flores para fazer deles o papel mural

21 Worringer Lart gothique Gallimard

Percepto Afecto e Conceito 235

sobre o qual se destaca o rosto de tons justapostos E com efeito a casa natildeo nos abriga das forccedilas coacutesmicas no maacutexishymo ela as filtra elas as seleciona Ela as transforma algushymas vezes em forccedilas benevolentes jamais a pintuacutera fez ver a forccedila de Arquimedes a forccedila do empuxltgt da aacutegua sobre um corpo gracioso que flutua na banheira da casa como Bonnard conseguiu em o Nuacute no banho Mas tambeacutem as forccedilas mais maleacuteficas podem entrar pela porta entreabershyta ou fechada satildeo as forccedilas coacutesmicas que provocam elas mesmas as zonas de indiscernibilidade nos_tons justapostos de um rosto esbofeteando-o arranhando-o fundindo-o em todos os sentidos e satildeo estas zonas de indiscernibilidade que revelam as forccedilas escondidas no fundo (Bacon) Haacute plena complementariedade enlace de forccedilas como perceptos e de devires como afectos A linha de forccedila abstrata segundo ~orringer eacute rica em motivos animalescos Agraves forccedilas coacutesshymicas ou cosmogeneacuteticas correspondem devires-aniinais veshy

geta1s moleculares ateacute que o corpo desapareccedila no fundo ou entre no muro ou inversamente que o fundo se contorshyccedila e turbilhone na zona de indiscernibilidade d~ corpo~ Numa palavra o ser de sensaccedilatildeo natildeo eacute a carne mas o comshyposto das forccedilas natildeo-humanas do cosmos dos devires natildeo humanos do homem e da casa ambiacutegua que os troccedila e os ajusta os faz turbilhonar como os ventos A carne eacute somenshyte o revelador que desaparece no que revela o composto de sensaccedilotildees Como toda pintura a pintura abstrata eacute senshysaccedilatildeo nada mais que sensaccedilatildeo Em Mondrian eacute o quarto que acede ao ser de sensaccedilatildeo dividindo por extensotildees coshyloridas o plano vazio infinito que lhe daacute de volta um infishy

d b 22 mto e a ertura Em Kandinsky as casa~ satildeo uma das

22 Mondrian Reacutealiteacute naturelle et reacutealiteacute abstraite (in Seuphor Piet

Mondnan sa vie son oeuvre Ed Flammarion) sobre o quarto e seu desdobramento Michel Butor analisou este desdobramento do quarto em

236 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

fontes da abstraccedilatildeo que consiste menos em figuras geomeacuteshytricas que em trajetos dinacircmicos e linhas de erracircncia cashyminhos que caminham nos arredores Em Kupka eacute de iniacuteshycio sobre o corpo que o pintor talha fitas ou extensotildees coshyloridas que produziratildeo no vazio os planos curos que o povoam tornando-se sensaccedilotildees cosmogeneacuteticas__ ~--~--~~~~

ccedilatildeoe~_pi_rjtual ou j~ um _~Ol~-~-i_g_viSgt= O _q~-~~t-~ lt1 ~~-~~- uacuten1verso A ~r~~ - aJs~rata_~ s~P25 a ~rte _C()flC~I~~~_Elt~~~-- middot-Pmiddot cacirc~dTmiddot~tamente a questatildeo que impregna toda pintura ---- --middot-shys~~ - ~-eiacute~Ccedilatilde-uumlcocircffi o ~~~~~ito~sti-a relaccedilatildeo com a funccedilatildeo middot_

A arte comeccedila talv-ez--com o animal ao menos com o animal que recorta um territoacuterio e faz uma casa (os dois satildeo correlativos ou ateacute mesmo se confundem por vezes no que se chama de habitat) Com o sistema territoacuterio-casa muitas funccedilotildees orgacircnicas se transformam sexualidade procriaccedilatildeo agressiyidade alimentaccedilatildeo mas natildeo eacute esta transformaccedilatildeo que explica a apariccedilatildeo do territoacuterio e da casa seria antes o

inverso o territoacuterio impli~a na emergecirc~lti~ e 91-ali_cll~~-~sel~ siacuteveis pu~- ~~-ibiIacuteia qua~ixacirciiacuteiacute -de ser unicaii1~_Ilt_e ushyecirc(ocircOtildeagraveisecirc cse- ioacuternani-tragraveCcediluumlsmiddotae express~Otilde__ tormiddotn~~~~J~~s~V~l tiffiagravetiansfocirciinaCcedilatildeo (G$iacute~i1Ccedilotildees23 s~ni duacutevida esta expresshysivlamp1deTaacuteestacirc dltu~ch~E~~~middot Vida~ pode-se dizer que o simshyples liacuterio dos campos celebra a gloacuteria dos ceacuteus Mas eacute com o territoacuterio e a casa que ela se torna construtiva e ergue os monumentos rituais de uma missa animal que celebra as quashylidades antes de tirar delas novas causalidades e finalidades Esta emergecircncia jaacute eacute arte natildeo somente no tratamento dos materiais exteriores mas nas posturas e cores do corpo nos

quadrados ou retacircngulos e a abertura sobre um quadrado interior vazio e branco como promessa de quarto futuro Reacutepertoire III Le carreacute et son habitant Ed de Minuit p 307-309314-315

23 Parece-nos que eacute um engano de Lorenz querer explicar o terrishytoacuterio por uma evoluccedilatildeo das funccedilotildees L agression Ed Flammarion

Percepto Afecto e Conceito 237

cantos e nos gritos que marcam o territoacuterio Eacute um jorro de traccedilos de~-~2E~~- e de sons inseparaacuteveisna dtecTda em que s~ -~riill _ ~xpr~~isiV_9_~ ~-(~i~~~i-~ill~~9l0_~_4~ middotr~ritoacute~i~fCcedil Scenopoietes dentirostris paacutessaro das florestas chuvosas da Austraacutelia faz cair da aacutervore as folhas que corta cada manhatilde vira-as para que sua face interna mais paacutelida contraste com a terra constroacutei para si assim uma cena co_mo um readyshymade e canta exatamente em cima sobre um cipoacute ou-um galho um canto complexo composto de suas proacuteprias noshytas e das de outros paacutessaros que imita nos intervalos mosshytrando a raiacutez amarela das plumas sob seubico eacute um artista completo24

bull Natildeo satildeo as sinestesias em plena carne satildeo esshytes blocos de sensaccedilotildees no territoacuterio cores posturas e sons que esboccedilam uma obra de arte total Estes blocos satildeo rishytorneios mas haacute tambeacutem ritornelos posturais e de cores e tanto posturas quanto cores se introduzem sempre nos ritor~ nelas Reverecircncias e posiccedilotildees eretas rondas traccedilos de coshyres O ritornelo inteiro eacute o ser de sensaccedilatildeo Os monumenshytos satildeo ritornelos Desse ponto de vista a arte natildeo deixaraacute de ser habitada pelo animal A arte deKafka seraacute a mais prbshy

funda meditaccedilatildeo sobre o territoacuterio e a casa o terreiro as pos~ turas~retrato (a cabeccedila pendida do habitante com o queixo enterrado no peito ou ao contraacuterio o grande tiacutemido que fura o teto com seu cracircnio anguloso) os sons-muacutesica (os catildees que satildeo muacutesicos por suas proacuteprias posturas Josephine a ratinha cantora da qual ja~ais saberemos se canta Gregoire que une seu piadoao violino de sua irmatilde numa relaccedilatildeo comshyplexa quarto-casa~territoacuterio) Eis tudo o que eacute preciso para fazer arte uma casa posturas cores e cantos - sob a conshy ~

I diccedilatildeo de que tudo isso se abra e se lance sobre ummiddotvetor louco como uma vassoura de bruxa uma linha d~ universo ou de

24 Marshall Bowler Birds Oxford at the Clarendon Press Gilliord Birds of Paradise and Bowler Birds Weidenfeld

desterritorializaccedilatildeoPerspectiva de um quarto com seus hashybitantes (Klee )

Cada territoacuterio cada habitat junt a seus planos ou suas extensotildees natildeo apenas espaccedilo-temporais mas qualitativos por exemplo uma postura e um canto um canto e urna cor perceptos e afectos E cada territoacuterio engloba ou recorta ter~ ritoacuterios de outras espeacutecies ou intercepta trajetos de animais sem territoacuterio formando junccedilotildees inUacuterespeciacuteficltlS Eacute neste sentido que Uexkuumlhl num primeiro aspecto desenvolve urna concepccedilatildeo da Natureza meloacutedica polifocircnica contrapontual Natildeo apenas o canto de um paacutessaro tem suas relaccedilotildees de conshytraponto mas pode fazer contraponto com o canto de oushytras espeacutecies e pode ele mesmo imitar estes outros cantos como se se tratasse de ocupar um maacuteximo de frequumlecircnciacuteas A teia de aranha conteacutem um retrato muito sutil da mosca que lhe serve de contraponto A concha como casa do moshylusco~ se torna quando ele morre o contraponto do Bershynardo-eremita que faz dela seu proacuteprio habitat graccedilas a sua cauda que natildeo eacute nadadeira mas preecircnsil e lhe permite capshyturar a concha vazia O Carrapato eacute organicamente consshytruiacutedo de modo a encontrar seu contraponto no mamiacutefero qualquer que passa sob seu galho como as folhas de carvashylho arranjadas como telhas nas gotas de chuva que escorshyrem Natildeo eacute uma concepccedilatildeo finalista mas meloacutedica em que natildeo mais sabemos o que eacute arte ou natureza (a teacutecnica nashytural) haacute contraponto toda vez que uma melodia interveacutem como motivo numa outra melodia como nas bodas enshytre a mamangava e a boca-de-leatildeo Essas relaccedilotildees de contrashyponto juntam planos formam compostos de sensaccedilotildees bloshycos e determinam devires Mas natildeo satildeo somente estes comshypostos meloacutedicos determinados que constituem a natureza mesmo generalizados eacute preciso tambeacutem sob um outro asshypecto um plano de composiccedilatildeo sinfocircnica infinio da Casa ao universo Da endo-sensaccedilatildeo agrave exo-sensaccedilatildeo E que o tershy

bull 238 li Filosofia Ciecircnci~ Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 239

r I I I-- --- --

~ -

middot1

ritoacuterio natildeo se limita a isolar e juntar ele abre para forccedilas coacutesmicas que sobem de dentro ou que vecircm de fora e torna sensiacuteveis seu efeito sobre o habitante Eacute um plano de comshyposiccedilatildeo do carvalho que porta ou comporta a forCcedila de deshysenvolvimento da bolota e a forccedila de formaccedilatildeo das gotas ou o do carrapato que tem a forccedila da luz capaz de atrair o animal ateacute a ponta de um galho numa altura suficiente e a forccedila de peso com a qual se deixa cair sobre o mamiacutefero que passa -e entre os dois nada um vazio assustador que pode durar anos se o mamiacutefero natildeo passa25bull E ora as forccedilas se fundem umas nas outras em transiccedilotildees sutis decompotildeemshyse tatildeo logo vislumbradas ora se alternam ou se enfrentam Ora deixam-se selecionar pelo territoacuterio e satildeo as mais beshynevolentes que entram na casa Ora lanccedilam um apelo misshyterioso que arranca o habitante do territoacuterio e o precipita numa viagem irresistiacutevel como os pintassilgos que se reuacuteshynem frequentemente aos milhotildees ou as lagostas que empreshyendem uma imensa peregrinaccedilatildeo no fundo da aacutegua Ora se abatem sobre o territoacuterio e o invertem malevolentes restaushyrando o caos de onde ele mal saiacutea Mas sempre se a nature za eacute como a arte eacute porque ela conjuga de todas as maneiras esses dois elementos vivos a Casa e o Universo o Heimlich e o Unheimlich o territoacuterio e a desterritorializaccedilatildeo os comshypostos meloacutedicos finitos e o grande plano de composiccedilatildeo infinito o pequeno e o grande ritornelo

A arte comeccedila natildeo com a carne mas com a casa eacute por isso que a arquitetura eacute a primeira das artes Quando Dushybuffet procura delifuitar um certo estado bruto de arte eacute a princiacutepio na direccedilatildeo da casa que ele se volta e toda sua obra se ergue entre a arquitetura a escultura e a -pintUra E limishy

25 Cf a obra-prima de J von Uexkuumlhl Mondes animaux et monde humain Theacuteorie de la signification Ed Gonthier (p 137-142 o contrashyponto motivo do desenvolvimento e da morfogecircnese)

II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tando-nos agrave forma a arquitetura mais saacutebia natildeo deixa de fazer planos extensotildees e de juntaacute-los Eacute por isso que se pode defini-la pela moldura um encaixe de molduras diversashymente orientadas que se imporiam agraves outras artes da pinshytura ao Cinema Jaacute se apresentou a preacute-histoacuteria do quadro como passando pelo afresco na moldura da parede o vitral ha moldura da janela o mosaico na moldura do solo A moldura eacute o umbigo que liga o quadro ao monujllento do qual ele eacute a reduccedilatildeo como a moldura goacutetica com coluneshytas ogiva e flecha26 Fazendo da arquitetura a arte primeira da moldura Bernard Cache pode enumerar um certo nuacutemero de formas enquadrantes que natildeo prejulgam nenhum conteuacuteshydo concreto nem funccedilatildeo do edifiacutecio o mu~o que isola ajashynela que capta ou seleciona (em conexatildeo com o territoacuterio) o solo-chatildeo que conjura ou rarifica (rarificar o relevo da terra para dar livre curso agraves trajetoacuterias humanas) o teto que envolve a singularidade do lugar (o teto em declive coloca o edifiacutecio sobre uma colina ) Encaixar essas molshyduras ou juntar todos estes planos extensatildeo de muro exshytensatildeo de janela extensatildeo de solo extensatildeo de declive eacute todo um sistema composto rico em pontos e contrapontos As molduras e suas junccedilotildees sustentam os compostos de sensashyccedilotildees datildeo consistecircncia agraves figuras confundem-se com seu dar consistecircncia seu proacuteprio tocircnus Aiacute estatildeo as faces de um cubo de sensaccedilatildeo As molduras ou as extensotildees natildeo satildeo coordeshynadas pertencem aos compostos de sensaccedilotildees dos quais consshytituem as faces as interfaces Mas por mais extensiacutevel que seja este sistema eacute preciso ainda um vasto plano de composhysiccedilatildeo que opere uma espeacutecie de desenquadramento segunshydo linhas de fuga que soacute passe pelo territoacuterio para abri-lo sobre o universo que vaacute da casa-territoacuterio agrave cidade-cosmos

26 Henry van de Velde Deacuteblaientent dart Archives darchitecture moderne p 20

Percepto Afecto e Conceito 240 241

-~-_--- middot-middotmiddot

e que dissolva agora a identidade do lugar na variaccedilatildeo da Natildeo parece que a literatura e particularmente o romance Terra uma cidade que tem menos um lugar do que vetores estejam imma outra situaccedilatildeo O que conta natildeo satildeo as opiniotildees pregueando a linha abstrata do relevo Eacute sobre este plano de dos personagens segundo seus tipos sociais e seu caraacuteter composiccedilatildeo como sobre um espaccedilo vetorial abstrato que como nos maus romances mas as relaccedilotildees de contraponto nos se traccedilam figuras geomeacutetricas cone prisma diedro plano quais entram e os compostos de sensaccedilotildees que esses persoshyestrito que nada mais satildeo do que forccedilas coacutesmicas capazes nagens experimentam eles mesmos ou fazem experimentar em de se fundir se transformar se enfrentar alternar mundo seus devires e suas visotildees O contraponto natildeo serve para reshyde antes do homem mesmo se eacute produto do homem27 Eacute latar conversas reais ou fictiacutecias mas para fazer mostrar a preciso agora desarticular os planos para remetecirc-los a seus loucura de qualquer conversa de qualquer diaacutelogo mesmo

j intervalos em vez de remetecirc-los uns aos outros para criar interior Eacute tudo isso que o romancista deve extrair das pershy

novos afectos28 Ora~ vimos que a pintura seguia o mesmo cepccedilotildees afecccedilotildees e opiniotildees de seus modelos psicossociais I

I movimento A moldura ou a borda do quadro eacute em primeiro que se integram inteiramente nos perceptos e os afectos aos ~ I

lugar o invoacutelucro externo de uma seacuterie de molduras ou de quais o personagem deve ser elevado sem conservar outra vida I

I extensotildees que se juntam operando contrapontos de linhas E isso implica num vasto plano de composiccedilatildeo natildeo preconshyi

I

e de cores determinando compostos de sensaccedilotildees Mas o cebido abstratamente mas que se constroacutei agrave medida que a obraI

quadro eacute atravessado tambeacutem por uma potecircncia de desenshy avanccedila abrindo misturando desfazendo e refazendo composshy

I I quadramento que o abre para um plano de composiccedilatildeo oumiddot tos cada vez mais ilimitados segundo a penetraccedilatildeo de forccedilasI

um campo de forccedilas infinito Estes procedimentos podem ser coacutesmicas A teoria do romance de Bakhtin vai nesse sentido muito diversos mesmo no nivel da moldura exterior formas mostrando de Rabelais a Dostoievski a coexistecircncia dos comshy

[I irregulares lados que natildeo se juntam molduras pintadas oacuteu ponentes contrapontuais polifocircnicos e plurivocais com um I pontilhados de Seurat quadrados sobre ponta de Mondrian plano de composiccedilatildeo arquitetocircnico ou sinfocircnico29 Um roshyi li tudo o que daacute ao quadro o poder de sair da tela Jamais o mancista como Dos Passos soube atingir uma arte inaudita

shy__jl

gesto do pintor fica na moldura ele sai da moldura e natildeo do contraponto nos compostos que forma entre personagens comeccedila com ela atualidades biografias olhos de cacircmera ao mesmo teropo queI

um plano de composiccedilatildeo se alarga ao infinito para arrastar tudo para a Vida para a Morte para a cidade-cosmos E se27 Sobre todos estes pontos a anaacutelise das formas enquadrantes e da

cidade-cosmos (exemplo de Lausanne) cf Bernard Cache L ameublement retornamos a Proust eacute porque mais do que qualquer outro du territoire (a sair) ele fez com que os dois elementos quase se sucedessem emboshy

28 Eacute Pascal Bonitzer que formou o conceito de desenquadramento ra presentes um no outro o plano de composiccedilatildeo aparece poushypara aplicar ao cinema novas rdaccedilotildees entre os planos ( Cahiers du cineacutema co a pouco para a vida para a morte compostos de sensashyndeg 284 janeiro de 1978) planos disjuntos triturados ou fragmentados ccedilatildeo que ele edifica no curso do tempo perdido ateacute aparecer graccedilas aos quais o cinema se torna uma arte depurando-se das emoccedilotildees

em si mesmo com o tempo reencontrado a forccedila ou antes asmais comuns que arriscam de lhe impedir o desenvolvimento esteacutetico e produzindo-lhe afetos novos (Le champ aveugle Ed Cahiers du cineacutema Gallirnard sisteme des eacutemotions ) 29 Bakhtin Estheacutetique et theacuteorie du roman Gallimard

242 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 243

-- ---

forccedilas do tempo puro tornadas sensiacuteveis Tudo comeccedila peshylas Casas que devem todas juntar suas dimensotildees e dar conshysistecircncia a compostos Combray o palacete de Guermantes o salatildeo Verdurin e as casas elas mesmas se ajuntam segundo interfaces mas um Cosmos planetaacuterio jaacute estaacute laacute visiacutevel ao telescoacutepio arruinando-as ou transformando-as e absorvenshydo-as no infinito do fundo Tudo comeccedila por titornelos cada

i

um dos quais como a pequena frase da sonata de Vinteuil natildeo se compotildee apenas em si mesmo mas com -outras sensashy

ccedilotildees variaacuteveis a de uma passante desconhecida a do rosto de Odette a das folhagens do bosque de Boulogne- e tudo tershy I mina no infinito no grade Ritornelo a frase do seacuteptuor em Iperpeacutetua metamorfose o canto dos universos o mundo de antes do homem ou de depois De cada coisa finita Proust faz uni ser de sensaccedilatildeo que natildeo deixa de se conservar mas fushygindo sobre um plano de composiccedilatildeo do Ser seres de fuga

EXEMPLO XII

Natildeo parece que a muacutesica esteja numa outra situashyccedilatildeo talvez mesmo a encarne com mais poder ainda Dizshyse todavia que o som natildeo tem moldura Mas os comshypostos de sensaccedilotildees os blocos sonoros tampouco tecircm extensotildees ou formas enquadrantes que devem em cada caso se ajuntar assegurando um certo fechamento Os casos mais simples satildeo a aacuteria meloacutedica que eacute um ritorshynelo monofocircnico o motivo que jaacute eacute polifocircnico um elemento de Uacutema melodia interveniente no desenvolvishymento de uma outra e fazendo contraponto o tema como objeto de modificaccedilotildees harm-ecircnicas atrav~s das linhas meloacutedicas Essas trecircs formas elementares consshytroacuteem a casa sonora e seu territoacuterio Elas correspondem agraves trecircs modalidades de um ser de sensaccedilatildeo pois a aacuteria eacute uma vibraccedilatildeo o motivo eacute um enlace um acoplamen-

I244 lIL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

jbull

to enquanto o tema natildeo fecha sem se descerrar fender e tambeacutem abrir Com efeito o fenocircmeno musical mais importante que aparece agrave medida que os compostos de sensaccedilotildees sonoras se tornam mais complexos eacute que sua clausura ou fechamento (por junccedilatildeo de suas molduras de suas extensotildees) se acompanha de uma possibilidade de abertura sobre um plano de composiccedilatildeo cada vez mais ilimitado Os seres de muacutesica satildeo como os seres vivos segundo Bergson que compensam sua clausura individuante por uma abertura feita de modulaccedilatildeo reshypeticcedilatildeo transposiccedilatildeo justaposiccedilatildeo Se consideramos a sonata encontramos aiacute uma forma enquadraacutente parshyticularmente riacutegida fundada sobre um bitematismo e da qual o primeiro movimento apresenta as seguintes dimensotildees exposiccedilatildeo do primeiro tema transiccedilatildeo exshyposiccedilatildeo do segundo tema desenvolvimentos sobre o pric rileiro ou o segundo coda desenvolvimento do primeiro com modulaccedilatildeo etc Eacute toda uma casa com seus aposhysentos Mas eacute antes o primeiro movimento que forma assim uma ceacutelula e eacute raro que uiacuten grande muacutesico siga a forma canocircnica os outros moviacutementos podem abrirshyse notadamente o segundo pel~ tema e variaccedilatildeo ateacute que Liszt asseg~re uma fusatildeo dos movimentos no poeshyma sinfocircnico A sonata aparece entatildeo antes como uma forma-cruzamento em que da junccedilatildeo das dimensotildees musicais da clausura dos compostos sonoros nasce a abertura de um plano de composiccedilatildeo

Deste ponto de vista o velho procedimento tema e variaccedilatildeo que manteacutem a moldura harmocircnica do tema daacute lugar a uma espeacutecie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composiccedilatildeo (Chopin Schumann Liszt eacute um novo momento essencial porshyque o trabalho criador natildeo mais versa sobre os comshyponentes sonoros motivos e temas abrindo um plano

245Percepto Mecto e Conceito

~~

mas ao contraacuterio versa diretamente sobre o proacuteprio plano de composiccedilatildeo para fazer nascer dele composshytos bem mais livres e desenquadrados quase agregados incompletos ou sobrecarregados em desequiliacutebrio pershymanente Eacute a cor do som que conta cada vez mais Passa-se da Casa ao Cosmos (segundo uma foacutermula que a obra de Stockhausen retomaraacute) O trabalho do plano de composiccedilatildeo se desenvolve em duas direccedilotildees que engendraratildeo uma desagregaccedilatildeo da moldura tonal os imensos fundos da variaccedilatildeo contiacutenua que fazem enshylaccedilar e se unir as forccedilas tornadas sonoras em Wagner ou os tons justapostos que separam e dispersam as forshyccedilas agenciando suas passagens reversiacuteveis em Debussy Universo-Wagner universo-Debussy Todas as aacuterias todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquashydrados infantis domeacutesticos profissionais nacionais territoriais satildeo carregados no grande Ritornelo um potente canto da terra - o desterritorializado - que se eleva com Mahler Berg ou Bartoacutek E sem duacutevida o plano de composiccedilatildeo engendra sempre novas clausuras como na seacuterie Mas sempre o gesto do muacutesico consiste em desenquadrar encontrar a abertura retornar o plashyno de composiccedilatildeo segundo a foacutermula que obceca Boushylez traccedilar uina transversal irredutiacutevel agrave vertical harmocircshynica como agrave horizontal meloacutedica que conduz blocos soshynoros agrave individualizaccedilatildeo variaacutevel mas tambeacutem abri-las ou fendecirc-las num espaccedilo-tempo que determina sua denshysidaae e seu percurso sobre o plano30 O grande ritorshynelo se eleva agrave medida que nos afastamos dacasa messhy

30 Boulez notadamente Points de repere Ed Bourgois-Le Seuil p 159 e segs (Pensez la musique aujourdhui Ed Gonthier p 59-62) A eXtensatildeo da seacuterie em duraccedilotildees intensidades e timbres natildeo eacute um ato de clausura mas ao contraacuterio uma abertura do que se fechava na middotseacuterie das alturas

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte246

--~=shyq

mo se eacute para retornar a ela jaacute que ningueacutem mais nos reconheceraacute quando retornarmos

Composiccedilatildeo composiccedilatildeo eis a uacutenica definiccedilatildeo da arte A composiccedilatildeo eacute esteacutetica e o que natildeo eacute composto natildeo eacute uma obra de arte Natildeo confundiremos todavia a composiccedilatildeo teacutecshynica trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciecircncia (matemaacutetica fiacutesica quiacutemica anatomia) e a comshyposiccedilatildeo esteacutetica que eacute o trabalho da sensaccedilatildeo Soacute este uacuteltishymo merece plenamente o nome de composiccedilatildeo e nunca uma obra de arte eacute feita por teacutecnica ou pela teacutecnica Certamente a teacutecnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra as palavras e a sintaxe em literatura natildeo apenas a tela em pintura mas sua preparashyccedilatildeo os pigmentos suas misturas os meacutetodos de perspectiva ou ent~o os doze sons da muacutesica ocidental os instrumentos as escalas as alturas E a relaccedilatildeo entre os dois planos oacute

plano de composiccedilatildeo teacutecnica e o plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica natildeo cessa de variar historicamente Sejam dois estados oponiacuteveis na pintura a oacuteleo num primeiro caso o quadro eacute preparado por um fundo branco sobre o qual se desenha e se dilui o desenho (esboccedilo) enfim se potildee a cor as sombras e as luzes No outro caso o fundo se torna cada vez mais espesso opaco e absorvente de modo que ele se colore na divisatildeo e o trabalho se faz em plena massa sobre uma gama escura as correccedilotildees substituindo o esboccedilo o pintor pintaraacute sobre cor depois cor ao lado de cor as cores se tornando cada vez mais relevos a arquitetura sendo assegurada pelo contraste dos complementares e a concordacircncia dos anaacuteshylogos (Van Gogh) eacute por e nagrave cor que se encontraraacute a arshyquitetura mesmo se eacute preciso renunciar aos relevos parareshyconstituir grandes unidades colorantes Eacute verdade que Xavier de Langlais vecirc em todo este segundo caso uma longa decashydecircncia que caino efecircmero e natildeo chega a restaurar uma ar-

Percepto Mecto e Conceito 247

quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem duacutevida esta observaccedilatildeo coloca ao meshynos negativamente a questatildeo do progresso na arte jaacute que Langlais considera que a decadecircncia comeccedila jaacute depois de Van Eyck (um pouco como alguns param a muacutesica no canto greshygoriano ou a filosofia em Santo Tomaacutes) Mas eacute uma obsershyvaccedilatildeo teacutecnica que concerne somente ao material aleacutem de que a duraccedilatildeo do material eacute muito relativa a sensaccedilatildeo eacute de uma outra ordem e possui uma existecircncia em si enquanto o mashyterial dura A relaccedilatildeo da sensaccedilatildeo com o material deve pois ser avaliada nos limites da duraccedilatildeo do material qualquer que ela seja Se haacute progressatildeo em arte eacute porque a arte soacute pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retonws linhas de partilha mudanccedilas de niacuteveis e de escashy

I las Deste ponto de vista a distinccedilatildeo de dois estados da lf

pintura a oacuteleo toma um aspecto inteiramente diferente esshyI

teacutetico e natildeo mais teacutecnico- esta distinccedilatildeo natildeo conduz evishydentemente ao representativo ou natildeo jaacute que nenhuma arte nenhuma sensaccedilatildeo jamais foram representativas

li No primeiro caso a sensaccedilatildeo se realiza no material e natildeo existe fora desta realizaccedilatildeo Diriacuteamos que a sensaccedilatildeo (o composto de sensaccedilotildees) se projeta sobre o plano de composhysiccedilatildeo teacutecnica bem preparado de sorte que o plano -de comshyposiccedilatildeo esteacutetica venha recobri-lo Eacute preciso pois que o mashyterial compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graccedilas aos quais a sensaccedilatildeo projetada natildeo se realiza somenshyte cobrindo o qu1dro mas segundo uma profundidade A arte desfruta entatildeo de uma aparecircncia de transcendecircncia que se exprime natildeo numa coisa por representar mas no caraacuteter paradigmaacutetico da projeccedilatildeo e no caraacuteter simboacutelico da persshypectiva A Figura eacute como a fabulaccedilatildeo segundo Bergson tem

31 Xavier de Langlais La technique de la peinture agrave lhuile Ed Flammarion (E Goethe Traiteacute des couleurs Ed Triades sect 902-909)

248 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 249

middot i

uma origem religiosa Mas quando ela se torna esteacutetica sua transcendecircncia sensitiva entra numa oposiccedilatildeo surda ou abe-rshyta com a transcendecircncia suprasensiacutevel das religiotildees

No segundo caso natildeo eacute mais a sensaccedilatildeo que se realiza no material eacute antes o material que entra na sensaccedilatildeo Cershytamente a sensaccedilatildeo natildeo existe mais fora dessa entrada e o plano de composiccedilatildeo teacutecnica natildeo mais tem autonomia a natildeo ser no primeiro caso natildeo vale jamais por si mesmo Mas diriacuteamos agora que ele sobe no plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica e lhe daacute uma espessura proacutepria como diz Damisch inshydependente de qualquer perspectiva e profundidade Eacute o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transshycendecircncia aparente ou-de um modelo paradigmaacutetico e conshyfessam seu ateiacutesmo inocente seu paganismo E sem duacutevida entre estes dois casos estes dois estados da sensaccedilatildeo estes dois poacutelos da teacutecnica as transiccedilotildees as combinaccedilotildees e as coexistecircncias se fazem constantemente (por exemplo o trashybalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens) satildeo poacutelos abstratos ao inveacutes de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com oacuteleo e solvente se volta cada vez mais na direccedilatildeo do segundo poacutelo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composiccedilatilde~ esteacutetica -Eacute por isso -que eacute tatildeo falso definir a sensaccedilatildeo na pintura moderna pela admissatildeo de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a esshypessura natildeo precisa ser larga ou profunda Pocircde-se dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfiacuteshycie basta-lhe apoiar-se sobre os vazios e os plenos do pashypel Canson Eacute uma pintura que natildeo mais tem fundo porshyque o baixo emerge a superfiacutecie eacute esburacaacutevel ou o plashyno de composiccedilatildeo ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspecshytiva independentemente das sombras e mesmo da ordem

i r I li

I 32 Cf Christian Bonnefbi intervieweacute et commenteacute par Yvesshy

I Alain Bois Macula S-6

33 Damisch Fenecirctre jaime cadmium ou les dessous de la peinture Ed du Seuil pp 275-305 (e p 80 a espessura do plano em Pollock) Dashy

li misch eacute o autor que mais insistiu sobre a relaccedilatildeo -arte-pertsamento pinshytura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instauraacute-la Mallarmeacute fazia da espessura do livro uma dimensatildeo distinta da proshy) fundidade cf Jacques Scheacuterer Le livre de Mallarmeacute Gallimard p 55shy

I tema que Boulez retoma por sua vez para a muacutesica (Points de repere p 161) iI

li 250 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

I I

cromaacutetica da cor (o colorista arbitraacuterio) Natildeo mais se recoshybre faz-se subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar Eacute uma promoccedilatildeo do solo e a escultura pode torshy

I nar-se plana jaacute que o plano se estratifica Natildeo magraveis se pinshyI ta sobre mas sob A arte informal levou muito longe

estas novas potecircncias da textura essa elevaccedilatildeo do solo com I Dubuffet e tambeacutem o expressionismo abstrato a arte mishy

nimalista procedendo por impregnaccedilotildees fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atraacutes de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem agrave vista do pintor o que enshytregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes estados a pintura eacute-penshysamento a visatildeo existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta

Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdashydeiro conceito mostrando que o tranccedilado poderia bem preencher para a pintura futura funccedilatildeo anaacuteloga agravequela que foi a da perspectiva O quemiddotnatildeo eacute proacuteprio da pintura jaacute que Damisch reencontra a mesma distinccedilatildeo no niacutevel do plano arquitetura quando Scarpa por exemplo rejeita o movishymento da projeccedilatildeo e os mecanismos da perspectiva para ins~ crever os volumes na espessura do proacuteprio plano33 bull E da literatura agrave muacutesica uma espessura material se afirma que

--~ middot

natildeo se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal Eacute umr I traccedilo caracteriacutestico da literatura moderna quando as palashyr vras e a sintaxe sobem no plano de composiccedilatildeo e o cavam I em lugar de colocaacute-lo em perspectiva E a muacutesica quando

renuncia agrave projeccedilatildeo como agraves perspeCtivas que impotildeem a alshyI tura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano soshynoro uma espessura singular da qual testemunham elemenshy

I tos muito diferentes a evoluccedilatildeo dos estudos parapiano que deixam de ser somente teacutecnicas para tornar-se estudos de

jmiddot composiccedilatildeo (com a extensatildeo que lhes daacute Debussy) a imshy

portacircncia decisiva que toma a orquestraccedilatildeo em Berlioz a i subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferashyI I ccedilatildeo dos afectos de percussatildeo com os metais as peles e as mashy

deiras e sua ligaccedilatildeo com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparaacuteveis do material (Varese) a redeshy

I finiccedilatildeo do percepto em funccedilatildeo do ruiacutedo do som bruto e I complexo (Cage) natildeo apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendecircnshy

cia a uma apariccedilatildeo natildeo-cromaacutetica do som num continuum infiiuumlto (muacutesica eletrocircnica ou eletro-acuacutestica)I

I Soacute haacute um plano uacutenico no sentido em que a arte natildeo

I comporta outro plano diferente do da composiccedilatildeo esteacutetica

I o plano teacutecnico com efeito eacute necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composiccedilatildeo esteacutetica Eacute sob esta conshydiccedilatildeo que a mateacuteria se torna expressiva o composto de senshysaccedilotildees se realiza no material ou o material entra no comshyI posto mas sempre de modo a se situar sobre um plano deI

I composiccedilatildeo propriamente esteacutetico Haacute muitos problemasI teacutecnicos em arte e a ciecircncia pode intervir em sua soluccedilatildeo

mas eles soacute se colocam em funccedilatildeo de problemas de composhysiccedilatildeo esteacutetica que concernem aos compostos de sensaccedilotildees e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus mateshyriais Toda sensaccedilatildeo eacute uma questatildeo mesmo se soacute o silecircncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em enshy

251Percepto Afecto e Conceito

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 8: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

-~

to Satilde~ atletas natildeo atletas que teriam formado bem seus corpos e cultivado o vivido embora muitos escritores natildeo tenham resistido a ver nos _esportes urn meio de aumentar a arte e a vida mas antes atletas bizarros do tipo campeatildeo de jejum ou grande Nadador que natildeo sabia nadar Um Atletismo que natildeo eacute orgacircnico ou muscular mas um atleshy

-tismo afetivo que seria o duplo inorgacircnico do outro um atletismo do devir que revela somente forccedilas que natildeo satildeo as suas espectro plaacutestico 10 Desse ponto de vista os artisshytas satildeo como os filoacutesofos tecircm fregueJ-temente uma saudeshyziacutenha fraacutegil mas natildeo por causa de suas doenccedilas nem de suas neuroses eacute porque eleSViraacutem na_ida atildefgQCfe grande ccedill_ccedil_mais paratildeqliatildefquer um de grande demais para eles e gue QOcircs ndes ~atildedlscreta datildelliuumlrttamp1atildes-~~Jilt2ecirc~mbeacutem a fonte ~o fOcirclego q~llL~YiYJr_atraYi~~49s~clQ~l~ do_civishyflo (o 9~~~~E-~~P--ordf~~Q~-sauacutede) U~ dia saberemos talvez que natildeo havia art~ m~soacuteru~nte_~duumlina 1I

-------c5-[~ct-~iacutetapaa menos ~s afecccedilotildees que o pershycepto as percepccedilotildees Q afecto natildeo eacute a gassagltle um esshytado vivido a um outro mas o deviccedilnatildeqJ~_lJID-ordf9~QO homem __~~~--amp-- -middot---ltC-~=-----lt10-

Ahab natildeo imita Moby Dick e Pentesileacuteia natildeo se comporta como a cadela natildeo eacute uma imitaccedilatildeo uma simpatia vivida nem mesmo uma identificaccedilatildeo imaginaacuteria Natildeo eacute a semelhanshyccedila embora haja semelhanccedila Mas justamente eacute apenas uma semelhanccedila produzida Eacute antes uma extrema contiguumlidade num enlaccedilamento entre duas sensaccedilotildees sem semelhanccedila ou ao contraacuterio no distanciamento de uma luz que capta as duas num mesmo reflexo Andreacute Dhocirctel soube colocar seus pershy

10 Artaud Le theacuteacirctre et son double (Oeuvres completesGallimard IV p 154)

middot 11 Le Cleacutezio HAI Ed Flammarion p -7 (sou um iacutendio emboshyra natildeo saiba cultivar o milho nem talhar uma piroga ) Num texto ceacuteleshybre Michaux falava da sauacutedemiddotproacutepria agrave arte posfaacutecio a Mes proprieacuteshyteacutes La nuit remmue Gallimard p 193

li Filosofia Ciecircilcia Loacutegica e Arte

sonagens em estranhos devires-vegetais tornar-se aacutervore ou tornar-seaacutester natildeo eacute diz ele que um se transforme no outro

ma~~~~a--~um12 outro12 ~~~-~-lgg__ecirceacuteP~e ~~EN~shy

~2IDQ~~l)~sect~Sl9middot Eacute uma zona de indeterminaccedilatildeo de indiscerniacutebilidade como se coisas animais e pessoas (Ahab e Moby Dick Pentesileacuteia e a cadela) tivessem atingido em cada caso este ponto (todavia no infinito) que precede imeshydiatamente sua diferenciaccedilatildeo natural~gQ_JtlJccedil~Jgt~ ccedilhordfmallW---shy

~2-_f~g9_Em Pierre ou les ambiguiteacutes Pierre ganha a zona em que ele natildeo pode mais distinguir-se middotde sua meia-irmatilde Isabelle e torna-se mulher Soacute a vida cria tais zonas em que turbishylhonam os vivos e soacute a arte pode atingi-la e penetraacute-la em sua empresa de co-criaccedilatildeo Eacute que a proacutepria arte vive dessas ( zonas de indeterminaccedilatildeo quando o material entra na sen- - ~

Q) ssaccedilatildeo como numa escultura de Rodin Satildeo blocos A pintu- ri ra precisa d~ uma coisa diferente da habilidade do desenhista f f que marcana a semelhanccedila entre formas humanas e animais ( sect_

e nos faria assistir agrave sua metamorfose ~Jf_ccedilisQJ ~ordfltU~QltaacuteAt5 lltf __-9_~0_lot~_Ei~~EE f~pk~~~ d~-~~~ElaEf ~ de imp_r _a ex~~~~Uuml~~sielm-~~t~J-zonordfdlli1agravelEnios_e_sabeshy

-ffiili~CJllem eacute bulluuumlctrtaJ__~--flYoCcedilJJL~bumordfnordm_pruqw ordflg~Lsect_~J~ vanta como o triunfo ou o __~ony~nro_desuaindjsect~jnccediljig ~ssiacutenmiddot-cotildeyatilde-ou mesino Daumier Redon Eacute preciso que o artista crie os procedimentos e materiais sintaacuteticos ou plaacutesshyticos necessaacuterios a uma empresa tatildeo grande que recria por toda a parte os pacircntanos primitivos da vida (a utilizaccedilatildeo da aacutegua-forte e da aguatinta por Goya) O afecto natildeo opera cershytamente um retorno agraves origens como se se reencontrasse em termos de semelhanccedila a persistecircncia de um homem bestial ou primitivo sob o civilizado Eacute nos meios temperados de nossa civilizaccedilatildeo que agem e prosperam atualmente as zonas equatoriais ou glaciais que se furtam agrave diferenciaccedilatildeo dos gecircshy

12 Andreacute Dhocirctel Terres de meacutemoire Ed Universitaires p 225-226

Percepto Afecto e Conceito 225 224

neros dos sexos das ordens e dos reinos Soacute se trata de noacutes aqui e agora mas o que eacute animal em noacutes vegetal mineral ou humano natildeo mais eacute distinto- embora noacutes noacutes ganheshymos aiacute singularmente em distinccedilatildeo O maacuteximo de determishynaccedilatildeo emerge como _um claratildeo deste bloco de vizinhanccedila

Precisamente porque as opiniotildees satildeo funccedilotildees do vivishydo elas aspiram a um certo conhecimento das afecccedilotildees As opiniotildees insistem nas paixotildees do homem e sua eternidade Mas como observava Bergson temos a impressatildeo de que a oacute opiniatildeo desconhece os estados afetivos eque ela agrupa ou separa os que natildeo deveriam ser agrupados ou separados13 Jt Natildeo basta sequer como faz a psicanaacutelise dar objetos proishybidos agraves afecccedilotildees repertoriadas nem substituir as zonas de t indeterminaccedilatildeo por simples ambivalecircncias Um grande roshy ~

mancista eacute antes de tudo um artista que inventa afectos natildeo conheciacuteoosotildeu desconiiacuteecld(s e --os fazvir agrave luz do dia como- ------- ---------middot---- -------------middot-shy0 devir de seus personagens os estados crepusculares dos

- ~~-lei~~~os middotmiddotc-~middotaneacute~cr~middot-chreacutetien de Troyes (em relaccedilatildeo lI

com um conceito eventual de cavalaria) os estados de reshy 11

pouso quase catatocircnicos que se confundem com o dever segundo Mme de Lafayette (em relaccedilatildeo com um conceito de l

li quietismo) ateacute os estados de Beckett como afectos tanto I

imais grmdiosos quanto satildeo pobres em afecccedilotildees Quando I

Zola sugere a seus leitores prestem atenccedilatildeo natildeo eacute remorshyso que meus personagens sentem natildeo devemos mais ver nisso a expressatildeo de uma tese fisiologista mas a atribuiccedilatildeo de novos afectosque crescem com a criaccedilatildeo de personagens no naturalismo o Mediacuteocre o Perverso o Animal (o que Zola chama de instinto natildeo se separ~ de um devir-animal) Quando Emily Bronte traccedila o liame que_ une Heathcliff e Catherine ela inventa um afeto-violento (que sobretudo natildeo

13 Bergson La penseacutee et e mouvant Ed du Centenaire p 1293shy1294

226 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

v f ~~

c~l~f r1gt(1~~1- 7 (jJ-7JV middot ~

JV-10-shy

deve ser confundido com o amor algQ co~o uma fraternishydade entre dois lobos QuandoP~Oacute~t middot fece descrever tatildeo minuciosamente o ciuacuteme inventatilde-tt middot~fect~porque natildeo deishyxa de inverter a ordem que a opiniab--amptipOtildee nas afecccedilotildees segundo a qual o ciuacuteme seria uma consequecircncia infeliz do amor para ele ao contraacuterio o ciuacuteme eacute finalidade destinaccedilatildeo

e~reC1Suuml~~~CecircJ~~--j)uuml~J~-s~~E~I~~~~~sect~~~~~~~sectmiddotmiddotccedil_sect~e o s~nti9~-~2-~ig~~C2~~-to _ltlt_~_- ~~IP~2cgia _ Q~ando CL1ude Simon descreve o prodigjoso amor passivo da mushylher-terra esculpe um afecto de barro e pode dizer eacute mishynha matildee e acreditamos jaacute que ele diz mas uma matildeemiddotque ele introduz na sensaccedilatildeo e agrave qual ergue um monumento tatildeo original que natildeo eacute mais com seu filho real que ela tem uma relaccedilatildeo mas mais longinquamente com um outro personashygem de criaccedilatildeo a Eula de Faulkner Eacute assim que de um esshy

critor ~ um outro o~_gr~_de~-~f5S9LltJi~~ltim~~-P9si~L~-~ encademiddotar ouder~ampS~illCcedilQlJLlt~tQ~~~~~~-~~~i_es ~~~~~~~ fotildermaacutem vibram se e_nl~_s~_m QllJ~J~nccedil~P= sectiip-estesseres---~ acirceseUumls~CcedilatildeO(~datilde~~ta~da--relaccedilatildeodo_artistuQmo puacuteshy

b)i~~A~ltLasordf~--~~)f~-middot~l~~Jnmiddot-ordf~ul~ JJJJmesmQordf-Uacute~t~-~ll~~~s- _f 14 4

~~g~~ Rllt ~Y~l)tuaJ~Jilll4-sfccedillt ~~E~-~~-~--~nJr~gtI bull O artts- [k ta acrescenta sempre novas variedades ao mundo Os seres dordfsectJ~nsaccedilordf-ordmmiddotmiddotmiddot~ordfQvariltdades~ccedil_omoos~streampdecouccitossacirc~~ var~~ccedil2~~~~Q~~sectSf~~-deJu~_ccedilo _ ~ordfmiddot~-Y~~~i~y~js

Eacute de toda a arte que seria preciso dizer o artista eacute m__Qsect_ tracQId~-ordffeltos inventor de afec~~~E-tlt~oLde_ ordf-f~~ccedilJgsect~m middotICcedilatildeotilde com ~tp~~~E~~~~~-i~-~isOtildeEi~CcedilLU~QQsectgaacute Natildeo eacute soshymeilteeffisuacbraacute que ele os cria ele os daacute para noacutes e nos faz transformarnos com eles ele nos apanha no composto Os girassoacuteis de Van Gogh satildeo devires como os cardos de

14 Estas trecircs questotildees retornam frequentemente em Proust notadashymente Le temps retrouveacute La Pleacuteiade 111 p 895-896 (sobre a vida a vishysatildeo e a arte como criaccedilatildeo de universo)

Percepto Afecto e Conceito 227

Duumlrermiddot ou as mimosas de Bonnard Redon intitulava uma litografia Houve talvez uma visatildeo primeira ensaiada na flor A flor vecirc Puro e simples terror Vecirc vocecirc este girasshysol que olha para dentro pela janela do quarto Ele olha meu quarto todo o dia 15 Uma histoacuteria floral da pintura eacute como a criaccedilatildeo incessantemente retomada e continuada dos afecshytos e dos perceptos das flores A arte eacute a linguagem das senshysaccedilotildees que faz entrar nas palmiddot~r-acircsmiddotmiddotiacuteiatildes cOtilde~~~~-~~middot~~ ilas pearamiddots-x-agraverieuumli(t~iiacute~QfuilJatilde~middotr~uuml ci~aagravez ~IacuteriacuteJlE~~

middotmiddotarmiddotga~lziCcedilatilde() middotordf~i~~~fsiPsj2~-~~~~JiSCcedilsectlr~UJini otildees _ltiuacute~ sll-h~- tiiui por um ill()~E~Etccedilgt_Ccedilg~JEP~lt de ~certo~-de~Jectccedils middote de blo_~~smiddot~~j~-~SCcedilsect~sect91~fltt~~Jl-ordf~-ieze_sdeJing)Jordfg~lmiddot

O escritor se serve de palavras mas criando urna sintaxe que as introduz na sensaccedilatildeo e que faz gaguejar a liacutengua correnshyte ou tremer ou gritar ou mesmo cantar eacute o estilo o tom a linguagem das sensaccedilotildees ou a liacutengua estrangeira na liacutengua a que solicita um povo por vir oh gente do velho Catawba oh gente de Yoknapatawpha O escritor torce a linguagem fj-la vibrar a~accedila-a fende-a para arrancar o percepto middotdas percepccedilotildees o afecto das afecccedilotildees a sensaccedilatildeo da opiniatildeo_ ~---shy_________ -shyvisando esperamos esse povo que ainda natildeo existe Mishynha memoacuteria natildeo eacute amor mas hostilidade e ela trabalha natildeo para reproduzir mas para descartar o passado Que queshyria dizer minha famiacutelia eu natildeo sei Ela era gaga de nascenshyccedila e contudo tinha algo para dizer Sobre mim e sobre muishy

tos de meus contemporacircneos pesa a gagueira de nascenccedila Aprendemos natildeo a falar mas a balbuciar e eacute soacute ouvindo o ruiacutedo crescente do seacuteculo e uma vez lavados pela espuma de sua onda mais alta que noacutes dquiijmos uma liacutengua 16

Precisamente eacute a tarefa de toda arte e -a pintura a muacutesica

15 Lowry Au-dessous du fOlcan Ed Buchet-Chastel p 203

16 Mandelstam Le bruit du temps Ed LAge dhomme p 77

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

natildeo arrancam menos 4as cores e dos sons acordes novosmiddot paisagens plaacutesticas ou ~eloacutedicas personagens riacutetmicos que os elevam ateacute o canto 1a terra e o grito dos homens- o que constitui o tom a sauacutede o devir um bloco visual e sonoro Um monumento natildeo comemora natildeo celebra algo que se passou mas transmit~ para o futuro as sensaccedilotildees persistenshytes que encarnam o a ntecimento o sofrimento sempre reshynovado dos homens eu protesto recriado sua luta sempre retomada Tudo seri vatildeo por ue o sofrimento LeteIlO_~ as revoluccedilotildees natildeo so revivem agrave sua vitoacuteria Mas o sucesso dmiddot~ uumlmarevotildeTuCcedilatildeos9-resid~ela me~~-precisamente nas vibraccedilotildees nos enlace~ nas aberturas que deu aos homens no ~--=----=-----1-o----------------~-middot momento em que se fazia e que compotildeem em si um monushy

middotm-eirto sempre em vir como esses tuacutemulos aos quais cada novo viajante acresagraventa uma pedra A vitoacuteria de uma revolushyccedilatildeo eacute imanente e consiste nos novos liames que instaura entre os homens mesmo se estes natildeo duram mais Q1Je sua mateacuteshy

r~ em fusatilde5_gt_j~~~--~Jiga_peng-ordfillYisectatildeQ_acirc traiccedilatildeo As figuras esteacuteticas (e o estilo que as cria) natildeo tecircm nada

a ver com a retoacuterica SiiQsect~Otildees 12erceptos~-~~~~shy~ordf~nserostnsrisotildees_e_d~yius_Mas natildeb eacute tambeacutem pelo devir que definimos o conceito filosoacutefico e quase nos mesmos tershymos Todavia as figUumlras esteacuteticas natildeo satildeo idecircnticas aos pershysonagens cmiddotonceituais Talvez entrem uns nos outros num ~entido ou no outro como Igitur ou como Zaratustra mas

eacute na medida em que -~~~~sect~s cJ~-~onceicto2_~S2-Seit~-~ q~ sccedilg~ordfccedilotildee_s Nao eacute o mesmo devir O devir sensiacutevel eacute o ato pelo qual algo ou algueacutem natildeo paacutera de deVir-outro (continuanshydo a ser o que eacute) girassol ou Ahab enquanto que o devir

~

conceitual eacute o ato pelo qual o acontecimento comum ele mesmo esquiva o que eacute Este eacute heterogeneidade compreenshydida numa forma absoluta aquele a alteridad~ empenhada numa mateacuteria de expressatildeo O monumento natildeo atualiza o acontecimento virtual mas o incorpora ou o encarna acirca--shy

middot--~--middot---- middot~----------~middot---middot-middot--middot~~--middotmiddot- ---middotmiddotmiddotmiddot

Percepto Afecto e Conceito 228 229

lhe um corpo uma vida um universo Eacute assim que Proust definia a arte-monumento por esta via SU_I)erior ao vivido suas diferenccedilas qualitativas seus universos que consshytroem seus proacuteprios limites seus distanciamentos e suas aproshyximaccedilotildees suas constelaccedilotildees os blocos de sensaccedilotildees que eles fazem rolar o universo-Rembrandt ou universo-Debussy Estes universos natildeo satildeo nem virtuais nem atuais satildeo possiacuteshyveis o possiacutevel como categoria esteacutetica (possiacutevel por favor senatildeo eu sufoco) a existecircncia do possiacutevel enquanto que os acontecimentos satildeo a realidade do virtual formas de um penshysamento-Natureza que sobrevoam todos os universos posshysiacuteveis Natildeo significa dizer que o conceito precede de direito a sensaccedilatildeo mesmo um conceito de sensaccedilatildeo deve ser criashydo com seus meios proacuteprios e uma sensaccedilatildeo existe em seu universo possiacutevel sem que o conceito exista necessariamente em sua forma absoluta

Pode a sensaccedilatildeo ser assimilada a uma opiniatildeo originaacuteshyria Urdoxa como fundaccedilatildeo do mundo ou base imutaacutevel A fenlt_~~~~ogiltl encontra a sensaccedilatildeo em a priori materiais shyperceptivos e afectivos que transcendem acircs per-cepCcedilOtildees ecirc afecshy

Ccedilotilde~~middot~iVfd-atilde$ middototildemiddot-aillatildere-iotildeecircleVail cuumlgKmiddotocirc~--~s -~ens~Ccedilotilde~s middot ~acirc-middotratildes de Ceianne A fenomenologia deve fazer-se fenomenoshylogia da arte jaacute vimos porque a imanecircncia do vivido a um sujeito transcendental precisa exprimir-se em funccedilotildees transshycendentes que natildeo determinam somente a experiecircncia em geral mas que atravessam aqui e agora o proacuteprio vivido e I se encarnam nele constituindo sensaccedilotildees vivas O ser da senshy I

I I middot

I saccedil-ordf9_ _Q__blQccedilQ d_d percepto ~=fo ~feccedil~Q ltPareceraacute ~ornomiddot middot middot I

_Unidade ou a reversibilidade daquele que s~t~ - ~ middotd~-~-e~d- I doseu1ntiffiuuml eacute~t~r~ccedilmiddota~ento c()~uuml matilde~~ middotq~~i-~~~_middot- bullI

1 middot-middotmiddoteacute-~a--~arne que vai se libertar ao mesmo tempmiddoto do corpo vivishydo do mundo percebido e da intencionalidade de um ao outro ainda muito ligada agrave experiecircncia - enquanto a carshyne nos daacute o ser da sensaccedilatildeo e carrega a opiniatildeo originaacuteria

230 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

distinta do juiacutezo de experiecircncia Carne do mundo e carne do corpo como correlatos que se trocam coincidecircncia ideaF7

Eacute um curioso Carnismo que inspira este uacuteltimo avatar da fenomenologia e a precipita no misteacuterio da encarnaccedilatildeo eacute uma noccedilatildeo piedosa e sensual ao mesmo tempo uma misshytura de sensualidade e de religiatildeo sem a qual a carne talshymiddotvez natildeo ficaria de peacute sozinha (ela desceria ao longo dos ossos como nas figuras de Bacon) A questatildeo de saber se a carne eacute adequada agrave arte pode se enunciar assim eacute ela capaz de carshyregar o percepto e o afecto de constituir o ser de sensaccedilatildeo ou entatildeo eacute ela mesma que deve ser carregada e ingressar em outras potecircncias de vida

A carne natildeo eacute a sensaccedilatildeo mesmo se ela participa de sua middot revelaccedilatildeo Era precipitado dizer que a sensaccedilatildeo encarna A pintura faz a carne ora com o encarnado (superposiccedilotildees do vermelho e do branco) ora com tons justapostos (jUstaposhysiccedilatildeo de complementares em proporccedilotildees desiguais) Mas o que constitui a sensaccedilatildeo eacute o devir-animal vegetal etc que monta sob as praias de encarnado no nu mais gracioso mais delicado corria a presenccedila de um animal descarnado de um fruto descascado Vecircnus no espelho ou que surge na fusatildeo no cozimento no derramar de tons justapostos como a zona

17 Desde a Pheacutenomeacutenologie de lexpeacuterience estheacutetique (PUF 1953) Mikel Dufrenne fazia uma espeacutecie de analiacutetica dos a priori perceptivos e afetivos que fundavam a sensaccedilatildeo como relaccedilatildeo do corpo e do mundo Permanecia proacuteximo de Erwin Straus Mas haacute um ser de sensaccedilatildeo que se manifestaria na carne Era middota via de Merleau-Ponty no Le visible et linshyvisible Dufrenne fazia muit~s r~ervas a uma tal ontologia da carne (Loeil et loreille Ed LHexagone) Recentemente Didier Franck retomou o tema de Merleau-Ponty mostrando a importacircncia decisiva da carne segundo Heidegger e jaacute Husserl (Heidegger et le probleme de [espace Chair et corps Ed de Minuit) Todo este problema estaacute no centro de umafenoshymenologia da arte Talvez o livro ainda ineacutedito de Foucault Les aveux de la chair nos informe sobre as origens mais gerais da noccedilatildeo de carne e seu alcance na Patriacutestica

Percepto Afecto e Conceito 231

de indiscernibilidade do animal e do homem Talvez fosse um embaralhamento ou um caos se natildeo houvesse um segunshydo elemento para dar consistecircncia agrave carne_ A carne eacute apeshynas o termocircmetro de um devir A carne eacute tenra demais O segundo elemento eacute menos o osso ou a ossatura que a casa

rltmiddotr a armadura O corpo desabrocha na casa (ou num equivashylente numa fonte num bosque) Ora o que define a casa

( I satildeo as extensotildees isto eacute os pedaccedilos de planos diversamente orientados que datildeo agrave carne sua armadura primeiro-plano e plano-de-fundo paredes horizontais verticais esquerda dishyreita retos e obliacutequos retiliacuteneos ou curvos 18 Essas extenshysotildees satildeo muros mas tambeacutem solos portas j arielas portasshyjanelas espelhos que datildeo precisamente agrave sensaccedilatildeo o poder de manter-se sozinha em molduras autocircnomas Satildeo as faces do bloco de sensaccedilatildeo E haacute certamente dois signos do gecircnio dos grandes pintores bem como de sua humildade o respeishyto quase um terror com o qual eles se aproximam da cor e entram nela o cuidado com o qual operam a junccedilatildeo dos

Imiddot planos da qual depende o tipo de profundidade Sem este respeito e este cuidado a pintura eacute nula sem trabagravelho sem pensamento O difiacutecil eacute juntar natildeo as matildeos mas os planos Fazer relevos com planos que se juntam ou ao contraacuterio escarificaacute-los cortaacute-los Os dois problemas a arquitetura dos planos e o regime da cor se confundem frequumlentemente A junccedilatildeo dos planos horizontais e verticais em Ceacutezanne os planos na cor os planos o lugar colorido ou a alma dos planos entra em fusatildeo ~~_grandes P~_esou mesmo duas grandes obras que operem da mesma ~~nei-

-----=~Haacute todavia tendecircncias num pintotilderem middotGiaco~ettipo-18

Como mostra Georges Didi-Huberman a-carne middot~~gendra uma i duacutevida ela eacute proacutexima demais do caos donde a necessidade de uma

complernentariedade entre o encarnado e a extensatildeo tema essencial de La peinture incarneacutee retomada e desenvolvida em Devant limage Ed de Minuit

232 II Filosofia Ciecircncia middotLOacutegica e Arte

exemplo os planos horizontais fugidios diferem agrave direita e middot agrave esquerda e parecem se reunir na coisa (a carne da pequeshyna maccedilatilde) mas como uma pinccedila que a puxaria para traacutes e a faria desaparecer se uni plano vertical do qual soacute se vecirc o fio sem espessura natildeo viesse fixaacute-la retecirc-la no uacuteltimo moshymento dar-lhe uma existecircncia duraacutevel agrave maneira de um longo alfinete que a atravessa e a tornafiliforme por sua vez A casa participa de todo um devir Ela eacute vida ~vida natildeo

orgacircnica das coisas De todos 9s modos possiacute~sect~a_ LYD~-~ ccedilatildeo do~_planos~e mitorientaccedilOtildees que define t_casa-sens~-~-~---~ ccedilatildeo Aiacute~asa mesma (o_u-middotseu equivalente) eacute a junccedilatilde9T~itaii~------planos cQlruicles____

middot middot-middot--~rceiro elemento eacute o universo o qgtsmos Natildeo eacute soshymentea-Catildesatildeabeitaque secirc-cotildelliiriic co~ ~ p~i~agem por ~ffiatilde )atildeiieratilde- middoto-tr-uumlm espeino iiiatildes--atildemiddot-~8middot-middot~middotas~fe~~~~ ~~atilde__ atilde5e~t~-sotildebreuumlmuiiiacutevecircrsomiddot middotx- middotcamiddotsacirc-eacutefe viuuml~ecirct s~ vecirc sempre ~~pi~dmiddot -p-~i~~ fccedil~~- ~egetais de um jardim incontrolaacutevel cosmo das rosas Um universo-cosmos natildeo eacute carne Nem mesmo plano pedaccedilos de planos que se juntam planos dishyversamente orientados embora a junCcedilatildeo de todos os planos ateacute o infinito possa constituiacute-lo Mas o universo se apresenshyta no limite como o fundo da tela o uacutenico grande plano o vazio colorido o infinito monocromaacutetico A porta-janela como em Matisse soacute se abre sobre um fundo negro A carne ou antes a figura natildeo mais eacute o habitante do lugar da casa mas o habitante de um universo que suporta a casa (devir) Eacute como uma passagem do finito ao infinito mas tambeacutem do territoacuterio agrave desterritorializaccedilatildeo Eacute bem o momento do infishynito infinitos infinitamente variados Em Van Gogh em Gauguin em Bacon hoje vemos surgir a imediata tensatildeo da carne e do fundo dos derrames de tons justapostos e da praia

I

infinita de uma pura cor homogecircnea viva e saturada (em lugar de pintar a parede banal do mesquinho apartamento eu pinto o infinito faccedilo um fundo simples do azul mais rico

233Percepto Afecto e Conceito

mais intenso ) 19 Eacute verdade que o fundo monocromaacutetico

eacute mais do que um fundo E quando a pintura quer comeccedilar do zero construindo o percepto como um miacutenimo antes do vazio ou aproximando ao maacuteximo do conceito ela proceshy~e por monocromia liberada de toda casa ou de toda carne E notadamente o azul que se encarrega do infinito e qu~ faz do percepto uma sensibilidade coacutesmica ou o que haacute de mais conceitual na natureza ou de mais proposicional a cor na ausecircncia do homem o homem mergulhado na cor mas se o azul (ou o negro ou o branco) eacute perfeitamente idecircnshytico no quadro ou de um quadro a outro eacute a pintura que se torna azul- Yves o monocromo- segundo um puro afecto que faz o universo mergulhar no vazio e natildeo deixa mais nada por fazer ao pintor por excelecircncia20_

O vazio colorido ou antes colorante jaacute eacute forccedila A maior parte dos grandes monocromos da pintura moderna natildeo mais tecircm necessidade de recorrer a pequenos buquecircs murais mas apresentam variaccedilotildees sutis imperceptiacuteveis (todavia constishytutivas de um percepto) seja porque satildeo cortados ou conshy

19 Van Gogh carta a Theacuteo Correspondance complete Gallimardshy

Grasset III p 165 Os tons justapostos e sua relaccedilatildeo com o fundo satildeo um tema frequumlente da correspondecircncia Tambeacutem Gauguin carta a Schuffeshynecker 8 de outubro de 1888 Lettres Ed Grasset p 140 Eu fiz urn retra to de mim para Vincent Eacute acredito eu uma das minhas melhores coisas absolutamente incompreensiacutevel (por exemplo) de tal maneira eacute abstra~o o seu d~senho eacute inteiramente arbitraacuterio abstraccedilatildeo cornpl~ta a c~r ~uma co~ d1sta1te da natureza imagine uma vaga lembranccedila de ceram1ca retor~rda pelo fogo forte Todos os vermelhos os violetas rajashydas pelos claroes de fogo como uma fornalha radiante aos olhos sede das lutas do pensamento do pintor O todo sobre um fundo cromo seshymeado de buquecircs infantis Quarto de moccedila pura Eaacute ideacuteia do coloriacutesta arbitraacuterio segundo Van Gogh

~~ Cf Artst~dio no 16 Monochromes (sobre Klein artigos de Genev1eve Monmer e de Denys Riout e sobre os avatares atuais do monocromo artigo de Pierre Sterckx)

234 IL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tornados de um lado por uma fita um faixa uma extensatildeo de uma outra cor ou de um outro tom que mudam a intenshysidade do fundo por vizinhanccedila ou distanciamento seja porshyque apresentam figuras lineares ou circulares quase virtuais tom sobre torit seja porque satildeo esburacados ou fendidos satildeo problemas de junccedilatildeo ainda mas singularmente ampliados

Numa palavra o fundo vibra se enlaccedila ou se fende poque eacute portador de forccedilas apenas vislumbradas E o q~e fazia de iniacutecio a pintura abstrata convocar asforccedilas povoar o funshydo com as forccedilas que ele abriga fazer ver nelas mesmas as forshyccedilas invisiacuteveis traccedilar figuras de aparecircncia geomeacutetrica mas que natildeo seriam mais do que forccedilas forccedila de gravitaccedilatildeo de peso de rotaccedilatildeo de turbilhatildeo de explosatildeo de expansatildeo de gershyminaccedilatildeo forccedila do tempo (como se pode dizer da muacutesica que ela faz ouvir a forccedila sonora do tempo por exemplo com Messhysiaen ou da literatura com Proust que faz ler e conceber a forccedilaacute ilegiacutevel do tempo) Natildeo eacute esta a definiccedilatildeo do percepto em pessoa tornar sensiacuteveis as forccedilas insensiacuteveis que povoam o mundo e que nos afetam nos faze~ devir O que Mondrian obteacutem por simples diferenccedilas entre lados de um quadrado e Kandinsky pelas tensotildees lineares e Kupka pelos planos curvos em torno do ponto Do fundodas eras nos vem o que Worringer chamava a linha setentrional abstrata e infinita linha do uacuteniverso que forma fitas e tiras rodas e turbinas toda uma geometria viva elevando agrave intuiccedilatildeo as forccedilas mecacircshynicas constituindo uma poderosa vida natildeo-orgacircnica21

O eterno objeto da pintura pintar as forccedilas como Tintoretto

Encontraremos tambeacutem talvez a casa e o corpo E que o fundo infinito eacute frequumlentemente aquilo sobre o que se abre a janela ou a porta ou entatildeo eacute o muro da proacutepria casa ou o solo Van Gogh e Gauguin semeiam o fundo de pequenos buquecircs de flores para fazer deles o papel mural

21 Worringer Lart gothique Gallimard

Percepto Afecto e Conceito 235

sobre o qual se destaca o rosto de tons justapostos E com efeito a casa natildeo nos abriga das forccedilas coacutesmicas no maacutexishymo ela as filtra elas as seleciona Ela as transforma algushymas vezes em forccedilas benevolentes jamais a pintuacutera fez ver a forccedila de Arquimedes a forccedila do empuxltgt da aacutegua sobre um corpo gracioso que flutua na banheira da casa como Bonnard conseguiu em o Nuacute no banho Mas tambeacutem as forccedilas mais maleacuteficas podem entrar pela porta entreabershyta ou fechada satildeo as forccedilas coacutesmicas que provocam elas mesmas as zonas de indiscernibilidade nos_tons justapostos de um rosto esbofeteando-o arranhando-o fundindo-o em todos os sentidos e satildeo estas zonas de indiscernibilidade que revelam as forccedilas escondidas no fundo (Bacon) Haacute plena complementariedade enlace de forccedilas como perceptos e de devires como afectos A linha de forccedila abstrata segundo ~orringer eacute rica em motivos animalescos Agraves forccedilas coacutesshymicas ou cosmogeneacuteticas correspondem devires-aniinais veshy

geta1s moleculares ateacute que o corpo desapareccedila no fundo ou entre no muro ou inversamente que o fundo se contorshyccedila e turbilhone na zona de indiscernibilidade d~ corpo~ Numa palavra o ser de sensaccedilatildeo natildeo eacute a carne mas o comshyposto das forccedilas natildeo-humanas do cosmos dos devires natildeo humanos do homem e da casa ambiacutegua que os troccedila e os ajusta os faz turbilhonar como os ventos A carne eacute somenshyte o revelador que desaparece no que revela o composto de sensaccedilotildees Como toda pintura a pintura abstrata eacute senshysaccedilatildeo nada mais que sensaccedilatildeo Em Mondrian eacute o quarto que acede ao ser de sensaccedilatildeo dividindo por extensotildees coshyloridas o plano vazio infinito que lhe daacute de volta um infishy

d b 22 mto e a ertura Em Kandinsky as casa~ satildeo uma das

22 Mondrian Reacutealiteacute naturelle et reacutealiteacute abstraite (in Seuphor Piet

Mondnan sa vie son oeuvre Ed Flammarion) sobre o quarto e seu desdobramento Michel Butor analisou este desdobramento do quarto em

236 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

fontes da abstraccedilatildeo que consiste menos em figuras geomeacuteshytricas que em trajetos dinacircmicos e linhas de erracircncia cashyminhos que caminham nos arredores Em Kupka eacute de iniacuteshycio sobre o corpo que o pintor talha fitas ou extensotildees coshyloridas que produziratildeo no vazio os planos curos que o povoam tornando-se sensaccedilotildees cosmogeneacuteticas__ ~--~--~~~~

ccedilatildeoe~_pi_rjtual ou j~ um _~Ol~-~-i_g_viSgt= O _q~-~~t-~ lt1 ~~-~~- uacuten1verso A ~r~~ - aJs~rata_~ s~P25 a ~rte _C()flC~I~~~_Elt~~~-- middot-Pmiddot cacirc~dTmiddot~tamente a questatildeo que impregna toda pintura ---- --middot-shys~~ - ~-eiacute~Ccedilatilde-uumlcocircffi o ~~~~~ito~sti-a relaccedilatildeo com a funccedilatildeo middot_

A arte comeccedila talv-ez--com o animal ao menos com o animal que recorta um territoacuterio e faz uma casa (os dois satildeo correlativos ou ateacute mesmo se confundem por vezes no que se chama de habitat) Com o sistema territoacuterio-casa muitas funccedilotildees orgacircnicas se transformam sexualidade procriaccedilatildeo agressiyidade alimentaccedilatildeo mas natildeo eacute esta transformaccedilatildeo que explica a apariccedilatildeo do territoacuterio e da casa seria antes o

inverso o territoacuterio impli~a na emergecirc~lti~ e 91-ali_cll~~-~sel~ siacuteveis pu~- ~~-ibiIacuteia qua~ixacirciiacuteiacute -de ser unicaii1~_Ilt_e ushyecirc(ocircOtildeagraveisecirc cse- ioacuternani-tragraveCcediluumlsmiddotae express~Otilde__ tormiddotn~~~~J~~s~V~l tiffiagravetiansfocirciinaCcedilatildeo (G$iacute~i1Ccedilotildees23 s~ni duacutevida esta expresshysivlamp1deTaacuteestacirc dltu~ch~E~~~middot Vida~ pode-se dizer que o simshyples liacuterio dos campos celebra a gloacuteria dos ceacuteus Mas eacute com o territoacuterio e a casa que ela se torna construtiva e ergue os monumentos rituais de uma missa animal que celebra as quashylidades antes de tirar delas novas causalidades e finalidades Esta emergecircncia jaacute eacute arte natildeo somente no tratamento dos materiais exteriores mas nas posturas e cores do corpo nos

quadrados ou retacircngulos e a abertura sobre um quadrado interior vazio e branco como promessa de quarto futuro Reacutepertoire III Le carreacute et son habitant Ed de Minuit p 307-309314-315

23 Parece-nos que eacute um engano de Lorenz querer explicar o terrishytoacuterio por uma evoluccedilatildeo das funccedilotildees L agression Ed Flammarion

Percepto Afecto e Conceito 237

cantos e nos gritos que marcam o territoacuterio Eacute um jorro de traccedilos de~-~2E~~- e de sons inseparaacuteveisna dtecTda em que s~ -~riill _ ~xpr~~isiV_9_~ ~-(~i~~~i-~ill~~9l0_~_4~ middotr~ritoacute~i~fCcedil Scenopoietes dentirostris paacutessaro das florestas chuvosas da Austraacutelia faz cair da aacutervore as folhas que corta cada manhatilde vira-as para que sua face interna mais paacutelida contraste com a terra constroacutei para si assim uma cena co_mo um readyshymade e canta exatamente em cima sobre um cipoacute ou-um galho um canto complexo composto de suas proacuteprias noshytas e das de outros paacutessaros que imita nos intervalos mosshytrando a raiacutez amarela das plumas sob seubico eacute um artista completo24

bull Natildeo satildeo as sinestesias em plena carne satildeo esshytes blocos de sensaccedilotildees no territoacuterio cores posturas e sons que esboccedilam uma obra de arte total Estes blocos satildeo rishytorneios mas haacute tambeacutem ritornelos posturais e de cores e tanto posturas quanto cores se introduzem sempre nos ritor~ nelas Reverecircncias e posiccedilotildees eretas rondas traccedilos de coshyres O ritornelo inteiro eacute o ser de sensaccedilatildeo Os monumenshytos satildeo ritornelos Desse ponto de vista a arte natildeo deixaraacute de ser habitada pelo animal A arte deKafka seraacute a mais prbshy

funda meditaccedilatildeo sobre o territoacuterio e a casa o terreiro as pos~ turas~retrato (a cabeccedila pendida do habitante com o queixo enterrado no peito ou ao contraacuterio o grande tiacutemido que fura o teto com seu cracircnio anguloso) os sons-muacutesica (os catildees que satildeo muacutesicos por suas proacuteprias posturas Josephine a ratinha cantora da qual ja~ais saberemos se canta Gregoire que une seu piadoao violino de sua irmatilde numa relaccedilatildeo comshyplexa quarto-casa~territoacuterio) Eis tudo o que eacute preciso para fazer arte uma casa posturas cores e cantos - sob a conshy ~

I diccedilatildeo de que tudo isso se abra e se lance sobre ummiddotvetor louco como uma vassoura de bruxa uma linha d~ universo ou de

24 Marshall Bowler Birds Oxford at the Clarendon Press Gilliord Birds of Paradise and Bowler Birds Weidenfeld

desterritorializaccedilatildeoPerspectiva de um quarto com seus hashybitantes (Klee )

Cada territoacuterio cada habitat junt a seus planos ou suas extensotildees natildeo apenas espaccedilo-temporais mas qualitativos por exemplo uma postura e um canto um canto e urna cor perceptos e afectos E cada territoacuterio engloba ou recorta ter~ ritoacuterios de outras espeacutecies ou intercepta trajetos de animais sem territoacuterio formando junccedilotildees inUacuterespeciacuteficltlS Eacute neste sentido que Uexkuumlhl num primeiro aspecto desenvolve urna concepccedilatildeo da Natureza meloacutedica polifocircnica contrapontual Natildeo apenas o canto de um paacutessaro tem suas relaccedilotildees de conshytraponto mas pode fazer contraponto com o canto de oushytras espeacutecies e pode ele mesmo imitar estes outros cantos como se se tratasse de ocupar um maacuteximo de frequumlecircnciacuteas A teia de aranha conteacutem um retrato muito sutil da mosca que lhe serve de contraponto A concha como casa do moshylusco~ se torna quando ele morre o contraponto do Bershynardo-eremita que faz dela seu proacuteprio habitat graccedilas a sua cauda que natildeo eacute nadadeira mas preecircnsil e lhe permite capshyturar a concha vazia O Carrapato eacute organicamente consshytruiacutedo de modo a encontrar seu contraponto no mamiacutefero qualquer que passa sob seu galho como as folhas de carvashylho arranjadas como telhas nas gotas de chuva que escorshyrem Natildeo eacute uma concepccedilatildeo finalista mas meloacutedica em que natildeo mais sabemos o que eacute arte ou natureza (a teacutecnica nashytural) haacute contraponto toda vez que uma melodia interveacutem como motivo numa outra melodia como nas bodas enshytre a mamangava e a boca-de-leatildeo Essas relaccedilotildees de contrashyponto juntam planos formam compostos de sensaccedilotildees bloshycos e determinam devires Mas natildeo satildeo somente estes comshypostos meloacutedicos determinados que constituem a natureza mesmo generalizados eacute preciso tambeacutem sob um outro asshypecto um plano de composiccedilatildeo sinfocircnica infinio da Casa ao universo Da endo-sensaccedilatildeo agrave exo-sensaccedilatildeo E que o tershy

bull 238 li Filosofia Ciecircnci~ Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 239

r I I I-- --- --

~ -

middot1

ritoacuterio natildeo se limita a isolar e juntar ele abre para forccedilas coacutesmicas que sobem de dentro ou que vecircm de fora e torna sensiacuteveis seu efeito sobre o habitante Eacute um plano de comshyposiccedilatildeo do carvalho que porta ou comporta a forCcedila de deshysenvolvimento da bolota e a forccedila de formaccedilatildeo das gotas ou o do carrapato que tem a forccedila da luz capaz de atrair o animal ateacute a ponta de um galho numa altura suficiente e a forccedila de peso com a qual se deixa cair sobre o mamiacutefero que passa -e entre os dois nada um vazio assustador que pode durar anos se o mamiacutefero natildeo passa25bull E ora as forccedilas se fundem umas nas outras em transiccedilotildees sutis decompotildeemshyse tatildeo logo vislumbradas ora se alternam ou se enfrentam Ora deixam-se selecionar pelo territoacuterio e satildeo as mais beshynevolentes que entram na casa Ora lanccedilam um apelo misshyterioso que arranca o habitante do territoacuterio e o precipita numa viagem irresistiacutevel como os pintassilgos que se reuacuteshynem frequentemente aos milhotildees ou as lagostas que empreshyendem uma imensa peregrinaccedilatildeo no fundo da aacutegua Ora se abatem sobre o territoacuterio e o invertem malevolentes restaushyrando o caos de onde ele mal saiacutea Mas sempre se a nature za eacute como a arte eacute porque ela conjuga de todas as maneiras esses dois elementos vivos a Casa e o Universo o Heimlich e o Unheimlich o territoacuterio e a desterritorializaccedilatildeo os comshypostos meloacutedicos finitos e o grande plano de composiccedilatildeo infinito o pequeno e o grande ritornelo

A arte comeccedila natildeo com a carne mas com a casa eacute por isso que a arquitetura eacute a primeira das artes Quando Dushybuffet procura delifuitar um certo estado bruto de arte eacute a princiacutepio na direccedilatildeo da casa que ele se volta e toda sua obra se ergue entre a arquitetura a escultura e a -pintUra E limishy

25 Cf a obra-prima de J von Uexkuumlhl Mondes animaux et monde humain Theacuteorie de la signification Ed Gonthier (p 137-142 o contrashyponto motivo do desenvolvimento e da morfogecircnese)

II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tando-nos agrave forma a arquitetura mais saacutebia natildeo deixa de fazer planos extensotildees e de juntaacute-los Eacute por isso que se pode defini-la pela moldura um encaixe de molduras diversashymente orientadas que se imporiam agraves outras artes da pinshytura ao Cinema Jaacute se apresentou a preacute-histoacuteria do quadro como passando pelo afresco na moldura da parede o vitral ha moldura da janela o mosaico na moldura do solo A moldura eacute o umbigo que liga o quadro ao monujllento do qual ele eacute a reduccedilatildeo como a moldura goacutetica com coluneshytas ogiva e flecha26 Fazendo da arquitetura a arte primeira da moldura Bernard Cache pode enumerar um certo nuacutemero de formas enquadrantes que natildeo prejulgam nenhum conteuacuteshydo concreto nem funccedilatildeo do edifiacutecio o mu~o que isola ajashynela que capta ou seleciona (em conexatildeo com o territoacuterio) o solo-chatildeo que conjura ou rarifica (rarificar o relevo da terra para dar livre curso agraves trajetoacuterias humanas) o teto que envolve a singularidade do lugar (o teto em declive coloca o edifiacutecio sobre uma colina ) Encaixar essas molshyduras ou juntar todos estes planos extensatildeo de muro exshytensatildeo de janela extensatildeo de solo extensatildeo de declive eacute todo um sistema composto rico em pontos e contrapontos As molduras e suas junccedilotildees sustentam os compostos de sensashyccedilotildees datildeo consistecircncia agraves figuras confundem-se com seu dar consistecircncia seu proacuteprio tocircnus Aiacute estatildeo as faces de um cubo de sensaccedilatildeo As molduras ou as extensotildees natildeo satildeo coordeshynadas pertencem aos compostos de sensaccedilotildees dos quais consshytituem as faces as interfaces Mas por mais extensiacutevel que seja este sistema eacute preciso ainda um vasto plano de composhysiccedilatildeo que opere uma espeacutecie de desenquadramento segunshydo linhas de fuga que soacute passe pelo territoacuterio para abri-lo sobre o universo que vaacute da casa-territoacuterio agrave cidade-cosmos

26 Henry van de Velde Deacuteblaientent dart Archives darchitecture moderne p 20

Percepto Afecto e Conceito 240 241

-~-_--- middot-middotmiddot

e que dissolva agora a identidade do lugar na variaccedilatildeo da Natildeo parece que a literatura e particularmente o romance Terra uma cidade que tem menos um lugar do que vetores estejam imma outra situaccedilatildeo O que conta natildeo satildeo as opiniotildees pregueando a linha abstrata do relevo Eacute sobre este plano de dos personagens segundo seus tipos sociais e seu caraacuteter composiccedilatildeo como sobre um espaccedilo vetorial abstrato que como nos maus romances mas as relaccedilotildees de contraponto nos se traccedilam figuras geomeacutetricas cone prisma diedro plano quais entram e os compostos de sensaccedilotildees que esses persoshyestrito que nada mais satildeo do que forccedilas coacutesmicas capazes nagens experimentam eles mesmos ou fazem experimentar em de se fundir se transformar se enfrentar alternar mundo seus devires e suas visotildees O contraponto natildeo serve para reshyde antes do homem mesmo se eacute produto do homem27 Eacute latar conversas reais ou fictiacutecias mas para fazer mostrar a preciso agora desarticular os planos para remetecirc-los a seus loucura de qualquer conversa de qualquer diaacutelogo mesmo

j intervalos em vez de remetecirc-los uns aos outros para criar interior Eacute tudo isso que o romancista deve extrair das pershy

novos afectos28 Ora~ vimos que a pintura seguia o mesmo cepccedilotildees afecccedilotildees e opiniotildees de seus modelos psicossociais I

I movimento A moldura ou a borda do quadro eacute em primeiro que se integram inteiramente nos perceptos e os afectos aos ~ I

lugar o invoacutelucro externo de uma seacuterie de molduras ou de quais o personagem deve ser elevado sem conservar outra vida I

I extensotildees que se juntam operando contrapontos de linhas E isso implica num vasto plano de composiccedilatildeo natildeo preconshyi

I

e de cores determinando compostos de sensaccedilotildees Mas o cebido abstratamente mas que se constroacutei agrave medida que a obraI

quadro eacute atravessado tambeacutem por uma potecircncia de desenshy avanccedila abrindo misturando desfazendo e refazendo composshy

I I quadramento que o abre para um plano de composiccedilatildeo oumiddot tos cada vez mais ilimitados segundo a penetraccedilatildeo de forccedilasI

um campo de forccedilas infinito Estes procedimentos podem ser coacutesmicas A teoria do romance de Bakhtin vai nesse sentido muito diversos mesmo no nivel da moldura exterior formas mostrando de Rabelais a Dostoievski a coexistecircncia dos comshy

[I irregulares lados que natildeo se juntam molduras pintadas oacuteu ponentes contrapontuais polifocircnicos e plurivocais com um I pontilhados de Seurat quadrados sobre ponta de Mondrian plano de composiccedilatildeo arquitetocircnico ou sinfocircnico29 Um roshyi li tudo o que daacute ao quadro o poder de sair da tela Jamais o mancista como Dos Passos soube atingir uma arte inaudita

shy__jl

gesto do pintor fica na moldura ele sai da moldura e natildeo do contraponto nos compostos que forma entre personagens comeccedila com ela atualidades biografias olhos de cacircmera ao mesmo teropo queI

um plano de composiccedilatildeo se alarga ao infinito para arrastar tudo para a Vida para a Morte para a cidade-cosmos E se27 Sobre todos estes pontos a anaacutelise das formas enquadrantes e da

cidade-cosmos (exemplo de Lausanne) cf Bernard Cache L ameublement retornamos a Proust eacute porque mais do que qualquer outro du territoire (a sair) ele fez com que os dois elementos quase se sucedessem emboshy

28 Eacute Pascal Bonitzer que formou o conceito de desenquadramento ra presentes um no outro o plano de composiccedilatildeo aparece poushypara aplicar ao cinema novas rdaccedilotildees entre os planos ( Cahiers du cineacutema co a pouco para a vida para a morte compostos de sensashyndeg 284 janeiro de 1978) planos disjuntos triturados ou fragmentados ccedilatildeo que ele edifica no curso do tempo perdido ateacute aparecer graccedilas aos quais o cinema se torna uma arte depurando-se das emoccedilotildees

em si mesmo com o tempo reencontrado a forccedila ou antes asmais comuns que arriscam de lhe impedir o desenvolvimento esteacutetico e produzindo-lhe afetos novos (Le champ aveugle Ed Cahiers du cineacutema Gallirnard sisteme des eacutemotions ) 29 Bakhtin Estheacutetique et theacuteorie du roman Gallimard

242 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 243

-- ---

forccedilas do tempo puro tornadas sensiacuteveis Tudo comeccedila peshylas Casas que devem todas juntar suas dimensotildees e dar conshysistecircncia a compostos Combray o palacete de Guermantes o salatildeo Verdurin e as casas elas mesmas se ajuntam segundo interfaces mas um Cosmos planetaacuterio jaacute estaacute laacute visiacutevel ao telescoacutepio arruinando-as ou transformando-as e absorvenshydo-as no infinito do fundo Tudo comeccedila por titornelos cada

i

um dos quais como a pequena frase da sonata de Vinteuil natildeo se compotildee apenas em si mesmo mas com -outras sensashy

ccedilotildees variaacuteveis a de uma passante desconhecida a do rosto de Odette a das folhagens do bosque de Boulogne- e tudo tershy I mina no infinito no grade Ritornelo a frase do seacuteptuor em Iperpeacutetua metamorfose o canto dos universos o mundo de antes do homem ou de depois De cada coisa finita Proust faz uni ser de sensaccedilatildeo que natildeo deixa de se conservar mas fushygindo sobre um plano de composiccedilatildeo do Ser seres de fuga

EXEMPLO XII

Natildeo parece que a muacutesica esteja numa outra situashyccedilatildeo talvez mesmo a encarne com mais poder ainda Dizshyse todavia que o som natildeo tem moldura Mas os comshypostos de sensaccedilotildees os blocos sonoros tampouco tecircm extensotildees ou formas enquadrantes que devem em cada caso se ajuntar assegurando um certo fechamento Os casos mais simples satildeo a aacuteria meloacutedica que eacute um ritorshynelo monofocircnico o motivo que jaacute eacute polifocircnico um elemento de Uacutema melodia interveniente no desenvolvishymento de uma outra e fazendo contraponto o tema como objeto de modificaccedilotildees harm-ecircnicas atrav~s das linhas meloacutedicas Essas trecircs formas elementares consshytroacuteem a casa sonora e seu territoacuterio Elas correspondem agraves trecircs modalidades de um ser de sensaccedilatildeo pois a aacuteria eacute uma vibraccedilatildeo o motivo eacute um enlace um acoplamen-

I244 lIL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

jbull

to enquanto o tema natildeo fecha sem se descerrar fender e tambeacutem abrir Com efeito o fenocircmeno musical mais importante que aparece agrave medida que os compostos de sensaccedilotildees sonoras se tornam mais complexos eacute que sua clausura ou fechamento (por junccedilatildeo de suas molduras de suas extensotildees) se acompanha de uma possibilidade de abertura sobre um plano de composiccedilatildeo cada vez mais ilimitado Os seres de muacutesica satildeo como os seres vivos segundo Bergson que compensam sua clausura individuante por uma abertura feita de modulaccedilatildeo reshypeticcedilatildeo transposiccedilatildeo justaposiccedilatildeo Se consideramos a sonata encontramos aiacute uma forma enquadraacutente parshyticularmente riacutegida fundada sobre um bitematismo e da qual o primeiro movimento apresenta as seguintes dimensotildees exposiccedilatildeo do primeiro tema transiccedilatildeo exshyposiccedilatildeo do segundo tema desenvolvimentos sobre o pric rileiro ou o segundo coda desenvolvimento do primeiro com modulaccedilatildeo etc Eacute toda uma casa com seus aposhysentos Mas eacute antes o primeiro movimento que forma assim uma ceacutelula e eacute raro que uiacuten grande muacutesico siga a forma canocircnica os outros moviacutementos podem abrirshyse notadamente o segundo pel~ tema e variaccedilatildeo ateacute que Liszt asseg~re uma fusatildeo dos movimentos no poeshyma sinfocircnico A sonata aparece entatildeo antes como uma forma-cruzamento em que da junccedilatildeo das dimensotildees musicais da clausura dos compostos sonoros nasce a abertura de um plano de composiccedilatildeo

Deste ponto de vista o velho procedimento tema e variaccedilatildeo que manteacutem a moldura harmocircnica do tema daacute lugar a uma espeacutecie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composiccedilatildeo (Chopin Schumann Liszt eacute um novo momento essencial porshyque o trabalho criador natildeo mais versa sobre os comshyponentes sonoros motivos e temas abrindo um plano

245Percepto Mecto e Conceito

~~

mas ao contraacuterio versa diretamente sobre o proacuteprio plano de composiccedilatildeo para fazer nascer dele composshytos bem mais livres e desenquadrados quase agregados incompletos ou sobrecarregados em desequiliacutebrio pershymanente Eacute a cor do som que conta cada vez mais Passa-se da Casa ao Cosmos (segundo uma foacutermula que a obra de Stockhausen retomaraacute) O trabalho do plano de composiccedilatildeo se desenvolve em duas direccedilotildees que engendraratildeo uma desagregaccedilatildeo da moldura tonal os imensos fundos da variaccedilatildeo contiacutenua que fazem enshylaccedilar e se unir as forccedilas tornadas sonoras em Wagner ou os tons justapostos que separam e dispersam as forshyccedilas agenciando suas passagens reversiacuteveis em Debussy Universo-Wagner universo-Debussy Todas as aacuterias todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquashydrados infantis domeacutesticos profissionais nacionais territoriais satildeo carregados no grande Ritornelo um potente canto da terra - o desterritorializado - que se eleva com Mahler Berg ou Bartoacutek E sem duacutevida o plano de composiccedilatildeo engendra sempre novas clausuras como na seacuterie Mas sempre o gesto do muacutesico consiste em desenquadrar encontrar a abertura retornar o plashyno de composiccedilatildeo segundo a foacutermula que obceca Boushylez traccedilar uina transversal irredutiacutevel agrave vertical harmocircshynica como agrave horizontal meloacutedica que conduz blocos soshynoros agrave individualizaccedilatildeo variaacutevel mas tambeacutem abri-las ou fendecirc-las num espaccedilo-tempo que determina sua denshysidaae e seu percurso sobre o plano30 O grande ritorshynelo se eleva agrave medida que nos afastamos dacasa messhy

30 Boulez notadamente Points de repere Ed Bourgois-Le Seuil p 159 e segs (Pensez la musique aujourdhui Ed Gonthier p 59-62) A eXtensatildeo da seacuterie em duraccedilotildees intensidades e timbres natildeo eacute um ato de clausura mas ao contraacuterio uma abertura do que se fechava na middotseacuterie das alturas

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte246

--~=shyq

mo se eacute para retornar a ela jaacute que ningueacutem mais nos reconheceraacute quando retornarmos

Composiccedilatildeo composiccedilatildeo eis a uacutenica definiccedilatildeo da arte A composiccedilatildeo eacute esteacutetica e o que natildeo eacute composto natildeo eacute uma obra de arte Natildeo confundiremos todavia a composiccedilatildeo teacutecshynica trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciecircncia (matemaacutetica fiacutesica quiacutemica anatomia) e a comshyposiccedilatildeo esteacutetica que eacute o trabalho da sensaccedilatildeo Soacute este uacuteltishymo merece plenamente o nome de composiccedilatildeo e nunca uma obra de arte eacute feita por teacutecnica ou pela teacutecnica Certamente a teacutecnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra as palavras e a sintaxe em literatura natildeo apenas a tela em pintura mas sua preparashyccedilatildeo os pigmentos suas misturas os meacutetodos de perspectiva ou ent~o os doze sons da muacutesica ocidental os instrumentos as escalas as alturas E a relaccedilatildeo entre os dois planos oacute

plano de composiccedilatildeo teacutecnica e o plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica natildeo cessa de variar historicamente Sejam dois estados oponiacuteveis na pintura a oacuteleo num primeiro caso o quadro eacute preparado por um fundo branco sobre o qual se desenha e se dilui o desenho (esboccedilo) enfim se potildee a cor as sombras e as luzes No outro caso o fundo se torna cada vez mais espesso opaco e absorvente de modo que ele se colore na divisatildeo e o trabalho se faz em plena massa sobre uma gama escura as correccedilotildees substituindo o esboccedilo o pintor pintaraacute sobre cor depois cor ao lado de cor as cores se tornando cada vez mais relevos a arquitetura sendo assegurada pelo contraste dos complementares e a concordacircncia dos anaacuteshylogos (Van Gogh) eacute por e nagrave cor que se encontraraacute a arshyquitetura mesmo se eacute preciso renunciar aos relevos parareshyconstituir grandes unidades colorantes Eacute verdade que Xavier de Langlais vecirc em todo este segundo caso uma longa decashydecircncia que caino efecircmero e natildeo chega a restaurar uma ar-

Percepto Mecto e Conceito 247

quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem duacutevida esta observaccedilatildeo coloca ao meshynos negativamente a questatildeo do progresso na arte jaacute que Langlais considera que a decadecircncia comeccedila jaacute depois de Van Eyck (um pouco como alguns param a muacutesica no canto greshygoriano ou a filosofia em Santo Tomaacutes) Mas eacute uma obsershyvaccedilatildeo teacutecnica que concerne somente ao material aleacutem de que a duraccedilatildeo do material eacute muito relativa a sensaccedilatildeo eacute de uma outra ordem e possui uma existecircncia em si enquanto o mashyterial dura A relaccedilatildeo da sensaccedilatildeo com o material deve pois ser avaliada nos limites da duraccedilatildeo do material qualquer que ela seja Se haacute progressatildeo em arte eacute porque a arte soacute pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retonws linhas de partilha mudanccedilas de niacuteveis e de escashy

I las Deste ponto de vista a distinccedilatildeo de dois estados da lf

pintura a oacuteleo toma um aspecto inteiramente diferente esshyI

teacutetico e natildeo mais teacutecnico- esta distinccedilatildeo natildeo conduz evishydentemente ao representativo ou natildeo jaacute que nenhuma arte nenhuma sensaccedilatildeo jamais foram representativas

li No primeiro caso a sensaccedilatildeo se realiza no material e natildeo existe fora desta realizaccedilatildeo Diriacuteamos que a sensaccedilatildeo (o composto de sensaccedilotildees) se projeta sobre o plano de composhysiccedilatildeo teacutecnica bem preparado de sorte que o plano -de comshyposiccedilatildeo esteacutetica venha recobri-lo Eacute preciso pois que o mashyterial compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graccedilas aos quais a sensaccedilatildeo projetada natildeo se realiza somenshyte cobrindo o qu1dro mas segundo uma profundidade A arte desfruta entatildeo de uma aparecircncia de transcendecircncia que se exprime natildeo numa coisa por representar mas no caraacuteter paradigmaacutetico da projeccedilatildeo e no caraacuteter simboacutelico da persshypectiva A Figura eacute como a fabulaccedilatildeo segundo Bergson tem

31 Xavier de Langlais La technique de la peinture agrave lhuile Ed Flammarion (E Goethe Traiteacute des couleurs Ed Triades sect 902-909)

248 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 249

middot i

uma origem religiosa Mas quando ela se torna esteacutetica sua transcendecircncia sensitiva entra numa oposiccedilatildeo surda ou abe-rshyta com a transcendecircncia suprasensiacutevel das religiotildees

No segundo caso natildeo eacute mais a sensaccedilatildeo que se realiza no material eacute antes o material que entra na sensaccedilatildeo Cershytamente a sensaccedilatildeo natildeo existe mais fora dessa entrada e o plano de composiccedilatildeo teacutecnica natildeo mais tem autonomia a natildeo ser no primeiro caso natildeo vale jamais por si mesmo Mas diriacuteamos agora que ele sobe no plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica e lhe daacute uma espessura proacutepria como diz Damisch inshydependente de qualquer perspectiva e profundidade Eacute o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transshycendecircncia aparente ou-de um modelo paradigmaacutetico e conshyfessam seu ateiacutesmo inocente seu paganismo E sem duacutevida entre estes dois casos estes dois estados da sensaccedilatildeo estes dois poacutelos da teacutecnica as transiccedilotildees as combinaccedilotildees e as coexistecircncias se fazem constantemente (por exemplo o trashybalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens) satildeo poacutelos abstratos ao inveacutes de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com oacuteleo e solvente se volta cada vez mais na direccedilatildeo do segundo poacutelo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composiccedilatilde~ esteacutetica -Eacute por isso -que eacute tatildeo falso definir a sensaccedilatildeo na pintura moderna pela admissatildeo de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a esshypessura natildeo precisa ser larga ou profunda Pocircde-se dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfiacuteshycie basta-lhe apoiar-se sobre os vazios e os plenos do pashypel Canson Eacute uma pintura que natildeo mais tem fundo porshyque o baixo emerge a superfiacutecie eacute esburacaacutevel ou o plashyno de composiccedilatildeo ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspecshytiva independentemente das sombras e mesmo da ordem

i r I li

I 32 Cf Christian Bonnefbi intervieweacute et commenteacute par Yvesshy

I Alain Bois Macula S-6

33 Damisch Fenecirctre jaime cadmium ou les dessous de la peinture Ed du Seuil pp 275-305 (e p 80 a espessura do plano em Pollock) Dashy

li misch eacute o autor que mais insistiu sobre a relaccedilatildeo -arte-pertsamento pinshytura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instauraacute-la Mallarmeacute fazia da espessura do livro uma dimensatildeo distinta da proshy) fundidade cf Jacques Scheacuterer Le livre de Mallarmeacute Gallimard p 55shy

I tema que Boulez retoma por sua vez para a muacutesica (Points de repere p 161) iI

li 250 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

I I

cromaacutetica da cor (o colorista arbitraacuterio) Natildeo mais se recoshybre faz-se subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar Eacute uma promoccedilatildeo do solo e a escultura pode torshy

I nar-se plana jaacute que o plano se estratifica Natildeo magraveis se pinshyI ta sobre mas sob A arte informal levou muito longe

estas novas potecircncias da textura essa elevaccedilatildeo do solo com I Dubuffet e tambeacutem o expressionismo abstrato a arte mishy

nimalista procedendo por impregnaccedilotildees fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atraacutes de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem agrave vista do pintor o que enshytregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes estados a pintura eacute-penshysamento a visatildeo existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta

Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdashydeiro conceito mostrando que o tranccedilado poderia bem preencher para a pintura futura funccedilatildeo anaacuteloga agravequela que foi a da perspectiva O quemiddotnatildeo eacute proacuteprio da pintura jaacute que Damisch reencontra a mesma distinccedilatildeo no niacutevel do plano arquitetura quando Scarpa por exemplo rejeita o movishymento da projeccedilatildeo e os mecanismos da perspectiva para ins~ crever os volumes na espessura do proacuteprio plano33 bull E da literatura agrave muacutesica uma espessura material se afirma que

--~ middot

natildeo se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal Eacute umr I traccedilo caracteriacutestico da literatura moderna quando as palashyr vras e a sintaxe sobem no plano de composiccedilatildeo e o cavam I em lugar de colocaacute-lo em perspectiva E a muacutesica quando

renuncia agrave projeccedilatildeo como agraves perspeCtivas que impotildeem a alshyI tura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano soshynoro uma espessura singular da qual testemunham elemenshy

I tos muito diferentes a evoluccedilatildeo dos estudos parapiano que deixam de ser somente teacutecnicas para tornar-se estudos de

jmiddot composiccedilatildeo (com a extensatildeo que lhes daacute Debussy) a imshy

portacircncia decisiva que toma a orquestraccedilatildeo em Berlioz a i subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferashyI I ccedilatildeo dos afectos de percussatildeo com os metais as peles e as mashy

deiras e sua ligaccedilatildeo com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparaacuteveis do material (Varese) a redeshy

I finiccedilatildeo do percepto em funccedilatildeo do ruiacutedo do som bruto e I complexo (Cage) natildeo apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendecircnshy

cia a uma apariccedilatildeo natildeo-cromaacutetica do som num continuum infiiuumlto (muacutesica eletrocircnica ou eletro-acuacutestica)I

I Soacute haacute um plano uacutenico no sentido em que a arte natildeo

I comporta outro plano diferente do da composiccedilatildeo esteacutetica

I o plano teacutecnico com efeito eacute necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composiccedilatildeo esteacutetica Eacute sob esta conshydiccedilatildeo que a mateacuteria se torna expressiva o composto de senshysaccedilotildees se realiza no material ou o material entra no comshyI posto mas sempre de modo a se situar sobre um plano deI

I composiccedilatildeo propriamente esteacutetico Haacute muitos problemasI teacutecnicos em arte e a ciecircncia pode intervir em sua soluccedilatildeo

mas eles soacute se colocam em funccedilatildeo de problemas de composhysiccedilatildeo esteacutetica que concernem aos compostos de sensaccedilotildees e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus mateshyriais Toda sensaccedilatildeo eacute uma questatildeo mesmo se soacute o silecircncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em enshy

251Percepto Afecto e Conceito

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 9: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

neros dos sexos das ordens e dos reinos Soacute se trata de noacutes aqui e agora mas o que eacute animal em noacutes vegetal mineral ou humano natildeo mais eacute distinto- embora noacutes noacutes ganheshymos aiacute singularmente em distinccedilatildeo O maacuteximo de determishynaccedilatildeo emerge como _um claratildeo deste bloco de vizinhanccedila

Precisamente porque as opiniotildees satildeo funccedilotildees do vivishydo elas aspiram a um certo conhecimento das afecccedilotildees As opiniotildees insistem nas paixotildees do homem e sua eternidade Mas como observava Bergson temos a impressatildeo de que a oacute opiniatildeo desconhece os estados afetivos eque ela agrupa ou separa os que natildeo deveriam ser agrupados ou separados13 Jt Natildeo basta sequer como faz a psicanaacutelise dar objetos proishybidos agraves afecccedilotildees repertoriadas nem substituir as zonas de t indeterminaccedilatildeo por simples ambivalecircncias Um grande roshy ~

mancista eacute antes de tudo um artista que inventa afectos natildeo conheciacuteoosotildeu desconiiacuteecld(s e --os fazvir agrave luz do dia como- ------- ---------middot---- -------------middot-shy0 devir de seus personagens os estados crepusculares dos

- ~~-lei~~~os middotmiddotc-~middotaneacute~cr~middot-chreacutetien de Troyes (em relaccedilatildeo lI

com um conceito eventual de cavalaria) os estados de reshy 11

pouso quase catatocircnicos que se confundem com o dever segundo Mme de Lafayette (em relaccedilatildeo com um conceito de l

li quietismo) ateacute os estados de Beckett como afectos tanto I

imais grmdiosos quanto satildeo pobres em afecccedilotildees Quando I

Zola sugere a seus leitores prestem atenccedilatildeo natildeo eacute remorshyso que meus personagens sentem natildeo devemos mais ver nisso a expressatildeo de uma tese fisiologista mas a atribuiccedilatildeo de novos afectosque crescem com a criaccedilatildeo de personagens no naturalismo o Mediacuteocre o Perverso o Animal (o que Zola chama de instinto natildeo se separ~ de um devir-animal) Quando Emily Bronte traccedila o liame que_ une Heathcliff e Catherine ela inventa um afeto-violento (que sobretudo natildeo

13 Bergson La penseacutee et e mouvant Ed du Centenaire p 1293shy1294

226 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

v f ~~

c~l~f r1gt(1~~1- 7 (jJ-7JV middot ~

JV-10-shy

deve ser confundido com o amor algQ co~o uma fraternishydade entre dois lobos QuandoP~Oacute~t middot fece descrever tatildeo minuciosamente o ciuacuteme inventatilde-tt middot~fect~porque natildeo deishyxa de inverter a ordem que a opiniab--amptipOtildee nas afecccedilotildees segundo a qual o ciuacuteme seria uma consequecircncia infeliz do amor para ele ao contraacuterio o ciuacuteme eacute finalidade destinaccedilatildeo

e~reC1Suuml~~~CecircJ~~--j)uuml~J~-s~~E~I~~~~~sect~~~~~~~sectmiddotmiddotccedil_sect~e o s~nti9~-~2-~ig~~C2~~-to _ltlt_~_- ~~IP~2cgia _ Q~ando CL1ude Simon descreve o prodigjoso amor passivo da mushylher-terra esculpe um afecto de barro e pode dizer eacute mishynha matildee e acreditamos jaacute que ele diz mas uma matildeemiddotque ele introduz na sensaccedilatildeo e agrave qual ergue um monumento tatildeo original que natildeo eacute mais com seu filho real que ela tem uma relaccedilatildeo mas mais longinquamente com um outro personashygem de criaccedilatildeo a Eula de Faulkner Eacute assim que de um esshy

critor ~ um outro o~_gr~_de~-~f5S9LltJi~~ltim~~-P9si~L~-~ encademiddotar ouder~ampS~illCcedilQlJLlt~tQ~~~~~~-~~~i_es ~~~~~~~ fotildermaacutem vibram se e_nl~_s~_m QllJ~J~nccedil~P= sectiip-estesseres---~ acirceseUumls~CcedilatildeO(~datilde~~ta~da--relaccedilatildeodo_artistuQmo puacuteshy

b)i~~A~ltLasordf~--~~)f~-middot~l~~Jnmiddot-ordf~ul~ JJJJmesmQordf-Uacute~t~-~ll~~~s- _f 14 4

~~g~~ Rllt ~Y~l)tuaJ~Jilll4-sfccedillt ~~E~-~~-~--~nJr~gtI bull O artts- [k ta acrescenta sempre novas variedades ao mundo Os seres dordfsectJ~nsaccedilordf-ordmmiddotmiddotmiddot~ordfQvariltdades~ccedil_omoos~streampdecouccitossacirc~~ var~~ccedil2~~~~Q~~sectSf~~-deJu~_ccedilo _ ~ordfmiddot~-Y~~~i~y~js

Eacute de toda a arte que seria preciso dizer o artista eacute m__Qsect_ tracQId~-ordffeltos inventor de afec~~~E-tlt~oLde_ ordf-f~~ccedilJgsect~m middotICcedilatildeotilde com ~tp~~~E~~~~~-i~-~isOtildeEi~CcedilLU~QQsectgaacute Natildeo eacute soshymeilteeffisuacbraacute que ele os cria ele os daacute para noacutes e nos faz transformarnos com eles ele nos apanha no composto Os girassoacuteis de Van Gogh satildeo devires como os cardos de

14 Estas trecircs questotildees retornam frequentemente em Proust notadashymente Le temps retrouveacute La Pleacuteiade 111 p 895-896 (sobre a vida a vishysatildeo e a arte como criaccedilatildeo de universo)

Percepto Afecto e Conceito 227

Duumlrermiddot ou as mimosas de Bonnard Redon intitulava uma litografia Houve talvez uma visatildeo primeira ensaiada na flor A flor vecirc Puro e simples terror Vecirc vocecirc este girasshysol que olha para dentro pela janela do quarto Ele olha meu quarto todo o dia 15 Uma histoacuteria floral da pintura eacute como a criaccedilatildeo incessantemente retomada e continuada dos afecshytos e dos perceptos das flores A arte eacute a linguagem das senshysaccedilotildees que faz entrar nas palmiddot~r-acircsmiddotmiddotiacuteiatildes cOtilde~~~~-~~middot~~ ilas pearamiddots-x-agraverieuumli(t~iiacute~QfuilJatilde~middotr~uuml ci~aagravez ~IacuteriacuteJlE~~

middotmiddotarmiddotga~lziCcedilatilde() middotordf~i~~~fsiPsj2~-~~~~JiSCcedilsectlr~UJini otildees _ltiuacute~ sll-h~- tiiui por um ill()~E~Etccedilgt_Ccedilg~JEP~lt de ~certo~-de~Jectccedils middote de blo_~~smiddot~~j~-~SCcedilsect~sect91~fltt~~Jl-ordf~-ieze_sdeJing)Jordfg~lmiddot

O escritor se serve de palavras mas criando urna sintaxe que as introduz na sensaccedilatildeo e que faz gaguejar a liacutengua correnshyte ou tremer ou gritar ou mesmo cantar eacute o estilo o tom a linguagem das sensaccedilotildees ou a liacutengua estrangeira na liacutengua a que solicita um povo por vir oh gente do velho Catawba oh gente de Yoknapatawpha O escritor torce a linguagem fj-la vibrar a~accedila-a fende-a para arrancar o percepto middotdas percepccedilotildees o afecto das afecccedilotildees a sensaccedilatildeo da opiniatildeo_ ~---shy_________ -shyvisando esperamos esse povo que ainda natildeo existe Mishynha memoacuteria natildeo eacute amor mas hostilidade e ela trabalha natildeo para reproduzir mas para descartar o passado Que queshyria dizer minha famiacutelia eu natildeo sei Ela era gaga de nascenshyccedila e contudo tinha algo para dizer Sobre mim e sobre muishy

tos de meus contemporacircneos pesa a gagueira de nascenccedila Aprendemos natildeo a falar mas a balbuciar e eacute soacute ouvindo o ruiacutedo crescente do seacuteculo e uma vez lavados pela espuma de sua onda mais alta que noacutes dquiijmos uma liacutengua 16

Precisamente eacute a tarefa de toda arte e -a pintura a muacutesica

15 Lowry Au-dessous du fOlcan Ed Buchet-Chastel p 203

16 Mandelstam Le bruit du temps Ed LAge dhomme p 77

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

natildeo arrancam menos 4as cores e dos sons acordes novosmiddot paisagens plaacutesticas ou ~eloacutedicas personagens riacutetmicos que os elevam ateacute o canto 1a terra e o grito dos homens- o que constitui o tom a sauacutede o devir um bloco visual e sonoro Um monumento natildeo comemora natildeo celebra algo que se passou mas transmit~ para o futuro as sensaccedilotildees persistenshytes que encarnam o a ntecimento o sofrimento sempre reshynovado dos homens eu protesto recriado sua luta sempre retomada Tudo seri vatildeo por ue o sofrimento LeteIlO_~ as revoluccedilotildees natildeo so revivem agrave sua vitoacuteria Mas o sucesso dmiddot~ uumlmarevotildeTuCcedilatildeos9-resid~ela me~~-precisamente nas vibraccedilotildees nos enlace~ nas aberturas que deu aos homens no ~--=----=-----1-o----------------~-middot momento em que se fazia e que compotildeem em si um monushy

middotm-eirto sempre em vir como esses tuacutemulos aos quais cada novo viajante acresagraventa uma pedra A vitoacuteria de uma revolushyccedilatildeo eacute imanente e consiste nos novos liames que instaura entre os homens mesmo se estes natildeo duram mais Q1Je sua mateacuteshy

r~ em fusatilde5_gt_j~~~--~Jiga_peng-ordfillYisectatildeQ_acirc traiccedilatildeo As figuras esteacuteticas (e o estilo que as cria) natildeo tecircm nada

a ver com a retoacuterica SiiQsect~Otildees 12erceptos~-~~~~shy~ordf~nserostnsrisotildees_e_d~yius_Mas natildeb eacute tambeacutem pelo devir que definimos o conceito filosoacutefico e quase nos mesmos tershymos Todavia as figUumlras esteacuteticas natildeo satildeo idecircnticas aos pershysonagens cmiddotonceituais Talvez entrem uns nos outros num ~entido ou no outro como Igitur ou como Zaratustra mas

eacute na medida em que -~~~~sect~s cJ~-~onceicto2_~S2-Seit~-~ q~ sccedilg~ordfccedilotildee_s Nao eacute o mesmo devir O devir sensiacutevel eacute o ato pelo qual algo ou algueacutem natildeo paacutera de deVir-outro (continuanshydo a ser o que eacute) girassol ou Ahab enquanto que o devir

~

conceitual eacute o ato pelo qual o acontecimento comum ele mesmo esquiva o que eacute Este eacute heterogeneidade compreenshydida numa forma absoluta aquele a alteridad~ empenhada numa mateacuteria de expressatildeo O monumento natildeo atualiza o acontecimento virtual mas o incorpora ou o encarna acirca--shy

middot--~--middot---- middot~----------~middot---middot-middot--middot~~--middotmiddot- ---middotmiddotmiddotmiddot

Percepto Afecto e Conceito 228 229

lhe um corpo uma vida um universo Eacute assim que Proust definia a arte-monumento por esta via SU_I)erior ao vivido suas diferenccedilas qualitativas seus universos que consshytroem seus proacuteprios limites seus distanciamentos e suas aproshyximaccedilotildees suas constelaccedilotildees os blocos de sensaccedilotildees que eles fazem rolar o universo-Rembrandt ou universo-Debussy Estes universos natildeo satildeo nem virtuais nem atuais satildeo possiacuteshyveis o possiacutevel como categoria esteacutetica (possiacutevel por favor senatildeo eu sufoco) a existecircncia do possiacutevel enquanto que os acontecimentos satildeo a realidade do virtual formas de um penshysamento-Natureza que sobrevoam todos os universos posshysiacuteveis Natildeo significa dizer que o conceito precede de direito a sensaccedilatildeo mesmo um conceito de sensaccedilatildeo deve ser criashydo com seus meios proacuteprios e uma sensaccedilatildeo existe em seu universo possiacutevel sem que o conceito exista necessariamente em sua forma absoluta

Pode a sensaccedilatildeo ser assimilada a uma opiniatildeo originaacuteshyria Urdoxa como fundaccedilatildeo do mundo ou base imutaacutevel A fenlt_~~~~ogiltl encontra a sensaccedilatildeo em a priori materiais shyperceptivos e afectivos que transcendem acircs per-cepCcedilOtildees ecirc afecshy

Ccedilotilde~~middot~iVfd-atilde$ middototildemiddot-aillatildere-iotildeecircleVail cuumlgKmiddotocirc~--~s -~ens~Ccedilotilde~s middot ~acirc-middotratildes de Ceianne A fenomenologia deve fazer-se fenomenoshylogia da arte jaacute vimos porque a imanecircncia do vivido a um sujeito transcendental precisa exprimir-se em funccedilotildees transshycendentes que natildeo determinam somente a experiecircncia em geral mas que atravessam aqui e agora o proacuteprio vivido e I se encarnam nele constituindo sensaccedilotildees vivas O ser da senshy I

I I middot

I saccedil-ordf9_ _Q__blQccedilQ d_d percepto ~=fo ~feccedil~Q ltPareceraacute ~ornomiddot middot middot I

_Unidade ou a reversibilidade daquele que s~t~ - ~ middotd~-~-e~d- I doseu1ntiffiuuml eacute~t~r~ccedilmiddota~ento c()~uuml matilde~~ middotq~~i-~~~_middot- bullI

1 middot-middotmiddoteacute-~a--~arne que vai se libertar ao mesmo tempmiddoto do corpo vivishydo do mundo percebido e da intencionalidade de um ao outro ainda muito ligada agrave experiecircncia - enquanto a carshyne nos daacute o ser da sensaccedilatildeo e carrega a opiniatildeo originaacuteria

230 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

distinta do juiacutezo de experiecircncia Carne do mundo e carne do corpo como correlatos que se trocam coincidecircncia ideaF7

Eacute um curioso Carnismo que inspira este uacuteltimo avatar da fenomenologia e a precipita no misteacuterio da encarnaccedilatildeo eacute uma noccedilatildeo piedosa e sensual ao mesmo tempo uma misshytura de sensualidade e de religiatildeo sem a qual a carne talshymiddotvez natildeo ficaria de peacute sozinha (ela desceria ao longo dos ossos como nas figuras de Bacon) A questatildeo de saber se a carne eacute adequada agrave arte pode se enunciar assim eacute ela capaz de carshyregar o percepto e o afecto de constituir o ser de sensaccedilatildeo ou entatildeo eacute ela mesma que deve ser carregada e ingressar em outras potecircncias de vida

A carne natildeo eacute a sensaccedilatildeo mesmo se ela participa de sua middot revelaccedilatildeo Era precipitado dizer que a sensaccedilatildeo encarna A pintura faz a carne ora com o encarnado (superposiccedilotildees do vermelho e do branco) ora com tons justapostos (jUstaposhysiccedilatildeo de complementares em proporccedilotildees desiguais) Mas o que constitui a sensaccedilatildeo eacute o devir-animal vegetal etc que monta sob as praias de encarnado no nu mais gracioso mais delicado corria a presenccedila de um animal descarnado de um fruto descascado Vecircnus no espelho ou que surge na fusatildeo no cozimento no derramar de tons justapostos como a zona

17 Desde a Pheacutenomeacutenologie de lexpeacuterience estheacutetique (PUF 1953) Mikel Dufrenne fazia uma espeacutecie de analiacutetica dos a priori perceptivos e afetivos que fundavam a sensaccedilatildeo como relaccedilatildeo do corpo e do mundo Permanecia proacuteximo de Erwin Straus Mas haacute um ser de sensaccedilatildeo que se manifestaria na carne Era middota via de Merleau-Ponty no Le visible et linshyvisible Dufrenne fazia muit~s r~ervas a uma tal ontologia da carne (Loeil et loreille Ed LHexagone) Recentemente Didier Franck retomou o tema de Merleau-Ponty mostrando a importacircncia decisiva da carne segundo Heidegger e jaacute Husserl (Heidegger et le probleme de [espace Chair et corps Ed de Minuit) Todo este problema estaacute no centro de umafenoshymenologia da arte Talvez o livro ainda ineacutedito de Foucault Les aveux de la chair nos informe sobre as origens mais gerais da noccedilatildeo de carne e seu alcance na Patriacutestica

Percepto Afecto e Conceito 231

de indiscernibilidade do animal e do homem Talvez fosse um embaralhamento ou um caos se natildeo houvesse um segunshydo elemento para dar consistecircncia agrave carne_ A carne eacute apeshynas o termocircmetro de um devir A carne eacute tenra demais O segundo elemento eacute menos o osso ou a ossatura que a casa

rltmiddotr a armadura O corpo desabrocha na casa (ou num equivashylente numa fonte num bosque) Ora o que define a casa

( I satildeo as extensotildees isto eacute os pedaccedilos de planos diversamente orientados que datildeo agrave carne sua armadura primeiro-plano e plano-de-fundo paredes horizontais verticais esquerda dishyreita retos e obliacutequos retiliacuteneos ou curvos 18 Essas extenshysotildees satildeo muros mas tambeacutem solos portas j arielas portasshyjanelas espelhos que datildeo precisamente agrave sensaccedilatildeo o poder de manter-se sozinha em molduras autocircnomas Satildeo as faces do bloco de sensaccedilatildeo E haacute certamente dois signos do gecircnio dos grandes pintores bem como de sua humildade o respeishyto quase um terror com o qual eles se aproximam da cor e entram nela o cuidado com o qual operam a junccedilatildeo dos

Imiddot planos da qual depende o tipo de profundidade Sem este respeito e este cuidado a pintura eacute nula sem trabagravelho sem pensamento O difiacutecil eacute juntar natildeo as matildeos mas os planos Fazer relevos com planos que se juntam ou ao contraacuterio escarificaacute-los cortaacute-los Os dois problemas a arquitetura dos planos e o regime da cor se confundem frequumlentemente A junccedilatildeo dos planos horizontais e verticais em Ceacutezanne os planos na cor os planos o lugar colorido ou a alma dos planos entra em fusatildeo ~~_grandes P~_esou mesmo duas grandes obras que operem da mesma ~~nei-

-----=~Haacute todavia tendecircncias num pintotilderem middotGiaco~ettipo-18

Como mostra Georges Didi-Huberman a-carne middot~~gendra uma i duacutevida ela eacute proacutexima demais do caos donde a necessidade de uma

complernentariedade entre o encarnado e a extensatildeo tema essencial de La peinture incarneacutee retomada e desenvolvida em Devant limage Ed de Minuit

232 II Filosofia Ciecircncia middotLOacutegica e Arte

exemplo os planos horizontais fugidios diferem agrave direita e middot agrave esquerda e parecem se reunir na coisa (a carne da pequeshyna maccedilatilde) mas como uma pinccedila que a puxaria para traacutes e a faria desaparecer se uni plano vertical do qual soacute se vecirc o fio sem espessura natildeo viesse fixaacute-la retecirc-la no uacuteltimo moshymento dar-lhe uma existecircncia duraacutevel agrave maneira de um longo alfinete que a atravessa e a tornafiliforme por sua vez A casa participa de todo um devir Ela eacute vida ~vida natildeo

orgacircnica das coisas De todos 9s modos possiacute~sect~a_ LYD~-~ ccedilatildeo do~_planos~e mitorientaccedilOtildees que define t_casa-sens~-~-~---~ ccedilatildeo Aiacute~asa mesma (o_u-middotseu equivalente) eacute a junccedilatilde9T~itaii~------planos cQlruicles____

middot middot-middot--~rceiro elemento eacute o universo o qgtsmos Natildeo eacute soshymentea-Catildesatildeabeitaque secirc-cotildelliiriic co~ ~ p~i~agem por ~ffiatilde )atildeiieratilde- middoto-tr-uumlm espeino iiiatildes--atildemiddot-~8middot-middot~middotas~fe~~~~ ~~atilde__ atilde5e~t~-sotildebreuumlmuiiiacutevecircrsomiddot middotx- middotcamiddotsacirc-eacutefe viuuml~ecirct s~ vecirc sempre ~~pi~dmiddot -p-~i~~ fccedil~~- ~egetais de um jardim incontrolaacutevel cosmo das rosas Um universo-cosmos natildeo eacute carne Nem mesmo plano pedaccedilos de planos que se juntam planos dishyversamente orientados embora a junCcedilatildeo de todos os planos ateacute o infinito possa constituiacute-lo Mas o universo se apresenshyta no limite como o fundo da tela o uacutenico grande plano o vazio colorido o infinito monocromaacutetico A porta-janela como em Matisse soacute se abre sobre um fundo negro A carne ou antes a figura natildeo mais eacute o habitante do lugar da casa mas o habitante de um universo que suporta a casa (devir) Eacute como uma passagem do finito ao infinito mas tambeacutem do territoacuterio agrave desterritorializaccedilatildeo Eacute bem o momento do infishynito infinitos infinitamente variados Em Van Gogh em Gauguin em Bacon hoje vemos surgir a imediata tensatildeo da carne e do fundo dos derrames de tons justapostos e da praia

I

infinita de uma pura cor homogecircnea viva e saturada (em lugar de pintar a parede banal do mesquinho apartamento eu pinto o infinito faccedilo um fundo simples do azul mais rico

233Percepto Afecto e Conceito

mais intenso ) 19 Eacute verdade que o fundo monocromaacutetico

eacute mais do que um fundo E quando a pintura quer comeccedilar do zero construindo o percepto como um miacutenimo antes do vazio ou aproximando ao maacuteximo do conceito ela proceshy~e por monocromia liberada de toda casa ou de toda carne E notadamente o azul que se encarrega do infinito e qu~ faz do percepto uma sensibilidade coacutesmica ou o que haacute de mais conceitual na natureza ou de mais proposicional a cor na ausecircncia do homem o homem mergulhado na cor mas se o azul (ou o negro ou o branco) eacute perfeitamente idecircnshytico no quadro ou de um quadro a outro eacute a pintura que se torna azul- Yves o monocromo- segundo um puro afecto que faz o universo mergulhar no vazio e natildeo deixa mais nada por fazer ao pintor por excelecircncia20_

O vazio colorido ou antes colorante jaacute eacute forccedila A maior parte dos grandes monocromos da pintura moderna natildeo mais tecircm necessidade de recorrer a pequenos buquecircs murais mas apresentam variaccedilotildees sutis imperceptiacuteveis (todavia constishytutivas de um percepto) seja porque satildeo cortados ou conshy

19 Van Gogh carta a Theacuteo Correspondance complete Gallimardshy

Grasset III p 165 Os tons justapostos e sua relaccedilatildeo com o fundo satildeo um tema frequumlente da correspondecircncia Tambeacutem Gauguin carta a Schuffeshynecker 8 de outubro de 1888 Lettres Ed Grasset p 140 Eu fiz urn retra to de mim para Vincent Eacute acredito eu uma das minhas melhores coisas absolutamente incompreensiacutevel (por exemplo) de tal maneira eacute abstra~o o seu d~senho eacute inteiramente arbitraacuterio abstraccedilatildeo cornpl~ta a c~r ~uma co~ d1sta1te da natureza imagine uma vaga lembranccedila de ceram1ca retor~rda pelo fogo forte Todos os vermelhos os violetas rajashydas pelos claroes de fogo como uma fornalha radiante aos olhos sede das lutas do pensamento do pintor O todo sobre um fundo cromo seshymeado de buquecircs infantis Quarto de moccedila pura Eaacute ideacuteia do coloriacutesta arbitraacuterio segundo Van Gogh

~~ Cf Artst~dio no 16 Monochromes (sobre Klein artigos de Genev1eve Monmer e de Denys Riout e sobre os avatares atuais do monocromo artigo de Pierre Sterckx)

234 IL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tornados de um lado por uma fita um faixa uma extensatildeo de uma outra cor ou de um outro tom que mudam a intenshysidade do fundo por vizinhanccedila ou distanciamento seja porshyque apresentam figuras lineares ou circulares quase virtuais tom sobre torit seja porque satildeo esburacados ou fendidos satildeo problemas de junccedilatildeo ainda mas singularmente ampliados

Numa palavra o fundo vibra se enlaccedila ou se fende poque eacute portador de forccedilas apenas vislumbradas E o q~e fazia de iniacutecio a pintura abstrata convocar asforccedilas povoar o funshydo com as forccedilas que ele abriga fazer ver nelas mesmas as forshyccedilas invisiacuteveis traccedilar figuras de aparecircncia geomeacutetrica mas que natildeo seriam mais do que forccedilas forccedila de gravitaccedilatildeo de peso de rotaccedilatildeo de turbilhatildeo de explosatildeo de expansatildeo de gershyminaccedilatildeo forccedila do tempo (como se pode dizer da muacutesica que ela faz ouvir a forccedila sonora do tempo por exemplo com Messhysiaen ou da literatura com Proust que faz ler e conceber a forccedilaacute ilegiacutevel do tempo) Natildeo eacute esta a definiccedilatildeo do percepto em pessoa tornar sensiacuteveis as forccedilas insensiacuteveis que povoam o mundo e que nos afetam nos faze~ devir O que Mondrian obteacutem por simples diferenccedilas entre lados de um quadrado e Kandinsky pelas tensotildees lineares e Kupka pelos planos curvos em torno do ponto Do fundodas eras nos vem o que Worringer chamava a linha setentrional abstrata e infinita linha do uacuteniverso que forma fitas e tiras rodas e turbinas toda uma geometria viva elevando agrave intuiccedilatildeo as forccedilas mecacircshynicas constituindo uma poderosa vida natildeo-orgacircnica21

O eterno objeto da pintura pintar as forccedilas como Tintoretto

Encontraremos tambeacutem talvez a casa e o corpo E que o fundo infinito eacute frequumlentemente aquilo sobre o que se abre a janela ou a porta ou entatildeo eacute o muro da proacutepria casa ou o solo Van Gogh e Gauguin semeiam o fundo de pequenos buquecircs de flores para fazer deles o papel mural

21 Worringer Lart gothique Gallimard

Percepto Afecto e Conceito 235

sobre o qual se destaca o rosto de tons justapostos E com efeito a casa natildeo nos abriga das forccedilas coacutesmicas no maacutexishymo ela as filtra elas as seleciona Ela as transforma algushymas vezes em forccedilas benevolentes jamais a pintuacutera fez ver a forccedila de Arquimedes a forccedila do empuxltgt da aacutegua sobre um corpo gracioso que flutua na banheira da casa como Bonnard conseguiu em o Nuacute no banho Mas tambeacutem as forccedilas mais maleacuteficas podem entrar pela porta entreabershyta ou fechada satildeo as forccedilas coacutesmicas que provocam elas mesmas as zonas de indiscernibilidade nos_tons justapostos de um rosto esbofeteando-o arranhando-o fundindo-o em todos os sentidos e satildeo estas zonas de indiscernibilidade que revelam as forccedilas escondidas no fundo (Bacon) Haacute plena complementariedade enlace de forccedilas como perceptos e de devires como afectos A linha de forccedila abstrata segundo ~orringer eacute rica em motivos animalescos Agraves forccedilas coacutesshymicas ou cosmogeneacuteticas correspondem devires-aniinais veshy

geta1s moleculares ateacute que o corpo desapareccedila no fundo ou entre no muro ou inversamente que o fundo se contorshyccedila e turbilhone na zona de indiscernibilidade d~ corpo~ Numa palavra o ser de sensaccedilatildeo natildeo eacute a carne mas o comshyposto das forccedilas natildeo-humanas do cosmos dos devires natildeo humanos do homem e da casa ambiacutegua que os troccedila e os ajusta os faz turbilhonar como os ventos A carne eacute somenshyte o revelador que desaparece no que revela o composto de sensaccedilotildees Como toda pintura a pintura abstrata eacute senshysaccedilatildeo nada mais que sensaccedilatildeo Em Mondrian eacute o quarto que acede ao ser de sensaccedilatildeo dividindo por extensotildees coshyloridas o plano vazio infinito que lhe daacute de volta um infishy

d b 22 mto e a ertura Em Kandinsky as casa~ satildeo uma das

22 Mondrian Reacutealiteacute naturelle et reacutealiteacute abstraite (in Seuphor Piet

Mondnan sa vie son oeuvre Ed Flammarion) sobre o quarto e seu desdobramento Michel Butor analisou este desdobramento do quarto em

236 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

fontes da abstraccedilatildeo que consiste menos em figuras geomeacuteshytricas que em trajetos dinacircmicos e linhas de erracircncia cashyminhos que caminham nos arredores Em Kupka eacute de iniacuteshycio sobre o corpo que o pintor talha fitas ou extensotildees coshyloridas que produziratildeo no vazio os planos curos que o povoam tornando-se sensaccedilotildees cosmogeneacuteticas__ ~--~--~~~~

ccedilatildeoe~_pi_rjtual ou j~ um _~Ol~-~-i_g_viSgt= O _q~-~~t-~ lt1 ~~-~~- uacuten1verso A ~r~~ - aJs~rata_~ s~P25 a ~rte _C()flC~I~~~_Elt~~~-- middot-Pmiddot cacirc~dTmiddot~tamente a questatildeo que impregna toda pintura ---- --middot-shys~~ - ~-eiacute~Ccedilatilde-uumlcocircffi o ~~~~~ito~sti-a relaccedilatildeo com a funccedilatildeo middot_

A arte comeccedila talv-ez--com o animal ao menos com o animal que recorta um territoacuterio e faz uma casa (os dois satildeo correlativos ou ateacute mesmo se confundem por vezes no que se chama de habitat) Com o sistema territoacuterio-casa muitas funccedilotildees orgacircnicas se transformam sexualidade procriaccedilatildeo agressiyidade alimentaccedilatildeo mas natildeo eacute esta transformaccedilatildeo que explica a apariccedilatildeo do territoacuterio e da casa seria antes o

inverso o territoacuterio impli~a na emergecirc~lti~ e 91-ali_cll~~-~sel~ siacuteveis pu~- ~~-ibiIacuteia qua~ixacirciiacuteiacute -de ser unicaii1~_Ilt_e ushyecirc(ocircOtildeagraveisecirc cse- ioacuternani-tragraveCcediluumlsmiddotae express~Otilde__ tormiddotn~~~~J~~s~V~l tiffiagravetiansfocirciinaCcedilatildeo (G$iacute~i1Ccedilotildees23 s~ni duacutevida esta expresshysivlamp1deTaacuteestacirc dltu~ch~E~~~middot Vida~ pode-se dizer que o simshyples liacuterio dos campos celebra a gloacuteria dos ceacuteus Mas eacute com o territoacuterio e a casa que ela se torna construtiva e ergue os monumentos rituais de uma missa animal que celebra as quashylidades antes de tirar delas novas causalidades e finalidades Esta emergecircncia jaacute eacute arte natildeo somente no tratamento dos materiais exteriores mas nas posturas e cores do corpo nos

quadrados ou retacircngulos e a abertura sobre um quadrado interior vazio e branco como promessa de quarto futuro Reacutepertoire III Le carreacute et son habitant Ed de Minuit p 307-309314-315

23 Parece-nos que eacute um engano de Lorenz querer explicar o terrishytoacuterio por uma evoluccedilatildeo das funccedilotildees L agression Ed Flammarion

Percepto Afecto e Conceito 237

cantos e nos gritos que marcam o territoacuterio Eacute um jorro de traccedilos de~-~2E~~- e de sons inseparaacuteveisna dtecTda em que s~ -~riill _ ~xpr~~isiV_9_~ ~-(~i~~~i-~ill~~9l0_~_4~ middotr~ritoacute~i~fCcedil Scenopoietes dentirostris paacutessaro das florestas chuvosas da Austraacutelia faz cair da aacutervore as folhas que corta cada manhatilde vira-as para que sua face interna mais paacutelida contraste com a terra constroacutei para si assim uma cena co_mo um readyshymade e canta exatamente em cima sobre um cipoacute ou-um galho um canto complexo composto de suas proacuteprias noshytas e das de outros paacutessaros que imita nos intervalos mosshytrando a raiacutez amarela das plumas sob seubico eacute um artista completo24

bull Natildeo satildeo as sinestesias em plena carne satildeo esshytes blocos de sensaccedilotildees no territoacuterio cores posturas e sons que esboccedilam uma obra de arte total Estes blocos satildeo rishytorneios mas haacute tambeacutem ritornelos posturais e de cores e tanto posturas quanto cores se introduzem sempre nos ritor~ nelas Reverecircncias e posiccedilotildees eretas rondas traccedilos de coshyres O ritornelo inteiro eacute o ser de sensaccedilatildeo Os monumenshytos satildeo ritornelos Desse ponto de vista a arte natildeo deixaraacute de ser habitada pelo animal A arte deKafka seraacute a mais prbshy

funda meditaccedilatildeo sobre o territoacuterio e a casa o terreiro as pos~ turas~retrato (a cabeccedila pendida do habitante com o queixo enterrado no peito ou ao contraacuterio o grande tiacutemido que fura o teto com seu cracircnio anguloso) os sons-muacutesica (os catildees que satildeo muacutesicos por suas proacuteprias posturas Josephine a ratinha cantora da qual ja~ais saberemos se canta Gregoire que une seu piadoao violino de sua irmatilde numa relaccedilatildeo comshyplexa quarto-casa~territoacuterio) Eis tudo o que eacute preciso para fazer arte uma casa posturas cores e cantos - sob a conshy ~

I diccedilatildeo de que tudo isso se abra e se lance sobre ummiddotvetor louco como uma vassoura de bruxa uma linha d~ universo ou de

24 Marshall Bowler Birds Oxford at the Clarendon Press Gilliord Birds of Paradise and Bowler Birds Weidenfeld

desterritorializaccedilatildeoPerspectiva de um quarto com seus hashybitantes (Klee )

Cada territoacuterio cada habitat junt a seus planos ou suas extensotildees natildeo apenas espaccedilo-temporais mas qualitativos por exemplo uma postura e um canto um canto e urna cor perceptos e afectos E cada territoacuterio engloba ou recorta ter~ ritoacuterios de outras espeacutecies ou intercepta trajetos de animais sem territoacuterio formando junccedilotildees inUacuterespeciacuteficltlS Eacute neste sentido que Uexkuumlhl num primeiro aspecto desenvolve urna concepccedilatildeo da Natureza meloacutedica polifocircnica contrapontual Natildeo apenas o canto de um paacutessaro tem suas relaccedilotildees de conshytraponto mas pode fazer contraponto com o canto de oushytras espeacutecies e pode ele mesmo imitar estes outros cantos como se se tratasse de ocupar um maacuteximo de frequumlecircnciacuteas A teia de aranha conteacutem um retrato muito sutil da mosca que lhe serve de contraponto A concha como casa do moshylusco~ se torna quando ele morre o contraponto do Bershynardo-eremita que faz dela seu proacuteprio habitat graccedilas a sua cauda que natildeo eacute nadadeira mas preecircnsil e lhe permite capshyturar a concha vazia O Carrapato eacute organicamente consshytruiacutedo de modo a encontrar seu contraponto no mamiacutefero qualquer que passa sob seu galho como as folhas de carvashylho arranjadas como telhas nas gotas de chuva que escorshyrem Natildeo eacute uma concepccedilatildeo finalista mas meloacutedica em que natildeo mais sabemos o que eacute arte ou natureza (a teacutecnica nashytural) haacute contraponto toda vez que uma melodia interveacutem como motivo numa outra melodia como nas bodas enshytre a mamangava e a boca-de-leatildeo Essas relaccedilotildees de contrashyponto juntam planos formam compostos de sensaccedilotildees bloshycos e determinam devires Mas natildeo satildeo somente estes comshypostos meloacutedicos determinados que constituem a natureza mesmo generalizados eacute preciso tambeacutem sob um outro asshypecto um plano de composiccedilatildeo sinfocircnica infinio da Casa ao universo Da endo-sensaccedilatildeo agrave exo-sensaccedilatildeo E que o tershy

bull 238 li Filosofia Ciecircnci~ Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 239

r I I I-- --- --

~ -

middot1

ritoacuterio natildeo se limita a isolar e juntar ele abre para forccedilas coacutesmicas que sobem de dentro ou que vecircm de fora e torna sensiacuteveis seu efeito sobre o habitante Eacute um plano de comshyposiccedilatildeo do carvalho que porta ou comporta a forCcedila de deshysenvolvimento da bolota e a forccedila de formaccedilatildeo das gotas ou o do carrapato que tem a forccedila da luz capaz de atrair o animal ateacute a ponta de um galho numa altura suficiente e a forccedila de peso com a qual se deixa cair sobre o mamiacutefero que passa -e entre os dois nada um vazio assustador que pode durar anos se o mamiacutefero natildeo passa25bull E ora as forccedilas se fundem umas nas outras em transiccedilotildees sutis decompotildeemshyse tatildeo logo vislumbradas ora se alternam ou se enfrentam Ora deixam-se selecionar pelo territoacuterio e satildeo as mais beshynevolentes que entram na casa Ora lanccedilam um apelo misshyterioso que arranca o habitante do territoacuterio e o precipita numa viagem irresistiacutevel como os pintassilgos que se reuacuteshynem frequentemente aos milhotildees ou as lagostas que empreshyendem uma imensa peregrinaccedilatildeo no fundo da aacutegua Ora se abatem sobre o territoacuterio e o invertem malevolentes restaushyrando o caos de onde ele mal saiacutea Mas sempre se a nature za eacute como a arte eacute porque ela conjuga de todas as maneiras esses dois elementos vivos a Casa e o Universo o Heimlich e o Unheimlich o territoacuterio e a desterritorializaccedilatildeo os comshypostos meloacutedicos finitos e o grande plano de composiccedilatildeo infinito o pequeno e o grande ritornelo

A arte comeccedila natildeo com a carne mas com a casa eacute por isso que a arquitetura eacute a primeira das artes Quando Dushybuffet procura delifuitar um certo estado bruto de arte eacute a princiacutepio na direccedilatildeo da casa que ele se volta e toda sua obra se ergue entre a arquitetura a escultura e a -pintUra E limishy

25 Cf a obra-prima de J von Uexkuumlhl Mondes animaux et monde humain Theacuteorie de la signification Ed Gonthier (p 137-142 o contrashyponto motivo do desenvolvimento e da morfogecircnese)

II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tando-nos agrave forma a arquitetura mais saacutebia natildeo deixa de fazer planos extensotildees e de juntaacute-los Eacute por isso que se pode defini-la pela moldura um encaixe de molduras diversashymente orientadas que se imporiam agraves outras artes da pinshytura ao Cinema Jaacute se apresentou a preacute-histoacuteria do quadro como passando pelo afresco na moldura da parede o vitral ha moldura da janela o mosaico na moldura do solo A moldura eacute o umbigo que liga o quadro ao monujllento do qual ele eacute a reduccedilatildeo como a moldura goacutetica com coluneshytas ogiva e flecha26 Fazendo da arquitetura a arte primeira da moldura Bernard Cache pode enumerar um certo nuacutemero de formas enquadrantes que natildeo prejulgam nenhum conteuacuteshydo concreto nem funccedilatildeo do edifiacutecio o mu~o que isola ajashynela que capta ou seleciona (em conexatildeo com o territoacuterio) o solo-chatildeo que conjura ou rarifica (rarificar o relevo da terra para dar livre curso agraves trajetoacuterias humanas) o teto que envolve a singularidade do lugar (o teto em declive coloca o edifiacutecio sobre uma colina ) Encaixar essas molshyduras ou juntar todos estes planos extensatildeo de muro exshytensatildeo de janela extensatildeo de solo extensatildeo de declive eacute todo um sistema composto rico em pontos e contrapontos As molduras e suas junccedilotildees sustentam os compostos de sensashyccedilotildees datildeo consistecircncia agraves figuras confundem-se com seu dar consistecircncia seu proacuteprio tocircnus Aiacute estatildeo as faces de um cubo de sensaccedilatildeo As molduras ou as extensotildees natildeo satildeo coordeshynadas pertencem aos compostos de sensaccedilotildees dos quais consshytituem as faces as interfaces Mas por mais extensiacutevel que seja este sistema eacute preciso ainda um vasto plano de composhysiccedilatildeo que opere uma espeacutecie de desenquadramento segunshydo linhas de fuga que soacute passe pelo territoacuterio para abri-lo sobre o universo que vaacute da casa-territoacuterio agrave cidade-cosmos

26 Henry van de Velde Deacuteblaientent dart Archives darchitecture moderne p 20

Percepto Afecto e Conceito 240 241

-~-_--- middot-middotmiddot

e que dissolva agora a identidade do lugar na variaccedilatildeo da Natildeo parece que a literatura e particularmente o romance Terra uma cidade que tem menos um lugar do que vetores estejam imma outra situaccedilatildeo O que conta natildeo satildeo as opiniotildees pregueando a linha abstrata do relevo Eacute sobre este plano de dos personagens segundo seus tipos sociais e seu caraacuteter composiccedilatildeo como sobre um espaccedilo vetorial abstrato que como nos maus romances mas as relaccedilotildees de contraponto nos se traccedilam figuras geomeacutetricas cone prisma diedro plano quais entram e os compostos de sensaccedilotildees que esses persoshyestrito que nada mais satildeo do que forccedilas coacutesmicas capazes nagens experimentam eles mesmos ou fazem experimentar em de se fundir se transformar se enfrentar alternar mundo seus devires e suas visotildees O contraponto natildeo serve para reshyde antes do homem mesmo se eacute produto do homem27 Eacute latar conversas reais ou fictiacutecias mas para fazer mostrar a preciso agora desarticular os planos para remetecirc-los a seus loucura de qualquer conversa de qualquer diaacutelogo mesmo

j intervalos em vez de remetecirc-los uns aos outros para criar interior Eacute tudo isso que o romancista deve extrair das pershy

novos afectos28 Ora~ vimos que a pintura seguia o mesmo cepccedilotildees afecccedilotildees e opiniotildees de seus modelos psicossociais I

I movimento A moldura ou a borda do quadro eacute em primeiro que se integram inteiramente nos perceptos e os afectos aos ~ I

lugar o invoacutelucro externo de uma seacuterie de molduras ou de quais o personagem deve ser elevado sem conservar outra vida I

I extensotildees que se juntam operando contrapontos de linhas E isso implica num vasto plano de composiccedilatildeo natildeo preconshyi

I

e de cores determinando compostos de sensaccedilotildees Mas o cebido abstratamente mas que se constroacutei agrave medida que a obraI

quadro eacute atravessado tambeacutem por uma potecircncia de desenshy avanccedila abrindo misturando desfazendo e refazendo composshy

I I quadramento que o abre para um plano de composiccedilatildeo oumiddot tos cada vez mais ilimitados segundo a penetraccedilatildeo de forccedilasI

um campo de forccedilas infinito Estes procedimentos podem ser coacutesmicas A teoria do romance de Bakhtin vai nesse sentido muito diversos mesmo no nivel da moldura exterior formas mostrando de Rabelais a Dostoievski a coexistecircncia dos comshy

[I irregulares lados que natildeo se juntam molduras pintadas oacuteu ponentes contrapontuais polifocircnicos e plurivocais com um I pontilhados de Seurat quadrados sobre ponta de Mondrian plano de composiccedilatildeo arquitetocircnico ou sinfocircnico29 Um roshyi li tudo o que daacute ao quadro o poder de sair da tela Jamais o mancista como Dos Passos soube atingir uma arte inaudita

shy__jl

gesto do pintor fica na moldura ele sai da moldura e natildeo do contraponto nos compostos que forma entre personagens comeccedila com ela atualidades biografias olhos de cacircmera ao mesmo teropo queI

um plano de composiccedilatildeo se alarga ao infinito para arrastar tudo para a Vida para a Morte para a cidade-cosmos E se27 Sobre todos estes pontos a anaacutelise das formas enquadrantes e da

cidade-cosmos (exemplo de Lausanne) cf Bernard Cache L ameublement retornamos a Proust eacute porque mais do que qualquer outro du territoire (a sair) ele fez com que os dois elementos quase se sucedessem emboshy

28 Eacute Pascal Bonitzer que formou o conceito de desenquadramento ra presentes um no outro o plano de composiccedilatildeo aparece poushypara aplicar ao cinema novas rdaccedilotildees entre os planos ( Cahiers du cineacutema co a pouco para a vida para a morte compostos de sensashyndeg 284 janeiro de 1978) planos disjuntos triturados ou fragmentados ccedilatildeo que ele edifica no curso do tempo perdido ateacute aparecer graccedilas aos quais o cinema se torna uma arte depurando-se das emoccedilotildees

em si mesmo com o tempo reencontrado a forccedila ou antes asmais comuns que arriscam de lhe impedir o desenvolvimento esteacutetico e produzindo-lhe afetos novos (Le champ aveugle Ed Cahiers du cineacutema Gallirnard sisteme des eacutemotions ) 29 Bakhtin Estheacutetique et theacuteorie du roman Gallimard

242 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 243

-- ---

forccedilas do tempo puro tornadas sensiacuteveis Tudo comeccedila peshylas Casas que devem todas juntar suas dimensotildees e dar conshysistecircncia a compostos Combray o palacete de Guermantes o salatildeo Verdurin e as casas elas mesmas se ajuntam segundo interfaces mas um Cosmos planetaacuterio jaacute estaacute laacute visiacutevel ao telescoacutepio arruinando-as ou transformando-as e absorvenshydo-as no infinito do fundo Tudo comeccedila por titornelos cada

i

um dos quais como a pequena frase da sonata de Vinteuil natildeo se compotildee apenas em si mesmo mas com -outras sensashy

ccedilotildees variaacuteveis a de uma passante desconhecida a do rosto de Odette a das folhagens do bosque de Boulogne- e tudo tershy I mina no infinito no grade Ritornelo a frase do seacuteptuor em Iperpeacutetua metamorfose o canto dos universos o mundo de antes do homem ou de depois De cada coisa finita Proust faz uni ser de sensaccedilatildeo que natildeo deixa de se conservar mas fushygindo sobre um plano de composiccedilatildeo do Ser seres de fuga

EXEMPLO XII

Natildeo parece que a muacutesica esteja numa outra situashyccedilatildeo talvez mesmo a encarne com mais poder ainda Dizshyse todavia que o som natildeo tem moldura Mas os comshypostos de sensaccedilotildees os blocos sonoros tampouco tecircm extensotildees ou formas enquadrantes que devem em cada caso se ajuntar assegurando um certo fechamento Os casos mais simples satildeo a aacuteria meloacutedica que eacute um ritorshynelo monofocircnico o motivo que jaacute eacute polifocircnico um elemento de Uacutema melodia interveniente no desenvolvishymento de uma outra e fazendo contraponto o tema como objeto de modificaccedilotildees harm-ecircnicas atrav~s das linhas meloacutedicas Essas trecircs formas elementares consshytroacuteem a casa sonora e seu territoacuterio Elas correspondem agraves trecircs modalidades de um ser de sensaccedilatildeo pois a aacuteria eacute uma vibraccedilatildeo o motivo eacute um enlace um acoplamen-

I244 lIL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

jbull

to enquanto o tema natildeo fecha sem se descerrar fender e tambeacutem abrir Com efeito o fenocircmeno musical mais importante que aparece agrave medida que os compostos de sensaccedilotildees sonoras se tornam mais complexos eacute que sua clausura ou fechamento (por junccedilatildeo de suas molduras de suas extensotildees) se acompanha de uma possibilidade de abertura sobre um plano de composiccedilatildeo cada vez mais ilimitado Os seres de muacutesica satildeo como os seres vivos segundo Bergson que compensam sua clausura individuante por uma abertura feita de modulaccedilatildeo reshypeticcedilatildeo transposiccedilatildeo justaposiccedilatildeo Se consideramos a sonata encontramos aiacute uma forma enquadraacutente parshyticularmente riacutegida fundada sobre um bitematismo e da qual o primeiro movimento apresenta as seguintes dimensotildees exposiccedilatildeo do primeiro tema transiccedilatildeo exshyposiccedilatildeo do segundo tema desenvolvimentos sobre o pric rileiro ou o segundo coda desenvolvimento do primeiro com modulaccedilatildeo etc Eacute toda uma casa com seus aposhysentos Mas eacute antes o primeiro movimento que forma assim uma ceacutelula e eacute raro que uiacuten grande muacutesico siga a forma canocircnica os outros moviacutementos podem abrirshyse notadamente o segundo pel~ tema e variaccedilatildeo ateacute que Liszt asseg~re uma fusatildeo dos movimentos no poeshyma sinfocircnico A sonata aparece entatildeo antes como uma forma-cruzamento em que da junccedilatildeo das dimensotildees musicais da clausura dos compostos sonoros nasce a abertura de um plano de composiccedilatildeo

Deste ponto de vista o velho procedimento tema e variaccedilatildeo que manteacutem a moldura harmocircnica do tema daacute lugar a uma espeacutecie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composiccedilatildeo (Chopin Schumann Liszt eacute um novo momento essencial porshyque o trabalho criador natildeo mais versa sobre os comshyponentes sonoros motivos e temas abrindo um plano

245Percepto Mecto e Conceito

~~

mas ao contraacuterio versa diretamente sobre o proacuteprio plano de composiccedilatildeo para fazer nascer dele composshytos bem mais livres e desenquadrados quase agregados incompletos ou sobrecarregados em desequiliacutebrio pershymanente Eacute a cor do som que conta cada vez mais Passa-se da Casa ao Cosmos (segundo uma foacutermula que a obra de Stockhausen retomaraacute) O trabalho do plano de composiccedilatildeo se desenvolve em duas direccedilotildees que engendraratildeo uma desagregaccedilatildeo da moldura tonal os imensos fundos da variaccedilatildeo contiacutenua que fazem enshylaccedilar e se unir as forccedilas tornadas sonoras em Wagner ou os tons justapostos que separam e dispersam as forshyccedilas agenciando suas passagens reversiacuteveis em Debussy Universo-Wagner universo-Debussy Todas as aacuterias todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquashydrados infantis domeacutesticos profissionais nacionais territoriais satildeo carregados no grande Ritornelo um potente canto da terra - o desterritorializado - que se eleva com Mahler Berg ou Bartoacutek E sem duacutevida o plano de composiccedilatildeo engendra sempre novas clausuras como na seacuterie Mas sempre o gesto do muacutesico consiste em desenquadrar encontrar a abertura retornar o plashyno de composiccedilatildeo segundo a foacutermula que obceca Boushylez traccedilar uina transversal irredutiacutevel agrave vertical harmocircshynica como agrave horizontal meloacutedica que conduz blocos soshynoros agrave individualizaccedilatildeo variaacutevel mas tambeacutem abri-las ou fendecirc-las num espaccedilo-tempo que determina sua denshysidaae e seu percurso sobre o plano30 O grande ritorshynelo se eleva agrave medida que nos afastamos dacasa messhy

30 Boulez notadamente Points de repere Ed Bourgois-Le Seuil p 159 e segs (Pensez la musique aujourdhui Ed Gonthier p 59-62) A eXtensatildeo da seacuterie em duraccedilotildees intensidades e timbres natildeo eacute um ato de clausura mas ao contraacuterio uma abertura do que se fechava na middotseacuterie das alturas

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte246

--~=shyq

mo se eacute para retornar a ela jaacute que ningueacutem mais nos reconheceraacute quando retornarmos

Composiccedilatildeo composiccedilatildeo eis a uacutenica definiccedilatildeo da arte A composiccedilatildeo eacute esteacutetica e o que natildeo eacute composto natildeo eacute uma obra de arte Natildeo confundiremos todavia a composiccedilatildeo teacutecshynica trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciecircncia (matemaacutetica fiacutesica quiacutemica anatomia) e a comshyposiccedilatildeo esteacutetica que eacute o trabalho da sensaccedilatildeo Soacute este uacuteltishymo merece plenamente o nome de composiccedilatildeo e nunca uma obra de arte eacute feita por teacutecnica ou pela teacutecnica Certamente a teacutecnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra as palavras e a sintaxe em literatura natildeo apenas a tela em pintura mas sua preparashyccedilatildeo os pigmentos suas misturas os meacutetodos de perspectiva ou ent~o os doze sons da muacutesica ocidental os instrumentos as escalas as alturas E a relaccedilatildeo entre os dois planos oacute

plano de composiccedilatildeo teacutecnica e o plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica natildeo cessa de variar historicamente Sejam dois estados oponiacuteveis na pintura a oacuteleo num primeiro caso o quadro eacute preparado por um fundo branco sobre o qual se desenha e se dilui o desenho (esboccedilo) enfim se potildee a cor as sombras e as luzes No outro caso o fundo se torna cada vez mais espesso opaco e absorvente de modo que ele se colore na divisatildeo e o trabalho se faz em plena massa sobre uma gama escura as correccedilotildees substituindo o esboccedilo o pintor pintaraacute sobre cor depois cor ao lado de cor as cores se tornando cada vez mais relevos a arquitetura sendo assegurada pelo contraste dos complementares e a concordacircncia dos anaacuteshylogos (Van Gogh) eacute por e nagrave cor que se encontraraacute a arshyquitetura mesmo se eacute preciso renunciar aos relevos parareshyconstituir grandes unidades colorantes Eacute verdade que Xavier de Langlais vecirc em todo este segundo caso uma longa decashydecircncia que caino efecircmero e natildeo chega a restaurar uma ar-

Percepto Mecto e Conceito 247

quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem duacutevida esta observaccedilatildeo coloca ao meshynos negativamente a questatildeo do progresso na arte jaacute que Langlais considera que a decadecircncia comeccedila jaacute depois de Van Eyck (um pouco como alguns param a muacutesica no canto greshygoriano ou a filosofia em Santo Tomaacutes) Mas eacute uma obsershyvaccedilatildeo teacutecnica que concerne somente ao material aleacutem de que a duraccedilatildeo do material eacute muito relativa a sensaccedilatildeo eacute de uma outra ordem e possui uma existecircncia em si enquanto o mashyterial dura A relaccedilatildeo da sensaccedilatildeo com o material deve pois ser avaliada nos limites da duraccedilatildeo do material qualquer que ela seja Se haacute progressatildeo em arte eacute porque a arte soacute pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retonws linhas de partilha mudanccedilas de niacuteveis e de escashy

I las Deste ponto de vista a distinccedilatildeo de dois estados da lf

pintura a oacuteleo toma um aspecto inteiramente diferente esshyI

teacutetico e natildeo mais teacutecnico- esta distinccedilatildeo natildeo conduz evishydentemente ao representativo ou natildeo jaacute que nenhuma arte nenhuma sensaccedilatildeo jamais foram representativas

li No primeiro caso a sensaccedilatildeo se realiza no material e natildeo existe fora desta realizaccedilatildeo Diriacuteamos que a sensaccedilatildeo (o composto de sensaccedilotildees) se projeta sobre o plano de composhysiccedilatildeo teacutecnica bem preparado de sorte que o plano -de comshyposiccedilatildeo esteacutetica venha recobri-lo Eacute preciso pois que o mashyterial compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graccedilas aos quais a sensaccedilatildeo projetada natildeo se realiza somenshyte cobrindo o qu1dro mas segundo uma profundidade A arte desfruta entatildeo de uma aparecircncia de transcendecircncia que se exprime natildeo numa coisa por representar mas no caraacuteter paradigmaacutetico da projeccedilatildeo e no caraacuteter simboacutelico da persshypectiva A Figura eacute como a fabulaccedilatildeo segundo Bergson tem

31 Xavier de Langlais La technique de la peinture agrave lhuile Ed Flammarion (E Goethe Traiteacute des couleurs Ed Triades sect 902-909)

248 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 249

middot i

uma origem religiosa Mas quando ela se torna esteacutetica sua transcendecircncia sensitiva entra numa oposiccedilatildeo surda ou abe-rshyta com a transcendecircncia suprasensiacutevel das religiotildees

No segundo caso natildeo eacute mais a sensaccedilatildeo que se realiza no material eacute antes o material que entra na sensaccedilatildeo Cershytamente a sensaccedilatildeo natildeo existe mais fora dessa entrada e o plano de composiccedilatildeo teacutecnica natildeo mais tem autonomia a natildeo ser no primeiro caso natildeo vale jamais por si mesmo Mas diriacuteamos agora que ele sobe no plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica e lhe daacute uma espessura proacutepria como diz Damisch inshydependente de qualquer perspectiva e profundidade Eacute o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transshycendecircncia aparente ou-de um modelo paradigmaacutetico e conshyfessam seu ateiacutesmo inocente seu paganismo E sem duacutevida entre estes dois casos estes dois estados da sensaccedilatildeo estes dois poacutelos da teacutecnica as transiccedilotildees as combinaccedilotildees e as coexistecircncias se fazem constantemente (por exemplo o trashybalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens) satildeo poacutelos abstratos ao inveacutes de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com oacuteleo e solvente se volta cada vez mais na direccedilatildeo do segundo poacutelo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composiccedilatilde~ esteacutetica -Eacute por isso -que eacute tatildeo falso definir a sensaccedilatildeo na pintura moderna pela admissatildeo de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a esshypessura natildeo precisa ser larga ou profunda Pocircde-se dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfiacuteshycie basta-lhe apoiar-se sobre os vazios e os plenos do pashypel Canson Eacute uma pintura que natildeo mais tem fundo porshyque o baixo emerge a superfiacutecie eacute esburacaacutevel ou o plashyno de composiccedilatildeo ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspecshytiva independentemente das sombras e mesmo da ordem

i r I li

I 32 Cf Christian Bonnefbi intervieweacute et commenteacute par Yvesshy

I Alain Bois Macula S-6

33 Damisch Fenecirctre jaime cadmium ou les dessous de la peinture Ed du Seuil pp 275-305 (e p 80 a espessura do plano em Pollock) Dashy

li misch eacute o autor que mais insistiu sobre a relaccedilatildeo -arte-pertsamento pinshytura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instauraacute-la Mallarmeacute fazia da espessura do livro uma dimensatildeo distinta da proshy) fundidade cf Jacques Scheacuterer Le livre de Mallarmeacute Gallimard p 55shy

I tema que Boulez retoma por sua vez para a muacutesica (Points de repere p 161) iI

li 250 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

I I

cromaacutetica da cor (o colorista arbitraacuterio) Natildeo mais se recoshybre faz-se subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar Eacute uma promoccedilatildeo do solo e a escultura pode torshy

I nar-se plana jaacute que o plano se estratifica Natildeo magraveis se pinshyI ta sobre mas sob A arte informal levou muito longe

estas novas potecircncias da textura essa elevaccedilatildeo do solo com I Dubuffet e tambeacutem o expressionismo abstrato a arte mishy

nimalista procedendo por impregnaccedilotildees fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atraacutes de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem agrave vista do pintor o que enshytregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes estados a pintura eacute-penshysamento a visatildeo existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta

Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdashydeiro conceito mostrando que o tranccedilado poderia bem preencher para a pintura futura funccedilatildeo anaacuteloga agravequela que foi a da perspectiva O quemiddotnatildeo eacute proacuteprio da pintura jaacute que Damisch reencontra a mesma distinccedilatildeo no niacutevel do plano arquitetura quando Scarpa por exemplo rejeita o movishymento da projeccedilatildeo e os mecanismos da perspectiva para ins~ crever os volumes na espessura do proacuteprio plano33 bull E da literatura agrave muacutesica uma espessura material se afirma que

--~ middot

natildeo se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal Eacute umr I traccedilo caracteriacutestico da literatura moderna quando as palashyr vras e a sintaxe sobem no plano de composiccedilatildeo e o cavam I em lugar de colocaacute-lo em perspectiva E a muacutesica quando

renuncia agrave projeccedilatildeo como agraves perspeCtivas que impotildeem a alshyI tura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano soshynoro uma espessura singular da qual testemunham elemenshy

I tos muito diferentes a evoluccedilatildeo dos estudos parapiano que deixam de ser somente teacutecnicas para tornar-se estudos de

jmiddot composiccedilatildeo (com a extensatildeo que lhes daacute Debussy) a imshy

portacircncia decisiva que toma a orquestraccedilatildeo em Berlioz a i subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferashyI I ccedilatildeo dos afectos de percussatildeo com os metais as peles e as mashy

deiras e sua ligaccedilatildeo com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparaacuteveis do material (Varese) a redeshy

I finiccedilatildeo do percepto em funccedilatildeo do ruiacutedo do som bruto e I complexo (Cage) natildeo apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendecircnshy

cia a uma apariccedilatildeo natildeo-cromaacutetica do som num continuum infiiuumlto (muacutesica eletrocircnica ou eletro-acuacutestica)I

I Soacute haacute um plano uacutenico no sentido em que a arte natildeo

I comporta outro plano diferente do da composiccedilatildeo esteacutetica

I o plano teacutecnico com efeito eacute necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composiccedilatildeo esteacutetica Eacute sob esta conshydiccedilatildeo que a mateacuteria se torna expressiva o composto de senshysaccedilotildees se realiza no material ou o material entra no comshyI posto mas sempre de modo a se situar sobre um plano deI

I composiccedilatildeo propriamente esteacutetico Haacute muitos problemasI teacutecnicos em arte e a ciecircncia pode intervir em sua soluccedilatildeo

mas eles soacute se colocam em funccedilatildeo de problemas de composhysiccedilatildeo esteacutetica que concernem aos compostos de sensaccedilotildees e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus mateshyriais Toda sensaccedilatildeo eacute uma questatildeo mesmo se soacute o silecircncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em enshy

251Percepto Afecto e Conceito

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 10: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

Duumlrermiddot ou as mimosas de Bonnard Redon intitulava uma litografia Houve talvez uma visatildeo primeira ensaiada na flor A flor vecirc Puro e simples terror Vecirc vocecirc este girasshysol que olha para dentro pela janela do quarto Ele olha meu quarto todo o dia 15 Uma histoacuteria floral da pintura eacute como a criaccedilatildeo incessantemente retomada e continuada dos afecshytos e dos perceptos das flores A arte eacute a linguagem das senshysaccedilotildees que faz entrar nas palmiddot~r-acircsmiddotmiddotiacuteiatildes cOtilde~~~~-~~middot~~ ilas pearamiddots-x-agraverieuumli(t~iiacute~QfuilJatilde~middotr~uuml ci~aagravez ~IacuteriacuteJlE~~

middotmiddotarmiddotga~lziCcedilatilde() middotordf~i~~~fsiPsj2~-~~~~JiSCcedilsectlr~UJini otildees _ltiuacute~ sll-h~- tiiui por um ill()~E~Etccedilgt_Ccedilg~JEP~lt de ~certo~-de~Jectccedils middote de blo_~~smiddot~~j~-~SCcedilsect~sect91~fltt~~Jl-ordf~-ieze_sdeJing)Jordfg~lmiddot

O escritor se serve de palavras mas criando urna sintaxe que as introduz na sensaccedilatildeo e que faz gaguejar a liacutengua correnshyte ou tremer ou gritar ou mesmo cantar eacute o estilo o tom a linguagem das sensaccedilotildees ou a liacutengua estrangeira na liacutengua a que solicita um povo por vir oh gente do velho Catawba oh gente de Yoknapatawpha O escritor torce a linguagem fj-la vibrar a~accedila-a fende-a para arrancar o percepto middotdas percepccedilotildees o afecto das afecccedilotildees a sensaccedilatildeo da opiniatildeo_ ~---shy_________ -shyvisando esperamos esse povo que ainda natildeo existe Mishynha memoacuteria natildeo eacute amor mas hostilidade e ela trabalha natildeo para reproduzir mas para descartar o passado Que queshyria dizer minha famiacutelia eu natildeo sei Ela era gaga de nascenshyccedila e contudo tinha algo para dizer Sobre mim e sobre muishy

tos de meus contemporacircneos pesa a gagueira de nascenccedila Aprendemos natildeo a falar mas a balbuciar e eacute soacute ouvindo o ruiacutedo crescente do seacuteculo e uma vez lavados pela espuma de sua onda mais alta que noacutes dquiijmos uma liacutengua 16

Precisamente eacute a tarefa de toda arte e -a pintura a muacutesica

15 Lowry Au-dessous du fOlcan Ed Buchet-Chastel p 203

16 Mandelstam Le bruit du temps Ed LAge dhomme p 77

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

natildeo arrancam menos 4as cores e dos sons acordes novosmiddot paisagens plaacutesticas ou ~eloacutedicas personagens riacutetmicos que os elevam ateacute o canto 1a terra e o grito dos homens- o que constitui o tom a sauacutede o devir um bloco visual e sonoro Um monumento natildeo comemora natildeo celebra algo que se passou mas transmit~ para o futuro as sensaccedilotildees persistenshytes que encarnam o a ntecimento o sofrimento sempre reshynovado dos homens eu protesto recriado sua luta sempre retomada Tudo seri vatildeo por ue o sofrimento LeteIlO_~ as revoluccedilotildees natildeo so revivem agrave sua vitoacuteria Mas o sucesso dmiddot~ uumlmarevotildeTuCcedilatildeos9-resid~ela me~~-precisamente nas vibraccedilotildees nos enlace~ nas aberturas que deu aos homens no ~--=----=-----1-o----------------~-middot momento em que se fazia e que compotildeem em si um monushy

middotm-eirto sempre em vir como esses tuacutemulos aos quais cada novo viajante acresagraventa uma pedra A vitoacuteria de uma revolushyccedilatildeo eacute imanente e consiste nos novos liames que instaura entre os homens mesmo se estes natildeo duram mais Q1Je sua mateacuteshy

r~ em fusatilde5_gt_j~~~--~Jiga_peng-ordfillYisectatildeQ_acirc traiccedilatildeo As figuras esteacuteticas (e o estilo que as cria) natildeo tecircm nada

a ver com a retoacuterica SiiQsect~Otildees 12erceptos~-~~~~shy~ordf~nserostnsrisotildees_e_d~yius_Mas natildeb eacute tambeacutem pelo devir que definimos o conceito filosoacutefico e quase nos mesmos tershymos Todavia as figUumlras esteacuteticas natildeo satildeo idecircnticas aos pershysonagens cmiddotonceituais Talvez entrem uns nos outros num ~entido ou no outro como Igitur ou como Zaratustra mas

eacute na medida em que -~~~~sect~s cJ~-~onceicto2_~S2-Seit~-~ q~ sccedilg~ordfccedilotildee_s Nao eacute o mesmo devir O devir sensiacutevel eacute o ato pelo qual algo ou algueacutem natildeo paacutera de deVir-outro (continuanshydo a ser o que eacute) girassol ou Ahab enquanto que o devir

~

conceitual eacute o ato pelo qual o acontecimento comum ele mesmo esquiva o que eacute Este eacute heterogeneidade compreenshydida numa forma absoluta aquele a alteridad~ empenhada numa mateacuteria de expressatildeo O monumento natildeo atualiza o acontecimento virtual mas o incorpora ou o encarna acirca--shy

middot--~--middot---- middot~----------~middot---middot-middot--middot~~--middotmiddot- ---middotmiddotmiddotmiddot

Percepto Afecto e Conceito 228 229

lhe um corpo uma vida um universo Eacute assim que Proust definia a arte-monumento por esta via SU_I)erior ao vivido suas diferenccedilas qualitativas seus universos que consshytroem seus proacuteprios limites seus distanciamentos e suas aproshyximaccedilotildees suas constelaccedilotildees os blocos de sensaccedilotildees que eles fazem rolar o universo-Rembrandt ou universo-Debussy Estes universos natildeo satildeo nem virtuais nem atuais satildeo possiacuteshyveis o possiacutevel como categoria esteacutetica (possiacutevel por favor senatildeo eu sufoco) a existecircncia do possiacutevel enquanto que os acontecimentos satildeo a realidade do virtual formas de um penshysamento-Natureza que sobrevoam todos os universos posshysiacuteveis Natildeo significa dizer que o conceito precede de direito a sensaccedilatildeo mesmo um conceito de sensaccedilatildeo deve ser criashydo com seus meios proacuteprios e uma sensaccedilatildeo existe em seu universo possiacutevel sem que o conceito exista necessariamente em sua forma absoluta

Pode a sensaccedilatildeo ser assimilada a uma opiniatildeo originaacuteshyria Urdoxa como fundaccedilatildeo do mundo ou base imutaacutevel A fenlt_~~~~ogiltl encontra a sensaccedilatildeo em a priori materiais shyperceptivos e afectivos que transcendem acircs per-cepCcedilOtildees ecirc afecshy

Ccedilotilde~~middot~iVfd-atilde$ middototildemiddot-aillatildere-iotildeecircleVail cuumlgKmiddotocirc~--~s -~ens~Ccedilotilde~s middot ~acirc-middotratildes de Ceianne A fenomenologia deve fazer-se fenomenoshylogia da arte jaacute vimos porque a imanecircncia do vivido a um sujeito transcendental precisa exprimir-se em funccedilotildees transshycendentes que natildeo determinam somente a experiecircncia em geral mas que atravessam aqui e agora o proacuteprio vivido e I se encarnam nele constituindo sensaccedilotildees vivas O ser da senshy I

I I middot

I saccedil-ordf9_ _Q__blQccedilQ d_d percepto ~=fo ~feccedil~Q ltPareceraacute ~ornomiddot middot middot I

_Unidade ou a reversibilidade daquele que s~t~ - ~ middotd~-~-e~d- I doseu1ntiffiuuml eacute~t~r~ccedilmiddota~ento c()~uuml matilde~~ middotq~~i-~~~_middot- bullI

1 middot-middotmiddoteacute-~a--~arne que vai se libertar ao mesmo tempmiddoto do corpo vivishydo do mundo percebido e da intencionalidade de um ao outro ainda muito ligada agrave experiecircncia - enquanto a carshyne nos daacute o ser da sensaccedilatildeo e carrega a opiniatildeo originaacuteria

230 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

distinta do juiacutezo de experiecircncia Carne do mundo e carne do corpo como correlatos que se trocam coincidecircncia ideaF7

Eacute um curioso Carnismo que inspira este uacuteltimo avatar da fenomenologia e a precipita no misteacuterio da encarnaccedilatildeo eacute uma noccedilatildeo piedosa e sensual ao mesmo tempo uma misshytura de sensualidade e de religiatildeo sem a qual a carne talshymiddotvez natildeo ficaria de peacute sozinha (ela desceria ao longo dos ossos como nas figuras de Bacon) A questatildeo de saber se a carne eacute adequada agrave arte pode se enunciar assim eacute ela capaz de carshyregar o percepto e o afecto de constituir o ser de sensaccedilatildeo ou entatildeo eacute ela mesma que deve ser carregada e ingressar em outras potecircncias de vida

A carne natildeo eacute a sensaccedilatildeo mesmo se ela participa de sua middot revelaccedilatildeo Era precipitado dizer que a sensaccedilatildeo encarna A pintura faz a carne ora com o encarnado (superposiccedilotildees do vermelho e do branco) ora com tons justapostos (jUstaposhysiccedilatildeo de complementares em proporccedilotildees desiguais) Mas o que constitui a sensaccedilatildeo eacute o devir-animal vegetal etc que monta sob as praias de encarnado no nu mais gracioso mais delicado corria a presenccedila de um animal descarnado de um fruto descascado Vecircnus no espelho ou que surge na fusatildeo no cozimento no derramar de tons justapostos como a zona

17 Desde a Pheacutenomeacutenologie de lexpeacuterience estheacutetique (PUF 1953) Mikel Dufrenne fazia uma espeacutecie de analiacutetica dos a priori perceptivos e afetivos que fundavam a sensaccedilatildeo como relaccedilatildeo do corpo e do mundo Permanecia proacuteximo de Erwin Straus Mas haacute um ser de sensaccedilatildeo que se manifestaria na carne Era middota via de Merleau-Ponty no Le visible et linshyvisible Dufrenne fazia muit~s r~ervas a uma tal ontologia da carne (Loeil et loreille Ed LHexagone) Recentemente Didier Franck retomou o tema de Merleau-Ponty mostrando a importacircncia decisiva da carne segundo Heidegger e jaacute Husserl (Heidegger et le probleme de [espace Chair et corps Ed de Minuit) Todo este problema estaacute no centro de umafenoshymenologia da arte Talvez o livro ainda ineacutedito de Foucault Les aveux de la chair nos informe sobre as origens mais gerais da noccedilatildeo de carne e seu alcance na Patriacutestica

Percepto Afecto e Conceito 231

de indiscernibilidade do animal e do homem Talvez fosse um embaralhamento ou um caos se natildeo houvesse um segunshydo elemento para dar consistecircncia agrave carne_ A carne eacute apeshynas o termocircmetro de um devir A carne eacute tenra demais O segundo elemento eacute menos o osso ou a ossatura que a casa

rltmiddotr a armadura O corpo desabrocha na casa (ou num equivashylente numa fonte num bosque) Ora o que define a casa

( I satildeo as extensotildees isto eacute os pedaccedilos de planos diversamente orientados que datildeo agrave carne sua armadura primeiro-plano e plano-de-fundo paredes horizontais verticais esquerda dishyreita retos e obliacutequos retiliacuteneos ou curvos 18 Essas extenshysotildees satildeo muros mas tambeacutem solos portas j arielas portasshyjanelas espelhos que datildeo precisamente agrave sensaccedilatildeo o poder de manter-se sozinha em molduras autocircnomas Satildeo as faces do bloco de sensaccedilatildeo E haacute certamente dois signos do gecircnio dos grandes pintores bem como de sua humildade o respeishyto quase um terror com o qual eles se aproximam da cor e entram nela o cuidado com o qual operam a junccedilatildeo dos

Imiddot planos da qual depende o tipo de profundidade Sem este respeito e este cuidado a pintura eacute nula sem trabagravelho sem pensamento O difiacutecil eacute juntar natildeo as matildeos mas os planos Fazer relevos com planos que se juntam ou ao contraacuterio escarificaacute-los cortaacute-los Os dois problemas a arquitetura dos planos e o regime da cor se confundem frequumlentemente A junccedilatildeo dos planos horizontais e verticais em Ceacutezanne os planos na cor os planos o lugar colorido ou a alma dos planos entra em fusatildeo ~~_grandes P~_esou mesmo duas grandes obras que operem da mesma ~~nei-

-----=~Haacute todavia tendecircncias num pintotilderem middotGiaco~ettipo-18

Como mostra Georges Didi-Huberman a-carne middot~~gendra uma i duacutevida ela eacute proacutexima demais do caos donde a necessidade de uma

complernentariedade entre o encarnado e a extensatildeo tema essencial de La peinture incarneacutee retomada e desenvolvida em Devant limage Ed de Minuit

232 II Filosofia Ciecircncia middotLOacutegica e Arte

exemplo os planos horizontais fugidios diferem agrave direita e middot agrave esquerda e parecem se reunir na coisa (a carne da pequeshyna maccedilatilde) mas como uma pinccedila que a puxaria para traacutes e a faria desaparecer se uni plano vertical do qual soacute se vecirc o fio sem espessura natildeo viesse fixaacute-la retecirc-la no uacuteltimo moshymento dar-lhe uma existecircncia duraacutevel agrave maneira de um longo alfinete que a atravessa e a tornafiliforme por sua vez A casa participa de todo um devir Ela eacute vida ~vida natildeo

orgacircnica das coisas De todos 9s modos possiacute~sect~a_ LYD~-~ ccedilatildeo do~_planos~e mitorientaccedilOtildees que define t_casa-sens~-~-~---~ ccedilatildeo Aiacute~asa mesma (o_u-middotseu equivalente) eacute a junccedilatilde9T~itaii~------planos cQlruicles____

middot middot-middot--~rceiro elemento eacute o universo o qgtsmos Natildeo eacute soshymentea-Catildesatildeabeitaque secirc-cotildelliiriic co~ ~ p~i~agem por ~ffiatilde )atildeiieratilde- middoto-tr-uumlm espeino iiiatildes--atildemiddot-~8middot-middot~middotas~fe~~~~ ~~atilde__ atilde5e~t~-sotildebreuumlmuiiiacutevecircrsomiddot middotx- middotcamiddotsacirc-eacutefe viuuml~ecirct s~ vecirc sempre ~~pi~dmiddot -p-~i~~ fccedil~~- ~egetais de um jardim incontrolaacutevel cosmo das rosas Um universo-cosmos natildeo eacute carne Nem mesmo plano pedaccedilos de planos que se juntam planos dishyversamente orientados embora a junCcedilatildeo de todos os planos ateacute o infinito possa constituiacute-lo Mas o universo se apresenshyta no limite como o fundo da tela o uacutenico grande plano o vazio colorido o infinito monocromaacutetico A porta-janela como em Matisse soacute se abre sobre um fundo negro A carne ou antes a figura natildeo mais eacute o habitante do lugar da casa mas o habitante de um universo que suporta a casa (devir) Eacute como uma passagem do finito ao infinito mas tambeacutem do territoacuterio agrave desterritorializaccedilatildeo Eacute bem o momento do infishynito infinitos infinitamente variados Em Van Gogh em Gauguin em Bacon hoje vemos surgir a imediata tensatildeo da carne e do fundo dos derrames de tons justapostos e da praia

I

infinita de uma pura cor homogecircnea viva e saturada (em lugar de pintar a parede banal do mesquinho apartamento eu pinto o infinito faccedilo um fundo simples do azul mais rico

233Percepto Afecto e Conceito

mais intenso ) 19 Eacute verdade que o fundo monocromaacutetico

eacute mais do que um fundo E quando a pintura quer comeccedilar do zero construindo o percepto como um miacutenimo antes do vazio ou aproximando ao maacuteximo do conceito ela proceshy~e por monocromia liberada de toda casa ou de toda carne E notadamente o azul que se encarrega do infinito e qu~ faz do percepto uma sensibilidade coacutesmica ou o que haacute de mais conceitual na natureza ou de mais proposicional a cor na ausecircncia do homem o homem mergulhado na cor mas se o azul (ou o negro ou o branco) eacute perfeitamente idecircnshytico no quadro ou de um quadro a outro eacute a pintura que se torna azul- Yves o monocromo- segundo um puro afecto que faz o universo mergulhar no vazio e natildeo deixa mais nada por fazer ao pintor por excelecircncia20_

O vazio colorido ou antes colorante jaacute eacute forccedila A maior parte dos grandes monocromos da pintura moderna natildeo mais tecircm necessidade de recorrer a pequenos buquecircs murais mas apresentam variaccedilotildees sutis imperceptiacuteveis (todavia constishytutivas de um percepto) seja porque satildeo cortados ou conshy

19 Van Gogh carta a Theacuteo Correspondance complete Gallimardshy

Grasset III p 165 Os tons justapostos e sua relaccedilatildeo com o fundo satildeo um tema frequumlente da correspondecircncia Tambeacutem Gauguin carta a Schuffeshynecker 8 de outubro de 1888 Lettres Ed Grasset p 140 Eu fiz urn retra to de mim para Vincent Eacute acredito eu uma das minhas melhores coisas absolutamente incompreensiacutevel (por exemplo) de tal maneira eacute abstra~o o seu d~senho eacute inteiramente arbitraacuterio abstraccedilatildeo cornpl~ta a c~r ~uma co~ d1sta1te da natureza imagine uma vaga lembranccedila de ceram1ca retor~rda pelo fogo forte Todos os vermelhos os violetas rajashydas pelos claroes de fogo como uma fornalha radiante aos olhos sede das lutas do pensamento do pintor O todo sobre um fundo cromo seshymeado de buquecircs infantis Quarto de moccedila pura Eaacute ideacuteia do coloriacutesta arbitraacuterio segundo Van Gogh

~~ Cf Artst~dio no 16 Monochromes (sobre Klein artigos de Genev1eve Monmer e de Denys Riout e sobre os avatares atuais do monocromo artigo de Pierre Sterckx)

234 IL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tornados de um lado por uma fita um faixa uma extensatildeo de uma outra cor ou de um outro tom que mudam a intenshysidade do fundo por vizinhanccedila ou distanciamento seja porshyque apresentam figuras lineares ou circulares quase virtuais tom sobre torit seja porque satildeo esburacados ou fendidos satildeo problemas de junccedilatildeo ainda mas singularmente ampliados

Numa palavra o fundo vibra se enlaccedila ou se fende poque eacute portador de forccedilas apenas vislumbradas E o q~e fazia de iniacutecio a pintura abstrata convocar asforccedilas povoar o funshydo com as forccedilas que ele abriga fazer ver nelas mesmas as forshyccedilas invisiacuteveis traccedilar figuras de aparecircncia geomeacutetrica mas que natildeo seriam mais do que forccedilas forccedila de gravitaccedilatildeo de peso de rotaccedilatildeo de turbilhatildeo de explosatildeo de expansatildeo de gershyminaccedilatildeo forccedila do tempo (como se pode dizer da muacutesica que ela faz ouvir a forccedila sonora do tempo por exemplo com Messhysiaen ou da literatura com Proust que faz ler e conceber a forccedilaacute ilegiacutevel do tempo) Natildeo eacute esta a definiccedilatildeo do percepto em pessoa tornar sensiacuteveis as forccedilas insensiacuteveis que povoam o mundo e que nos afetam nos faze~ devir O que Mondrian obteacutem por simples diferenccedilas entre lados de um quadrado e Kandinsky pelas tensotildees lineares e Kupka pelos planos curvos em torno do ponto Do fundodas eras nos vem o que Worringer chamava a linha setentrional abstrata e infinita linha do uacuteniverso que forma fitas e tiras rodas e turbinas toda uma geometria viva elevando agrave intuiccedilatildeo as forccedilas mecacircshynicas constituindo uma poderosa vida natildeo-orgacircnica21

O eterno objeto da pintura pintar as forccedilas como Tintoretto

Encontraremos tambeacutem talvez a casa e o corpo E que o fundo infinito eacute frequumlentemente aquilo sobre o que se abre a janela ou a porta ou entatildeo eacute o muro da proacutepria casa ou o solo Van Gogh e Gauguin semeiam o fundo de pequenos buquecircs de flores para fazer deles o papel mural

21 Worringer Lart gothique Gallimard

Percepto Afecto e Conceito 235

sobre o qual se destaca o rosto de tons justapostos E com efeito a casa natildeo nos abriga das forccedilas coacutesmicas no maacutexishymo ela as filtra elas as seleciona Ela as transforma algushymas vezes em forccedilas benevolentes jamais a pintuacutera fez ver a forccedila de Arquimedes a forccedila do empuxltgt da aacutegua sobre um corpo gracioso que flutua na banheira da casa como Bonnard conseguiu em o Nuacute no banho Mas tambeacutem as forccedilas mais maleacuteficas podem entrar pela porta entreabershyta ou fechada satildeo as forccedilas coacutesmicas que provocam elas mesmas as zonas de indiscernibilidade nos_tons justapostos de um rosto esbofeteando-o arranhando-o fundindo-o em todos os sentidos e satildeo estas zonas de indiscernibilidade que revelam as forccedilas escondidas no fundo (Bacon) Haacute plena complementariedade enlace de forccedilas como perceptos e de devires como afectos A linha de forccedila abstrata segundo ~orringer eacute rica em motivos animalescos Agraves forccedilas coacutesshymicas ou cosmogeneacuteticas correspondem devires-aniinais veshy

geta1s moleculares ateacute que o corpo desapareccedila no fundo ou entre no muro ou inversamente que o fundo se contorshyccedila e turbilhone na zona de indiscernibilidade d~ corpo~ Numa palavra o ser de sensaccedilatildeo natildeo eacute a carne mas o comshyposto das forccedilas natildeo-humanas do cosmos dos devires natildeo humanos do homem e da casa ambiacutegua que os troccedila e os ajusta os faz turbilhonar como os ventos A carne eacute somenshyte o revelador que desaparece no que revela o composto de sensaccedilotildees Como toda pintura a pintura abstrata eacute senshysaccedilatildeo nada mais que sensaccedilatildeo Em Mondrian eacute o quarto que acede ao ser de sensaccedilatildeo dividindo por extensotildees coshyloridas o plano vazio infinito que lhe daacute de volta um infishy

d b 22 mto e a ertura Em Kandinsky as casa~ satildeo uma das

22 Mondrian Reacutealiteacute naturelle et reacutealiteacute abstraite (in Seuphor Piet

Mondnan sa vie son oeuvre Ed Flammarion) sobre o quarto e seu desdobramento Michel Butor analisou este desdobramento do quarto em

236 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

fontes da abstraccedilatildeo que consiste menos em figuras geomeacuteshytricas que em trajetos dinacircmicos e linhas de erracircncia cashyminhos que caminham nos arredores Em Kupka eacute de iniacuteshycio sobre o corpo que o pintor talha fitas ou extensotildees coshyloridas que produziratildeo no vazio os planos curos que o povoam tornando-se sensaccedilotildees cosmogeneacuteticas__ ~--~--~~~~

ccedilatildeoe~_pi_rjtual ou j~ um _~Ol~-~-i_g_viSgt= O _q~-~~t-~ lt1 ~~-~~- uacuten1verso A ~r~~ - aJs~rata_~ s~P25 a ~rte _C()flC~I~~~_Elt~~~-- middot-Pmiddot cacirc~dTmiddot~tamente a questatildeo que impregna toda pintura ---- --middot-shys~~ - ~-eiacute~Ccedilatilde-uumlcocircffi o ~~~~~ito~sti-a relaccedilatildeo com a funccedilatildeo middot_

A arte comeccedila talv-ez--com o animal ao menos com o animal que recorta um territoacuterio e faz uma casa (os dois satildeo correlativos ou ateacute mesmo se confundem por vezes no que se chama de habitat) Com o sistema territoacuterio-casa muitas funccedilotildees orgacircnicas se transformam sexualidade procriaccedilatildeo agressiyidade alimentaccedilatildeo mas natildeo eacute esta transformaccedilatildeo que explica a apariccedilatildeo do territoacuterio e da casa seria antes o

inverso o territoacuterio impli~a na emergecirc~lti~ e 91-ali_cll~~-~sel~ siacuteveis pu~- ~~-ibiIacuteia qua~ixacirciiacuteiacute -de ser unicaii1~_Ilt_e ushyecirc(ocircOtildeagraveisecirc cse- ioacuternani-tragraveCcediluumlsmiddotae express~Otilde__ tormiddotn~~~~J~~s~V~l tiffiagravetiansfocirciinaCcedilatildeo (G$iacute~i1Ccedilotildees23 s~ni duacutevida esta expresshysivlamp1deTaacuteestacirc dltu~ch~E~~~middot Vida~ pode-se dizer que o simshyples liacuterio dos campos celebra a gloacuteria dos ceacuteus Mas eacute com o territoacuterio e a casa que ela se torna construtiva e ergue os monumentos rituais de uma missa animal que celebra as quashylidades antes de tirar delas novas causalidades e finalidades Esta emergecircncia jaacute eacute arte natildeo somente no tratamento dos materiais exteriores mas nas posturas e cores do corpo nos

quadrados ou retacircngulos e a abertura sobre um quadrado interior vazio e branco como promessa de quarto futuro Reacutepertoire III Le carreacute et son habitant Ed de Minuit p 307-309314-315

23 Parece-nos que eacute um engano de Lorenz querer explicar o terrishytoacuterio por uma evoluccedilatildeo das funccedilotildees L agression Ed Flammarion

Percepto Afecto e Conceito 237

cantos e nos gritos que marcam o territoacuterio Eacute um jorro de traccedilos de~-~2E~~- e de sons inseparaacuteveisna dtecTda em que s~ -~riill _ ~xpr~~isiV_9_~ ~-(~i~~~i-~ill~~9l0_~_4~ middotr~ritoacute~i~fCcedil Scenopoietes dentirostris paacutessaro das florestas chuvosas da Austraacutelia faz cair da aacutervore as folhas que corta cada manhatilde vira-as para que sua face interna mais paacutelida contraste com a terra constroacutei para si assim uma cena co_mo um readyshymade e canta exatamente em cima sobre um cipoacute ou-um galho um canto complexo composto de suas proacuteprias noshytas e das de outros paacutessaros que imita nos intervalos mosshytrando a raiacutez amarela das plumas sob seubico eacute um artista completo24

bull Natildeo satildeo as sinestesias em plena carne satildeo esshytes blocos de sensaccedilotildees no territoacuterio cores posturas e sons que esboccedilam uma obra de arte total Estes blocos satildeo rishytorneios mas haacute tambeacutem ritornelos posturais e de cores e tanto posturas quanto cores se introduzem sempre nos ritor~ nelas Reverecircncias e posiccedilotildees eretas rondas traccedilos de coshyres O ritornelo inteiro eacute o ser de sensaccedilatildeo Os monumenshytos satildeo ritornelos Desse ponto de vista a arte natildeo deixaraacute de ser habitada pelo animal A arte deKafka seraacute a mais prbshy

funda meditaccedilatildeo sobre o territoacuterio e a casa o terreiro as pos~ turas~retrato (a cabeccedila pendida do habitante com o queixo enterrado no peito ou ao contraacuterio o grande tiacutemido que fura o teto com seu cracircnio anguloso) os sons-muacutesica (os catildees que satildeo muacutesicos por suas proacuteprias posturas Josephine a ratinha cantora da qual ja~ais saberemos se canta Gregoire que une seu piadoao violino de sua irmatilde numa relaccedilatildeo comshyplexa quarto-casa~territoacuterio) Eis tudo o que eacute preciso para fazer arte uma casa posturas cores e cantos - sob a conshy ~

I diccedilatildeo de que tudo isso se abra e se lance sobre ummiddotvetor louco como uma vassoura de bruxa uma linha d~ universo ou de

24 Marshall Bowler Birds Oxford at the Clarendon Press Gilliord Birds of Paradise and Bowler Birds Weidenfeld

desterritorializaccedilatildeoPerspectiva de um quarto com seus hashybitantes (Klee )

Cada territoacuterio cada habitat junt a seus planos ou suas extensotildees natildeo apenas espaccedilo-temporais mas qualitativos por exemplo uma postura e um canto um canto e urna cor perceptos e afectos E cada territoacuterio engloba ou recorta ter~ ritoacuterios de outras espeacutecies ou intercepta trajetos de animais sem territoacuterio formando junccedilotildees inUacuterespeciacuteficltlS Eacute neste sentido que Uexkuumlhl num primeiro aspecto desenvolve urna concepccedilatildeo da Natureza meloacutedica polifocircnica contrapontual Natildeo apenas o canto de um paacutessaro tem suas relaccedilotildees de conshytraponto mas pode fazer contraponto com o canto de oushytras espeacutecies e pode ele mesmo imitar estes outros cantos como se se tratasse de ocupar um maacuteximo de frequumlecircnciacuteas A teia de aranha conteacutem um retrato muito sutil da mosca que lhe serve de contraponto A concha como casa do moshylusco~ se torna quando ele morre o contraponto do Bershynardo-eremita que faz dela seu proacuteprio habitat graccedilas a sua cauda que natildeo eacute nadadeira mas preecircnsil e lhe permite capshyturar a concha vazia O Carrapato eacute organicamente consshytruiacutedo de modo a encontrar seu contraponto no mamiacutefero qualquer que passa sob seu galho como as folhas de carvashylho arranjadas como telhas nas gotas de chuva que escorshyrem Natildeo eacute uma concepccedilatildeo finalista mas meloacutedica em que natildeo mais sabemos o que eacute arte ou natureza (a teacutecnica nashytural) haacute contraponto toda vez que uma melodia interveacutem como motivo numa outra melodia como nas bodas enshytre a mamangava e a boca-de-leatildeo Essas relaccedilotildees de contrashyponto juntam planos formam compostos de sensaccedilotildees bloshycos e determinam devires Mas natildeo satildeo somente estes comshypostos meloacutedicos determinados que constituem a natureza mesmo generalizados eacute preciso tambeacutem sob um outro asshypecto um plano de composiccedilatildeo sinfocircnica infinio da Casa ao universo Da endo-sensaccedilatildeo agrave exo-sensaccedilatildeo E que o tershy

bull 238 li Filosofia Ciecircnci~ Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 239

r I I I-- --- --

~ -

middot1

ritoacuterio natildeo se limita a isolar e juntar ele abre para forccedilas coacutesmicas que sobem de dentro ou que vecircm de fora e torna sensiacuteveis seu efeito sobre o habitante Eacute um plano de comshyposiccedilatildeo do carvalho que porta ou comporta a forCcedila de deshysenvolvimento da bolota e a forccedila de formaccedilatildeo das gotas ou o do carrapato que tem a forccedila da luz capaz de atrair o animal ateacute a ponta de um galho numa altura suficiente e a forccedila de peso com a qual se deixa cair sobre o mamiacutefero que passa -e entre os dois nada um vazio assustador que pode durar anos se o mamiacutefero natildeo passa25bull E ora as forccedilas se fundem umas nas outras em transiccedilotildees sutis decompotildeemshyse tatildeo logo vislumbradas ora se alternam ou se enfrentam Ora deixam-se selecionar pelo territoacuterio e satildeo as mais beshynevolentes que entram na casa Ora lanccedilam um apelo misshyterioso que arranca o habitante do territoacuterio e o precipita numa viagem irresistiacutevel como os pintassilgos que se reuacuteshynem frequentemente aos milhotildees ou as lagostas que empreshyendem uma imensa peregrinaccedilatildeo no fundo da aacutegua Ora se abatem sobre o territoacuterio e o invertem malevolentes restaushyrando o caos de onde ele mal saiacutea Mas sempre se a nature za eacute como a arte eacute porque ela conjuga de todas as maneiras esses dois elementos vivos a Casa e o Universo o Heimlich e o Unheimlich o territoacuterio e a desterritorializaccedilatildeo os comshypostos meloacutedicos finitos e o grande plano de composiccedilatildeo infinito o pequeno e o grande ritornelo

A arte comeccedila natildeo com a carne mas com a casa eacute por isso que a arquitetura eacute a primeira das artes Quando Dushybuffet procura delifuitar um certo estado bruto de arte eacute a princiacutepio na direccedilatildeo da casa que ele se volta e toda sua obra se ergue entre a arquitetura a escultura e a -pintUra E limishy

25 Cf a obra-prima de J von Uexkuumlhl Mondes animaux et monde humain Theacuteorie de la signification Ed Gonthier (p 137-142 o contrashyponto motivo do desenvolvimento e da morfogecircnese)

II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tando-nos agrave forma a arquitetura mais saacutebia natildeo deixa de fazer planos extensotildees e de juntaacute-los Eacute por isso que se pode defini-la pela moldura um encaixe de molduras diversashymente orientadas que se imporiam agraves outras artes da pinshytura ao Cinema Jaacute se apresentou a preacute-histoacuteria do quadro como passando pelo afresco na moldura da parede o vitral ha moldura da janela o mosaico na moldura do solo A moldura eacute o umbigo que liga o quadro ao monujllento do qual ele eacute a reduccedilatildeo como a moldura goacutetica com coluneshytas ogiva e flecha26 Fazendo da arquitetura a arte primeira da moldura Bernard Cache pode enumerar um certo nuacutemero de formas enquadrantes que natildeo prejulgam nenhum conteuacuteshydo concreto nem funccedilatildeo do edifiacutecio o mu~o que isola ajashynela que capta ou seleciona (em conexatildeo com o territoacuterio) o solo-chatildeo que conjura ou rarifica (rarificar o relevo da terra para dar livre curso agraves trajetoacuterias humanas) o teto que envolve a singularidade do lugar (o teto em declive coloca o edifiacutecio sobre uma colina ) Encaixar essas molshyduras ou juntar todos estes planos extensatildeo de muro exshytensatildeo de janela extensatildeo de solo extensatildeo de declive eacute todo um sistema composto rico em pontos e contrapontos As molduras e suas junccedilotildees sustentam os compostos de sensashyccedilotildees datildeo consistecircncia agraves figuras confundem-se com seu dar consistecircncia seu proacuteprio tocircnus Aiacute estatildeo as faces de um cubo de sensaccedilatildeo As molduras ou as extensotildees natildeo satildeo coordeshynadas pertencem aos compostos de sensaccedilotildees dos quais consshytituem as faces as interfaces Mas por mais extensiacutevel que seja este sistema eacute preciso ainda um vasto plano de composhysiccedilatildeo que opere uma espeacutecie de desenquadramento segunshydo linhas de fuga que soacute passe pelo territoacuterio para abri-lo sobre o universo que vaacute da casa-territoacuterio agrave cidade-cosmos

26 Henry van de Velde Deacuteblaientent dart Archives darchitecture moderne p 20

Percepto Afecto e Conceito 240 241

-~-_--- middot-middotmiddot

e que dissolva agora a identidade do lugar na variaccedilatildeo da Natildeo parece que a literatura e particularmente o romance Terra uma cidade que tem menos um lugar do que vetores estejam imma outra situaccedilatildeo O que conta natildeo satildeo as opiniotildees pregueando a linha abstrata do relevo Eacute sobre este plano de dos personagens segundo seus tipos sociais e seu caraacuteter composiccedilatildeo como sobre um espaccedilo vetorial abstrato que como nos maus romances mas as relaccedilotildees de contraponto nos se traccedilam figuras geomeacutetricas cone prisma diedro plano quais entram e os compostos de sensaccedilotildees que esses persoshyestrito que nada mais satildeo do que forccedilas coacutesmicas capazes nagens experimentam eles mesmos ou fazem experimentar em de se fundir se transformar se enfrentar alternar mundo seus devires e suas visotildees O contraponto natildeo serve para reshyde antes do homem mesmo se eacute produto do homem27 Eacute latar conversas reais ou fictiacutecias mas para fazer mostrar a preciso agora desarticular os planos para remetecirc-los a seus loucura de qualquer conversa de qualquer diaacutelogo mesmo

j intervalos em vez de remetecirc-los uns aos outros para criar interior Eacute tudo isso que o romancista deve extrair das pershy

novos afectos28 Ora~ vimos que a pintura seguia o mesmo cepccedilotildees afecccedilotildees e opiniotildees de seus modelos psicossociais I

I movimento A moldura ou a borda do quadro eacute em primeiro que se integram inteiramente nos perceptos e os afectos aos ~ I

lugar o invoacutelucro externo de uma seacuterie de molduras ou de quais o personagem deve ser elevado sem conservar outra vida I

I extensotildees que se juntam operando contrapontos de linhas E isso implica num vasto plano de composiccedilatildeo natildeo preconshyi

I

e de cores determinando compostos de sensaccedilotildees Mas o cebido abstratamente mas que se constroacutei agrave medida que a obraI

quadro eacute atravessado tambeacutem por uma potecircncia de desenshy avanccedila abrindo misturando desfazendo e refazendo composshy

I I quadramento que o abre para um plano de composiccedilatildeo oumiddot tos cada vez mais ilimitados segundo a penetraccedilatildeo de forccedilasI

um campo de forccedilas infinito Estes procedimentos podem ser coacutesmicas A teoria do romance de Bakhtin vai nesse sentido muito diversos mesmo no nivel da moldura exterior formas mostrando de Rabelais a Dostoievski a coexistecircncia dos comshy

[I irregulares lados que natildeo se juntam molduras pintadas oacuteu ponentes contrapontuais polifocircnicos e plurivocais com um I pontilhados de Seurat quadrados sobre ponta de Mondrian plano de composiccedilatildeo arquitetocircnico ou sinfocircnico29 Um roshyi li tudo o que daacute ao quadro o poder de sair da tela Jamais o mancista como Dos Passos soube atingir uma arte inaudita

shy__jl

gesto do pintor fica na moldura ele sai da moldura e natildeo do contraponto nos compostos que forma entre personagens comeccedila com ela atualidades biografias olhos de cacircmera ao mesmo teropo queI

um plano de composiccedilatildeo se alarga ao infinito para arrastar tudo para a Vida para a Morte para a cidade-cosmos E se27 Sobre todos estes pontos a anaacutelise das formas enquadrantes e da

cidade-cosmos (exemplo de Lausanne) cf Bernard Cache L ameublement retornamos a Proust eacute porque mais do que qualquer outro du territoire (a sair) ele fez com que os dois elementos quase se sucedessem emboshy

28 Eacute Pascal Bonitzer que formou o conceito de desenquadramento ra presentes um no outro o plano de composiccedilatildeo aparece poushypara aplicar ao cinema novas rdaccedilotildees entre os planos ( Cahiers du cineacutema co a pouco para a vida para a morte compostos de sensashyndeg 284 janeiro de 1978) planos disjuntos triturados ou fragmentados ccedilatildeo que ele edifica no curso do tempo perdido ateacute aparecer graccedilas aos quais o cinema se torna uma arte depurando-se das emoccedilotildees

em si mesmo com o tempo reencontrado a forccedila ou antes asmais comuns que arriscam de lhe impedir o desenvolvimento esteacutetico e produzindo-lhe afetos novos (Le champ aveugle Ed Cahiers du cineacutema Gallirnard sisteme des eacutemotions ) 29 Bakhtin Estheacutetique et theacuteorie du roman Gallimard

242 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 243

-- ---

forccedilas do tempo puro tornadas sensiacuteveis Tudo comeccedila peshylas Casas que devem todas juntar suas dimensotildees e dar conshysistecircncia a compostos Combray o palacete de Guermantes o salatildeo Verdurin e as casas elas mesmas se ajuntam segundo interfaces mas um Cosmos planetaacuterio jaacute estaacute laacute visiacutevel ao telescoacutepio arruinando-as ou transformando-as e absorvenshydo-as no infinito do fundo Tudo comeccedila por titornelos cada

i

um dos quais como a pequena frase da sonata de Vinteuil natildeo se compotildee apenas em si mesmo mas com -outras sensashy

ccedilotildees variaacuteveis a de uma passante desconhecida a do rosto de Odette a das folhagens do bosque de Boulogne- e tudo tershy I mina no infinito no grade Ritornelo a frase do seacuteptuor em Iperpeacutetua metamorfose o canto dos universos o mundo de antes do homem ou de depois De cada coisa finita Proust faz uni ser de sensaccedilatildeo que natildeo deixa de se conservar mas fushygindo sobre um plano de composiccedilatildeo do Ser seres de fuga

EXEMPLO XII

Natildeo parece que a muacutesica esteja numa outra situashyccedilatildeo talvez mesmo a encarne com mais poder ainda Dizshyse todavia que o som natildeo tem moldura Mas os comshypostos de sensaccedilotildees os blocos sonoros tampouco tecircm extensotildees ou formas enquadrantes que devem em cada caso se ajuntar assegurando um certo fechamento Os casos mais simples satildeo a aacuteria meloacutedica que eacute um ritorshynelo monofocircnico o motivo que jaacute eacute polifocircnico um elemento de Uacutema melodia interveniente no desenvolvishymento de uma outra e fazendo contraponto o tema como objeto de modificaccedilotildees harm-ecircnicas atrav~s das linhas meloacutedicas Essas trecircs formas elementares consshytroacuteem a casa sonora e seu territoacuterio Elas correspondem agraves trecircs modalidades de um ser de sensaccedilatildeo pois a aacuteria eacute uma vibraccedilatildeo o motivo eacute um enlace um acoplamen-

I244 lIL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

jbull

to enquanto o tema natildeo fecha sem se descerrar fender e tambeacutem abrir Com efeito o fenocircmeno musical mais importante que aparece agrave medida que os compostos de sensaccedilotildees sonoras se tornam mais complexos eacute que sua clausura ou fechamento (por junccedilatildeo de suas molduras de suas extensotildees) se acompanha de uma possibilidade de abertura sobre um plano de composiccedilatildeo cada vez mais ilimitado Os seres de muacutesica satildeo como os seres vivos segundo Bergson que compensam sua clausura individuante por uma abertura feita de modulaccedilatildeo reshypeticcedilatildeo transposiccedilatildeo justaposiccedilatildeo Se consideramos a sonata encontramos aiacute uma forma enquadraacutente parshyticularmente riacutegida fundada sobre um bitematismo e da qual o primeiro movimento apresenta as seguintes dimensotildees exposiccedilatildeo do primeiro tema transiccedilatildeo exshyposiccedilatildeo do segundo tema desenvolvimentos sobre o pric rileiro ou o segundo coda desenvolvimento do primeiro com modulaccedilatildeo etc Eacute toda uma casa com seus aposhysentos Mas eacute antes o primeiro movimento que forma assim uma ceacutelula e eacute raro que uiacuten grande muacutesico siga a forma canocircnica os outros moviacutementos podem abrirshyse notadamente o segundo pel~ tema e variaccedilatildeo ateacute que Liszt asseg~re uma fusatildeo dos movimentos no poeshyma sinfocircnico A sonata aparece entatildeo antes como uma forma-cruzamento em que da junccedilatildeo das dimensotildees musicais da clausura dos compostos sonoros nasce a abertura de um plano de composiccedilatildeo

Deste ponto de vista o velho procedimento tema e variaccedilatildeo que manteacutem a moldura harmocircnica do tema daacute lugar a uma espeacutecie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composiccedilatildeo (Chopin Schumann Liszt eacute um novo momento essencial porshyque o trabalho criador natildeo mais versa sobre os comshyponentes sonoros motivos e temas abrindo um plano

245Percepto Mecto e Conceito

~~

mas ao contraacuterio versa diretamente sobre o proacuteprio plano de composiccedilatildeo para fazer nascer dele composshytos bem mais livres e desenquadrados quase agregados incompletos ou sobrecarregados em desequiliacutebrio pershymanente Eacute a cor do som que conta cada vez mais Passa-se da Casa ao Cosmos (segundo uma foacutermula que a obra de Stockhausen retomaraacute) O trabalho do plano de composiccedilatildeo se desenvolve em duas direccedilotildees que engendraratildeo uma desagregaccedilatildeo da moldura tonal os imensos fundos da variaccedilatildeo contiacutenua que fazem enshylaccedilar e se unir as forccedilas tornadas sonoras em Wagner ou os tons justapostos que separam e dispersam as forshyccedilas agenciando suas passagens reversiacuteveis em Debussy Universo-Wagner universo-Debussy Todas as aacuterias todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquashydrados infantis domeacutesticos profissionais nacionais territoriais satildeo carregados no grande Ritornelo um potente canto da terra - o desterritorializado - que se eleva com Mahler Berg ou Bartoacutek E sem duacutevida o plano de composiccedilatildeo engendra sempre novas clausuras como na seacuterie Mas sempre o gesto do muacutesico consiste em desenquadrar encontrar a abertura retornar o plashyno de composiccedilatildeo segundo a foacutermula que obceca Boushylez traccedilar uina transversal irredutiacutevel agrave vertical harmocircshynica como agrave horizontal meloacutedica que conduz blocos soshynoros agrave individualizaccedilatildeo variaacutevel mas tambeacutem abri-las ou fendecirc-las num espaccedilo-tempo que determina sua denshysidaae e seu percurso sobre o plano30 O grande ritorshynelo se eleva agrave medida que nos afastamos dacasa messhy

30 Boulez notadamente Points de repere Ed Bourgois-Le Seuil p 159 e segs (Pensez la musique aujourdhui Ed Gonthier p 59-62) A eXtensatildeo da seacuterie em duraccedilotildees intensidades e timbres natildeo eacute um ato de clausura mas ao contraacuterio uma abertura do que se fechava na middotseacuterie das alturas

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte246

--~=shyq

mo se eacute para retornar a ela jaacute que ningueacutem mais nos reconheceraacute quando retornarmos

Composiccedilatildeo composiccedilatildeo eis a uacutenica definiccedilatildeo da arte A composiccedilatildeo eacute esteacutetica e o que natildeo eacute composto natildeo eacute uma obra de arte Natildeo confundiremos todavia a composiccedilatildeo teacutecshynica trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciecircncia (matemaacutetica fiacutesica quiacutemica anatomia) e a comshyposiccedilatildeo esteacutetica que eacute o trabalho da sensaccedilatildeo Soacute este uacuteltishymo merece plenamente o nome de composiccedilatildeo e nunca uma obra de arte eacute feita por teacutecnica ou pela teacutecnica Certamente a teacutecnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra as palavras e a sintaxe em literatura natildeo apenas a tela em pintura mas sua preparashyccedilatildeo os pigmentos suas misturas os meacutetodos de perspectiva ou ent~o os doze sons da muacutesica ocidental os instrumentos as escalas as alturas E a relaccedilatildeo entre os dois planos oacute

plano de composiccedilatildeo teacutecnica e o plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica natildeo cessa de variar historicamente Sejam dois estados oponiacuteveis na pintura a oacuteleo num primeiro caso o quadro eacute preparado por um fundo branco sobre o qual se desenha e se dilui o desenho (esboccedilo) enfim se potildee a cor as sombras e as luzes No outro caso o fundo se torna cada vez mais espesso opaco e absorvente de modo que ele se colore na divisatildeo e o trabalho se faz em plena massa sobre uma gama escura as correccedilotildees substituindo o esboccedilo o pintor pintaraacute sobre cor depois cor ao lado de cor as cores se tornando cada vez mais relevos a arquitetura sendo assegurada pelo contraste dos complementares e a concordacircncia dos anaacuteshylogos (Van Gogh) eacute por e nagrave cor que se encontraraacute a arshyquitetura mesmo se eacute preciso renunciar aos relevos parareshyconstituir grandes unidades colorantes Eacute verdade que Xavier de Langlais vecirc em todo este segundo caso uma longa decashydecircncia que caino efecircmero e natildeo chega a restaurar uma ar-

Percepto Mecto e Conceito 247

quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem duacutevida esta observaccedilatildeo coloca ao meshynos negativamente a questatildeo do progresso na arte jaacute que Langlais considera que a decadecircncia comeccedila jaacute depois de Van Eyck (um pouco como alguns param a muacutesica no canto greshygoriano ou a filosofia em Santo Tomaacutes) Mas eacute uma obsershyvaccedilatildeo teacutecnica que concerne somente ao material aleacutem de que a duraccedilatildeo do material eacute muito relativa a sensaccedilatildeo eacute de uma outra ordem e possui uma existecircncia em si enquanto o mashyterial dura A relaccedilatildeo da sensaccedilatildeo com o material deve pois ser avaliada nos limites da duraccedilatildeo do material qualquer que ela seja Se haacute progressatildeo em arte eacute porque a arte soacute pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retonws linhas de partilha mudanccedilas de niacuteveis e de escashy

I las Deste ponto de vista a distinccedilatildeo de dois estados da lf

pintura a oacuteleo toma um aspecto inteiramente diferente esshyI

teacutetico e natildeo mais teacutecnico- esta distinccedilatildeo natildeo conduz evishydentemente ao representativo ou natildeo jaacute que nenhuma arte nenhuma sensaccedilatildeo jamais foram representativas

li No primeiro caso a sensaccedilatildeo se realiza no material e natildeo existe fora desta realizaccedilatildeo Diriacuteamos que a sensaccedilatildeo (o composto de sensaccedilotildees) se projeta sobre o plano de composhysiccedilatildeo teacutecnica bem preparado de sorte que o plano -de comshyposiccedilatildeo esteacutetica venha recobri-lo Eacute preciso pois que o mashyterial compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graccedilas aos quais a sensaccedilatildeo projetada natildeo se realiza somenshyte cobrindo o qu1dro mas segundo uma profundidade A arte desfruta entatildeo de uma aparecircncia de transcendecircncia que se exprime natildeo numa coisa por representar mas no caraacuteter paradigmaacutetico da projeccedilatildeo e no caraacuteter simboacutelico da persshypectiva A Figura eacute como a fabulaccedilatildeo segundo Bergson tem

31 Xavier de Langlais La technique de la peinture agrave lhuile Ed Flammarion (E Goethe Traiteacute des couleurs Ed Triades sect 902-909)

248 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 249

middot i

uma origem religiosa Mas quando ela se torna esteacutetica sua transcendecircncia sensitiva entra numa oposiccedilatildeo surda ou abe-rshyta com a transcendecircncia suprasensiacutevel das religiotildees

No segundo caso natildeo eacute mais a sensaccedilatildeo que se realiza no material eacute antes o material que entra na sensaccedilatildeo Cershytamente a sensaccedilatildeo natildeo existe mais fora dessa entrada e o plano de composiccedilatildeo teacutecnica natildeo mais tem autonomia a natildeo ser no primeiro caso natildeo vale jamais por si mesmo Mas diriacuteamos agora que ele sobe no plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica e lhe daacute uma espessura proacutepria como diz Damisch inshydependente de qualquer perspectiva e profundidade Eacute o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transshycendecircncia aparente ou-de um modelo paradigmaacutetico e conshyfessam seu ateiacutesmo inocente seu paganismo E sem duacutevida entre estes dois casos estes dois estados da sensaccedilatildeo estes dois poacutelos da teacutecnica as transiccedilotildees as combinaccedilotildees e as coexistecircncias se fazem constantemente (por exemplo o trashybalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens) satildeo poacutelos abstratos ao inveacutes de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com oacuteleo e solvente se volta cada vez mais na direccedilatildeo do segundo poacutelo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composiccedilatilde~ esteacutetica -Eacute por isso -que eacute tatildeo falso definir a sensaccedilatildeo na pintura moderna pela admissatildeo de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a esshypessura natildeo precisa ser larga ou profunda Pocircde-se dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfiacuteshycie basta-lhe apoiar-se sobre os vazios e os plenos do pashypel Canson Eacute uma pintura que natildeo mais tem fundo porshyque o baixo emerge a superfiacutecie eacute esburacaacutevel ou o plashyno de composiccedilatildeo ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspecshytiva independentemente das sombras e mesmo da ordem

i r I li

I 32 Cf Christian Bonnefbi intervieweacute et commenteacute par Yvesshy

I Alain Bois Macula S-6

33 Damisch Fenecirctre jaime cadmium ou les dessous de la peinture Ed du Seuil pp 275-305 (e p 80 a espessura do plano em Pollock) Dashy

li misch eacute o autor que mais insistiu sobre a relaccedilatildeo -arte-pertsamento pinshytura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instauraacute-la Mallarmeacute fazia da espessura do livro uma dimensatildeo distinta da proshy) fundidade cf Jacques Scheacuterer Le livre de Mallarmeacute Gallimard p 55shy

I tema que Boulez retoma por sua vez para a muacutesica (Points de repere p 161) iI

li 250 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

I I

cromaacutetica da cor (o colorista arbitraacuterio) Natildeo mais se recoshybre faz-se subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar Eacute uma promoccedilatildeo do solo e a escultura pode torshy

I nar-se plana jaacute que o plano se estratifica Natildeo magraveis se pinshyI ta sobre mas sob A arte informal levou muito longe

estas novas potecircncias da textura essa elevaccedilatildeo do solo com I Dubuffet e tambeacutem o expressionismo abstrato a arte mishy

nimalista procedendo por impregnaccedilotildees fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atraacutes de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem agrave vista do pintor o que enshytregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes estados a pintura eacute-penshysamento a visatildeo existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta

Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdashydeiro conceito mostrando que o tranccedilado poderia bem preencher para a pintura futura funccedilatildeo anaacuteloga agravequela que foi a da perspectiva O quemiddotnatildeo eacute proacuteprio da pintura jaacute que Damisch reencontra a mesma distinccedilatildeo no niacutevel do plano arquitetura quando Scarpa por exemplo rejeita o movishymento da projeccedilatildeo e os mecanismos da perspectiva para ins~ crever os volumes na espessura do proacuteprio plano33 bull E da literatura agrave muacutesica uma espessura material se afirma que

--~ middot

natildeo se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal Eacute umr I traccedilo caracteriacutestico da literatura moderna quando as palashyr vras e a sintaxe sobem no plano de composiccedilatildeo e o cavam I em lugar de colocaacute-lo em perspectiva E a muacutesica quando

renuncia agrave projeccedilatildeo como agraves perspeCtivas que impotildeem a alshyI tura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano soshynoro uma espessura singular da qual testemunham elemenshy

I tos muito diferentes a evoluccedilatildeo dos estudos parapiano que deixam de ser somente teacutecnicas para tornar-se estudos de

jmiddot composiccedilatildeo (com a extensatildeo que lhes daacute Debussy) a imshy

portacircncia decisiva que toma a orquestraccedilatildeo em Berlioz a i subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferashyI I ccedilatildeo dos afectos de percussatildeo com os metais as peles e as mashy

deiras e sua ligaccedilatildeo com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparaacuteveis do material (Varese) a redeshy

I finiccedilatildeo do percepto em funccedilatildeo do ruiacutedo do som bruto e I complexo (Cage) natildeo apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendecircnshy

cia a uma apariccedilatildeo natildeo-cromaacutetica do som num continuum infiiuumlto (muacutesica eletrocircnica ou eletro-acuacutestica)I

I Soacute haacute um plano uacutenico no sentido em que a arte natildeo

I comporta outro plano diferente do da composiccedilatildeo esteacutetica

I o plano teacutecnico com efeito eacute necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composiccedilatildeo esteacutetica Eacute sob esta conshydiccedilatildeo que a mateacuteria se torna expressiva o composto de senshysaccedilotildees se realiza no material ou o material entra no comshyI posto mas sempre de modo a se situar sobre um plano deI

I composiccedilatildeo propriamente esteacutetico Haacute muitos problemasI teacutecnicos em arte e a ciecircncia pode intervir em sua soluccedilatildeo

mas eles soacute se colocam em funccedilatildeo de problemas de composhysiccedilatildeo esteacutetica que concernem aos compostos de sensaccedilotildees e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus mateshyriais Toda sensaccedilatildeo eacute uma questatildeo mesmo se soacute o silecircncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em enshy

251Percepto Afecto e Conceito

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 11: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

lhe um corpo uma vida um universo Eacute assim que Proust definia a arte-monumento por esta via SU_I)erior ao vivido suas diferenccedilas qualitativas seus universos que consshytroem seus proacuteprios limites seus distanciamentos e suas aproshyximaccedilotildees suas constelaccedilotildees os blocos de sensaccedilotildees que eles fazem rolar o universo-Rembrandt ou universo-Debussy Estes universos natildeo satildeo nem virtuais nem atuais satildeo possiacuteshyveis o possiacutevel como categoria esteacutetica (possiacutevel por favor senatildeo eu sufoco) a existecircncia do possiacutevel enquanto que os acontecimentos satildeo a realidade do virtual formas de um penshysamento-Natureza que sobrevoam todos os universos posshysiacuteveis Natildeo significa dizer que o conceito precede de direito a sensaccedilatildeo mesmo um conceito de sensaccedilatildeo deve ser criashydo com seus meios proacuteprios e uma sensaccedilatildeo existe em seu universo possiacutevel sem que o conceito exista necessariamente em sua forma absoluta

Pode a sensaccedilatildeo ser assimilada a uma opiniatildeo originaacuteshyria Urdoxa como fundaccedilatildeo do mundo ou base imutaacutevel A fenlt_~~~~ogiltl encontra a sensaccedilatildeo em a priori materiais shyperceptivos e afectivos que transcendem acircs per-cepCcedilOtildees ecirc afecshy

Ccedilotilde~~middot~iVfd-atilde$ middototildemiddot-aillatildere-iotildeecircleVail cuumlgKmiddotocirc~--~s -~ens~Ccedilotilde~s middot ~acirc-middotratildes de Ceianne A fenomenologia deve fazer-se fenomenoshylogia da arte jaacute vimos porque a imanecircncia do vivido a um sujeito transcendental precisa exprimir-se em funccedilotildees transshycendentes que natildeo determinam somente a experiecircncia em geral mas que atravessam aqui e agora o proacuteprio vivido e I se encarnam nele constituindo sensaccedilotildees vivas O ser da senshy I

I I middot

I saccedil-ordf9_ _Q__blQccedilQ d_d percepto ~=fo ~feccedil~Q ltPareceraacute ~ornomiddot middot middot I

_Unidade ou a reversibilidade daquele que s~t~ - ~ middotd~-~-e~d- I doseu1ntiffiuuml eacute~t~r~ccedilmiddota~ento c()~uuml matilde~~ middotq~~i-~~~_middot- bullI

1 middot-middotmiddoteacute-~a--~arne que vai se libertar ao mesmo tempmiddoto do corpo vivishydo do mundo percebido e da intencionalidade de um ao outro ainda muito ligada agrave experiecircncia - enquanto a carshyne nos daacute o ser da sensaccedilatildeo e carrega a opiniatildeo originaacuteria

230 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

distinta do juiacutezo de experiecircncia Carne do mundo e carne do corpo como correlatos que se trocam coincidecircncia ideaF7

Eacute um curioso Carnismo que inspira este uacuteltimo avatar da fenomenologia e a precipita no misteacuterio da encarnaccedilatildeo eacute uma noccedilatildeo piedosa e sensual ao mesmo tempo uma misshytura de sensualidade e de religiatildeo sem a qual a carne talshymiddotvez natildeo ficaria de peacute sozinha (ela desceria ao longo dos ossos como nas figuras de Bacon) A questatildeo de saber se a carne eacute adequada agrave arte pode se enunciar assim eacute ela capaz de carshyregar o percepto e o afecto de constituir o ser de sensaccedilatildeo ou entatildeo eacute ela mesma que deve ser carregada e ingressar em outras potecircncias de vida

A carne natildeo eacute a sensaccedilatildeo mesmo se ela participa de sua middot revelaccedilatildeo Era precipitado dizer que a sensaccedilatildeo encarna A pintura faz a carne ora com o encarnado (superposiccedilotildees do vermelho e do branco) ora com tons justapostos (jUstaposhysiccedilatildeo de complementares em proporccedilotildees desiguais) Mas o que constitui a sensaccedilatildeo eacute o devir-animal vegetal etc que monta sob as praias de encarnado no nu mais gracioso mais delicado corria a presenccedila de um animal descarnado de um fruto descascado Vecircnus no espelho ou que surge na fusatildeo no cozimento no derramar de tons justapostos como a zona

17 Desde a Pheacutenomeacutenologie de lexpeacuterience estheacutetique (PUF 1953) Mikel Dufrenne fazia uma espeacutecie de analiacutetica dos a priori perceptivos e afetivos que fundavam a sensaccedilatildeo como relaccedilatildeo do corpo e do mundo Permanecia proacuteximo de Erwin Straus Mas haacute um ser de sensaccedilatildeo que se manifestaria na carne Era middota via de Merleau-Ponty no Le visible et linshyvisible Dufrenne fazia muit~s r~ervas a uma tal ontologia da carne (Loeil et loreille Ed LHexagone) Recentemente Didier Franck retomou o tema de Merleau-Ponty mostrando a importacircncia decisiva da carne segundo Heidegger e jaacute Husserl (Heidegger et le probleme de [espace Chair et corps Ed de Minuit) Todo este problema estaacute no centro de umafenoshymenologia da arte Talvez o livro ainda ineacutedito de Foucault Les aveux de la chair nos informe sobre as origens mais gerais da noccedilatildeo de carne e seu alcance na Patriacutestica

Percepto Afecto e Conceito 231

de indiscernibilidade do animal e do homem Talvez fosse um embaralhamento ou um caos se natildeo houvesse um segunshydo elemento para dar consistecircncia agrave carne_ A carne eacute apeshynas o termocircmetro de um devir A carne eacute tenra demais O segundo elemento eacute menos o osso ou a ossatura que a casa

rltmiddotr a armadura O corpo desabrocha na casa (ou num equivashylente numa fonte num bosque) Ora o que define a casa

( I satildeo as extensotildees isto eacute os pedaccedilos de planos diversamente orientados que datildeo agrave carne sua armadura primeiro-plano e plano-de-fundo paredes horizontais verticais esquerda dishyreita retos e obliacutequos retiliacuteneos ou curvos 18 Essas extenshysotildees satildeo muros mas tambeacutem solos portas j arielas portasshyjanelas espelhos que datildeo precisamente agrave sensaccedilatildeo o poder de manter-se sozinha em molduras autocircnomas Satildeo as faces do bloco de sensaccedilatildeo E haacute certamente dois signos do gecircnio dos grandes pintores bem como de sua humildade o respeishyto quase um terror com o qual eles se aproximam da cor e entram nela o cuidado com o qual operam a junccedilatildeo dos

Imiddot planos da qual depende o tipo de profundidade Sem este respeito e este cuidado a pintura eacute nula sem trabagravelho sem pensamento O difiacutecil eacute juntar natildeo as matildeos mas os planos Fazer relevos com planos que se juntam ou ao contraacuterio escarificaacute-los cortaacute-los Os dois problemas a arquitetura dos planos e o regime da cor se confundem frequumlentemente A junccedilatildeo dos planos horizontais e verticais em Ceacutezanne os planos na cor os planos o lugar colorido ou a alma dos planos entra em fusatildeo ~~_grandes P~_esou mesmo duas grandes obras que operem da mesma ~~nei-

-----=~Haacute todavia tendecircncias num pintotilderem middotGiaco~ettipo-18

Como mostra Georges Didi-Huberman a-carne middot~~gendra uma i duacutevida ela eacute proacutexima demais do caos donde a necessidade de uma

complernentariedade entre o encarnado e a extensatildeo tema essencial de La peinture incarneacutee retomada e desenvolvida em Devant limage Ed de Minuit

232 II Filosofia Ciecircncia middotLOacutegica e Arte

exemplo os planos horizontais fugidios diferem agrave direita e middot agrave esquerda e parecem se reunir na coisa (a carne da pequeshyna maccedilatilde) mas como uma pinccedila que a puxaria para traacutes e a faria desaparecer se uni plano vertical do qual soacute se vecirc o fio sem espessura natildeo viesse fixaacute-la retecirc-la no uacuteltimo moshymento dar-lhe uma existecircncia duraacutevel agrave maneira de um longo alfinete que a atravessa e a tornafiliforme por sua vez A casa participa de todo um devir Ela eacute vida ~vida natildeo

orgacircnica das coisas De todos 9s modos possiacute~sect~a_ LYD~-~ ccedilatildeo do~_planos~e mitorientaccedilOtildees que define t_casa-sens~-~-~---~ ccedilatildeo Aiacute~asa mesma (o_u-middotseu equivalente) eacute a junccedilatilde9T~itaii~------planos cQlruicles____

middot middot-middot--~rceiro elemento eacute o universo o qgtsmos Natildeo eacute soshymentea-Catildesatildeabeitaque secirc-cotildelliiriic co~ ~ p~i~agem por ~ffiatilde )atildeiieratilde- middoto-tr-uumlm espeino iiiatildes--atildemiddot-~8middot-middot~middotas~fe~~~~ ~~atilde__ atilde5e~t~-sotildebreuumlmuiiiacutevecircrsomiddot middotx- middotcamiddotsacirc-eacutefe viuuml~ecirct s~ vecirc sempre ~~pi~dmiddot -p-~i~~ fccedil~~- ~egetais de um jardim incontrolaacutevel cosmo das rosas Um universo-cosmos natildeo eacute carne Nem mesmo plano pedaccedilos de planos que se juntam planos dishyversamente orientados embora a junCcedilatildeo de todos os planos ateacute o infinito possa constituiacute-lo Mas o universo se apresenshyta no limite como o fundo da tela o uacutenico grande plano o vazio colorido o infinito monocromaacutetico A porta-janela como em Matisse soacute se abre sobre um fundo negro A carne ou antes a figura natildeo mais eacute o habitante do lugar da casa mas o habitante de um universo que suporta a casa (devir) Eacute como uma passagem do finito ao infinito mas tambeacutem do territoacuterio agrave desterritorializaccedilatildeo Eacute bem o momento do infishynito infinitos infinitamente variados Em Van Gogh em Gauguin em Bacon hoje vemos surgir a imediata tensatildeo da carne e do fundo dos derrames de tons justapostos e da praia

I

infinita de uma pura cor homogecircnea viva e saturada (em lugar de pintar a parede banal do mesquinho apartamento eu pinto o infinito faccedilo um fundo simples do azul mais rico

233Percepto Afecto e Conceito

mais intenso ) 19 Eacute verdade que o fundo monocromaacutetico

eacute mais do que um fundo E quando a pintura quer comeccedilar do zero construindo o percepto como um miacutenimo antes do vazio ou aproximando ao maacuteximo do conceito ela proceshy~e por monocromia liberada de toda casa ou de toda carne E notadamente o azul que se encarrega do infinito e qu~ faz do percepto uma sensibilidade coacutesmica ou o que haacute de mais conceitual na natureza ou de mais proposicional a cor na ausecircncia do homem o homem mergulhado na cor mas se o azul (ou o negro ou o branco) eacute perfeitamente idecircnshytico no quadro ou de um quadro a outro eacute a pintura que se torna azul- Yves o monocromo- segundo um puro afecto que faz o universo mergulhar no vazio e natildeo deixa mais nada por fazer ao pintor por excelecircncia20_

O vazio colorido ou antes colorante jaacute eacute forccedila A maior parte dos grandes monocromos da pintura moderna natildeo mais tecircm necessidade de recorrer a pequenos buquecircs murais mas apresentam variaccedilotildees sutis imperceptiacuteveis (todavia constishytutivas de um percepto) seja porque satildeo cortados ou conshy

19 Van Gogh carta a Theacuteo Correspondance complete Gallimardshy

Grasset III p 165 Os tons justapostos e sua relaccedilatildeo com o fundo satildeo um tema frequumlente da correspondecircncia Tambeacutem Gauguin carta a Schuffeshynecker 8 de outubro de 1888 Lettres Ed Grasset p 140 Eu fiz urn retra to de mim para Vincent Eacute acredito eu uma das minhas melhores coisas absolutamente incompreensiacutevel (por exemplo) de tal maneira eacute abstra~o o seu d~senho eacute inteiramente arbitraacuterio abstraccedilatildeo cornpl~ta a c~r ~uma co~ d1sta1te da natureza imagine uma vaga lembranccedila de ceram1ca retor~rda pelo fogo forte Todos os vermelhos os violetas rajashydas pelos claroes de fogo como uma fornalha radiante aos olhos sede das lutas do pensamento do pintor O todo sobre um fundo cromo seshymeado de buquecircs infantis Quarto de moccedila pura Eaacute ideacuteia do coloriacutesta arbitraacuterio segundo Van Gogh

~~ Cf Artst~dio no 16 Monochromes (sobre Klein artigos de Genev1eve Monmer e de Denys Riout e sobre os avatares atuais do monocromo artigo de Pierre Sterckx)

234 IL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tornados de um lado por uma fita um faixa uma extensatildeo de uma outra cor ou de um outro tom que mudam a intenshysidade do fundo por vizinhanccedila ou distanciamento seja porshyque apresentam figuras lineares ou circulares quase virtuais tom sobre torit seja porque satildeo esburacados ou fendidos satildeo problemas de junccedilatildeo ainda mas singularmente ampliados

Numa palavra o fundo vibra se enlaccedila ou se fende poque eacute portador de forccedilas apenas vislumbradas E o q~e fazia de iniacutecio a pintura abstrata convocar asforccedilas povoar o funshydo com as forccedilas que ele abriga fazer ver nelas mesmas as forshyccedilas invisiacuteveis traccedilar figuras de aparecircncia geomeacutetrica mas que natildeo seriam mais do que forccedilas forccedila de gravitaccedilatildeo de peso de rotaccedilatildeo de turbilhatildeo de explosatildeo de expansatildeo de gershyminaccedilatildeo forccedila do tempo (como se pode dizer da muacutesica que ela faz ouvir a forccedila sonora do tempo por exemplo com Messhysiaen ou da literatura com Proust que faz ler e conceber a forccedilaacute ilegiacutevel do tempo) Natildeo eacute esta a definiccedilatildeo do percepto em pessoa tornar sensiacuteveis as forccedilas insensiacuteveis que povoam o mundo e que nos afetam nos faze~ devir O que Mondrian obteacutem por simples diferenccedilas entre lados de um quadrado e Kandinsky pelas tensotildees lineares e Kupka pelos planos curvos em torno do ponto Do fundodas eras nos vem o que Worringer chamava a linha setentrional abstrata e infinita linha do uacuteniverso que forma fitas e tiras rodas e turbinas toda uma geometria viva elevando agrave intuiccedilatildeo as forccedilas mecacircshynicas constituindo uma poderosa vida natildeo-orgacircnica21

O eterno objeto da pintura pintar as forccedilas como Tintoretto

Encontraremos tambeacutem talvez a casa e o corpo E que o fundo infinito eacute frequumlentemente aquilo sobre o que se abre a janela ou a porta ou entatildeo eacute o muro da proacutepria casa ou o solo Van Gogh e Gauguin semeiam o fundo de pequenos buquecircs de flores para fazer deles o papel mural

21 Worringer Lart gothique Gallimard

Percepto Afecto e Conceito 235

sobre o qual se destaca o rosto de tons justapostos E com efeito a casa natildeo nos abriga das forccedilas coacutesmicas no maacutexishymo ela as filtra elas as seleciona Ela as transforma algushymas vezes em forccedilas benevolentes jamais a pintuacutera fez ver a forccedila de Arquimedes a forccedila do empuxltgt da aacutegua sobre um corpo gracioso que flutua na banheira da casa como Bonnard conseguiu em o Nuacute no banho Mas tambeacutem as forccedilas mais maleacuteficas podem entrar pela porta entreabershyta ou fechada satildeo as forccedilas coacutesmicas que provocam elas mesmas as zonas de indiscernibilidade nos_tons justapostos de um rosto esbofeteando-o arranhando-o fundindo-o em todos os sentidos e satildeo estas zonas de indiscernibilidade que revelam as forccedilas escondidas no fundo (Bacon) Haacute plena complementariedade enlace de forccedilas como perceptos e de devires como afectos A linha de forccedila abstrata segundo ~orringer eacute rica em motivos animalescos Agraves forccedilas coacutesshymicas ou cosmogeneacuteticas correspondem devires-aniinais veshy

geta1s moleculares ateacute que o corpo desapareccedila no fundo ou entre no muro ou inversamente que o fundo se contorshyccedila e turbilhone na zona de indiscernibilidade d~ corpo~ Numa palavra o ser de sensaccedilatildeo natildeo eacute a carne mas o comshyposto das forccedilas natildeo-humanas do cosmos dos devires natildeo humanos do homem e da casa ambiacutegua que os troccedila e os ajusta os faz turbilhonar como os ventos A carne eacute somenshyte o revelador que desaparece no que revela o composto de sensaccedilotildees Como toda pintura a pintura abstrata eacute senshysaccedilatildeo nada mais que sensaccedilatildeo Em Mondrian eacute o quarto que acede ao ser de sensaccedilatildeo dividindo por extensotildees coshyloridas o plano vazio infinito que lhe daacute de volta um infishy

d b 22 mto e a ertura Em Kandinsky as casa~ satildeo uma das

22 Mondrian Reacutealiteacute naturelle et reacutealiteacute abstraite (in Seuphor Piet

Mondnan sa vie son oeuvre Ed Flammarion) sobre o quarto e seu desdobramento Michel Butor analisou este desdobramento do quarto em

236 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

fontes da abstraccedilatildeo que consiste menos em figuras geomeacuteshytricas que em trajetos dinacircmicos e linhas de erracircncia cashyminhos que caminham nos arredores Em Kupka eacute de iniacuteshycio sobre o corpo que o pintor talha fitas ou extensotildees coshyloridas que produziratildeo no vazio os planos curos que o povoam tornando-se sensaccedilotildees cosmogeneacuteticas__ ~--~--~~~~

ccedilatildeoe~_pi_rjtual ou j~ um _~Ol~-~-i_g_viSgt= O _q~-~~t-~ lt1 ~~-~~- uacuten1verso A ~r~~ - aJs~rata_~ s~P25 a ~rte _C()flC~I~~~_Elt~~~-- middot-Pmiddot cacirc~dTmiddot~tamente a questatildeo que impregna toda pintura ---- --middot-shys~~ - ~-eiacute~Ccedilatilde-uumlcocircffi o ~~~~~ito~sti-a relaccedilatildeo com a funccedilatildeo middot_

A arte comeccedila talv-ez--com o animal ao menos com o animal que recorta um territoacuterio e faz uma casa (os dois satildeo correlativos ou ateacute mesmo se confundem por vezes no que se chama de habitat) Com o sistema territoacuterio-casa muitas funccedilotildees orgacircnicas se transformam sexualidade procriaccedilatildeo agressiyidade alimentaccedilatildeo mas natildeo eacute esta transformaccedilatildeo que explica a apariccedilatildeo do territoacuterio e da casa seria antes o

inverso o territoacuterio impli~a na emergecirc~lti~ e 91-ali_cll~~-~sel~ siacuteveis pu~- ~~-ibiIacuteia qua~ixacirciiacuteiacute -de ser unicaii1~_Ilt_e ushyecirc(ocircOtildeagraveisecirc cse- ioacuternani-tragraveCcediluumlsmiddotae express~Otilde__ tormiddotn~~~~J~~s~V~l tiffiagravetiansfocirciinaCcedilatildeo (G$iacute~i1Ccedilotildees23 s~ni duacutevida esta expresshysivlamp1deTaacuteestacirc dltu~ch~E~~~middot Vida~ pode-se dizer que o simshyples liacuterio dos campos celebra a gloacuteria dos ceacuteus Mas eacute com o territoacuterio e a casa que ela se torna construtiva e ergue os monumentos rituais de uma missa animal que celebra as quashylidades antes de tirar delas novas causalidades e finalidades Esta emergecircncia jaacute eacute arte natildeo somente no tratamento dos materiais exteriores mas nas posturas e cores do corpo nos

quadrados ou retacircngulos e a abertura sobre um quadrado interior vazio e branco como promessa de quarto futuro Reacutepertoire III Le carreacute et son habitant Ed de Minuit p 307-309314-315

23 Parece-nos que eacute um engano de Lorenz querer explicar o terrishytoacuterio por uma evoluccedilatildeo das funccedilotildees L agression Ed Flammarion

Percepto Afecto e Conceito 237

cantos e nos gritos que marcam o territoacuterio Eacute um jorro de traccedilos de~-~2E~~- e de sons inseparaacuteveisna dtecTda em que s~ -~riill _ ~xpr~~isiV_9_~ ~-(~i~~~i-~ill~~9l0_~_4~ middotr~ritoacute~i~fCcedil Scenopoietes dentirostris paacutessaro das florestas chuvosas da Austraacutelia faz cair da aacutervore as folhas que corta cada manhatilde vira-as para que sua face interna mais paacutelida contraste com a terra constroacutei para si assim uma cena co_mo um readyshymade e canta exatamente em cima sobre um cipoacute ou-um galho um canto complexo composto de suas proacuteprias noshytas e das de outros paacutessaros que imita nos intervalos mosshytrando a raiacutez amarela das plumas sob seubico eacute um artista completo24

bull Natildeo satildeo as sinestesias em plena carne satildeo esshytes blocos de sensaccedilotildees no territoacuterio cores posturas e sons que esboccedilam uma obra de arte total Estes blocos satildeo rishytorneios mas haacute tambeacutem ritornelos posturais e de cores e tanto posturas quanto cores se introduzem sempre nos ritor~ nelas Reverecircncias e posiccedilotildees eretas rondas traccedilos de coshyres O ritornelo inteiro eacute o ser de sensaccedilatildeo Os monumenshytos satildeo ritornelos Desse ponto de vista a arte natildeo deixaraacute de ser habitada pelo animal A arte deKafka seraacute a mais prbshy

funda meditaccedilatildeo sobre o territoacuterio e a casa o terreiro as pos~ turas~retrato (a cabeccedila pendida do habitante com o queixo enterrado no peito ou ao contraacuterio o grande tiacutemido que fura o teto com seu cracircnio anguloso) os sons-muacutesica (os catildees que satildeo muacutesicos por suas proacuteprias posturas Josephine a ratinha cantora da qual ja~ais saberemos se canta Gregoire que une seu piadoao violino de sua irmatilde numa relaccedilatildeo comshyplexa quarto-casa~territoacuterio) Eis tudo o que eacute preciso para fazer arte uma casa posturas cores e cantos - sob a conshy ~

I diccedilatildeo de que tudo isso se abra e se lance sobre ummiddotvetor louco como uma vassoura de bruxa uma linha d~ universo ou de

24 Marshall Bowler Birds Oxford at the Clarendon Press Gilliord Birds of Paradise and Bowler Birds Weidenfeld

desterritorializaccedilatildeoPerspectiva de um quarto com seus hashybitantes (Klee )

Cada territoacuterio cada habitat junt a seus planos ou suas extensotildees natildeo apenas espaccedilo-temporais mas qualitativos por exemplo uma postura e um canto um canto e urna cor perceptos e afectos E cada territoacuterio engloba ou recorta ter~ ritoacuterios de outras espeacutecies ou intercepta trajetos de animais sem territoacuterio formando junccedilotildees inUacuterespeciacuteficltlS Eacute neste sentido que Uexkuumlhl num primeiro aspecto desenvolve urna concepccedilatildeo da Natureza meloacutedica polifocircnica contrapontual Natildeo apenas o canto de um paacutessaro tem suas relaccedilotildees de conshytraponto mas pode fazer contraponto com o canto de oushytras espeacutecies e pode ele mesmo imitar estes outros cantos como se se tratasse de ocupar um maacuteximo de frequumlecircnciacuteas A teia de aranha conteacutem um retrato muito sutil da mosca que lhe serve de contraponto A concha como casa do moshylusco~ se torna quando ele morre o contraponto do Bershynardo-eremita que faz dela seu proacuteprio habitat graccedilas a sua cauda que natildeo eacute nadadeira mas preecircnsil e lhe permite capshyturar a concha vazia O Carrapato eacute organicamente consshytruiacutedo de modo a encontrar seu contraponto no mamiacutefero qualquer que passa sob seu galho como as folhas de carvashylho arranjadas como telhas nas gotas de chuva que escorshyrem Natildeo eacute uma concepccedilatildeo finalista mas meloacutedica em que natildeo mais sabemos o que eacute arte ou natureza (a teacutecnica nashytural) haacute contraponto toda vez que uma melodia interveacutem como motivo numa outra melodia como nas bodas enshytre a mamangava e a boca-de-leatildeo Essas relaccedilotildees de contrashyponto juntam planos formam compostos de sensaccedilotildees bloshycos e determinam devires Mas natildeo satildeo somente estes comshypostos meloacutedicos determinados que constituem a natureza mesmo generalizados eacute preciso tambeacutem sob um outro asshypecto um plano de composiccedilatildeo sinfocircnica infinio da Casa ao universo Da endo-sensaccedilatildeo agrave exo-sensaccedilatildeo E que o tershy

bull 238 li Filosofia Ciecircnci~ Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 239

r I I I-- --- --

~ -

middot1

ritoacuterio natildeo se limita a isolar e juntar ele abre para forccedilas coacutesmicas que sobem de dentro ou que vecircm de fora e torna sensiacuteveis seu efeito sobre o habitante Eacute um plano de comshyposiccedilatildeo do carvalho que porta ou comporta a forCcedila de deshysenvolvimento da bolota e a forccedila de formaccedilatildeo das gotas ou o do carrapato que tem a forccedila da luz capaz de atrair o animal ateacute a ponta de um galho numa altura suficiente e a forccedila de peso com a qual se deixa cair sobre o mamiacutefero que passa -e entre os dois nada um vazio assustador que pode durar anos se o mamiacutefero natildeo passa25bull E ora as forccedilas se fundem umas nas outras em transiccedilotildees sutis decompotildeemshyse tatildeo logo vislumbradas ora se alternam ou se enfrentam Ora deixam-se selecionar pelo territoacuterio e satildeo as mais beshynevolentes que entram na casa Ora lanccedilam um apelo misshyterioso que arranca o habitante do territoacuterio e o precipita numa viagem irresistiacutevel como os pintassilgos que se reuacuteshynem frequentemente aos milhotildees ou as lagostas que empreshyendem uma imensa peregrinaccedilatildeo no fundo da aacutegua Ora se abatem sobre o territoacuterio e o invertem malevolentes restaushyrando o caos de onde ele mal saiacutea Mas sempre se a nature za eacute como a arte eacute porque ela conjuga de todas as maneiras esses dois elementos vivos a Casa e o Universo o Heimlich e o Unheimlich o territoacuterio e a desterritorializaccedilatildeo os comshypostos meloacutedicos finitos e o grande plano de composiccedilatildeo infinito o pequeno e o grande ritornelo

A arte comeccedila natildeo com a carne mas com a casa eacute por isso que a arquitetura eacute a primeira das artes Quando Dushybuffet procura delifuitar um certo estado bruto de arte eacute a princiacutepio na direccedilatildeo da casa que ele se volta e toda sua obra se ergue entre a arquitetura a escultura e a -pintUra E limishy

25 Cf a obra-prima de J von Uexkuumlhl Mondes animaux et monde humain Theacuteorie de la signification Ed Gonthier (p 137-142 o contrashyponto motivo do desenvolvimento e da morfogecircnese)

II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tando-nos agrave forma a arquitetura mais saacutebia natildeo deixa de fazer planos extensotildees e de juntaacute-los Eacute por isso que se pode defini-la pela moldura um encaixe de molduras diversashymente orientadas que se imporiam agraves outras artes da pinshytura ao Cinema Jaacute se apresentou a preacute-histoacuteria do quadro como passando pelo afresco na moldura da parede o vitral ha moldura da janela o mosaico na moldura do solo A moldura eacute o umbigo que liga o quadro ao monujllento do qual ele eacute a reduccedilatildeo como a moldura goacutetica com coluneshytas ogiva e flecha26 Fazendo da arquitetura a arte primeira da moldura Bernard Cache pode enumerar um certo nuacutemero de formas enquadrantes que natildeo prejulgam nenhum conteuacuteshydo concreto nem funccedilatildeo do edifiacutecio o mu~o que isola ajashynela que capta ou seleciona (em conexatildeo com o territoacuterio) o solo-chatildeo que conjura ou rarifica (rarificar o relevo da terra para dar livre curso agraves trajetoacuterias humanas) o teto que envolve a singularidade do lugar (o teto em declive coloca o edifiacutecio sobre uma colina ) Encaixar essas molshyduras ou juntar todos estes planos extensatildeo de muro exshytensatildeo de janela extensatildeo de solo extensatildeo de declive eacute todo um sistema composto rico em pontos e contrapontos As molduras e suas junccedilotildees sustentam os compostos de sensashyccedilotildees datildeo consistecircncia agraves figuras confundem-se com seu dar consistecircncia seu proacuteprio tocircnus Aiacute estatildeo as faces de um cubo de sensaccedilatildeo As molduras ou as extensotildees natildeo satildeo coordeshynadas pertencem aos compostos de sensaccedilotildees dos quais consshytituem as faces as interfaces Mas por mais extensiacutevel que seja este sistema eacute preciso ainda um vasto plano de composhysiccedilatildeo que opere uma espeacutecie de desenquadramento segunshydo linhas de fuga que soacute passe pelo territoacuterio para abri-lo sobre o universo que vaacute da casa-territoacuterio agrave cidade-cosmos

26 Henry van de Velde Deacuteblaientent dart Archives darchitecture moderne p 20

Percepto Afecto e Conceito 240 241

-~-_--- middot-middotmiddot

e que dissolva agora a identidade do lugar na variaccedilatildeo da Natildeo parece que a literatura e particularmente o romance Terra uma cidade que tem menos um lugar do que vetores estejam imma outra situaccedilatildeo O que conta natildeo satildeo as opiniotildees pregueando a linha abstrata do relevo Eacute sobre este plano de dos personagens segundo seus tipos sociais e seu caraacuteter composiccedilatildeo como sobre um espaccedilo vetorial abstrato que como nos maus romances mas as relaccedilotildees de contraponto nos se traccedilam figuras geomeacutetricas cone prisma diedro plano quais entram e os compostos de sensaccedilotildees que esses persoshyestrito que nada mais satildeo do que forccedilas coacutesmicas capazes nagens experimentam eles mesmos ou fazem experimentar em de se fundir se transformar se enfrentar alternar mundo seus devires e suas visotildees O contraponto natildeo serve para reshyde antes do homem mesmo se eacute produto do homem27 Eacute latar conversas reais ou fictiacutecias mas para fazer mostrar a preciso agora desarticular os planos para remetecirc-los a seus loucura de qualquer conversa de qualquer diaacutelogo mesmo

j intervalos em vez de remetecirc-los uns aos outros para criar interior Eacute tudo isso que o romancista deve extrair das pershy

novos afectos28 Ora~ vimos que a pintura seguia o mesmo cepccedilotildees afecccedilotildees e opiniotildees de seus modelos psicossociais I

I movimento A moldura ou a borda do quadro eacute em primeiro que se integram inteiramente nos perceptos e os afectos aos ~ I

lugar o invoacutelucro externo de uma seacuterie de molduras ou de quais o personagem deve ser elevado sem conservar outra vida I

I extensotildees que se juntam operando contrapontos de linhas E isso implica num vasto plano de composiccedilatildeo natildeo preconshyi

I

e de cores determinando compostos de sensaccedilotildees Mas o cebido abstratamente mas que se constroacutei agrave medida que a obraI

quadro eacute atravessado tambeacutem por uma potecircncia de desenshy avanccedila abrindo misturando desfazendo e refazendo composshy

I I quadramento que o abre para um plano de composiccedilatildeo oumiddot tos cada vez mais ilimitados segundo a penetraccedilatildeo de forccedilasI

um campo de forccedilas infinito Estes procedimentos podem ser coacutesmicas A teoria do romance de Bakhtin vai nesse sentido muito diversos mesmo no nivel da moldura exterior formas mostrando de Rabelais a Dostoievski a coexistecircncia dos comshy

[I irregulares lados que natildeo se juntam molduras pintadas oacuteu ponentes contrapontuais polifocircnicos e plurivocais com um I pontilhados de Seurat quadrados sobre ponta de Mondrian plano de composiccedilatildeo arquitetocircnico ou sinfocircnico29 Um roshyi li tudo o que daacute ao quadro o poder de sair da tela Jamais o mancista como Dos Passos soube atingir uma arte inaudita

shy__jl

gesto do pintor fica na moldura ele sai da moldura e natildeo do contraponto nos compostos que forma entre personagens comeccedila com ela atualidades biografias olhos de cacircmera ao mesmo teropo queI

um plano de composiccedilatildeo se alarga ao infinito para arrastar tudo para a Vida para a Morte para a cidade-cosmos E se27 Sobre todos estes pontos a anaacutelise das formas enquadrantes e da

cidade-cosmos (exemplo de Lausanne) cf Bernard Cache L ameublement retornamos a Proust eacute porque mais do que qualquer outro du territoire (a sair) ele fez com que os dois elementos quase se sucedessem emboshy

28 Eacute Pascal Bonitzer que formou o conceito de desenquadramento ra presentes um no outro o plano de composiccedilatildeo aparece poushypara aplicar ao cinema novas rdaccedilotildees entre os planos ( Cahiers du cineacutema co a pouco para a vida para a morte compostos de sensashyndeg 284 janeiro de 1978) planos disjuntos triturados ou fragmentados ccedilatildeo que ele edifica no curso do tempo perdido ateacute aparecer graccedilas aos quais o cinema se torna uma arte depurando-se das emoccedilotildees

em si mesmo com o tempo reencontrado a forccedila ou antes asmais comuns que arriscam de lhe impedir o desenvolvimento esteacutetico e produzindo-lhe afetos novos (Le champ aveugle Ed Cahiers du cineacutema Gallirnard sisteme des eacutemotions ) 29 Bakhtin Estheacutetique et theacuteorie du roman Gallimard

242 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 243

-- ---

forccedilas do tempo puro tornadas sensiacuteveis Tudo comeccedila peshylas Casas que devem todas juntar suas dimensotildees e dar conshysistecircncia a compostos Combray o palacete de Guermantes o salatildeo Verdurin e as casas elas mesmas se ajuntam segundo interfaces mas um Cosmos planetaacuterio jaacute estaacute laacute visiacutevel ao telescoacutepio arruinando-as ou transformando-as e absorvenshydo-as no infinito do fundo Tudo comeccedila por titornelos cada

i

um dos quais como a pequena frase da sonata de Vinteuil natildeo se compotildee apenas em si mesmo mas com -outras sensashy

ccedilotildees variaacuteveis a de uma passante desconhecida a do rosto de Odette a das folhagens do bosque de Boulogne- e tudo tershy I mina no infinito no grade Ritornelo a frase do seacuteptuor em Iperpeacutetua metamorfose o canto dos universos o mundo de antes do homem ou de depois De cada coisa finita Proust faz uni ser de sensaccedilatildeo que natildeo deixa de se conservar mas fushygindo sobre um plano de composiccedilatildeo do Ser seres de fuga

EXEMPLO XII

Natildeo parece que a muacutesica esteja numa outra situashyccedilatildeo talvez mesmo a encarne com mais poder ainda Dizshyse todavia que o som natildeo tem moldura Mas os comshypostos de sensaccedilotildees os blocos sonoros tampouco tecircm extensotildees ou formas enquadrantes que devem em cada caso se ajuntar assegurando um certo fechamento Os casos mais simples satildeo a aacuteria meloacutedica que eacute um ritorshynelo monofocircnico o motivo que jaacute eacute polifocircnico um elemento de Uacutema melodia interveniente no desenvolvishymento de uma outra e fazendo contraponto o tema como objeto de modificaccedilotildees harm-ecircnicas atrav~s das linhas meloacutedicas Essas trecircs formas elementares consshytroacuteem a casa sonora e seu territoacuterio Elas correspondem agraves trecircs modalidades de um ser de sensaccedilatildeo pois a aacuteria eacute uma vibraccedilatildeo o motivo eacute um enlace um acoplamen-

I244 lIL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

jbull

to enquanto o tema natildeo fecha sem se descerrar fender e tambeacutem abrir Com efeito o fenocircmeno musical mais importante que aparece agrave medida que os compostos de sensaccedilotildees sonoras se tornam mais complexos eacute que sua clausura ou fechamento (por junccedilatildeo de suas molduras de suas extensotildees) se acompanha de uma possibilidade de abertura sobre um plano de composiccedilatildeo cada vez mais ilimitado Os seres de muacutesica satildeo como os seres vivos segundo Bergson que compensam sua clausura individuante por uma abertura feita de modulaccedilatildeo reshypeticcedilatildeo transposiccedilatildeo justaposiccedilatildeo Se consideramos a sonata encontramos aiacute uma forma enquadraacutente parshyticularmente riacutegida fundada sobre um bitematismo e da qual o primeiro movimento apresenta as seguintes dimensotildees exposiccedilatildeo do primeiro tema transiccedilatildeo exshyposiccedilatildeo do segundo tema desenvolvimentos sobre o pric rileiro ou o segundo coda desenvolvimento do primeiro com modulaccedilatildeo etc Eacute toda uma casa com seus aposhysentos Mas eacute antes o primeiro movimento que forma assim uma ceacutelula e eacute raro que uiacuten grande muacutesico siga a forma canocircnica os outros moviacutementos podem abrirshyse notadamente o segundo pel~ tema e variaccedilatildeo ateacute que Liszt asseg~re uma fusatildeo dos movimentos no poeshyma sinfocircnico A sonata aparece entatildeo antes como uma forma-cruzamento em que da junccedilatildeo das dimensotildees musicais da clausura dos compostos sonoros nasce a abertura de um plano de composiccedilatildeo

Deste ponto de vista o velho procedimento tema e variaccedilatildeo que manteacutem a moldura harmocircnica do tema daacute lugar a uma espeacutecie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composiccedilatildeo (Chopin Schumann Liszt eacute um novo momento essencial porshyque o trabalho criador natildeo mais versa sobre os comshyponentes sonoros motivos e temas abrindo um plano

245Percepto Mecto e Conceito

~~

mas ao contraacuterio versa diretamente sobre o proacuteprio plano de composiccedilatildeo para fazer nascer dele composshytos bem mais livres e desenquadrados quase agregados incompletos ou sobrecarregados em desequiliacutebrio pershymanente Eacute a cor do som que conta cada vez mais Passa-se da Casa ao Cosmos (segundo uma foacutermula que a obra de Stockhausen retomaraacute) O trabalho do plano de composiccedilatildeo se desenvolve em duas direccedilotildees que engendraratildeo uma desagregaccedilatildeo da moldura tonal os imensos fundos da variaccedilatildeo contiacutenua que fazem enshylaccedilar e se unir as forccedilas tornadas sonoras em Wagner ou os tons justapostos que separam e dispersam as forshyccedilas agenciando suas passagens reversiacuteveis em Debussy Universo-Wagner universo-Debussy Todas as aacuterias todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquashydrados infantis domeacutesticos profissionais nacionais territoriais satildeo carregados no grande Ritornelo um potente canto da terra - o desterritorializado - que se eleva com Mahler Berg ou Bartoacutek E sem duacutevida o plano de composiccedilatildeo engendra sempre novas clausuras como na seacuterie Mas sempre o gesto do muacutesico consiste em desenquadrar encontrar a abertura retornar o plashyno de composiccedilatildeo segundo a foacutermula que obceca Boushylez traccedilar uina transversal irredutiacutevel agrave vertical harmocircshynica como agrave horizontal meloacutedica que conduz blocos soshynoros agrave individualizaccedilatildeo variaacutevel mas tambeacutem abri-las ou fendecirc-las num espaccedilo-tempo que determina sua denshysidaae e seu percurso sobre o plano30 O grande ritorshynelo se eleva agrave medida que nos afastamos dacasa messhy

30 Boulez notadamente Points de repere Ed Bourgois-Le Seuil p 159 e segs (Pensez la musique aujourdhui Ed Gonthier p 59-62) A eXtensatildeo da seacuterie em duraccedilotildees intensidades e timbres natildeo eacute um ato de clausura mas ao contraacuterio uma abertura do que se fechava na middotseacuterie das alturas

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte246

--~=shyq

mo se eacute para retornar a ela jaacute que ningueacutem mais nos reconheceraacute quando retornarmos

Composiccedilatildeo composiccedilatildeo eis a uacutenica definiccedilatildeo da arte A composiccedilatildeo eacute esteacutetica e o que natildeo eacute composto natildeo eacute uma obra de arte Natildeo confundiremos todavia a composiccedilatildeo teacutecshynica trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciecircncia (matemaacutetica fiacutesica quiacutemica anatomia) e a comshyposiccedilatildeo esteacutetica que eacute o trabalho da sensaccedilatildeo Soacute este uacuteltishymo merece plenamente o nome de composiccedilatildeo e nunca uma obra de arte eacute feita por teacutecnica ou pela teacutecnica Certamente a teacutecnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra as palavras e a sintaxe em literatura natildeo apenas a tela em pintura mas sua preparashyccedilatildeo os pigmentos suas misturas os meacutetodos de perspectiva ou ent~o os doze sons da muacutesica ocidental os instrumentos as escalas as alturas E a relaccedilatildeo entre os dois planos oacute

plano de composiccedilatildeo teacutecnica e o plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica natildeo cessa de variar historicamente Sejam dois estados oponiacuteveis na pintura a oacuteleo num primeiro caso o quadro eacute preparado por um fundo branco sobre o qual se desenha e se dilui o desenho (esboccedilo) enfim se potildee a cor as sombras e as luzes No outro caso o fundo se torna cada vez mais espesso opaco e absorvente de modo que ele se colore na divisatildeo e o trabalho se faz em plena massa sobre uma gama escura as correccedilotildees substituindo o esboccedilo o pintor pintaraacute sobre cor depois cor ao lado de cor as cores se tornando cada vez mais relevos a arquitetura sendo assegurada pelo contraste dos complementares e a concordacircncia dos anaacuteshylogos (Van Gogh) eacute por e nagrave cor que se encontraraacute a arshyquitetura mesmo se eacute preciso renunciar aos relevos parareshyconstituir grandes unidades colorantes Eacute verdade que Xavier de Langlais vecirc em todo este segundo caso uma longa decashydecircncia que caino efecircmero e natildeo chega a restaurar uma ar-

Percepto Mecto e Conceito 247

quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem duacutevida esta observaccedilatildeo coloca ao meshynos negativamente a questatildeo do progresso na arte jaacute que Langlais considera que a decadecircncia comeccedila jaacute depois de Van Eyck (um pouco como alguns param a muacutesica no canto greshygoriano ou a filosofia em Santo Tomaacutes) Mas eacute uma obsershyvaccedilatildeo teacutecnica que concerne somente ao material aleacutem de que a duraccedilatildeo do material eacute muito relativa a sensaccedilatildeo eacute de uma outra ordem e possui uma existecircncia em si enquanto o mashyterial dura A relaccedilatildeo da sensaccedilatildeo com o material deve pois ser avaliada nos limites da duraccedilatildeo do material qualquer que ela seja Se haacute progressatildeo em arte eacute porque a arte soacute pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retonws linhas de partilha mudanccedilas de niacuteveis e de escashy

I las Deste ponto de vista a distinccedilatildeo de dois estados da lf

pintura a oacuteleo toma um aspecto inteiramente diferente esshyI

teacutetico e natildeo mais teacutecnico- esta distinccedilatildeo natildeo conduz evishydentemente ao representativo ou natildeo jaacute que nenhuma arte nenhuma sensaccedilatildeo jamais foram representativas

li No primeiro caso a sensaccedilatildeo se realiza no material e natildeo existe fora desta realizaccedilatildeo Diriacuteamos que a sensaccedilatildeo (o composto de sensaccedilotildees) se projeta sobre o plano de composhysiccedilatildeo teacutecnica bem preparado de sorte que o plano -de comshyposiccedilatildeo esteacutetica venha recobri-lo Eacute preciso pois que o mashyterial compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graccedilas aos quais a sensaccedilatildeo projetada natildeo se realiza somenshyte cobrindo o qu1dro mas segundo uma profundidade A arte desfruta entatildeo de uma aparecircncia de transcendecircncia que se exprime natildeo numa coisa por representar mas no caraacuteter paradigmaacutetico da projeccedilatildeo e no caraacuteter simboacutelico da persshypectiva A Figura eacute como a fabulaccedilatildeo segundo Bergson tem

31 Xavier de Langlais La technique de la peinture agrave lhuile Ed Flammarion (E Goethe Traiteacute des couleurs Ed Triades sect 902-909)

248 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 249

middot i

uma origem religiosa Mas quando ela se torna esteacutetica sua transcendecircncia sensitiva entra numa oposiccedilatildeo surda ou abe-rshyta com a transcendecircncia suprasensiacutevel das religiotildees

No segundo caso natildeo eacute mais a sensaccedilatildeo que se realiza no material eacute antes o material que entra na sensaccedilatildeo Cershytamente a sensaccedilatildeo natildeo existe mais fora dessa entrada e o plano de composiccedilatildeo teacutecnica natildeo mais tem autonomia a natildeo ser no primeiro caso natildeo vale jamais por si mesmo Mas diriacuteamos agora que ele sobe no plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica e lhe daacute uma espessura proacutepria como diz Damisch inshydependente de qualquer perspectiva e profundidade Eacute o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transshycendecircncia aparente ou-de um modelo paradigmaacutetico e conshyfessam seu ateiacutesmo inocente seu paganismo E sem duacutevida entre estes dois casos estes dois estados da sensaccedilatildeo estes dois poacutelos da teacutecnica as transiccedilotildees as combinaccedilotildees e as coexistecircncias se fazem constantemente (por exemplo o trashybalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens) satildeo poacutelos abstratos ao inveacutes de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com oacuteleo e solvente se volta cada vez mais na direccedilatildeo do segundo poacutelo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composiccedilatilde~ esteacutetica -Eacute por isso -que eacute tatildeo falso definir a sensaccedilatildeo na pintura moderna pela admissatildeo de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a esshypessura natildeo precisa ser larga ou profunda Pocircde-se dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfiacuteshycie basta-lhe apoiar-se sobre os vazios e os plenos do pashypel Canson Eacute uma pintura que natildeo mais tem fundo porshyque o baixo emerge a superfiacutecie eacute esburacaacutevel ou o plashyno de composiccedilatildeo ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspecshytiva independentemente das sombras e mesmo da ordem

i r I li

I 32 Cf Christian Bonnefbi intervieweacute et commenteacute par Yvesshy

I Alain Bois Macula S-6

33 Damisch Fenecirctre jaime cadmium ou les dessous de la peinture Ed du Seuil pp 275-305 (e p 80 a espessura do plano em Pollock) Dashy

li misch eacute o autor que mais insistiu sobre a relaccedilatildeo -arte-pertsamento pinshytura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instauraacute-la Mallarmeacute fazia da espessura do livro uma dimensatildeo distinta da proshy) fundidade cf Jacques Scheacuterer Le livre de Mallarmeacute Gallimard p 55shy

I tema que Boulez retoma por sua vez para a muacutesica (Points de repere p 161) iI

li 250 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

I I

cromaacutetica da cor (o colorista arbitraacuterio) Natildeo mais se recoshybre faz-se subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar Eacute uma promoccedilatildeo do solo e a escultura pode torshy

I nar-se plana jaacute que o plano se estratifica Natildeo magraveis se pinshyI ta sobre mas sob A arte informal levou muito longe

estas novas potecircncias da textura essa elevaccedilatildeo do solo com I Dubuffet e tambeacutem o expressionismo abstrato a arte mishy

nimalista procedendo por impregnaccedilotildees fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atraacutes de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem agrave vista do pintor o que enshytregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes estados a pintura eacute-penshysamento a visatildeo existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta

Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdashydeiro conceito mostrando que o tranccedilado poderia bem preencher para a pintura futura funccedilatildeo anaacuteloga agravequela que foi a da perspectiva O quemiddotnatildeo eacute proacuteprio da pintura jaacute que Damisch reencontra a mesma distinccedilatildeo no niacutevel do plano arquitetura quando Scarpa por exemplo rejeita o movishymento da projeccedilatildeo e os mecanismos da perspectiva para ins~ crever os volumes na espessura do proacuteprio plano33 bull E da literatura agrave muacutesica uma espessura material se afirma que

--~ middot

natildeo se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal Eacute umr I traccedilo caracteriacutestico da literatura moderna quando as palashyr vras e a sintaxe sobem no plano de composiccedilatildeo e o cavam I em lugar de colocaacute-lo em perspectiva E a muacutesica quando

renuncia agrave projeccedilatildeo como agraves perspeCtivas que impotildeem a alshyI tura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano soshynoro uma espessura singular da qual testemunham elemenshy

I tos muito diferentes a evoluccedilatildeo dos estudos parapiano que deixam de ser somente teacutecnicas para tornar-se estudos de

jmiddot composiccedilatildeo (com a extensatildeo que lhes daacute Debussy) a imshy

portacircncia decisiva que toma a orquestraccedilatildeo em Berlioz a i subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferashyI I ccedilatildeo dos afectos de percussatildeo com os metais as peles e as mashy

deiras e sua ligaccedilatildeo com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparaacuteveis do material (Varese) a redeshy

I finiccedilatildeo do percepto em funccedilatildeo do ruiacutedo do som bruto e I complexo (Cage) natildeo apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendecircnshy

cia a uma apariccedilatildeo natildeo-cromaacutetica do som num continuum infiiuumlto (muacutesica eletrocircnica ou eletro-acuacutestica)I

I Soacute haacute um plano uacutenico no sentido em que a arte natildeo

I comporta outro plano diferente do da composiccedilatildeo esteacutetica

I o plano teacutecnico com efeito eacute necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composiccedilatildeo esteacutetica Eacute sob esta conshydiccedilatildeo que a mateacuteria se torna expressiva o composto de senshysaccedilotildees se realiza no material ou o material entra no comshyI posto mas sempre de modo a se situar sobre um plano deI

I composiccedilatildeo propriamente esteacutetico Haacute muitos problemasI teacutecnicos em arte e a ciecircncia pode intervir em sua soluccedilatildeo

mas eles soacute se colocam em funccedilatildeo de problemas de composhysiccedilatildeo esteacutetica que concernem aos compostos de sensaccedilotildees e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus mateshyriais Toda sensaccedilatildeo eacute uma questatildeo mesmo se soacute o silecircncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em enshy

251Percepto Afecto e Conceito

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 12: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

de indiscernibilidade do animal e do homem Talvez fosse um embaralhamento ou um caos se natildeo houvesse um segunshydo elemento para dar consistecircncia agrave carne_ A carne eacute apeshynas o termocircmetro de um devir A carne eacute tenra demais O segundo elemento eacute menos o osso ou a ossatura que a casa

rltmiddotr a armadura O corpo desabrocha na casa (ou num equivashylente numa fonte num bosque) Ora o que define a casa

( I satildeo as extensotildees isto eacute os pedaccedilos de planos diversamente orientados que datildeo agrave carne sua armadura primeiro-plano e plano-de-fundo paredes horizontais verticais esquerda dishyreita retos e obliacutequos retiliacuteneos ou curvos 18 Essas extenshysotildees satildeo muros mas tambeacutem solos portas j arielas portasshyjanelas espelhos que datildeo precisamente agrave sensaccedilatildeo o poder de manter-se sozinha em molduras autocircnomas Satildeo as faces do bloco de sensaccedilatildeo E haacute certamente dois signos do gecircnio dos grandes pintores bem como de sua humildade o respeishyto quase um terror com o qual eles se aproximam da cor e entram nela o cuidado com o qual operam a junccedilatildeo dos

Imiddot planos da qual depende o tipo de profundidade Sem este respeito e este cuidado a pintura eacute nula sem trabagravelho sem pensamento O difiacutecil eacute juntar natildeo as matildeos mas os planos Fazer relevos com planos que se juntam ou ao contraacuterio escarificaacute-los cortaacute-los Os dois problemas a arquitetura dos planos e o regime da cor se confundem frequumlentemente A junccedilatildeo dos planos horizontais e verticais em Ceacutezanne os planos na cor os planos o lugar colorido ou a alma dos planos entra em fusatildeo ~~_grandes P~_esou mesmo duas grandes obras que operem da mesma ~~nei-

-----=~Haacute todavia tendecircncias num pintotilderem middotGiaco~ettipo-18

Como mostra Georges Didi-Huberman a-carne middot~~gendra uma i duacutevida ela eacute proacutexima demais do caos donde a necessidade de uma

complernentariedade entre o encarnado e a extensatildeo tema essencial de La peinture incarneacutee retomada e desenvolvida em Devant limage Ed de Minuit

232 II Filosofia Ciecircncia middotLOacutegica e Arte

exemplo os planos horizontais fugidios diferem agrave direita e middot agrave esquerda e parecem se reunir na coisa (a carne da pequeshyna maccedilatilde) mas como uma pinccedila que a puxaria para traacutes e a faria desaparecer se uni plano vertical do qual soacute se vecirc o fio sem espessura natildeo viesse fixaacute-la retecirc-la no uacuteltimo moshymento dar-lhe uma existecircncia duraacutevel agrave maneira de um longo alfinete que a atravessa e a tornafiliforme por sua vez A casa participa de todo um devir Ela eacute vida ~vida natildeo

orgacircnica das coisas De todos 9s modos possiacute~sect~a_ LYD~-~ ccedilatildeo do~_planos~e mitorientaccedilOtildees que define t_casa-sens~-~-~---~ ccedilatildeo Aiacute~asa mesma (o_u-middotseu equivalente) eacute a junccedilatilde9T~itaii~------planos cQlruicles____

middot middot-middot--~rceiro elemento eacute o universo o qgtsmos Natildeo eacute soshymentea-Catildesatildeabeitaque secirc-cotildelliiriic co~ ~ p~i~agem por ~ffiatilde )atildeiieratilde- middoto-tr-uumlm espeino iiiatildes--atildemiddot-~8middot-middot~middotas~fe~~~~ ~~atilde__ atilde5e~t~-sotildebreuumlmuiiiacutevecircrsomiddot middotx- middotcamiddotsacirc-eacutefe viuuml~ecirct s~ vecirc sempre ~~pi~dmiddot -p-~i~~ fccedil~~- ~egetais de um jardim incontrolaacutevel cosmo das rosas Um universo-cosmos natildeo eacute carne Nem mesmo plano pedaccedilos de planos que se juntam planos dishyversamente orientados embora a junCcedilatildeo de todos os planos ateacute o infinito possa constituiacute-lo Mas o universo se apresenshyta no limite como o fundo da tela o uacutenico grande plano o vazio colorido o infinito monocromaacutetico A porta-janela como em Matisse soacute se abre sobre um fundo negro A carne ou antes a figura natildeo mais eacute o habitante do lugar da casa mas o habitante de um universo que suporta a casa (devir) Eacute como uma passagem do finito ao infinito mas tambeacutem do territoacuterio agrave desterritorializaccedilatildeo Eacute bem o momento do infishynito infinitos infinitamente variados Em Van Gogh em Gauguin em Bacon hoje vemos surgir a imediata tensatildeo da carne e do fundo dos derrames de tons justapostos e da praia

I

infinita de uma pura cor homogecircnea viva e saturada (em lugar de pintar a parede banal do mesquinho apartamento eu pinto o infinito faccedilo um fundo simples do azul mais rico

233Percepto Afecto e Conceito

mais intenso ) 19 Eacute verdade que o fundo monocromaacutetico

eacute mais do que um fundo E quando a pintura quer comeccedilar do zero construindo o percepto como um miacutenimo antes do vazio ou aproximando ao maacuteximo do conceito ela proceshy~e por monocromia liberada de toda casa ou de toda carne E notadamente o azul que se encarrega do infinito e qu~ faz do percepto uma sensibilidade coacutesmica ou o que haacute de mais conceitual na natureza ou de mais proposicional a cor na ausecircncia do homem o homem mergulhado na cor mas se o azul (ou o negro ou o branco) eacute perfeitamente idecircnshytico no quadro ou de um quadro a outro eacute a pintura que se torna azul- Yves o monocromo- segundo um puro afecto que faz o universo mergulhar no vazio e natildeo deixa mais nada por fazer ao pintor por excelecircncia20_

O vazio colorido ou antes colorante jaacute eacute forccedila A maior parte dos grandes monocromos da pintura moderna natildeo mais tecircm necessidade de recorrer a pequenos buquecircs murais mas apresentam variaccedilotildees sutis imperceptiacuteveis (todavia constishytutivas de um percepto) seja porque satildeo cortados ou conshy

19 Van Gogh carta a Theacuteo Correspondance complete Gallimardshy

Grasset III p 165 Os tons justapostos e sua relaccedilatildeo com o fundo satildeo um tema frequumlente da correspondecircncia Tambeacutem Gauguin carta a Schuffeshynecker 8 de outubro de 1888 Lettres Ed Grasset p 140 Eu fiz urn retra to de mim para Vincent Eacute acredito eu uma das minhas melhores coisas absolutamente incompreensiacutevel (por exemplo) de tal maneira eacute abstra~o o seu d~senho eacute inteiramente arbitraacuterio abstraccedilatildeo cornpl~ta a c~r ~uma co~ d1sta1te da natureza imagine uma vaga lembranccedila de ceram1ca retor~rda pelo fogo forte Todos os vermelhos os violetas rajashydas pelos claroes de fogo como uma fornalha radiante aos olhos sede das lutas do pensamento do pintor O todo sobre um fundo cromo seshymeado de buquecircs infantis Quarto de moccedila pura Eaacute ideacuteia do coloriacutesta arbitraacuterio segundo Van Gogh

~~ Cf Artst~dio no 16 Monochromes (sobre Klein artigos de Genev1eve Monmer e de Denys Riout e sobre os avatares atuais do monocromo artigo de Pierre Sterckx)

234 IL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tornados de um lado por uma fita um faixa uma extensatildeo de uma outra cor ou de um outro tom que mudam a intenshysidade do fundo por vizinhanccedila ou distanciamento seja porshyque apresentam figuras lineares ou circulares quase virtuais tom sobre torit seja porque satildeo esburacados ou fendidos satildeo problemas de junccedilatildeo ainda mas singularmente ampliados

Numa palavra o fundo vibra se enlaccedila ou se fende poque eacute portador de forccedilas apenas vislumbradas E o q~e fazia de iniacutecio a pintura abstrata convocar asforccedilas povoar o funshydo com as forccedilas que ele abriga fazer ver nelas mesmas as forshyccedilas invisiacuteveis traccedilar figuras de aparecircncia geomeacutetrica mas que natildeo seriam mais do que forccedilas forccedila de gravitaccedilatildeo de peso de rotaccedilatildeo de turbilhatildeo de explosatildeo de expansatildeo de gershyminaccedilatildeo forccedila do tempo (como se pode dizer da muacutesica que ela faz ouvir a forccedila sonora do tempo por exemplo com Messhysiaen ou da literatura com Proust que faz ler e conceber a forccedilaacute ilegiacutevel do tempo) Natildeo eacute esta a definiccedilatildeo do percepto em pessoa tornar sensiacuteveis as forccedilas insensiacuteveis que povoam o mundo e que nos afetam nos faze~ devir O que Mondrian obteacutem por simples diferenccedilas entre lados de um quadrado e Kandinsky pelas tensotildees lineares e Kupka pelos planos curvos em torno do ponto Do fundodas eras nos vem o que Worringer chamava a linha setentrional abstrata e infinita linha do uacuteniverso que forma fitas e tiras rodas e turbinas toda uma geometria viva elevando agrave intuiccedilatildeo as forccedilas mecacircshynicas constituindo uma poderosa vida natildeo-orgacircnica21

O eterno objeto da pintura pintar as forccedilas como Tintoretto

Encontraremos tambeacutem talvez a casa e o corpo E que o fundo infinito eacute frequumlentemente aquilo sobre o que se abre a janela ou a porta ou entatildeo eacute o muro da proacutepria casa ou o solo Van Gogh e Gauguin semeiam o fundo de pequenos buquecircs de flores para fazer deles o papel mural

21 Worringer Lart gothique Gallimard

Percepto Afecto e Conceito 235

sobre o qual se destaca o rosto de tons justapostos E com efeito a casa natildeo nos abriga das forccedilas coacutesmicas no maacutexishymo ela as filtra elas as seleciona Ela as transforma algushymas vezes em forccedilas benevolentes jamais a pintuacutera fez ver a forccedila de Arquimedes a forccedila do empuxltgt da aacutegua sobre um corpo gracioso que flutua na banheira da casa como Bonnard conseguiu em o Nuacute no banho Mas tambeacutem as forccedilas mais maleacuteficas podem entrar pela porta entreabershyta ou fechada satildeo as forccedilas coacutesmicas que provocam elas mesmas as zonas de indiscernibilidade nos_tons justapostos de um rosto esbofeteando-o arranhando-o fundindo-o em todos os sentidos e satildeo estas zonas de indiscernibilidade que revelam as forccedilas escondidas no fundo (Bacon) Haacute plena complementariedade enlace de forccedilas como perceptos e de devires como afectos A linha de forccedila abstrata segundo ~orringer eacute rica em motivos animalescos Agraves forccedilas coacutesshymicas ou cosmogeneacuteticas correspondem devires-aniinais veshy

geta1s moleculares ateacute que o corpo desapareccedila no fundo ou entre no muro ou inversamente que o fundo se contorshyccedila e turbilhone na zona de indiscernibilidade d~ corpo~ Numa palavra o ser de sensaccedilatildeo natildeo eacute a carne mas o comshyposto das forccedilas natildeo-humanas do cosmos dos devires natildeo humanos do homem e da casa ambiacutegua que os troccedila e os ajusta os faz turbilhonar como os ventos A carne eacute somenshyte o revelador que desaparece no que revela o composto de sensaccedilotildees Como toda pintura a pintura abstrata eacute senshysaccedilatildeo nada mais que sensaccedilatildeo Em Mondrian eacute o quarto que acede ao ser de sensaccedilatildeo dividindo por extensotildees coshyloridas o plano vazio infinito que lhe daacute de volta um infishy

d b 22 mto e a ertura Em Kandinsky as casa~ satildeo uma das

22 Mondrian Reacutealiteacute naturelle et reacutealiteacute abstraite (in Seuphor Piet

Mondnan sa vie son oeuvre Ed Flammarion) sobre o quarto e seu desdobramento Michel Butor analisou este desdobramento do quarto em

236 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

fontes da abstraccedilatildeo que consiste menos em figuras geomeacuteshytricas que em trajetos dinacircmicos e linhas de erracircncia cashyminhos que caminham nos arredores Em Kupka eacute de iniacuteshycio sobre o corpo que o pintor talha fitas ou extensotildees coshyloridas que produziratildeo no vazio os planos curos que o povoam tornando-se sensaccedilotildees cosmogeneacuteticas__ ~--~--~~~~

ccedilatildeoe~_pi_rjtual ou j~ um _~Ol~-~-i_g_viSgt= O _q~-~~t-~ lt1 ~~-~~- uacuten1verso A ~r~~ - aJs~rata_~ s~P25 a ~rte _C()flC~I~~~_Elt~~~-- middot-Pmiddot cacirc~dTmiddot~tamente a questatildeo que impregna toda pintura ---- --middot-shys~~ - ~-eiacute~Ccedilatilde-uumlcocircffi o ~~~~~ito~sti-a relaccedilatildeo com a funccedilatildeo middot_

A arte comeccedila talv-ez--com o animal ao menos com o animal que recorta um territoacuterio e faz uma casa (os dois satildeo correlativos ou ateacute mesmo se confundem por vezes no que se chama de habitat) Com o sistema territoacuterio-casa muitas funccedilotildees orgacircnicas se transformam sexualidade procriaccedilatildeo agressiyidade alimentaccedilatildeo mas natildeo eacute esta transformaccedilatildeo que explica a apariccedilatildeo do territoacuterio e da casa seria antes o

inverso o territoacuterio impli~a na emergecirc~lti~ e 91-ali_cll~~-~sel~ siacuteveis pu~- ~~-ibiIacuteia qua~ixacirciiacuteiacute -de ser unicaii1~_Ilt_e ushyecirc(ocircOtildeagraveisecirc cse- ioacuternani-tragraveCcediluumlsmiddotae express~Otilde__ tormiddotn~~~~J~~s~V~l tiffiagravetiansfocirciinaCcedilatildeo (G$iacute~i1Ccedilotildees23 s~ni duacutevida esta expresshysivlamp1deTaacuteestacirc dltu~ch~E~~~middot Vida~ pode-se dizer que o simshyples liacuterio dos campos celebra a gloacuteria dos ceacuteus Mas eacute com o territoacuterio e a casa que ela se torna construtiva e ergue os monumentos rituais de uma missa animal que celebra as quashylidades antes de tirar delas novas causalidades e finalidades Esta emergecircncia jaacute eacute arte natildeo somente no tratamento dos materiais exteriores mas nas posturas e cores do corpo nos

quadrados ou retacircngulos e a abertura sobre um quadrado interior vazio e branco como promessa de quarto futuro Reacutepertoire III Le carreacute et son habitant Ed de Minuit p 307-309314-315

23 Parece-nos que eacute um engano de Lorenz querer explicar o terrishytoacuterio por uma evoluccedilatildeo das funccedilotildees L agression Ed Flammarion

Percepto Afecto e Conceito 237

cantos e nos gritos que marcam o territoacuterio Eacute um jorro de traccedilos de~-~2E~~- e de sons inseparaacuteveisna dtecTda em que s~ -~riill _ ~xpr~~isiV_9_~ ~-(~i~~~i-~ill~~9l0_~_4~ middotr~ritoacute~i~fCcedil Scenopoietes dentirostris paacutessaro das florestas chuvosas da Austraacutelia faz cair da aacutervore as folhas que corta cada manhatilde vira-as para que sua face interna mais paacutelida contraste com a terra constroacutei para si assim uma cena co_mo um readyshymade e canta exatamente em cima sobre um cipoacute ou-um galho um canto complexo composto de suas proacuteprias noshytas e das de outros paacutessaros que imita nos intervalos mosshytrando a raiacutez amarela das plumas sob seubico eacute um artista completo24

bull Natildeo satildeo as sinestesias em plena carne satildeo esshytes blocos de sensaccedilotildees no territoacuterio cores posturas e sons que esboccedilam uma obra de arte total Estes blocos satildeo rishytorneios mas haacute tambeacutem ritornelos posturais e de cores e tanto posturas quanto cores se introduzem sempre nos ritor~ nelas Reverecircncias e posiccedilotildees eretas rondas traccedilos de coshyres O ritornelo inteiro eacute o ser de sensaccedilatildeo Os monumenshytos satildeo ritornelos Desse ponto de vista a arte natildeo deixaraacute de ser habitada pelo animal A arte deKafka seraacute a mais prbshy

funda meditaccedilatildeo sobre o territoacuterio e a casa o terreiro as pos~ turas~retrato (a cabeccedila pendida do habitante com o queixo enterrado no peito ou ao contraacuterio o grande tiacutemido que fura o teto com seu cracircnio anguloso) os sons-muacutesica (os catildees que satildeo muacutesicos por suas proacuteprias posturas Josephine a ratinha cantora da qual ja~ais saberemos se canta Gregoire que une seu piadoao violino de sua irmatilde numa relaccedilatildeo comshyplexa quarto-casa~territoacuterio) Eis tudo o que eacute preciso para fazer arte uma casa posturas cores e cantos - sob a conshy ~

I diccedilatildeo de que tudo isso se abra e se lance sobre ummiddotvetor louco como uma vassoura de bruxa uma linha d~ universo ou de

24 Marshall Bowler Birds Oxford at the Clarendon Press Gilliord Birds of Paradise and Bowler Birds Weidenfeld

desterritorializaccedilatildeoPerspectiva de um quarto com seus hashybitantes (Klee )

Cada territoacuterio cada habitat junt a seus planos ou suas extensotildees natildeo apenas espaccedilo-temporais mas qualitativos por exemplo uma postura e um canto um canto e urna cor perceptos e afectos E cada territoacuterio engloba ou recorta ter~ ritoacuterios de outras espeacutecies ou intercepta trajetos de animais sem territoacuterio formando junccedilotildees inUacuterespeciacuteficltlS Eacute neste sentido que Uexkuumlhl num primeiro aspecto desenvolve urna concepccedilatildeo da Natureza meloacutedica polifocircnica contrapontual Natildeo apenas o canto de um paacutessaro tem suas relaccedilotildees de conshytraponto mas pode fazer contraponto com o canto de oushytras espeacutecies e pode ele mesmo imitar estes outros cantos como se se tratasse de ocupar um maacuteximo de frequumlecircnciacuteas A teia de aranha conteacutem um retrato muito sutil da mosca que lhe serve de contraponto A concha como casa do moshylusco~ se torna quando ele morre o contraponto do Bershynardo-eremita que faz dela seu proacuteprio habitat graccedilas a sua cauda que natildeo eacute nadadeira mas preecircnsil e lhe permite capshyturar a concha vazia O Carrapato eacute organicamente consshytruiacutedo de modo a encontrar seu contraponto no mamiacutefero qualquer que passa sob seu galho como as folhas de carvashylho arranjadas como telhas nas gotas de chuva que escorshyrem Natildeo eacute uma concepccedilatildeo finalista mas meloacutedica em que natildeo mais sabemos o que eacute arte ou natureza (a teacutecnica nashytural) haacute contraponto toda vez que uma melodia interveacutem como motivo numa outra melodia como nas bodas enshytre a mamangava e a boca-de-leatildeo Essas relaccedilotildees de contrashyponto juntam planos formam compostos de sensaccedilotildees bloshycos e determinam devires Mas natildeo satildeo somente estes comshypostos meloacutedicos determinados que constituem a natureza mesmo generalizados eacute preciso tambeacutem sob um outro asshypecto um plano de composiccedilatildeo sinfocircnica infinio da Casa ao universo Da endo-sensaccedilatildeo agrave exo-sensaccedilatildeo E que o tershy

bull 238 li Filosofia Ciecircnci~ Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 239

r I I I-- --- --

~ -

middot1

ritoacuterio natildeo se limita a isolar e juntar ele abre para forccedilas coacutesmicas que sobem de dentro ou que vecircm de fora e torna sensiacuteveis seu efeito sobre o habitante Eacute um plano de comshyposiccedilatildeo do carvalho que porta ou comporta a forCcedila de deshysenvolvimento da bolota e a forccedila de formaccedilatildeo das gotas ou o do carrapato que tem a forccedila da luz capaz de atrair o animal ateacute a ponta de um galho numa altura suficiente e a forccedila de peso com a qual se deixa cair sobre o mamiacutefero que passa -e entre os dois nada um vazio assustador que pode durar anos se o mamiacutefero natildeo passa25bull E ora as forccedilas se fundem umas nas outras em transiccedilotildees sutis decompotildeemshyse tatildeo logo vislumbradas ora se alternam ou se enfrentam Ora deixam-se selecionar pelo territoacuterio e satildeo as mais beshynevolentes que entram na casa Ora lanccedilam um apelo misshyterioso que arranca o habitante do territoacuterio e o precipita numa viagem irresistiacutevel como os pintassilgos que se reuacuteshynem frequentemente aos milhotildees ou as lagostas que empreshyendem uma imensa peregrinaccedilatildeo no fundo da aacutegua Ora se abatem sobre o territoacuterio e o invertem malevolentes restaushyrando o caos de onde ele mal saiacutea Mas sempre se a nature za eacute como a arte eacute porque ela conjuga de todas as maneiras esses dois elementos vivos a Casa e o Universo o Heimlich e o Unheimlich o territoacuterio e a desterritorializaccedilatildeo os comshypostos meloacutedicos finitos e o grande plano de composiccedilatildeo infinito o pequeno e o grande ritornelo

A arte comeccedila natildeo com a carne mas com a casa eacute por isso que a arquitetura eacute a primeira das artes Quando Dushybuffet procura delifuitar um certo estado bruto de arte eacute a princiacutepio na direccedilatildeo da casa que ele se volta e toda sua obra se ergue entre a arquitetura a escultura e a -pintUra E limishy

25 Cf a obra-prima de J von Uexkuumlhl Mondes animaux et monde humain Theacuteorie de la signification Ed Gonthier (p 137-142 o contrashyponto motivo do desenvolvimento e da morfogecircnese)

II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tando-nos agrave forma a arquitetura mais saacutebia natildeo deixa de fazer planos extensotildees e de juntaacute-los Eacute por isso que se pode defini-la pela moldura um encaixe de molduras diversashymente orientadas que se imporiam agraves outras artes da pinshytura ao Cinema Jaacute se apresentou a preacute-histoacuteria do quadro como passando pelo afresco na moldura da parede o vitral ha moldura da janela o mosaico na moldura do solo A moldura eacute o umbigo que liga o quadro ao monujllento do qual ele eacute a reduccedilatildeo como a moldura goacutetica com coluneshytas ogiva e flecha26 Fazendo da arquitetura a arte primeira da moldura Bernard Cache pode enumerar um certo nuacutemero de formas enquadrantes que natildeo prejulgam nenhum conteuacuteshydo concreto nem funccedilatildeo do edifiacutecio o mu~o que isola ajashynela que capta ou seleciona (em conexatildeo com o territoacuterio) o solo-chatildeo que conjura ou rarifica (rarificar o relevo da terra para dar livre curso agraves trajetoacuterias humanas) o teto que envolve a singularidade do lugar (o teto em declive coloca o edifiacutecio sobre uma colina ) Encaixar essas molshyduras ou juntar todos estes planos extensatildeo de muro exshytensatildeo de janela extensatildeo de solo extensatildeo de declive eacute todo um sistema composto rico em pontos e contrapontos As molduras e suas junccedilotildees sustentam os compostos de sensashyccedilotildees datildeo consistecircncia agraves figuras confundem-se com seu dar consistecircncia seu proacuteprio tocircnus Aiacute estatildeo as faces de um cubo de sensaccedilatildeo As molduras ou as extensotildees natildeo satildeo coordeshynadas pertencem aos compostos de sensaccedilotildees dos quais consshytituem as faces as interfaces Mas por mais extensiacutevel que seja este sistema eacute preciso ainda um vasto plano de composhysiccedilatildeo que opere uma espeacutecie de desenquadramento segunshydo linhas de fuga que soacute passe pelo territoacuterio para abri-lo sobre o universo que vaacute da casa-territoacuterio agrave cidade-cosmos

26 Henry van de Velde Deacuteblaientent dart Archives darchitecture moderne p 20

Percepto Afecto e Conceito 240 241

-~-_--- middot-middotmiddot

e que dissolva agora a identidade do lugar na variaccedilatildeo da Natildeo parece que a literatura e particularmente o romance Terra uma cidade que tem menos um lugar do que vetores estejam imma outra situaccedilatildeo O que conta natildeo satildeo as opiniotildees pregueando a linha abstrata do relevo Eacute sobre este plano de dos personagens segundo seus tipos sociais e seu caraacuteter composiccedilatildeo como sobre um espaccedilo vetorial abstrato que como nos maus romances mas as relaccedilotildees de contraponto nos se traccedilam figuras geomeacutetricas cone prisma diedro plano quais entram e os compostos de sensaccedilotildees que esses persoshyestrito que nada mais satildeo do que forccedilas coacutesmicas capazes nagens experimentam eles mesmos ou fazem experimentar em de se fundir se transformar se enfrentar alternar mundo seus devires e suas visotildees O contraponto natildeo serve para reshyde antes do homem mesmo se eacute produto do homem27 Eacute latar conversas reais ou fictiacutecias mas para fazer mostrar a preciso agora desarticular os planos para remetecirc-los a seus loucura de qualquer conversa de qualquer diaacutelogo mesmo

j intervalos em vez de remetecirc-los uns aos outros para criar interior Eacute tudo isso que o romancista deve extrair das pershy

novos afectos28 Ora~ vimos que a pintura seguia o mesmo cepccedilotildees afecccedilotildees e opiniotildees de seus modelos psicossociais I

I movimento A moldura ou a borda do quadro eacute em primeiro que se integram inteiramente nos perceptos e os afectos aos ~ I

lugar o invoacutelucro externo de uma seacuterie de molduras ou de quais o personagem deve ser elevado sem conservar outra vida I

I extensotildees que se juntam operando contrapontos de linhas E isso implica num vasto plano de composiccedilatildeo natildeo preconshyi

I

e de cores determinando compostos de sensaccedilotildees Mas o cebido abstratamente mas que se constroacutei agrave medida que a obraI

quadro eacute atravessado tambeacutem por uma potecircncia de desenshy avanccedila abrindo misturando desfazendo e refazendo composshy

I I quadramento que o abre para um plano de composiccedilatildeo oumiddot tos cada vez mais ilimitados segundo a penetraccedilatildeo de forccedilasI

um campo de forccedilas infinito Estes procedimentos podem ser coacutesmicas A teoria do romance de Bakhtin vai nesse sentido muito diversos mesmo no nivel da moldura exterior formas mostrando de Rabelais a Dostoievski a coexistecircncia dos comshy

[I irregulares lados que natildeo se juntam molduras pintadas oacuteu ponentes contrapontuais polifocircnicos e plurivocais com um I pontilhados de Seurat quadrados sobre ponta de Mondrian plano de composiccedilatildeo arquitetocircnico ou sinfocircnico29 Um roshyi li tudo o que daacute ao quadro o poder de sair da tela Jamais o mancista como Dos Passos soube atingir uma arte inaudita

shy__jl

gesto do pintor fica na moldura ele sai da moldura e natildeo do contraponto nos compostos que forma entre personagens comeccedila com ela atualidades biografias olhos de cacircmera ao mesmo teropo queI

um plano de composiccedilatildeo se alarga ao infinito para arrastar tudo para a Vida para a Morte para a cidade-cosmos E se27 Sobre todos estes pontos a anaacutelise das formas enquadrantes e da

cidade-cosmos (exemplo de Lausanne) cf Bernard Cache L ameublement retornamos a Proust eacute porque mais do que qualquer outro du territoire (a sair) ele fez com que os dois elementos quase se sucedessem emboshy

28 Eacute Pascal Bonitzer que formou o conceito de desenquadramento ra presentes um no outro o plano de composiccedilatildeo aparece poushypara aplicar ao cinema novas rdaccedilotildees entre os planos ( Cahiers du cineacutema co a pouco para a vida para a morte compostos de sensashyndeg 284 janeiro de 1978) planos disjuntos triturados ou fragmentados ccedilatildeo que ele edifica no curso do tempo perdido ateacute aparecer graccedilas aos quais o cinema se torna uma arte depurando-se das emoccedilotildees

em si mesmo com o tempo reencontrado a forccedila ou antes asmais comuns que arriscam de lhe impedir o desenvolvimento esteacutetico e produzindo-lhe afetos novos (Le champ aveugle Ed Cahiers du cineacutema Gallirnard sisteme des eacutemotions ) 29 Bakhtin Estheacutetique et theacuteorie du roman Gallimard

242 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 243

-- ---

forccedilas do tempo puro tornadas sensiacuteveis Tudo comeccedila peshylas Casas que devem todas juntar suas dimensotildees e dar conshysistecircncia a compostos Combray o palacete de Guermantes o salatildeo Verdurin e as casas elas mesmas se ajuntam segundo interfaces mas um Cosmos planetaacuterio jaacute estaacute laacute visiacutevel ao telescoacutepio arruinando-as ou transformando-as e absorvenshydo-as no infinito do fundo Tudo comeccedila por titornelos cada

i

um dos quais como a pequena frase da sonata de Vinteuil natildeo se compotildee apenas em si mesmo mas com -outras sensashy

ccedilotildees variaacuteveis a de uma passante desconhecida a do rosto de Odette a das folhagens do bosque de Boulogne- e tudo tershy I mina no infinito no grade Ritornelo a frase do seacuteptuor em Iperpeacutetua metamorfose o canto dos universos o mundo de antes do homem ou de depois De cada coisa finita Proust faz uni ser de sensaccedilatildeo que natildeo deixa de se conservar mas fushygindo sobre um plano de composiccedilatildeo do Ser seres de fuga

EXEMPLO XII

Natildeo parece que a muacutesica esteja numa outra situashyccedilatildeo talvez mesmo a encarne com mais poder ainda Dizshyse todavia que o som natildeo tem moldura Mas os comshypostos de sensaccedilotildees os blocos sonoros tampouco tecircm extensotildees ou formas enquadrantes que devem em cada caso se ajuntar assegurando um certo fechamento Os casos mais simples satildeo a aacuteria meloacutedica que eacute um ritorshynelo monofocircnico o motivo que jaacute eacute polifocircnico um elemento de Uacutema melodia interveniente no desenvolvishymento de uma outra e fazendo contraponto o tema como objeto de modificaccedilotildees harm-ecircnicas atrav~s das linhas meloacutedicas Essas trecircs formas elementares consshytroacuteem a casa sonora e seu territoacuterio Elas correspondem agraves trecircs modalidades de um ser de sensaccedilatildeo pois a aacuteria eacute uma vibraccedilatildeo o motivo eacute um enlace um acoplamen-

I244 lIL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

jbull

to enquanto o tema natildeo fecha sem se descerrar fender e tambeacutem abrir Com efeito o fenocircmeno musical mais importante que aparece agrave medida que os compostos de sensaccedilotildees sonoras se tornam mais complexos eacute que sua clausura ou fechamento (por junccedilatildeo de suas molduras de suas extensotildees) se acompanha de uma possibilidade de abertura sobre um plano de composiccedilatildeo cada vez mais ilimitado Os seres de muacutesica satildeo como os seres vivos segundo Bergson que compensam sua clausura individuante por uma abertura feita de modulaccedilatildeo reshypeticcedilatildeo transposiccedilatildeo justaposiccedilatildeo Se consideramos a sonata encontramos aiacute uma forma enquadraacutente parshyticularmente riacutegida fundada sobre um bitematismo e da qual o primeiro movimento apresenta as seguintes dimensotildees exposiccedilatildeo do primeiro tema transiccedilatildeo exshyposiccedilatildeo do segundo tema desenvolvimentos sobre o pric rileiro ou o segundo coda desenvolvimento do primeiro com modulaccedilatildeo etc Eacute toda uma casa com seus aposhysentos Mas eacute antes o primeiro movimento que forma assim uma ceacutelula e eacute raro que uiacuten grande muacutesico siga a forma canocircnica os outros moviacutementos podem abrirshyse notadamente o segundo pel~ tema e variaccedilatildeo ateacute que Liszt asseg~re uma fusatildeo dos movimentos no poeshyma sinfocircnico A sonata aparece entatildeo antes como uma forma-cruzamento em que da junccedilatildeo das dimensotildees musicais da clausura dos compostos sonoros nasce a abertura de um plano de composiccedilatildeo

Deste ponto de vista o velho procedimento tema e variaccedilatildeo que manteacutem a moldura harmocircnica do tema daacute lugar a uma espeacutecie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composiccedilatildeo (Chopin Schumann Liszt eacute um novo momento essencial porshyque o trabalho criador natildeo mais versa sobre os comshyponentes sonoros motivos e temas abrindo um plano

245Percepto Mecto e Conceito

~~

mas ao contraacuterio versa diretamente sobre o proacuteprio plano de composiccedilatildeo para fazer nascer dele composshytos bem mais livres e desenquadrados quase agregados incompletos ou sobrecarregados em desequiliacutebrio pershymanente Eacute a cor do som que conta cada vez mais Passa-se da Casa ao Cosmos (segundo uma foacutermula que a obra de Stockhausen retomaraacute) O trabalho do plano de composiccedilatildeo se desenvolve em duas direccedilotildees que engendraratildeo uma desagregaccedilatildeo da moldura tonal os imensos fundos da variaccedilatildeo contiacutenua que fazem enshylaccedilar e se unir as forccedilas tornadas sonoras em Wagner ou os tons justapostos que separam e dispersam as forshyccedilas agenciando suas passagens reversiacuteveis em Debussy Universo-Wagner universo-Debussy Todas as aacuterias todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquashydrados infantis domeacutesticos profissionais nacionais territoriais satildeo carregados no grande Ritornelo um potente canto da terra - o desterritorializado - que se eleva com Mahler Berg ou Bartoacutek E sem duacutevida o plano de composiccedilatildeo engendra sempre novas clausuras como na seacuterie Mas sempre o gesto do muacutesico consiste em desenquadrar encontrar a abertura retornar o plashyno de composiccedilatildeo segundo a foacutermula que obceca Boushylez traccedilar uina transversal irredutiacutevel agrave vertical harmocircshynica como agrave horizontal meloacutedica que conduz blocos soshynoros agrave individualizaccedilatildeo variaacutevel mas tambeacutem abri-las ou fendecirc-las num espaccedilo-tempo que determina sua denshysidaae e seu percurso sobre o plano30 O grande ritorshynelo se eleva agrave medida que nos afastamos dacasa messhy

30 Boulez notadamente Points de repere Ed Bourgois-Le Seuil p 159 e segs (Pensez la musique aujourdhui Ed Gonthier p 59-62) A eXtensatildeo da seacuterie em duraccedilotildees intensidades e timbres natildeo eacute um ato de clausura mas ao contraacuterio uma abertura do que se fechava na middotseacuterie das alturas

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte246

--~=shyq

mo se eacute para retornar a ela jaacute que ningueacutem mais nos reconheceraacute quando retornarmos

Composiccedilatildeo composiccedilatildeo eis a uacutenica definiccedilatildeo da arte A composiccedilatildeo eacute esteacutetica e o que natildeo eacute composto natildeo eacute uma obra de arte Natildeo confundiremos todavia a composiccedilatildeo teacutecshynica trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciecircncia (matemaacutetica fiacutesica quiacutemica anatomia) e a comshyposiccedilatildeo esteacutetica que eacute o trabalho da sensaccedilatildeo Soacute este uacuteltishymo merece plenamente o nome de composiccedilatildeo e nunca uma obra de arte eacute feita por teacutecnica ou pela teacutecnica Certamente a teacutecnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra as palavras e a sintaxe em literatura natildeo apenas a tela em pintura mas sua preparashyccedilatildeo os pigmentos suas misturas os meacutetodos de perspectiva ou ent~o os doze sons da muacutesica ocidental os instrumentos as escalas as alturas E a relaccedilatildeo entre os dois planos oacute

plano de composiccedilatildeo teacutecnica e o plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica natildeo cessa de variar historicamente Sejam dois estados oponiacuteveis na pintura a oacuteleo num primeiro caso o quadro eacute preparado por um fundo branco sobre o qual se desenha e se dilui o desenho (esboccedilo) enfim se potildee a cor as sombras e as luzes No outro caso o fundo se torna cada vez mais espesso opaco e absorvente de modo que ele se colore na divisatildeo e o trabalho se faz em plena massa sobre uma gama escura as correccedilotildees substituindo o esboccedilo o pintor pintaraacute sobre cor depois cor ao lado de cor as cores se tornando cada vez mais relevos a arquitetura sendo assegurada pelo contraste dos complementares e a concordacircncia dos anaacuteshylogos (Van Gogh) eacute por e nagrave cor que se encontraraacute a arshyquitetura mesmo se eacute preciso renunciar aos relevos parareshyconstituir grandes unidades colorantes Eacute verdade que Xavier de Langlais vecirc em todo este segundo caso uma longa decashydecircncia que caino efecircmero e natildeo chega a restaurar uma ar-

Percepto Mecto e Conceito 247

quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem duacutevida esta observaccedilatildeo coloca ao meshynos negativamente a questatildeo do progresso na arte jaacute que Langlais considera que a decadecircncia comeccedila jaacute depois de Van Eyck (um pouco como alguns param a muacutesica no canto greshygoriano ou a filosofia em Santo Tomaacutes) Mas eacute uma obsershyvaccedilatildeo teacutecnica que concerne somente ao material aleacutem de que a duraccedilatildeo do material eacute muito relativa a sensaccedilatildeo eacute de uma outra ordem e possui uma existecircncia em si enquanto o mashyterial dura A relaccedilatildeo da sensaccedilatildeo com o material deve pois ser avaliada nos limites da duraccedilatildeo do material qualquer que ela seja Se haacute progressatildeo em arte eacute porque a arte soacute pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retonws linhas de partilha mudanccedilas de niacuteveis e de escashy

I las Deste ponto de vista a distinccedilatildeo de dois estados da lf

pintura a oacuteleo toma um aspecto inteiramente diferente esshyI

teacutetico e natildeo mais teacutecnico- esta distinccedilatildeo natildeo conduz evishydentemente ao representativo ou natildeo jaacute que nenhuma arte nenhuma sensaccedilatildeo jamais foram representativas

li No primeiro caso a sensaccedilatildeo se realiza no material e natildeo existe fora desta realizaccedilatildeo Diriacuteamos que a sensaccedilatildeo (o composto de sensaccedilotildees) se projeta sobre o plano de composhysiccedilatildeo teacutecnica bem preparado de sorte que o plano -de comshyposiccedilatildeo esteacutetica venha recobri-lo Eacute preciso pois que o mashyterial compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graccedilas aos quais a sensaccedilatildeo projetada natildeo se realiza somenshyte cobrindo o qu1dro mas segundo uma profundidade A arte desfruta entatildeo de uma aparecircncia de transcendecircncia que se exprime natildeo numa coisa por representar mas no caraacuteter paradigmaacutetico da projeccedilatildeo e no caraacuteter simboacutelico da persshypectiva A Figura eacute como a fabulaccedilatildeo segundo Bergson tem

31 Xavier de Langlais La technique de la peinture agrave lhuile Ed Flammarion (E Goethe Traiteacute des couleurs Ed Triades sect 902-909)

248 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 249

middot i

uma origem religiosa Mas quando ela se torna esteacutetica sua transcendecircncia sensitiva entra numa oposiccedilatildeo surda ou abe-rshyta com a transcendecircncia suprasensiacutevel das religiotildees

No segundo caso natildeo eacute mais a sensaccedilatildeo que se realiza no material eacute antes o material que entra na sensaccedilatildeo Cershytamente a sensaccedilatildeo natildeo existe mais fora dessa entrada e o plano de composiccedilatildeo teacutecnica natildeo mais tem autonomia a natildeo ser no primeiro caso natildeo vale jamais por si mesmo Mas diriacuteamos agora que ele sobe no plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica e lhe daacute uma espessura proacutepria como diz Damisch inshydependente de qualquer perspectiva e profundidade Eacute o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transshycendecircncia aparente ou-de um modelo paradigmaacutetico e conshyfessam seu ateiacutesmo inocente seu paganismo E sem duacutevida entre estes dois casos estes dois estados da sensaccedilatildeo estes dois poacutelos da teacutecnica as transiccedilotildees as combinaccedilotildees e as coexistecircncias se fazem constantemente (por exemplo o trashybalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens) satildeo poacutelos abstratos ao inveacutes de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com oacuteleo e solvente se volta cada vez mais na direccedilatildeo do segundo poacutelo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composiccedilatilde~ esteacutetica -Eacute por isso -que eacute tatildeo falso definir a sensaccedilatildeo na pintura moderna pela admissatildeo de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a esshypessura natildeo precisa ser larga ou profunda Pocircde-se dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfiacuteshycie basta-lhe apoiar-se sobre os vazios e os plenos do pashypel Canson Eacute uma pintura que natildeo mais tem fundo porshyque o baixo emerge a superfiacutecie eacute esburacaacutevel ou o plashyno de composiccedilatildeo ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspecshytiva independentemente das sombras e mesmo da ordem

i r I li

I 32 Cf Christian Bonnefbi intervieweacute et commenteacute par Yvesshy

I Alain Bois Macula S-6

33 Damisch Fenecirctre jaime cadmium ou les dessous de la peinture Ed du Seuil pp 275-305 (e p 80 a espessura do plano em Pollock) Dashy

li misch eacute o autor que mais insistiu sobre a relaccedilatildeo -arte-pertsamento pinshytura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instauraacute-la Mallarmeacute fazia da espessura do livro uma dimensatildeo distinta da proshy) fundidade cf Jacques Scheacuterer Le livre de Mallarmeacute Gallimard p 55shy

I tema que Boulez retoma por sua vez para a muacutesica (Points de repere p 161) iI

li 250 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

I I

cromaacutetica da cor (o colorista arbitraacuterio) Natildeo mais se recoshybre faz-se subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar Eacute uma promoccedilatildeo do solo e a escultura pode torshy

I nar-se plana jaacute que o plano se estratifica Natildeo magraveis se pinshyI ta sobre mas sob A arte informal levou muito longe

estas novas potecircncias da textura essa elevaccedilatildeo do solo com I Dubuffet e tambeacutem o expressionismo abstrato a arte mishy

nimalista procedendo por impregnaccedilotildees fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atraacutes de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem agrave vista do pintor o que enshytregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes estados a pintura eacute-penshysamento a visatildeo existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta

Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdashydeiro conceito mostrando que o tranccedilado poderia bem preencher para a pintura futura funccedilatildeo anaacuteloga agravequela que foi a da perspectiva O quemiddotnatildeo eacute proacuteprio da pintura jaacute que Damisch reencontra a mesma distinccedilatildeo no niacutevel do plano arquitetura quando Scarpa por exemplo rejeita o movishymento da projeccedilatildeo e os mecanismos da perspectiva para ins~ crever os volumes na espessura do proacuteprio plano33 bull E da literatura agrave muacutesica uma espessura material se afirma que

--~ middot

natildeo se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal Eacute umr I traccedilo caracteriacutestico da literatura moderna quando as palashyr vras e a sintaxe sobem no plano de composiccedilatildeo e o cavam I em lugar de colocaacute-lo em perspectiva E a muacutesica quando

renuncia agrave projeccedilatildeo como agraves perspeCtivas que impotildeem a alshyI tura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano soshynoro uma espessura singular da qual testemunham elemenshy

I tos muito diferentes a evoluccedilatildeo dos estudos parapiano que deixam de ser somente teacutecnicas para tornar-se estudos de

jmiddot composiccedilatildeo (com a extensatildeo que lhes daacute Debussy) a imshy

portacircncia decisiva que toma a orquestraccedilatildeo em Berlioz a i subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferashyI I ccedilatildeo dos afectos de percussatildeo com os metais as peles e as mashy

deiras e sua ligaccedilatildeo com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparaacuteveis do material (Varese) a redeshy

I finiccedilatildeo do percepto em funccedilatildeo do ruiacutedo do som bruto e I complexo (Cage) natildeo apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendecircnshy

cia a uma apariccedilatildeo natildeo-cromaacutetica do som num continuum infiiuumlto (muacutesica eletrocircnica ou eletro-acuacutestica)I

I Soacute haacute um plano uacutenico no sentido em que a arte natildeo

I comporta outro plano diferente do da composiccedilatildeo esteacutetica

I o plano teacutecnico com efeito eacute necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composiccedilatildeo esteacutetica Eacute sob esta conshydiccedilatildeo que a mateacuteria se torna expressiva o composto de senshysaccedilotildees se realiza no material ou o material entra no comshyI posto mas sempre de modo a se situar sobre um plano deI

I composiccedilatildeo propriamente esteacutetico Haacute muitos problemasI teacutecnicos em arte e a ciecircncia pode intervir em sua soluccedilatildeo

mas eles soacute se colocam em funccedilatildeo de problemas de composhysiccedilatildeo esteacutetica que concernem aos compostos de sensaccedilotildees e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus mateshyriais Toda sensaccedilatildeo eacute uma questatildeo mesmo se soacute o silecircncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em enshy

251Percepto Afecto e Conceito

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 13: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

mais intenso ) 19 Eacute verdade que o fundo monocromaacutetico

eacute mais do que um fundo E quando a pintura quer comeccedilar do zero construindo o percepto como um miacutenimo antes do vazio ou aproximando ao maacuteximo do conceito ela proceshy~e por monocromia liberada de toda casa ou de toda carne E notadamente o azul que se encarrega do infinito e qu~ faz do percepto uma sensibilidade coacutesmica ou o que haacute de mais conceitual na natureza ou de mais proposicional a cor na ausecircncia do homem o homem mergulhado na cor mas se o azul (ou o negro ou o branco) eacute perfeitamente idecircnshytico no quadro ou de um quadro a outro eacute a pintura que se torna azul- Yves o monocromo- segundo um puro afecto que faz o universo mergulhar no vazio e natildeo deixa mais nada por fazer ao pintor por excelecircncia20_

O vazio colorido ou antes colorante jaacute eacute forccedila A maior parte dos grandes monocromos da pintura moderna natildeo mais tecircm necessidade de recorrer a pequenos buquecircs murais mas apresentam variaccedilotildees sutis imperceptiacuteveis (todavia constishytutivas de um percepto) seja porque satildeo cortados ou conshy

19 Van Gogh carta a Theacuteo Correspondance complete Gallimardshy

Grasset III p 165 Os tons justapostos e sua relaccedilatildeo com o fundo satildeo um tema frequumlente da correspondecircncia Tambeacutem Gauguin carta a Schuffeshynecker 8 de outubro de 1888 Lettres Ed Grasset p 140 Eu fiz urn retra to de mim para Vincent Eacute acredito eu uma das minhas melhores coisas absolutamente incompreensiacutevel (por exemplo) de tal maneira eacute abstra~o o seu d~senho eacute inteiramente arbitraacuterio abstraccedilatildeo cornpl~ta a c~r ~uma co~ d1sta1te da natureza imagine uma vaga lembranccedila de ceram1ca retor~rda pelo fogo forte Todos os vermelhos os violetas rajashydas pelos claroes de fogo como uma fornalha radiante aos olhos sede das lutas do pensamento do pintor O todo sobre um fundo cromo seshymeado de buquecircs infantis Quarto de moccedila pura Eaacute ideacuteia do coloriacutesta arbitraacuterio segundo Van Gogh

~~ Cf Artst~dio no 16 Monochromes (sobre Klein artigos de Genev1eve Monmer e de Denys Riout e sobre os avatares atuais do monocromo artigo de Pierre Sterckx)

234 IL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tornados de um lado por uma fita um faixa uma extensatildeo de uma outra cor ou de um outro tom que mudam a intenshysidade do fundo por vizinhanccedila ou distanciamento seja porshyque apresentam figuras lineares ou circulares quase virtuais tom sobre torit seja porque satildeo esburacados ou fendidos satildeo problemas de junccedilatildeo ainda mas singularmente ampliados

Numa palavra o fundo vibra se enlaccedila ou se fende poque eacute portador de forccedilas apenas vislumbradas E o q~e fazia de iniacutecio a pintura abstrata convocar asforccedilas povoar o funshydo com as forccedilas que ele abriga fazer ver nelas mesmas as forshyccedilas invisiacuteveis traccedilar figuras de aparecircncia geomeacutetrica mas que natildeo seriam mais do que forccedilas forccedila de gravitaccedilatildeo de peso de rotaccedilatildeo de turbilhatildeo de explosatildeo de expansatildeo de gershyminaccedilatildeo forccedila do tempo (como se pode dizer da muacutesica que ela faz ouvir a forccedila sonora do tempo por exemplo com Messhysiaen ou da literatura com Proust que faz ler e conceber a forccedilaacute ilegiacutevel do tempo) Natildeo eacute esta a definiccedilatildeo do percepto em pessoa tornar sensiacuteveis as forccedilas insensiacuteveis que povoam o mundo e que nos afetam nos faze~ devir O que Mondrian obteacutem por simples diferenccedilas entre lados de um quadrado e Kandinsky pelas tensotildees lineares e Kupka pelos planos curvos em torno do ponto Do fundodas eras nos vem o que Worringer chamava a linha setentrional abstrata e infinita linha do uacuteniverso que forma fitas e tiras rodas e turbinas toda uma geometria viva elevando agrave intuiccedilatildeo as forccedilas mecacircshynicas constituindo uma poderosa vida natildeo-orgacircnica21

O eterno objeto da pintura pintar as forccedilas como Tintoretto

Encontraremos tambeacutem talvez a casa e o corpo E que o fundo infinito eacute frequumlentemente aquilo sobre o que se abre a janela ou a porta ou entatildeo eacute o muro da proacutepria casa ou o solo Van Gogh e Gauguin semeiam o fundo de pequenos buquecircs de flores para fazer deles o papel mural

21 Worringer Lart gothique Gallimard

Percepto Afecto e Conceito 235

sobre o qual se destaca o rosto de tons justapostos E com efeito a casa natildeo nos abriga das forccedilas coacutesmicas no maacutexishymo ela as filtra elas as seleciona Ela as transforma algushymas vezes em forccedilas benevolentes jamais a pintuacutera fez ver a forccedila de Arquimedes a forccedila do empuxltgt da aacutegua sobre um corpo gracioso que flutua na banheira da casa como Bonnard conseguiu em o Nuacute no banho Mas tambeacutem as forccedilas mais maleacuteficas podem entrar pela porta entreabershyta ou fechada satildeo as forccedilas coacutesmicas que provocam elas mesmas as zonas de indiscernibilidade nos_tons justapostos de um rosto esbofeteando-o arranhando-o fundindo-o em todos os sentidos e satildeo estas zonas de indiscernibilidade que revelam as forccedilas escondidas no fundo (Bacon) Haacute plena complementariedade enlace de forccedilas como perceptos e de devires como afectos A linha de forccedila abstrata segundo ~orringer eacute rica em motivos animalescos Agraves forccedilas coacutesshymicas ou cosmogeneacuteticas correspondem devires-aniinais veshy

geta1s moleculares ateacute que o corpo desapareccedila no fundo ou entre no muro ou inversamente que o fundo se contorshyccedila e turbilhone na zona de indiscernibilidade d~ corpo~ Numa palavra o ser de sensaccedilatildeo natildeo eacute a carne mas o comshyposto das forccedilas natildeo-humanas do cosmos dos devires natildeo humanos do homem e da casa ambiacutegua que os troccedila e os ajusta os faz turbilhonar como os ventos A carne eacute somenshyte o revelador que desaparece no que revela o composto de sensaccedilotildees Como toda pintura a pintura abstrata eacute senshysaccedilatildeo nada mais que sensaccedilatildeo Em Mondrian eacute o quarto que acede ao ser de sensaccedilatildeo dividindo por extensotildees coshyloridas o plano vazio infinito que lhe daacute de volta um infishy

d b 22 mto e a ertura Em Kandinsky as casa~ satildeo uma das

22 Mondrian Reacutealiteacute naturelle et reacutealiteacute abstraite (in Seuphor Piet

Mondnan sa vie son oeuvre Ed Flammarion) sobre o quarto e seu desdobramento Michel Butor analisou este desdobramento do quarto em

236 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

fontes da abstraccedilatildeo que consiste menos em figuras geomeacuteshytricas que em trajetos dinacircmicos e linhas de erracircncia cashyminhos que caminham nos arredores Em Kupka eacute de iniacuteshycio sobre o corpo que o pintor talha fitas ou extensotildees coshyloridas que produziratildeo no vazio os planos curos que o povoam tornando-se sensaccedilotildees cosmogeneacuteticas__ ~--~--~~~~

ccedilatildeoe~_pi_rjtual ou j~ um _~Ol~-~-i_g_viSgt= O _q~-~~t-~ lt1 ~~-~~- uacuten1verso A ~r~~ - aJs~rata_~ s~P25 a ~rte _C()flC~I~~~_Elt~~~-- middot-Pmiddot cacirc~dTmiddot~tamente a questatildeo que impregna toda pintura ---- --middot-shys~~ - ~-eiacute~Ccedilatilde-uumlcocircffi o ~~~~~ito~sti-a relaccedilatildeo com a funccedilatildeo middot_

A arte comeccedila talv-ez--com o animal ao menos com o animal que recorta um territoacuterio e faz uma casa (os dois satildeo correlativos ou ateacute mesmo se confundem por vezes no que se chama de habitat) Com o sistema territoacuterio-casa muitas funccedilotildees orgacircnicas se transformam sexualidade procriaccedilatildeo agressiyidade alimentaccedilatildeo mas natildeo eacute esta transformaccedilatildeo que explica a apariccedilatildeo do territoacuterio e da casa seria antes o

inverso o territoacuterio impli~a na emergecirc~lti~ e 91-ali_cll~~-~sel~ siacuteveis pu~- ~~-ibiIacuteia qua~ixacirciiacuteiacute -de ser unicaii1~_Ilt_e ushyecirc(ocircOtildeagraveisecirc cse- ioacuternani-tragraveCcediluumlsmiddotae express~Otilde__ tormiddotn~~~~J~~s~V~l tiffiagravetiansfocirciinaCcedilatildeo (G$iacute~i1Ccedilotildees23 s~ni duacutevida esta expresshysivlamp1deTaacuteestacirc dltu~ch~E~~~middot Vida~ pode-se dizer que o simshyples liacuterio dos campos celebra a gloacuteria dos ceacuteus Mas eacute com o territoacuterio e a casa que ela se torna construtiva e ergue os monumentos rituais de uma missa animal que celebra as quashylidades antes de tirar delas novas causalidades e finalidades Esta emergecircncia jaacute eacute arte natildeo somente no tratamento dos materiais exteriores mas nas posturas e cores do corpo nos

quadrados ou retacircngulos e a abertura sobre um quadrado interior vazio e branco como promessa de quarto futuro Reacutepertoire III Le carreacute et son habitant Ed de Minuit p 307-309314-315

23 Parece-nos que eacute um engano de Lorenz querer explicar o terrishytoacuterio por uma evoluccedilatildeo das funccedilotildees L agression Ed Flammarion

Percepto Afecto e Conceito 237

cantos e nos gritos que marcam o territoacuterio Eacute um jorro de traccedilos de~-~2E~~- e de sons inseparaacuteveisna dtecTda em que s~ -~riill _ ~xpr~~isiV_9_~ ~-(~i~~~i-~ill~~9l0_~_4~ middotr~ritoacute~i~fCcedil Scenopoietes dentirostris paacutessaro das florestas chuvosas da Austraacutelia faz cair da aacutervore as folhas que corta cada manhatilde vira-as para que sua face interna mais paacutelida contraste com a terra constroacutei para si assim uma cena co_mo um readyshymade e canta exatamente em cima sobre um cipoacute ou-um galho um canto complexo composto de suas proacuteprias noshytas e das de outros paacutessaros que imita nos intervalos mosshytrando a raiacutez amarela das plumas sob seubico eacute um artista completo24

bull Natildeo satildeo as sinestesias em plena carne satildeo esshytes blocos de sensaccedilotildees no territoacuterio cores posturas e sons que esboccedilam uma obra de arte total Estes blocos satildeo rishytorneios mas haacute tambeacutem ritornelos posturais e de cores e tanto posturas quanto cores se introduzem sempre nos ritor~ nelas Reverecircncias e posiccedilotildees eretas rondas traccedilos de coshyres O ritornelo inteiro eacute o ser de sensaccedilatildeo Os monumenshytos satildeo ritornelos Desse ponto de vista a arte natildeo deixaraacute de ser habitada pelo animal A arte deKafka seraacute a mais prbshy

funda meditaccedilatildeo sobre o territoacuterio e a casa o terreiro as pos~ turas~retrato (a cabeccedila pendida do habitante com o queixo enterrado no peito ou ao contraacuterio o grande tiacutemido que fura o teto com seu cracircnio anguloso) os sons-muacutesica (os catildees que satildeo muacutesicos por suas proacuteprias posturas Josephine a ratinha cantora da qual ja~ais saberemos se canta Gregoire que une seu piadoao violino de sua irmatilde numa relaccedilatildeo comshyplexa quarto-casa~territoacuterio) Eis tudo o que eacute preciso para fazer arte uma casa posturas cores e cantos - sob a conshy ~

I diccedilatildeo de que tudo isso se abra e se lance sobre ummiddotvetor louco como uma vassoura de bruxa uma linha d~ universo ou de

24 Marshall Bowler Birds Oxford at the Clarendon Press Gilliord Birds of Paradise and Bowler Birds Weidenfeld

desterritorializaccedilatildeoPerspectiva de um quarto com seus hashybitantes (Klee )

Cada territoacuterio cada habitat junt a seus planos ou suas extensotildees natildeo apenas espaccedilo-temporais mas qualitativos por exemplo uma postura e um canto um canto e urna cor perceptos e afectos E cada territoacuterio engloba ou recorta ter~ ritoacuterios de outras espeacutecies ou intercepta trajetos de animais sem territoacuterio formando junccedilotildees inUacuterespeciacuteficltlS Eacute neste sentido que Uexkuumlhl num primeiro aspecto desenvolve urna concepccedilatildeo da Natureza meloacutedica polifocircnica contrapontual Natildeo apenas o canto de um paacutessaro tem suas relaccedilotildees de conshytraponto mas pode fazer contraponto com o canto de oushytras espeacutecies e pode ele mesmo imitar estes outros cantos como se se tratasse de ocupar um maacuteximo de frequumlecircnciacuteas A teia de aranha conteacutem um retrato muito sutil da mosca que lhe serve de contraponto A concha como casa do moshylusco~ se torna quando ele morre o contraponto do Bershynardo-eremita que faz dela seu proacuteprio habitat graccedilas a sua cauda que natildeo eacute nadadeira mas preecircnsil e lhe permite capshyturar a concha vazia O Carrapato eacute organicamente consshytruiacutedo de modo a encontrar seu contraponto no mamiacutefero qualquer que passa sob seu galho como as folhas de carvashylho arranjadas como telhas nas gotas de chuva que escorshyrem Natildeo eacute uma concepccedilatildeo finalista mas meloacutedica em que natildeo mais sabemos o que eacute arte ou natureza (a teacutecnica nashytural) haacute contraponto toda vez que uma melodia interveacutem como motivo numa outra melodia como nas bodas enshytre a mamangava e a boca-de-leatildeo Essas relaccedilotildees de contrashyponto juntam planos formam compostos de sensaccedilotildees bloshycos e determinam devires Mas natildeo satildeo somente estes comshypostos meloacutedicos determinados que constituem a natureza mesmo generalizados eacute preciso tambeacutem sob um outro asshypecto um plano de composiccedilatildeo sinfocircnica infinio da Casa ao universo Da endo-sensaccedilatildeo agrave exo-sensaccedilatildeo E que o tershy

bull 238 li Filosofia Ciecircnci~ Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 239

r I I I-- --- --

~ -

middot1

ritoacuterio natildeo se limita a isolar e juntar ele abre para forccedilas coacutesmicas que sobem de dentro ou que vecircm de fora e torna sensiacuteveis seu efeito sobre o habitante Eacute um plano de comshyposiccedilatildeo do carvalho que porta ou comporta a forCcedila de deshysenvolvimento da bolota e a forccedila de formaccedilatildeo das gotas ou o do carrapato que tem a forccedila da luz capaz de atrair o animal ateacute a ponta de um galho numa altura suficiente e a forccedila de peso com a qual se deixa cair sobre o mamiacutefero que passa -e entre os dois nada um vazio assustador que pode durar anos se o mamiacutefero natildeo passa25bull E ora as forccedilas se fundem umas nas outras em transiccedilotildees sutis decompotildeemshyse tatildeo logo vislumbradas ora se alternam ou se enfrentam Ora deixam-se selecionar pelo territoacuterio e satildeo as mais beshynevolentes que entram na casa Ora lanccedilam um apelo misshyterioso que arranca o habitante do territoacuterio e o precipita numa viagem irresistiacutevel como os pintassilgos que se reuacuteshynem frequentemente aos milhotildees ou as lagostas que empreshyendem uma imensa peregrinaccedilatildeo no fundo da aacutegua Ora se abatem sobre o territoacuterio e o invertem malevolentes restaushyrando o caos de onde ele mal saiacutea Mas sempre se a nature za eacute como a arte eacute porque ela conjuga de todas as maneiras esses dois elementos vivos a Casa e o Universo o Heimlich e o Unheimlich o territoacuterio e a desterritorializaccedilatildeo os comshypostos meloacutedicos finitos e o grande plano de composiccedilatildeo infinito o pequeno e o grande ritornelo

A arte comeccedila natildeo com a carne mas com a casa eacute por isso que a arquitetura eacute a primeira das artes Quando Dushybuffet procura delifuitar um certo estado bruto de arte eacute a princiacutepio na direccedilatildeo da casa que ele se volta e toda sua obra se ergue entre a arquitetura a escultura e a -pintUra E limishy

25 Cf a obra-prima de J von Uexkuumlhl Mondes animaux et monde humain Theacuteorie de la signification Ed Gonthier (p 137-142 o contrashyponto motivo do desenvolvimento e da morfogecircnese)

II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tando-nos agrave forma a arquitetura mais saacutebia natildeo deixa de fazer planos extensotildees e de juntaacute-los Eacute por isso que se pode defini-la pela moldura um encaixe de molduras diversashymente orientadas que se imporiam agraves outras artes da pinshytura ao Cinema Jaacute se apresentou a preacute-histoacuteria do quadro como passando pelo afresco na moldura da parede o vitral ha moldura da janela o mosaico na moldura do solo A moldura eacute o umbigo que liga o quadro ao monujllento do qual ele eacute a reduccedilatildeo como a moldura goacutetica com coluneshytas ogiva e flecha26 Fazendo da arquitetura a arte primeira da moldura Bernard Cache pode enumerar um certo nuacutemero de formas enquadrantes que natildeo prejulgam nenhum conteuacuteshydo concreto nem funccedilatildeo do edifiacutecio o mu~o que isola ajashynela que capta ou seleciona (em conexatildeo com o territoacuterio) o solo-chatildeo que conjura ou rarifica (rarificar o relevo da terra para dar livre curso agraves trajetoacuterias humanas) o teto que envolve a singularidade do lugar (o teto em declive coloca o edifiacutecio sobre uma colina ) Encaixar essas molshyduras ou juntar todos estes planos extensatildeo de muro exshytensatildeo de janela extensatildeo de solo extensatildeo de declive eacute todo um sistema composto rico em pontos e contrapontos As molduras e suas junccedilotildees sustentam os compostos de sensashyccedilotildees datildeo consistecircncia agraves figuras confundem-se com seu dar consistecircncia seu proacuteprio tocircnus Aiacute estatildeo as faces de um cubo de sensaccedilatildeo As molduras ou as extensotildees natildeo satildeo coordeshynadas pertencem aos compostos de sensaccedilotildees dos quais consshytituem as faces as interfaces Mas por mais extensiacutevel que seja este sistema eacute preciso ainda um vasto plano de composhysiccedilatildeo que opere uma espeacutecie de desenquadramento segunshydo linhas de fuga que soacute passe pelo territoacuterio para abri-lo sobre o universo que vaacute da casa-territoacuterio agrave cidade-cosmos

26 Henry van de Velde Deacuteblaientent dart Archives darchitecture moderne p 20

Percepto Afecto e Conceito 240 241

-~-_--- middot-middotmiddot

e que dissolva agora a identidade do lugar na variaccedilatildeo da Natildeo parece que a literatura e particularmente o romance Terra uma cidade que tem menos um lugar do que vetores estejam imma outra situaccedilatildeo O que conta natildeo satildeo as opiniotildees pregueando a linha abstrata do relevo Eacute sobre este plano de dos personagens segundo seus tipos sociais e seu caraacuteter composiccedilatildeo como sobre um espaccedilo vetorial abstrato que como nos maus romances mas as relaccedilotildees de contraponto nos se traccedilam figuras geomeacutetricas cone prisma diedro plano quais entram e os compostos de sensaccedilotildees que esses persoshyestrito que nada mais satildeo do que forccedilas coacutesmicas capazes nagens experimentam eles mesmos ou fazem experimentar em de se fundir se transformar se enfrentar alternar mundo seus devires e suas visotildees O contraponto natildeo serve para reshyde antes do homem mesmo se eacute produto do homem27 Eacute latar conversas reais ou fictiacutecias mas para fazer mostrar a preciso agora desarticular os planos para remetecirc-los a seus loucura de qualquer conversa de qualquer diaacutelogo mesmo

j intervalos em vez de remetecirc-los uns aos outros para criar interior Eacute tudo isso que o romancista deve extrair das pershy

novos afectos28 Ora~ vimos que a pintura seguia o mesmo cepccedilotildees afecccedilotildees e opiniotildees de seus modelos psicossociais I

I movimento A moldura ou a borda do quadro eacute em primeiro que se integram inteiramente nos perceptos e os afectos aos ~ I

lugar o invoacutelucro externo de uma seacuterie de molduras ou de quais o personagem deve ser elevado sem conservar outra vida I

I extensotildees que se juntam operando contrapontos de linhas E isso implica num vasto plano de composiccedilatildeo natildeo preconshyi

I

e de cores determinando compostos de sensaccedilotildees Mas o cebido abstratamente mas que se constroacutei agrave medida que a obraI

quadro eacute atravessado tambeacutem por uma potecircncia de desenshy avanccedila abrindo misturando desfazendo e refazendo composshy

I I quadramento que o abre para um plano de composiccedilatildeo oumiddot tos cada vez mais ilimitados segundo a penetraccedilatildeo de forccedilasI

um campo de forccedilas infinito Estes procedimentos podem ser coacutesmicas A teoria do romance de Bakhtin vai nesse sentido muito diversos mesmo no nivel da moldura exterior formas mostrando de Rabelais a Dostoievski a coexistecircncia dos comshy

[I irregulares lados que natildeo se juntam molduras pintadas oacuteu ponentes contrapontuais polifocircnicos e plurivocais com um I pontilhados de Seurat quadrados sobre ponta de Mondrian plano de composiccedilatildeo arquitetocircnico ou sinfocircnico29 Um roshyi li tudo o que daacute ao quadro o poder de sair da tela Jamais o mancista como Dos Passos soube atingir uma arte inaudita

shy__jl

gesto do pintor fica na moldura ele sai da moldura e natildeo do contraponto nos compostos que forma entre personagens comeccedila com ela atualidades biografias olhos de cacircmera ao mesmo teropo queI

um plano de composiccedilatildeo se alarga ao infinito para arrastar tudo para a Vida para a Morte para a cidade-cosmos E se27 Sobre todos estes pontos a anaacutelise das formas enquadrantes e da

cidade-cosmos (exemplo de Lausanne) cf Bernard Cache L ameublement retornamos a Proust eacute porque mais do que qualquer outro du territoire (a sair) ele fez com que os dois elementos quase se sucedessem emboshy

28 Eacute Pascal Bonitzer que formou o conceito de desenquadramento ra presentes um no outro o plano de composiccedilatildeo aparece poushypara aplicar ao cinema novas rdaccedilotildees entre os planos ( Cahiers du cineacutema co a pouco para a vida para a morte compostos de sensashyndeg 284 janeiro de 1978) planos disjuntos triturados ou fragmentados ccedilatildeo que ele edifica no curso do tempo perdido ateacute aparecer graccedilas aos quais o cinema se torna uma arte depurando-se das emoccedilotildees

em si mesmo com o tempo reencontrado a forccedila ou antes asmais comuns que arriscam de lhe impedir o desenvolvimento esteacutetico e produzindo-lhe afetos novos (Le champ aveugle Ed Cahiers du cineacutema Gallirnard sisteme des eacutemotions ) 29 Bakhtin Estheacutetique et theacuteorie du roman Gallimard

242 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 243

-- ---

forccedilas do tempo puro tornadas sensiacuteveis Tudo comeccedila peshylas Casas que devem todas juntar suas dimensotildees e dar conshysistecircncia a compostos Combray o palacete de Guermantes o salatildeo Verdurin e as casas elas mesmas se ajuntam segundo interfaces mas um Cosmos planetaacuterio jaacute estaacute laacute visiacutevel ao telescoacutepio arruinando-as ou transformando-as e absorvenshydo-as no infinito do fundo Tudo comeccedila por titornelos cada

i

um dos quais como a pequena frase da sonata de Vinteuil natildeo se compotildee apenas em si mesmo mas com -outras sensashy

ccedilotildees variaacuteveis a de uma passante desconhecida a do rosto de Odette a das folhagens do bosque de Boulogne- e tudo tershy I mina no infinito no grade Ritornelo a frase do seacuteptuor em Iperpeacutetua metamorfose o canto dos universos o mundo de antes do homem ou de depois De cada coisa finita Proust faz uni ser de sensaccedilatildeo que natildeo deixa de se conservar mas fushygindo sobre um plano de composiccedilatildeo do Ser seres de fuga

EXEMPLO XII

Natildeo parece que a muacutesica esteja numa outra situashyccedilatildeo talvez mesmo a encarne com mais poder ainda Dizshyse todavia que o som natildeo tem moldura Mas os comshypostos de sensaccedilotildees os blocos sonoros tampouco tecircm extensotildees ou formas enquadrantes que devem em cada caso se ajuntar assegurando um certo fechamento Os casos mais simples satildeo a aacuteria meloacutedica que eacute um ritorshynelo monofocircnico o motivo que jaacute eacute polifocircnico um elemento de Uacutema melodia interveniente no desenvolvishymento de uma outra e fazendo contraponto o tema como objeto de modificaccedilotildees harm-ecircnicas atrav~s das linhas meloacutedicas Essas trecircs formas elementares consshytroacuteem a casa sonora e seu territoacuterio Elas correspondem agraves trecircs modalidades de um ser de sensaccedilatildeo pois a aacuteria eacute uma vibraccedilatildeo o motivo eacute um enlace um acoplamen-

I244 lIL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

jbull

to enquanto o tema natildeo fecha sem se descerrar fender e tambeacutem abrir Com efeito o fenocircmeno musical mais importante que aparece agrave medida que os compostos de sensaccedilotildees sonoras se tornam mais complexos eacute que sua clausura ou fechamento (por junccedilatildeo de suas molduras de suas extensotildees) se acompanha de uma possibilidade de abertura sobre um plano de composiccedilatildeo cada vez mais ilimitado Os seres de muacutesica satildeo como os seres vivos segundo Bergson que compensam sua clausura individuante por uma abertura feita de modulaccedilatildeo reshypeticcedilatildeo transposiccedilatildeo justaposiccedilatildeo Se consideramos a sonata encontramos aiacute uma forma enquadraacutente parshyticularmente riacutegida fundada sobre um bitematismo e da qual o primeiro movimento apresenta as seguintes dimensotildees exposiccedilatildeo do primeiro tema transiccedilatildeo exshyposiccedilatildeo do segundo tema desenvolvimentos sobre o pric rileiro ou o segundo coda desenvolvimento do primeiro com modulaccedilatildeo etc Eacute toda uma casa com seus aposhysentos Mas eacute antes o primeiro movimento que forma assim uma ceacutelula e eacute raro que uiacuten grande muacutesico siga a forma canocircnica os outros moviacutementos podem abrirshyse notadamente o segundo pel~ tema e variaccedilatildeo ateacute que Liszt asseg~re uma fusatildeo dos movimentos no poeshyma sinfocircnico A sonata aparece entatildeo antes como uma forma-cruzamento em que da junccedilatildeo das dimensotildees musicais da clausura dos compostos sonoros nasce a abertura de um plano de composiccedilatildeo

Deste ponto de vista o velho procedimento tema e variaccedilatildeo que manteacutem a moldura harmocircnica do tema daacute lugar a uma espeacutecie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composiccedilatildeo (Chopin Schumann Liszt eacute um novo momento essencial porshyque o trabalho criador natildeo mais versa sobre os comshyponentes sonoros motivos e temas abrindo um plano

245Percepto Mecto e Conceito

~~

mas ao contraacuterio versa diretamente sobre o proacuteprio plano de composiccedilatildeo para fazer nascer dele composshytos bem mais livres e desenquadrados quase agregados incompletos ou sobrecarregados em desequiliacutebrio pershymanente Eacute a cor do som que conta cada vez mais Passa-se da Casa ao Cosmos (segundo uma foacutermula que a obra de Stockhausen retomaraacute) O trabalho do plano de composiccedilatildeo se desenvolve em duas direccedilotildees que engendraratildeo uma desagregaccedilatildeo da moldura tonal os imensos fundos da variaccedilatildeo contiacutenua que fazem enshylaccedilar e se unir as forccedilas tornadas sonoras em Wagner ou os tons justapostos que separam e dispersam as forshyccedilas agenciando suas passagens reversiacuteveis em Debussy Universo-Wagner universo-Debussy Todas as aacuterias todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquashydrados infantis domeacutesticos profissionais nacionais territoriais satildeo carregados no grande Ritornelo um potente canto da terra - o desterritorializado - que se eleva com Mahler Berg ou Bartoacutek E sem duacutevida o plano de composiccedilatildeo engendra sempre novas clausuras como na seacuterie Mas sempre o gesto do muacutesico consiste em desenquadrar encontrar a abertura retornar o plashyno de composiccedilatildeo segundo a foacutermula que obceca Boushylez traccedilar uina transversal irredutiacutevel agrave vertical harmocircshynica como agrave horizontal meloacutedica que conduz blocos soshynoros agrave individualizaccedilatildeo variaacutevel mas tambeacutem abri-las ou fendecirc-las num espaccedilo-tempo que determina sua denshysidaae e seu percurso sobre o plano30 O grande ritorshynelo se eleva agrave medida que nos afastamos dacasa messhy

30 Boulez notadamente Points de repere Ed Bourgois-Le Seuil p 159 e segs (Pensez la musique aujourdhui Ed Gonthier p 59-62) A eXtensatildeo da seacuterie em duraccedilotildees intensidades e timbres natildeo eacute um ato de clausura mas ao contraacuterio uma abertura do que se fechava na middotseacuterie das alturas

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte246

--~=shyq

mo se eacute para retornar a ela jaacute que ningueacutem mais nos reconheceraacute quando retornarmos

Composiccedilatildeo composiccedilatildeo eis a uacutenica definiccedilatildeo da arte A composiccedilatildeo eacute esteacutetica e o que natildeo eacute composto natildeo eacute uma obra de arte Natildeo confundiremos todavia a composiccedilatildeo teacutecshynica trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciecircncia (matemaacutetica fiacutesica quiacutemica anatomia) e a comshyposiccedilatildeo esteacutetica que eacute o trabalho da sensaccedilatildeo Soacute este uacuteltishymo merece plenamente o nome de composiccedilatildeo e nunca uma obra de arte eacute feita por teacutecnica ou pela teacutecnica Certamente a teacutecnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra as palavras e a sintaxe em literatura natildeo apenas a tela em pintura mas sua preparashyccedilatildeo os pigmentos suas misturas os meacutetodos de perspectiva ou ent~o os doze sons da muacutesica ocidental os instrumentos as escalas as alturas E a relaccedilatildeo entre os dois planos oacute

plano de composiccedilatildeo teacutecnica e o plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica natildeo cessa de variar historicamente Sejam dois estados oponiacuteveis na pintura a oacuteleo num primeiro caso o quadro eacute preparado por um fundo branco sobre o qual se desenha e se dilui o desenho (esboccedilo) enfim se potildee a cor as sombras e as luzes No outro caso o fundo se torna cada vez mais espesso opaco e absorvente de modo que ele se colore na divisatildeo e o trabalho se faz em plena massa sobre uma gama escura as correccedilotildees substituindo o esboccedilo o pintor pintaraacute sobre cor depois cor ao lado de cor as cores se tornando cada vez mais relevos a arquitetura sendo assegurada pelo contraste dos complementares e a concordacircncia dos anaacuteshylogos (Van Gogh) eacute por e nagrave cor que se encontraraacute a arshyquitetura mesmo se eacute preciso renunciar aos relevos parareshyconstituir grandes unidades colorantes Eacute verdade que Xavier de Langlais vecirc em todo este segundo caso uma longa decashydecircncia que caino efecircmero e natildeo chega a restaurar uma ar-

Percepto Mecto e Conceito 247

quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem duacutevida esta observaccedilatildeo coloca ao meshynos negativamente a questatildeo do progresso na arte jaacute que Langlais considera que a decadecircncia comeccedila jaacute depois de Van Eyck (um pouco como alguns param a muacutesica no canto greshygoriano ou a filosofia em Santo Tomaacutes) Mas eacute uma obsershyvaccedilatildeo teacutecnica que concerne somente ao material aleacutem de que a duraccedilatildeo do material eacute muito relativa a sensaccedilatildeo eacute de uma outra ordem e possui uma existecircncia em si enquanto o mashyterial dura A relaccedilatildeo da sensaccedilatildeo com o material deve pois ser avaliada nos limites da duraccedilatildeo do material qualquer que ela seja Se haacute progressatildeo em arte eacute porque a arte soacute pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retonws linhas de partilha mudanccedilas de niacuteveis e de escashy

I las Deste ponto de vista a distinccedilatildeo de dois estados da lf

pintura a oacuteleo toma um aspecto inteiramente diferente esshyI

teacutetico e natildeo mais teacutecnico- esta distinccedilatildeo natildeo conduz evishydentemente ao representativo ou natildeo jaacute que nenhuma arte nenhuma sensaccedilatildeo jamais foram representativas

li No primeiro caso a sensaccedilatildeo se realiza no material e natildeo existe fora desta realizaccedilatildeo Diriacuteamos que a sensaccedilatildeo (o composto de sensaccedilotildees) se projeta sobre o plano de composhysiccedilatildeo teacutecnica bem preparado de sorte que o plano -de comshyposiccedilatildeo esteacutetica venha recobri-lo Eacute preciso pois que o mashyterial compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graccedilas aos quais a sensaccedilatildeo projetada natildeo se realiza somenshyte cobrindo o qu1dro mas segundo uma profundidade A arte desfruta entatildeo de uma aparecircncia de transcendecircncia que se exprime natildeo numa coisa por representar mas no caraacuteter paradigmaacutetico da projeccedilatildeo e no caraacuteter simboacutelico da persshypectiva A Figura eacute como a fabulaccedilatildeo segundo Bergson tem

31 Xavier de Langlais La technique de la peinture agrave lhuile Ed Flammarion (E Goethe Traiteacute des couleurs Ed Triades sect 902-909)

248 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 249

middot i

uma origem religiosa Mas quando ela se torna esteacutetica sua transcendecircncia sensitiva entra numa oposiccedilatildeo surda ou abe-rshyta com a transcendecircncia suprasensiacutevel das religiotildees

No segundo caso natildeo eacute mais a sensaccedilatildeo que se realiza no material eacute antes o material que entra na sensaccedilatildeo Cershytamente a sensaccedilatildeo natildeo existe mais fora dessa entrada e o plano de composiccedilatildeo teacutecnica natildeo mais tem autonomia a natildeo ser no primeiro caso natildeo vale jamais por si mesmo Mas diriacuteamos agora que ele sobe no plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica e lhe daacute uma espessura proacutepria como diz Damisch inshydependente de qualquer perspectiva e profundidade Eacute o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transshycendecircncia aparente ou-de um modelo paradigmaacutetico e conshyfessam seu ateiacutesmo inocente seu paganismo E sem duacutevida entre estes dois casos estes dois estados da sensaccedilatildeo estes dois poacutelos da teacutecnica as transiccedilotildees as combinaccedilotildees e as coexistecircncias se fazem constantemente (por exemplo o trashybalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens) satildeo poacutelos abstratos ao inveacutes de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com oacuteleo e solvente se volta cada vez mais na direccedilatildeo do segundo poacutelo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composiccedilatilde~ esteacutetica -Eacute por isso -que eacute tatildeo falso definir a sensaccedilatildeo na pintura moderna pela admissatildeo de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a esshypessura natildeo precisa ser larga ou profunda Pocircde-se dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfiacuteshycie basta-lhe apoiar-se sobre os vazios e os plenos do pashypel Canson Eacute uma pintura que natildeo mais tem fundo porshyque o baixo emerge a superfiacutecie eacute esburacaacutevel ou o plashyno de composiccedilatildeo ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspecshytiva independentemente das sombras e mesmo da ordem

i r I li

I 32 Cf Christian Bonnefbi intervieweacute et commenteacute par Yvesshy

I Alain Bois Macula S-6

33 Damisch Fenecirctre jaime cadmium ou les dessous de la peinture Ed du Seuil pp 275-305 (e p 80 a espessura do plano em Pollock) Dashy

li misch eacute o autor que mais insistiu sobre a relaccedilatildeo -arte-pertsamento pinshytura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instauraacute-la Mallarmeacute fazia da espessura do livro uma dimensatildeo distinta da proshy) fundidade cf Jacques Scheacuterer Le livre de Mallarmeacute Gallimard p 55shy

I tema que Boulez retoma por sua vez para a muacutesica (Points de repere p 161) iI

li 250 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

I I

cromaacutetica da cor (o colorista arbitraacuterio) Natildeo mais se recoshybre faz-se subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar Eacute uma promoccedilatildeo do solo e a escultura pode torshy

I nar-se plana jaacute que o plano se estratifica Natildeo magraveis se pinshyI ta sobre mas sob A arte informal levou muito longe

estas novas potecircncias da textura essa elevaccedilatildeo do solo com I Dubuffet e tambeacutem o expressionismo abstrato a arte mishy

nimalista procedendo por impregnaccedilotildees fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atraacutes de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem agrave vista do pintor o que enshytregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes estados a pintura eacute-penshysamento a visatildeo existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta

Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdashydeiro conceito mostrando que o tranccedilado poderia bem preencher para a pintura futura funccedilatildeo anaacuteloga agravequela que foi a da perspectiva O quemiddotnatildeo eacute proacuteprio da pintura jaacute que Damisch reencontra a mesma distinccedilatildeo no niacutevel do plano arquitetura quando Scarpa por exemplo rejeita o movishymento da projeccedilatildeo e os mecanismos da perspectiva para ins~ crever os volumes na espessura do proacuteprio plano33 bull E da literatura agrave muacutesica uma espessura material se afirma que

--~ middot

natildeo se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal Eacute umr I traccedilo caracteriacutestico da literatura moderna quando as palashyr vras e a sintaxe sobem no plano de composiccedilatildeo e o cavam I em lugar de colocaacute-lo em perspectiva E a muacutesica quando

renuncia agrave projeccedilatildeo como agraves perspeCtivas que impotildeem a alshyI tura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano soshynoro uma espessura singular da qual testemunham elemenshy

I tos muito diferentes a evoluccedilatildeo dos estudos parapiano que deixam de ser somente teacutecnicas para tornar-se estudos de

jmiddot composiccedilatildeo (com a extensatildeo que lhes daacute Debussy) a imshy

portacircncia decisiva que toma a orquestraccedilatildeo em Berlioz a i subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferashyI I ccedilatildeo dos afectos de percussatildeo com os metais as peles e as mashy

deiras e sua ligaccedilatildeo com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparaacuteveis do material (Varese) a redeshy

I finiccedilatildeo do percepto em funccedilatildeo do ruiacutedo do som bruto e I complexo (Cage) natildeo apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendecircnshy

cia a uma apariccedilatildeo natildeo-cromaacutetica do som num continuum infiiuumlto (muacutesica eletrocircnica ou eletro-acuacutestica)I

I Soacute haacute um plano uacutenico no sentido em que a arte natildeo

I comporta outro plano diferente do da composiccedilatildeo esteacutetica

I o plano teacutecnico com efeito eacute necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composiccedilatildeo esteacutetica Eacute sob esta conshydiccedilatildeo que a mateacuteria se torna expressiva o composto de senshysaccedilotildees se realiza no material ou o material entra no comshyI posto mas sempre de modo a se situar sobre um plano deI

I composiccedilatildeo propriamente esteacutetico Haacute muitos problemasI teacutecnicos em arte e a ciecircncia pode intervir em sua soluccedilatildeo

mas eles soacute se colocam em funccedilatildeo de problemas de composhysiccedilatildeo esteacutetica que concernem aos compostos de sensaccedilotildees e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus mateshyriais Toda sensaccedilatildeo eacute uma questatildeo mesmo se soacute o silecircncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em enshy

251Percepto Afecto e Conceito

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 14: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

sobre o qual se destaca o rosto de tons justapostos E com efeito a casa natildeo nos abriga das forccedilas coacutesmicas no maacutexishymo ela as filtra elas as seleciona Ela as transforma algushymas vezes em forccedilas benevolentes jamais a pintuacutera fez ver a forccedila de Arquimedes a forccedila do empuxltgt da aacutegua sobre um corpo gracioso que flutua na banheira da casa como Bonnard conseguiu em o Nuacute no banho Mas tambeacutem as forccedilas mais maleacuteficas podem entrar pela porta entreabershyta ou fechada satildeo as forccedilas coacutesmicas que provocam elas mesmas as zonas de indiscernibilidade nos_tons justapostos de um rosto esbofeteando-o arranhando-o fundindo-o em todos os sentidos e satildeo estas zonas de indiscernibilidade que revelam as forccedilas escondidas no fundo (Bacon) Haacute plena complementariedade enlace de forccedilas como perceptos e de devires como afectos A linha de forccedila abstrata segundo ~orringer eacute rica em motivos animalescos Agraves forccedilas coacutesshymicas ou cosmogeneacuteticas correspondem devires-aniinais veshy

geta1s moleculares ateacute que o corpo desapareccedila no fundo ou entre no muro ou inversamente que o fundo se contorshyccedila e turbilhone na zona de indiscernibilidade d~ corpo~ Numa palavra o ser de sensaccedilatildeo natildeo eacute a carne mas o comshyposto das forccedilas natildeo-humanas do cosmos dos devires natildeo humanos do homem e da casa ambiacutegua que os troccedila e os ajusta os faz turbilhonar como os ventos A carne eacute somenshyte o revelador que desaparece no que revela o composto de sensaccedilotildees Como toda pintura a pintura abstrata eacute senshysaccedilatildeo nada mais que sensaccedilatildeo Em Mondrian eacute o quarto que acede ao ser de sensaccedilatildeo dividindo por extensotildees coshyloridas o plano vazio infinito que lhe daacute de volta um infishy

d b 22 mto e a ertura Em Kandinsky as casa~ satildeo uma das

22 Mondrian Reacutealiteacute naturelle et reacutealiteacute abstraite (in Seuphor Piet

Mondnan sa vie son oeuvre Ed Flammarion) sobre o quarto e seu desdobramento Michel Butor analisou este desdobramento do quarto em

236 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

fontes da abstraccedilatildeo que consiste menos em figuras geomeacuteshytricas que em trajetos dinacircmicos e linhas de erracircncia cashyminhos que caminham nos arredores Em Kupka eacute de iniacuteshycio sobre o corpo que o pintor talha fitas ou extensotildees coshyloridas que produziratildeo no vazio os planos curos que o povoam tornando-se sensaccedilotildees cosmogeneacuteticas__ ~--~--~~~~

ccedilatildeoe~_pi_rjtual ou j~ um _~Ol~-~-i_g_viSgt= O _q~-~~t-~ lt1 ~~-~~- uacuten1verso A ~r~~ - aJs~rata_~ s~P25 a ~rte _C()flC~I~~~_Elt~~~-- middot-Pmiddot cacirc~dTmiddot~tamente a questatildeo que impregna toda pintura ---- --middot-shys~~ - ~-eiacute~Ccedilatilde-uumlcocircffi o ~~~~~ito~sti-a relaccedilatildeo com a funccedilatildeo middot_

A arte comeccedila talv-ez--com o animal ao menos com o animal que recorta um territoacuterio e faz uma casa (os dois satildeo correlativos ou ateacute mesmo se confundem por vezes no que se chama de habitat) Com o sistema territoacuterio-casa muitas funccedilotildees orgacircnicas se transformam sexualidade procriaccedilatildeo agressiyidade alimentaccedilatildeo mas natildeo eacute esta transformaccedilatildeo que explica a apariccedilatildeo do territoacuterio e da casa seria antes o

inverso o territoacuterio impli~a na emergecirc~lti~ e 91-ali_cll~~-~sel~ siacuteveis pu~- ~~-ibiIacuteia qua~ixacirciiacuteiacute -de ser unicaii1~_Ilt_e ushyecirc(ocircOtildeagraveisecirc cse- ioacuternani-tragraveCcediluumlsmiddotae express~Otilde__ tormiddotn~~~~J~~s~V~l tiffiagravetiansfocirciinaCcedilatildeo (G$iacute~i1Ccedilotildees23 s~ni duacutevida esta expresshysivlamp1deTaacuteestacirc dltu~ch~E~~~middot Vida~ pode-se dizer que o simshyples liacuterio dos campos celebra a gloacuteria dos ceacuteus Mas eacute com o territoacuterio e a casa que ela se torna construtiva e ergue os monumentos rituais de uma missa animal que celebra as quashylidades antes de tirar delas novas causalidades e finalidades Esta emergecircncia jaacute eacute arte natildeo somente no tratamento dos materiais exteriores mas nas posturas e cores do corpo nos

quadrados ou retacircngulos e a abertura sobre um quadrado interior vazio e branco como promessa de quarto futuro Reacutepertoire III Le carreacute et son habitant Ed de Minuit p 307-309314-315

23 Parece-nos que eacute um engano de Lorenz querer explicar o terrishytoacuterio por uma evoluccedilatildeo das funccedilotildees L agression Ed Flammarion

Percepto Afecto e Conceito 237

cantos e nos gritos que marcam o territoacuterio Eacute um jorro de traccedilos de~-~2E~~- e de sons inseparaacuteveisna dtecTda em que s~ -~riill _ ~xpr~~isiV_9_~ ~-(~i~~~i-~ill~~9l0_~_4~ middotr~ritoacute~i~fCcedil Scenopoietes dentirostris paacutessaro das florestas chuvosas da Austraacutelia faz cair da aacutervore as folhas que corta cada manhatilde vira-as para que sua face interna mais paacutelida contraste com a terra constroacutei para si assim uma cena co_mo um readyshymade e canta exatamente em cima sobre um cipoacute ou-um galho um canto complexo composto de suas proacuteprias noshytas e das de outros paacutessaros que imita nos intervalos mosshytrando a raiacutez amarela das plumas sob seubico eacute um artista completo24

bull Natildeo satildeo as sinestesias em plena carne satildeo esshytes blocos de sensaccedilotildees no territoacuterio cores posturas e sons que esboccedilam uma obra de arte total Estes blocos satildeo rishytorneios mas haacute tambeacutem ritornelos posturais e de cores e tanto posturas quanto cores se introduzem sempre nos ritor~ nelas Reverecircncias e posiccedilotildees eretas rondas traccedilos de coshyres O ritornelo inteiro eacute o ser de sensaccedilatildeo Os monumenshytos satildeo ritornelos Desse ponto de vista a arte natildeo deixaraacute de ser habitada pelo animal A arte deKafka seraacute a mais prbshy

funda meditaccedilatildeo sobre o territoacuterio e a casa o terreiro as pos~ turas~retrato (a cabeccedila pendida do habitante com o queixo enterrado no peito ou ao contraacuterio o grande tiacutemido que fura o teto com seu cracircnio anguloso) os sons-muacutesica (os catildees que satildeo muacutesicos por suas proacuteprias posturas Josephine a ratinha cantora da qual ja~ais saberemos se canta Gregoire que une seu piadoao violino de sua irmatilde numa relaccedilatildeo comshyplexa quarto-casa~territoacuterio) Eis tudo o que eacute preciso para fazer arte uma casa posturas cores e cantos - sob a conshy ~

I diccedilatildeo de que tudo isso se abra e se lance sobre ummiddotvetor louco como uma vassoura de bruxa uma linha d~ universo ou de

24 Marshall Bowler Birds Oxford at the Clarendon Press Gilliord Birds of Paradise and Bowler Birds Weidenfeld

desterritorializaccedilatildeoPerspectiva de um quarto com seus hashybitantes (Klee )

Cada territoacuterio cada habitat junt a seus planos ou suas extensotildees natildeo apenas espaccedilo-temporais mas qualitativos por exemplo uma postura e um canto um canto e urna cor perceptos e afectos E cada territoacuterio engloba ou recorta ter~ ritoacuterios de outras espeacutecies ou intercepta trajetos de animais sem territoacuterio formando junccedilotildees inUacuterespeciacuteficltlS Eacute neste sentido que Uexkuumlhl num primeiro aspecto desenvolve urna concepccedilatildeo da Natureza meloacutedica polifocircnica contrapontual Natildeo apenas o canto de um paacutessaro tem suas relaccedilotildees de conshytraponto mas pode fazer contraponto com o canto de oushytras espeacutecies e pode ele mesmo imitar estes outros cantos como se se tratasse de ocupar um maacuteximo de frequumlecircnciacuteas A teia de aranha conteacutem um retrato muito sutil da mosca que lhe serve de contraponto A concha como casa do moshylusco~ se torna quando ele morre o contraponto do Bershynardo-eremita que faz dela seu proacuteprio habitat graccedilas a sua cauda que natildeo eacute nadadeira mas preecircnsil e lhe permite capshyturar a concha vazia O Carrapato eacute organicamente consshytruiacutedo de modo a encontrar seu contraponto no mamiacutefero qualquer que passa sob seu galho como as folhas de carvashylho arranjadas como telhas nas gotas de chuva que escorshyrem Natildeo eacute uma concepccedilatildeo finalista mas meloacutedica em que natildeo mais sabemos o que eacute arte ou natureza (a teacutecnica nashytural) haacute contraponto toda vez que uma melodia interveacutem como motivo numa outra melodia como nas bodas enshytre a mamangava e a boca-de-leatildeo Essas relaccedilotildees de contrashyponto juntam planos formam compostos de sensaccedilotildees bloshycos e determinam devires Mas natildeo satildeo somente estes comshypostos meloacutedicos determinados que constituem a natureza mesmo generalizados eacute preciso tambeacutem sob um outro asshypecto um plano de composiccedilatildeo sinfocircnica infinio da Casa ao universo Da endo-sensaccedilatildeo agrave exo-sensaccedilatildeo E que o tershy

bull 238 li Filosofia Ciecircnci~ Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 239

r I I I-- --- --

~ -

middot1

ritoacuterio natildeo se limita a isolar e juntar ele abre para forccedilas coacutesmicas que sobem de dentro ou que vecircm de fora e torna sensiacuteveis seu efeito sobre o habitante Eacute um plano de comshyposiccedilatildeo do carvalho que porta ou comporta a forCcedila de deshysenvolvimento da bolota e a forccedila de formaccedilatildeo das gotas ou o do carrapato que tem a forccedila da luz capaz de atrair o animal ateacute a ponta de um galho numa altura suficiente e a forccedila de peso com a qual se deixa cair sobre o mamiacutefero que passa -e entre os dois nada um vazio assustador que pode durar anos se o mamiacutefero natildeo passa25bull E ora as forccedilas se fundem umas nas outras em transiccedilotildees sutis decompotildeemshyse tatildeo logo vislumbradas ora se alternam ou se enfrentam Ora deixam-se selecionar pelo territoacuterio e satildeo as mais beshynevolentes que entram na casa Ora lanccedilam um apelo misshyterioso que arranca o habitante do territoacuterio e o precipita numa viagem irresistiacutevel como os pintassilgos que se reuacuteshynem frequentemente aos milhotildees ou as lagostas que empreshyendem uma imensa peregrinaccedilatildeo no fundo da aacutegua Ora se abatem sobre o territoacuterio e o invertem malevolentes restaushyrando o caos de onde ele mal saiacutea Mas sempre se a nature za eacute como a arte eacute porque ela conjuga de todas as maneiras esses dois elementos vivos a Casa e o Universo o Heimlich e o Unheimlich o territoacuterio e a desterritorializaccedilatildeo os comshypostos meloacutedicos finitos e o grande plano de composiccedilatildeo infinito o pequeno e o grande ritornelo

A arte comeccedila natildeo com a carne mas com a casa eacute por isso que a arquitetura eacute a primeira das artes Quando Dushybuffet procura delifuitar um certo estado bruto de arte eacute a princiacutepio na direccedilatildeo da casa que ele se volta e toda sua obra se ergue entre a arquitetura a escultura e a -pintUra E limishy

25 Cf a obra-prima de J von Uexkuumlhl Mondes animaux et monde humain Theacuteorie de la signification Ed Gonthier (p 137-142 o contrashyponto motivo do desenvolvimento e da morfogecircnese)

II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tando-nos agrave forma a arquitetura mais saacutebia natildeo deixa de fazer planos extensotildees e de juntaacute-los Eacute por isso que se pode defini-la pela moldura um encaixe de molduras diversashymente orientadas que se imporiam agraves outras artes da pinshytura ao Cinema Jaacute se apresentou a preacute-histoacuteria do quadro como passando pelo afresco na moldura da parede o vitral ha moldura da janela o mosaico na moldura do solo A moldura eacute o umbigo que liga o quadro ao monujllento do qual ele eacute a reduccedilatildeo como a moldura goacutetica com coluneshytas ogiva e flecha26 Fazendo da arquitetura a arte primeira da moldura Bernard Cache pode enumerar um certo nuacutemero de formas enquadrantes que natildeo prejulgam nenhum conteuacuteshydo concreto nem funccedilatildeo do edifiacutecio o mu~o que isola ajashynela que capta ou seleciona (em conexatildeo com o territoacuterio) o solo-chatildeo que conjura ou rarifica (rarificar o relevo da terra para dar livre curso agraves trajetoacuterias humanas) o teto que envolve a singularidade do lugar (o teto em declive coloca o edifiacutecio sobre uma colina ) Encaixar essas molshyduras ou juntar todos estes planos extensatildeo de muro exshytensatildeo de janela extensatildeo de solo extensatildeo de declive eacute todo um sistema composto rico em pontos e contrapontos As molduras e suas junccedilotildees sustentam os compostos de sensashyccedilotildees datildeo consistecircncia agraves figuras confundem-se com seu dar consistecircncia seu proacuteprio tocircnus Aiacute estatildeo as faces de um cubo de sensaccedilatildeo As molduras ou as extensotildees natildeo satildeo coordeshynadas pertencem aos compostos de sensaccedilotildees dos quais consshytituem as faces as interfaces Mas por mais extensiacutevel que seja este sistema eacute preciso ainda um vasto plano de composhysiccedilatildeo que opere uma espeacutecie de desenquadramento segunshydo linhas de fuga que soacute passe pelo territoacuterio para abri-lo sobre o universo que vaacute da casa-territoacuterio agrave cidade-cosmos

26 Henry van de Velde Deacuteblaientent dart Archives darchitecture moderne p 20

Percepto Afecto e Conceito 240 241

-~-_--- middot-middotmiddot

e que dissolva agora a identidade do lugar na variaccedilatildeo da Natildeo parece que a literatura e particularmente o romance Terra uma cidade que tem menos um lugar do que vetores estejam imma outra situaccedilatildeo O que conta natildeo satildeo as opiniotildees pregueando a linha abstrata do relevo Eacute sobre este plano de dos personagens segundo seus tipos sociais e seu caraacuteter composiccedilatildeo como sobre um espaccedilo vetorial abstrato que como nos maus romances mas as relaccedilotildees de contraponto nos se traccedilam figuras geomeacutetricas cone prisma diedro plano quais entram e os compostos de sensaccedilotildees que esses persoshyestrito que nada mais satildeo do que forccedilas coacutesmicas capazes nagens experimentam eles mesmos ou fazem experimentar em de se fundir se transformar se enfrentar alternar mundo seus devires e suas visotildees O contraponto natildeo serve para reshyde antes do homem mesmo se eacute produto do homem27 Eacute latar conversas reais ou fictiacutecias mas para fazer mostrar a preciso agora desarticular os planos para remetecirc-los a seus loucura de qualquer conversa de qualquer diaacutelogo mesmo

j intervalos em vez de remetecirc-los uns aos outros para criar interior Eacute tudo isso que o romancista deve extrair das pershy

novos afectos28 Ora~ vimos que a pintura seguia o mesmo cepccedilotildees afecccedilotildees e opiniotildees de seus modelos psicossociais I

I movimento A moldura ou a borda do quadro eacute em primeiro que se integram inteiramente nos perceptos e os afectos aos ~ I

lugar o invoacutelucro externo de uma seacuterie de molduras ou de quais o personagem deve ser elevado sem conservar outra vida I

I extensotildees que se juntam operando contrapontos de linhas E isso implica num vasto plano de composiccedilatildeo natildeo preconshyi

I

e de cores determinando compostos de sensaccedilotildees Mas o cebido abstratamente mas que se constroacutei agrave medida que a obraI

quadro eacute atravessado tambeacutem por uma potecircncia de desenshy avanccedila abrindo misturando desfazendo e refazendo composshy

I I quadramento que o abre para um plano de composiccedilatildeo oumiddot tos cada vez mais ilimitados segundo a penetraccedilatildeo de forccedilasI

um campo de forccedilas infinito Estes procedimentos podem ser coacutesmicas A teoria do romance de Bakhtin vai nesse sentido muito diversos mesmo no nivel da moldura exterior formas mostrando de Rabelais a Dostoievski a coexistecircncia dos comshy

[I irregulares lados que natildeo se juntam molduras pintadas oacuteu ponentes contrapontuais polifocircnicos e plurivocais com um I pontilhados de Seurat quadrados sobre ponta de Mondrian plano de composiccedilatildeo arquitetocircnico ou sinfocircnico29 Um roshyi li tudo o que daacute ao quadro o poder de sair da tela Jamais o mancista como Dos Passos soube atingir uma arte inaudita

shy__jl

gesto do pintor fica na moldura ele sai da moldura e natildeo do contraponto nos compostos que forma entre personagens comeccedila com ela atualidades biografias olhos de cacircmera ao mesmo teropo queI

um plano de composiccedilatildeo se alarga ao infinito para arrastar tudo para a Vida para a Morte para a cidade-cosmos E se27 Sobre todos estes pontos a anaacutelise das formas enquadrantes e da

cidade-cosmos (exemplo de Lausanne) cf Bernard Cache L ameublement retornamos a Proust eacute porque mais do que qualquer outro du territoire (a sair) ele fez com que os dois elementos quase se sucedessem emboshy

28 Eacute Pascal Bonitzer que formou o conceito de desenquadramento ra presentes um no outro o plano de composiccedilatildeo aparece poushypara aplicar ao cinema novas rdaccedilotildees entre os planos ( Cahiers du cineacutema co a pouco para a vida para a morte compostos de sensashyndeg 284 janeiro de 1978) planos disjuntos triturados ou fragmentados ccedilatildeo que ele edifica no curso do tempo perdido ateacute aparecer graccedilas aos quais o cinema se torna uma arte depurando-se das emoccedilotildees

em si mesmo com o tempo reencontrado a forccedila ou antes asmais comuns que arriscam de lhe impedir o desenvolvimento esteacutetico e produzindo-lhe afetos novos (Le champ aveugle Ed Cahiers du cineacutema Gallirnard sisteme des eacutemotions ) 29 Bakhtin Estheacutetique et theacuteorie du roman Gallimard

242 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 243

-- ---

forccedilas do tempo puro tornadas sensiacuteveis Tudo comeccedila peshylas Casas que devem todas juntar suas dimensotildees e dar conshysistecircncia a compostos Combray o palacete de Guermantes o salatildeo Verdurin e as casas elas mesmas se ajuntam segundo interfaces mas um Cosmos planetaacuterio jaacute estaacute laacute visiacutevel ao telescoacutepio arruinando-as ou transformando-as e absorvenshydo-as no infinito do fundo Tudo comeccedila por titornelos cada

i

um dos quais como a pequena frase da sonata de Vinteuil natildeo se compotildee apenas em si mesmo mas com -outras sensashy

ccedilotildees variaacuteveis a de uma passante desconhecida a do rosto de Odette a das folhagens do bosque de Boulogne- e tudo tershy I mina no infinito no grade Ritornelo a frase do seacuteptuor em Iperpeacutetua metamorfose o canto dos universos o mundo de antes do homem ou de depois De cada coisa finita Proust faz uni ser de sensaccedilatildeo que natildeo deixa de se conservar mas fushygindo sobre um plano de composiccedilatildeo do Ser seres de fuga

EXEMPLO XII

Natildeo parece que a muacutesica esteja numa outra situashyccedilatildeo talvez mesmo a encarne com mais poder ainda Dizshyse todavia que o som natildeo tem moldura Mas os comshypostos de sensaccedilotildees os blocos sonoros tampouco tecircm extensotildees ou formas enquadrantes que devem em cada caso se ajuntar assegurando um certo fechamento Os casos mais simples satildeo a aacuteria meloacutedica que eacute um ritorshynelo monofocircnico o motivo que jaacute eacute polifocircnico um elemento de Uacutema melodia interveniente no desenvolvishymento de uma outra e fazendo contraponto o tema como objeto de modificaccedilotildees harm-ecircnicas atrav~s das linhas meloacutedicas Essas trecircs formas elementares consshytroacuteem a casa sonora e seu territoacuterio Elas correspondem agraves trecircs modalidades de um ser de sensaccedilatildeo pois a aacuteria eacute uma vibraccedilatildeo o motivo eacute um enlace um acoplamen-

I244 lIL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

jbull

to enquanto o tema natildeo fecha sem se descerrar fender e tambeacutem abrir Com efeito o fenocircmeno musical mais importante que aparece agrave medida que os compostos de sensaccedilotildees sonoras se tornam mais complexos eacute que sua clausura ou fechamento (por junccedilatildeo de suas molduras de suas extensotildees) se acompanha de uma possibilidade de abertura sobre um plano de composiccedilatildeo cada vez mais ilimitado Os seres de muacutesica satildeo como os seres vivos segundo Bergson que compensam sua clausura individuante por uma abertura feita de modulaccedilatildeo reshypeticcedilatildeo transposiccedilatildeo justaposiccedilatildeo Se consideramos a sonata encontramos aiacute uma forma enquadraacutente parshyticularmente riacutegida fundada sobre um bitematismo e da qual o primeiro movimento apresenta as seguintes dimensotildees exposiccedilatildeo do primeiro tema transiccedilatildeo exshyposiccedilatildeo do segundo tema desenvolvimentos sobre o pric rileiro ou o segundo coda desenvolvimento do primeiro com modulaccedilatildeo etc Eacute toda uma casa com seus aposhysentos Mas eacute antes o primeiro movimento que forma assim uma ceacutelula e eacute raro que uiacuten grande muacutesico siga a forma canocircnica os outros moviacutementos podem abrirshyse notadamente o segundo pel~ tema e variaccedilatildeo ateacute que Liszt asseg~re uma fusatildeo dos movimentos no poeshyma sinfocircnico A sonata aparece entatildeo antes como uma forma-cruzamento em que da junccedilatildeo das dimensotildees musicais da clausura dos compostos sonoros nasce a abertura de um plano de composiccedilatildeo

Deste ponto de vista o velho procedimento tema e variaccedilatildeo que manteacutem a moldura harmocircnica do tema daacute lugar a uma espeacutecie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composiccedilatildeo (Chopin Schumann Liszt eacute um novo momento essencial porshyque o trabalho criador natildeo mais versa sobre os comshyponentes sonoros motivos e temas abrindo um plano

245Percepto Mecto e Conceito

~~

mas ao contraacuterio versa diretamente sobre o proacuteprio plano de composiccedilatildeo para fazer nascer dele composshytos bem mais livres e desenquadrados quase agregados incompletos ou sobrecarregados em desequiliacutebrio pershymanente Eacute a cor do som que conta cada vez mais Passa-se da Casa ao Cosmos (segundo uma foacutermula que a obra de Stockhausen retomaraacute) O trabalho do plano de composiccedilatildeo se desenvolve em duas direccedilotildees que engendraratildeo uma desagregaccedilatildeo da moldura tonal os imensos fundos da variaccedilatildeo contiacutenua que fazem enshylaccedilar e se unir as forccedilas tornadas sonoras em Wagner ou os tons justapostos que separam e dispersam as forshyccedilas agenciando suas passagens reversiacuteveis em Debussy Universo-Wagner universo-Debussy Todas as aacuterias todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquashydrados infantis domeacutesticos profissionais nacionais territoriais satildeo carregados no grande Ritornelo um potente canto da terra - o desterritorializado - que se eleva com Mahler Berg ou Bartoacutek E sem duacutevida o plano de composiccedilatildeo engendra sempre novas clausuras como na seacuterie Mas sempre o gesto do muacutesico consiste em desenquadrar encontrar a abertura retornar o plashyno de composiccedilatildeo segundo a foacutermula que obceca Boushylez traccedilar uina transversal irredutiacutevel agrave vertical harmocircshynica como agrave horizontal meloacutedica que conduz blocos soshynoros agrave individualizaccedilatildeo variaacutevel mas tambeacutem abri-las ou fendecirc-las num espaccedilo-tempo que determina sua denshysidaae e seu percurso sobre o plano30 O grande ritorshynelo se eleva agrave medida que nos afastamos dacasa messhy

30 Boulez notadamente Points de repere Ed Bourgois-Le Seuil p 159 e segs (Pensez la musique aujourdhui Ed Gonthier p 59-62) A eXtensatildeo da seacuterie em duraccedilotildees intensidades e timbres natildeo eacute um ato de clausura mas ao contraacuterio uma abertura do que se fechava na middotseacuterie das alturas

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte246

--~=shyq

mo se eacute para retornar a ela jaacute que ningueacutem mais nos reconheceraacute quando retornarmos

Composiccedilatildeo composiccedilatildeo eis a uacutenica definiccedilatildeo da arte A composiccedilatildeo eacute esteacutetica e o que natildeo eacute composto natildeo eacute uma obra de arte Natildeo confundiremos todavia a composiccedilatildeo teacutecshynica trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciecircncia (matemaacutetica fiacutesica quiacutemica anatomia) e a comshyposiccedilatildeo esteacutetica que eacute o trabalho da sensaccedilatildeo Soacute este uacuteltishymo merece plenamente o nome de composiccedilatildeo e nunca uma obra de arte eacute feita por teacutecnica ou pela teacutecnica Certamente a teacutecnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra as palavras e a sintaxe em literatura natildeo apenas a tela em pintura mas sua preparashyccedilatildeo os pigmentos suas misturas os meacutetodos de perspectiva ou ent~o os doze sons da muacutesica ocidental os instrumentos as escalas as alturas E a relaccedilatildeo entre os dois planos oacute

plano de composiccedilatildeo teacutecnica e o plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica natildeo cessa de variar historicamente Sejam dois estados oponiacuteveis na pintura a oacuteleo num primeiro caso o quadro eacute preparado por um fundo branco sobre o qual se desenha e se dilui o desenho (esboccedilo) enfim se potildee a cor as sombras e as luzes No outro caso o fundo se torna cada vez mais espesso opaco e absorvente de modo que ele se colore na divisatildeo e o trabalho se faz em plena massa sobre uma gama escura as correccedilotildees substituindo o esboccedilo o pintor pintaraacute sobre cor depois cor ao lado de cor as cores se tornando cada vez mais relevos a arquitetura sendo assegurada pelo contraste dos complementares e a concordacircncia dos anaacuteshylogos (Van Gogh) eacute por e nagrave cor que se encontraraacute a arshyquitetura mesmo se eacute preciso renunciar aos relevos parareshyconstituir grandes unidades colorantes Eacute verdade que Xavier de Langlais vecirc em todo este segundo caso uma longa decashydecircncia que caino efecircmero e natildeo chega a restaurar uma ar-

Percepto Mecto e Conceito 247

quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem duacutevida esta observaccedilatildeo coloca ao meshynos negativamente a questatildeo do progresso na arte jaacute que Langlais considera que a decadecircncia comeccedila jaacute depois de Van Eyck (um pouco como alguns param a muacutesica no canto greshygoriano ou a filosofia em Santo Tomaacutes) Mas eacute uma obsershyvaccedilatildeo teacutecnica que concerne somente ao material aleacutem de que a duraccedilatildeo do material eacute muito relativa a sensaccedilatildeo eacute de uma outra ordem e possui uma existecircncia em si enquanto o mashyterial dura A relaccedilatildeo da sensaccedilatildeo com o material deve pois ser avaliada nos limites da duraccedilatildeo do material qualquer que ela seja Se haacute progressatildeo em arte eacute porque a arte soacute pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retonws linhas de partilha mudanccedilas de niacuteveis e de escashy

I las Deste ponto de vista a distinccedilatildeo de dois estados da lf

pintura a oacuteleo toma um aspecto inteiramente diferente esshyI

teacutetico e natildeo mais teacutecnico- esta distinccedilatildeo natildeo conduz evishydentemente ao representativo ou natildeo jaacute que nenhuma arte nenhuma sensaccedilatildeo jamais foram representativas

li No primeiro caso a sensaccedilatildeo se realiza no material e natildeo existe fora desta realizaccedilatildeo Diriacuteamos que a sensaccedilatildeo (o composto de sensaccedilotildees) se projeta sobre o plano de composhysiccedilatildeo teacutecnica bem preparado de sorte que o plano -de comshyposiccedilatildeo esteacutetica venha recobri-lo Eacute preciso pois que o mashyterial compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graccedilas aos quais a sensaccedilatildeo projetada natildeo se realiza somenshyte cobrindo o qu1dro mas segundo uma profundidade A arte desfruta entatildeo de uma aparecircncia de transcendecircncia que se exprime natildeo numa coisa por representar mas no caraacuteter paradigmaacutetico da projeccedilatildeo e no caraacuteter simboacutelico da persshypectiva A Figura eacute como a fabulaccedilatildeo segundo Bergson tem

31 Xavier de Langlais La technique de la peinture agrave lhuile Ed Flammarion (E Goethe Traiteacute des couleurs Ed Triades sect 902-909)

248 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 249

middot i

uma origem religiosa Mas quando ela se torna esteacutetica sua transcendecircncia sensitiva entra numa oposiccedilatildeo surda ou abe-rshyta com a transcendecircncia suprasensiacutevel das religiotildees

No segundo caso natildeo eacute mais a sensaccedilatildeo que se realiza no material eacute antes o material que entra na sensaccedilatildeo Cershytamente a sensaccedilatildeo natildeo existe mais fora dessa entrada e o plano de composiccedilatildeo teacutecnica natildeo mais tem autonomia a natildeo ser no primeiro caso natildeo vale jamais por si mesmo Mas diriacuteamos agora que ele sobe no plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica e lhe daacute uma espessura proacutepria como diz Damisch inshydependente de qualquer perspectiva e profundidade Eacute o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transshycendecircncia aparente ou-de um modelo paradigmaacutetico e conshyfessam seu ateiacutesmo inocente seu paganismo E sem duacutevida entre estes dois casos estes dois estados da sensaccedilatildeo estes dois poacutelos da teacutecnica as transiccedilotildees as combinaccedilotildees e as coexistecircncias se fazem constantemente (por exemplo o trashybalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens) satildeo poacutelos abstratos ao inveacutes de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com oacuteleo e solvente se volta cada vez mais na direccedilatildeo do segundo poacutelo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composiccedilatilde~ esteacutetica -Eacute por isso -que eacute tatildeo falso definir a sensaccedilatildeo na pintura moderna pela admissatildeo de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a esshypessura natildeo precisa ser larga ou profunda Pocircde-se dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfiacuteshycie basta-lhe apoiar-se sobre os vazios e os plenos do pashypel Canson Eacute uma pintura que natildeo mais tem fundo porshyque o baixo emerge a superfiacutecie eacute esburacaacutevel ou o plashyno de composiccedilatildeo ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspecshytiva independentemente das sombras e mesmo da ordem

i r I li

I 32 Cf Christian Bonnefbi intervieweacute et commenteacute par Yvesshy

I Alain Bois Macula S-6

33 Damisch Fenecirctre jaime cadmium ou les dessous de la peinture Ed du Seuil pp 275-305 (e p 80 a espessura do plano em Pollock) Dashy

li misch eacute o autor que mais insistiu sobre a relaccedilatildeo -arte-pertsamento pinshytura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instauraacute-la Mallarmeacute fazia da espessura do livro uma dimensatildeo distinta da proshy) fundidade cf Jacques Scheacuterer Le livre de Mallarmeacute Gallimard p 55shy

I tema que Boulez retoma por sua vez para a muacutesica (Points de repere p 161) iI

li 250 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

I I

cromaacutetica da cor (o colorista arbitraacuterio) Natildeo mais se recoshybre faz-se subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar Eacute uma promoccedilatildeo do solo e a escultura pode torshy

I nar-se plana jaacute que o plano se estratifica Natildeo magraveis se pinshyI ta sobre mas sob A arte informal levou muito longe

estas novas potecircncias da textura essa elevaccedilatildeo do solo com I Dubuffet e tambeacutem o expressionismo abstrato a arte mishy

nimalista procedendo por impregnaccedilotildees fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atraacutes de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem agrave vista do pintor o que enshytregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes estados a pintura eacute-penshysamento a visatildeo existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta

Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdashydeiro conceito mostrando que o tranccedilado poderia bem preencher para a pintura futura funccedilatildeo anaacuteloga agravequela que foi a da perspectiva O quemiddotnatildeo eacute proacuteprio da pintura jaacute que Damisch reencontra a mesma distinccedilatildeo no niacutevel do plano arquitetura quando Scarpa por exemplo rejeita o movishymento da projeccedilatildeo e os mecanismos da perspectiva para ins~ crever os volumes na espessura do proacuteprio plano33 bull E da literatura agrave muacutesica uma espessura material se afirma que

--~ middot

natildeo se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal Eacute umr I traccedilo caracteriacutestico da literatura moderna quando as palashyr vras e a sintaxe sobem no plano de composiccedilatildeo e o cavam I em lugar de colocaacute-lo em perspectiva E a muacutesica quando

renuncia agrave projeccedilatildeo como agraves perspeCtivas que impotildeem a alshyI tura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano soshynoro uma espessura singular da qual testemunham elemenshy

I tos muito diferentes a evoluccedilatildeo dos estudos parapiano que deixam de ser somente teacutecnicas para tornar-se estudos de

jmiddot composiccedilatildeo (com a extensatildeo que lhes daacute Debussy) a imshy

portacircncia decisiva que toma a orquestraccedilatildeo em Berlioz a i subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferashyI I ccedilatildeo dos afectos de percussatildeo com os metais as peles e as mashy

deiras e sua ligaccedilatildeo com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparaacuteveis do material (Varese) a redeshy

I finiccedilatildeo do percepto em funccedilatildeo do ruiacutedo do som bruto e I complexo (Cage) natildeo apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendecircnshy

cia a uma apariccedilatildeo natildeo-cromaacutetica do som num continuum infiiuumlto (muacutesica eletrocircnica ou eletro-acuacutestica)I

I Soacute haacute um plano uacutenico no sentido em que a arte natildeo

I comporta outro plano diferente do da composiccedilatildeo esteacutetica

I o plano teacutecnico com efeito eacute necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composiccedilatildeo esteacutetica Eacute sob esta conshydiccedilatildeo que a mateacuteria se torna expressiva o composto de senshysaccedilotildees se realiza no material ou o material entra no comshyI posto mas sempre de modo a se situar sobre um plano deI

I composiccedilatildeo propriamente esteacutetico Haacute muitos problemasI teacutecnicos em arte e a ciecircncia pode intervir em sua soluccedilatildeo

mas eles soacute se colocam em funccedilatildeo de problemas de composhysiccedilatildeo esteacutetica que concernem aos compostos de sensaccedilotildees e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus mateshyriais Toda sensaccedilatildeo eacute uma questatildeo mesmo se soacute o silecircncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em enshy

251Percepto Afecto e Conceito

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 15: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

cantos e nos gritos que marcam o territoacuterio Eacute um jorro de traccedilos de~-~2E~~- e de sons inseparaacuteveisna dtecTda em que s~ -~riill _ ~xpr~~isiV_9_~ ~-(~i~~~i-~ill~~9l0_~_4~ middotr~ritoacute~i~fCcedil Scenopoietes dentirostris paacutessaro das florestas chuvosas da Austraacutelia faz cair da aacutervore as folhas que corta cada manhatilde vira-as para que sua face interna mais paacutelida contraste com a terra constroacutei para si assim uma cena co_mo um readyshymade e canta exatamente em cima sobre um cipoacute ou-um galho um canto complexo composto de suas proacuteprias noshytas e das de outros paacutessaros que imita nos intervalos mosshytrando a raiacutez amarela das plumas sob seubico eacute um artista completo24

bull Natildeo satildeo as sinestesias em plena carne satildeo esshytes blocos de sensaccedilotildees no territoacuterio cores posturas e sons que esboccedilam uma obra de arte total Estes blocos satildeo rishytorneios mas haacute tambeacutem ritornelos posturais e de cores e tanto posturas quanto cores se introduzem sempre nos ritor~ nelas Reverecircncias e posiccedilotildees eretas rondas traccedilos de coshyres O ritornelo inteiro eacute o ser de sensaccedilatildeo Os monumenshytos satildeo ritornelos Desse ponto de vista a arte natildeo deixaraacute de ser habitada pelo animal A arte deKafka seraacute a mais prbshy

funda meditaccedilatildeo sobre o territoacuterio e a casa o terreiro as pos~ turas~retrato (a cabeccedila pendida do habitante com o queixo enterrado no peito ou ao contraacuterio o grande tiacutemido que fura o teto com seu cracircnio anguloso) os sons-muacutesica (os catildees que satildeo muacutesicos por suas proacuteprias posturas Josephine a ratinha cantora da qual ja~ais saberemos se canta Gregoire que une seu piadoao violino de sua irmatilde numa relaccedilatildeo comshyplexa quarto-casa~territoacuterio) Eis tudo o que eacute preciso para fazer arte uma casa posturas cores e cantos - sob a conshy ~

I diccedilatildeo de que tudo isso se abra e se lance sobre ummiddotvetor louco como uma vassoura de bruxa uma linha d~ universo ou de

24 Marshall Bowler Birds Oxford at the Clarendon Press Gilliord Birds of Paradise and Bowler Birds Weidenfeld

desterritorializaccedilatildeoPerspectiva de um quarto com seus hashybitantes (Klee )

Cada territoacuterio cada habitat junt a seus planos ou suas extensotildees natildeo apenas espaccedilo-temporais mas qualitativos por exemplo uma postura e um canto um canto e urna cor perceptos e afectos E cada territoacuterio engloba ou recorta ter~ ritoacuterios de outras espeacutecies ou intercepta trajetos de animais sem territoacuterio formando junccedilotildees inUacuterespeciacuteficltlS Eacute neste sentido que Uexkuumlhl num primeiro aspecto desenvolve urna concepccedilatildeo da Natureza meloacutedica polifocircnica contrapontual Natildeo apenas o canto de um paacutessaro tem suas relaccedilotildees de conshytraponto mas pode fazer contraponto com o canto de oushytras espeacutecies e pode ele mesmo imitar estes outros cantos como se se tratasse de ocupar um maacuteximo de frequumlecircnciacuteas A teia de aranha conteacutem um retrato muito sutil da mosca que lhe serve de contraponto A concha como casa do moshylusco~ se torna quando ele morre o contraponto do Bershynardo-eremita que faz dela seu proacuteprio habitat graccedilas a sua cauda que natildeo eacute nadadeira mas preecircnsil e lhe permite capshyturar a concha vazia O Carrapato eacute organicamente consshytruiacutedo de modo a encontrar seu contraponto no mamiacutefero qualquer que passa sob seu galho como as folhas de carvashylho arranjadas como telhas nas gotas de chuva que escorshyrem Natildeo eacute uma concepccedilatildeo finalista mas meloacutedica em que natildeo mais sabemos o que eacute arte ou natureza (a teacutecnica nashytural) haacute contraponto toda vez que uma melodia interveacutem como motivo numa outra melodia como nas bodas enshytre a mamangava e a boca-de-leatildeo Essas relaccedilotildees de contrashyponto juntam planos formam compostos de sensaccedilotildees bloshycos e determinam devires Mas natildeo satildeo somente estes comshypostos meloacutedicos determinados que constituem a natureza mesmo generalizados eacute preciso tambeacutem sob um outro asshypecto um plano de composiccedilatildeo sinfocircnica infinio da Casa ao universo Da endo-sensaccedilatildeo agrave exo-sensaccedilatildeo E que o tershy

bull 238 li Filosofia Ciecircnci~ Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 239

r I I I-- --- --

~ -

middot1

ritoacuterio natildeo se limita a isolar e juntar ele abre para forccedilas coacutesmicas que sobem de dentro ou que vecircm de fora e torna sensiacuteveis seu efeito sobre o habitante Eacute um plano de comshyposiccedilatildeo do carvalho que porta ou comporta a forCcedila de deshysenvolvimento da bolota e a forccedila de formaccedilatildeo das gotas ou o do carrapato que tem a forccedila da luz capaz de atrair o animal ateacute a ponta de um galho numa altura suficiente e a forccedila de peso com a qual se deixa cair sobre o mamiacutefero que passa -e entre os dois nada um vazio assustador que pode durar anos se o mamiacutefero natildeo passa25bull E ora as forccedilas se fundem umas nas outras em transiccedilotildees sutis decompotildeemshyse tatildeo logo vislumbradas ora se alternam ou se enfrentam Ora deixam-se selecionar pelo territoacuterio e satildeo as mais beshynevolentes que entram na casa Ora lanccedilam um apelo misshyterioso que arranca o habitante do territoacuterio e o precipita numa viagem irresistiacutevel como os pintassilgos que se reuacuteshynem frequentemente aos milhotildees ou as lagostas que empreshyendem uma imensa peregrinaccedilatildeo no fundo da aacutegua Ora se abatem sobre o territoacuterio e o invertem malevolentes restaushyrando o caos de onde ele mal saiacutea Mas sempre se a nature za eacute como a arte eacute porque ela conjuga de todas as maneiras esses dois elementos vivos a Casa e o Universo o Heimlich e o Unheimlich o territoacuterio e a desterritorializaccedilatildeo os comshypostos meloacutedicos finitos e o grande plano de composiccedilatildeo infinito o pequeno e o grande ritornelo

A arte comeccedila natildeo com a carne mas com a casa eacute por isso que a arquitetura eacute a primeira das artes Quando Dushybuffet procura delifuitar um certo estado bruto de arte eacute a princiacutepio na direccedilatildeo da casa que ele se volta e toda sua obra se ergue entre a arquitetura a escultura e a -pintUra E limishy

25 Cf a obra-prima de J von Uexkuumlhl Mondes animaux et monde humain Theacuteorie de la signification Ed Gonthier (p 137-142 o contrashyponto motivo do desenvolvimento e da morfogecircnese)

II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tando-nos agrave forma a arquitetura mais saacutebia natildeo deixa de fazer planos extensotildees e de juntaacute-los Eacute por isso que se pode defini-la pela moldura um encaixe de molduras diversashymente orientadas que se imporiam agraves outras artes da pinshytura ao Cinema Jaacute se apresentou a preacute-histoacuteria do quadro como passando pelo afresco na moldura da parede o vitral ha moldura da janela o mosaico na moldura do solo A moldura eacute o umbigo que liga o quadro ao monujllento do qual ele eacute a reduccedilatildeo como a moldura goacutetica com coluneshytas ogiva e flecha26 Fazendo da arquitetura a arte primeira da moldura Bernard Cache pode enumerar um certo nuacutemero de formas enquadrantes que natildeo prejulgam nenhum conteuacuteshydo concreto nem funccedilatildeo do edifiacutecio o mu~o que isola ajashynela que capta ou seleciona (em conexatildeo com o territoacuterio) o solo-chatildeo que conjura ou rarifica (rarificar o relevo da terra para dar livre curso agraves trajetoacuterias humanas) o teto que envolve a singularidade do lugar (o teto em declive coloca o edifiacutecio sobre uma colina ) Encaixar essas molshyduras ou juntar todos estes planos extensatildeo de muro exshytensatildeo de janela extensatildeo de solo extensatildeo de declive eacute todo um sistema composto rico em pontos e contrapontos As molduras e suas junccedilotildees sustentam os compostos de sensashyccedilotildees datildeo consistecircncia agraves figuras confundem-se com seu dar consistecircncia seu proacuteprio tocircnus Aiacute estatildeo as faces de um cubo de sensaccedilatildeo As molduras ou as extensotildees natildeo satildeo coordeshynadas pertencem aos compostos de sensaccedilotildees dos quais consshytituem as faces as interfaces Mas por mais extensiacutevel que seja este sistema eacute preciso ainda um vasto plano de composhysiccedilatildeo que opere uma espeacutecie de desenquadramento segunshydo linhas de fuga que soacute passe pelo territoacuterio para abri-lo sobre o universo que vaacute da casa-territoacuterio agrave cidade-cosmos

26 Henry van de Velde Deacuteblaientent dart Archives darchitecture moderne p 20

Percepto Afecto e Conceito 240 241

-~-_--- middot-middotmiddot

e que dissolva agora a identidade do lugar na variaccedilatildeo da Natildeo parece que a literatura e particularmente o romance Terra uma cidade que tem menos um lugar do que vetores estejam imma outra situaccedilatildeo O que conta natildeo satildeo as opiniotildees pregueando a linha abstrata do relevo Eacute sobre este plano de dos personagens segundo seus tipos sociais e seu caraacuteter composiccedilatildeo como sobre um espaccedilo vetorial abstrato que como nos maus romances mas as relaccedilotildees de contraponto nos se traccedilam figuras geomeacutetricas cone prisma diedro plano quais entram e os compostos de sensaccedilotildees que esses persoshyestrito que nada mais satildeo do que forccedilas coacutesmicas capazes nagens experimentam eles mesmos ou fazem experimentar em de se fundir se transformar se enfrentar alternar mundo seus devires e suas visotildees O contraponto natildeo serve para reshyde antes do homem mesmo se eacute produto do homem27 Eacute latar conversas reais ou fictiacutecias mas para fazer mostrar a preciso agora desarticular os planos para remetecirc-los a seus loucura de qualquer conversa de qualquer diaacutelogo mesmo

j intervalos em vez de remetecirc-los uns aos outros para criar interior Eacute tudo isso que o romancista deve extrair das pershy

novos afectos28 Ora~ vimos que a pintura seguia o mesmo cepccedilotildees afecccedilotildees e opiniotildees de seus modelos psicossociais I

I movimento A moldura ou a borda do quadro eacute em primeiro que se integram inteiramente nos perceptos e os afectos aos ~ I

lugar o invoacutelucro externo de uma seacuterie de molduras ou de quais o personagem deve ser elevado sem conservar outra vida I

I extensotildees que se juntam operando contrapontos de linhas E isso implica num vasto plano de composiccedilatildeo natildeo preconshyi

I

e de cores determinando compostos de sensaccedilotildees Mas o cebido abstratamente mas que se constroacutei agrave medida que a obraI

quadro eacute atravessado tambeacutem por uma potecircncia de desenshy avanccedila abrindo misturando desfazendo e refazendo composshy

I I quadramento que o abre para um plano de composiccedilatildeo oumiddot tos cada vez mais ilimitados segundo a penetraccedilatildeo de forccedilasI

um campo de forccedilas infinito Estes procedimentos podem ser coacutesmicas A teoria do romance de Bakhtin vai nesse sentido muito diversos mesmo no nivel da moldura exterior formas mostrando de Rabelais a Dostoievski a coexistecircncia dos comshy

[I irregulares lados que natildeo se juntam molduras pintadas oacuteu ponentes contrapontuais polifocircnicos e plurivocais com um I pontilhados de Seurat quadrados sobre ponta de Mondrian plano de composiccedilatildeo arquitetocircnico ou sinfocircnico29 Um roshyi li tudo o que daacute ao quadro o poder de sair da tela Jamais o mancista como Dos Passos soube atingir uma arte inaudita

shy__jl

gesto do pintor fica na moldura ele sai da moldura e natildeo do contraponto nos compostos que forma entre personagens comeccedila com ela atualidades biografias olhos de cacircmera ao mesmo teropo queI

um plano de composiccedilatildeo se alarga ao infinito para arrastar tudo para a Vida para a Morte para a cidade-cosmos E se27 Sobre todos estes pontos a anaacutelise das formas enquadrantes e da

cidade-cosmos (exemplo de Lausanne) cf Bernard Cache L ameublement retornamos a Proust eacute porque mais do que qualquer outro du territoire (a sair) ele fez com que os dois elementos quase se sucedessem emboshy

28 Eacute Pascal Bonitzer que formou o conceito de desenquadramento ra presentes um no outro o plano de composiccedilatildeo aparece poushypara aplicar ao cinema novas rdaccedilotildees entre os planos ( Cahiers du cineacutema co a pouco para a vida para a morte compostos de sensashyndeg 284 janeiro de 1978) planos disjuntos triturados ou fragmentados ccedilatildeo que ele edifica no curso do tempo perdido ateacute aparecer graccedilas aos quais o cinema se torna uma arte depurando-se das emoccedilotildees

em si mesmo com o tempo reencontrado a forccedila ou antes asmais comuns que arriscam de lhe impedir o desenvolvimento esteacutetico e produzindo-lhe afetos novos (Le champ aveugle Ed Cahiers du cineacutema Gallirnard sisteme des eacutemotions ) 29 Bakhtin Estheacutetique et theacuteorie du roman Gallimard

242 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 243

-- ---

forccedilas do tempo puro tornadas sensiacuteveis Tudo comeccedila peshylas Casas que devem todas juntar suas dimensotildees e dar conshysistecircncia a compostos Combray o palacete de Guermantes o salatildeo Verdurin e as casas elas mesmas se ajuntam segundo interfaces mas um Cosmos planetaacuterio jaacute estaacute laacute visiacutevel ao telescoacutepio arruinando-as ou transformando-as e absorvenshydo-as no infinito do fundo Tudo comeccedila por titornelos cada

i

um dos quais como a pequena frase da sonata de Vinteuil natildeo se compotildee apenas em si mesmo mas com -outras sensashy

ccedilotildees variaacuteveis a de uma passante desconhecida a do rosto de Odette a das folhagens do bosque de Boulogne- e tudo tershy I mina no infinito no grade Ritornelo a frase do seacuteptuor em Iperpeacutetua metamorfose o canto dos universos o mundo de antes do homem ou de depois De cada coisa finita Proust faz uni ser de sensaccedilatildeo que natildeo deixa de se conservar mas fushygindo sobre um plano de composiccedilatildeo do Ser seres de fuga

EXEMPLO XII

Natildeo parece que a muacutesica esteja numa outra situashyccedilatildeo talvez mesmo a encarne com mais poder ainda Dizshyse todavia que o som natildeo tem moldura Mas os comshypostos de sensaccedilotildees os blocos sonoros tampouco tecircm extensotildees ou formas enquadrantes que devem em cada caso se ajuntar assegurando um certo fechamento Os casos mais simples satildeo a aacuteria meloacutedica que eacute um ritorshynelo monofocircnico o motivo que jaacute eacute polifocircnico um elemento de Uacutema melodia interveniente no desenvolvishymento de uma outra e fazendo contraponto o tema como objeto de modificaccedilotildees harm-ecircnicas atrav~s das linhas meloacutedicas Essas trecircs formas elementares consshytroacuteem a casa sonora e seu territoacuterio Elas correspondem agraves trecircs modalidades de um ser de sensaccedilatildeo pois a aacuteria eacute uma vibraccedilatildeo o motivo eacute um enlace um acoplamen-

I244 lIL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

jbull

to enquanto o tema natildeo fecha sem se descerrar fender e tambeacutem abrir Com efeito o fenocircmeno musical mais importante que aparece agrave medida que os compostos de sensaccedilotildees sonoras se tornam mais complexos eacute que sua clausura ou fechamento (por junccedilatildeo de suas molduras de suas extensotildees) se acompanha de uma possibilidade de abertura sobre um plano de composiccedilatildeo cada vez mais ilimitado Os seres de muacutesica satildeo como os seres vivos segundo Bergson que compensam sua clausura individuante por uma abertura feita de modulaccedilatildeo reshypeticcedilatildeo transposiccedilatildeo justaposiccedilatildeo Se consideramos a sonata encontramos aiacute uma forma enquadraacutente parshyticularmente riacutegida fundada sobre um bitematismo e da qual o primeiro movimento apresenta as seguintes dimensotildees exposiccedilatildeo do primeiro tema transiccedilatildeo exshyposiccedilatildeo do segundo tema desenvolvimentos sobre o pric rileiro ou o segundo coda desenvolvimento do primeiro com modulaccedilatildeo etc Eacute toda uma casa com seus aposhysentos Mas eacute antes o primeiro movimento que forma assim uma ceacutelula e eacute raro que uiacuten grande muacutesico siga a forma canocircnica os outros moviacutementos podem abrirshyse notadamente o segundo pel~ tema e variaccedilatildeo ateacute que Liszt asseg~re uma fusatildeo dos movimentos no poeshyma sinfocircnico A sonata aparece entatildeo antes como uma forma-cruzamento em que da junccedilatildeo das dimensotildees musicais da clausura dos compostos sonoros nasce a abertura de um plano de composiccedilatildeo

Deste ponto de vista o velho procedimento tema e variaccedilatildeo que manteacutem a moldura harmocircnica do tema daacute lugar a uma espeacutecie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composiccedilatildeo (Chopin Schumann Liszt eacute um novo momento essencial porshyque o trabalho criador natildeo mais versa sobre os comshyponentes sonoros motivos e temas abrindo um plano

245Percepto Mecto e Conceito

~~

mas ao contraacuterio versa diretamente sobre o proacuteprio plano de composiccedilatildeo para fazer nascer dele composshytos bem mais livres e desenquadrados quase agregados incompletos ou sobrecarregados em desequiliacutebrio pershymanente Eacute a cor do som que conta cada vez mais Passa-se da Casa ao Cosmos (segundo uma foacutermula que a obra de Stockhausen retomaraacute) O trabalho do plano de composiccedilatildeo se desenvolve em duas direccedilotildees que engendraratildeo uma desagregaccedilatildeo da moldura tonal os imensos fundos da variaccedilatildeo contiacutenua que fazem enshylaccedilar e se unir as forccedilas tornadas sonoras em Wagner ou os tons justapostos que separam e dispersam as forshyccedilas agenciando suas passagens reversiacuteveis em Debussy Universo-Wagner universo-Debussy Todas as aacuterias todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquashydrados infantis domeacutesticos profissionais nacionais territoriais satildeo carregados no grande Ritornelo um potente canto da terra - o desterritorializado - que se eleva com Mahler Berg ou Bartoacutek E sem duacutevida o plano de composiccedilatildeo engendra sempre novas clausuras como na seacuterie Mas sempre o gesto do muacutesico consiste em desenquadrar encontrar a abertura retornar o plashyno de composiccedilatildeo segundo a foacutermula que obceca Boushylez traccedilar uina transversal irredutiacutevel agrave vertical harmocircshynica como agrave horizontal meloacutedica que conduz blocos soshynoros agrave individualizaccedilatildeo variaacutevel mas tambeacutem abri-las ou fendecirc-las num espaccedilo-tempo que determina sua denshysidaae e seu percurso sobre o plano30 O grande ritorshynelo se eleva agrave medida que nos afastamos dacasa messhy

30 Boulez notadamente Points de repere Ed Bourgois-Le Seuil p 159 e segs (Pensez la musique aujourdhui Ed Gonthier p 59-62) A eXtensatildeo da seacuterie em duraccedilotildees intensidades e timbres natildeo eacute um ato de clausura mas ao contraacuterio uma abertura do que se fechava na middotseacuterie das alturas

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte246

--~=shyq

mo se eacute para retornar a ela jaacute que ningueacutem mais nos reconheceraacute quando retornarmos

Composiccedilatildeo composiccedilatildeo eis a uacutenica definiccedilatildeo da arte A composiccedilatildeo eacute esteacutetica e o que natildeo eacute composto natildeo eacute uma obra de arte Natildeo confundiremos todavia a composiccedilatildeo teacutecshynica trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciecircncia (matemaacutetica fiacutesica quiacutemica anatomia) e a comshyposiccedilatildeo esteacutetica que eacute o trabalho da sensaccedilatildeo Soacute este uacuteltishymo merece plenamente o nome de composiccedilatildeo e nunca uma obra de arte eacute feita por teacutecnica ou pela teacutecnica Certamente a teacutecnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra as palavras e a sintaxe em literatura natildeo apenas a tela em pintura mas sua preparashyccedilatildeo os pigmentos suas misturas os meacutetodos de perspectiva ou ent~o os doze sons da muacutesica ocidental os instrumentos as escalas as alturas E a relaccedilatildeo entre os dois planos oacute

plano de composiccedilatildeo teacutecnica e o plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica natildeo cessa de variar historicamente Sejam dois estados oponiacuteveis na pintura a oacuteleo num primeiro caso o quadro eacute preparado por um fundo branco sobre o qual se desenha e se dilui o desenho (esboccedilo) enfim se potildee a cor as sombras e as luzes No outro caso o fundo se torna cada vez mais espesso opaco e absorvente de modo que ele se colore na divisatildeo e o trabalho se faz em plena massa sobre uma gama escura as correccedilotildees substituindo o esboccedilo o pintor pintaraacute sobre cor depois cor ao lado de cor as cores se tornando cada vez mais relevos a arquitetura sendo assegurada pelo contraste dos complementares e a concordacircncia dos anaacuteshylogos (Van Gogh) eacute por e nagrave cor que se encontraraacute a arshyquitetura mesmo se eacute preciso renunciar aos relevos parareshyconstituir grandes unidades colorantes Eacute verdade que Xavier de Langlais vecirc em todo este segundo caso uma longa decashydecircncia que caino efecircmero e natildeo chega a restaurar uma ar-

Percepto Mecto e Conceito 247

quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem duacutevida esta observaccedilatildeo coloca ao meshynos negativamente a questatildeo do progresso na arte jaacute que Langlais considera que a decadecircncia comeccedila jaacute depois de Van Eyck (um pouco como alguns param a muacutesica no canto greshygoriano ou a filosofia em Santo Tomaacutes) Mas eacute uma obsershyvaccedilatildeo teacutecnica que concerne somente ao material aleacutem de que a duraccedilatildeo do material eacute muito relativa a sensaccedilatildeo eacute de uma outra ordem e possui uma existecircncia em si enquanto o mashyterial dura A relaccedilatildeo da sensaccedilatildeo com o material deve pois ser avaliada nos limites da duraccedilatildeo do material qualquer que ela seja Se haacute progressatildeo em arte eacute porque a arte soacute pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retonws linhas de partilha mudanccedilas de niacuteveis e de escashy

I las Deste ponto de vista a distinccedilatildeo de dois estados da lf

pintura a oacuteleo toma um aspecto inteiramente diferente esshyI

teacutetico e natildeo mais teacutecnico- esta distinccedilatildeo natildeo conduz evishydentemente ao representativo ou natildeo jaacute que nenhuma arte nenhuma sensaccedilatildeo jamais foram representativas

li No primeiro caso a sensaccedilatildeo se realiza no material e natildeo existe fora desta realizaccedilatildeo Diriacuteamos que a sensaccedilatildeo (o composto de sensaccedilotildees) se projeta sobre o plano de composhysiccedilatildeo teacutecnica bem preparado de sorte que o plano -de comshyposiccedilatildeo esteacutetica venha recobri-lo Eacute preciso pois que o mashyterial compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graccedilas aos quais a sensaccedilatildeo projetada natildeo se realiza somenshyte cobrindo o qu1dro mas segundo uma profundidade A arte desfruta entatildeo de uma aparecircncia de transcendecircncia que se exprime natildeo numa coisa por representar mas no caraacuteter paradigmaacutetico da projeccedilatildeo e no caraacuteter simboacutelico da persshypectiva A Figura eacute como a fabulaccedilatildeo segundo Bergson tem

31 Xavier de Langlais La technique de la peinture agrave lhuile Ed Flammarion (E Goethe Traiteacute des couleurs Ed Triades sect 902-909)

248 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 249

middot i

uma origem religiosa Mas quando ela se torna esteacutetica sua transcendecircncia sensitiva entra numa oposiccedilatildeo surda ou abe-rshyta com a transcendecircncia suprasensiacutevel das religiotildees

No segundo caso natildeo eacute mais a sensaccedilatildeo que se realiza no material eacute antes o material que entra na sensaccedilatildeo Cershytamente a sensaccedilatildeo natildeo existe mais fora dessa entrada e o plano de composiccedilatildeo teacutecnica natildeo mais tem autonomia a natildeo ser no primeiro caso natildeo vale jamais por si mesmo Mas diriacuteamos agora que ele sobe no plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica e lhe daacute uma espessura proacutepria como diz Damisch inshydependente de qualquer perspectiva e profundidade Eacute o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transshycendecircncia aparente ou-de um modelo paradigmaacutetico e conshyfessam seu ateiacutesmo inocente seu paganismo E sem duacutevida entre estes dois casos estes dois estados da sensaccedilatildeo estes dois poacutelos da teacutecnica as transiccedilotildees as combinaccedilotildees e as coexistecircncias se fazem constantemente (por exemplo o trashybalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens) satildeo poacutelos abstratos ao inveacutes de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com oacuteleo e solvente se volta cada vez mais na direccedilatildeo do segundo poacutelo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composiccedilatilde~ esteacutetica -Eacute por isso -que eacute tatildeo falso definir a sensaccedilatildeo na pintura moderna pela admissatildeo de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a esshypessura natildeo precisa ser larga ou profunda Pocircde-se dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfiacuteshycie basta-lhe apoiar-se sobre os vazios e os plenos do pashypel Canson Eacute uma pintura que natildeo mais tem fundo porshyque o baixo emerge a superfiacutecie eacute esburacaacutevel ou o plashyno de composiccedilatildeo ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspecshytiva independentemente das sombras e mesmo da ordem

i r I li

I 32 Cf Christian Bonnefbi intervieweacute et commenteacute par Yvesshy

I Alain Bois Macula S-6

33 Damisch Fenecirctre jaime cadmium ou les dessous de la peinture Ed du Seuil pp 275-305 (e p 80 a espessura do plano em Pollock) Dashy

li misch eacute o autor que mais insistiu sobre a relaccedilatildeo -arte-pertsamento pinshytura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instauraacute-la Mallarmeacute fazia da espessura do livro uma dimensatildeo distinta da proshy) fundidade cf Jacques Scheacuterer Le livre de Mallarmeacute Gallimard p 55shy

I tema que Boulez retoma por sua vez para a muacutesica (Points de repere p 161) iI

li 250 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

I I

cromaacutetica da cor (o colorista arbitraacuterio) Natildeo mais se recoshybre faz-se subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar Eacute uma promoccedilatildeo do solo e a escultura pode torshy

I nar-se plana jaacute que o plano se estratifica Natildeo magraveis se pinshyI ta sobre mas sob A arte informal levou muito longe

estas novas potecircncias da textura essa elevaccedilatildeo do solo com I Dubuffet e tambeacutem o expressionismo abstrato a arte mishy

nimalista procedendo por impregnaccedilotildees fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atraacutes de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem agrave vista do pintor o que enshytregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes estados a pintura eacute-penshysamento a visatildeo existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta

Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdashydeiro conceito mostrando que o tranccedilado poderia bem preencher para a pintura futura funccedilatildeo anaacuteloga agravequela que foi a da perspectiva O quemiddotnatildeo eacute proacuteprio da pintura jaacute que Damisch reencontra a mesma distinccedilatildeo no niacutevel do plano arquitetura quando Scarpa por exemplo rejeita o movishymento da projeccedilatildeo e os mecanismos da perspectiva para ins~ crever os volumes na espessura do proacuteprio plano33 bull E da literatura agrave muacutesica uma espessura material se afirma que

--~ middot

natildeo se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal Eacute umr I traccedilo caracteriacutestico da literatura moderna quando as palashyr vras e a sintaxe sobem no plano de composiccedilatildeo e o cavam I em lugar de colocaacute-lo em perspectiva E a muacutesica quando

renuncia agrave projeccedilatildeo como agraves perspeCtivas que impotildeem a alshyI tura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano soshynoro uma espessura singular da qual testemunham elemenshy

I tos muito diferentes a evoluccedilatildeo dos estudos parapiano que deixam de ser somente teacutecnicas para tornar-se estudos de

jmiddot composiccedilatildeo (com a extensatildeo que lhes daacute Debussy) a imshy

portacircncia decisiva que toma a orquestraccedilatildeo em Berlioz a i subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferashyI I ccedilatildeo dos afectos de percussatildeo com os metais as peles e as mashy

deiras e sua ligaccedilatildeo com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparaacuteveis do material (Varese) a redeshy

I finiccedilatildeo do percepto em funccedilatildeo do ruiacutedo do som bruto e I complexo (Cage) natildeo apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendecircnshy

cia a uma apariccedilatildeo natildeo-cromaacutetica do som num continuum infiiuumlto (muacutesica eletrocircnica ou eletro-acuacutestica)I

I Soacute haacute um plano uacutenico no sentido em que a arte natildeo

I comporta outro plano diferente do da composiccedilatildeo esteacutetica

I o plano teacutecnico com efeito eacute necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composiccedilatildeo esteacutetica Eacute sob esta conshydiccedilatildeo que a mateacuteria se torna expressiva o composto de senshysaccedilotildees se realiza no material ou o material entra no comshyI posto mas sempre de modo a se situar sobre um plano deI

I composiccedilatildeo propriamente esteacutetico Haacute muitos problemasI teacutecnicos em arte e a ciecircncia pode intervir em sua soluccedilatildeo

mas eles soacute se colocam em funccedilatildeo de problemas de composhysiccedilatildeo esteacutetica que concernem aos compostos de sensaccedilotildees e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus mateshyriais Toda sensaccedilatildeo eacute uma questatildeo mesmo se soacute o silecircncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em enshy

251Percepto Afecto e Conceito

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 16: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

ritoacuterio natildeo se limita a isolar e juntar ele abre para forccedilas coacutesmicas que sobem de dentro ou que vecircm de fora e torna sensiacuteveis seu efeito sobre o habitante Eacute um plano de comshyposiccedilatildeo do carvalho que porta ou comporta a forCcedila de deshysenvolvimento da bolota e a forccedila de formaccedilatildeo das gotas ou o do carrapato que tem a forccedila da luz capaz de atrair o animal ateacute a ponta de um galho numa altura suficiente e a forccedila de peso com a qual se deixa cair sobre o mamiacutefero que passa -e entre os dois nada um vazio assustador que pode durar anos se o mamiacutefero natildeo passa25bull E ora as forccedilas se fundem umas nas outras em transiccedilotildees sutis decompotildeemshyse tatildeo logo vislumbradas ora se alternam ou se enfrentam Ora deixam-se selecionar pelo territoacuterio e satildeo as mais beshynevolentes que entram na casa Ora lanccedilam um apelo misshyterioso que arranca o habitante do territoacuterio e o precipita numa viagem irresistiacutevel como os pintassilgos que se reuacuteshynem frequentemente aos milhotildees ou as lagostas que empreshyendem uma imensa peregrinaccedilatildeo no fundo da aacutegua Ora se abatem sobre o territoacuterio e o invertem malevolentes restaushyrando o caos de onde ele mal saiacutea Mas sempre se a nature za eacute como a arte eacute porque ela conjuga de todas as maneiras esses dois elementos vivos a Casa e o Universo o Heimlich e o Unheimlich o territoacuterio e a desterritorializaccedilatildeo os comshypostos meloacutedicos finitos e o grande plano de composiccedilatildeo infinito o pequeno e o grande ritornelo

A arte comeccedila natildeo com a carne mas com a casa eacute por isso que a arquitetura eacute a primeira das artes Quando Dushybuffet procura delifuitar um certo estado bruto de arte eacute a princiacutepio na direccedilatildeo da casa que ele se volta e toda sua obra se ergue entre a arquitetura a escultura e a -pintUra E limishy

25 Cf a obra-prima de J von Uexkuumlhl Mondes animaux et monde humain Theacuteorie de la signification Ed Gonthier (p 137-142 o contrashyponto motivo do desenvolvimento e da morfogecircnese)

II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

tando-nos agrave forma a arquitetura mais saacutebia natildeo deixa de fazer planos extensotildees e de juntaacute-los Eacute por isso que se pode defini-la pela moldura um encaixe de molduras diversashymente orientadas que se imporiam agraves outras artes da pinshytura ao Cinema Jaacute se apresentou a preacute-histoacuteria do quadro como passando pelo afresco na moldura da parede o vitral ha moldura da janela o mosaico na moldura do solo A moldura eacute o umbigo que liga o quadro ao monujllento do qual ele eacute a reduccedilatildeo como a moldura goacutetica com coluneshytas ogiva e flecha26 Fazendo da arquitetura a arte primeira da moldura Bernard Cache pode enumerar um certo nuacutemero de formas enquadrantes que natildeo prejulgam nenhum conteuacuteshydo concreto nem funccedilatildeo do edifiacutecio o mu~o que isola ajashynela que capta ou seleciona (em conexatildeo com o territoacuterio) o solo-chatildeo que conjura ou rarifica (rarificar o relevo da terra para dar livre curso agraves trajetoacuterias humanas) o teto que envolve a singularidade do lugar (o teto em declive coloca o edifiacutecio sobre uma colina ) Encaixar essas molshyduras ou juntar todos estes planos extensatildeo de muro exshytensatildeo de janela extensatildeo de solo extensatildeo de declive eacute todo um sistema composto rico em pontos e contrapontos As molduras e suas junccedilotildees sustentam os compostos de sensashyccedilotildees datildeo consistecircncia agraves figuras confundem-se com seu dar consistecircncia seu proacuteprio tocircnus Aiacute estatildeo as faces de um cubo de sensaccedilatildeo As molduras ou as extensotildees natildeo satildeo coordeshynadas pertencem aos compostos de sensaccedilotildees dos quais consshytituem as faces as interfaces Mas por mais extensiacutevel que seja este sistema eacute preciso ainda um vasto plano de composhysiccedilatildeo que opere uma espeacutecie de desenquadramento segunshydo linhas de fuga que soacute passe pelo territoacuterio para abri-lo sobre o universo que vaacute da casa-territoacuterio agrave cidade-cosmos

26 Henry van de Velde Deacuteblaientent dart Archives darchitecture moderne p 20

Percepto Afecto e Conceito 240 241

-~-_--- middot-middotmiddot

e que dissolva agora a identidade do lugar na variaccedilatildeo da Natildeo parece que a literatura e particularmente o romance Terra uma cidade que tem menos um lugar do que vetores estejam imma outra situaccedilatildeo O que conta natildeo satildeo as opiniotildees pregueando a linha abstrata do relevo Eacute sobre este plano de dos personagens segundo seus tipos sociais e seu caraacuteter composiccedilatildeo como sobre um espaccedilo vetorial abstrato que como nos maus romances mas as relaccedilotildees de contraponto nos se traccedilam figuras geomeacutetricas cone prisma diedro plano quais entram e os compostos de sensaccedilotildees que esses persoshyestrito que nada mais satildeo do que forccedilas coacutesmicas capazes nagens experimentam eles mesmos ou fazem experimentar em de se fundir se transformar se enfrentar alternar mundo seus devires e suas visotildees O contraponto natildeo serve para reshyde antes do homem mesmo se eacute produto do homem27 Eacute latar conversas reais ou fictiacutecias mas para fazer mostrar a preciso agora desarticular os planos para remetecirc-los a seus loucura de qualquer conversa de qualquer diaacutelogo mesmo

j intervalos em vez de remetecirc-los uns aos outros para criar interior Eacute tudo isso que o romancista deve extrair das pershy

novos afectos28 Ora~ vimos que a pintura seguia o mesmo cepccedilotildees afecccedilotildees e opiniotildees de seus modelos psicossociais I

I movimento A moldura ou a borda do quadro eacute em primeiro que se integram inteiramente nos perceptos e os afectos aos ~ I

lugar o invoacutelucro externo de uma seacuterie de molduras ou de quais o personagem deve ser elevado sem conservar outra vida I

I extensotildees que se juntam operando contrapontos de linhas E isso implica num vasto plano de composiccedilatildeo natildeo preconshyi

I

e de cores determinando compostos de sensaccedilotildees Mas o cebido abstratamente mas que se constroacutei agrave medida que a obraI

quadro eacute atravessado tambeacutem por uma potecircncia de desenshy avanccedila abrindo misturando desfazendo e refazendo composshy

I I quadramento que o abre para um plano de composiccedilatildeo oumiddot tos cada vez mais ilimitados segundo a penetraccedilatildeo de forccedilasI

um campo de forccedilas infinito Estes procedimentos podem ser coacutesmicas A teoria do romance de Bakhtin vai nesse sentido muito diversos mesmo no nivel da moldura exterior formas mostrando de Rabelais a Dostoievski a coexistecircncia dos comshy

[I irregulares lados que natildeo se juntam molduras pintadas oacuteu ponentes contrapontuais polifocircnicos e plurivocais com um I pontilhados de Seurat quadrados sobre ponta de Mondrian plano de composiccedilatildeo arquitetocircnico ou sinfocircnico29 Um roshyi li tudo o que daacute ao quadro o poder de sair da tela Jamais o mancista como Dos Passos soube atingir uma arte inaudita

shy__jl

gesto do pintor fica na moldura ele sai da moldura e natildeo do contraponto nos compostos que forma entre personagens comeccedila com ela atualidades biografias olhos de cacircmera ao mesmo teropo queI

um plano de composiccedilatildeo se alarga ao infinito para arrastar tudo para a Vida para a Morte para a cidade-cosmos E se27 Sobre todos estes pontos a anaacutelise das formas enquadrantes e da

cidade-cosmos (exemplo de Lausanne) cf Bernard Cache L ameublement retornamos a Proust eacute porque mais do que qualquer outro du territoire (a sair) ele fez com que os dois elementos quase se sucedessem emboshy

28 Eacute Pascal Bonitzer que formou o conceito de desenquadramento ra presentes um no outro o plano de composiccedilatildeo aparece poushypara aplicar ao cinema novas rdaccedilotildees entre os planos ( Cahiers du cineacutema co a pouco para a vida para a morte compostos de sensashyndeg 284 janeiro de 1978) planos disjuntos triturados ou fragmentados ccedilatildeo que ele edifica no curso do tempo perdido ateacute aparecer graccedilas aos quais o cinema se torna uma arte depurando-se das emoccedilotildees

em si mesmo com o tempo reencontrado a forccedila ou antes asmais comuns que arriscam de lhe impedir o desenvolvimento esteacutetico e produzindo-lhe afetos novos (Le champ aveugle Ed Cahiers du cineacutema Gallirnard sisteme des eacutemotions ) 29 Bakhtin Estheacutetique et theacuteorie du roman Gallimard

242 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 243

-- ---

forccedilas do tempo puro tornadas sensiacuteveis Tudo comeccedila peshylas Casas que devem todas juntar suas dimensotildees e dar conshysistecircncia a compostos Combray o palacete de Guermantes o salatildeo Verdurin e as casas elas mesmas se ajuntam segundo interfaces mas um Cosmos planetaacuterio jaacute estaacute laacute visiacutevel ao telescoacutepio arruinando-as ou transformando-as e absorvenshydo-as no infinito do fundo Tudo comeccedila por titornelos cada

i

um dos quais como a pequena frase da sonata de Vinteuil natildeo se compotildee apenas em si mesmo mas com -outras sensashy

ccedilotildees variaacuteveis a de uma passante desconhecida a do rosto de Odette a das folhagens do bosque de Boulogne- e tudo tershy I mina no infinito no grade Ritornelo a frase do seacuteptuor em Iperpeacutetua metamorfose o canto dos universos o mundo de antes do homem ou de depois De cada coisa finita Proust faz uni ser de sensaccedilatildeo que natildeo deixa de se conservar mas fushygindo sobre um plano de composiccedilatildeo do Ser seres de fuga

EXEMPLO XII

Natildeo parece que a muacutesica esteja numa outra situashyccedilatildeo talvez mesmo a encarne com mais poder ainda Dizshyse todavia que o som natildeo tem moldura Mas os comshypostos de sensaccedilotildees os blocos sonoros tampouco tecircm extensotildees ou formas enquadrantes que devem em cada caso se ajuntar assegurando um certo fechamento Os casos mais simples satildeo a aacuteria meloacutedica que eacute um ritorshynelo monofocircnico o motivo que jaacute eacute polifocircnico um elemento de Uacutema melodia interveniente no desenvolvishymento de uma outra e fazendo contraponto o tema como objeto de modificaccedilotildees harm-ecircnicas atrav~s das linhas meloacutedicas Essas trecircs formas elementares consshytroacuteem a casa sonora e seu territoacuterio Elas correspondem agraves trecircs modalidades de um ser de sensaccedilatildeo pois a aacuteria eacute uma vibraccedilatildeo o motivo eacute um enlace um acoplamen-

I244 lIL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

jbull

to enquanto o tema natildeo fecha sem se descerrar fender e tambeacutem abrir Com efeito o fenocircmeno musical mais importante que aparece agrave medida que os compostos de sensaccedilotildees sonoras se tornam mais complexos eacute que sua clausura ou fechamento (por junccedilatildeo de suas molduras de suas extensotildees) se acompanha de uma possibilidade de abertura sobre um plano de composiccedilatildeo cada vez mais ilimitado Os seres de muacutesica satildeo como os seres vivos segundo Bergson que compensam sua clausura individuante por uma abertura feita de modulaccedilatildeo reshypeticcedilatildeo transposiccedilatildeo justaposiccedilatildeo Se consideramos a sonata encontramos aiacute uma forma enquadraacutente parshyticularmente riacutegida fundada sobre um bitematismo e da qual o primeiro movimento apresenta as seguintes dimensotildees exposiccedilatildeo do primeiro tema transiccedilatildeo exshyposiccedilatildeo do segundo tema desenvolvimentos sobre o pric rileiro ou o segundo coda desenvolvimento do primeiro com modulaccedilatildeo etc Eacute toda uma casa com seus aposhysentos Mas eacute antes o primeiro movimento que forma assim uma ceacutelula e eacute raro que uiacuten grande muacutesico siga a forma canocircnica os outros moviacutementos podem abrirshyse notadamente o segundo pel~ tema e variaccedilatildeo ateacute que Liszt asseg~re uma fusatildeo dos movimentos no poeshyma sinfocircnico A sonata aparece entatildeo antes como uma forma-cruzamento em que da junccedilatildeo das dimensotildees musicais da clausura dos compostos sonoros nasce a abertura de um plano de composiccedilatildeo

Deste ponto de vista o velho procedimento tema e variaccedilatildeo que manteacutem a moldura harmocircnica do tema daacute lugar a uma espeacutecie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composiccedilatildeo (Chopin Schumann Liszt eacute um novo momento essencial porshyque o trabalho criador natildeo mais versa sobre os comshyponentes sonoros motivos e temas abrindo um plano

245Percepto Mecto e Conceito

~~

mas ao contraacuterio versa diretamente sobre o proacuteprio plano de composiccedilatildeo para fazer nascer dele composshytos bem mais livres e desenquadrados quase agregados incompletos ou sobrecarregados em desequiliacutebrio pershymanente Eacute a cor do som que conta cada vez mais Passa-se da Casa ao Cosmos (segundo uma foacutermula que a obra de Stockhausen retomaraacute) O trabalho do plano de composiccedilatildeo se desenvolve em duas direccedilotildees que engendraratildeo uma desagregaccedilatildeo da moldura tonal os imensos fundos da variaccedilatildeo contiacutenua que fazem enshylaccedilar e se unir as forccedilas tornadas sonoras em Wagner ou os tons justapostos que separam e dispersam as forshyccedilas agenciando suas passagens reversiacuteveis em Debussy Universo-Wagner universo-Debussy Todas as aacuterias todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquashydrados infantis domeacutesticos profissionais nacionais territoriais satildeo carregados no grande Ritornelo um potente canto da terra - o desterritorializado - que se eleva com Mahler Berg ou Bartoacutek E sem duacutevida o plano de composiccedilatildeo engendra sempre novas clausuras como na seacuterie Mas sempre o gesto do muacutesico consiste em desenquadrar encontrar a abertura retornar o plashyno de composiccedilatildeo segundo a foacutermula que obceca Boushylez traccedilar uina transversal irredutiacutevel agrave vertical harmocircshynica como agrave horizontal meloacutedica que conduz blocos soshynoros agrave individualizaccedilatildeo variaacutevel mas tambeacutem abri-las ou fendecirc-las num espaccedilo-tempo que determina sua denshysidaae e seu percurso sobre o plano30 O grande ritorshynelo se eleva agrave medida que nos afastamos dacasa messhy

30 Boulez notadamente Points de repere Ed Bourgois-Le Seuil p 159 e segs (Pensez la musique aujourdhui Ed Gonthier p 59-62) A eXtensatildeo da seacuterie em duraccedilotildees intensidades e timbres natildeo eacute um ato de clausura mas ao contraacuterio uma abertura do que se fechava na middotseacuterie das alturas

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte246

--~=shyq

mo se eacute para retornar a ela jaacute que ningueacutem mais nos reconheceraacute quando retornarmos

Composiccedilatildeo composiccedilatildeo eis a uacutenica definiccedilatildeo da arte A composiccedilatildeo eacute esteacutetica e o que natildeo eacute composto natildeo eacute uma obra de arte Natildeo confundiremos todavia a composiccedilatildeo teacutecshynica trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciecircncia (matemaacutetica fiacutesica quiacutemica anatomia) e a comshyposiccedilatildeo esteacutetica que eacute o trabalho da sensaccedilatildeo Soacute este uacuteltishymo merece plenamente o nome de composiccedilatildeo e nunca uma obra de arte eacute feita por teacutecnica ou pela teacutecnica Certamente a teacutecnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra as palavras e a sintaxe em literatura natildeo apenas a tela em pintura mas sua preparashyccedilatildeo os pigmentos suas misturas os meacutetodos de perspectiva ou ent~o os doze sons da muacutesica ocidental os instrumentos as escalas as alturas E a relaccedilatildeo entre os dois planos oacute

plano de composiccedilatildeo teacutecnica e o plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica natildeo cessa de variar historicamente Sejam dois estados oponiacuteveis na pintura a oacuteleo num primeiro caso o quadro eacute preparado por um fundo branco sobre o qual se desenha e se dilui o desenho (esboccedilo) enfim se potildee a cor as sombras e as luzes No outro caso o fundo se torna cada vez mais espesso opaco e absorvente de modo que ele se colore na divisatildeo e o trabalho se faz em plena massa sobre uma gama escura as correccedilotildees substituindo o esboccedilo o pintor pintaraacute sobre cor depois cor ao lado de cor as cores se tornando cada vez mais relevos a arquitetura sendo assegurada pelo contraste dos complementares e a concordacircncia dos anaacuteshylogos (Van Gogh) eacute por e nagrave cor que se encontraraacute a arshyquitetura mesmo se eacute preciso renunciar aos relevos parareshyconstituir grandes unidades colorantes Eacute verdade que Xavier de Langlais vecirc em todo este segundo caso uma longa decashydecircncia que caino efecircmero e natildeo chega a restaurar uma ar-

Percepto Mecto e Conceito 247

quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem duacutevida esta observaccedilatildeo coloca ao meshynos negativamente a questatildeo do progresso na arte jaacute que Langlais considera que a decadecircncia comeccedila jaacute depois de Van Eyck (um pouco como alguns param a muacutesica no canto greshygoriano ou a filosofia em Santo Tomaacutes) Mas eacute uma obsershyvaccedilatildeo teacutecnica que concerne somente ao material aleacutem de que a duraccedilatildeo do material eacute muito relativa a sensaccedilatildeo eacute de uma outra ordem e possui uma existecircncia em si enquanto o mashyterial dura A relaccedilatildeo da sensaccedilatildeo com o material deve pois ser avaliada nos limites da duraccedilatildeo do material qualquer que ela seja Se haacute progressatildeo em arte eacute porque a arte soacute pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retonws linhas de partilha mudanccedilas de niacuteveis e de escashy

I las Deste ponto de vista a distinccedilatildeo de dois estados da lf

pintura a oacuteleo toma um aspecto inteiramente diferente esshyI

teacutetico e natildeo mais teacutecnico- esta distinccedilatildeo natildeo conduz evishydentemente ao representativo ou natildeo jaacute que nenhuma arte nenhuma sensaccedilatildeo jamais foram representativas

li No primeiro caso a sensaccedilatildeo se realiza no material e natildeo existe fora desta realizaccedilatildeo Diriacuteamos que a sensaccedilatildeo (o composto de sensaccedilotildees) se projeta sobre o plano de composhysiccedilatildeo teacutecnica bem preparado de sorte que o plano -de comshyposiccedilatildeo esteacutetica venha recobri-lo Eacute preciso pois que o mashyterial compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graccedilas aos quais a sensaccedilatildeo projetada natildeo se realiza somenshyte cobrindo o qu1dro mas segundo uma profundidade A arte desfruta entatildeo de uma aparecircncia de transcendecircncia que se exprime natildeo numa coisa por representar mas no caraacuteter paradigmaacutetico da projeccedilatildeo e no caraacuteter simboacutelico da persshypectiva A Figura eacute como a fabulaccedilatildeo segundo Bergson tem

31 Xavier de Langlais La technique de la peinture agrave lhuile Ed Flammarion (E Goethe Traiteacute des couleurs Ed Triades sect 902-909)

248 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 249

middot i

uma origem religiosa Mas quando ela se torna esteacutetica sua transcendecircncia sensitiva entra numa oposiccedilatildeo surda ou abe-rshyta com a transcendecircncia suprasensiacutevel das religiotildees

No segundo caso natildeo eacute mais a sensaccedilatildeo que se realiza no material eacute antes o material que entra na sensaccedilatildeo Cershytamente a sensaccedilatildeo natildeo existe mais fora dessa entrada e o plano de composiccedilatildeo teacutecnica natildeo mais tem autonomia a natildeo ser no primeiro caso natildeo vale jamais por si mesmo Mas diriacuteamos agora que ele sobe no plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica e lhe daacute uma espessura proacutepria como diz Damisch inshydependente de qualquer perspectiva e profundidade Eacute o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transshycendecircncia aparente ou-de um modelo paradigmaacutetico e conshyfessam seu ateiacutesmo inocente seu paganismo E sem duacutevida entre estes dois casos estes dois estados da sensaccedilatildeo estes dois poacutelos da teacutecnica as transiccedilotildees as combinaccedilotildees e as coexistecircncias se fazem constantemente (por exemplo o trashybalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens) satildeo poacutelos abstratos ao inveacutes de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com oacuteleo e solvente se volta cada vez mais na direccedilatildeo do segundo poacutelo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composiccedilatilde~ esteacutetica -Eacute por isso -que eacute tatildeo falso definir a sensaccedilatildeo na pintura moderna pela admissatildeo de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a esshypessura natildeo precisa ser larga ou profunda Pocircde-se dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfiacuteshycie basta-lhe apoiar-se sobre os vazios e os plenos do pashypel Canson Eacute uma pintura que natildeo mais tem fundo porshyque o baixo emerge a superfiacutecie eacute esburacaacutevel ou o plashyno de composiccedilatildeo ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspecshytiva independentemente das sombras e mesmo da ordem

i r I li

I 32 Cf Christian Bonnefbi intervieweacute et commenteacute par Yvesshy

I Alain Bois Macula S-6

33 Damisch Fenecirctre jaime cadmium ou les dessous de la peinture Ed du Seuil pp 275-305 (e p 80 a espessura do plano em Pollock) Dashy

li misch eacute o autor que mais insistiu sobre a relaccedilatildeo -arte-pertsamento pinshytura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instauraacute-la Mallarmeacute fazia da espessura do livro uma dimensatildeo distinta da proshy) fundidade cf Jacques Scheacuterer Le livre de Mallarmeacute Gallimard p 55shy

I tema que Boulez retoma por sua vez para a muacutesica (Points de repere p 161) iI

li 250 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

I I

cromaacutetica da cor (o colorista arbitraacuterio) Natildeo mais se recoshybre faz-se subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar Eacute uma promoccedilatildeo do solo e a escultura pode torshy

I nar-se plana jaacute que o plano se estratifica Natildeo magraveis se pinshyI ta sobre mas sob A arte informal levou muito longe

estas novas potecircncias da textura essa elevaccedilatildeo do solo com I Dubuffet e tambeacutem o expressionismo abstrato a arte mishy

nimalista procedendo por impregnaccedilotildees fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atraacutes de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem agrave vista do pintor o que enshytregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes estados a pintura eacute-penshysamento a visatildeo existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta

Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdashydeiro conceito mostrando que o tranccedilado poderia bem preencher para a pintura futura funccedilatildeo anaacuteloga agravequela que foi a da perspectiva O quemiddotnatildeo eacute proacuteprio da pintura jaacute que Damisch reencontra a mesma distinccedilatildeo no niacutevel do plano arquitetura quando Scarpa por exemplo rejeita o movishymento da projeccedilatildeo e os mecanismos da perspectiva para ins~ crever os volumes na espessura do proacuteprio plano33 bull E da literatura agrave muacutesica uma espessura material se afirma que

--~ middot

natildeo se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal Eacute umr I traccedilo caracteriacutestico da literatura moderna quando as palashyr vras e a sintaxe sobem no plano de composiccedilatildeo e o cavam I em lugar de colocaacute-lo em perspectiva E a muacutesica quando

renuncia agrave projeccedilatildeo como agraves perspeCtivas que impotildeem a alshyI tura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano soshynoro uma espessura singular da qual testemunham elemenshy

I tos muito diferentes a evoluccedilatildeo dos estudos parapiano que deixam de ser somente teacutecnicas para tornar-se estudos de

jmiddot composiccedilatildeo (com a extensatildeo que lhes daacute Debussy) a imshy

portacircncia decisiva que toma a orquestraccedilatildeo em Berlioz a i subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferashyI I ccedilatildeo dos afectos de percussatildeo com os metais as peles e as mashy

deiras e sua ligaccedilatildeo com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparaacuteveis do material (Varese) a redeshy

I finiccedilatildeo do percepto em funccedilatildeo do ruiacutedo do som bruto e I complexo (Cage) natildeo apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendecircnshy

cia a uma apariccedilatildeo natildeo-cromaacutetica do som num continuum infiiuumlto (muacutesica eletrocircnica ou eletro-acuacutestica)I

I Soacute haacute um plano uacutenico no sentido em que a arte natildeo

I comporta outro plano diferente do da composiccedilatildeo esteacutetica

I o plano teacutecnico com efeito eacute necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composiccedilatildeo esteacutetica Eacute sob esta conshydiccedilatildeo que a mateacuteria se torna expressiva o composto de senshysaccedilotildees se realiza no material ou o material entra no comshyI posto mas sempre de modo a se situar sobre um plano deI

I composiccedilatildeo propriamente esteacutetico Haacute muitos problemasI teacutecnicos em arte e a ciecircncia pode intervir em sua soluccedilatildeo

mas eles soacute se colocam em funccedilatildeo de problemas de composhysiccedilatildeo esteacutetica que concernem aos compostos de sensaccedilotildees e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus mateshyriais Toda sensaccedilatildeo eacute uma questatildeo mesmo se soacute o silecircncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em enshy

251Percepto Afecto e Conceito

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 17: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

-~-_--- middot-middotmiddot

e que dissolva agora a identidade do lugar na variaccedilatildeo da Natildeo parece que a literatura e particularmente o romance Terra uma cidade que tem menos um lugar do que vetores estejam imma outra situaccedilatildeo O que conta natildeo satildeo as opiniotildees pregueando a linha abstrata do relevo Eacute sobre este plano de dos personagens segundo seus tipos sociais e seu caraacuteter composiccedilatildeo como sobre um espaccedilo vetorial abstrato que como nos maus romances mas as relaccedilotildees de contraponto nos se traccedilam figuras geomeacutetricas cone prisma diedro plano quais entram e os compostos de sensaccedilotildees que esses persoshyestrito que nada mais satildeo do que forccedilas coacutesmicas capazes nagens experimentam eles mesmos ou fazem experimentar em de se fundir se transformar se enfrentar alternar mundo seus devires e suas visotildees O contraponto natildeo serve para reshyde antes do homem mesmo se eacute produto do homem27 Eacute latar conversas reais ou fictiacutecias mas para fazer mostrar a preciso agora desarticular os planos para remetecirc-los a seus loucura de qualquer conversa de qualquer diaacutelogo mesmo

j intervalos em vez de remetecirc-los uns aos outros para criar interior Eacute tudo isso que o romancista deve extrair das pershy

novos afectos28 Ora~ vimos que a pintura seguia o mesmo cepccedilotildees afecccedilotildees e opiniotildees de seus modelos psicossociais I

I movimento A moldura ou a borda do quadro eacute em primeiro que se integram inteiramente nos perceptos e os afectos aos ~ I

lugar o invoacutelucro externo de uma seacuterie de molduras ou de quais o personagem deve ser elevado sem conservar outra vida I

I extensotildees que se juntam operando contrapontos de linhas E isso implica num vasto plano de composiccedilatildeo natildeo preconshyi

I

e de cores determinando compostos de sensaccedilotildees Mas o cebido abstratamente mas que se constroacutei agrave medida que a obraI

quadro eacute atravessado tambeacutem por uma potecircncia de desenshy avanccedila abrindo misturando desfazendo e refazendo composshy

I I quadramento que o abre para um plano de composiccedilatildeo oumiddot tos cada vez mais ilimitados segundo a penetraccedilatildeo de forccedilasI

um campo de forccedilas infinito Estes procedimentos podem ser coacutesmicas A teoria do romance de Bakhtin vai nesse sentido muito diversos mesmo no nivel da moldura exterior formas mostrando de Rabelais a Dostoievski a coexistecircncia dos comshy

[I irregulares lados que natildeo se juntam molduras pintadas oacuteu ponentes contrapontuais polifocircnicos e plurivocais com um I pontilhados de Seurat quadrados sobre ponta de Mondrian plano de composiccedilatildeo arquitetocircnico ou sinfocircnico29 Um roshyi li tudo o que daacute ao quadro o poder de sair da tela Jamais o mancista como Dos Passos soube atingir uma arte inaudita

shy__jl

gesto do pintor fica na moldura ele sai da moldura e natildeo do contraponto nos compostos que forma entre personagens comeccedila com ela atualidades biografias olhos de cacircmera ao mesmo teropo queI

um plano de composiccedilatildeo se alarga ao infinito para arrastar tudo para a Vida para a Morte para a cidade-cosmos E se27 Sobre todos estes pontos a anaacutelise das formas enquadrantes e da

cidade-cosmos (exemplo de Lausanne) cf Bernard Cache L ameublement retornamos a Proust eacute porque mais do que qualquer outro du territoire (a sair) ele fez com que os dois elementos quase se sucedessem emboshy

28 Eacute Pascal Bonitzer que formou o conceito de desenquadramento ra presentes um no outro o plano de composiccedilatildeo aparece poushypara aplicar ao cinema novas rdaccedilotildees entre os planos ( Cahiers du cineacutema co a pouco para a vida para a morte compostos de sensashyndeg 284 janeiro de 1978) planos disjuntos triturados ou fragmentados ccedilatildeo que ele edifica no curso do tempo perdido ateacute aparecer graccedilas aos quais o cinema se torna uma arte depurando-se das emoccedilotildees

em si mesmo com o tempo reencontrado a forccedila ou antes asmais comuns que arriscam de lhe impedir o desenvolvimento esteacutetico e produzindo-lhe afetos novos (Le champ aveugle Ed Cahiers du cineacutema Gallirnard sisteme des eacutemotions ) 29 Bakhtin Estheacutetique et theacuteorie du roman Gallimard

242 li Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 243

-- ---

forccedilas do tempo puro tornadas sensiacuteveis Tudo comeccedila peshylas Casas que devem todas juntar suas dimensotildees e dar conshysistecircncia a compostos Combray o palacete de Guermantes o salatildeo Verdurin e as casas elas mesmas se ajuntam segundo interfaces mas um Cosmos planetaacuterio jaacute estaacute laacute visiacutevel ao telescoacutepio arruinando-as ou transformando-as e absorvenshydo-as no infinito do fundo Tudo comeccedila por titornelos cada

i

um dos quais como a pequena frase da sonata de Vinteuil natildeo se compotildee apenas em si mesmo mas com -outras sensashy

ccedilotildees variaacuteveis a de uma passante desconhecida a do rosto de Odette a das folhagens do bosque de Boulogne- e tudo tershy I mina no infinito no grade Ritornelo a frase do seacuteptuor em Iperpeacutetua metamorfose o canto dos universos o mundo de antes do homem ou de depois De cada coisa finita Proust faz uni ser de sensaccedilatildeo que natildeo deixa de se conservar mas fushygindo sobre um plano de composiccedilatildeo do Ser seres de fuga

EXEMPLO XII

Natildeo parece que a muacutesica esteja numa outra situashyccedilatildeo talvez mesmo a encarne com mais poder ainda Dizshyse todavia que o som natildeo tem moldura Mas os comshypostos de sensaccedilotildees os blocos sonoros tampouco tecircm extensotildees ou formas enquadrantes que devem em cada caso se ajuntar assegurando um certo fechamento Os casos mais simples satildeo a aacuteria meloacutedica que eacute um ritorshynelo monofocircnico o motivo que jaacute eacute polifocircnico um elemento de Uacutema melodia interveniente no desenvolvishymento de uma outra e fazendo contraponto o tema como objeto de modificaccedilotildees harm-ecircnicas atrav~s das linhas meloacutedicas Essas trecircs formas elementares consshytroacuteem a casa sonora e seu territoacuterio Elas correspondem agraves trecircs modalidades de um ser de sensaccedilatildeo pois a aacuteria eacute uma vibraccedilatildeo o motivo eacute um enlace um acoplamen-

I244 lIL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

jbull

to enquanto o tema natildeo fecha sem se descerrar fender e tambeacutem abrir Com efeito o fenocircmeno musical mais importante que aparece agrave medida que os compostos de sensaccedilotildees sonoras se tornam mais complexos eacute que sua clausura ou fechamento (por junccedilatildeo de suas molduras de suas extensotildees) se acompanha de uma possibilidade de abertura sobre um plano de composiccedilatildeo cada vez mais ilimitado Os seres de muacutesica satildeo como os seres vivos segundo Bergson que compensam sua clausura individuante por uma abertura feita de modulaccedilatildeo reshypeticcedilatildeo transposiccedilatildeo justaposiccedilatildeo Se consideramos a sonata encontramos aiacute uma forma enquadraacutente parshyticularmente riacutegida fundada sobre um bitematismo e da qual o primeiro movimento apresenta as seguintes dimensotildees exposiccedilatildeo do primeiro tema transiccedilatildeo exshyposiccedilatildeo do segundo tema desenvolvimentos sobre o pric rileiro ou o segundo coda desenvolvimento do primeiro com modulaccedilatildeo etc Eacute toda uma casa com seus aposhysentos Mas eacute antes o primeiro movimento que forma assim uma ceacutelula e eacute raro que uiacuten grande muacutesico siga a forma canocircnica os outros moviacutementos podem abrirshyse notadamente o segundo pel~ tema e variaccedilatildeo ateacute que Liszt asseg~re uma fusatildeo dos movimentos no poeshyma sinfocircnico A sonata aparece entatildeo antes como uma forma-cruzamento em que da junccedilatildeo das dimensotildees musicais da clausura dos compostos sonoros nasce a abertura de um plano de composiccedilatildeo

Deste ponto de vista o velho procedimento tema e variaccedilatildeo que manteacutem a moldura harmocircnica do tema daacute lugar a uma espeacutecie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composiccedilatildeo (Chopin Schumann Liszt eacute um novo momento essencial porshyque o trabalho criador natildeo mais versa sobre os comshyponentes sonoros motivos e temas abrindo um plano

245Percepto Mecto e Conceito

~~

mas ao contraacuterio versa diretamente sobre o proacuteprio plano de composiccedilatildeo para fazer nascer dele composshytos bem mais livres e desenquadrados quase agregados incompletos ou sobrecarregados em desequiliacutebrio pershymanente Eacute a cor do som que conta cada vez mais Passa-se da Casa ao Cosmos (segundo uma foacutermula que a obra de Stockhausen retomaraacute) O trabalho do plano de composiccedilatildeo se desenvolve em duas direccedilotildees que engendraratildeo uma desagregaccedilatildeo da moldura tonal os imensos fundos da variaccedilatildeo contiacutenua que fazem enshylaccedilar e se unir as forccedilas tornadas sonoras em Wagner ou os tons justapostos que separam e dispersam as forshyccedilas agenciando suas passagens reversiacuteveis em Debussy Universo-Wagner universo-Debussy Todas as aacuterias todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquashydrados infantis domeacutesticos profissionais nacionais territoriais satildeo carregados no grande Ritornelo um potente canto da terra - o desterritorializado - que se eleva com Mahler Berg ou Bartoacutek E sem duacutevida o plano de composiccedilatildeo engendra sempre novas clausuras como na seacuterie Mas sempre o gesto do muacutesico consiste em desenquadrar encontrar a abertura retornar o plashyno de composiccedilatildeo segundo a foacutermula que obceca Boushylez traccedilar uina transversal irredutiacutevel agrave vertical harmocircshynica como agrave horizontal meloacutedica que conduz blocos soshynoros agrave individualizaccedilatildeo variaacutevel mas tambeacutem abri-las ou fendecirc-las num espaccedilo-tempo que determina sua denshysidaae e seu percurso sobre o plano30 O grande ritorshynelo se eleva agrave medida que nos afastamos dacasa messhy

30 Boulez notadamente Points de repere Ed Bourgois-Le Seuil p 159 e segs (Pensez la musique aujourdhui Ed Gonthier p 59-62) A eXtensatildeo da seacuterie em duraccedilotildees intensidades e timbres natildeo eacute um ato de clausura mas ao contraacuterio uma abertura do que se fechava na middotseacuterie das alturas

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte246

--~=shyq

mo se eacute para retornar a ela jaacute que ningueacutem mais nos reconheceraacute quando retornarmos

Composiccedilatildeo composiccedilatildeo eis a uacutenica definiccedilatildeo da arte A composiccedilatildeo eacute esteacutetica e o que natildeo eacute composto natildeo eacute uma obra de arte Natildeo confundiremos todavia a composiccedilatildeo teacutecshynica trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciecircncia (matemaacutetica fiacutesica quiacutemica anatomia) e a comshyposiccedilatildeo esteacutetica que eacute o trabalho da sensaccedilatildeo Soacute este uacuteltishymo merece plenamente o nome de composiccedilatildeo e nunca uma obra de arte eacute feita por teacutecnica ou pela teacutecnica Certamente a teacutecnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra as palavras e a sintaxe em literatura natildeo apenas a tela em pintura mas sua preparashyccedilatildeo os pigmentos suas misturas os meacutetodos de perspectiva ou ent~o os doze sons da muacutesica ocidental os instrumentos as escalas as alturas E a relaccedilatildeo entre os dois planos oacute

plano de composiccedilatildeo teacutecnica e o plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica natildeo cessa de variar historicamente Sejam dois estados oponiacuteveis na pintura a oacuteleo num primeiro caso o quadro eacute preparado por um fundo branco sobre o qual se desenha e se dilui o desenho (esboccedilo) enfim se potildee a cor as sombras e as luzes No outro caso o fundo se torna cada vez mais espesso opaco e absorvente de modo que ele se colore na divisatildeo e o trabalho se faz em plena massa sobre uma gama escura as correccedilotildees substituindo o esboccedilo o pintor pintaraacute sobre cor depois cor ao lado de cor as cores se tornando cada vez mais relevos a arquitetura sendo assegurada pelo contraste dos complementares e a concordacircncia dos anaacuteshylogos (Van Gogh) eacute por e nagrave cor que se encontraraacute a arshyquitetura mesmo se eacute preciso renunciar aos relevos parareshyconstituir grandes unidades colorantes Eacute verdade que Xavier de Langlais vecirc em todo este segundo caso uma longa decashydecircncia que caino efecircmero e natildeo chega a restaurar uma ar-

Percepto Mecto e Conceito 247

quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem duacutevida esta observaccedilatildeo coloca ao meshynos negativamente a questatildeo do progresso na arte jaacute que Langlais considera que a decadecircncia comeccedila jaacute depois de Van Eyck (um pouco como alguns param a muacutesica no canto greshygoriano ou a filosofia em Santo Tomaacutes) Mas eacute uma obsershyvaccedilatildeo teacutecnica que concerne somente ao material aleacutem de que a duraccedilatildeo do material eacute muito relativa a sensaccedilatildeo eacute de uma outra ordem e possui uma existecircncia em si enquanto o mashyterial dura A relaccedilatildeo da sensaccedilatildeo com o material deve pois ser avaliada nos limites da duraccedilatildeo do material qualquer que ela seja Se haacute progressatildeo em arte eacute porque a arte soacute pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retonws linhas de partilha mudanccedilas de niacuteveis e de escashy

I las Deste ponto de vista a distinccedilatildeo de dois estados da lf

pintura a oacuteleo toma um aspecto inteiramente diferente esshyI

teacutetico e natildeo mais teacutecnico- esta distinccedilatildeo natildeo conduz evishydentemente ao representativo ou natildeo jaacute que nenhuma arte nenhuma sensaccedilatildeo jamais foram representativas

li No primeiro caso a sensaccedilatildeo se realiza no material e natildeo existe fora desta realizaccedilatildeo Diriacuteamos que a sensaccedilatildeo (o composto de sensaccedilotildees) se projeta sobre o plano de composhysiccedilatildeo teacutecnica bem preparado de sorte que o plano -de comshyposiccedilatildeo esteacutetica venha recobri-lo Eacute preciso pois que o mashyterial compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graccedilas aos quais a sensaccedilatildeo projetada natildeo se realiza somenshyte cobrindo o qu1dro mas segundo uma profundidade A arte desfruta entatildeo de uma aparecircncia de transcendecircncia que se exprime natildeo numa coisa por representar mas no caraacuteter paradigmaacutetico da projeccedilatildeo e no caraacuteter simboacutelico da persshypectiva A Figura eacute como a fabulaccedilatildeo segundo Bergson tem

31 Xavier de Langlais La technique de la peinture agrave lhuile Ed Flammarion (E Goethe Traiteacute des couleurs Ed Triades sect 902-909)

248 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 249

middot i

uma origem religiosa Mas quando ela se torna esteacutetica sua transcendecircncia sensitiva entra numa oposiccedilatildeo surda ou abe-rshyta com a transcendecircncia suprasensiacutevel das religiotildees

No segundo caso natildeo eacute mais a sensaccedilatildeo que se realiza no material eacute antes o material que entra na sensaccedilatildeo Cershytamente a sensaccedilatildeo natildeo existe mais fora dessa entrada e o plano de composiccedilatildeo teacutecnica natildeo mais tem autonomia a natildeo ser no primeiro caso natildeo vale jamais por si mesmo Mas diriacuteamos agora que ele sobe no plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica e lhe daacute uma espessura proacutepria como diz Damisch inshydependente de qualquer perspectiva e profundidade Eacute o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transshycendecircncia aparente ou-de um modelo paradigmaacutetico e conshyfessam seu ateiacutesmo inocente seu paganismo E sem duacutevida entre estes dois casos estes dois estados da sensaccedilatildeo estes dois poacutelos da teacutecnica as transiccedilotildees as combinaccedilotildees e as coexistecircncias se fazem constantemente (por exemplo o trashybalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens) satildeo poacutelos abstratos ao inveacutes de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com oacuteleo e solvente se volta cada vez mais na direccedilatildeo do segundo poacutelo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composiccedilatilde~ esteacutetica -Eacute por isso -que eacute tatildeo falso definir a sensaccedilatildeo na pintura moderna pela admissatildeo de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a esshypessura natildeo precisa ser larga ou profunda Pocircde-se dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfiacuteshycie basta-lhe apoiar-se sobre os vazios e os plenos do pashypel Canson Eacute uma pintura que natildeo mais tem fundo porshyque o baixo emerge a superfiacutecie eacute esburacaacutevel ou o plashyno de composiccedilatildeo ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspecshytiva independentemente das sombras e mesmo da ordem

i r I li

I 32 Cf Christian Bonnefbi intervieweacute et commenteacute par Yvesshy

I Alain Bois Macula S-6

33 Damisch Fenecirctre jaime cadmium ou les dessous de la peinture Ed du Seuil pp 275-305 (e p 80 a espessura do plano em Pollock) Dashy

li misch eacute o autor que mais insistiu sobre a relaccedilatildeo -arte-pertsamento pinshytura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instauraacute-la Mallarmeacute fazia da espessura do livro uma dimensatildeo distinta da proshy) fundidade cf Jacques Scheacuterer Le livre de Mallarmeacute Gallimard p 55shy

I tema que Boulez retoma por sua vez para a muacutesica (Points de repere p 161) iI

li 250 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

I I

cromaacutetica da cor (o colorista arbitraacuterio) Natildeo mais se recoshybre faz-se subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar Eacute uma promoccedilatildeo do solo e a escultura pode torshy

I nar-se plana jaacute que o plano se estratifica Natildeo magraveis se pinshyI ta sobre mas sob A arte informal levou muito longe

estas novas potecircncias da textura essa elevaccedilatildeo do solo com I Dubuffet e tambeacutem o expressionismo abstrato a arte mishy

nimalista procedendo por impregnaccedilotildees fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atraacutes de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem agrave vista do pintor o que enshytregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes estados a pintura eacute-penshysamento a visatildeo existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta

Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdashydeiro conceito mostrando que o tranccedilado poderia bem preencher para a pintura futura funccedilatildeo anaacuteloga agravequela que foi a da perspectiva O quemiddotnatildeo eacute proacuteprio da pintura jaacute que Damisch reencontra a mesma distinccedilatildeo no niacutevel do plano arquitetura quando Scarpa por exemplo rejeita o movishymento da projeccedilatildeo e os mecanismos da perspectiva para ins~ crever os volumes na espessura do proacuteprio plano33 bull E da literatura agrave muacutesica uma espessura material se afirma que

--~ middot

natildeo se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal Eacute umr I traccedilo caracteriacutestico da literatura moderna quando as palashyr vras e a sintaxe sobem no plano de composiccedilatildeo e o cavam I em lugar de colocaacute-lo em perspectiva E a muacutesica quando

renuncia agrave projeccedilatildeo como agraves perspeCtivas que impotildeem a alshyI tura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano soshynoro uma espessura singular da qual testemunham elemenshy

I tos muito diferentes a evoluccedilatildeo dos estudos parapiano que deixam de ser somente teacutecnicas para tornar-se estudos de

jmiddot composiccedilatildeo (com a extensatildeo que lhes daacute Debussy) a imshy

portacircncia decisiva que toma a orquestraccedilatildeo em Berlioz a i subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferashyI I ccedilatildeo dos afectos de percussatildeo com os metais as peles e as mashy

deiras e sua ligaccedilatildeo com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparaacuteveis do material (Varese) a redeshy

I finiccedilatildeo do percepto em funccedilatildeo do ruiacutedo do som bruto e I complexo (Cage) natildeo apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendecircnshy

cia a uma apariccedilatildeo natildeo-cromaacutetica do som num continuum infiiuumlto (muacutesica eletrocircnica ou eletro-acuacutestica)I

I Soacute haacute um plano uacutenico no sentido em que a arte natildeo

I comporta outro plano diferente do da composiccedilatildeo esteacutetica

I o plano teacutecnico com efeito eacute necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composiccedilatildeo esteacutetica Eacute sob esta conshydiccedilatildeo que a mateacuteria se torna expressiva o composto de senshysaccedilotildees se realiza no material ou o material entra no comshyI posto mas sempre de modo a se situar sobre um plano deI

I composiccedilatildeo propriamente esteacutetico Haacute muitos problemasI teacutecnicos em arte e a ciecircncia pode intervir em sua soluccedilatildeo

mas eles soacute se colocam em funccedilatildeo de problemas de composhysiccedilatildeo esteacutetica que concernem aos compostos de sensaccedilotildees e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus mateshyriais Toda sensaccedilatildeo eacute uma questatildeo mesmo se soacute o silecircncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em enshy

251Percepto Afecto e Conceito

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 18: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

-- ---

forccedilas do tempo puro tornadas sensiacuteveis Tudo comeccedila peshylas Casas que devem todas juntar suas dimensotildees e dar conshysistecircncia a compostos Combray o palacete de Guermantes o salatildeo Verdurin e as casas elas mesmas se ajuntam segundo interfaces mas um Cosmos planetaacuterio jaacute estaacute laacute visiacutevel ao telescoacutepio arruinando-as ou transformando-as e absorvenshydo-as no infinito do fundo Tudo comeccedila por titornelos cada

i

um dos quais como a pequena frase da sonata de Vinteuil natildeo se compotildee apenas em si mesmo mas com -outras sensashy

ccedilotildees variaacuteveis a de uma passante desconhecida a do rosto de Odette a das folhagens do bosque de Boulogne- e tudo tershy I mina no infinito no grade Ritornelo a frase do seacuteptuor em Iperpeacutetua metamorfose o canto dos universos o mundo de antes do homem ou de depois De cada coisa finita Proust faz uni ser de sensaccedilatildeo que natildeo deixa de se conservar mas fushygindo sobre um plano de composiccedilatildeo do Ser seres de fuga

EXEMPLO XII

Natildeo parece que a muacutesica esteja numa outra situashyccedilatildeo talvez mesmo a encarne com mais poder ainda Dizshyse todavia que o som natildeo tem moldura Mas os comshypostos de sensaccedilotildees os blocos sonoros tampouco tecircm extensotildees ou formas enquadrantes que devem em cada caso se ajuntar assegurando um certo fechamento Os casos mais simples satildeo a aacuteria meloacutedica que eacute um ritorshynelo monofocircnico o motivo que jaacute eacute polifocircnico um elemento de Uacutema melodia interveniente no desenvolvishymento de uma outra e fazendo contraponto o tema como objeto de modificaccedilotildees harm-ecircnicas atrav~s das linhas meloacutedicas Essas trecircs formas elementares consshytroacuteem a casa sonora e seu territoacuterio Elas correspondem agraves trecircs modalidades de um ser de sensaccedilatildeo pois a aacuteria eacute uma vibraccedilatildeo o motivo eacute um enlace um acoplamen-

I244 lIL Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

jbull

to enquanto o tema natildeo fecha sem se descerrar fender e tambeacutem abrir Com efeito o fenocircmeno musical mais importante que aparece agrave medida que os compostos de sensaccedilotildees sonoras se tornam mais complexos eacute que sua clausura ou fechamento (por junccedilatildeo de suas molduras de suas extensotildees) se acompanha de uma possibilidade de abertura sobre um plano de composiccedilatildeo cada vez mais ilimitado Os seres de muacutesica satildeo como os seres vivos segundo Bergson que compensam sua clausura individuante por uma abertura feita de modulaccedilatildeo reshypeticcedilatildeo transposiccedilatildeo justaposiccedilatildeo Se consideramos a sonata encontramos aiacute uma forma enquadraacutente parshyticularmente riacutegida fundada sobre um bitematismo e da qual o primeiro movimento apresenta as seguintes dimensotildees exposiccedilatildeo do primeiro tema transiccedilatildeo exshyposiccedilatildeo do segundo tema desenvolvimentos sobre o pric rileiro ou o segundo coda desenvolvimento do primeiro com modulaccedilatildeo etc Eacute toda uma casa com seus aposhysentos Mas eacute antes o primeiro movimento que forma assim uma ceacutelula e eacute raro que uiacuten grande muacutesico siga a forma canocircnica os outros moviacutementos podem abrirshyse notadamente o segundo pel~ tema e variaccedilatildeo ateacute que Liszt asseg~re uma fusatildeo dos movimentos no poeshyma sinfocircnico A sonata aparece entatildeo antes como uma forma-cruzamento em que da junccedilatildeo das dimensotildees musicais da clausura dos compostos sonoros nasce a abertura de um plano de composiccedilatildeo

Deste ponto de vista o velho procedimento tema e variaccedilatildeo que manteacutem a moldura harmocircnica do tema daacute lugar a uma espeacutecie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composiccedilatildeo (Chopin Schumann Liszt eacute um novo momento essencial porshyque o trabalho criador natildeo mais versa sobre os comshyponentes sonoros motivos e temas abrindo um plano

245Percepto Mecto e Conceito

~~

mas ao contraacuterio versa diretamente sobre o proacuteprio plano de composiccedilatildeo para fazer nascer dele composshytos bem mais livres e desenquadrados quase agregados incompletos ou sobrecarregados em desequiliacutebrio pershymanente Eacute a cor do som que conta cada vez mais Passa-se da Casa ao Cosmos (segundo uma foacutermula que a obra de Stockhausen retomaraacute) O trabalho do plano de composiccedilatildeo se desenvolve em duas direccedilotildees que engendraratildeo uma desagregaccedilatildeo da moldura tonal os imensos fundos da variaccedilatildeo contiacutenua que fazem enshylaccedilar e se unir as forccedilas tornadas sonoras em Wagner ou os tons justapostos que separam e dispersam as forshyccedilas agenciando suas passagens reversiacuteveis em Debussy Universo-Wagner universo-Debussy Todas as aacuterias todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquashydrados infantis domeacutesticos profissionais nacionais territoriais satildeo carregados no grande Ritornelo um potente canto da terra - o desterritorializado - que se eleva com Mahler Berg ou Bartoacutek E sem duacutevida o plano de composiccedilatildeo engendra sempre novas clausuras como na seacuterie Mas sempre o gesto do muacutesico consiste em desenquadrar encontrar a abertura retornar o plashyno de composiccedilatildeo segundo a foacutermula que obceca Boushylez traccedilar uina transversal irredutiacutevel agrave vertical harmocircshynica como agrave horizontal meloacutedica que conduz blocos soshynoros agrave individualizaccedilatildeo variaacutevel mas tambeacutem abri-las ou fendecirc-las num espaccedilo-tempo que determina sua denshysidaae e seu percurso sobre o plano30 O grande ritorshynelo se eleva agrave medida que nos afastamos dacasa messhy

30 Boulez notadamente Points de repere Ed Bourgois-Le Seuil p 159 e segs (Pensez la musique aujourdhui Ed Gonthier p 59-62) A eXtensatildeo da seacuterie em duraccedilotildees intensidades e timbres natildeo eacute um ato de clausura mas ao contraacuterio uma abertura do que se fechava na middotseacuterie das alturas

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte246

--~=shyq

mo se eacute para retornar a ela jaacute que ningueacutem mais nos reconheceraacute quando retornarmos

Composiccedilatildeo composiccedilatildeo eis a uacutenica definiccedilatildeo da arte A composiccedilatildeo eacute esteacutetica e o que natildeo eacute composto natildeo eacute uma obra de arte Natildeo confundiremos todavia a composiccedilatildeo teacutecshynica trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciecircncia (matemaacutetica fiacutesica quiacutemica anatomia) e a comshyposiccedilatildeo esteacutetica que eacute o trabalho da sensaccedilatildeo Soacute este uacuteltishymo merece plenamente o nome de composiccedilatildeo e nunca uma obra de arte eacute feita por teacutecnica ou pela teacutecnica Certamente a teacutecnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra as palavras e a sintaxe em literatura natildeo apenas a tela em pintura mas sua preparashyccedilatildeo os pigmentos suas misturas os meacutetodos de perspectiva ou ent~o os doze sons da muacutesica ocidental os instrumentos as escalas as alturas E a relaccedilatildeo entre os dois planos oacute

plano de composiccedilatildeo teacutecnica e o plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica natildeo cessa de variar historicamente Sejam dois estados oponiacuteveis na pintura a oacuteleo num primeiro caso o quadro eacute preparado por um fundo branco sobre o qual se desenha e se dilui o desenho (esboccedilo) enfim se potildee a cor as sombras e as luzes No outro caso o fundo se torna cada vez mais espesso opaco e absorvente de modo que ele se colore na divisatildeo e o trabalho se faz em plena massa sobre uma gama escura as correccedilotildees substituindo o esboccedilo o pintor pintaraacute sobre cor depois cor ao lado de cor as cores se tornando cada vez mais relevos a arquitetura sendo assegurada pelo contraste dos complementares e a concordacircncia dos anaacuteshylogos (Van Gogh) eacute por e nagrave cor que se encontraraacute a arshyquitetura mesmo se eacute preciso renunciar aos relevos parareshyconstituir grandes unidades colorantes Eacute verdade que Xavier de Langlais vecirc em todo este segundo caso uma longa decashydecircncia que caino efecircmero e natildeo chega a restaurar uma ar-

Percepto Mecto e Conceito 247

quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem duacutevida esta observaccedilatildeo coloca ao meshynos negativamente a questatildeo do progresso na arte jaacute que Langlais considera que a decadecircncia comeccedila jaacute depois de Van Eyck (um pouco como alguns param a muacutesica no canto greshygoriano ou a filosofia em Santo Tomaacutes) Mas eacute uma obsershyvaccedilatildeo teacutecnica que concerne somente ao material aleacutem de que a duraccedilatildeo do material eacute muito relativa a sensaccedilatildeo eacute de uma outra ordem e possui uma existecircncia em si enquanto o mashyterial dura A relaccedilatildeo da sensaccedilatildeo com o material deve pois ser avaliada nos limites da duraccedilatildeo do material qualquer que ela seja Se haacute progressatildeo em arte eacute porque a arte soacute pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retonws linhas de partilha mudanccedilas de niacuteveis e de escashy

I las Deste ponto de vista a distinccedilatildeo de dois estados da lf

pintura a oacuteleo toma um aspecto inteiramente diferente esshyI

teacutetico e natildeo mais teacutecnico- esta distinccedilatildeo natildeo conduz evishydentemente ao representativo ou natildeo jaacute que nenhuma arte nenhuma sensaccedilatildeo jamais foram representativas

li No primeiro caso a sensaccedilatildeo se realiza no material e natildeo existe fora desta realizaccedilatildeo Diriacuteamos que a sensaccedilatildeo (o composto de sensaccedilotildees) se projeta sobre o plano de composhysiccedilatildeo teacutecnica bem preparado de sorte que o plano -de comshyposiccedilatildeo esteacutetica venha recobri-lo Eacute preciso pois que o mashyterial compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graccedilas aos quais a sensaccedilatildeo projetada natildeo se realiza somenshyte cobrindo o qu1dro mas segundo uma profundidade A arte desfruta entatildeo de uma aparecircncia de transcendecircncia que se exprime natildeo numa coisa por representar mas no caraacuteter paradigmaacutetico da projeccedilatildeo e no caraacuteter simboacutelico da persshypectiva A Figura eacute como a fabulaccedilatildeo segundo Bergson tem

31 Xavier de Langlais La technique de la peinture agrave lhuile Ed Flammarion (E Goethe Traiteacute des couleurs Ed Triades sect 902-909)

248 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 249

middot i

uma origem religiosa Mas quando ela se torna esteacutetica sua transcendecircncia sensitiva entra numa oposiccedilatildeo surda ou abe-rshyta com a transcendecircncia suprasensiacutevel das religiotildees

No segundo caso natildeo eacute mais a sensaccedilatildeo que se realiza no material eacute antes o material que entra na sensaccedilatildeo Cershytamente a sensaccedilatildeo natildeo existe mais fora dessa entrada e o plano de composiccedilatildeo teacutecnica natildeo mais tem autonomia a natildeo ser no primeiro caso natildeo vale jamais por si mesmo Mas diriacuteamos agora que ele sobe no plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica e lhe daacute uma espessura proacutepria como diz Damisch inshydependente de qualquer perspectiva e profundidade Eacute o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transshycendecircncia aparente ou-de um modelo paradigmaacutetico e conshyfessam seu ateiacutesmo inocente seu paganismo E sem duacutevida entre estes dois casos estes dois estados da sensaccedilatildeo estes dois poacutelos da teacutecnica as transiccedilotildees as combinaccedilotildees e as coexistecircncias se fazem constantemente (por exemplo o trashybalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens) satildeo poacutelos abstratos ao inveacutes de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com oacuteleo e solvente se volta cada vez mais na direccedilatildeo do segundo poacutelo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composiccedilatilde~ esteacutetica -Eacute por isso -que eacute tatildeo falso definir a sensaccedilatildeo na pintura moderna pela admissatildeo de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a esshypessura natildeo precisa ser larga ou profunda Pocircde-se dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfiacuteshycie basta-lhe apoiar-se sobre os vazios e os plenos do pashypel Canson Eacute uma pintura que natildeo mais tem fundo porshyque o baixo emerge a superfiacutecie eacute esburacaacutevel ou o plashyno de composiccedilatildeo ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspecshytiva independentemente das sombras e mesmo da ordem

i r I li

I 32 Cf Christian Bonnefbi intervieweacute et commenteacute par Yvesshy

I Alain Bois Macula S-6

33 Damisch Fenecirctre jaime cadmium ou les dessous de la peinture Ed du Seuil pp 275-305 (e p 80 a espessura do plano em Pollock) Dashy

li misch eacute o autor que mais insistiu sobre a relaccedilatildeo -arte-pertsamento pinshytura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instauraacute-la Mallarmeacute fazia da espessura do livro uma dimensatildeo distinta da proshy) fundidade cf Jacques Scheacuterer Le livre de Mallarmeacute Gallimard p 55shy

I tema que Boulez retoma por sua vez para a muacutesica (Points de repere p 161) iI

li 250 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

I I

cromaacutetica da cor (o colorista arbitraacuterio) Natildeo mais se recoshybre faz-se subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar Eacute uma promoccedilatildeo do solo e a escultura pode torshy

I nar-se plana jaacute que o plano se estratifica Natildeo magraveis se pinshyI ta sobre mas sob A arte informal levou muito longe

estas novas potecircncias da textura essa elevaccedilatildeo do solo com I Dubuffet e tambeacutem o expressionismo abstrato a arte mishy

nimalista procedendo por impregnaccedilotildees fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atraacutes de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem agrave vista do pintor o que enshytregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes estados a pintura eacute-penshysamento a visatildeo existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta

Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdashydeiro conceito mostrando que o tranccedilado poderia bem preencher para a pintura futura funccedilatildeo anaacuteloga agravequela que foi a da perspectiva O quemiddotnatildeo eacute proacuteprio da pintura jaacute que Damisch reencontra a mesma distinccedilatildeo no niacutevel do plano arquitetura quando Scarpa por exemplo rejeita o movishymento da projeccedilatildeo e os mecanismos da perspectiva para ins~ crever os volumes na espessura do proacuteprio plano33 bull E da literatura agrave muacutesica uma espessura material se afirma que

--~ middot

natildeo se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal Eacute umr I traccedilo caracteriacutestico da literatura moderna quando as palashyr vras e a sintaxe sobem no plano de composiccedilatildeo e o cavam I em lugar de colocaacute-lo em perspectiva E a muacutesica quando

renuncia agrave projeccedilatildeo como agraves perspeCtivas que impotildeem a alshyI tura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano soshynoro uma espessura singular da qual testemunham elemenshy

I tos muito diferentes a evoluccedilatildeo dos estudos parapiano que deixam de ser somente teacutecnicas para tornar-se estudos de

jmiddot composiccedilatildeo (com a extensatildeo que lhes daacute Debussy) a imshy

portacircncia decisiva que toma a orquestraccedilatildeo em Berlioz a i subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferashyI I ccedilatildeo dos afectos de percussatildeo com os metais as peles e as mashy

deiras e sua ligaccedilatildeo com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparaacuteveis do material (Varese) a redeshy

I finiccedilatildeo do percepto em funccedilatildeo do ruiacutedo do som bruto e I complexo (Cage) natildeo apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendecircnshy

cia a uma apariccedilatildeo natildeo-cromaacutetica do som num continuum infiiuumlto (muacutesica eletrocircnica ou eletro-acuacutestica)I

I Soacute haacute um plano uacutenico no sentido em que a arte natildeo

I comporta outro plano diferente do da composiccedilatildeo esteacutetica

I o plano teacutecnico com efeito eacute necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composiccedilatildeo esteacutetica Eacute sob esta conshydiccedilatildeo que a mateacuteria se torna expressiva o composto de senshysaccedilotildees se realiza no material ou o material entra no comshyI posto mas sempre de modo a se situar sobre um plano deI

I composiccedilatildeo propriamente esteacutetico Haacute muitos problemasI teacutecnicos em arte e a ciecircncia pode intervir em sua soluccedilatildeo

mas eles soacute se colocam em funccedilatildeo de problemas de composhysiccedilatildeo esteacutetica que concernem aos compostos de sensaccedilotildees e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus mateshyriais Toda sensaccedilatildeo eacute uma questatildeo mesmo se soacute o silecircncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em enshy

251Percepto Afecto e Conceito

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 19: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

mas ao contraacuterio versa diretamente sobre o proacuteprio plano de composiccedilatildeo para fazer nascer dele composshytos bem mais livres e desenquadrados quase agregados incompletos ou sobrecarregados em desequiliacutebrio pershymanente Eacute a cor do som que conta cada vez mais Passa-se da Casa ao Cosmos (segundo uma foacutermula que a obra de Stockhausen retomaraacute) O trabalho do plano de composiccedilatildeo se desenvolve em duas direccedilotildees que engendraratildeo uma desagregaccedilatildeo da moldura tonal os imensos fundos da variaccedilatildeo contiacutenua que fazem enshylaccedilar e se unir as forccedilas tornadas sonoras em Wagner ou os tons justapostos que separam e dispersam as forshyccedilas agenciando suas passagens reversiacuteveis em Debussy Universo-Wagner universo-Debussy Todas as aacuterias todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquashydrados infantis domeacutesticos profissionais nacionais territoriais satildeo carregados no grande Ritornelo um potente canto da terra - o desterritorializado - que se eleva com Mahler Berg ou Bartoacutek E sem duacutevida o plano de composiccedilatildeo engendra sempre novas clausuras como na seacuterie Mas sempre o gesto do muacutesico consiste em desenquadrar encontrar a abertura retornar o plashyno de composiccedilatildeo segundo a foacutermula que obceca Boushylez traccedilar uina transversal irredutiacutevel agrave vertical harmocircshynica como agrave horizontal meloacutedica que conduz blocos soshynoros agrave individualizaccedilatildeo variaacutevel mas tambeacutem abri-las ou fendecirc-las num espaccedilo-tempo que determina sua denshysidaae e seu percurso sobre o plano30 O grande ritorshynelo se eleva agrave medida que nos afastamos dacasa messhy

30 Boulez notadamente Points de repere Ed Bourgois-Le Seuil p 159 e segs (Pensez la musique aujourdhui Ed Gonthier p 59-62) A eXtensatildeo da seacuterie em duraccedilotildees intensidades e timbres natildeo eacute um ato de clausura mas ao contraacuterio uma abertura do que se fechava na middotseacuterie das alturas

11 Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte246

--~=shyq

mo se eacute para retornar a ela jaacute que ningueacutem mais nos reconheceraacute quando retornarmos

Composiccedilatildeo composiccedilatildeo eis a uacutenica definiccedilatildeo da arte A composiccedilatildeo eacute esteacutetica e o que natildeo eacute composto natildeo eacute uma obra de arte Natildeo confundiremos todavia a composiccedilatildeo teacutecshynica trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciecircncia (matemaacutetica fiacutesica quiacutemica anatomia) e a comshyposiccedilatildeo esteacutetica que eacute o trabalho da sensaccedilatildeo Soacute este uacuteltishymo merece plenamente o nome de composiccedilatildeo e nunca uma obra de arte eacute feita por teacutecnica ou pela teacutecnica Certamente a teacutecnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra as palavras e a sintaxe em literatura natildeo apenas a tela em pintura mas sua preparashyccedilatildeo os pigmentos suas misturas os meacutetodos de perspectiva ou ent~o os doze sons da muacutesica ocidental os instrumentos as escalas as alturas E a relaccedilatildeo entre os dois planos oacute

plano de composiccedilatildeo teacutecnica e o plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica natildeo cessa de variar historicamente Sejam dois estados oponiacuteveis na pintura a oacuteleo num primeiro caso o quadro eacute preparado por um fundo branco sobre o qual se desenha e se dilui o desenho (esboccedilo) enfim se potildee a cor as sombras e as luzes No outro caso o fundo se torna cada vez mais espesso opaco e absorvente de modo que ele se colore na divisatildeo e o trabalho se faz em plena massa sobre uma gama escura as correccedilotildees substituindo o esboccedilo o pintor pintaraacute sobre cor depois cor ao lado de cor as cores se tornando cada vez mais relevos a arquitetura sendo assegurada pelo contraste dos complementares e a concordacircncia dos anaacuteshylogos (Van Gogh) eacute por e nagrave cor que se encontraraacute a arshyquitetura mesmo se eacute preciso renunciar aos relevos parareshyconstituir grandes unidades colorantes Eacute verdade que Xavier de Langlais vecirc em todo este segundo caso uma longa decashydecircncia que caino efecircmero e natildeo chega a restaurar uma ar-

Percepto Mecto e Conceito 247

quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem duacutevida esta observaccedilatildeo coloca ao meshynos negativamente a questatildeo do progresso na arte jaacute que Langlais considera que a decadecircncia comeccedila jaacute depois de Van Eyck (um pouco como alguns param a muacutesica no canto greshygoriano ou a filosofia em Santo Tomaacutes) Mas eacute uma obsershyvaccedilatildeo teacutecnica que concerne somente ao material aleacutem de que a duraccedilatildeo do material eacute muito relativa a sensaccedilatildeo eacute de uma outra ordem e possui uma existecircncia em si enquanto o mashyterial dura A relaccedilatildeo da sensaccedilatildeo com o material deve pois ser avaliada nos limites da duraccedilatildeo do material qualquer que ela seja Se haacute progressatildeo em arte eacute porque a arte soacute pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retonws linhas de partilha mudanccedilas de niacuteveis e de escashy

I las Deste ponto de vista a distinccedilatildeo de dois estados da lf

pintura a oacuteleo toma um aspecto inteiramente diferente esshyI

teacutetico e natildeo mais teacutecnico- esta distinccedilatildeo natildeo conduz evishydentemente ao representativo ou natildeo jaacute que nenhuma arte nenhuma sensaccedilatildeo jamais foram representativas

li No primeiro caso a sensaccedilatildeo se realiza no material e natildeo existe fora desta realizaccedilatildeo Diriacuteamos que a sensaccedilatildeo (o composto de sensaccedilotildees) se projeta sobre o plano de composhysiccedilatildeo teacutecnica bem preparado de sorte que o plano -de comshyposiccedilatildeo esteacutetica venha recobri-lo Eacute preciso pois que o mashyterial compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graccedilas aos quais a sensaccedilatildeo projetada natildeo se realiza somenshyte cobrindo o qu1dro mas segundo uma profundidade A arte desfruta entatildeo de uma aparecircncia de transcendecircncia que se exprime natildeo numa coisa por representar mas no caraacuteter paradigmaacutetico da projeccedilatildeo e no caraacuteter simboacutelico da persshypectiva A Figura eacute como a fabulaccedilatildeo segundo Bergson tem

31 Xavier de Langlais La technique de la peinture agrave lhuile Ed Flammarion (E Goethe Traiteacute des couleurs Ed Triades sect 902-909)

248 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 249

middot i

uma origem religiosa Mas quando ela se torna esteacutetica sua transcendecircncia sensitiva entra numa oposiccedilatildeo surda ou abe-rshyta com a transcendecircncia suprasensiacutevel das religiotildees

No segundo caso natildeo eacute mais a sensaccedilatildeo que se realiza no material eacute antes o material que entra na sensaccedilatildeo Cershytamente a sensaccedilatildeo natildeo existe mais fora dessa entrada e o plano de composiccedilatildeo teacutecnica natildeo mais tem autonomia a natildeo ser no primeiro caso natildeo vale jamais por si mesmo Mas diriacuteamos agora que ele sobe no plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica e lhe daacute uma espessura proacutepria como diz Damisch inshydependente de qualquer perspectiva e profundidade Eacute o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transshycendecircncia aparente ou-de um modelo paradigmaacutetico e conshyfessam seu ateiacutesmo inocente seu paganismo E sem duacutevida entre estes dois casos estes dois estados da sensaccedilatildeo estes dois poacutelos da teacutecnica as transiccedilotildees as combinaccedilotildees e as coexistecircncias se fazem constantemente (por exemplo o trashybalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens) satildeo poacutelos abstratos ao inveacutes de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com oacuteleo e solvente se volta cada vez mais na direccedilatildeo do segundo poacutelo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composiccedilatilde~ esteacutetica -Eacute por isso -que eacute tatildeo falso definir a sensaccedilatildeo na pintura moderna pela admissatildeo de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a esshypessura natildeo precisa ser larga ou profunda Pocircde-se dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfiacuteshycie basta-lhe apoiar-se sobre os vazios e os plenos do pashypel Canson Eacute uma pintura que natildeo mais tem fundo porshyque o baixo emerge a superfiacutecie eacute esburacaacutevel ou o plashyno de composiccedilatildeo ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspecshytiva independentemente das sombras e mesmo da ordem

i r I li

I 32 Cf Christian Bonnefbi intervieweacute et commenteacute par Yvesshy

I Alain Bois Macula S-6

33 Damisch Fenecirctre jaime cadmium ou les dessous de la peinture Ed du Seuil pp 275-305 (e p 80 a espessura do plano em Pollock) Dashy

li misch eacute o autor que mais insistiu sobre a relaccedilatildeo -arte-pertsamento pinshytura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instauraacute-la Mallarmeacute fazia da espessura do livro uma dimensatildeo distinta da proshy) fundidade cf Jacques Scheacuterer Le livre de Mallarmeacute Gallimard p 55shy

I tema que Boulez retoma por sua vez para a muacutesica (Points de repere p 161) iI

li 250 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

I I

cromaacutetica da cor (o colorista arbitraacuterio) Natildeo mais se recoshybre faz-se subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar Eacute uma promoccedilatildeo do solo e a escultura pode torshy

I nar-se plana jaacute que o plano se estratifica Natildeo magraveis se pinshyI ta sobre mas sob A arte informal levou muito longe

estas novas potecircncias da textura essa elevaccedilatildeo do solo com I Dubuffet e tambeacutem o expressionismo abstrato a arte mishy

nimalista procedendo por impregnaccedilotildees fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atraacutes de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem agrave vista do pintor o que enshytregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes estados a pintura eacute-penshysamento a visatildeo existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta

Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdashydeiro conceito mostrando que o tranccedilado poderia bem preencher para a pintura futura funccedilatildeo anaacuteloga agravequela que foi a da perspectiva O quemiddotnatildeo eacute proacuteprio da pintura jaacute que Damisch reencontra a mesma distinccedilatildeo no niacutevel do plano arquitetura quando Scarpa por exemplo rejeita o movishymento da projeccedilatildeo e os mecanismos da perspectiva para ins~ crever os volumes na espessura do proacuteprio plano33 bull E da literatura agrave muacutesica uma espessura material se afirma que

--~ middot

natildeo se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal Eacute umr I traccedilo caracteriacutestico da literatura moderna quando as palashyr vras e a sintaxe sobem no plano de composiccedilatildeo e o cavam I em lugar de colocaacute-lo em perspectiva E a muacutesica quando

renuncia agrave projeccedilatildeo como agraves perspeCtivas que impotildeem a alshyI tura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano soshynoro uma espessura singular da qual testemunham elemenshy

I tos muito diferentes a evoluccedilatildeo dos estudos parapiano que deixam de ser somente teacutecnicas para tornar-se estudos de

jmiddot composiccedilatildeo (com a extensatildeo que lhes daacute Debussy) a imshy

portacircncia decisiva que toma a orquestraccedilatildeo em Berlioz a i subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferashyI I ccedilatildeo dos afectos de percussatildeo com os metais as peles e as mashy

deiras e sua ligaccedilatildeo com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparaacuteveis do material (Varese) a redeshy

I finiccedilatildeo do percepto em funccedilatildeo do ruiacutedo do som bruto e I complexo (Cage) natildeo apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendecircnshy

cia a uma apariccedilatildeo natildeo-cromaacutetica do som num continuum infiiuumlto (muacutesica eletrocircnica ou eletro-acuacutestica)I

I Soacute haacute um plano uacutenico no sentido em que a arte natildeo

I comporta outro plano diferente do da composiccedilatildeo esteacutetica

I o plano teacutecnico com efeito eacute necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composiccedilatildeo esteacutetica Eacute sob esta conshydiccedilatildeo que a mateacuteria se torna expressiva o composto de senshysaccedilotildees se realiza no material ou o material entra no comshyI posto mas sempre de modo a se situar sobre um plano deI

I composiccedilatildeo propriamente esteacutetico Haacute muitos problemasI teacutecnicos em arte e a ciecircncia pode intervir em sua soluccedilatildeo

mas eles soacute se colocam em funccedilatildeo de problemas de composhysiccedilatildeo esteacutetica que concernem aos compostos de sensaccedilotildees e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus mateshyriais Toda sensaccedilatildeo eacute uma questatildeo mesmo se soacute o silecircncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em enshy

251Percepto Afecto e Conceito

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 20: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem duacutevida esta observaccedilatildeo coloca ao meshynos negativamente a questatildeo do progresso na arte jaacute que Langlais considera que a decadecircncia comeccedila jaacute depois de Van Eyck (um pouco como alguns param a muacutesica no canto greshygoriano ou a filosofia em Santo Tomaacutes) Mas eacute uma obsershyvaccedilatildeo teacutecnica que concerne somente ao material aleacutem de que a duraccedilatildeo do material eacute muito relativa a sensaccedilatildeo eacute de uma outra ordem e possui uma existecircncia em si enquanto o mashyterial dura A relaccedilatildeo da sensaccedilatildeo com o material deve pois ser avaliada nos limites da duraccedilatildeo do material qualquer que ela seja Se haacute progressatildeo em arte eacute porque a arte soacute pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retonws linhas de partilha mudanccedilas de niacuteveis e de escashy

I las Deste ponto de vista a distinccedilatildeo de dois estados da lf

pintura a oacuteleo toma um aspecto inteiramente diferente esshyI

teacutetico e natildeo mais teacutecnico- esta distinccedilatildeo natildeo conduz evishydentemente ao representativo ou natildeo jaacute que nenhuma arte nenhuma sensaccedilatildeo jamais foram representativas

li No primeiro caso a sensaccedilatildeo se realiza no material e natildeo existe fora desta realizaccedilatildeo Diriacuteamos que a sensaccedilatildeo (o composto de sensaccedilotildees) se projeta sobre o plano de composhysiccedilatildeo teacutecnica bem preparado de sorte que o plano -de comshyposiccedilatildeo esteacutetica venha recobri-lo Eacute preciso pois que o mashyterial compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graccedilas aos quais a sensaccedilatildeo projetada natildeo se realiza somenshyte cobrindo o qu1dro mas segundo uma profundidade A arte desfruta entatildeo de uma aparecircncia de transcendecircncia que se exprime natildeo numa coisa por representar mas no caraacuteter paradigmaacutetico da projeccedilatildeo e no caraacuteter simboacutelico da persshypectiva A Figura eacute como a fabulaccedilatildeo segundo Bergson tem

31 Xavier de Langlais La technique de la peinture agrave lhuile Ed Flammarion (E Goethe Traiteacute des couleurs Ed Triades sect 902-909)

248 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 249

middot i

uma origem religiosa Mas quando ela se torna esteacutetica sua transcendecircncia sensitiva entra numa oposiccedilatildeo surda ou abe-rshyta com a transcendecircncia suprasensiacutevel das religiotildees

No segundo caso natildeo eacute mais a sensaccedilatildeo que se realiza no material eacute antes o material que entra na sensaccedilatildeo Cershytamente a sensaccedilatildeo natildeo existe mais fora dessa entrada e o plano de composiccedilatildeo teacutecnica natildeo mais tem autonomia a natildeo ser no primeiro caso natildeo vale jamais por si mesmo Mas diriacuteamos agora que ele sobe no plano de composiccedilatildeo esteacuteshytica e lhe daacute uma espessura proacutepria como diz Damisch inshydependente de qualquer perspectiva e profundidade Eacute o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transshycendecircncia aparente ou-de um modelo paradigmaacutetico e conshyfessam seu ateiacutesmo inocente seu paganismo E sem duacutevida entre estes dois casos estes dois estados da sensaccedilatildeo estes dois poacutelos da teacutecnica as transiccedilotildees as combinaccedilotildees e as coexistecircncias se fazem constantemente (por exemplo o trashybalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens) satildeo poacutelos abstratos ao inveacutes de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com oacuteleo e solvente se volta cada vez mais na direccedilatildeo do segundo poacutelo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composiccedilatilde~ esteacutetica -Eacute por isso -que eacute tatildeo falso definir a sensaccedilatildeo na pintura moderna pela admissatildeo de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a esshypessura natildeo precisa ser larga ou profunda Pocircde-se dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfiacuteshycie basta-lhe apoiar-se sobre os vazios e os plenos do pashypel Canson Eacute uma pintura que natildeo mais tem fundo porshyque o baixo emerge a superfiacutecie eacute esburacaacutevel ou o plashyno de composiccedilatildeo ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspecshytiva independentemente das sombras e mesmo da ordem

i r I li

I 32 Cf Christian Bonnefbi intervieweacute et commenteacute par Yvesshy

I Alain Bois Macula S-6

33 Damisch Fenecirctre jaime cadmium ou les dessous de la peinture Ed du Seuil pp 275-305 (e p 80 a espessura do plano em Pollock) Dashy

li misch eacute o autor que mais insistiu sobre a relaccedilatildeo -arte-pertsamento pinshytura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instauraacute-la Mallarmeacute fazia da espessura do livro uma dimensatildeo distinta da proshy) fundidade cf Jacques Scheacuterer Le livre de Mallarmeacute Gallimard p 55shy

I tema que Boulez retoma por sua vez para a muacutesica (Points de repere p 161) iI

li 250 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

I I

cromaacutetica da cor (o colorista arbitraacuterio) Natildeo mais se recoshybre faz-se subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar Eacute uma promoccedilatildeo do solo e a escultura pode torshy

I nar-se plana jaacute que o plano se estratifica Natildeo magraveis se pinshyI ta sobre mas sob A arte informal levou muito longe

estas novas potecircncias da textura essa elevaccedilatildeo do solo com I Dubuffet e tambeacutem o expressionismo abstrato a arte mishy

nimalista procedendo por impregnaccedilotildees fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atraacutes de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem agrave vista do pintor o que enshytregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes estados a pintura eacute-penshysamento a visatildeo existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta

Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdashydeiro conceito mostrando que o tranccedilado poderia bem preencher para a pintura futura funccedilatildeo anaacuteloga agravequela que foi a da perspectiva O quemiddotnatildeo eacute proacuteprio da pintura jaacute que Damisch reencontra a mesma distinccedilatildeo no niacutevel do plano arquitetura quando Scarpa por exemplo rejeita o movishymento da projeccedilatildeo e os mecanismos da perspectiva para ins~ crever os volumes na espessura do proacuteprio plano33 bull E da literatura agrave muacutesica uma espessura material se afirma que

--~ middot

natildeo se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal Eacute umr I traccedilo caracteriacutestico da literatura moderna quando as palashyr vras e a sintaxe sobem no plano de composiccedilatildeo e o cavam I em lugar de colocaacute-lo em perspectiva E a muacutesica quando

renuncia agrave projeccedilatildeo como agraves perspeCtivas que impotildeem a alshyI tura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano soshynoro uma espessura singular da qual testemunham elemenshy

I tos muito diferentes a evoluccedilatildeo dos estudos parapiano que deixam de ser somente teacutecnicas para tornar-se estudos de

jmiddot composiccedilatildeo (com a extensatildeo que lhes daacute Debussy) a imshy

portacircncia decisiva que toma a orquestraccedilatildeo em Berlioz a i subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferashyI I ccedilatildeo dos afectos de percussatildeo com os metais as peles e as mashy

deiras e sua ligaccedilatildeo com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparaacuteveis do material (Varese) a redeshy

I finiccedilatildeo do percepto em funccedilatildeo do ruiacutedo do som bruto e I complexo (Cage) natildeo apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendecircnshy

cia a uma apariccedilatildeo natildeo-cromaacutetica do som num continuum infiiuumlto (muacutesica eletrocircnica ou eletro-acuacutestica)I

I Soacute haacute um plano uacutenico no sentido em que a arte natildeo

I comporta outro plano diferente do da composiccedilatildeo esteacutetica

I o plano teacutecnico com efeito eacute necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composiccedilatildeo esteacutetica Eacute sob esta conshydiccedilatildeo que a mateacuteria se torna expressiva o composto de senshysaccedilotildees se realiza no material ou o material entra no comshyI posto mas sempre de modo a se situar sobre um plano deI

I composiccedilatildeo propriamente esteacutetico Haacute muitos problemasI teacutecnicos em arte e a ciecircncia pode intervir em sua soluccedilatildeo

mas eles soacute se colocam em funccedilatildeo de problemas de composhysiccedilatildeo esteacutetica que concernem aos compostos de sensaccedilotildees e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus mateshyriais Toda sensaccedilatildeo eacute uma questatildeo mesmo se soacute o silecircncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em enshy

251Percepto Afecto e Conceito

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 21: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

i r I li

I 32 Cf Christian Bonnefbi intervieweacute et commenteacute par Yvesshy

I Alain Bois Macula S-6

33 Damisch Fenecirctre jaime cadmium ou les dessous de la peinture Ed du Seuil pp 275-305 (e p 80 a espessura do plano em Pollock) Dashy

li misch eacute o autor que mais insistiu sobre a relaccedilatildeo -arte-pertsamento pinshytura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instauraacute-la Mallarmeacute fazia da espessura do livro uma dimensatildeo distinta da proshy) fundidade cf Jacques Scheacuterer Le livre de Mallarmeacute Gallimard p 55shy

I tema que Boulez retoma por sua vez para a muacutesica (Points de repere p 161) iI

li 250 Il Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte

I I

cromaacutetica da cor (o colorista arbitraacuterio) Natildeo mais se recoshybre faz-se subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar Eacute uma promoccedilatildeo do solo e a escultura pode torshy

I nar-se plana jaacute que o plano se estratifica Natildeo magraveis se pinshyI ta sobre mas sob A arte informal levou muito longe

estas novas potecircncias da textura essa elevaccedilatildeo do solo com I Dubuffet e tambeacutem o expressionismo abstrato a arte mishy

nimalista procedendo por impregnaccedilotildees fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atraacutes de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem agrave vista do pintor o que enshytregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes estados a pintura eacute-penshysamento a visatildeo existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta

Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdashydeiro conceito mostrando que o tranccedilado poderia bem preencher para a pintura futura funccedilatildeo anaacuteloga agravequela que foi a da perspectiva O quemiddotnatildeo eacute proacuteprio da pintura jaacute que Damisch reencontra a mesma distinccedilatildeo no niacutevel do plano arquitetura quando Scarpa por exemplo rejeita o movishymento da projeccedilatildeo e os mecanismos da perspectiva para ins~ crever os volumes na espessura do proacuteprio plano33 bull E da literatura agrave muacutesica uma espessura material se afirma que

--~ middot

natildeo se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal Eacute umr I traccedilo caracteriacutestico da literatura moderna quando as palashyr vras e a sintaxe sobem no plano de composiccedilatildeo e o cavam I em lugar de colocaacute-lo em perspectiva E a muacutesica quando

renuncia agrave projeccedilatildeo como agraves perspeCtivas que impotildeem a alshyI tura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano soshynoro uma espessura singular da qual testemunham elemenshy

I tos muito diferentes a evoluccedilatildeo dos estudos parapiano que deixam de ser somente teacutecnicas para tornar-se estudos de

jmiddot composiccedilatildeo (com a extensatildeo que lhes daacute Debussy) a imshy

portacircncia decisiva que toma a orquestraccedilatildeo em Berlioz a i subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferashyI I ccedilatildeo dos afectos de percussatildeo com os metais as peles e as mashy

deiras e sua ligaccedilatildeo com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparaacuteveis do material (Varese) a redeshy

I finiccedilatildeo do percepto em funccedilatildeo do ruiacutedo do som bruto e I complexo (Cage) natildeo apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendecircnshy

cia a uma apariccedilatildeo natildeo-cromaacutetica do som num continuum infiiuumlto (muacutesica eletrocircnica ou eletro-acuacutestica)I

I Soacute haacute um plano uacutenico no sentido em que a arte natildeo

I comporta outro plano diferente do da composiccedilatildeo esteacutetica

I o plano teacutecnico com efeito eacute necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composiccedilatildeo esteacutetica Eacute sob esta conshydiccedilatildeo que a mateacuteria se torna expressiva o composto de senshysaccedilotildees se realiza no material ou o material entra no comshyI posto mas sempre de modo a se situar sobre um plano deI

I composiccedilatildeo propriamente esteacutetico Haacute muitos problemasI teacutecnicos em arte e a ciecircncia pode intervir em sua soluccedilatildeo

mas eles soacute se colocam em funccedilatildeo de problemas de composhysiccedilatildeo esteacutetica que concernem aos compostos de sensaccedilotildees e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus mateshyriais Toda sensaccedilatildeo eacute uma questatildeo mesmo se soacute o silecircncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em enshy

251Percepto Afecto e Conceito

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 22: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

I

li

l1 1

1 [

contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plashyno estender sob tal monumento e os dois ao Illesmo temshypo assim em Klee o movimento no limite da terra feacutertil e o monumento em terra feacutertil Natildeo haacute tantos planos difeshyrentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte agrave outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou entatildeo entrar em reshylaccedilotildees de captura e formar constelaccedilotildees de universo indeshypendentemente de qualquer derivaccedilatildeo mas tambeacutem dispershysar-se em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob disshytacircncias qualitativas que natildeo satildeo mais de espaccedilo e de tempo Eacute sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser uacutenico ao messhymo tempo que os universos satildeo muacuteltiplos irredutiacuteveis

Tudo se passa (inclusive a teacutecnica) entre os compostos de sensaccedilotildees e o plano de composiccedilatildeo esteacutetica Ora este natildeo vem antes natildeo sendo voluntaacuterio ou preconcebido natildeo tenshydo nada a ver com um programa mas tambeacutem natildeo vem deshypois embora sua tomada de consciecircncia se faccedila progressishyvamente e surja frequumlentemente depois A cidade natildeo vem depois da casa nem o cosmos depois do territoacuterio O unishyverso natildeo vem depois da figura e a figura eacute aptidatildeo de unishyverso Chegamos da sensaccedilatildeo composta ao plano de comshyposiccedilatildeo mas para reconhecer sua estdta coexistecircncia ou sua complementariedade um soacute progredindo atraveacutes do outro A sensaccedilatildeo composta feita de perceptos e de afectos desshyterritorializa o sist~ma da opiniatildeo que reunia as percepccedilotildees e afecccedilotildees dominantes num meio natural histoacuterico e social Mas a sensaccedilatildeo composta se reterritorializa sobre o plano de composiccedilatildeo porque ela ergue suas casas socircbre ele porshyque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extenshysotildees articuladas que limitam seus componentes=gt paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afecshytos E ao mesmo tempo o plano de composiccedilatildeo arrasta a

sensaccedilatildeo numa desterritorializaccedilatildeo superior fazendo-a passhysar por ~ma espeacutecie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma senshysaccedilatildeo sobre o plano natildeo ocupa um lugar sem estendecirc-loI distendecirc-lo pela Terra inteira e liberar todas as sensaccedilotildees queI

I ela conteacutem abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja proacuteprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito

I O que define o pensamento as trecircs grandes formas do I i pensamento a arte a ciecircncia e a filosofia eacute sempre enfrenshy

tar o caos traccedilar um plano esboccedilar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dando-lhe consistecircnshycia ela traccedila um plano de imanecircncia que leva ateacute o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a accedilatildeo de pershysonagens conceituais A ciecircncia ao contraacuterio renuncia ao infinito para ganhar a referecircncia ela traccedila um plano de coshyordenaacutedas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funccedilotildees ou proposiccedilotildees referenciais sob a accedilatildeo de observadores parciais A arte quer criar um finito que restishytua o infinito traccedila um plano de compocircsiccedilatildeo que carrega por sua vez monumentos ou sensaccedilotildees compostas sob a accedilatildeo de figuras esteacuteticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente natildeo eacute uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parece-nos que as manchascastanhas que danccedilam na margem e atrashyvessam a tela satildeo a passagem infinita do caos o formigar de_pontos sobre a tela dividida por bastonetes eacute a sensashyccedilatildeo composta finita mas se abre sobre o plano de composishyccedilatildeo que nos devolve o infinito = oo Isso natildeo implica conshytudo que a arte seja como uma siacutentese da ciecircncia e da filoshysofia da via finita e da via infinita As trecircs vias satildeo especiacutefishycas tatildeo diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar eacute pensar por conceitos ou entatildeo por funccedilotildees ou ainda por sensaccedilotildees

252 II Filosofia Ciecircncia Loacutegica e Arte Percepto Afecto e Conceito 253

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255

Page 23: DELEUZE_Gilles-Percepto, Afecto e Conceito_Capitulo

1 ji middotI

i

e um desses pensamentos natildeo eacute melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamenshyte pensado As molduras da arte natildeo satildeo coordenadas cientiacuteficas como as sensaccedilotildees natildeo satildeo conceitos ou o invershyso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da fishylosofia satildeo a arte abstrata e a arte conceitual mas natildeo subsshytituem o conceito pela sensaccedilatildeo criam sensaCcedilotildees e natildeo conshyceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensaccedilatildeo desmaterializaacute-la estendendo um plano de composiccedilatildeo arshyquitetocircnico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma mateacuteria radiante pensante e pensada natildeo mais uma sensaccedilatildeo do inar ou da aacutervore mas uma sensaccedilatildeo do conshyceito de mar ou do conceito de aacutervore A arte conceitual procura uma desmaterializaccedilatildeo oposta por generalizaccedilatildeo instaurando um plano de composiccedilatildeo suficientemente neushytralizado (o cataacutelogo que reuacutene obras natildeo mostradas o solo recoberto por seu proacuteprio mapa os espaccedilos abandonados sem arquitetura o plano flatbed) para que tudo tome aiacute um valor de sensaccedilatildeo reprodutiacutevel ateacute o infinito as coisas as imagens ou clichecircs as proposiccedilotildees - uma coisa sua fotoshygrafia na mesma escala e no mesmo lugar sua definiccedilatildeo tirada do dicionaacuterio Natildeo eacute certo poreacutem que se atinja asshysim neste uacuteltimo caso a sensaccedilatildeo nem o conceito porque o plano de composiccedilatildeo tende a se fazer informativo e a sensaccedilatildeo depende da simples opiniatildeo de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou natildeo isto eacute decidir se eacute arte ou natildeo Tanto esforccedilo para reencontrar no infinito as percepccedilotildees e afecccedilotildees ordinaacuterias e conduzir o conceito a umamiddotdoxa do corpo social ou da grande metroacuteshypole americana

middot Os trecircs pensamentos se cruzam se entrelaccedilam mas sem siacutentese nem identificaccedilatildeo A filosofia faz surgiraconteciacutemenshytos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensaccedilotildees a ciecircncia constroacutei estados de coisas com suas funshy

254 II Filosofia CiecircnCia Loacutegica e Arte

ccedilotildees Um rico tecido de correspondecircncias pode estabelecershyse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminanshytes onde a sensaccedilatildeo se torna ela proacutepria sensaccedilatildeo de conshyceito ou de funccedilatildeo o conceito conceito de funccedilatildeo ou de sensaccedilatildeo a funccedilatildeo funccedilatildeo de sensaccedilatildeo ou de conceito E um dos elementos natildeo aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemenshyto criado sobre um plano apela a outros elementos heteroshygecircneos que restam por criar sobre outros planos o pensashymento como heterogecircnese Eacute verdade que estes pontos culshyminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirshynos aopiniatildeo da qual queriacuteamos sair ou nos precipitar no caos que queriacuteamos enfrentar

Percepto Afecto e Conceito

I

255