Dentes de Rato_conto Integral

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    Dentes de Rato

    LOURENA

    Lourena tinha trs irmos. Todos aprendiam afazer habilidades como cezinhos, e tocavamguitarra ou danavam em pontas dos ps. Ela no.Era at um bocado infeliz para aprender, eadmirava-se de que lhe quisessem ensinar tantascoisas aborrecidas e que ela tinha de esquecer omais depressa possvel. O que mais gostava de fazerera comer mas e deitar-se para dormir. Mas nodormia. Fechava os olhos e acontecia-lhe ento uma aventura bonita e conhecia

    gente maravilhosa. Eram as pessoas que ela via no cinema ou que ela j tinhaencontrado cm qualquer parte, mas que no sabia quem eram. No gostava deningum que se pusesse entre ela e a imaginao, como um muro, e a nodeixasse ver as coisas de maneira diferente. No gostava que lhe tocassem e,sobretudo, que a gente grande pesasse com a grande mo em cima da suacabea. Apetecia-lhe morder-lhes e fugir depressa. Mas no fazia nada disso.Ficava quieta e olhava para a frente dela, cheia de seriedade. Isto tinha o efeitode causar estranheza, e diziam sempre que ela era uma menina obediente esossegada. Mas retiravam a mo. Tinham-lhe posto o nome de dentes de rato,porque os dentes dela eram pequenos e finos, e pela mania que ela tinha demorder a fruta que estava na fruteira e deixar l os dentes marcados.

    J aqui andou a dentes de rato diziam os da casa, escandalizados.Viravam e reviravam as mas, e em todas havia duas dentadinhas j secas eonde a pele mirrara. Era uma mania que ningum podia explicar.

    Durante seis semanas Lourena vivia na praia com os irmos. Eram trs, comoeu disse. Artur, o mais velho, que tinha uma vida misteriosa, como todos osrapazes de doze anos; Falco, que era Francisco, e ainda fazia toda a espcie de

    asneiras, mesmo a de beber tinta de escrever vermelha porque lhe parecia umabebida agradvel, ou comer sabonete, e coisas assim. E, por fim, o terceiro, umarapariga, muito mais velha e que se parecia extraordinariamente com umapessoa adulta. Lourena nem a considerava uma irm. Passava o tempo a mudarde roupa, a ocupar o telefone com conversas incompreensveis e a ler livros em

    voz alta. A isto ela chamava estudar. O nome dela era Marta, mas preocupava-semuito a esse respeito e mentia, dizendo umas vezes que se chamava Helena,outras vezes que era Diana. Sofria enormes desgostos com coisas em queningum reparava, e era capaz de chorar durante duas horas porque o pai se rirado seu penteado ou duma palavra difcil que ela dizia, pondo-se muito tesa e

    com a cabea de lado, como se estivesse num poleiro. Lourena olhava para ela e

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    achava-a uma senhora. No entender dela, uma senhora era a coisa maisaborrecida que h.

    Aos quatro anos, Lourena tirou o retrato com Falco vestido de marinheiro ecom a perna cruzada. Ela segurava na mo um cozinho de pano, um bocadosujo e que o fotgrafo lhe emprestara para a ter distrada. No teve graa o terde segurar aquele brinquedo imundo que ela nunca escolheria num bazar.Nessas coisas era muito esquisita. A me no a entendia e nunca percebeu nadados gostos de Lourena.

    As crianas so assim dizia, como se falasse do Entrudo, em que tudo eraum bocado disparatado. O que Lourena mais admirava era o vai-vem em queandavam as pessoas. Nunca estavam muito tempo num lugar e mostravam-seagitadas, tinham dores de cabea se paravam.

    Di-me a cabea dizia a me. E punha na testa um pano molhado comvinagre. Tambm tomava umas plulas pretas que dizia serem de ferro. Falcoprovou uma e deitou-a fora.

    como uma caganita de cabra, mas mais duradisse ele. De ferro no .

    Falco tinha sempre o cabelo espetado e vinha um barbeiro a casa todas assemanas para o aparar. Doutro modo parecia um plo-de-arame. Uma vez o

    barbeiro tambm cortou o cabelo de Lourena e, quando acabou, fez com que

    ela se visse no grande espelho da sala de jantar. Pegou nela ao colo e apontoupara o espelho.

    Parece um rapazinho disse ele.

    Isto afligiu tanto Lourena que comeou a chorar. Chorava tanto que acudiutoda a gente da casa. Uns riam-se, outros tratavam de a consolar; mas Lourenaestava desesperada. Acreditava que estava mudada em rapaz e que perdera os

    braos, as pernas, a cara de menina. Era um grande desastre, e no se podiaconformar. Um rapaz era completamente outra coisa; davam fortes dentadas nopo e andavam sempre esmurrados. Achava-os feios. Por fim, o seu tio Antniocomoveu-se, quando chegou da rua e a viu naquele estado.

    s uma rapariga moderna. Podes fumar e beber conhaque. O cabelo curtofica-te bem.

    O tio Antnio tinha o dom de convenc-la. Era um homem novo que apareciararamente e que tratava os sobrinhos como se fossem sacos de batatas. Puxava-lhes os cabelos e dava-lhes fortes palmadas. Nunca se sabia se ia pegar-lhes pelo

    cinto e suspend-los no ar, divertindo-se a v-los espernear.

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    Tens brincadeiras muito pesadas repreendia a me. Lourena viu o ladobom do seu desgosto; tio Antnio no podia agarr-la plos cabelos e puxar poreles at que ela se mostrasse paciente, como se estivesse morta. No se podiamexer nem gritar; e ele ento largava-a. Lourena achava-o um bocado

    perigoso, mas divertido. Contava coisas do tempo em que viveu em frica e dascaadas que l fizera. Falava dos lees e doutros animais que grunhiam elutavam debaixo da casa que ele tinha na selva e que estava segura por estacasacima do cho. Tio Antnio era engenheiro e andara no mato a traar caminhosde ferro, vestido como um verdadeiro explorador, com botas altas e um capaceteforrado de cortia para se defender do calor. Tinha agora um carro grande,descapotvel, de cor verde, que lanava a toda a velocidade nas estradas. Uma

    vez levou Falco e Lourena com ele, e o vento tirou-lhes as boinas, que nuncamais viram. Tio Antnio no era pessoa para parar para apanhar uma boina.

    um doido, no gosto nada que as crianas andem com ele disse o pai deLourena. Quando dizia estas coisas, baixava o jornal que estava a ler e depoislevantava-o outra vez diante da cara. Era como se no tivesse dito nada.

    Viviam numa casa pequena dentro dum terreno to amplo que ela parecia a casados sete anes numa clareira da floresta. Dentro dela todos tropeavam, e a mefazia o possvel para os mandar para fora. S ficava a cozinheira e nem os gatosl paravam para comer. Comiam no ptio, mexendo a cauda como se estivesseminquietos c esperassem um ataque dalgum inimigo.

    O pai era sensacional uma vez por ano. No Carnaval comprava um saco deserpentinas e tantosconfetti que eles apareciam na bainha das calas e nascosturas dos vestidos muito tempo depois de terem sido jogados. Hserpentinas douradas e outras de papel de seda que se desenrolava em cincofitas de cores diferentes. Tambm tinham bisnagas com perfume e, s vezes,Marta deixava que Lourena se fantasiasse com as roupas dela. A meemprestava-lhe um leque c frisava-lhe o cabelo; e ela parecia uma cigana. Parafazer melhor efeito, Falco pintou-a com tintura de iodo diluda em gua, dizendoque era assim que Marta se fazia morena, duas semanas antes de ir para a praia.

    A me, primeiro achou que Lourena tinha apanhado uma doena, e depoisbateu-lhe e disse muito alto que ela lhe causava grandes arrelias. Tambm sequeixou de dores de cabea e mandou-a para o jardim. A Falco ela nunca batia;parecia respeit-lo como se fosse a aia dele e no ouvia quando algum oacusava. Artur era grande demais para levar a srio a me e ria-se e brincavacom ela, se ela lhe ralhava. Isto desarmava-a. Quanto a Marta, ela arranjou umnamorado na praia, e a me passou a trat-la com cerimnia. Estava sempre aelogi-la e a dar-lhe prendas. E algumas vezes punha-se a chorar e dizia que osfilhos a abandonavam. Lourena tinha rnedo dessas ocasies, porque a meacabava sempre por gritar com ela e mand-la sair de casa.

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    Isto de ter de sair para o jardim era um castigo que a fazia sofrer muito. Nodava a entender que sofria, seno aquilo podia repetir-se mais ainda. Fingiagostar at. Mas a verdade que preferia estar dentro de casa e de sentir o cheiroda casa. O cheiro da canela em cima do creme quente; o cheiro da cera no cho e

    da gua em que se misturou o sabonete do banho. O quarto da me cheirava acoisas difceis de entender. Havia um cheiro especial de papel aromtico,quando algum ficava doente; o papel ardia sem deitar chama, c um fumo

    branco voava como uma fita no ar. Parecia um daqueles gnios que vivem emgarrafas e que so capazes de fazer coisas maravilhosas. Se eu pudesse chamarum deles pensava Lourena isso assustava-me. melhor no o poderfazer. E perguntou a Falco:

    Se tivesses um gnio dentro duma garrafa davas-lhe liberdade? Falcopensou um pouco.

    Qual gnio? s parva disse ele.

    Nunca se entendiam em conversas daquelas. muito difcil ser-se amigo ntimodum irmo ou duma irm. Gosta-se deles, mas no se tratam com a confianaque s vezes um estranho nos merece. Finge-se que tudo natural para enganara curiosidade que se tem pelo corpo que est ao nosso alcance e que belo de

    ver e de tocar. Falco espreitava as irms quando elas estavam no quarto e faziaisso com muita habilidade. Parecia no ver nada quando entrava e, se elas seescondiam ou lhe ralhavam, dizia que tinha batido porta e perguntado sepodia entrar. Lourena no percebia porque Marta era to descuidada e no sefechava chave quando estava a tomar banho.

    Pode dar-me uma coisa e morrer.

    Se morreres sempre havamos de saber. At porque dentro de guaapodrecias mais depressa e o cheiro no deixava que ficasses ali esquecida disse Falco. Ele gostava de sugerir quadros de terror; sobretudo quando via osirmos a comer com apetite uma coisa saborosa. Falava de lagartas esmagadas e

    contava como se sangravam as lampreias. Tambm sabia como se aplicavamsanguessugas atrs das orelhas das pessoas e como ficavam inchadas de sangue.O barbeiro Natinhos espremia-as e voltava a us-las como se fossem seringas.Ningum suportava ver aquilo seno Falco.

    No s nada um valente, s um selvagem disse Marta. Mas via-se que tinhapor ele certa predileco. Gostava de o pentear e de o cobrir de noite, se o viaatravessado na cama, a ressonar alto, com os olhos meio abertos. Sonhavasempre com perseguies e quedas de grande altura, e s vezes gritava eacordava toda a gente, em especial Marta, que tinha o sono leve. Falco dormia

    sozinho num quartinho que a me forrara de papel com rvores castanhas. Delonge a longe via-se urna casinha no meio das folhas, e Falco esperava que

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    algum sasse de l. Isso acontecia quando ele ficava doente e a lamparina semantinha acesa no quarto toda a noite. Lourena achava que o tremor da luz notecto fazia mais medo do que a escurido completa.

    Ela dormia no mesmo quarto com a irm e tinha a sua maneira de viver s,mesmo com Marta a ocupar todo o espao. Ela enchia tudo com os seus frascos,roupas de baixo e de cima, cartas, revistas e escovas. Tinha uma cama largapintada de branco onde ela nunca se deitava sem sacudir as almofadas elevantar os lenis, com medo das aranhas e das centopeias. A cama deLourena era mais pequena e ainda tinha marcas das grades; quando fez cincoanos, Lourena disse que no queria mais grades na cama. Riram-se dela, mas opai concordou e at mandou um carpinteiro aumentar dois palmos carna, queficou esquisita. Falco achou que ela parecia urna jangada, mas Lourena, longede se desgostar, imaginava correr os sete mares em cima dela. Acordava cedo e

    preparava-se para viajar em cima da cama. Sem dizer uma palavra, mexia-sedum lado para o outro, inventando encontros e cenas com pessoas invisveis.Marta habituou-se quilo e no lhe fazia a menor pergunta nem a interrompia.Era como se Lourena e a cama no existissem. Mas ela estava l, e era uma vezuma piroga a deslizar aos solavancos no rio Amazonas enquanto que enormespeixes-boi passavam por baixo e a punham em risco de ser virada; outras vezesera um transatlntico com tombadilhos onde se podia ver o mar cheio de sol; eos peixes voadores davam saltos de que Lourena se defendia com muitadificuldade. Nesses momentos, Marta, se vinha do quarto de banho com uma

    toalha enrolada na cabea, olhava para ela estupefacta. Lourena pensavaimediatamente que ela era a princesa Vasti, a primeira mulher do rei Assuero,to perfumada, altiva e bonita Marta lhe parecia. E a cama transformava-senuma galera com escravos a remar. At ouvia o bater dos remos na gua, eenchia-se de pena porque entre os remadores estava um jovem de grande belezaque fora capturado.

    Lourena, aos seis anos, sabia muitas coisas que ningum suspeitava. Guardava-as para ela, porque as pessoas que nos conhecem de perto no so capazes denos levar a srio. Artur ria-se da sabedoria de Lourena, a ponto de ela julgar

    que se tratava de algo de feio. E o prprio pai baixava o jornal para olhar paraela de maneira divertida. Lourena no compreendia como os adultos tratavama gente pequena daquela maneira: como se fosse s nmeros de circo e maisnada.

    Quando Falco chegou idade de aprender a ler, no foi escola como os outrosmeninos. Era um rapazinho dbil a quem aconteciam todos os desastrespossveis. Guiomar, uma amiga da me, dizia que Falco procurava ser protegidoe amado, e por isso sempre se metia em sarilhos. Mas a verdade que passava oInverno na cama, com um pouco de febre e a comer batatas fritas. No gostavade aprender, ainda que fosse muito engenhoso e inventivo. Dona Ins, a

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    professora dele, no o apreciava nem o ajudava muito. Era uma senhorapequenina, com pernas gordinhas muito bem caladas com meias brilhantes emuito caras. Tinha um sinal na cara que encantava Lourena. Punha-se a olharpara ele esperando v-lo voar, porque lhe disseram que se chamava mosca.

    Ainda que fosse nova demais para receber lies, assistia s aulas de Falco. Embreve lia o jornal sem que ningum adivinhasse; e estava a par das notcias e dosfolhetins. O primeiro que leu foiSem Famlia, uma histria triste e um bocadotola. A me discutia o enredo com grande emoo, e Lourena achava que elaexagerava. Depois publicaram outras coisas mais apaixonantes e por elasLourena ficou a saber a vida de Lucrcia Brgia e de Rosa Vanossa, a senhorame dela que era amiga do Papa. Aprendeu a calar-se a respeito dessas leituras;e quando Dona Ins lhe trazia asHistrias de Rebolinho, um menino gordo quese embebedou com medronhos, fingia que achava uma beleza tudo aquilo. Erasimplesmente uma maada e s as crianas atrasadas podiam gostar daquilo.

    A me procurava fazer de Lourena uma menina maravilhosa; escolhia para elavestidos com florinhas, soltos como camisas, o que a aborrecia. Sonhava usarmodas extraordinrias e saltos altos, o que acontecia quando imaginava asperipcias das suas prprias histrias antes de sair da cama. A famosa cama eracomo um palco e em que os travesseiros eram personagens to cheias decarcter como de l de ovelha. Decerto era porque o colcho tinha dentrotambm l de ovelha, que Lourena pensava estar no alto mar. Baloiava emcima da cama como se ela saltasse em cima das ondas, e isto sugeria-lhe

    acontecimentos passados a bordo dum navio. Umas vezes tratava-se de histriasromnticas, outras eram histrias de crimes. No era raro um travesseiro ir pelaborda fora, e Marta dizia:

    Que ests a fazer, criatura? Apanha isso.

    Ela no podia entender o que era um corpo lanado desde o tombadilho quandohavia tubares no rasto do barco. Mas tambm estava to entretida a soprar o

    verniz das unhas, que no pensava a srio em mais nada.

    Nesse tempo, porque Marta deixou o colgio onde estava como interna e serecusou a voltar para l porque no era muito de rezar e fazer contas, o paimudou a famlia para uma terra muito especial. Era beira-mar e tinha umaquantidade de escolas, liceus e colgios, assim como igrejas e capelas por toda aparte. Alm disso, havia um cinema e um caf-concerto, alm dum pequenocasino. Toda a gente ficava servida, e no Vero no era preciso mudar de lugarpara ir a banhos e divertir-se. Todo o ano havia procisses e outras festas, e erauma terra sempre cheia de novidade. Em breve se conhecia toda a gente, o quefazia, e as casas onde essa gente vivia. Lourena entrou para as primeirasletras, e houve uma certa confuso com ela. Sabia demais, mas no tinha feitoexame nenhum. As professoras olhavam para ela com aborrecimento. Preferiam

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    que ela fosse ignorante e que comeasse pelo princpio. Experimentaram deix-la na primeira classe, mas Lourena lia to bem e estava to segura de si queincomodava a professora. Era uma freira bonita e que corava muito quandotinha que mostrar autoridade. Lourena punha-se a olhar para as botinhas

    pretas que ela usava e que apareciam debaixo da saia, e pensava onde ela teriaido busc-las. Era coisa que ningum vendia mais em parte nenhuma.

    O caso de Lourena foi discutido e ela teve que ser examinada por cincoprofessores, incluindo a Mestra-Geral. Esta era uma senhora que vivia dentrodum quiosque, no ptio do colgio, como se vendesse selos e revistas. Via dalitudo o que se passava e, como nos quiosques, tinha l dentro um frasco de rebu-ados que dava como prmio s mais pequenas. Lourena ficava orgulhosaquando recebia algum, apesar de Falco lhe dizer que eram rebuados muito

    baratos e melados pela humidade.

    Falco ia ao colgio para ter aulas de doutrina crist. Uma freira to velha queparecia um pepino em vinagre vinha sala ensinar-lhe os mandamentos. Com aponta do avental preto tapava as pernas de Falco, porque ela era do tempo emque os meninos traziam meias altas e cales at aos joelhos. Lourena no seria; achava que ela tinha razes para ficar to penalizada ao ver as pernas deFalco. Na verdade, pareciam duas trombinhas de elefante, e essa ideia enjoavaLourena. Mas Falco ia para casa e divertia a me a contar aquelas coisas.Lourena no achava assim to engraado, porque gostava da velha madre.Constava que ela no tinha um s cabelo na cabea, e Lourena pensava namaneira de ver se isso era certo. Porm a touca dela, e o vu espetado comalfinetes na touca, pareciam bem seguros.

    No segundo trimestre mudaram Lourena de classe, e ela ficou esquecida entrevinte meninas mais crescidas e que olhavam para ela com indiferena. Ali, aprofessora gritava constantemente e vivia preocupada em encontrar erros deortografia. Marcava-os a lpis vermelho, arreganhando os dentes, como sefizesse sangue com o lpis na pele das alunas. E abanava a cabea com arcolrico. Exagerava muito as coisas. Por exemplo, gostava de inventar pretextos

    para aplicar reguadas nas mos das alunas. Lourena achava aquilo um pequenodesastre, como chover quando era a hora do recreio; tinha que ter pacincia.Nada tinha a ver com o bem e o mal. Era s um contratempo.

    A terceira classe era a mais indisciplinada e a que sofria mais castigos. Noporque as meninas fossem diferentes das outras, mas o feitio da professoratornava-as descaradas e maliciosas. Tinham prazer em desafi-la e descobriamque tinham gostos e vontades, assim, porque a desafiavam. Lourena nogostava da mestra, mas aprendeu algumas formas de dissimulao muitohabilidosas graas a ela. Era melhor no ter motivos para gostar dela do que terde amar as professoras mais elegantes e sabedoras. Algumas eram mesmo

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    capazes de tornar uma pessoa triste e infeliz s com distribuir e recusar amorcomo se fosse po quente.

    A melhor maneira de passar o tempo de aulas era no dar muito na vista.Lourena escondeu que dava pelo nome de Dentes de Rato, para no ter deaceitar isso publicamente. Uma ofensa com imaginao carinho; mas comtroa mais do que ofensa, porque se serve daquela espcie de amor que h naimaginao para ferir. Claro que Lourena no pensava nas coisas destamaneira; tinha s seis anos e andava ocupada em pequenas exploraes, assimcomo ver qual dos amigos de Falco era maior e reparava nela. Sentava-se num

    banquinho no jardim e dava manivela da sua pequena mquina de costura,com um ar de boa operria. Mas no perdia de vista os jogos de Falco com osoutros rapazes, quase sempre muito mais crescidos do que ele. TratavamLourena com ternura e os olhos deles pareciam velados de lgrimas quando

    falavam com ela. Quando viam Marta, que se mostrava na varanda da cozinhacomo se fosse dar a sua charpebranca a um cavaleiro com lana e escudo, elescoravam e perdiam a alegria de brincar. Marta ria-se deles e no voltava paradentro to depressa como seria de esperar.

    Marta no era uma irm muito prestvel. A me recomendava que levasseDentes de Rato pela mo e no a largasse, quando iam para o colgio. MasMarta esquecia-se de Lourena dez passos adiante de casa porque encontravaamigas e conversavam como se no se vissem h cem anos. Eram todas um

    bocado tolas e no se percebia do que falavam, porque nunca acabavam umaconversa. Davam gritinhos e, s vezes, at se empurravam e caam abaixo dopasseio, soltando a pasta dos livros. Marta gostava de levar os livros na mo, enunca lhes punha capa. Gostava que vissem que era uma aluna adiantada etomava ares severos quando passava pelas senhoras Caldas. As senhoras Caldastrabalhavam em malhas para fora e sabiam a vida de toda a gente. Eram muitoaltivas com as raparigas pobres e enchiam-nas de conselhos inteis. Dentes deRato no se importava nada com a pouca ateno da irm. Com excepo dasquartas-feiras, porque nesse dia da semana havia feira da lenha no terreiro emfrente ao hospital e elas tinham de passar por l. Os carros carregados de lenha

    para os foges vinham dos arredores e eram puxados por bois amarelos. Tinhamchifres to grandes e estavam to chegados no campo da feira, que se ouviasempre um rudo de paus. Lourena tinha muito medo dos bois. Os olhos deleseram parados e no se sabia se eram mansos ou bravos. s vezes, se noestavam bem presos aos troncos das rvores, que eram pltanos muito antigos,davam corridas e ficavam imveis como esttuas mais adiante. Lourena,quando acordava de manh, e pensava que era quarta-feira, sentia-se infeliz eno tomava com prazer a sua chvena de chocolate. Mas nunca dizia nada.Ningum ia perceber um medo como aquele, e podiam dar-lhe explicaes que

    no mudavam coisa nenhuma. O que ela queria era que Marta a segurasse comfora pela mo; mas nem isso servia, porque os bois no conheciam Marta nem

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    se importavam com que ela fosse bonita e ajuizada. Os bois eram outra coisa; aboca deles fumegava devagar enquanto mascavam palha, e pareciam fumar demaneira pensativa. Mademoiselle Sara, que tomava conta dos recreios e dasaulas de estudo, dizia que eles eram um exemplo de obedincia. Mas

    Mademoiselle Sara dizia muitas parvoces. Era toda mimos e elogios para asalunas ricas e gostava de as ter como amigas. As vezes convidavam-na parapassar as frias com elas, e Mademoiselle Sara voltava diferente. Ficava maiscalada e servia-se mesa segurando os talheres com as pontas dos dedos. Erato gorda e grande que no havia futuro para ela. No se podia imaginarMademoiselle Sara casada. Artur dizia que ela servia para um vicking e quepodia beber tanto hidromel quanto quisesse at ficar cansada. No pareciamuito prprio de Mademoiselle Sara querer cansar-se a beber hidromel.

    Ela gostava de poesia e estava sempre a encontrar as coisas mais diferentes

    deste mundo. Achava que um moinho se parecia com um av. As velas a girardevagar eram como as barbas do av. Alm do mais, esse av fumava cachimboe sorria docemente. Enfim, um av que ningum tinha. Dentes de Rato noconhecera nenhum dos avs; viu um deles, na cama, j muito velho, e lembrava-se que ele lhe estendeu os braos para a ajudar a subir. No se lembrava de maisnada. A cama tinha bolinhas de metal amarelo, e ainda estava na casa onde osavs tinham vivido. Mademoiselle Sara com certeza no vira nenhum av na

    vida.

    Ela apareceu no colgio novo, que estava organizado para receber muitas alunase precisava de vigilantes por todo o lado. No colgio velho no era assim.

    O COLGIO VELHO

    Primeiro que tudo, ele no se parecia com um colgio. A casa era muito antiga eestava sempre escuro l dentro. A Mestra--Geral no gostava daquilo. Passava otempo a falar de janelas rasgadas e trazia debaixo do brao rolos de papel queabria em cima das mesas. E voltava a falar de janelas rasgadas. Como Dentes deRato no perguntava nada (no tinha suficiente confiana nas explicaes que

    podiam dar-lhe), ainda andou muito tempo sem perceber. Por fim, leu emqualquer parte que janelas rasgadas era o mesmo que olhos rasgados. Nadatinha que ver com o seu bibe que se rompia nos bolsos fora de os usar, ou oavental da cozinheira, gasto na barriga porque ela se encostava pia de lavardurante horas inteiras. Era como os olhos de Falco, grandes e abertos e que ame gabava muito. As janelas do colgio novo seriam como os olhos de Falco,mas em maior quantidade.

    O colgio velho funcionava como um convento. Tinha freiras velhas e queandavam com passinhos midos e no sabiam praticamente nada seno rezar e

    coser roupa. Algumas bordavam e ensinavam piano. Lourena sentia-se bemjunto delas. As pessoas ignorantes sabem mais viver com as crianas do que as

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    outras. Madre Figueiredo sabia quando urna das meninas tinha as calcinhasmolhadas, e lavava-as sem ningum ver para no a envergonhar. Escondia amenina no quarto dela durante uma hora (o que era expressamente proibido) etrazia-a depois j limpa e contente. Se no fosse to baixinha e de nariz to

    vermelho, parecia uma santa, madre Figueiredo.

    Havia grilos na aula de lavores e cantavam na obscuridade, dentro dasgaiolinhas com grades de arame. Morriam de repente em cima da folha dealface, e ningum percebia porqu. A professora de cincias, uma secular, nosabia tambm coisa que prestasse sobre grilos. Aprendera s a dar lies sobre opato e o boi, o que era muito pouco. Ela tinha uma barriga que crescia e encolhiaconstantemente, e as alunas grandes riam-se disso. Mas a Mestra-Geral gritavamuito alto, e elas calavam-se. Depois dizia a porteira:

    Nasceu um anjinho D. Berenice. E o colgio ficava outra vez um bocadomurcho c sem novidades.

    A porteira tinha o curso de enfermagem e assustava as mais pequenas quandoolhava para elas com ateno. Descobria logo quem tinha sarampo ou quemprecisava dum purgante. As mos duras que ela tinha cravavam-se no braodas internas e levava--as para a enfermaria. Era muito poderosa. S o mdico afazia obedecer, e ela recebia-o sempre com grande respeito. Usava um aventalazul e a touca era de pano mais grosseiro, para se diferenar das madresprofessoras ou que tinham levado dote com elas.

    Que um dote? perguntou Marieta s suas amigas, as grandes. Tinha maisde quinze anos e aprendera a ler a muito custo.

    Dote dinheiro ou coisa que o valha respondeu Arnalda, a mais bonita detodas. Ela era rf e pobre, como nas histrias, e Lourena admirava-a por isso.Era educada por favor, e umas tias que ela tinha mandavam ao colgio docescobertos com um guardanapo.

    O dote de Arnalda de caramelos

    disse Marieta, um dia. Todas fizeramtroa dela, mas se viam chegar a bandeja dos bolos diziam que era o dote deArnalda.

    Quando morreu um grilo, um pouco antes das frias grandes, enterraram-no nojardim e fizeram um cortejo fnebre. Cantaram hinos tristes, e o grilo pareciacapaz de ressuscitar na caixinha do algodo perle. As mestras mais novascensuraram aquilo, mas Madre Figueiredo s abanava a cabea e tinha umsorrisinho quase malicioso, e nesse momento ningum podia pensar que ela erasanta.

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    Dentes de Rato nunca chegou a saber onde se estudava, no Colgio Velho. Malentrava no ptio, onde estava na sua guarita a Mestra-Geral, como umasentinela, s encontrava corredores e portinhas fechadas com um trinco que jno havia. Os banquinhos de costura estavam alinhados contra a parede e era

    preciso deix-los tal e qual e apanhar as linhas do cho. Havia sempre duas outrs meninas acanhadas que faziam isso a troco da simpatia das outras.Lourena achava-as medrosas e no gostava de lhes falar. Tinha tambm penadelas; mas era uma pena que lhe dava vontade de vomitar, como quando comiatremoos.

    As grandes eram a coisa mais bonita que havia no colgio. J tinham idade decasar e s por muito favor recebiam Marta no seu bando. Ela tinha s doze anose esforava-se por perceber as conversas das outras mais velhas. Eramconversas muito complicadas, os risos delas no deixavam entender nada. Mas

    Marta fingia seguir tudo com esperteza, e acabava por tirar proveito e entrar nosegredo. Dentes de Rato olhava para a irm com espanto. Ela parecia-lhe outrapessoa, to corada e com aquele olhar humilde, como se quisesse comer uma

    banana e no a deixassem. Lourena tinha esta ideia porque gostava muito debananas e a me no permitia que as comesse. So quentes para os intestinos dizia. Dentes de Rato no percebia como podiam chegar quentes s suastripas coisas como essas.

    Um dia chegou em que comeu bananas at se fartar. Foi quando a convidarampara um casamento. Era o irmo de D. Ins, a sua professora das primeirasletras, que se casava. Dentes de Rato s tinha que apresentar as alianas numa

    bandejinha de prata. Era uma coisa simples de fazer, mas toda a gente estavaatrapalhada e dava ordens para todos os lados. Lourena acabou por no sabernada, e outra menina levou as alianas em vez dela. Lourena suspeitou que ela

    j tinha aquilo na ideia h muito tempo. Era uma menina refilona e espevitada aquem toda a gente achava graa. Contudo, Lourena devia estar maisencantadora com um vestidinho de tafet branco e um ramo de flores cor decereja no ombro. Quando ela passou disseram as mulheres, em duas filas entrada da igreja:

    Que lindo anjinho!

    Dentes de Rato achou aquilo pouco elogioso, no sabia porqu. Os anjinhoseram meninos mortos, ou ento os que saam da grande barriga de D. Berenice,sabe Deus em que estado.

    O CASAMENTO DE MIMOSA

    A noiva chamava-se Mimosa, o que fazia com que todos achassem graa nisso.

    Mimosa porque em pequenina lhe davam muito mimo

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    disse D. Ins, a rir. Mas Lourena percebeu que ela s queria fazer troa deMimosa. Era como a fada m mas com culos que relampejavam ao sol. Desdea comeou a gostar da noiva, ainda que nunca a tivesse visto. No dia docasamento, ainda que acordasse cedo, acabou por s estar pronta j tarde. D.

    Ins veio busc-la num carro alto que parecia uma cartola, e com ela vinha aoutra menina refilona que estava vestida exactamente igual a Lourena. S obouquezinho de flores era um bocado diferente.

    Esto arranjadinhas? perguntou D. Ins quando o carro comeou a andar.Lourena no percebeu o que ela queria dizer; mas a outra menina abanou coma cabea, muito desembaraada.

    Quer saber se no queres fazer chichi disse ela. Lourena no lhe deuresposta. Achava-a muito grosseira. Alm disso, Dentes de Rato estava

    preocupada com um grande nmero de coisas. Como ia saber quando entregaras alianas? No iam as suas meias escorregar e parecer umas polainas sujas?Tinha chovido e havia lama nos caminhos. E que caminhos tristes, com folhas acair dos muros e grandes rvores como guardas perfilados! A casa da noivapareceu-lhe um castelo tal como se v nas gravuras. Tinha um alto torreo e eracinzenta. Dava a impresso de estar desabitada, e Lourena no chegou a saberse havia um ogre l dentro, como suspeitava. A noiva apareceu porta, rodeadade gente que a ajudava por todos os lados, como se ela no soubesse andar.Entrou para um automvel, e Lourena teve de sentar-se aos seus ps. A meninarefilona no cabia, e D. Ins levou-a com ela.

    Mimosa no fazia outra coisa seno dar puxes ao vu e ao vestido e pareciadesesperada. Queixava-se duma poro de pessoas e dizia que o bolo de noivaera uma porcaria. Um senhor gordo batia-lhe no brao para a acalmar. Estavato distrado que at se ps a fazer preguinhas na gola de Lourena com asunhas duras e amarelas. Lourena sentia ccegas no pescoo e mexeu-se.

    Est quieta, mafarrico disse Mimosa. Tinha uma cara avermelhada eespinhenta, e de repente tornou-se numa senhora casada, com ares srios c

    investigadores. Comeou a chover, e o senhor gordo aplaudiu e disse que erasinal de felicidade.

    Os meus sapatos! disse Mimosa. Vo ficar uma misria. Nunca maisservem para nada. Lourena sentia as biqueiras dos sapatos a magoar-lhe aespinha, e achou bem que eles no servissem mais para aquilo.

    Divertiu-se muito na festa, a ver as jovens amigas da noiva vestidas comoestrelas de cinema, com flores de seda na cinta e colares de prolas. Pareciam-lhe todas muito bonitas. D. Ins tinha tanto p-de-arroz na cara que o

    sinalzinho quase no se via. Ouvia os discursos e limpava os olhos totristemente que Lourena tinha vergonha de no sentir nada. Talvez se pensasse

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    nalguma coisa dramtica chorasse tambm um bocadinho. Podia lembrar-sedos desastres da pequena Joaninha, uma menina bondosa que morreu porengolir alfinetes; mas coisas dessas no serviam para a fazer chorar.

    Ento trouxeram um cacho de bananas para a frente dela. D. Ins serviu-a deuma banana e voltou a prestar ateno aos discursos. Eram cada vez mais tristese ela cada vez chorava mais. Uma das damas de honor desmaiou e levaram-nanos braos para fora da sala. Lourena comeu outra banana. Toda a gentetrocava brindes e se mostrava arrependida por ter chorado. Lourena comiamais bananas e tinha j um monte de cascas no seu prato. No sabia comolivrar-se delas e parecia-lhe que iam descobrir quantas bananas comera e dizer sua me. Deitou duas cascas para o cho, mas ainda ficaram muitas no prato.

    Santo Deus! Esta menina vai ficar doente! disse D. Ins. E juntou as mos

    como se fosse rezar.Quantas bananas comeu, Lourena? Quantas foram?

    Lourena achou que ela estava a mostrar-se to preocupada como se fosse umacriada. As pessoas que mandavam no faziam aquele barulho. Nesse momento,o senhor gordo que amachucara a sua gola de tule levantou-se para falar. Ps amo no corao, e um rapaz disse que ele segurava a carteira. Mimosa j noestava na sala e no ouviu o sermo do senhor gordo; Lourena comeou asentir sono e achava que aquele era talvez um ogre com a barriga cheia de carneassada. Tinha modos de farejar no ar o cheiro dos meninos e, decerto, quandoela estivera sentada aos seus ps, ele quis saber se o pescoo dela era tenro.

    Tenho que levar esta criana a casa disse D. Ins. A noite caa c ouvia-semsica. Os pares juntavam-se para danar e as mesas estavam a ser arrumadas.Com os restos de comida e as ndoas de vinho, aquilo dava um impresso decoisa ordinria.

    uma maada... Deixa-a dormir e leva-se mais tarde, quando as pessoasforem emboradisse algum.

    No. Prometi entreg-la cedo.

    D. Ins estava atarefada com aquelaobrigao de vestir o casaco a Lourena e arranjar quem pegasse nela ao colo.Um irmo dela prestou-se a isso, no sem perguntar de maneira sonsa:

    A outra, a Marta, no a convidaste?

    muito tola e no ia aceitar.

    pena. bem bonitinha. O rapaz pegou em Lourena como num saco edeitou-a ao ombro. Ela percebeu o cheiro da roupa nova e de bisnaga de

    Carnaval. Dormia e no dormia. Sentiu o perfume das flores que caam emcachos pela varanda e viu, com desgosto, as luzes atravs das janelas que iam

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    ficando distncia. A festa era uma coisa que estava perdida para sempre; nopodia ficar nem ver toda essa gente que ria e danava. A pena encheu o seucorao e tornou-se to grande que parecia maior do que todo o corpo. Inchavae Lourena no podia mais. As coisas assim sem remdio no deviam existir.

    Quando D. Ins se despediu pondo a mo na sua cabea, o que acabou de adesesperar, Lourena rompeu em pranto. Ela prpria se espantava como podiachorar tanto.

    Mas, Lourena, porque no disse que queria ficar mais tempo? disse D.Ins. A me pediu-lhe que no fizesse caso. E, entre lgrimas vivas e grandessoluos que saam do peito como quem destapa o ralo duma banheira, Lourenaachava-as a ambas hipcritas. Ela calara-se, mas era uma maneira especial decalar--se; via-se logo que ela queria estar ali at o ltimo convidado sair. Maspedir, isso ela no pedia. Percebia que D. Ins estava morta por livrar-se dela, e

    aquilo ofendia-a.

    Quando ela se foi embora, Lourena, no grande quarto de dormir da me,chorou ainda algum tempo de maneira que parecia no poder parar nunca.Depois consolou-se com urn prato de arroz requentado, como se fosse umapobre e no comesse h muito tempo. A me disse, maravilhada:

    Mas como isto? No deram de comer a esta criana?

    Dentes de Rato, porm, comera bem, sem falar nas bananas todas que engoliu e

    das nozes de chocolate. Era o cheiro da casa que lhe abria o apetite; aquelecheiro familiar de coisas conhecidas e guardadas na memria do corao. Oarroz arrancado do tacho com um forte garfo e que saa em placas tostadassabia-lhe como o melhor manjar do mundo. Lourena dizia:

    Nunca vou querer ser rica. Penso que um dia sou muito rica, chego a umhotel, como se chegasse a um castelo cheio de coisas boas, com criados vestidosde seda que aparecem para me servir. E eu digo: Quero arroz tostado, aquelearroz que fica no fundo do tacho e que preciso muita fora para o fazer sair.

    Todos se olham, sem compreender. H perdizes e peixes de ouro e violetasdoces. Mas no h arroz tostado. Ento, de que vale ser muito rica?

    Palermadisse Falco. J viram esta pingona?

    Isso foi j nas vsperas de mudarem de casa, e no sabiam ainda que ela seriavendida e no voltavam mais. Foi vendida to de repente que ningum tevetempo de levar as coisas de que gostava e que estavam espalhadas ou no sesabia bem se iam fazer falta. Falco deixou no lago o seu barco de pesca, onde

    cabia um co de tamanho mdio e onde chegou a meter Lou-rena uma vez,

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    Segura-te, Dentes de Rato, que eu no te largo prometeu cie. Mas o barcovirou-se e Lourena tomou um banho. Foi um trabalho para esconder aquilo dame. Artur trouxe de casa roupa seca, mas como no percebia nada de vestidosde meninas apareceu como um fato de inverno. Era um vestido de veludo preto

    com papagaios de feltro aplicados na saia e que comeava a ficar curto aLourena. Alem disso era um vestido luxuoso e, num dia de Junho, quente comosei l o qu, ela parecia fantasiada. Falco ria-se tanto que teve de agarrar-se auma rvore para no cair.

    Vou pedir a Marta que venha c disse Artur, aborrecido.

    Marta no; vais estragar tudo. Marta era to senhora como a me e faziaum barulho enorme por qualquer coisa.

    Ento arranjem-se. Artur foi-se embora, muito digno e arrependido por semeter com gente to pequena. Por fim o prprio Falco resolveu as coisas e levouLourena s escondidas para casa. Fez com que subisse de gatas a escada decaracol e meteu-a no quarto de banho, onde lhe deu ordem para se lavar bem.Mas Dentes de Rato no sabia tirar o lodo do cabelo e no ficou nadaapresentvel. A me no reparou, ocupada como andava a meter coisas emcaixas e a empalhar as chvenas melhores. Tinha fama de saber fazer mudanascomo ningum, e tinha orgulho nisso. Mas Marta, essa reparava em tudo.

    Mam, olhe a Lourena... disse, mesa. E tapou a boca com o guardanapo

    para se rir vontade. Via-se que estava encantada com aquele pretexto paraacusar algum.

    Que tem? disse a me. Partia a carne em fatias e queixava-se da mqualidade dela e do homem do talho que a no sabia servir. No conhece arabada. No a diferena do jarrete, um incompetente.

    Para a me, o mundo dividia-se em diversos graus de incompetncia. Custa-me admitir, mas todos so uns incompetentes. Tinha umas mos bonitas e

    um anel com uma pedra azul escura num dedo. Era agradvel ver sempre essapedra no dedo da me.

    Falco olhava as moscas que se acasalavam no ar com grande zumbido, em riscode partirem as asas. No se atrevia a olhar para Lourena que, de facto, parecia

    bastante esquisita. Artur salvou a situao; fez um gesto ameaador a Marta, eela calou-se. Ela respeitava os homens, e depois dos quinze, anos podia-se ter acerteza de ser obedecido e servido por ela. Falco dizia que a irm tinha raa deperdigueiro. Atirava um pau para longe e dizia:

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    Boca... vai buscar... Marta ficava fula. No chegaram a ter saudades dacasa, nem do jardim, nem de nada. Tinham vivido l pouco tempo. A vida dericos era triste.

    Lourena achava que os muros altos e as tlias gigantes do parque a vigiavamtodo o dia. Quando os pobres tocavam a sineta do porto, ela corria para os ver.Pareciam-lhe muito mais fascinantes do que a gente da casa, bem vestida e, nosabia porqu, ameaadora. Era gente sempre desconcertante e a ponto de seacusar constantemente. Mais tarde, Lourena lembrou-se de algumas coisas

    bonitas. O altarzinho que a me fazia em Maio, coberto de flores brancas, erauma dessas coisas bonitas. Cheirava como um doce quente, com acar porcima.

    O casamento foi a ltima ocasio de ver D. Ins. Ela saiu para sempre da vida de

    Lourena, com o sinalzinho na cara e os culos de aros de ouro. Outra histriacomeava, e sentia-se isso na alterao que todos mostravam, como seembarcassem, deixando na margem o co de guarda chamado Congo, o queLourena achou injusto.

    O PAI

    O pai era uma pessoa amvel e que se levantava tarde. Parecia uma visita, e ame tratava-o com muito respeito. Lavava-lhe os ps e preparava-lhe comidaespecial. Ele nunca falava alto. Tinha at uma voz rouca, que se ouvia mal.

    Tinha o direito de encher a banheira at borda e de demorar no banho umamanh inteira. Nunca estava para jantar e saa sempre s cinco da tarde, vestidocomo outros faziam para ir missa. s vezes trazia presentes fabulosos; masnunca se lembrava do dia dos anos de ningum. Eram as criadas que cobriam deflores as cadeirinhas altas de Lourena e de Falco, quando eram mais pequenos;elas davam-lhes prendas que traziam do mercado, junto com as compras. O paie a me no reparavam naquilo. De repente aparecia uma bicicleta em casa, ouuma bola de cores; mas parecia que ningum trazia aquilo, e no dava gostoencontrar essas coisas. Lourena partia as bonecas sem saber como. No

    duravam nada nas mos dela, e era o mesmo com os outros brinquedos.

    s um esprito de destruio dizia a me. Dentes de Rato no percebia oque ela queria dizer. Tambm no percebia como as bonecas caam tofacilmente das mos dela. Segurava-as com todo o cuidado, apertava-as mesmocontra o peito, e elas caam da maneira mais desastrosa. Serafina, que fora amada me, escondia os cacos durante algum tempo e calava-se. Mas as coisas sem-pre acabavam por ser descobertas.

    No h crime perfeito dizia Falco.

    Porqu?Lourena queria saber porqu.

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    Porque no h. Falco, como era costume, passava o Inverno na cama eestava entretido a folhear o seu lbum de selos. Era outro presente do pai, masFalco no se interessava nada com aquilo. Preferia jogar as cartas e fazia batotaquando podia. Lia revistas policiais e deixava que Lourena as lesse, mas s

    quando j ele prprio as tinha lido at ltima linha, o que demorava muitotempo. Como sabia o desfecho, no era possvel que ficasse calado e descobriatudo. Dentes de Rato tapava os ouvidos; gostava de adivinhar as coisas, e nohavia nada que mais a aborrecesse do que lhe revelassem os segredos que elamesma devia perceber. Ningum ensina to bem como a necessidade; aquiloque se aprende antes de tempo no se aprende verdadeiramente, s se acumulana cabea. Mas o corao no toma parte.

    O pai era uma pessoa diferente doutra qualquer. Sentava-se cabeceira da mesae, quando no estava, ningum podia ocupar-lhe o lugar. Lourena olhava para

    o stio vazio e, de repente, a comida no passava e os olhos cresciam por dentrocom a chegada das lgrimas. Depois acalmava. No gostava de chorar; achavauma perda de tempo, porque as coisas no se arranjavam com o choro. Martachorava por tudo e por nada, e conseguia que as pessoas se interessassem poraquilo que ela queria. Mas Lourena ficava humilhada s com a ideia de inspirarpena a algum. Um dia caiu e esfolou os joelhos na areia do jardim; o sangueque corria assustou-a muito e ela gritou. Tio Antnio, que tinha chegado nessemomento, fez troa dela e disse:

    Isso no nada.

    A pele estava rasgada e no parecia fcil comp-la. J era alguma coisa.Percebeu que a gente grande no era muito inteligente. No sabia diferenar oque acontece do que no acontece. Lourena gritava, no porque lhe doa, masporque ningum podia compor de repente a sua pele; e isso queria dizer que setratava dum acontecimento verdadeiro. Amanh ests boa disseram--Ihe.Mas o que era amanh Lourena no queria saber.Agora era muito maisimportante.

    O pai, esse teve um sorriso que parecia doer-lhe na cara. Lourena esqueceu-sedo ferimento e do joelho que ela no se atrevia a mexer, e calou-se. No podiaolhar para o pai assim aflito e a tentar parecer distrado. Estava envergonhada edeixou que a curassem sem se importar. Era tudo melhor do que causar penanos olhos do pai, pena de homem, que uma coisa que parece que vai durarpara sempre.

    O pai estava constantemente com ideias de mudar. Comprava uma casa evendia-a logo. Comprava um automvel e no podia conserv-lo muito tempo.Gostava de fazer negcios, e a me dizia que ele at no se importava de perder

    neles. A ideia de poder ganhar que lhe interessava. Uma vez comprou umaquinta, mas nunca ia l. Era a me quem se ocupava com tudo e andava sempre

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    no caminho com Artur, que j guiava um Ford velho, todo arranhado de passarem maus caminhos. Artur tinha quinze anos e no podia guiar, mas nuncaningum lhe disse nada. Tambm no era perigoso andar naquelas estradas. Omais que podia acontecer era cair num buraco e ficar l at encontrar maneira

    de sair. Havia lavradores que at ganhavam a vida a alugar os bois parapuxarem os automveis que caam naqueles abismos. Eram autnticasarmadilhas. Artur aprendeu a dar a volta, abrindo uma cancela e passando pelaterra duma viva gorda que ficava porta de casa a ver como os cesperseguiam Artur. Ele tinha que abrir a cancela e sentar-se ao volante no tempoque os ces levavam a chegar ao p dele. Se escorregasse e casse, podia ver--se em dificuldades. Lourena, no banco de trs, fingia que no estava l. Assimtinha a iluso de que os ces no existiam. Eram grandes, pardos e tinham osolhos vermelhos. No ladravam; s rosnavam baixo, como se fervessem. Eraimpressionante.

    Mas quando se entrava no porto da quinta esquecia-se tudo. A grande ramadadeitava uma sombra quente, e os cachos de uva americana cheiravam amorangos bravos. L estava a casa, como uma igreja em runas. As salas podiamguardar uma carruagem com cavalos e tudo; nos corredores havia alapes e,quando se abriam, viam-se em baixo as cabeas das vacas. Os cornos delas

    batiam todo o tempo no sobrado, e aquilo, no meio da noite, fazia medo. MasLourena habituou-se. Passou l as frias de Setembro com Falco e o primoDinis que andava no Colgio Militar. Nunca largava a farda e mostrava-se por

    toda a parte como um prncipe antigo. No entrava nas brincadeiras e ningumsabia se lhe agradava alguma coisa neste mundo. As filhas da caseiraespreitavam para ver e riam-se como se estivessem sufocadas com um bocadode po-de-l.

    me deixava-os ficar e voltava para casa depois de distribuir tantas ordens aomesmo tempo que era impossvel percebei o que queria. Depois chamava a todaa gente incompetente, e aquilo deixava-a satisfeita.

    Custa-me muito, mas tenho que admitir: so uns incompetentes.

    Tambm dizia, quando estava zangada, que as pessoas andavam no mundo porver andar os outros. Isto parecia muito estranho, mas era melhor no quererentender. Arranjavam-se sempre complicaes.

    Havia dois criados na casa de Cavaleiros, que era o nome da quinta. Eramcasados e chamavam-se Emlia e David. Trabalhavam e cantavam todo o tempoe ocupavam-se pouco de Lourena. Mas ela seguia-os, assim como o coBrilhante, que era um modelo de fidelidade. Tambm ele parecia gostar decantai e danar. Fazia piruetas e dava corridas como se fosse perseguii uma

    lebre.

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    Brilhante, pe-te aqui num instante dizia Emlia. Era tc alta que Lourenamal lhe chegava cintura; e o marido era tc pequeno que nunca lhe falava deperto, para ele no cansar c pescoo a olhar para cima. Eram ambos muito boaspessoas, e Lourena no podia passar sem os ver por perto. Emlia descia plos

    alapes para tirar o leite s vacas, e elas mugiam come se a estivessem acumprimentar. Punha nomes at aos ratos e s formigas. No tratava Lourenacomo se ela fosse uma boneca. Deixava-a andar roda dela e parecia cobri-lacom a alegria que tinha no corao e nas mos, e at nos cabelos frisados comose fossem feitos de l.

    Falco passava o tempo a inventar coisas aventureiras e s vezes saa-se mal.Punha armadilhas aos pssaros, mas no caa l nenhum; Dinis, da janela,olhava para ele com desdm e atirava aos pardais com a espingarda de chumbosque era de Falco. Nunca acertava, e dizia que a arma no prestava. Falco queria

    experimentar a caadeira de David, mas ele escondia-a onde no pudesse serencontrada.

    Havia em frente da casa um edifcio a que chamavam o celeiro e que tinha porbaixo as adegas. Mas, se eram adegas, eram diferentes das outras, porquetinham portas de grades e mais pareciam prises. Emlia dizia que era ali ondeos Condes de Cavaleiros prendiam as pessoas.

    Que pessoas?perguntava Lourena.

    Ladres ou gente como essa. Mas isso era no tempo dos Afonsinhos. Agorano se prende c ningum. Enganava-se.

    OS CONDES DE CAVALEIROS

    A caseira tinha um filho pequeno chamado Artaxerxes O nome arrevezadopunha-o doido e tornou-se, alm disso muito mau. Todos se espantavam de elese chamar assim; tudo era culpa dum padrinho rico que sabia muito de Histriaantiga.

    Xerxes dizia a me , vai apanhar erva para os coe lhos. Ou ento gritavado fundo do campo:Xerxes... Xer xes, anda c nino...

    Nino queria dizer menino. Eperro queria dizer zangado. Ame de Xerxes, asenhora Teodora, estava quase sempre perra. Tambm tinha duas filhas, bonitascomo s visto. O cabelos brilhavam ao sol, ainda que tivessem em cima uma boacamada d cinza da lareira. Emlia achava-as vaidosas e namoradeiras, maLourena pensava que elas tinham mais razo para isso do que Marta. E Martano largava o espelho todo o santo dia. Isto d santo dia foi coisa que Lourena

    nunca percebeu. Quando a me se aborrecia com uma criada, dizia: No faznada todo o santo dia. E tomava um ar mortificado.

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    Um dia Lourena viu Xerxes muito desesperado, a fazer gestos feios paraassustar as raparigas que vindimavam, e disse-lhe:

    A mim chamam-me Dentes de Rato.

    Ele empurrou-a com toda a fora e at Brilhante se indignou

    e se ps a ladrar. Xerxes ria-se e mostrou o punho fechado:

    Dentes de Rato? Levas um murro. Chega-te c e levas um murro.

    Lourena sentiu-se to infeliz que nem parecia triste nem nada. Olhou paraXerxes e ps os olhos no cu, como as santas prontas ao martrio, e disse assim:

    Perdoa-lhe, Senhor, que no sabe o que faz...

    Isto teve um efeito esquisito em Xerxes. Fingiu que estava ali por estar eassobiou ao co para o levar com ele. At lhe fez festas no focinho. Da pordiante nunca mais olhou para Lourena direito, e ela achou que nunca maiseram amigos ou inimigos na vida. Era uma coisa que doa, mas era assim.

    Xerxes passou a ser to ligado a Falco que no o largava. Deixava as touras nocampo at noite e fugia para seguir Falco por toda a parte. Falco aprendeucom ele palavras muito feias, e dizia-as como se nada fosse. Emlia ralhava-lhe e

    ele fazia de conta.

    Os fidalgos no devem falar assim dizia.Ali. fidalgo era um homem queusava gravata e, no melhor dos casos, doutor. Mas Falco no se importava.Tinha descoberto uma coisa nova para arreliar toda a gente que o no deixavaem paz; as palavras feias faziam-no parecer valente e preparado para tudo. Noqueria ser umfidalgo, mas antes parecer-se com Xerxes, que ele achavadestemido como ningum. Descobriam sempre maneiras de correr novosperigos, e Xerxes contava proezas extraordinrias. Tambm contava histrias defantasmas, para impressionar Falco. Dizia que os Condes de Cavaleiros eram

    dois irmos: um tocava guitarra na varanda, encostado s colunas de pedra, etrazia uma faixa branca a tiracolo e uma pluma na boina; o outro caava a lebre,a cavalo, nos campos de milho que se viam l em baixo. Tambm caava ursosna cerca, que era uma floresta pequena. Para isso precisava de licena do rei.

    Porqu?disse Falco.

    Ora! Que canudo, no percebes nada. Os ursos eram chamados para soldadosquando havia guerra. Era proibido mat-los antes.

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    Sendo assim..., disse Falco. De noite pensava nos condes e tinha muito medo.Os cornos das vacas batiam no sobrado, e ele encolhia-se na cama, to cansadode esperar aparies, que j no se importava com nada. No quarto enormeentrava a lua, como se ali dormisse.

    Era j no fim de Setembro, ou mais, e no se lembravam de mais nada parafazer. Tinham gasto as ideias com experincias, como eles diziam, e faltavacarbureto da dispensa, porque eles o usavam para fabricar bombas. Gostavamde ver exploses e causar estragos e participar nos perigos. Quando Emliaqueria carregar os gasmetros com que se alumiavam, no encontrava as pedrasde carbureto e ficava muito intrigada.

    Estavam aqui ontem. Isto coisa do mafarrico. Ou ento: Isto coisa dosatnico.

    O satnico era um homenzinho pequeno que crescia e mingava e que aparecias crianas quando andavam longe de casa. Todas acreditavam nele e diziamque o tinham visto.

    Comeou a chover, e Marta veio visit-los e trouxe-lhes roupas quentes. Passoua tarde sentada na borda do tanque, a balanar as pernas, muito aborrecida,enquanto Artur dava voltas ao velho Ford, que no pegava. Usava a manivelapara o pr a andar, ele tossia como gente e no se mexia. Marta disse:

    No vou ficar aqui um minuto mais. Preferia ter vindo a p!

    Volta ento a p, se quiseres disse Artur. Raramente respondia mal, eLourena pensou que ele devia estar muito arreliado. Tinha saudades de casa,mas mostrou-se corajosa para no aborrecer mais o irmo. Tomara que elesaia daqui depressa, nem que o automvel pare logo fora do porto. Noaguento mais e no quero pedir para me levarem pensou. Achou que todosdeviam perceber que morria de pena e que queria ir-se embora. Marta estavaem grande conversa com o primo e no reparava em nada. Lourena desejou

    que uma cobra lhe entrasse pelo decote, ou um sapo. Mas foram os morcegosque vieram, ao cair da noite, e fizeram com que Marta gritasse. Teve muitomedo de que eles se agarrassem aos cabelos, e abraou-se a Serafina com fora.Serafina tinha as malas prontas e partiu tambm. A casa de Cavaleiros pareceude repente sem ningum l dentro. At Emlia tinha desaparecido.

    Os ltimos dias foram muito acidentados com coisas boas e ms. Os ltimosdias de frias so sempre assim. Aparecem imensas coisas para fazer e que, semse saber porqu, se tinham esquecido. Alm disso o tempo torna-se mais doce econvida aos grandes passeios, e at as pessoas da casa so mais pacientes e

    dispostas a fazer vontades. Enfim, torna-se tudo mais difcil para a despedida.

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    A vaca Rosinha, que era turina, quer dizer, preta e branca, teve uma cria.Lourena foi ver o bezerro, que fumegava como se o tivessem tirado dum caldoquente; achou-o uma beleza, e Rosinha mugia baixinho, de contentamento.

    No se uma vaca preta com manchas brancas, ou branca com manchaspretas disse David. Era prprio dele fazer daqueles enigmas, e contava outrosainda mais complicados para resolver. Era malicioso, e Emlia estava semprepreocupada com o que ele ia dizer diante das crianas, o que aborreciaLourena. As ideias de David eram do mais engraado deste mundo. S elealegrava uma festa com a sua viola e cantigas ao desafio. Lourena pensava seele no se pareceria ao conde trovador da faixa branca, l na varanda do lado.Dizia-se a varanda do lado porque a casa dos condes estava dividida em duas, ea varanda, com as dez colunas de pedra, pertencia vizinha, Teresa Martins, ouTeresa das questes; chamavam-lhe assim porque andava sempre nos tribunais

    e no parava em casa para nada. Usava uma faixa atada cinta e tinha olhosazuis sempre cheios de desprezo. Emlia dizia que ela era m mulher; masLourena achava que os filhos dela (dez filhos, tantos como as colunas da

    varanda) a tratavam como se ela fosse uma rainha. E se fosse mesmo umarainha? Lourena pensava que D. Teresa, a me de D. Afonso Henriques, deviater sido como Teresa das questes: grande, furiosa, com olhos azuis como doispires de loua. Em casa havia um pires assim, dum azul esbranquiado, que tio

    Antnio trouxera da Dinamarca. s vezes Lourena via a Teresa Martins aespreitar da varanda. Comi; po com grandes dentadas, e as arrecadas de ouro

    estremeciam com a fora dela a comer.

    A CIVIDADE

    O monte da Cividade era um lugar muito antigo. Os romanos tinham l umquartel que servia para vigiar tudo em volta, e ainda se podiam ver restos dascasernas e das habitaes deles. Apareciam tambm pcaros de barroquebrados e at pulseiras de ouro. O monte estava ao lado da quinta deCavaleiros e era como uma cabea que saa da terra, com os olhos fechados. Daaldeia de Corvos ele s parecia um monte qualquer, e mais nada.

    A aldeia de Corvos ficava em frente da casa de Cavaleiros; era preciso atravessarum campo muito maior do que um estdio de futebol para l chegar. Era umcampo onde dantes os condes faziam justas para se treinarem para a guerra, eFalco dizia que ele fora regado com sangue; por isso que apareciam espigas

    vermelhas quando se colhia o milho. Mas dizia isto para assustar Lourena; sque ela j estava habituada.

    Na aldeia de Corvos havia muitos ces e todos eram ferozes. Os rapazesatiravam pedradas s portas dos quinteiros, que eram as portas que serviam

    para passar os carros de bois, e eles ladravam como doidos. At era pena obrig-los a desesperar-se daquela maneira. Quem tinha os ces mais valentes era a

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    senhora Maria Costa, uma lavradeira rica. Tinha tambm trs filhas e um filhodo mais bonito que podia haver. Lourena no se cansava de olhar para elesquando Emlia a levava a casa da senhora Maria Costa. Pareciam feitos de barrocolorido e tinham cabelos aos cachos, pretos. At Marta os achou bonitos. E

    Marta s gostava de gente esbelta e com ar cansado. A senhora Maria Costa eravaidosa, o que quase parecia impossvel com aquelas saias de roda e chinelosnos ps com solas de madeira. Sentava-se nos banquinhos de pedra junto das

    janelas e olhava para os campos com prazer e orgulho. Era tudo dela, o que sevia dali. Lourena pensava que as mulheres eram quem mandava; os maridosdelas quase no apareciam.

    Falco combinou com Xerxes subirem ao monte da Cividade. Levavam batataspara assar e bacalhau cru. Pensavam passar l o dia inteiro a fazer exploraes.Lourena teve inveja da liberdade que eles tinham e quis ir tambm.

    Raparigas so um empecilho. Se ela for eu no vou disse Xerxes. EmpurrouLourena e ela caiu e at se magoou. Falco no fez nada para a socorrer.

    Vais para outra vez foi tudo o que ele disse. Afastaram--se, e Lourenasentiu o corao apertado ao ver que desapareciam sem se importarem maiscom ela. Levavam no farnel nozes verdes, de que ela gostava muito.

    Apareceram s noite, e era de desesperar no contarem nada do que viram.Falco guardava segredo de tudo; ou ento esquecia-se depressa das suas

    aventuras. Tal e qual tio Antnio, que dera a volta ao mundo e nunca se lhearrancava nada do que gozara ou padecera. Pessoas assim no ajudavam osoutros a viver.

    Passados uns dias aconteceu quase o que a me chamava uma tragdia. Falcoapanhou um tiro na cara, e os chumbos midos ficaram l metidos e foi precisoir curar-se ao hospital. O pai dessa vez veio busc-lo, j de noite, Lourenaestava deitada. Emlia fez o possvel por esconder-lhe o desastre, mas elapercebeu que havia um movimento desacostumado. Ningum se importou com

    ela, e isso magoou-a. Quase lhe apeteceu ter levado um tiro tambm; no nacara, isso era repugnante e nunca se sabia o resultado. Podia perder o nariz, oque era humilhante. Pensava que Falco perdia o nariz, e aquilo dava-lhe vontadede rir, apesar da pena que sentia por ele. O ridculo mata, dizia tio Antnio.Lourena achava que aquilo, sim, ela percebia.

    Ficou sozinha na casa de Cavaleiros. Caiu-lhe o primeiro dente e David ensinou-lhe a atir-lo para o telhado, para que lhe nascesse outro. Xerxes tinhadesaparecido. Emilia contou que ele fugira para a Cividade e que s apareceuquando a fome o obrigou. Mas Lourena no o viu. Andava ocupada a ajudar

    Emlia a fazer a marmelada, e descascava marmelos com uma faquinha aguadaque servia tambm para tirar as pevides. Emlia encheu quatro tigelinhas de

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    barro do tamanho dum tinteiro e Lourena ia todos os dias p-las ao sol a secar.As vespas fizeram-lhes buracos, que at parecia impossvel elas comerem tantoem to poucas horas. Emlia tinha o cuidado de cobrir a marmelada com umacortina velha de tamine. E dizia:

    As ladras! As bandidas! Sacudia-as com o avental, e Lou-rena pensava sealguma vespa lhe entrasse na cabeleira crespa nunca mais podia sair.

    Comeou a chover e o gado agitava-se muito nos eidos, que era o lugar onde serecolhia. Sabiam quando ia trovejar; a aldeia de Corvos ficava escura e atempestade caa de repente e trazia um pouco de terror, como uma novidadeque o corao estima. A caseira passava com as saias pela cabea, gritandoqualquer coisa, e o homem dela estava porta de casa, com um saco a fazer decapuz. Mas Xerxes no se via em parte nenhuma. Lourena, que tinha ido com

    Emlia ao celeiro, ficou espera que ela lhe trouxesse um guarda-chuva. MasEmlia demorava-se; tinha sempre que fazer pelo caminho ou no sabia dachave da cozinha, ou encontrava algum que a desviava e se punha a conversar.Lourena esperou um tempo infinito, e chovia tanto que a gua estalava comochicotadas nas pedras. Foi ento que ela ouviu barulho e pensou nos condes deCavaleiros, com armaduras de ferro, a mexer-se l para o lado das adegas.Agora at me apetece v-los pensou Dentes de Rato. Quando sentiacuriosidade tornava-se muito valente. Ningum podia imaginar do que eracapaz nessas ocasies. Desceu as escadas para a adega e estava to escuro que sse viam as teias de aranha brancas a balanar ao vento que entrava pelas frestas.Continuava a ouvir o mesmo barulho, como se algum batesse no ferro comoutro ferro. O barulho vinha das prises dos condes, que na verdade no passa-

    vam de antigas garrafeiras. Uma voz disse:

    Olha a Dentes de Rato! Arremalada, que fazes aqui? Lourena no vianingum, porque os olhos dela no se tinham habituado ainda ao escuro. Masreconheceu o tom de Xerxes. Ele estava atrs das grades e fazia correr um pregopor cima delas, como se fossem as cordas duma harpa.

    Ests a preso?disse Lourena, espantada.

    No. Estou a cantar missa na Cova da Iria.

    Que fizeste? Quem te trouxe para aqui?

    Olha, nina, dei um tiro no teu irmo. Ele um safardana, mas foi sem querer.Meu pai prendeu-me e disse que fico aqui at ir para a tropa.

    muito ternpo?

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    Ele no respondeu. Ou fazia contas ou perdera a coragem. Lourena deitou acorrer e foi contar a Emlia, que se benzeu e falou com o caseiro logo a seguir.Estava muito indignada. David tambm ajudou um pouco e pediu para Xerxesser solto. Nem ao Brilhante eu fazia isso. A liberdade sagrada disse ele. O

    bigode tremia-lhe, de to comovido que ele estava. Mas s quando o caseiro tevemedo de ser despedido que esteve de acordo em tirar Xerxes da adega. Nessedia ele fugiu de casa.

    Antes quer encarar o mundo do que a ns todos que lhe queremos bem suspirou Emlia.Nunca mais c volta.

    Lourena achou que Xerxes tinha um corao duro, mas ningum se ria dele.Ela desejou que Xerxes tivesse sorte e que arranjasse trabalho num circo; e fosseclebre, como o menino Lufft-man, que todos admiravam por saltar de cavalo

    em cavalo com grande graa e habilidade. Na praia, pediam-lhe autgrafos, etodos se orgulhavam de ir nadar com cie.

    A me veio buscar Lourena e ouviu a histria de Xerxes com ar carregado. Nodisse nada. Via-se que no lhe perdoava. Falco ia ficar para sempre com trspintas no nariz, da plvora que entrara na pele. Quando olhava para aquilo, s

    vezes Lourena lembrava-se de Xerxes e pensava no que lhe teria acontecido.Depois esqueceu-o completamente.

    O pai vendeu a quinta, como vendia tudo. Lourena, dessa vez, teve pena.

    Emlia e David ficaram l a servir os novos patres, e mais tarde aconteceu comeles uma histria muito triste. Para quem gostar de histrias tristes, pode serque eu um dia conte o que lhes aconteceu.

    Quando Lourena voltou para o colgio, estava muito modificada. J nomerecia o nome de Dentes de Rato, porque eles tinham-lhe cado e tinha outrosnovos, mais redondos e fortes. Falco ficava um bocado amuado quando ela oconvidava a apreciar a bonita dentadura que agora tinha.

    Ainda s um insecto

    dizia Falco.

    Nunca hs-de ser outra coisa.

    MasLourena no s tinha dentes mais fortes; o corao tambm estava maisvalente e no se preocupava com aquelas injrias. At gostava de desafiar Falco,e sabia como havia de o incomodar de variadas maneiras. Marta tinha umaquantidade de namorados a quem ela prometia amor eterno; mas logo a seguirdava ouvidos a outros e divertia-se com o sofrimento deles. Imitava as mulheresms do cinema, mas o pai dizia que ela era uma menina como outra qualquer.Lourena pensava que ser uma menina como outra qualquer no era l grandecoisa.

    De repente aborreceu-se de usar bibes ou o uniforme preto que a me achavato distinto. Vestia Lourena inglesa, o que era muito desengraado. Comeou

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    a ter birras que lhe davam para no comer. A me no sabia como lidar com ela.J no era Dentes de Rato, e a sensatez dela evaporara-se.

    Que fizeram minha filha? Trocaram a minha Lourena disse a me.Lourena queria um quarto s para ela e parecia odiar toda a gente. Olhava paraMarta duma maneira, quando ela se arranjava ao espelho, que a irm se viravaassustada.

    Que ? Nunca me viste?

    Tens um olho maior do que outro disse Lourena. A irm ficou toalarmada que foi medir os olhos com um compasso. Eram iguais. Mas Lourenarepetia sempre: O esquerdo maior do que o direito. No sei porque teafliges tanto. Um deles com certeza um olho mgico.

    s um monstro! gritou Marta. Queixou-se a toda a gente de Lourena e atassentou casamento com o rapaz que melhor soube ouvi-la nessa ocasio. Eledava-lhe razo em tudo. Como parva pensou Lourena. No tem miolos;parece-lhe que amar aquela pasmaceira. Para ela, amar era ir abraados, popa dum barco, numa grande tempestade. Ver a morte diante dos olhos e nose separarem.

    S o pai a tratava como dantes, sem muita confiana; mas olhava s vezes paraela como se a vida parasse volta e s Lourena estivesse viva no mundo.

    Raramente lhe dava um beijo e, se o fazia, era com respeito e algumaseveridade. No era um pai camarada, como se usava ser; Lourena pensava queum pai desses no lhe convinha. No enganavam ningum, e notava-se logo queeram to velhos como os outros. Ela preferia que o pai fosse assim, uma pessoaum bocado doutro tempo e que falava de coisas completamentedesinteressantes do preo do vinho e da crise da lavoura. Tinha segredos coma me, mas isso fazia parte do direito de serem os pais e no quaisquer outraspessoas. Lourena fez nove anos. Era uma idade em que ningum reparava.Quando Marta fez quinze, Serafna disse que era um nmero bonito. E quando

    Artur completou dezoito, o pai deu-lhe uma cigarreira de prata e deu-lhetambm licena para fumar; Artur fumava desde os dez anos, mas pareceu ficarmuito contente. Quem repara em quem faz nove anos? Serafina disse-lhe:

    Se fizesses doze, dava-te a minha gargantilha com o corao de ouro. E nofez mais do que presente-la com um leno de cambraia. Ainda assim, foi omelhor de tudo. Era um dia como os outros e no pde faltar s aulas. Martadisse, sabendo que lhe desagradava:

    Esta pancrcia faz hoje anos.

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    E Falco tocou alegremente a buzina do velho Ford, que soava duma maneira ridcula.

    Quando tio Antnio chegou, dois dias depois, trouxe-lhe um relgio de pulso. Tio

    Antnio era padrinho de Lourena.

    Toma, pelo dia dos teus anos disse. Puxou-lhe o cabelo e deu-lhe doissafanes. Com ele, as coisas pareciam no ter mudado. O relgio no funcionaval muito bem, mas era elegante e de muito bom gosto. Outra coisa no se podiaesperar de tio Antnio.

    noite, estando aberta a janela do quarto, uma pomba veio pousar no peitoril.Comeou a dar voltas e a arrulhar. o meu presente de anos pensouLourena. Algum o mandou, de muito longe... O corao dela, oprimido echeio de inconfessveis tristezas, encontrou de repente consolao. Achou que omundo inteiro esperava por ela, e os mares todos, com as suas tempestades,

    podiam ficar calmos porque ela assim queria que fosse.

    Porto, 9 de Maio de 1983