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1 DELIBERAÇÃO DO CONSELHO DIRECTIVO DA ENTIDADE REGULADORA DA SAÚDE (VERSÃO NÃO CONFIDENCIAL) Considerando as atribuições da Entidade Reguladora da Saúde (doravante ERS) conferidas pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio; Considerando os objectivos da actividade reguladora da ERS estabelecidos no artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio; Considerando os poderes de supervisão da ERS estabelecidos no artigo 42.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio; Visto o processo registado sob o n.º ERS/025/09; I. DO PROCESSO I.1. Origem do processo 1. Em 7 de Abril de 2009, recebeu a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) uma exposição apresentada por M., relativa à não realização de uma intervenção cirúrgica, na sequência de descolamento de retina, em estabelecimentos hospitalares do SNS. 2. Na sequência da referida exposição, e verificada a necessidade de se proceder a uma averiguação mais aprofundada, o Conselho Directivo da ERS, por despacho

DELIBERAÇÃO DO CONSELHO DIRECTIVO DA ENTIDADE … · de atendimento, não conseguido, via telefone no Hospital S. Maria), os Médicos ... No entanto, acrescenta que “tal não

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DELIBERAÇÃO DO CONSELHO DIRECTIVO DA

ENTIDADE REGULADORA DA SAÚDE

(VERSÃO NÃO CONFIDENCIAL)

Considerando as atribuições da Entidade Reguladora da Saúde (doravante ERS)

conferidas pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio;

Considerando os objectivos da actividade reguladora da ERS estabelecidos no artigo

33.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio;

Considerando os poderes de supervisão da ERS estabelecidos no artigo 42.º do

Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio;

Visto o processo registado sob o n.º ERS/025/09;

I. DO PROCESSO

I.1. Origem do processo

1. Em 7 de Abril de 2009, recebeu a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) uma

exposição apresentada por M., relativa à não realização de uma intervenção

cirúrgica, na sequência de descolamento de retina, em estabelecimentos

hospitalares do SNS.

2. Na sequência da referida exposição, e verificada a necessidade de se proceder a

uma averiguação mais aprofundada, o Conselho Directivo da ERS, por despacho

2

de 16 de Abril de 2009, ordenou a abertura de inquérito registado sob o n.º

ERS/025/09.

I.2. A exposição da utente

3. Concretamente, a exponente afirma que no dia 30 de Dezembro de 2008, “após

observação clínica por dois Hospitais Públicos, nomeadamente [os Hospitais da

Universidade de Coimbra]1 e o Hospital Central de Lisboa – São José (e tentativa

de atendimento, não conseguido, via telefone no Hospital S. Maria), os Médicos

especialistas de oftalmologia foram unânimes na necessidade urgente de

intervenção cirúrgica (Descolamento de Retina, com sintomas iniciados 72 horas

antes)”.

4. No entanto, acrescenta que “tal não foi possível, uma vez que se tratava do dia

30.12.08, véspera de passagem de ano, e as Equipas Médicas Especialistas nesta

área específica encontravam-se de férias”.

5. Note-se, igualmente, que – segundo a utente – nenhum dos Hospitais do SNS em

causa “diligenciou pelo encaminhamento via hospitalar da utente para outro

Serviço Público de Saúde, cingindo-se a informar sobre os Hospitais que poderiam

operar nesta situação”.

6. Posteriormente à realização de exames complementares de diagnóstico no

Hospital de S. José – onde a situação da utente foi considerada “muito urgente” –

a utente deslocou-se, no dia 31 de Dezembro de 2008, pelas 8h30, pelos seus

próprios meios, ao Hospital de Santo António dos Capuchos;

7. Onde, alegadamente, “o Director dos Serviços de Oftalmologia não autorizou o seu

atendimento”, tendo a utente sido intervencionada de urgência, no mesmo dia, no

[prestador privado], pelo mesmo profissional de saúde (o que motivou o envio de

factura no valor de €7 526,33).

1 Na exposição da utente foi, por lapso, identificado o Centro Hospitalar de Coimbra quando se pretendia referir aos Hospitais da Universidade de Coimbra, o que veio a ser corrigido em momento posterior e como melhor resulta dos autos.

3

I.3. Diligências

8. No âmbito da investigação desenvolvida pela ERS, realizaram-se, entre outras, as

diligências consubstanciadas

(i) em pesquisa no Sistema de Registo de Estabelecimentos Regulados

(SRER) da ERS;

(ii) nos pedidos de elementos ao Centro Hospitalar de Lisboa Central,

E.P.E., de 17 de Abril, de 17 de Junho, de 7 de Agosto e de 1 de

Setembro de 2009;

(iii) nos pedidos de elementos aos Hospitais da Universidade de Coimbra,

E.P.E., de 21 de Maio, de 16 de Julho e de 11 de Setembro de 2009;

(iv) nos pedidos de elementos à exponente, de 13 de Maio e de 5 de

Agosto de 2009;

(v) na análise das respostas a tais pedidos de elementos;

(vi) na recolha de depoimentos, em 26 de Agosto de 2009:

a) de M. - exponente;

b) de F. – marido da exponente; e

c) de C. – filha de ambos.

(vii) na recolha de depoimentos, em 10 de Setembro de 2009, de

colaboradores do Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E., e

designadamente:

a) do Dr. D., Médico que atendeu a utente no Serviço de Urgência do

Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E. (Hospital São José);

b) da Dra. M., Assistente Hospitalar graduada de Oftalmologia do Centro

Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E., e que acompanhou o

atendimento da utente no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar

de Lisboa Central, E.P.E. (Hospital de S. José);

4

c) do Dr. P., Director do Serviço de Oftalmologia do Centro Hospitalar de

Lisboa Central, E.P.E., no Hospital de Santo António dos Capuchos;

d) do Dr. J., Médico Oftalmologista do Centro Hospitalar de Lisboa

Central, E.P.E.;

e) da F., Coordenadora Administrativa das Consultas Externas de

Oftalmologia do Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E.; e

(viii) em parecer técnico elaborado por consultor médico da ERS, em 15 de

Dezembro de 2009, sobre o eventual não cumprimento pelo Serviço de

Urgência dos HUC do protocolo do serviço para o descolamento da

retina.

II. DOS FACTOS

II.1. Dos factos relacionados com a utente

9. No dia 30 de Dezembro de 2008, pelas 22 horas, a utente, residente em Faro,

dirigia-se com o marido para o Porto quando, na viagem, sentiu uma afectação no

olho esquerdo – cfr. auto de declarações da utente junto aos autos.

10. Porque se encontrava próxima de Coimbra, dirigiu-se ao serviço de urgência dos

Hospitais da Universidade de Coimbra, E.P.E. (HUC), no qual deu entrada pelas

22h34m do referido dia 30 de Dezembro de 2008 – cfr. o referido auto de

declarações, a exposição inicial da utente, bem como o Relatório completo de

episódio de Urgência enviado quer pela utente à ERS em 23.09.2009, quer pelos

HUC na sua resposta de 2.11.2009 a pedido de elementos da ERS.

11. Como melhor resulta de tal Relatório junto aos autos, que se dá por integralmente

reproduzido e que aqui apenas se sumaria:

(i) aquando da triagem efectuada foram-lhe identificados problemas

oftalmológicos e atribuída uma prioridade “amarelo”;

5

(ii) após o que foi consultada às 23h16m de tal dia 30 de Dezembro

de 2008, com referência da sua história de doença actual:

“Perda de visão desde sábado OE. Fenómenos entópticos há cerca de

um mês que permaneceram estacionários até há 4 dias.

Cefaleias esporádicas.

HP cataratas congénitas operadas há 51 anos. Usa lentes de contacto.

Córnea com diminuição da contagem de células endoteliais (sic).

Já sem LC OE.

AV ____�1/10 ____AV____�1/10

Reflexos pupilares diminuídos.

MO nistagmo horizontal e rotatório manifesto.

Bio:_córnea descompensada; CA profunda; afaquia cirúrgica; íris

alongada verticalmente; vítreo na CA_ Bio: aspecto sobreponível ao

contralat_ […]

OE descolamento temporal da retina com envolvimento da área

macular. Retina enrugada. Difícil visualização de soluções de

continuidade.

A doente é de Faro e prefere ser operada em Lisboa. Foi encaminhada

para um dos serviços de urgência de Lisboa.[…]”;

(iii) com base na observação da utente, foi então diagnosticada a

sua situação clínica:

“Problemas

Descolamento Da Retina Com Defeito Retiniano Soe (activo)

Título do problema: diagnóstico de saída (00:00h 31-Dez-2008) […]”;

(iv) o diagnóstico de saída da utente foi, então, o de “Descolamento

Da Retina Com Defeito Retiniano Soe (Confirmado)”;

6

(v) após o que foi a utente objecto de “Alta Médica” com as

seguintes referências:

“Alta para: Alta para o Domicílio

Destino: Exterior Não Referenciado

Tipo de alta: Alta activa

Estado do Paciente: Inalterado

Dr. E., (Oftalmologia) / 00:00 h 31-Dez-2008”.

12. Como resulta da exposição inicial da utente, reiterada aquando das declarações

por si posteriormente prestadas à ERS, juntas aos autos, aquando da sua

observação em episódio de urgência nos HUC foi-lhe transmitido o diagnóstico de

descolamento de retina;

13. Bem como lhe foi informado “que se tratava de uma situação de intervenção

cirúrgica emergente uma vez que os sintomas tinham sido já iniciados cerca de 72

horas antes e que o processo de descolamento se estaria a desencadear muito

rapidamente por existir um tremor constante do olho (Nistagma)”;

14. Mas que “apesar da urgência, a intervenção não foi possível [nos HUC] visto a

equipa médica especialista estar toda de férias (não fosse a semana dos festejos

do fim de ano), só (re)iniciando funções na segunda-feira seguinte, 05.01.2009,

data considerada pelo Médico especialista como demasiado tardia pelo risco

iminente de descolamento total da retina e consequente perda, irreversível, de

visão.”;

15. Pelo que, por tal motivo, terá sido a utente “aconselhada a recorrer a outro Hospital

público no Porto ou Lisboa […]” – cfr. exposição inicial da utente junta aos autos.

16. Tanto terá ocorrido por o médico que a consultou nos HUC lhe ter perguntado “[…]

de onde era, ao que referiu que sendo de Faro, preferiria ir para Lisboa, tendo-lhe

nesse momento referido o médico que nesse caso deveria deslocar-se ao Sta.

Maria ou ao S. José, que possuiriam equipes permanentes”;

7

17. Outrossim, a utente terá “questionado ao médico se seria necessário uma carta

por si emitida sobre a consulta havida nos HUC, de forma a entregar nos hospitais

de Lisboa, ao que o mesmo referiu que não seria necessário, uma vez que

qualquer médico que a observasse imediatamente veria a gravidade do

descolamento de retina.” – cfr. auto de declarações da utente junto aos autos.

18. Nessa sequência “De imediato se dirigiu para Lisboa, tendo entretanto o seu

marido telefonado à sua filha, C., que se encontrava em Faro, explicando-lhe a

situação e solicitando-lhe que se informasse por telefone para qual hospital se

deveria dirigir. Foi a sua filha que contactou o Sta. Maria, tendo-lhe sido referido

que não a poderiam atender porque não faziam cirurgias de descolamento de

retina de urgência. Assim sendo, dirigiu-se para o S. José onde chegou por volta

das 2h50 da madrugada do dia 31.12.2008” – cfr. auto de declarações da utente

junto aos autos;

19. Nesse sentido, vejam-se igualmente as declarações de C., filha da utente, que

referiu que “o seu pai a contactou nessa noite, já tarde, referindo-lhe o que se

estava a passar com a sua mãe e que estava a sair de Coimbra em direcção a

Lisboa depois de a sua mãe ter sido observada nas urgências dos HUC. O seu pai

pediu-lhe que contactasse com o Hospital Santa Maria em Lisboa para se informar

se se poderia dirigir para lá, o que fez de imediato, tendo sido informada em tal

contacto telefónico que o Santa Maria não fazia intervenções cirúrgicas de

urgência de descolamento de retina. Transmitiu isso ao seu pai, que se encontrava

em viagem com a sua mãe, de forma a que eles se dirigissem, então, a outro

hospital” – cfr. auto de declarações junto aos autos.

20. A utente dirigiu-se, então, para o Serviço de Urgência do Hospital S. José, em

Lisboa, onde foi “vista pelo Dr. D. (que estava acompanhado também por uma

outra médica) [e] que lhe referiu, após ter diagnosticado também o descolamento

grave de retina no OE, que não possuíam oftalmologistas para procederem de

imediato à intervenção, mas que se deveria dirigir ao Hospital dos Capuchos

(Serviço de Oftalmologia) para ser intervencionada de imediato. Aliás, fizeram-lhe

os exames e análises pré-operatórios e introduziram os resultados no sistema

informático para estarem disponíveis para os colegas. Foi-lhe entregue uma carta

de acompanhamento para entregar nos Capuchos” – cfr. auto de declarações da

utente junto aos autos.

8

21. Foi, assim, emitido e entregue à utente o documento consubstanciado em

“Consulta Externa – Pedido de Consulta”, com a referência de “Muito Urgente”, e

do qual consta a referência ao descolamento de retina OE, bem como o “pedido de

marcação consulta retina cirúrgica com muita urgência” – cfr. o referido documento

junto aos autos e enviado pela utente na sua resposta ao pedido de elementos da

ERS de 13.05.2009.

22. Uma vez terminada a sua observação no Serviço de Urgência do Hospital S. José

(i) “Seriam cerca das 5h da madrugada quando saiu […] e dirigiu-

se imediatamente para o Hospital dos Capuchos, sendo que o mesmo

estava encerrado. Aguardou pela sua abertura e cerca das 8h30m já se

encontrava no Serviço de Oftalmologia, tendo entregue a referida carta

[de acompanhamento] à funcionária que se encontrava de serviço, a

qual referiu que a iria entregar ao médico que lá se encontrava, a saber,

o Dr. J.. […]”;

(ii) “Pouco tempo depois a funcionária regressou com a informação

que o Dr. J. não a iria poder atender”;

(iii) “Ainda assim, e inconformada, decidiu esperar para ver se

conseguia ser observada pelo médico. Aguardou cerca de 2 horas e por

volta das 10h30m, o referido Dr. J. ia a abandonar as instalações do

Serviço quando teve a oportunidade de o contactar e referir a sua

situação.”;

(iv) “Foi nessa altura que o Dr. J. reiterou que não a atendia, até

porque tinha ordens do Director, Dr. P., para não a atender.”;

(v) “Nesse momento, em função da gravidade, buscou auxílio junto

da funcionária, […] que a informou que atenta a época (fim-de-ano),

apenas num hospital privado teria possibilidade de ser atendida,

exemplificando até com o facto de o Sta. Maria estar a enviar doentes

para os Capuchos. Perguntou então que hospital poderia ser, tendo sido

referido [o prestador privado].” – cfr. auto de declarações da utente junto

aos autos.

23. Em função do ocorrido, a utente

9

(i) “Dirigiu-se de imediato para o Serviço de Urgências [do

prestador privado], onde chegou cerca das 11h30, tendo sido chamado

um oftalmologista que na consulta confirmou a necessidade imediata de

intervenção cirúrgica.”;

(ii) Pelo que “Foi convocada a equipa imediatamente e foi

preparada para o bloco, para o qual entrou cerca das 14h30. Foi

intervencionada cerca das 15h.”;

(iii) Sendo que “Antes da operação teve oportunidade de falar com o

cirurgião que lhe referiu saber do périplo por que tinha passado e nessa

ocasião referiu que não corresponderia à verdade que o Director do

Serviço de Oftalmologia dos Capuchos não tinha autorizado a sua

observação porque ele era o próprio Director do Serviço dos Capuchos

e não teria sido isso que tinha transmitido ao médico de Serviço, o Dr.

J..” – cfr. auto de declarações da utente junto aos autos.

24. Ora, e quanto a este último aspecto, “[…] o cirurgião era o Dr. P. [… e] a

informação que lhe havia sido dada era a de que nos Capuchos apenas teria

consulta na 2ª-feira seguinte (dia 5.01.2009) para eventual cirurgia na 5ª-feira

seguinte (dia 8.01.2009)”;

25. Mas “Uma vez que ainda ia ser intervencionada, [a utente] preferiu não confrontar

mais o referido cirurgião, tendo a operação ocorrido normalmente e durado cerca

de 2 horas […]” – cfr. auto de declarações da utente junto aos autos.

26. Em resultado da realização da cirurgia, o [prestador privado] emitiu em nome da

utente a factura n.º , de 05.01.2009, no valor de € 7.526,33, cuja cópia se encontra

junta aos autos;

27. E que respeita, precisamente, à realização em tal prestador de cuidados de saúde,

no dia 31.12.2008, de uma “cirurgia de descolamento de retina com vitrectomia e

segmentação, delaminação e corte de membranas de vítreo ou subretinianas,

neovasos com ou sem endolaser, com ou sem cirurgia do cristalino” – cfr. a

referida cópia da factura junta aos autos.

28. A corroborar os factos expostos pela utente, F., marido da utente, declarou que:

10

“acompanhou sempre a sua mulher aquando das deslocações aos HUC na

noite de 30.12.08, tendo-a seguidamente levado para Lisboa, onde se

dirigiu para as urgências do Hospital de São José por a sua filha lhe ter

informado que não valia a pena irem para o Santa Maria. Esteve presente

no Hospital de São José e dirigiu-se, posteriormente, com a sua mulher

para o Hospital dos Capuchos, onde, juntamente com ela, entregou a carta

que lhe havia sido emitida nas urgências do Hospital de São José. Assistiu

à funcionária a informar que o Dr. J. a mandou dizer que não iria atender a

sua mulher, tal como assistiu, após uma espera de cerca de 2 horas, ao

próprio Dr. J. a referir-lhe a si e à sua mulher que o Director não autorizava

que a sua mulher fosse consultada.

Foi para [o prestador privado] com a sua mulher, por sugestão da

funcionária do Serviço de Oftalmologia dos Capuchos, e assistiu ao Dr. P.,

antes da intervenção cirúrgica que aí viria a ter lugar cerca das 15 h do dia

31.12.08, a referir que não tinha dado tais ordens ao Dr. J., embora não

tivesse entrado em confrontação com o referido médico face ao momento

prévio à cirurgia em que se encontravam” – cfr. auto de declarações junto

aos autos.

II.2. Dos factos relacionados com os elementos fornecidos pelos Hospitais da Universidade de Coimbra, E.P.E.

29. Por pedido de elementos da ERS, de 21 de Maio de 2009, foi solicitado aos HUC

que se pronunciassem sobre os factos expostos pela utente, nomeadamente

justificando a alegada recusa de prestação de cuidados de saúde.

30. Na sua resposta à ERS, em 20 de Julho de 2009, vieram os Hospitais da

Universidade de Coimbra informar que

“[…] a doente […] foi observada no Serviço de Urgência no dia 30 de

Dezembro de 2008, pelas 22h45m, referindo perturbações visuais há mais de 4

dias.

11

Foi diagnosticado descolamento da retina do olho esquerdo com envolvimento

macular e acuidade visual inferior a 1/10, informando-se a doente de que, neste

tipo de patologia, a terapêutica é cirúrgica.

Conforme consta no Registo da Urgência, a doente reside em Faro e

manifestou “o desejo de ser operada em Lisboa”.” – cfr. a referida resposta dos

HUC junta aos autos.

31. Por pedido de informação adicional, de 11 de Setembro de 2009, foi solicitado aos

HUC que dessem informação, detalhadamente e sempre que aplicável

acompanhado dos elementos documentais relevantes:

1. Sobre o(s) protocolo(s) de atendimento, intervenção e seguimento de

utentes que, apresentando-se no Serviço de Urgência dos HUC, revelem um

diagnóstico de descolamento de retina;

2. Relativamente ao(s) protocolo(s) do ponto anterior, identificação dos

eventuais níveis de gravidade ou prioridade que se encontrem definidos e

aplicáveis às diferentes situações de diagnóstico de descolamento de retina;

3. Enquadramento de uma situação com referência de “perturbações visuais

há mais de 4 dias” e diagnóstico de “descolamento de retina do olho esquerdo

com envolvimento macular e acuidade visual inferior a 1/10 informando-se a

utente de que, neste tipo de patologia, a terapêutica é cirúrgica” no(s)

protocolo(s) a identificar em decorrência dos pontos 1. e 2. supra;

4. Esclarecimento, caso o mesmo não resulte já da resposta a algum dos

pontos anteriores, sobre o hiato temporal máximo para realização da referida

terapêutica cirúrgica numa situação de um tal diagnóstico;

5. Esclarecimentos sobre todos e quaisquer aspectos que, relativamente ao

atendimento da utente M. no Serviço de Urgência dos HUC, no passado dia 30

de Dezembro de 2008, pelas 22h45m, se afastem do(s) protocolo(s) referido(s)

nos pontos anteriores, e envio do(s) suporte(s) documental(ais)

representativo(s) do cumprimento do(s) protocolo(s), designadamente quanto à

alta do Serviço de Urgência e à referenciação da utente para Serviço indicado

dos HUC em função do diagnóstico, ou para outro estabelecimento hospitalar

em função de tal diagnóstico e do “desejo [da utente] de ser operada em

12

Lisboa”. – cfr. o referido pedido de elementos da ERS de 11 de Setembro de

2009, junto aos autos.

32. Na sua resposta à ERS, em 2 de Novembro de 2009, vieram os HUC esclarecer,

no que para aqui releva:

“1. Protocolo de Atendimento, Intervenção e Seguimento de Utentes com

Diagnóstico de Descolamento de Retina.

Os doentes observados no Serviço de Urgência com diagnóstico de

descolamento de retina são marcados para uma consulta sub-especializada de

Retina Cirúrgica, 3ª ou 5ª feira mais próxima do dia em que recorrem ao

Serviço de Urgência.

Existem excepções a estes casos que são: doentes com olho único e doentes

com a mácula ainda assente. Nestes casos o médico de Urgência contacta

imediatamente um dos elementos da Secção de Retina Cirúrgica, para que a

cirurgia possa ser programada.

Na consulta de Retina Cirúrgica são dados mais esclarecimentos ao doente

acerca da sua situação clínica, sendo efectuada a proposta para cirurgia que o

doente assina.

O doente vai para o domicílio, sendo chamado logo que possível.

2. Níveis de gravidade ou prioridade aplicáveis às diferentes situações de

diagnóstico de descolamento de retina.

Os níveis de prioridade utilizados nas situações de descolamento de retina são

os seguintes:

1 – Olhos únicos

2 – Olhos com mácula ainda assente

3 – Olhos já vitrectomizados e que se apresentem com descolamento

de retina

4 – Idade do doente (doentes jovens têm prioridade)

13

5 – Casos em que possa ser efectuada retinopexia pneumática: estes

casos, dado que a realização desta técnica cirúrgica envolve um tempo

de ocupação de Bloco Operatório de curta duração, podem ser

submetidos a cirurgia quase imediata, geralmente no final das cirurgias

da manhã

3 – Enquadramento de uma situação clínica em que existem perturbações

visuais há mais de 4 dias e diagnóstico de descolamento de retina do olho

esquerdo com envolvimento macular e acuidade visual inferior a 1/10.

A presença de descolamento da mácula é um sinal de mau prognóstico,

estando a recuperação visual comprometida. A urgência em operar estas

situações realiza-se de acordo com o referido anteriormente.

Quanto ao enquadramento desta situação no protocolo referido nos pontos 1 e

2, apenas podemos afirmar que não satisfaz o critério de prioridade máxima de

ter a mácula assente. Necessitamos de mais informação clínica para responder

a este quesito.

4 – Hiato temporal máximo para a realização da cirurgia nos casos de

descolamento de retina com envolvimento macular.

Os doentes são chamados para cirurgia pela ordem em que foram inscritos e

de acordo com os critérios de prioridade enunciados. Dependendo do número

de doentes inscritos e do seu grau de prioridade, o hiato temporal entre a altura

em que o doente recorre ao Serviço de Urgência e a data em que é submetido

a cirurgia varia.

[5] – Esclarecimentos sobre o atendimento prestado à utente M. no Serviço de

Urgência dos HUC no dia 30 de Dezembro de 2008.

De acordo com os registos do relatório completo de episódio de Urgência […]

a utente M. recorreu ao Serviço de Urgência dos HUC em 30 de Dezembro de

2008, referindo perda de visão do olho esquerdo há 3 dias. A acuidade visual

do olho esquerdo era inferior a 1/10 e apresentava descolamento de retina com

envolvimento da área macular do olho esquerdo. É referido no relatório de

episódio de urgência que, sendo a doente de Faro, preferia ser operada em

14

Lisboa, pelo que “foi encaminhada para um dos Serviços de Urgência de

Lisboa”.

Sendo a vontade expressa da doente não ser submetida a cirurgia nos

Hospitais da Universidade de Coimbra, mas sim num Hospital da área de

Lisboa, a doente não entrou no “Protocolo de Atendimento, Intervenção e

Seguimento de Utentes com Diagnóstico de Descolamento de Retina”

enunciado no ponto 1, nem lhe são aplicáveis os “níveis de gravidade ou

prioridade aplicáveis às diferentes situações de diagnóstico de descolamento

de retina” […]” – cfr. a referida resposta dos Hospitais da Universidade de

Coimbra junta aos autos.

33. Relativamente ao cumprimento ou não pelos HUC, no caso concreto da utente M.,

dos procedimentos e protocolos de atendimento, intervenção e seguimento de

utentes com diagnóstico de descolamento de retina por si definidos, foi solicitado

pela ERS um parecer técnico, a um consultor médico da ERS;

34. Tendo o mesmo sido emitido nos termos ora transcritos:

“Após a análise dos factos deste processo constatei que o médico

oftalmologista dos HUC fez o diagnóstico e confirmou a gravidade da

situação clínica, tendo decidido não seguir o protocolo do serviço para o

descolamento da retina, e dando alta à doente para o domicílio com a

desculpa de que a utente teria demonstrado vontade de ser tratada em

Lisboa.

Assim sendo colocam-se as seguintes questões:

Para que servem os protocolos de serviço nos HUC?

Se foi a doente que quis ter alta porque razão o clinico não assinou

“saída contra parecer médico”e sim alta para o domicílio?

Porque razão a doente saiu do hospital sem nenhuma carta de

referenciação?

Neste contexto, sem querer abordar as questões de ordem deontológica

e as de boa prática médica, a atitude do médico dos HUC parece-me

bastante controversa e contraditória” – cfr. parecer junto aos autos.

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II.3. Dos factos relacionados com os elementos fornecidos pelo Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E.

35. Por pedido de elementos da ERS, de 17 de Abril de 2009, foi solicitado ao Centro

Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E. (CHLC) que se pronunciasse de forma

detalhada sobre os factos expostos pela utente, nomeadamente justificando a

alegada recusa de prestação de cuidados de saúde – cfr. o referido pedido de

elementos junto aos autos.

36. Na sua resposta à ERS, de 20 de Julho de 2009, veio o CHLC esclarecer que

“1 – Serviço de Urgência Polivalente

[…] a doente M., foi admitida no Serviço de Urgência às 2h53 do dia

31/12/2008. Foi-lhe diagnosticado um descolamento de retina do OE,

envolvendo a mácula.

A doente teve alta do Serviço de Urgência às 4.35h, referenciada à consulta do

departamento de retina cirúrgica do Serviço de Oftalmologia deste Centro

Hospitalar. A cirurgia de descolamento de retina não é realizada no âmbito do

Serviço de Urgência, uma vez que a diferenciação dos recursos humanos e

materiais para a sua execução só está disponível no Serviço de Oftalmologia.

2 – Serviço de Oftalmologia

A doente poderá ter vindo ao Serviço 7 (Oftalmologia) no dia 31/Dez ou dia

2/Janeiro (3 e 4 Janeiro foi fim de – semana) pelo que a consulta de 5 de

Janeiro era a primeira consulta de retina cirúrgica e era em função dessa

consulta que a cirurgia seria programada para terça, quarta ou quinta – feira

consoante as prioridades cirúrgicas da consulta de retina que são atribuídas

apenas no fim da consulta de segunda-feira e pelo Responsável da consulta” –

cfr. a referida resposta do CHLC junta aos autos.

37. Por último, em resposta ao pedido de elementos da ERS de 1 de Setembro de

2009, veio o CHLC “[…] informar que o Dr. J. era o médico a que a doente se

referia […]” – cfr. resposta do CHLC de 2 de Setembro de 2009, junta aos autos;

16

38. Ou seja, que tal era o profissional de saúde com quem a utente contactou na

manhã do dia 31 de Dezembro de 2008, no Serviço de Oftalmologia do CHLC.

II.4 Dos factos obtidos em sede de diligências de inquirição realizadas pela ERS

39. Tendo em vista o esclarecimento dos factos relacionados com o atendimento da

utente no CHLC, e especificamente no Serviço de Urgências do Hospital de S.

José, e no Serviço de Oftalmologia do Hospital dos Capuchos, a ERS, em

diligência efectuada no dia 10 de Setembro de 2009, procedeu à recolha de

depoimentos de colaboradores do CHLC;

40. E concretamente

a) do Dr. D., Médico que atendeu a utente no Serviço de Urgência do

CHLC (Hospital São José);

b) da Dra. M., Assistente Hospitalar graduada de Oftalmologia do CHLC,

e que acompanhou o atendimento da utente no Serviço de Urgência

do CHLC (Hospital de S. José);

c) do Dr. P., Director do Serviço de Oftalmologia do CHLC, no Hospital

de Santo António dos Capuchos;

d) do Dr. J., Médico Oftalmologista do CHLC; e

e) da F., Coordenadora Administrativa das Consultas Externas de

Oftalmologia do CHLC.

41. Ao Dr. D. foi perguntado sobre os factos relacionados com o atendimento da

utente na madrugada do dia 31.12.2009, tendo o mesmo esclarecido que

“[…] confirma [que atendeu a utente M. na madrugada de 31 de Dezembro de

2008], sendo que à época era interno da especialidade, encontrava-se no

Serviço de Urgência do Hospital S. José e encontrava-se acompanhado da

assistente graduada Dra. M., que igualmente foi sua orientadora.

Igualmente confirma que à referida utente foi diagnosticado um descolamento

de retina grave.”;

17

42. Por outro lado, foi o referido profissional questionado sobre se a patologia tinha

risco de perda de visão, tendo o mesmo

“[…] referi[do] que sim, sendo que isso foi informado à própria doente aquando

da sua observação, como aliás a própria conhecia porque já vinha de outro

estabelecimento hospitalar. Aliás, segundo informação que a doente na altura

deu, vinha dos HUC, os quais lhe teriam diagnosticado a patologia, mas que

não teriam a disponibilidade para a operar nos próximos dias. Não se recorda

se a doente vinha acompanhada de algum documento relativo a tal observação

nos HUC.”;

43. Tal como foi questionado sobre se foram efectuados exames pré-operatórios

“[… tendo] confirma[do] que requisitou os exames de rotina pré-operatórios

para agilizar e tornar mais rápido o processo, de forma a que o colega de

Retina Cirúrgica e o próprio anestesista já tivessem o resultado de tais

exames.”.

44. Já a propósito da razão ou procedimento para a intervenção cirúrgica em

descolamento de retina e razão da sua não realização à utente, referiu que

“[…] a cirurgia da retina é uma cirurgia de urgência diferida e que a sua

realização não é feita no Serviço de Urgência mas apenas pelos colegas que

se dedicam à área da retina cirúrgica, pelo que o protocolo consiste na

referenciação urgente dos doentes para o serviço especializado e que no caso

era o Serviço de Oftalmologia – Departamento de Retina Cirúrgica. É no âmbito

desse procedimento que emitiu o pedido de consulta externa, para realização

de cirurgia no Serviço. Esclareceu ainda que havendo diferentes níveis de

urgência em descolamento de retina, o caso da utente necessitava de

intervenção rápida”;

45. Sendo que, quando questionado se a situação desta utente em concreto era

compaginável com ter, em face de tal diagnóstico, uma consulta no dia 05/01/2009

e, eventualmente, ser operada em 08/01/2009,

“[…] referiu que a intervenção deveria ser realizada o quanto antes, embora no

período de uma semana ainda pudesse ser defensável.”;

18

46. Ainda que, quando questionado sobre se tal facto seria in concreto possível sem

prejuízo da doente, já esclareceu que

“[…] tendo a doente em questão uma situação também de afectação da

mácula, quanto maior for o período de espera pela intervenção menor será a

sua capacidade de recuperação, pelo que será sempre mais aconselhável o

menor tempo de espera para a realização da intervenção, razão pela qual

referenciou a utente para o serviço numa situação de “muito urgente”.

47. Por último, foi o Dr. D. questionado sobre se seria normal ou possível que esta

doente não fosse atendida no Serviço de Oftalmologia na manhã do dia

31/12/2008, acompanhada de referenciação por si feita (pedido de consulta muito

urgente), tendo referido que

“[…] não seria uma situação normal e que a experiência que tem é que o

Departamento de Retina Cirúrgica dá, regra geral, seguimento e resposta às

situações verdadeiramente urgentes, pelo que mesmo que não fosse para

operar no próprio dia, seria normal que a doente fosse observada e ficasse

encaminhada” – cfr. auto de declarações junto aos autos.

48. Foram igualmente recolhidas as declarações da Dra. M. Assistente Hospitalar

Graduada de Oftalmologia do CHLC, que declarou que

“[…] tem conhecimento [do episódio de urgência da utente M.] por ter

acompanhado o Dr. D., que à época era interno […] e foi diagnosticada uma

situação de descolamento de retina, tendo sido seguido o protocolo para tais

situações, ou seja, referenciação para a Consulta de Retina Cirúrgica. Aliás,

recorda-se de terem sido efectuadas as rotinas pré-operatórias logo no Serviço

de Urgência, de forma a agilizar o processo.

Questionada sobre se seria normal que a utente, referenciada com um pedido

de consulta muito urgente ao serviço indicado (Departamento de Retina

Cirúrgica) não fosse vista no dia 31/12/2008, imediatamente após a sua

observação no Serviço de Urgência, esclareceu que isso dependerá da

orgânica, funcionamento e procedimento do Serviço e Departamento, bem

como de quem está nesse dia distribuído ou escalado para a Retina Cirúrgica.

Questionada sobre se a situação da utente poderia compaginar-se com uma

situação de marcação de consulta para 05/01/2009 e eventual cirurgia em

19

08/01/2009, referiu que a cirurgia de retina é urgente mas dependerá de cada

caso clínico e decisão do especialista” – cfr. o respectivo auto de declarações

junto aos autos.

49. Por sua vez, o Dr. J., Médico do Serviço de Oftalmologia do CHLC, esclareceu que

“[relativamente à sua actividade no dia 31/12/2008], pela análise da sua

agenda, […] nesse dia de manhã estava escalado para urgência no Hospital de

S. José, pese embora ter-se ausentado de tal Serviço de Urgência para vir ao

Serviço de Oftalmologia fazer uma vitrectomia de urgência, pelas 9h da manhã

e após fim da mesma teve que imediatamente regressar ao Serviço de

Urgência no Hospital de S. José.”.

50. Foi o referido profissional especificamente questionado sobre se se recordava de

ter contactado com alguma doente nessa manhã do dia 31/12/2008 no Serviço de

Oftalmologia, tendo referido

“[…] que não pode esclarecer tal facto porque não se recorda, até porque

nesse dia, como já referido, não estava no serviço e apenas lá foi fazer uma

cirurgia de urgência.”.

51. Já quando questionado sobre o procedimento aplicado às situações de

descolamento de retina,

“[…] referiu que o Serviço de Urgência não tem condições para fazer a

intervenção, pelo que quando diagnosticado o protocolo consiste na

referenciação para o Serviço de Oftalmologia – Departamento de Retina

Cirúrgica.”;

52. E indagado sobre se seria aceitável uma situação como a da utente que veio

referenciada do Serviço de Urgência com pedido de consulta cirúrgica “muito

urgente”

“[…] referiu que a cirurgia de descolamento é urgente e deve ser efectuada o

quanto antes, embora irá depender da programação possível do funcionamento

do departamento.”.

53. Quando questionado sobre se se poderia numa situação de descolamento de

retina muito grave, em 31/12/2008, agendar para consulta, em 05/01/2009, e

cirurgia, em 08/01/2009, esclareceu que

20

“[…] tanto depende sempre da capacidade de resposta do departamento, e

especificamente em tal situação no dia 01/01/2009 era feriado, o dia

02/01/2009 “uma ponte”, pelo que o primeiro dia útil seguinte era Segunda-feira

dia 05/01/2009” – cfr. auto de declarações junto aos autos.

54. O Dr. P., que também prestou declarações e que é o Director do Serviço de

Oftalmologia do CHLC, mas que igualmente interveio na situação da utente, na

qualidade de cirurgião responsável pela intervenção realizada ao início da tarde

desse mesmo dia 31.12.2009, mas já no [prestador privado], declarou que

“[…] possui conhecimento [do episódio relativo à utente] e que pode esclarecer

a forma pela qual a utente foi atendida no Serviço. A utente veio referenciada

do Serviço de Urgência com descolamento de retina, mas o seu Serviço

funciona com uma programação à segunda-feira de cada semana para a

cirurgia vitreo-retiniana, pelo que em função do dia em que a doente surgiu (era

uma 4ª-feira), e sendo 5ª-feira feriado e 6ª-feira tolerância de ponto, foi-lhe

marcada consulta para a 2ª-feira seguinte, dia 05.01.2009. Se não fosse 5ª-

feira feriado e 6ª-feira tolerância de ponto, a doente seria vista na 4ª-feira e

seria programada para a semana seguinte a sua cirurgia (sem prejuízo de

quando se detectam situações imediatas se poder alterar a programação).

Questionado sobre se a utente foi vista no Serviço no dia 31.12.2008, referiu

que foi vista apenas a carta de acompanhamento elaborada pelo Serviço de

Urgência e que deu, então, a indicação que a utente entraria na “programação”

ou seja, em consulta na 2ª-feira seguinte para cirurgia durante a semana.

55. Já quando indagado sobre se procedeu à realização de cirurgia nesse mesmo dia,

à utente, mas no [prestador privado]

“[…] confirmou e esclareceu que terá sido chamado pelo colega de urgência

[do prestador privado] para a realização de cirurgia, que embora não se

recordando da hora terá sido efectuada, presumivelmente, pelas 18h ou 19h

desse dia” – cfr. auto de declarações junto aos autos.

56. Por fim, foi inquirida F., Coordenadora Administrativa das Consultas Externas de

Oftalmologia do CHLC, sobre o procedimento de atendimento e marcação de

consultas externas no serviço, tendo a mesma referido que

21

“[…tal] procedimento é variável consoante seja a forma de tomada de

conhecimento de um pedido de consulta externa.

Indagada concretamente sobre o pedido de consulta externa muito urgente que

era portadora a utente M., junto aos autos e que lhe foi exibido, referiu que

sendo um pedido entregue em papel, o administrativo que se encontra no

balcão irá proceder no sentido de fazer chegar ao médico triador tal pedido,

embora se estiver sensível para o diagnóstico – in casu descolamento de retina

– poderá também encaminhar o doente para o médico de cirurgia de retina.

Questionada sobre se um(a) administrativo(a) que recebesse tal pedido de

consulta muito urgente em dia de semana pelo início da manhã e que fosse

apresentá-lo ao médico que se encontrava no Serviço de Oftalmologia, referiu

que tanto constituiria um procedimento normal e que, inclusivamente, será apto

a garantir a celeridade do conhecimento da situação pelos médicos. Será, até,

o procedimento mais rápido. Se assim não suceder teria que o pedido de

marcação ficar no dossier de pedidos urgentes que o médico triador

semanalmente verifica e, nessa sequência, dá as necessárias instruções. Mas

num caso muito urgente é sempre levado ao médico.

Questionada sobre se o facto de a já supra referida utente se ter apresentado

no serviço no dia 31.12.2008, pela manhã, poderia ter alguma influência no

procedimento de marcação e triagem da situação, referiu que tal dia era uma

4ª-feira, dia útil, e que o serviço estava a funcionar e que teriam sempre que lá

estar médicos em consulta e no próprio internamento, pelo que tal facto não

terá qualquer influência quer no procedimento, quer na forma ou capacidade de

fazer chegar aos médicos o pedido de consulta muito urgente e realização do

mesmo.” – cfr. auto de declarações junto aos autos.

III. DO DIREITO

III. 1. Das atribuições e competências da ERS

57. De acordo com o n.º 1 do art. 3.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, a

ERS tem por missão a regulação da actividade dos estabelecimentos prestadores

de cuidados de saúde.

22

58. Sendo que estão sujeitos à regulação da ERS, nos termos do n.º 1 do artigo 8.º do

Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, “[...] todos os estabelecimentos

prestadores de cuidados de saúde, do sector público, privado e social,

independentemente da sua natureza jurídica, nomeadamente hospitais, clínicas,

centros de saúde, laboratórios de análises clínicas, termas e consultórios”.

59. É manifestamente esse o caso do Hospital de S. José e do Hospital de Santo

António dos Capuchos, integrados no Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E.,

e dos Hospitais da Universidade de Coimbra E.P.E., que se encontram registados

no SRER da ERS.

60. Consequentemente, o CHLC e os HUC são estabelecimentos prestador[es] de

cuidados de saúde, para efeitos do referido art. 8.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de

27 de Maio.

61. As atribuições da ERS, de acordo com o disposto no n.º 2 do art. 3.º do Decreto-

Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, compreendem “[…] a supervisão da actividade e

funcionamento dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde no que

respeita:

a. Ao cumprimento dos requisitos de exercício da actividade e de

funcionamento;

b. À garantia dos direitos relativos ao acesso aos cuidados de saúde e dos

demais direitos dos utentes;

c. À legalidade e transparência das relações económicas entre os

diversos operadores, entidades financiadoras e utentes”.

62. Por seu lado, constituem objectivos da actividade reguladora da ERS, em geral,

nos termos do art. 33.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio:

“[…]

b) Assegurar o cumprimento dos critérios de acesso aos cuidados de

saúde, nos termos da Constituição e da lei;

c) Garantir os direitos e interesses legítimos dos utentes;

23

d) Velar pela legalidade e transparência das relações económicas

entre todos os agentes do sistema;

[…]”.

63. No que se refere ao objectivo regulatório de assegurar o cumprimento dos critérios

de acesso aos cuidados de saúde, as alíneas a) e d) do artigo 35.º do Decreto-Lei

n.º 127/2009, de 27 de Maio, estabelecem ser incumbência da ERS “assegurar o

direito de acesso universal e equitativo aos serviços públicos de saúde ou

publicamente financiados” e “zelar pelo respeito da liberdade de escolha nos

estabelecimentos de saúde privados”.

64. Incluem-se ainda nos objectivos regulatórios da ERS, nos termos do artigo 37.º do

Decreto-lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, e entre outros,

(i) analisar questões relativas às “[…] relações económicas nos

vários segmentos da economia da saúde, incluindo no que

respeita ao acesso à actividade e às relações entre o SNS e os

operadores privados […]” (alínea a) do referido artigo 37.º); e

(ii) analisar questões sobre “[…] a organização e o desempenho

dos serviços de saúde do SNS” (alínea c) do referido artigo

37.º).

65. Em face do exposto, cumpre à ERS analisar, à luz das referidas atribuições, as

eventuais consequências dos comportamentos relatados, designadamente sob o

prisma

(i) de uma lesão do direito fundamental de acesso aos cuidados

de saúde; e

(ii) de uma violação dos interesses legítimos da utente,

designadamente financeiros, que daí possam ter decorrido.

III. 2. Do direito de acesso universal ao serviço público de saúde e da proibição de rejeição infundada de pacientes nos estabelecimentos e serviços do Serviço Nacional de Saúde

66. O direito à protecção da saúde, consagrado no art. 64.º da Constituição da

República Portuguesa (doravante CRP), tem por escopo garantir o acesso de

24

todos os cidadãos aos cuidados de saúde, o qual será assegurado, entre outras

obrigações impostas constitucionalmente, através da criação de um Serviço

Nacional de Saúde (SNS) universal, geral e, tendo em conta as condições

económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito.

67. Dito de outro modo, a CRP impõe que o acesso dos cidadãos aos cuidados de

saúde no âmbito do SNS deve ser assegurado em respeito pelos princípios

fundamentais plasmados naquele preceito constitucional, designadamente a

universalidade, generalidade e gratuitidade tendencial.

68. Por sua vez, a Lei de Bases da Saúde, aprovada pela Lei n.º 48/90, de 24 de

Agosto, em concretização da imposição constitucional contida no referido preceito,

estabelece na sua Base XXIV como características do SNS:

“a) Ser universal quanto à população abrangida;

b) Prestar integradamente cuidados globais ou garantir a sua prestação;

c) Ser tendencialmente gratuito para os utentes, tendo em conta as

condições económicas e sociais dos cidadãos”.

69. O n.º 4 da Base I da Lei de Bases da Saúde estabelece que “os cuidados de saúde

são prestados por serviços e estabelecimentos do Estado ou, sob fiscalização

deste, por outros entes públicos ou por entidades privadas, sem ou com fins

lucrativos”, consagrando-se nas directrizes da política de saúde estabelecidas na

Base II que “é objectivo fundamental obter a igualdade dos cidadãos no acesso

aos cuidados de saúde, seja qual for a sua condição económica e onde quer que

vivam, bem como garantir a equidade na distribuição de recursos e na utilização

de serviços”.

70. Ora, nos termos do n.º 2 da Base IV da mesma Lei, “para efectivação do direito à

protecção da saúde, o Estado actua através de serviços próprios, celebra acordos

com entidades privadas para a prestação de cuidados e apoia e fiscaliza a restante

actividade privada na área da saúde”.

71. O Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E. foi criado pelo Decreto-Lei n.º 50-

A/2007 de, 28 de Fevereiro, e resulta da integração de quatro estabelecimentos

25

hospitalares, a saber, o Hospital de S. Marta, o Hospital de D. Estefânia, o Hospital

de S. José e o Hospital de S. António dos Capuchos.

72. Os Hospitais da Universidade de Coimbra foram criados, com a natureza de

entidade pública empresarial, pelo Decreto-Lei n.º 180/2008, de 26 de Agosto.

73. O CHLC e os HUC integram, assim, o conjunto das “instituições e serviços oficiais

prestadores de cuidados de saúde dependentes do Ministério da Saúde”, isto é,

pertencem ao SNS, tal como definido pelo n.º 2 da Base XII da Lei de Bases da

Saúde, e cujo Estatuto foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de Janeiro.

74. Ora, se, nos termos do art. 2.º do Estatuto do SNS, “o SNS tem como objectivo a

efectivação, por parte do Estado, da responsabilidade que lhe cabe na protecção

da saúde individual e colectiva”, cada uma das instituições que o integra

desempenha um papel de elevada relevância na prossecução de tal imposição,

devendo garantir o direito de acesso universal e igual a todos os cidadãos aos

cuidados por si prestados.

75. Na realidade, as instituições e serviços do SNS são classificados em função das

suas responsabilidades e valências efectivamente exercidas – cfr. n.º 1 do artigo

12.º do Estatuto do SNS;

76. Sendo que quer os HUC, quer o Hospital de S. José, integrado no CHLC, são

classificados, no seio do SNS, e pelos seus meios e disponibilidades, como

estabelecimentos hospitalares com capacidade e o dever legal de prestação de

serviços de urgência polivalente – cfr. Despacho n.º 5414/2008, de 28 de Janeiro,

publicado no DR, 2.ª Série, n.º 42, de 28 de Fevereiro;

77. De onde resulta, necessariamente, a sua qualificação como estabelecimentos

hospitalares com capacidade permanente e ininterrupta para a prestação de todo o

tipo de cuidados de saúde diferenciados.

78. Ora, recorde-se que o direito de acesso à prestação de cuidados de saúde deve

ser avaliado, pelo menos, numa quádrupla perspectiva: qualitativa, temporal,

geográfica e económica.

26

79. Assim, o acesso aos cuidados de saúde deve ser, desde logo, compreendido

como o acesso aos cuidados que, efectivamente, são necessários e adequados à

satisfação das concretas necessidades dos utentes (vertente qualitativa).

80. Deverá, igualmente, um tal acesso ser sempre garantido em tempo útil (vertente

temporal) e a todos os utentes, onde quer que vivam ou se encontrem, tal como

decorre da citada Base II da Lei de Bases da Saúde (vertente geográfica).

81. Efectivamente, a perspectiva temporal do acesso obriga à prestação dos cuidados

de saúde em tempo útil, em face do que concretamente sejam as necessidades

dos utentes e os cuidados efectivamente necessários para as suas satisfações.

82. Esta configuração do direito de acesso dos utentes aos cuidados de saúde

prestados nas instituições que integram o SNS vem, no fundo, concretizar o

referido art. 64.º da CRP, que lhe atribui como características fundamentais a

universalidade, generalidade e gratuitidade tendencial.

83. Ora, tendo a Lei de Bases da Saúde, na sua Base XXV, definido como

beneficiários do SNS, designadamente, “todos os cidadãos portugueses”, é

incumbência dos estabelecimentos hospitalares do SNS, em concretização da

referida universalidade, prestar os seus serviços de saúde a todos os beneficiários

do SNS que deles necessitem, efectivando, assim, o seu direito de acesso aos

cuidados de saúde.

84. E, relativamente à determinação do tipo de cuidados de saúde que devem ser

abrangidos pelo SNS, impõe-se a garantia, com maior ou menor grau, de uma

prestação integrada de cuidados globais de saúde aos seus beneficiários.

85. Consequentemente, e se é certo que a violação do direito de acesso, como direito

complexo, pode surgir sob diferentes formas, ou ser originada por diferentes

causas, é igualmente certo que uma das suas violações mais gravosas e últimas

consubstancia-se na rejeição infundada de pacientes;

86. Que pelo seu próprio significado de “recusa, renúncia ou repúdio”2, constitui o

oposto de “acesso”;

2 Cfr. Dicionário de sinónimos, 2ª Edição, Porto Editora.

27

87. E que, consequentemente, já se acharia em absoluto e insanável conflito com o

quadro legal vindo de apresentar.

88. Ainda assim e como visto, o Legislador cuidou de expressamente proibir a rejeição

discriminatória ou infundada de pacientes, primeiramente no Decreto-Lei n.º

309/2003, de 10 de Dezembro, aplicável à data dos factos;

89. E actualmente no Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio.

III.2.1 A violação dos critérios de acesso aos cuidados de saúde no Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio

90. Efectivamente, o direito de acesso aos cuidados de saúde é, também e desde

logo, conformado pelo Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio.

91. Assim, e no que concretamente respeita ao objectivo regulatório da ERS de

assegurar o cumprimento dos critérios de acesso aos cuidados de saúde, as

alíneas a) e b) do artigo 35.º Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio,

estabelecem, como visto, que é incumbência da Entidade

a) Assegurar o direito de acesso universal e equitativo aos serviços

públicos de saúde ou publicamente financiados; e

b) Prevenir e punir as práticas de rejeição discriminatória ou

infundada de pacientes nos estabelecimentos públicos de saúde ou

publicamente financiados.

92. Outrossim, é estabelecido, na alínea b) do n.º 2 do artigo 51.º do Decreto-Lei n.º

127/2009, de 27 de Maio, que

“Constitui contra-ordenação, punível com coima de € 1000 a € 3740,98

ou de € 1500 a € 44 891,81, consoante o infractor seja pessoa singular

ou colectiva:

[…]

28

b) A violação das regras relativas ao acesso aos cuidados de saúde,

incluindo a violação da igualdade e universalidade no acesso ao SNS e

a indução artificial da procura de cuidados de saúde; […]”.

93. O Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, veio, então, tipificar como ilícito contra-

ordenacional comportamentos que consubstanciem uma violação das regras

relativas ao acesso aos cuidados de saúde;

94. Designada mas não limitadamente quando os mesmos representem uma violação

da igualdade e universalidade no acesso ao SNS.

95. Sucede, porém, que os factos e comportamentos aqui em análise ocorreram em

30 e 31 de Dezembro de 2008;

96. Pelo que não se encontravam tipificados, até ao momento da entrada em vigor do

Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, enquanto ilícito contra-ordenacional.

97. Assim, e apesar da violação das regras de acesso aos cuidados de saúde, e

designadamente da igualdade e universalidade no acesso ao SNS, serem já

preocupações regulatórias da ERS ao abrigo do anterior Decreto-Lei n.º 309/2003,

de 10 de Dezembro, apenas com o referido Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de

Maio, é que as mesmas foram erigidas à categoria de ilícito contra-ordenacional

punível com coima;

98. Sendo que, nos termos do n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27

de Outubro, na redacção resultante da Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro,

(Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas – RGCO)

“1 – A punição da contra-ordenação é determinada pela lei vigente no

momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de

que depende.

2 - Se a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormente

modificada, aplicar-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já

tiver sido condenado por decisão definitiva ou transitada em julgado e já

executada”.

99. Ora, os factos supra apresentados são anteriores a 26 de Junho de 2009, data de

entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, não sendo,

consequentemente, subsumíveis à ilicitude contra-ordenacional a que agora

poderiam estar sujeitos;

29

100. O que ademais constitui a imediata decorrência do princípio fundamental da

proibição de aplicação retroactiva de lei contra-ordenacional.

101. Assim, a presente análise dos factos faz-se somente à luz do referido objectivo

regulatório de assegurar o cumprimento dos critérios de acesso aos cuidados de

saúde;

102. O qual consubstanciava já, à data dos mesmos, uma atribuição da ERS por lhe

incumbir, entre outras competências, prevenir e punir os actos de rejeição

discriminatória ou infundada de pacientes nos estabelecimentos do SNS, enquanto

concretização da garantia do direito de acesso universal e igual a todas as

pessoas ao serviço público de saúde – cfr. al. d) do n.º 2 do artigo 25.º do Decreto-

Lei n.º 309/2003, de 10 de Dezembro;

103. Sem que, pelas razões vindas de referir, sejam os factos subsumíveis ao

referido tipo contra-ordenacional estabelecido na al. b) do n.º 2 do artigo 51.º do

Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio.

III. 2.2. Dos factos imputáveis aos Hospitais da Universidade de Coimbra

104. Recorde-se que a utente M., tendo sentido uma afectação no olho esquerdo, no

dia 30 de Dezembro de 2008, e encontrando-se próxima de Coimbra, dirigiu-se ao

serviço de urgência dos HUC, no qual deu entrada pelas 22h34m do referido dia.

105. Aquando da triagem que lhe foi efectuada no referido Serviço de Urgência,

foram-lhe detectados problemas oftalmológicos e atribuída uma prioridade

“amarelo”, tendo sido consultada pelas 23h16m, de tal dia 30 de Dezembro de

2008;

106. Com base na observação que lhe foi feita, foi então diagnosticada à utente um:

“Descolamento Da Retina Com Defeito Retiniano Soe (activo)

Título do problema: diagnóstico de saída (00:00h 31-Dez-2008) […]”3;

3 Cfr. Relatório completo de episódio de Urgência enviado quer pela utente à ERS em

23.09.2009, quer pelos HUC, na sua resposta de 2.11.2009 a pedido de elementos da ERS.

30

107. Tendo sido posteriormente objecto de “Alta Médica” com as seguintes

referências:

“Alta para: Alta para o Domicílio

Destino: Exterior Não Referenciado

Tipo de alta: Alta activa

Estado do Paciente: Inalterado

Dr. E., (Oftalmologia) / 00:00 h 31-Dez-2008”.

108. Assim, foi-lhe diagnosticado descolamento da retina do olho esquerdo com

envolvimento macular e acuidade visual inferior a 1/10, tendo sido a utente

informada de que, neste tipo de patologia, a terapêutica é cirúrgica;

109. Mais acrescentando a utente que foi ainda informada que se tratava de uma

situação de intervenção cirúrgica emergente uma vez que os sintomas tinham sido

já iniciados cerca de 72 horas antes e que o processo de descolamento se estaria

a desencadear muito rapidamente por existir um tremor constante do olho

(Nistagma);

110. O que aliás nunca foi desmentido pelo HUC, nas suas respostas de 20 de Julho

de 2009 e de 2 de Novembro de 2009;

111. Sendo que nesta última resposta, é mesmo referido que a “presença de

descolamento da mácula é um sinal de mau prognóstico, estando a recuperação

visual comprometida.”.

112. Quanto à urgência em operar estas situações, a mesma resulta, segundo os

HUC, dos “[…] níveis de prioridade utilizados nas situações de descolamento de

retina [que] são os seguintes:

1 – Olhos únicos

2 – Olhos com mácula ainda assente

3 – Olhos já vitrectomizados e que se apresentem com descolamento

de retina

31

4 – Idade do doente (doentes jovens têm prioridade)

5 – Casos em que possa ser efectuada retinopexia pneumática: estes

casos, dado que a realização desta técnica cirúrgica envolve um tempo

de ocupação de Bloco Operatório de curta duração, podem ser

submetidos a cirurgia quase imediata, geralmente no final das cirurgias

da manhã”.

113. Sendo que, de acordo com os procedimentos e protocolos de atendimento,

intervenção e seguimento de utentes com diagnóstico de descolamento de retina

definidos no Serviço de Urgência dos HUC:

“Os doentes observados no Serviço de Urgência com diagnóstico de

descolamento de retina são marcados para uma consulta sub-

especializada de Retina Cirúrgica, 3ª ou 5ª feira mais próxima do dia em

que recorrem ao Serviço de Urgência.

Existem excepções a estes casos que são: doentes com olho único e

doentes com a mácula ainda assente. Nestes casos o médico de

Urgência contacta imediatamente um dos elementos da Secção de

Retina Cirúrgica, para que a cirurgia possa ser programada.

Na consulta de Retina Cirúrgica são dados mais esclarecimentos ao

doente acerca da sua situação clínica, sendo efectuada a proposta para

cirurgia que o doente assina.

O doente vai para o domicílio, sendo chamado logo que possível.”4.

114. Assim, relativamente a tais procedimentos e protocolos definidos pelos HUC em

situações de utentes a quem é diagnosticado descolamento de retina;

115. Importará referir que, no caso concreto vindo de analisar, nem tampouco tais

procedimentos ou protocolos terão sido respeitados no Serviço de Urgência dos

HUC;

116. Um vez que, conforme aliás referido pela própria utente, “apesar da urgência, a

intervenção não foi possível [nos HUC] visto a equipa médica especialista estar

4 Cfr. resposta dos HUC de 2 de Novembro de 2009 junta aos autos.

32

toda de férias […] só (re)iniciando funções na segunda-feira seguinte, 05.01.2009,

data considerada pelo Médico especialista como demasiado tardia pelo risco

iminente de descolamento total da retina e consequente perda, irreversível, de

visão.”;

117. Pelo que, por tal motivo, terá sido a utente “aconselhada a recorrer a outro

Hospital público no Porto ou Lisboa […]”5;

118. O que, de acordo com os HUC, se deveu, conforme “referido no relatório de

episódio de urgência [ao facto de], sendo a doente de Faro, prefer[iu] ser operada

em Lisboa, pelo que foi encaminhada para um dos Serviços de Urgência de

Lisboa”.

119. No entanto, segundo a utente, tanto terá ocorrido por o médico que a consultou

nos HUC lhe ter perguntado “[…] de onde era, ao que referiu que sendo de Faro,

preferiria ir para Lisboa, tendo-lhe nesse momento referido o médico que nesse

caso deveria deslocar-se ao Sta. Maria ou ao S. José, que possuiriam equipes

permanentes”;

120. Por outro lado, não se pode olvidar que os HUC, na resposta de 2 de Novembro

de 2009, ao pedido de informação da ERS, não se pronunciaram sobre a forma

como haviam procedido à referenciação da utente, nem tampouco forneceram

cópia de qualquer documento relativo à referenciação da utente para Serviço

indicado dos HUC em função do diagnóstico, ou para outro estabelecimento

hospitalar em função de tal diagnóstico e do “desejo [da utente] de ser operada em

Lisboa”, tal como lhes havia sido expressamente solicitado no pedido de

elementos da ERS, de 11 de Setembro de 2009;

121. Não obstante, resulta do relatório completo de episódio de Urgência, assinado

pelo profissional médico que atendeu a utente no Serviço de Urgência dos HUC,

na parte relativa à “História da doença actual” que a utente foi “encaminhada para

um dos Serviços de Urgência de Lisboa”.

122. Já na parte relativa à informação sobre a “Alta Médica”, é referido ter sido

efectuada “Alta para o Domicílio” com destino “Exterior Não Referenciado”;

5 Cfr. exposição inicial da utente junta aos autos.

33

123. O que aliás é confirmado pela própria utente, a qual refere que tendo

“questionado ao médico [que a atendeu na urgência dos HUC] se seria necessária

uma carta por si emitida sobre a consulta havida nos HUC, de forma a entregar

nos hospitais de Lisboa, [foi pelo mesmo referido] que não seria necessário, uma

vez que qualquer médico que a observasse imediatamente veria a gravidade do

descolamento de retina.”6.

124. Mais se refira que o próprio profissional médico que atendeu a utente no Serviço

de Urgência do CHLC (Hospital São José) “[n]ão se recorda se a doente vinha

acompanhada de algum documento relativo a tal observação nos HUC.”.

125. Do vindo de expor resulta então que os procedimentos e protocolos definidos

pelos HUC, e mais pormenorizadamente descritos supra, não foram seguidos

naquela madrugada de 30 para 31 de Dezembro de 2008;

126. Como aliás os próprios HUC acabaram por confirmar, na sua resposta de 2 de

Novembro de 2009, em que referiram, quer “[…] a doente não entrou no “Protocolo

de Atendimento, Intervenção e Seguimento de Utentes com Diagnóstico de

Descolamento de Retina” enunciado no ponto 1, nem lhe são aplicáveis os “níveis

de gravidade ou prioridade aplicáveis às diferentes situações de diagnóstico de

descolamento de retina” […]” – cfr. a referida resposta dos Hospitais da

Universidade de Coimbra junta aos autos.

127. Ora, e tendo-se inclusive solicitado parecer a um consultor técnico da ERS, o

qual referiu que “[a]pós a análise dos factos deste processo [pode concluir] que o

médico oftalmologista dos HUC fez o diagnóstico e confirmou a gravidade da

situação clínica, tendo decidido não seguir o protocolo do serviço para o

descolamento da retina, e dando alta à doente para o domicílio com a desculpa de

que a utente teria demonstrado vontade de ser tratada em Lisboa.”7;

128. E assim sendo, pode-se indagar, tal como foi feito em tal parecer técnico,

“Para que servem os protocolos de serviço nos HUC?

Se foi a doente que quis ter alta porque razão o clínico não assinou

“saída contra parecer médico”e sim alta para o domicílio?

6 Cfr. auto de declarações da utente junto aos autos. 7 Cfr. parecer técnico junto aos autos.

34

Porque razão a doente saiu do hospital sem nenhuma carta de

referenciação?”

129. Sendo portanto, e como concluído em tal parecer, o comportamento evidenciado

nos HUC “bastante controvers[o] e contraditório”.

130. Resulta assim, que não foi assegurado pelos HUC à utente em questão o acesso

aos cuidados que, efectivamente, se apresentavam como necessários e

adequados à satisfação das suas concretas necessidades (vertente qualitativa);

131. Nem tampouco, um acesso em tempo útil (vertente temporal), e

independentemente do local onde a utente vive ou se encontre, tal como decorre

da citada Base II da Lei de Bases da Saúde (vertente geográfica);

132. Efectivamente, e embora a perspectiva temporal do acesso obrigue à

prestação dos cuidados de saúde em tempo útil, em face do que concretamente

sejam as necessidades dos utentes e os cuidados efectivamente necessários para

as suas satisfações;

133. O que se verificou foi que tendo sido diagnosticado à utente “Descolamento Da

Retina Com Defeito Reteniano Soe (confirmado)”, foi dada alta à utente para o

domicílio com destino para exterior não referenciado;

134. Isto é, não só não se verificou a concretização do direito fundamental de

acesso aos cuidados de saúde, naquele concreto Serviço, atentos os protocolos

de atendimento, intervenção e seguimento de utentes com diagnóstico de

descolamento de retina que são adoptados no Serviço de Urgência dos HUC;

135. E que obrigariam a que nos casos de doentes com olho único e doentes com a

mácula ainda assente, onde se incluiria a utente em questão, “[…] o médico de

Urgência contacta[sse] imediatamente um dos elementos da Secção de Retina

Cirúrgica, para que a cirurgia [pudesse] ser programada”;

136. E que, como visto não, foram respeitados;

137. Como o mesmo Serviço não cuidou de, em face da indisponibilidade ou

impossibilidade de dar seguimento imediato à situação clínica da utente, pelo

encaminhamento devidamente referenciado para um estabelecimento hospitalar

35

que pudesse proceder ao efectivo atendimento e solução do problema clínico da

utente;

138. O que se traduz claramente numa “recusa, renúncia ou repúdio” de acesso aos

cuidados de saúde de que a utente em questão necessitava;

139. E, consequentemente, numa violação grosseira do direito fundamental de

acesso aos cuidados de saúde.

III. 2.3. Dos factos imputáveis ao Centro Hospitalar de Lisboa Central

140. Em face da recusa na prestação de cuidados de saúde que foi alvo nos HUC, a

utente deslocou-se, pelos seus próprios meios e, como visto, sem ser

acompanhada de qualquer referenciação, ao Serviço de Urgência do Hospital S.

José (CHLC), em Lisboa.

141. Uma vez chegada a tal Serviço, foi admitida pelas 2h35m, tendo-lhe sido, então,

diagnosticado pelo profissional médico que a atendeu (Dr. D.) descolamento grave

de retina no OE.

142. No entanto, e por que em tal Serviço de Urgência não se encontravam presentes

oftalmologistas para procederem de imediato à intervenção, foi a mesma

informada que se deveria dirigir ao Hospital dos Capuchos (Serviço de

Oftalmologia) para ser intervencionada de imediato;

143. Ainda no Serviço de Urgência foram-lhe efectuados os exames e análises pré-

operatórios e introduzi(dos) os resultados no sistema informático para estarem

disponíveis para os colegas, e foi-lhe ainda entregue uma carta de

acompanhamento para entregar no Hospital dos Capuchos.

144. Assim, como lhe foi emitido e entregue um documento consubstanciado em

“Consulta Externa – Pedido de Consulta”, com a referência de “Muito Urgente”, e

do qual constava a referência ao descolamento de retina OE, bem como o “pedido

de marcação consulta retina cirúrgica com muita urgência”8;

8 Cfr. o referido documento junto aos autos e enviado pela utente na sua resposta ao pedido de elementos da ERS de 13.05.2009.

36

145. Ou seja, em face da impossibilidade de ser a utente desde logo intervencionada

no Serviço de Urgência – dado que “[a] cirurgia de descolamento de retina não é

realizada no âmbito do Serviço de Urgência, uma vez que a diferenciação dos

recursos humanos e materiais para a sua execução só está disponível no Serviço

de Oftalmologia.”9 – foi então “referenciada à consulta do departamento de retina

cirúrgica do Serviço de Oftalmologia deste Centro Hospitalar”.

146. Refira-se a este respeito que o próprio profissional médico que atendeu a utente

no Serviço de Urgência referiu que “[…] havendo diferentes níveis de urgência em

descolamento de retina, o caso da utente necessitava de intervenção rápida”10;

147. Isto porque, atendendo a que a utente apresentava uma situação também de

afectação da mácula, quanto maior for o período de espera pela intervenção

menor será a sua capacidade de recuperação, pelo que será sempre mais

aconselhável o menor tempo de espera para a realização da intervenção, razão

pela qual referenciou a utente para o serviço numa situação de “muito urgente”.

148. Assim, e após ter-lhe sido dado alta pelas 04h35m, a utente dirigiu-se então ao

Serviço de Oftalmologia [no Hospital dos Capuchos], onde aguardou pela sua

abertura “[…] e cerca das 8h30m [… entregou] a referida carta [de

acompanhamento] à funcionária que se encontrava de serviço, a qual referiu que a

iria entregar ao médico que lá se encontrava […]”.

149. Acontece que, de acordo com o referido pela utente pouco tempo depois a

funcionária regressou com a informação que [um tal profissional médico] não a iria

poder atender.

150. Recorde-se que, de acordo com o referido pela utente, a mesma decidiu esperar

para ver se conseguia ser observada pelo médico, tendo então se encontrado por

volta das 10h30m com o referido profissional médico que lhe “[…] reiterou que não

a atendia, até porque tinha ordens do Director, Dr. P., para não a atender.”.

151. A esse respeito, acrescente-se que de acordo com a informação prestada pelo

CHLC, em resposta a pedido de elementos da ERS de 1 de Setembro de 2009,

era o Dr. J. (…) o médico a que a doente se referia11, isto é, o profissional de

9 Cfr. resposta do CHLC de 20 de Julho de 2009 junta aos autos. 10 Cfr. auto de declarações junto aos autos. 11 Cfr. resposta do CHLC de 2 de Setembro de 2009 junta aos autos.

37

saúde com quem a utente havia contactado na manhã do dia 31 de Dezembro de

2008 no Serviço de Oftalmologia do CHLC.

152. E foi o referido profissional especificamente questionado sobre se se recordava

de ter contactado com alguma doente nessa manhã do dia 31 de Dezembro de

2008 no Serviço de Oftalmologia, tendo referido “[…] que não pode esclarecer tal

facto porque não se recorda, até porque nesse dia, como já referido, não estava no

serviço e apenas lá foi fazer uma cirurgia de urgência.”.

153. Ou seja, foi efectivamente confirmado pelo Dr. J. que nessa manhã do dia 31

de Dezembro de 2008 esteve, efectivamente, no Serviço de Oftalmologia do

Hospital dos Capuchos (CHLC);

154. Mau grado o facto que tanto não seria inclusivamente suposto ter ocorrido, uma

vez estava escalado para urgência no Hospital de S. José, mas que apesar disso

ausentou-se de tal Serviço de Urgência para vir ao Serviço de Oftalmologia fazer

uma vitrectomia de urgência, pelas 9h da manhã e após fim da mesma teve que

imediatamente regressar ao Serviço de Urgência no Hospital de S. José.

155. Já o Director do Serviço de Oftalmologia do CHLC, Dr. P., confirmou que a

utente veio referenciada do Serviço de Urgência com descolamento de retina, mas

o seu Serviço funciona com uma programação à segunda-feira de cada semana

para a cirurgia vitreo-retiniana, pelo que em função do dia em que a doente surgiu

(era uma 4ª-feira), e sendo 5ª-feira feriado e 6ª-feira tolerância de ponto, foi-lhe

marcada consulta para a 2ª-feira seguinte, dia 05.01.200912;

156. Quando questionado sobre se a utente foi vista no Serviço de Oftalmologia, no

dia 31 de Dezembro de 2008, referiu que foi vista apenas a carta de

acompanhamento elaborada pelo Serviço de Urgência e que deu, então, a

indicação que a utente entraria na “programação” ou seja, em consulta na 2ª-feira

seguinte para cirurgia durante a semana.

157. Deste facto resulta assim claro que, não obstante a utente ter sido referenciada

pelo Serviço de Urgência do CHLC com um diagnóstico de descolamento grave de

retina no OE e de lhe ter sido entregue uma carta de acompanhamento para

entregar no Serviço de Oftalmologia do Hospital dos Capuchos e documento

12 Cfr. auto de declarações junto aos autos.

38

consubstanciado em “Consulta Externa – Pedido de Consulta”, com a referência

de “Muito Urgente”;

158. A utente não foi atendida em tal Serviço de Oftalmologia do CHLC;

159. Aparentando não haver sequer qualquer registo formal de que a mesma ali se

tenha deslocado naquele dia, uma vez que na resposta do CHLC, de 20 de Julho

de 2009, a pedido de elementos da ERS, é referido que “A doente poderá ter

vindo ao Serviço 7 (Oftalmologia) no dia 31/Dez ou dia 2/Janeiro (3 e 4 Janeiro

foi fim de – semana) […]” – destaque nosso;

160. O que claramente demonstra que tampouco o referido Serviço 7 (Oftalmologia)

do CHLC possuirá registos formais da presença da utente que lhe permitisse

responder de forma clara e inequívoca à ERS sobre o dia em que a utente esteve

no Serviço de Oftalmologia;

161. E que, portanto, tudo assentou num procedimento em que “foi vista apenas a

carta de acompanhamento elaborada pelo Serviço de Urgência” pelo Director do

Serviço;

162. E na transmissão, por tal Director, da indicação que a utente entraria na

“programação” ou seja, em consulta na 2ª-feira seguinte para cirurgia durante a

semana.

163. Ou seja, está-se perante uma situação em que o Director de Serviço de

Oftalmologia confirmou a presença da utente e de que havia sido analisada a carta

de acompanhamento elaborada pelo Serviço de Urgência;

164. Mas em que o próprio CHLC não tem sequer a certeza da concreta data em que

a utente se terá dirigido ao Serviço de Oftalmologia;

165. Não tendo, portanto, sido efectuado qualquer registo da presença daquela

utente, naquele Serviço, naquela manhã de 31 de Dezembro de 2008, de onde

resulta que tal Serviço assentou o seu comportamento, pelo menos relativamente

à utente, em mera “informalidade” – ademais de rejeição -;

166. E no não seguimento de qualquer procedimento mínimo que garantisse à utente

– e ao próprio CHLC – o registo do episódio, bem como a satisfação das concretas

necessidades de cuidados de saúde da utente.

39

167. Assim, não só a utente não foi atendida, como não foi dado seguimento imediato

a um pedido de consulta muito urgente requerido pelo Serviço de Urgência;

168. Que foi “visto” pelo Director do Serviço;

169. Tal como não há qualquer registo da passagem utente por aquele serviço

naquele dia;

170. Tal como – necessária e consequentemente – nem tampouco a utente foi

integrada para “programação” ou seja, para consulta na 2ª-feira seguinte e para

cirurgia durante a semana.

171. E se é certo que o Serviço de Urgência do Hospital de S. José cumpriu o que de

si seria esperado;

172. Ou seja, e não obstante a questão dos protocolos de referenciação que infra

melhor se analisarão, a actuação dos profissionais de saúde de tal Serviço de

Urgência terá sido adequada à satisfação das concretas necessidades da utente,

na medida em que não só foram providenciados desde logo os exames e análises

pré-operatórios adequados à intervenção a que devia ser submetida, como foi

entregue uma carta de acompanhamento para entregar no Hospital dos Capuchos,

bem como o documento de “Consulta Externa – Pedido de Consulta”, com a

referência de “Muito Urgente”;

173. O mesmo não se pode dizer do Serviço de Oftalmologia, que manifestou um

comportamento altamente censurável e criticável de “recusa, renúncia ou repúdio”

de acesso aos cuidados de saúde de que a utente em questão necessitava;

174. Tendo para isso adoptado comportamentos “informais” e de todo coadunáveis

com a organização mínima de serviços de estabelecimentos hospitalares,

mormente do SNS.

175. Ou seja, praticou o Serviço de Oftalmologia do CHLC uma violação grosseira do

direito fundamental de acesso aos cuidados de saúde.

176. Por outro lado, deve também ter-se presente que, atenta a rejeição explícita

praticada pelo Serviço, mas igualmente atenta a informação dada,

designadamente nos Serviços de Urgência por onde tinha passado sobre a

40

gravidade do seu estado e do risco iminente de perda de visão, a utente buscou

auxílio junto de funcionária do Serviço de Oftalmologia do CHLC;

177. A qual lhe terá dito que “[…] atenta a época (fim-de-ano), apenas num hospital

privado teria possibilidade de ser atendida, [… sendo que quando a utente

perguntou sobre] que hospital poderia ser, [lhe foi] referido [o prestador privado].”.

178. Desde logo se refira que é inaceitável que por ser época (fim-de-ano),

aparentemente apenas no sector privado a utente lograria satisfazer as suas

necessidades de cuidados de saúde;

179. Mas a verdade é que, em função dos episódios pela qual a mesma vinha

passando, quer nos HUC, quer no CHLC (e ainda a informação que havia obtido

quanto à indisponibilidade do Hospital de Santa Maria), a utente tinha, em tal

momento, essa mesma percepção;

180. E, portanto, viu-se efectivamente num quadro de rejeição reiterada e, assim, na

necessidade de não poder contar com estabelecimentos hospitalares do SNS.

III. 3 Dos interesses legítimos da utente, designadamente financeiros

181. Importa, por último, analisar da consequência directamente decorrente da

rejeição infundada a que foi sujeita a utente M., quer nos HUC, quer em especial

no CHLC, e que motivou que buscasse auxílio junto de funcionária do Serviço de

Oftalmologia do CHLC, a qual lhe terá dito que “[…] atenta a época (fim-de-ano),

apenas num hospital privado teria possibilidade de ser atendida, [… sendo que

quando a utente perguntou sobre] que hospital poderia ser, [lhe foi] referido [o

prestador privado].”.

182. Em função do ocorrido, a utente “[d]irigiu-se de imediato para o Serviço de

Urgências [do prestador privado], onde chegou cerca das 11h30, tendo sido

chamado um oftalmologista que na consulta confirmou a necessidade imediata de

intervenção cirúrgica.”.

183. Nessa sequência, “[…] foi convocada a equipa imediatamente e foi preparada

para o bloco, para o qual entrou cerca das 14h30 [e foi] intervencionada cerca das

15h.”;

41

184. Sendo que “[a]ntes da operação teve oportunidade de falar com o cirurgião que

lhe referiu saber do périplo por que tinha passado e nessa ocasião referiu que não

corresponderia à verdade que o Director do Serviço de Oftalmologia dos Capuchos

não tinha autorizado a sua observação porque ele era o próprio Director do Serviço

dos Capuchos e não teria sido isso que tinha transmitido ao médico de Serviço, o

Dr. J..”13–

185. Ora, e quanto a este último aspecto, “[…] o cirurgião era o Dr. P. [… e] a

informação que lhe havia sido dada era a de que nos Capuchos apenas teria

consulta na 2ª-feira seguinte (dia 5.01.2009) para eventual cirurgia na 5ª-feira

seguinte (dia 8.01.2009).”.

186. A verdade é que a situação da utente seria de tal forma urgente, que a mesma

foi intervencionada nesse mesmo dia, ao início da tarde;

187. E tanto deve servir para também se enquadrar a gravidade da rejeição praticada

pelo Serviço de Oftalmologia do CHLC;

188. Que se limitou a “ver” a carta de referenciação do Serviço de Urgências e nem

cuidou sequer de providenciar por uma consulta à utente.

189. E considerando que como “[…] ainda ia ser intervencionada, [a utente] preferiu

não confrontar […] o referido cirurgião, tendo a operação ocorrido normalmente e

durado cerca de 2 horas […]” – cfr. auto de declarações da utente junto aos autos;

190. Uma vez que, como já visto e pelo próprio admitido, o cirurgião que nesse início

de tarde a intervencionou no [prestador privado] foi o Director do Serviço de

Oftalmologia do CHLC que apenas horas atrás tampouco terá permitido que a

utente fosse observada no Serviço por si dirigido.

191. Em resultado da realização da cirurgia, o [prestador privado] emitiu em nome da

utente a factura n.º , de 05.01.2009, no valor de € 7.526,33, cuja cópia se encontra

junta aos autos;

192. E que respeita, precisamente, à realização em tal prestador de cuidados de

saúde, no dia 31.12.2008, de uma “cirurgia de descolamento de retina com

vitrectomia e segmentação, delaminação e corte de membranas de vítreo ou

13 Cfr. auto de declarações da utente junto aos autos.

42

subretinianas, neovasos com ou sem endolaser, com ou sem cirurgia do cristalino”

– cfr. a referida cópia da factura junta aos autos.

193. A corroborar os factos expostos pela utente, F., marido da utente, declarou

que:

“acompanhou sempre a sua mulher aquando das deslocações aos HUC na

noite de 30.12.08, tendo-a seguidamente levado para Lisboa, onde se

dirigiu para as urgências do Hospital de São José por a sua filha lhe ter

informado que não valia a pena irem para o Santa Maria. Esteve presente

no Hospital de São José e dirigiu-se, posteriormente, com a sua mulher

para o Hospital dos Capuchos, onde, juntamente com ela, entregou a carta

que lhe havia sido emitida nas urgências do Hospital de São José. Assistiu

à funcionária a informar que o Dr. J. a mandou dizer que não iria atender a

sua mulher, tal como assistiu, após uma espera de cerca de 2 horas, ao

próprio Dr. J. a referir-lhe a si e à sua mulher que o Director não autorizava

que a sua mulher fosse consultada.

Foi para [o prestador privado] com a sua mulher, por sugestão da

funcionária do Serviço de Oftalmologia dos Capuchos, e assistiu ao Dr. P.,

antes da intervenção cirúrgica que aí viria a ter lugar cerca das 15 h do dia

31.12.08, a referir que não tinha dado tais ordens ao Dr. J., embora não

tivesse entrado em confrontação com o referido médico face ao momento

prévio à cirurgia em que se encontravam” – cfr. auto de declarações junto

aos autos.

194. Ora, a intervenção da utente no [prestador privado] é consequência directa e

necessária da rejeição de que foi objecto quer no Serviço de Urgência dos HUC,

quer no Serviço de Oftalmologia do CHLC.

195. Ou seja, tanto o comportamento do Serviço de Urgência dos HUC concorreu

para a produção de um tal resultado e é apto ao mesmo;

196. Por ter, como visto, procedido à rejeição infundada da utente;

197. Como o Serviço de Oftalmologia do CHLC, que pura e simplesmente rejeitou

infundadamente a utente, é apto a produzir o referido resultado da intervenção da

utente num estabelecimento privado de saúde.

43

198. Dito de outra forma, a lesão financeira da utente e decorrente de se ter visto na

necessidade de ser intervencionada num estabelecimento privado de cuidados de

saúde é resultado da actuação do Serviço de Urgência dos HUC;

199. Quanto é resultado da actuação do Serviço de Oftalmologia do CHLC;

200. Porquanto se qualquer um destes Serviços tivesse cumprido o seu dever legal

de garantir o acesso da utente aos cuidados de saúde que necessitava (e que lhe

foram diagnosticados), a referida lesão nunca se teria produzido.

201. Ou seja, a lesão financeira da utente é resultado directo e imediato dos

comportamentos ilícitos verificados no Serviço de Urgência dos HUC e no Serviço

de Oftalmologia do CHLC, devendo tais Serviços assumir responsabilidade pela

referida lesão financeira produzida à utente.

IV. AUDIÊNCIA DE INTERESSADOS

202. A presente decisão foi precedida da necessária audiência escrita de

interessados, nos termos do art. 101.º n.º 1 do Código do Procedimento

Administrativo, aplicável ex vi do artigo n.º 41.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27

de Maio, tendo sido chamados a pronunciar-se, relativamente ao projecto de

deliberação da ERS, a exponente M., os Hospitais da Universidade de Coimbra,

E.P.E., e o Centro Hospitalar Lisboa Central, E.P.E..

203. Refira-se que, por contacto telefónico com a ERS datado de 31 de Dezembro

de 2010, veio o marido da exponente, F., informar, relativamente ao projecto de

deliberação notificado, que se estaria [entenda-se a exponente] “[…] totalmente de

acordo com o teor da mesma, tendo já contactado um advogado para defesa dos

seus interesses e da sua mulher junto dos Tribunais e a quem pretende remeter a

referida deliberação final.” – cfr. a descrição do teor da conversa telefónica, no

memorando constante dos autos.

204. Por outro lado, os prestadores em causa, exerceram o seu direito de pronúncia,

relativamente ao projecto de deliberação da ERS notificado.

205. Na sequência da pronúncia dos HUC, foram realizadas diligências

complementares oficiosamente ordenadas pela ERS, ao abrigo do disposto no art.

44

104.º do Código do Procedimento Administrativo, tendo sido, em concreto,

remetido a esta entidade, ofício de pedido de elementos, em 29 de Janeiro de

2010, e ofício de insistência por resposta ao pedido de elementos inicial, remetido

ao mesmo estabelecimento em 3 de Março de 2010.

IV.1. Da pronúncia dos Hospitais da Universidade de Coimbra, E.P.E.

206. Por ofício de 11 de Janeiro de 2010 (doravante, pronúncia dos HUC) – junto

aos autos e cujo teor aqui se transcreve no que importa relevar –, vieram os HUC

defender, em síntese, no exercício do referido direito de pronúncia, o seguinte:

a) Como questão prévia, alegam os HUC ser “[…] fundamental saber da

identidade do consultor médico da Entidade Reguladora da Saúde (ERS)

neste processo, e quais as suas credenciais”, afirmando que “[…] o referido

consultor tece alguns comentários, como sejam, a “atitude do médico dos

HUC, parece-me bastante controversa e contraditória”, e “para que servem

os protocolos de Serviço nos HUC?”, os quais evidenciam um

desconhecimento técnico nesta área, em função dos dados por nós

fornecidos.”;

b) Referindo em seguida que “Não corresponde à verdade não terem sido

respeitados os procedimentos ou protocolos definidos pelos HUC em

situações de utentes a quem é diagnosticado descolamento da retina”,

alegando que o protocolo do Serviço de Oftalmologia para descolamento da

retina terá sido seguido no caso em concreto;

porquanto,

c) “[…] a mácula estava descolada como se comprova na folha de Urgência”

alegando que, por este motivo, “[…] a doente seria referenciada para a

próxima consulta de Vítreo e Retina, onde seria agendada a cirurgia”;

d) Sendo que “[…] em todos os períodos de férias [quando] existe menos

pessoal no Serviço (Agosto e Dezembro), existe sempre consulta e cirurgia

para estes casos.”;

45

e) No que respeita o referido no § 110 do projecto de deliberação notificado,

alegam os HUC que os factos em causa resultam desmentidos, de forma

notória, “[…] através da observação do protocolo do Serviço e da folha de

urgência da utente.”;

f) No que concerne os § 109, 116, 117 e 119 do projecto de deliberação

notificado, entendem os HUC que “[…] não existe qualquer dado, a nível do

processo, que comprove as afirmações da utente.”;

g) Consideram ainda o referido nos § 137 e 138 do projecto de deliberação

notificado, como “[…] completamente irreais pois se houve uma

recusa/renúncia ou repúdio de acesso aos cuidados de saúde neste

Serviço foi unicamente por parte da doente, conforme se pode constatar na

folha de Urgência.”;

h) Contestando por fim, o referido no § 127 do projecto de deliberação

notificado, indagando, a este respeito, “[…] como pode o referido consultor

tirar a conclusão que o médico decidiu não seguir o protocolo do Serviço?

Em que parte do processo se baseia para tirar a referida conclusão?”;

i) Juntam, com as suas alegações, o documento “Relatório completo de

episódio de Urgência”, documento que havia sido já junto aos autos, quer

pela exponente, em 24 de Setembro de 2009, quer pelos HUC, em 2 de

Novembro de 2009.

IV.2. Das diligências complementares

207. Tendo-se constatado, em face da referida pronúncia dos HUC, a necessidade

de obtenção de esclarecimentos adicionais, foi este prestador oficiado no sentido

de habilitar a ERS, com a informação e documentação descritos infra:

1) Cópia do documento comprovativo:

a) de pedido de consulta de Vítreo e Retina para a utente M. emitido pelo

Serviço de Urgência dos HUC, na sequência do atendimento da utente

em 30 de Dezembro de 2008, pelas 22h45m; e

46

b) de efectivo agendamento da consulta em questão pelo correspondente

Serviço.

2) Cópia do(s) documento(s) comprovativo(s) da prestação de informação à

utente quer do pedido de consulta emitido, quer do seu efectivo

agendamento e correspondente data e hora.

3) No caso de inexistência dos referidos elementos documentais, informação:

a) da data para a qual a consulta de Vítreo e Retina seria agendada;

b) da data para a qual a cirurgia correctiva do descolamento da retina

diagnosticado seria agendada.

4) Relativamente ao período temporal compreendido entre os dias 22 de

Dezembro de 2008 e 09 de Janeiro de 2009, inclusive, identificação:

a) do número de cirurgias correctivas do descolamento de retina realizadas

em cada um dos dias em questão; e

b) relativamente a cada cirurgia correctiva de descolamento da retina

identificada nos termos da alínea anterior:

i) da data de realização da consulta de Vítreo e Retina em que a cirurgia

foi agendada;

ii) da data de realização do diagnóstico de descolamento da retina,

identificando se o mesmo resultou de consulta de urgência nos HUC,

de consulta externa nos HUC, ou de consulta externa de outro

estabelecimento hospitalar e objecto de transferência ou

referenciação para os HUC.

208. Em resposta ao pedido de elementos da ERS, em sede de diligências

complementares, por ofício de 15 de Março de 2010, vieram os HUC afirmar que,

a) Quanto ao ponto 1, alíneas a) e b) e quanto ao ponto 2, do pedido de

informação da ERS, “[...] não foi pedida consulta de retina vítreo nem a

mesma foi agendada nos HUC porque a doente manifestou, ao Médico que

a atendeu no Serviço de Urgência, querer ser operada em Lisboa [...]”;

47

b) Quanto ao ponto 3, alínea a), a consulta de vítreo e retina, “[...] se a doente

fosse seguida e tratada nos HUC, [a consulta] seria marcada para o dia 06

de Janeiro de 2009”;

c) Quanto ao ponto 3, alínea b), “[…] a data para a qual a cirurgia correctiva

do descolamento de retina seria agendada dependeria do número de

doentes que estivessem nessa altura inscritos para cirurgia, bem como do

nível de gravidade e prioridade aplicável a cada um dos casos, pelo que

não é possível precisar essa data.”;

d) Quanto ao ponto 4, alíneas a) e b), sobre o número de cirurgias correctivas

de descolamento de retina realizadas entre 22 de Dezembro de 2008 e 9

de Janeiro de 2009 bem como as datas da realização do diagnóstico e da

consulta de Vítreo e Retina em que a cirurgia foi agendada, o prestador

juntou o quadro seguinte14:

Data da cirurgia

Patologia Proveniência Consulta CVR em que [a] cirurgia foi agendada

26/12/2008 Redescolamento de retina

Consulta de CVR 24/12/2008

24/12/2008

26/12/2008 Descolamento de retina

Serviço de Urgência

24/12/2008

26/12/2008

5/01/2009 Descolamento de retina

Serviço de Urgência

24/11/2008

25/11/2008

Redescolamento de retina

Serviço de Urgência

30/12/2008

5/01/2009

07/01/2009 Redescolamento de retina

Serviço de Urgência

30/12/2008

5/01/2009

09/01/2009 Redescolamento de retina

Serviço de Urgência 6/12/2008

6/01/2009

IV.3. Análise dos argumentos aduzidos pelos Hospitais da Universidade de Coimbra, E.P.E.

14 Tabela constante da pronúncia dos HUC, cujo teor integral ora se transcreve.

48

209. Refira-se, desde já, que os argumentos apresentados pelos HUC em sede de

audiência de interessados e de diligências complementares ordenadas pela ERS

foram devidamente considerados e ponderados;

210. Verificando-se, no entanto, que os mesmos não são de molde a infirmar os

factos e sua apreciação, tal como constantes do projecto de deliberação da ERS.

211. Efectivamente, e quanto à questão levantada pelos HUC sobre a identidade do

consultor médico que prestou o já referido parecer à ERS, note-se que os autos do

processo, que corre termos na ERS e que contém os elementos documentais de

suporte ao projecto de deliberação notificado, sempre esteve (e está) disponível

para consulta dos interessados;

212. Com efeito, nos ofícios que acompanharam o projecto de deliberação

notificado, vinha mencionado que o processo estaria disponível para consulta – cfr.

as cópias dos ofícios constantes dos autos;

213. Pelo que, a todo o momento, e em particular durante o prazo de exercício do

direito de pronúncia, poderiam os HUC ter tido acesso, por consulta dos autos, não

só à identificação cabal do médico consultor da ERS, autor de tal parecer técnico,

bem como ao teor integral do mesmo parecer.

214. O certo é que os HUC questionam a identidade e credenciais do referido

consultor médico, por entenderem que as considerações vertidas no referido

parecer, designadamente que “[…] a atitude do médico dos HUC parece-me

bastante controversa e contraditória […]” e “para que servem os protocolos de

Serviço nos HUC?”, demonstrariam desconhecimento técnico na área em causa,

face aos dados que terão sido fornecidos pelos HUC.

215. Ora, atento o teor dos argumentos em seguida aduzidos por este prestador,

sumariamente descritos no § 206, alíneas b), c) e d) supra, verifica-se que os HUC

contestam, em suma, a imputação, constante do projecto de deliberação

notificado, de que no caso concreto da utente M., não terão sido respeitados, por

este prestador, os procedimentos e protocolos de atendimento, intervenção e

seguimento dos utentes com diagnóstico de descolamento de retina pelo mesmo

prestador definidos;

49

216. Discordando do teor e conclusões do parecer técnico, o qual, como já referido

supra15 foi solicitado para aferir do cumprimento ou não pelos HUC, no caso

vertente, de tais procedimentos e protocolos, tendo-se concluído em tal parecer16,

designadamente, que o médico terá “[…] decidido não seguir o protocolo do

serviço para o descolamento da retina […] e dando alta à doente para o domicílio

com a desculpa de que a utente teria demonstrado vontade de ser tratada em

Lisboa”.

217. E a respeito destes argumentos, e em concreto, quanto à negação, pelos HUC,

de “[…] não terem sido respeitados os procedimentos ou protocolos definidos

pelos HUC em situações de utentes a quem é diagnosticado descolamento da

retina”, recorde-se que foram os próprios HUC que, em resposta a pedido de

informação adicional da ERS de 11 de Setembro de 2009, prestada no decurso do

inquérito da ERS, em 2 de Novembro de 2009, referiram que “[…] Sendo a

vontade expressa da doente não ser submetida a cirurgia nos Hospitais da

Universidade de Coimbra, mas sim num Hospital da área de Lisboa, a doente não

entrou no “Protocolo de Atendimento, Intervenção e Seguimento de Utentes com

Diagnóstico de Descolamento de Retina” enunciado no ponto 1, nem lhe são

aplicáveis os “níveis de gravidade ou prioridade aplicáveis às diferentes situações

de diagnóstico de descolamento de retina referidos no ponto 2”17.

218. Ou seja, consta dos autos a declaração expressa de que no caso da utente não

foi seguido o protocolo;

219. Nem tendo logrado, por outro lado, os HUC aduzir qualquer informação ou

prova, de que, como alegam, “[…] a doente seria referenciada para a próxima

consulta de Vítreo e Retina, onde seria agendada a cirurgia.”.

220. Com efeito, e para além da negação, não aduziram os HUC, nem na pronúncia

nem na resposta ao pedido dirigido em diligências complementares, factos que

permitissem apreciar em sentido contrário;

221. Tal como remanesce sem explicação, pelos HUC, o já indagado no processo

de inquérito sobre as razões pelas quais foi dada alta à utente para o domicílio

com destino para exterior não referenciado, sem qualquer menção à alegada 15 § 33 do projecto de deliberação notificado. 16 § 34 do projecto de deliberação notificado. 17 § 32 e 126 do projecto de deliberação notificado.

50

pretensão de marcação de consulta à utente, nem emissão de uma carta de

referenciação;

222. Ou seja, remanesce sem qualquer explicação – para além da efectiva violação

grosseira do direito de acesso da utente aos cuidados de saúde de que

necessitava – a razão pela qual os HUC se limitaram a rejeitar a utente, não lhe

prestando – nem programando uma tal prestação – os cuidados de saúde de que a

mesma necessitava.

223. A verdade é que após ter sido diagnosticado à utente o descolamento de retina

com a gravidade que já supra se apresentou;

224. E que, recorde-se e como os próprios HUC referiram, perturbações visuais há

mais de 4 dias – cfr. resposta dos HUC à ERS de 20 de Julho de 2009;

225. E que apresentaria um sinal de mau prognóstico – cfr. a resposta dos HUC à

ERS de 2 de Novembro de 2009;

226. Vieram os HUC, em sede de diligências complementares, limitar-se a repetir

que a predita consulta não foi marcada, por a doente ter manifestado a vontade de

ser atendida junto de outro estabelecimento;

227. Mas que “[...] se a doente fosse seguida e tratada nos HUC, [a consulta] seria

marcada para o dia 06 de Janeiro de 2009”;

228. O que demonstra à saciedade a não aplicação do protocolo, o qual não é de

aplicação voluntária;

229. O qual, seguramente, não existe para ser aplicado “em função da vontade” dos

utentes.

230. E recorde-se que, na já referida resposta dos HUC à ERS de 2 de Novembro

de 2009, vieram estes esclarecer que o Protocolo de Atendimento, Intervenção e

Seguimento de Utentes com Diagnóstico de Descolamento de Retina determina

que

“Os doentes observados no Serviço de Urgência com diagnóstico de descolamento

de retina são marcados para uma consulta sub-especializada de Retina Cirúrgica,

3ª ou 5ª feira mais próxima do dia em que recorrem ao Serviço de Urgência.”.

51

231. O protocolo não faz qualquer reserva ao facto de tal 3ª ou 5ª feira mais próxima

do dia em que recorrem ao Serviço de Urgência dever ser dia útil;

232. Uma vez que o mesmo visa, claro está, garantir que qualquer doente

diagnosticado com descolamento de retina seja observado em consulta sub-

especializada de Retina Cirúrgica, o mais tardar, no quinto dia após tal diagnóstico.

233. E ao terem vindo confirmar, em sede de diligências complementares, que “[...]

se a doente fosse seguida e tratada nos HUC, [a consulta] seria marcada para o

dia 06 de Janeiro de 2009”;

234. Estão os HUC a confirmar que uma utente diagnosticada de descolamento de

retina com perturbações visuais há mais de 4 dias teria – eventualmente e na

melhor das hipóteses - consulta sub-especializada de Retina Cirúrgica 11 (onze)

dias após o início da patologia;

235. Ou seja, mais do dobro daquilo que será o máximo de tempo aceitável para

aguardar por uma tal consulta;

236. E de onde resulta manifesto e evidente o comportamento violador do direito de

acesso da utente pelos HUC.

237. Mas ainda sobre esta questão, e de forma a afastar-se por completo os

argumentos dos HUC, recorde-se que tampouco é a ERS ou um seu consultor que

identifica a gravidade da situação da utente;

238. Em face da gravidade que um diagnóstico de descolamento da retina do olho

esquerdo com envolvimento macular e acuidade visual inferior a 1/10 representa.

239. Cite-se, a mero título de exemplo, a Recomendação n.º 02/05, de 15 de

Novembro de 2005, do Conselho Executivo da Ordem dos Médicos, a qual define

como “[…] imperativo deontológico a ser observado pelos médicos responsáveis

das unidades em que se pratique cirurgia da retina e/ou vítreo-retiniana e que

simultaneamente assumam compromissos de tratamento de doentes urgente, que,

um descolamento da retina em olho anteriormente útil, com menos de um mês

de evolução, deverá ter prioridade absoluta sobre as outras cirurgias

programadas […]”, e que,

52

“se a unidade em causa não possuir pessoal ou equipamento necessário para

responder com a solução terapêutica mais adequada, deve estar previamente

assegurado o encaminhamento de tais doentes para local adequado.”.

240. E, como visto, não somente os HUC “decidiram” não aplicar o protocolo

alegadamente por “vontade da doente”;

241. Sendo que se a questão fosse a “vontade da utente” em ser submetida a

cirurgia em outro estabelecimento (de Lisboa), porque razão não foi assegurado o

encaminhamento da utente para local adequado?

242. Ou se a utente pretendia ir para outro estabelecimento, sem ser através de

encaminhamento por parte dos HUC, porque razão não lhe foi dada alta contra

parecer médico?

243. Na verdade, os HUC limitaram-se, como já referido, a dar alta à utente para

exterior não referenciado;

244. Ou seja, limitaram-se a mandar a utente embora;

245. Sem sequer lhe haverem agendado consulta sub-especializada de Retina

Cirúrgica numa situação em que a utente corria – e correu – risco de perda de

visão;

246. O que bem demonstra a total e absoluta falta de fundamento dos argumentos

apresentados pelos HUC.

247. E relativamente ao alegado pelos HUC de que as considerações relativas ao

atendimento da utente no Serviço de Urgência, sendo baseadas em “[…]

afirmações da utente […]” não encontram apoio no restante quadro factual

subjacente à análise da ERS;

248. Refira-se que este argumento apenas pode ser o resultado de uma negação

pelos HUC de todo o remanescente quadro factual constante dos autos;

249. E assente em prova distinta de declarações da utente.

250. Os HUC não podem deixar de tirar as devidas ilações do facto de,

relativamente à urgência da intervenção e respectiva impossibilidade de esta vir a

53

realizar-se em tempo útil, constar dos autos, designadamente na ficha de urgência

do CHLC, a declaração do médico responsável pelo atendimento, Dr. D., que a

utente “[…] tendo recorrido ao HUC onde lhe disseram que só tinha vaga para

operar na próxima 2.ª feira, achando que seria muito tarde para o efeito,

recomendando a doente que recorresse ao nosso Centro Hospitalar”;

251. Por outro lado, no âmbito das diligências de inquirição levadas a cabo pela

ERS, consta do depoimento do mesmo Dr. D. do CHLC, que “[…] segundo

informação que a doente na altura deu, vinha dos HUC, os quais lhe teriam

diagnosticado a patologia, mas que não teriam a disponibilidade para a operar nos

próximos dias […]”18;

252. E que ao ter informado a utente do risco de perda de visão, verificou que “[…] a

própria [utente] conhecia [tal risco] porque já vinha de outro estabelecimento

hospitalar.”;

253. Ou seja, já no serviço de urgência dos HUC lhe havia sido transmitido que a

mesma corria risco de perda de visão, e que a vaga para operar na próxima 2.ª

feira seria muito tarde para o efeito.

254. E estamos, então, perante uma situação em que uma utente se apresenta num

serviço de urgências de um estabelecimento hospitalar de Lisboa pelas 2h35m da

madrugada;

255. Já vinda dos HUC – como aliás resulta da ficha da urgência e não de

“declarações da utente”;

256. E que logo na altura referiu ao médico da urgência do CHLC que os HUC lhe

disseram que só tinham vaga para operar na próxima 2.ª feira, achando que seria

muito tarde para o efeito.

257. E a gravidade do diagnóstico seria tão evidente que foram, inclusivamente,

efectuados exames pré-operatórios logo no serviço de urgência do CHLC para

agilizar a cirurgia de que a utente necessitava urgentemente.

18 § 42 do projecto de deliberação notificado.

54

258. Resulta, assim, de documentos e de depoimento de terceiro, recolhido no

processo de inquérito, afirmações em tudo similares aos factos tal como foram

expostos pela utente no mesmo processo de inquérito;

259. Tal como todo o quadro factual é assente num conjunto de elementos de prova

- todos eles precisos e concordantes - com a situação experimentada pela utente,

seja nos HUC, seja no CHLC;

260. Pelo que os factos que basearam o entendimento da ERS, e motivaram as

conclusões quanto aos factos imputáveis ao prestador em causa, não assentam só

nas declarações da exponente, sendo corroborados pelos demais elementos

probatórios constantes do processo.

261. E acresce ainda que, como resulta da resposta dos HUC ao pedido de

elementos da ERS realizado em sede de diligências complementares, não foi

efectuada nenhuma cirurgia correctiva de descolamento de retina após o dia 26 de

Dezembro de 2008 até ao dia 5 de Janeiro de 2009;

262. Ou seja, os factos relativos à actividade dos HUC nesse período são evidentes

e claros;

263. E afastam por completo os seus argumentos;

264. Antes corroborando a afirmação de que “apesar da urgência, a intervenção não

foi possível [nos HUC] visto a equipa médica especialista estar toda de férias (não

fosse a semana dos festejos do fim de ano), só (re)iniciando funções na segunda-

feira seguinte, 05.01.2009, data considerada pelo Médico especialista como

demasiado tardia pelo risco iminente de descolamento total da retina e

consequente perda, irreversível, de visão.”;

265. O que é inclusivamente corroborado pelos HUC quando referem que “[...] se a

doente fosse seguida e tratada nos HUC, [a consulta] seria marcada para o dia 06

de Janeiro de 2009”.

266. Em conclusão, os HUC nem tampouco lograram provar o alegado na sua

pronúncia de que em todos os períodos de férias, “[…] existe sempre consulta e

cirurgia para estes casos.”;

267. Uma vez que, na realidade, não existia;

55

268. E também aqui em absoluta contradição com o seu (inaplicado) protocolo.

269. Reitera-se, portanto, a conclusão de que a actuação deste prestador originou

uma violação grosseira do direito fundamental de acesso aos cuidados de saúde;

270. Concluindo-se, por todo o exposto, que a pronúncia dos HUC não apresenta

qualquer elemento, factual ou jurídico, que imponha uma alteração ou revogação

do conteúdo projecto de deliberação da ERS.

IV.4. Da pronúncia do Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E.

271. Por ofício de 19 de Janeiro de 2010 (doravante, pronúncia do CHLC) – junto

aos autos e cujo teor aqui se transcreve no que importa relevar –, veio o CHLC

defender, em síntese, no exercício do referido direito de pronúncia, o seguinte:

a) “[…] concorda inteiramente com a alínea d) da Instrução [leia-se alínea d)

da decisão constante do § 202 do projecto de deliberação notificado19] -,

“[…] indo de imediato dar início às diligências necessárias à melhoria da

organização dos serviços de urgência oftálmica.”;

b) “ […] o CHLC não violou o direito fundamental de acesso aos cuidados de

saúde, rejeitando, ou repudiando a utente […] pois só o teria feito se se

entendesse que a consulta indicada para o dia 5 de Janeiro e a cirurgia

indicada para o dia 8 de Janeiro seriam demasiado tardias para a situação

da utente”;

c) Defendendo, sobre este aspecto, que “[…] como no próprio projecto de

deliberação se refere […] o direito de acesso deve ser avaliado numa

perspectiva temporal, ou seja, deve ser garantido “em tempo útil”;

19 Que dispunha o seguinte: “ O Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE deve imediatamente adoptar as medidas necessárias a evitar ocorrência(s) similares, bem como à permanente aplicação dos procedimentos ou protocolos de referenciação e atendimento de utentes que, apresentando-se nos Serviços de Urgência revelem um diagnóstico de descolamento de retina, de forma os mesmos sejam, efectivamente, aptos a assegurar a garantia de um acesso universal, geral, tendencialmente gratuito e, especialmente, em tempo útil em função da necessidade de cuidados de saúde de tais utentes;”

56

d) E que, “[…] conforme se refere na “Avaliação do Acesso dos Doentes com

descolamento da retina a cirurgia correctiva nos hospitais do SNS – ERS

2008 – […]”;

e) “[…] e de acordo com parecer técnico obtido por este CHLC, sendo a

possibilidade de recuperação variável, em função da causa, da localização,

das dimensões do descolamento e da sua duração, um tempo médio de

espera cirúrgica de 3 a 5 dias, com operação na mesma semana em que se

procede ao diagnóstico, “afigura-se razoável”, enquanto que períodos

superiores a 10 dias podem pôr em causa o legítimo direito ao acesso à

respectiva cirurgia correctiva no tempo clinicamente aconselhável […]”;

f) Acrescentando ainda que, “A doente, aliás, terá comprometido um bom

prognóstico ao ter recorrido ao SNS passadas mais de 48 h da diminuição

da acuidade visual e cerca de um mês passados os primeiros sintomas”;

g) E mais referindo que “[…] a falta de registo e de marcação da consulta […]

ter-se-ão devido apenas ao facto da doente não ter pretendido esperar por

aquelas datas. Se não tivesse tomado tal opção, certamente a doente teria

sido objecto de registo e marcação de consulta para o dia 5, e de

programação de cirurgia para o dia 8 de Janeiro.”;

h) Quanto à questão atinente à assunção de responsabilidades pela lesão

financeira da utente [alíneas e) e f) da decisão constante do § 202 do

projecto de deliberação notificado], veio este prestador alegar na sua

pronúncia que “[…] não sendo evidente, […] que a dilação da intervenção

proposta não seria razoável e adequada à situação da doente, também se

não afigura evidente que a intervenção [do prestador privado], no valor de

7526, 33€, tenha sido consequência directa e necessária da referida

dilação proposta pelo CHCL, afigurando-se que a “lesão financeira” se terá

devido tão só a uma opção da utente, que entendeu não querer esperar

pelo calendário indicado pelo Serviço de Oftalmologia.”.

IV.5. Análise dos argumentos aduzidos na pronúncia do Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E.

57

272. Refira-se desde já, e à semelhança das considerações incidentes sobre a

pronúncia dos HUC, que os argumentos apresentados pelo CHLC em sede de

audiência de interessados, foram devidamente considerados e ponderados;

273. Verificando-se, no entanto, que os mesmos não são de molde a infirmar os

factos e a sua apreciação, tal como constantes do projecto de deliberação da ERS.

274. No que respeita a negação, pelo CHLC na sua pronúncia, dos factos imputados

no projecto de deliberação notificado, quanto à renúncia, por este prestador, na

prestação de cuidados de saúde à utente, alegando que tal só teria sucedido se

“[…] se entendesse que a consulta indicada para o dia 5 de Janeiro e a cirurgia

indicada para o dia 8 de Janeiro seriam demasiado tardias para a situação da

utente […]”, refira-se que não só este entendimento não foi manifestado

anteriormente pelo CHLC, nas respostas por si prestadas no decurso do processo

de inquérito;

275. Nem as diligências encetadas pela ERS permitiram apurar factos que

conduzissem a tal convicção.

276. Bem pelo contrário, os factos constantes do processo são de molde a infirmar o

ora defendido pelo CHLC na sua pronúncia.

277. Com efeito, os factos apurados permitiram constatar, em primeiro lugar, que na

verdade a utente não foi sequer atendida no Serviço de Oftalmologia dos CHLC;

278. Uma vez que, e conforme amplamente analisado supra, houve uma recusa

expressa no Serviço de Oftalmologia do CHLC em observar a utente;

279. Pelo que todo o argumento falece pela base, uma vez que não havendo sido

observado, não é aceitável que agora se procedam a alegações genéricas e

abstractas sobre a possibilidade – teórica – de um doente com tal diagnóstico

poder aguardar 9 dias, ou seja, de 31 de Dezembro de 2008 a 8 de Janeiro de

2009.

280. E esta utente em concreto, podia de facto aguardar?

281. Obviamente, o CHLC sobre isso nada refere;

58

282. Porque para isso teria que ter observado, no seu Serviço de Oftalmologia, a

utente.

283. A falta de apego à realidade dos argumentos apresentados pelo CHLC é ainda

demonstrada pelo facto de se ter verificado que no Serviço de Oftalmologia de tal

prestador imperaram os procedimentos “informais”;

284. Sendo absolutamente inaceitável que, como aliás resulta da própria resposta

do CHLC ao pedido de elementos da ERS, de 20 de Julho de 200920, que a doente

poderia ter vindo a tal Serviço de Oftalmologia, “[…] no dia 31/Dez ou dia

2/Janeiro (3 e 4 Janeiro foi fim de – semana) […]”;

285. Ou seja, nem sequer o CHLC possui um registo da presença da utente no dia

31 de Dezembro de 2008;

286. Pelo que tampouco devem agora merecer aceitação os argumentos de que a

utente seria, seguramente, submetida a cirurgia em tempo útil.

287. Por outro lado, na factualidade apurada consta que a análise da situação da

utente pelo Director do Serviço de Oftalmologia do CHLC cingiu-se a uma análise

do pedido de consultas elaborada pelo Serviço de Urgência;

288. Documento esse que referia um “pedido de marcação de consulta retina

cirúrgica com muita urgência”;

289. O que deveria implicar que o Director do Serviço de Oftalmologia em causa,

quando visse uma tal carta, tivesse pelo menos o cuidado de observar a utente;

290. A que acresce que se igualmente tivesse analisado a Ficha da Urgência teria

tomado conhecimento das declarações do médico que assistiu a utente no Serviço

de Urgência, o qual produziu como informação clínica que “[…] Refere diagnóstico

de descolamento de retina OE […] com sintomas desde há 3 dias, tendo recorrido

ao Hospital [de] Coimbra onde lhe disseram que só tinham vaga para operar na

próxima 2ª feira, achando que seria muito tarde, recomendando a doente que

recorresse ao nosso Centro Hosp. [CHLC].”.

20 § 36 do projecto de deliberação notificado.

59

291. Ora, não é aceitável invocar-se o estudo “Avaliação do Acesso dos Doentes

com descolamento da retina a cirurgia correctiva nos hospitais do SNS – ERS

2008 – […]”, bem como um “[…] parecer técnico obtido por este CHLC”;

292. Dos quais se retira que o tempo médio de espera para cirurgia deve ser de 3 a

5 dias;

293. Quando o CHLC admite que a utente já teria sintomas desde há 3 dias;

294. E que teria que aguardar – eventualmente e se efectivamente viesse a ser

efectivamente atendida, atenta a absoluta falta de registo no Serviço de

Oftalmologia do CHLC da presença da utente nas suas instalações – mais 5 dias

pela consulta de retina cirúrgica, ou seja, até 5 de Janeiro de 2009;

295. Para eventualmente ser submetida a cirurgia em 8 de Janeiro de 2009;

296. Ou seja, 11 (onze) dias após o início da patologia;

297. Isto é, mais do dobro daquilo que será o máximo de tempo aceitável, e de onde

resulta manifesto e evidente o comportamento violador do direito de acesso da

utente pelo CHLC.

298. Resulta, assim, da factualidade imputada que a utente não foi atendida, não

tanto porque se tratasse de situação clínica que pudesse aguardar, como alega

entretanto o CHLC na sua pronúncia, mas antes por manifesta recusa dos serviços

respectivos;

299. Com efeito, nos depoimentos recolhidos pela ERS em sede de diligências de

inquirição, referiu o colaborador do CHLC, Dr. J., “[…] especificamente em tal

situação no dia 01/01/2009 era feriado, o dia 02/01/2009 “uma ponte”, pelo que o

primeiro dia útil era Segunda-feira dia 05/01/2009”;

300. Referindo ainda o Dr. P., Director do Serviço de Oftalmologia, que “[…] em

função do dia em que a doente surgiu (era uma 4ª-feira), e sendo 5ª- feira feriado e

6ª-feira tolerância de ponto, foi-lhe marcada consulta para 2ª-feira seguinte, dia

05.01.2009. Se não fosse 5ª-feira feriado e 6ª-feira tolerância de ponto, a doente

seria vista na 4ª-feira e seria programada para a semana seguinte a sua cirurgia

60

(sem prejuízo de quando se detectam situações imediatas se poder alterar a

programação).”21

301. Ora, daqui resulta que a eventual integração da utente na programação de 5 de

Janeiro de 2009 não foi motivada, como defendido pelo CHLC na sua pronúncia,

por tratar-se de situação que pudesse aguardar, mas antes por indisponibilidade

dos serviços respectivos para proceder ao atendimento imediato da utente – é

aliás o Dr. P. quem afirmou perante a ERS, como consta supra, que não fossem os

dias seguintes dias não úteis, a utente teria sido observada no próprio dia 31 de

Dezembro.

302. Recorde-se, ainda, e ao invés do que ora alega o CHLC, que a situação da

utente foi qualificada como “Muito Urgente”, e merecedora de uma intervenção

rápida e imediata;

303. E de onde resulta, também e necessariamente, que o próprio médico do

Serviço de Urgência do CHLC qualificou a situação da utente como merecendo

intervenção imediata;

304. Ou, quando muito, no menor do tempo admissível para a cirurgia de

descolamento de retina;

305. E nunca no maior de tal tempo admissível.

306. Com efeito, aquando da observação no Serviço de Urgência do Hospital S.

José, e como já referido, a situação da utente foi qualificada como “Muito Urgente”,

tendo sido emitido e entregue o documento com a menção “Consulta externa –

Pedido de consulta”, com a referência de “Muito Urgente”22, tendo sido, ainda,

efectuadas neste serviço rotinas pré-operatórias, de forma a agilizar o processo23;

307. Relembrando-se, ainda, que dos depoimentos recolhidos pela ERS, em sede

dos quais os inquiridos declararam que “[…] mesmo que não fosse para operar no

próprio dia, seria normal que a doente fosse observada e ficasse encaminhada

[…]”24 e que para pedidos de consulta cirúrgica “muito urgentes” – situações

21 § 53 e 54 do projecto de deliberação notificado. 22 § 21 do projecto de deliberação notificado. 23 § 48 do projecto de deliberação notificado. 24 Cfr. declarações do Dr. D., constantes dos autos.

61

similares à da utente – “[…] a cirurgia de descolamento é urgente e deve ser

efectuada o quanto antes”25.

308. E o quanto antes não é, seguramente, submeter-se uma utente “muito urgente”

e com risco de perda de visão a uma espera de 11 (onze) dias após o início da

patologia para realização de cirurgia;

309. E a confirmar, por fim, a necessidade de intervenção urgente, recorde-se que a

situação da utente seria tal que a mesma foi intervencionada nesse mesmo dia 31

de Dezembro de 2008, ao início da tarde, tendo sido chamado, expressamente

com tal propósito, o médico responsável pela intervenção cirúrgica26;

310. O qual, como já referido, era o Dr. P., que aparentemente não viu razão para

operar a utente nesse mesmo dia umas horas antes;

311. Mas que já terá encontrado uma tal razão quando a cirurgia foi realizada no

[prestador privado].

312. E é assim que a invocação genérica e abstracta de considerações de um

estudo elaborado pela ERS27, sem estar coadjuvado por qualquer elemento

concreto atinente à efectiva observação da utente, não é suficiente de molde a

infirmar a provada e fundamentada necessidade de intervenção ”muito urgente”;

313. Nem tampouco a invocação de um parecer técnico que terá sido obtido pelo

CHLC, mas cujo teor a ERS desconhece, logra provar o ora invocado pelo CHLC;

314. Uma vez que, desde já se refira, não tendo a utente sido efectivamente

observada pelo Serviço de Oftalmologia, não terá, seguramente e por falta de

“objecto ou elementos para perícia”, um tal parecer uma qualquer aplicação

concreta ao caso da utente.

315. No que concerne, por último, à invocação de que a lesão financeira da utente

“[…] se terá devido tão só a uma opção da utente, que entendeu não querer

esperar pelo calendário indicado pelo Serviço de Oftalmologia”, sempre se diga

25 Cfr. declarações do Dr. J., constantes dos autos. 26 § 55 e 186 do projecto de deliberação notificado. 27 “Avaliação do acesso dos doentes com descolamento da retina a cirurgia correctiva nos hospitais do SNS”, estudo da ERS de Setembro de 2008, disponível no sítio electrónico desta Entidade.

62

que, não foi carreado para o processo de inquérito, pelo CHLC, qualquer facto ou

elemento donde resulte que a utente foi devidamente informada quanto à alegada

suficiência da dilação proposta para o tratamento;

316. Como nunca o poderia ter sido, pelo simples facto de a utente não ter sido

sequer observada.

317. Pelo contrário, face à rejeição a que foi sujeita, a utente terá procurado auxílio

junto de funcionária do Serviço de Oftalmologia do CHLC, a qual lhe terá dito que

“[…] atenta a época (fim-de-ano), apenas num hospital privado teria possibilidade

de ser atendida […]”.

318. Assim, o CHLC, com as considerações vertidas na sua pronúncia, não logra

infirmar os factos imputados, e que basearam a convicção de que a intervenção da

utente no [prestador privado] é consequência directa e necessária da rejeição de

que foi objecto, no Serviço de Oftalmologia do CHLC;

319. Entendendo-se assim, como anteriormente, que o CHLC deverá assumir, de

forma solidária com os HUC, as responsabilidades pela lesão financeira provocada

à utente, assumindo os custos da intervenção cirúrgica.

320. Pelo que, e em face de todo o exposto, a ERS mantém, na íntegra, o seu

entendimento constante do projecto de deliberação notificado.

V. DECISÃO

321. O Conselho Directivo da ERS delibera, assim, nos termos e para os efeitos do

preceituado nos artigos 41.º, n.º 1 e 42.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de

Maio, emitir uma instrução aos Hospitais da Universidade de Coimbra, E.P.E. e ao

Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E., nos seguintes termos:

a. Os Hospitais da Universidade de Coimbra, E.P.E. violaram, de forma

grosseira, o direito fundamental de acesso aos cuidados de saúde da

utente M. aquando do seu episódio no Serviço de Urgência ocorrido em

30 de Dezembro de 2008;

63

b. O Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E. violou, de forma

grosseira, o direito fundamental de acesso aos cuidados de saúde da

utente M. aquando do seu episódio no Serviço de Oftalmologia ocorrido

em 31 de Dezembro de 2008;

c. Os Hospitais da Universidade de Coimbra, E.P.E. devem

imediatamente adoptar as medidas necessárias para evitar

ocorrência(s) similares, bem como para a permanente aplicação dos

seus procedimentos e protocolos de atendimento, intervenção e

seguimento de utentes que, apresentando-se nos Serviços de Urgência,

revelem um diagnóstico de descolamento de retina, de forma a que os

mesmos estejam, efectivamente, aptos a assegurar a garantia de um

acesso universal, geral, tendencialmente gratuito e, especialmente, em

tempo útil em função da necessidade de cuidados de saúde de tais

utentes;

d. O Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E. deve imediatamente

adoptar as medidas necessárias para evitar ocorrência(s) similares,

bem como para permanente aplicação dos procedimentos ou protocolos

de referenciação e atendimento de utentes que, apresentando-se nos

Serviços de Urgência, revelem um diagnóstico de descolamento de

retina, de forma a que os mesmos estejam, efectivamente, aptos a

assegurar a garantia de um acesso universal, geral, tendencialmente

gratuito e, especialmente, em tempo útil em função da necessidade de

cuidados de saúde de tais utentes;

e. Os Hospitais da Universidade de Coimbra, E.P.E. e o Centro Hospitalar

de Lisboa Central, E.P.E., em face dos comportamentos ilícitos

adoptados pelo Serviço de Urgência do primeiro e pelo Serviço de

Oftalmologia do Hospital de Santo António dos Capuchos, devem

solidariamente assumir as responsabilidades pela lesão financeira

provocada à utente, assumindo os custos resultantes da intervenção

cirúrgica realizada à utente, no dia 31 de Dezembro de 2008, em

estabelecimento hospitalar privado;

f. Sem prejuízo da responsabilidade solidária dos Hospitais da

Universidade de Coimbra, E.P.E. e do Centro Hospitalar de Lisboa

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Central, E.P.E., deve cada um deles proceder imediatamente ao

pagamento de metade dos referidos custos.

g. Os Hospitais da Universidade de Coimbra, E.P.E. e Centro Hospitalar

de Lisboa Central, E.P.E. devem dar cumprimento imediato à presente

instrução, bem como devem dar conhecimento à ERS, no prazo

máximo de 30 dias após a notificação da presente deliberação, dos

procedimentos adoptados para o efeito.

322. A instrução ora emitida constitui decisão da ERS, sendo que a alínea b) do n.º

1 do artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, configura como

contra-ordenação punível in casu com coima de € 1000 a € 44 891,81, “[….] o

desrespeito de norma ou de decisão da ERS que, no exercício dos seus poderes,

determinem qualquer obrigação ou proibição”.

323. A versão não confidencial da presente decisão será publicitada no sítio oficial

da ERS na Internet.

O Conselho Directivo