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  • 7/31/2019 desenlaados

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    Dispersos 2

    Desenlaados

    cegonha roubo o ninho

    e ao moinho o mastro.

    Vou-te roubar

    e fars de lastro.

    Vamos navegar.

    Esta seara um mar.

    Parecem sereias

    as cigarras a cantar.

    Um deserto de areias

    ergue-se no ar,

    vivemos paredes meias,

    cada um no seu lugar.

    Quando as mars forem cheias,

    vou a pra te roubar.

    Uma vela de moinho,

    do moinho o mastro,

    cegonha roubo o ninho,

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    vamos na esteira do astro.

    Vamos navegar.

    Do meu navio a quilha

    na seara o meu arado.

    A rasgar.

    Ai Amor tanta milha!

    que tive que fazer parado

    at te poder roubar.

    Ao moinho roubo a vela,

    tambm navego no ar

    se tiver uma caravela.

    A cavalo, vou sem sela.

    Vamos navegar.

    *Dedicado a Madalena vila.

  • 7/31/2019 desenlaados

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    Tanto di, que tanto passa.

    segredo bem guardado,

    vem no sangue desta raa,

    de galochas e oleado.

    Segredo de marinheiro.

    Entre o vento e a barcaa,

    namoros damor primeiro.

    Tanto di, que tanto passa.

    Neste ofcio de pedreiro,

    qua gua do mar amassa,trago o sal ao meu celeiro.

    Segredo de marinheiro,

    sabe que estado de graa

    o desejo verdadeiro.

  • 7/31/2019 desenlaados

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    Miguel Relvas:

    - Maria Jos Oliveira?

    - Sim, Senhor Ministro.

    - Ah J sabe quem eu sou Sabe do que se trata, espero

    - No Disseram-me s que o Senhor Ministro queria falar comigo Tenho a agenda

    sobrecarregada At Setembro penso ser impossvel

    - Impossvel, o qu????

    - Jantar? No era isso?

    - Maria Jos!!!... Aquela notcia no sai! Estamos entendidos?

    - Oh Ah Oh E se sair?

    - Bem, Maria Jos No est a compreender Eu conheo a sua agenda de fio a pavio!

    E pode ter a certeza de que nenhum ministro janta consigo at Setembro

    - Isso uma ameaa?

    - Ora ameaa Isto um comunicado da bancada parlamentar!

    - Ah Oh Bem, talvez arranje aqui um buraquinho na agenda

    - Maria Jos Acha que eu tenho tempo agora?

    - Odeio-te!

    *16 de Maio de 2012.

  • 7/31/2019 desenlaados

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    A Madalena.

    O retrato da Madalena.

    A Madalena apareceu hoje na televiso. Levou uma bastonada da polcia no Rossio, onderesistia meio acampada, na vspera das eleies legislativas.

    A Madalena no gosta de aparecer na televiso. Vive entre o pnico e a raiva. No gostade se tornar visvel para fora, porque o seu palco restrito e tem que estarcuidadosamente ornamentado e assinalado pelas insgnias da sua tribo.

    Mas, acima de tudo, a Madalena um retrato. Como se estivesse a ser permanentementeretratada, a Madalena nunca surpreendida, tem o momento previamente cartografado

    por forma a que tudo na sua presena se conjugue.

    Bem, eu devo confessar que andei e ando alucinado com a Madalena. Sei que no desejo, ertico, ou similar. Ou, talvez para me resguardar de mim prprio, diria que algode encantamento, idntico ao que sente o pintor por um pssaro raro, ou por uma flor quedesponta na barafunda de um canteiro.

    Por tudo isto, ou talvez tudo isto tenha determinado que a minha relao com a Madalenativesse evoludo por retrato. E s quem conhea a Madalena poder compreender o efeitoavassalador, ou mesmo demolidor de um retrato, ou de um contnuo elenco deles.

    O facto que quando pude conhecer a Madalena, num breve mas intenso encontro no

    jardim do Prncipe Real, no estava preparado, nem por sombras, para que a Madalenasuperasse presencialmente todos os retratos. Fiquei, para utilizar uma expresso que j seembutiu no lxico da lngua portuguesa, para o arejar, knock out.

    Aconteceu ento que, sem que de tal me apercebesse, a Madalena era o retrato que meficava bem. Nos deambulantes itinerrios da minha inspirao parablica e alegrica, aMadalena surgia-me como rplica de outra Madalena que, aos ps da cruz, povoou ocalvrio de ss insinuaes de um xtase transcendente de erotismo. Tambm por isso meficava bem que a Madalena representasse para mim o inalcanvel.

    Se vier a ser trado pelo destino, que um raio me fulmine.Ai!!! No, foi o vento que empurrou uma porta.

  • 7/31/2019 desenlaados

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    Regressando pois ao que aqui interessa, a Madalena apareceu hoje na televiso exibindopara as cmaras a marca de uma bastonada da polcia na cintura. O nome, bempronunciado com esquivo sotaque aoreano, numa voz rspida mas a abarrotar de terno epungente apelo, soou como a queda do martelo numa forja:Eu sou a Madalena vila. Aonome da Madalena acresce o sortilgio do nome da cidadezinha castelhana que serviratambm de determinante toponmico a Teresa.

    Qualquer movimento social s se torna operativo, em ordem a prosseguir uma conclusosatisfatria, se for assinalado com imagens ou episdios referentes. Esperava por isso quea Madalena estivesse presente, polarizando a ateno, em cada momento da guerra socialque se antevia.

    Nunca previra que a Madalena fosse to instvel como qualquer ideal.

    Estou a escrever este romance, ou novela, para em sntese compreender o que se passou

    entre Setembro de 2010 e o presente. Por ter compreendido que a chave da minhacompreenso a Madalena. Em simultneo, tento compreender at raiz o subtil encantoda arte do retrato, para avaliar a minha vulnerabilidade e como sou susceptvel ao seuarrebate. Correndo o risco de me transformar num manipulador do seu poder.

    Enquanto escrevo, sei que a Madalena me vai fustigar com sucessivos e alternadosdesaparecimentos e reaparecimentos. Como aquele que, no Inverno entre 2010 e 2011,administrou o crescendo da minha alucinao, quando zarpou sem aviso para o Brasil eme obrigou a percorrer Lisboa, de ls a ls, em sua demanda. At me comunicar,transvazando ternura, que desembarcaria no aeroporto de Lisboa no dia seguinte.

    No sei porqu, este breve hiato de ausncia ressurgiu-me subitamente na memria. E tiveque me superar, soprando nvoas, para reentrar nos detalhes, pois evito record-lo. Mas crucial e indispensvel ao entendimento.

    E regressando de novo Madalena, porque me perdera j em mim, a descrever o meuprocesso, estou agora sentado sua frente, no jardim do Prncipe Real, no quiosque daesquina, uma tarde instvel e parda de fim de Janeiro. Um raio de luz.

    A Madalena, ela prpria, tal qual se insinua nos retbulos flamengos, em todo o seu subtil

    esplendor. Uns profundos olhos verdes de abismo numa silhueta franzina, onde tudo sedepositou em harmonia e em que pontuam o nervoso picado da locomoo e a nsia queas mos gritam. O cabelo sabiamente revolto emoldura um rosto perfeito, mas sobra paraenquadrar o resto. Enfim basta, no v incorrer no entusiasmo e violar o protocolo daconteno da linguagem.

    At porque a Madalena indescritvel pela palavra, nem o retrato a pode alcanar.

    Com um olhar contido mas subtilmente provocador, ferozmente fixo nas minhas pupilas,a Madalena avalia o impacto que o territrio de ningum entre o retrato e a presena real

    vai desencadear. Tento, sem desviar o olhar, no oferecer vista a emoo. Arte cnicaque tambm cultivo e em que me sinto seguro.

  • 7/31/2019 desenlaados

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    A conversa no trivial nem profunda. Abordamos os tpicos esperados, escorreitamente,sem evitar os que a cortesia de uma seduo discreta impem. Conclui-a com uma arruaasubtil:

    - Eu tambm sousnob. Visto-me assim, mas sousnob

    Era bvio, desde a canadiana preta cujo capuz insinua um monge, touca branca derenda, em algodo, de onde os cabelos se evadem em desordem.

    Despeo-me com a certeza de que a Madalena me acompanhar na preparao do 12 deMaro.

    O prximo passo deixar que a Madalena desempenhe o seu papel, na conciliao degrupos dissonantes.

    A convergncia de intenes parece inabalvel.

    Sei que o meu aspecto militarizado e a idade determinam algumas barreiras.

    De tudo o que, durante este breve perodo, disse Madalena, o que me parece que mais aentusiasmou, provocando-lhe talvez um certo mal-bem-estar, foi quando lhe disse:

    - A revoluo no decorre necessariamente nas ou das manifestaes, eclode em cadainstante breve das nossas vidas, se estivermos atentos e os soubermos integrar narevoluo, at num beijo. Uma manifestao uma sequncia de retratos. Um beijotambm pode ser um retrato.

    bem possvel que o entusiasmo tivesse sido bem mais ou s meu. No sei. S sei queno.

    Foi a partir de ento que comemos a falar sobre o amor. Para distinguir amor de Amor.A distino nunca ficou concluda.

    Observar e registar em retrato a Madalena transfigurada durante uma manifestao passouento a ser um vcio.

    A Madalena era o retrato perfeito.

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    A Madalena do retrato.

    Era de esperar que a Madalena se cansasse do retrato. Viver a vida inteira cativa na prisode um retrato viver numa cela de penitenciria.

    Talvez seja essa a razo porque a Madalena desapareceu de novo. E a razo porque eu merecolhi tambm num silncio relativo, mas cauteloso.

    Talvez que a Madalena do retrato no volte a ocorrer. No sei se tal alarmante sepacificante. Sei que todas as noites beijo o retrato da Madalena, porque se me revelacomo a materializao possvel da revoluo.

    Sem dvida, o retrato da Madalena revolucionou-me a mim. Penso poder j dispensar oretrato da Madalena. O problema ser dispensar a Madalena.

    Existia uma Madalena para l do retrato. E foi essa que me surpreendeu. O retrato portou-se bem, a Madalena porta-se mal.

    nesta coliso, da Madalena com o seu retrato, que busco inspirao para reavaliar osfundamentos de uma doutrina da prtica revolucionria. Na compreenso do queaconteceu entre Outubro de 2010 e o presente.

    A verdade que o mundo pareceu a dada altura ruir. E se no ruiu a chave doentendimento reside no retrato. E na substncia do que nunca ser retratvel.

    Por isso regresso Madalena, quela que nunca ficou cativa em retrato algum.

    A revoluo, na minha vida, foi sempre como a Madalena. Um retrato permanente naparede do meu quarto e uma revoluo arisca, que ora se evade ora regressa. Sempre queregressa, obriga-me a confrontar-me com o retrato. Talvez a revoluo seja o espelho daminha instabilidade. Porque na realidade continuamos os dois no mesmo lugar, a posiorelativa que se altera.

    A Madalena fora do retrato uma doce criatura, sensvel, parece que carrega, ou carregamesmo a dor e a mgoa de tudo e todos os que a envolvem. Foi com essa Madalena queme habituei a comer uma sopa no Agito, ou a partilhar um quarto de queijo aoreano. aMadalena preocupada com a precariedade de todos os seus amigos, que me leva a casa doSrgio e outros lugares onde procuramos uma linguagem comum. Ou que me telefonacom os nervos em franja, porque quer andar para a frente, mas a debilidade de um corpofranzino comea a tolh-la.

    Esta Madalena faz retratos, dispara a cmara em todos os sentidos, surpreendendo sempreuma ocorrncia acidental e de sentido esquivo. Mas no se deixa retratar. Esta Madalena

    o retrato da derrota intercalar da revoluo. Um intermezzo.

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    Intermezzo.

    - Ah!... Eu achei lindssimo, quando tu foste ao muro do meufacebooke escreveste com

    raiva:AMO-TE! Foi o mximo- Ora Madalena Eu no escrevi isso. Disse-te em mensagem. Ia l escrever isso

    publicamente. Comiam-me vivo.

    - Deixa-te de coisas. Eu adorei. E ficou l.

    - Bem nem te pergunto porque adoraste Em frente.

    Fim de intermezzo.

    Era esta Madalena que me acompanhava nas viagens a Cascais, de comboio, parareunirmos com o Miguel, o Goulart, a Alexandra, a Manuela, outros, para prepararmosuma presena demarcada no 12 de Maro. A Madalena com o crivo rigoroso da suaobservao sobre o prximo. Cptica, de olhar perscrutador, ora silenciosa, ora a explodirem palavras obscenas.

    Esta Madalena que, pelo sim pelo no, porque a sua presena era forte, surpreendentequando confrontada com o retrato, iria em breve ser acusada de ser uma infiltrao do BE,surgia sempre mais vigiada por compromissos ticos do que qualquer outro.

    Entretanto ia minguando. Na primeira semana de Maro parecia j ter alcanado afronteira da ponderabilidade.

    o momento de esclarecer que eu tinha, em Maro de 2011, entre os sessenta e ossessenta e um anos, a Madalena trinta e dois. Seja, a Madalena nasceu quando eu tinha ja idade que tem agora. Este abismo, dir o leitor, no tem qualquer relevncia. Noduvido de que para o leitor no tenha, quem vai agora fazer sessenta e trs sou eu.

    O leitor no est a compreender que eu tinha, para l de todas as outras matrias que me

    entupiam o trnsito na mente, que usar de toda a prudncia para no deixar sequer deixareclodir a suspeita de que teria outro interesse na Madalena que no fosse uma genunaamizade e camaradagem. Tinha que assegurar que a prpria Madalena estava segura emrelao ao assunto.

    No me era difcil. No posso dizer que era ou sou insensvel beleza fsica e ao mundointerior tempestuoso da Madalena. Mas sempre convivi muito serenamente com estasmatrias. Com o avano no itinerrio da vida, j tenho por adquirido que as coisas mais

    belas so inalcanveis. Deleito-me na sua contemplao, certo de que me transmitemuma inspirao incomensurvel para enfrentar o quotidiano das tarefas que o imperativo

    da minha conscincia me impe.

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    A Madalena era para mim o plo em torno do qual construa o retrato da revoluo. AMadalena era a imagem da revoluo que eu idealizava.

    Pela Madalena eu morreria e estava habilitado a todas as loucuras.

  • 7/31/2019 desenlaados

    11/25

    Aquele homem algemado e encostado ao muro

    apenas ouviu um grito antes do estampido.

    Um grito exaltado seco, breve e duro,

    entre o f bemol e o sol sustenido.

    Amo-te, gritou o algoz j em sentido,

    antes de encostar a carabina ao peito.

    Depois, uma vez que o dever estava cumprido,

    cantou o seu amor como o amor perfeito.

    No, Amor, amar-te assim no me d jeito,

    como se abatera um animal j ferido

    e o depusera como uma bno no meu leito.

    Porque o amor nunca deve ser pedido.Se o pedires j sabes, Amor, que o rejeito,

    se o calares t-lo-s por merecido.

  • 7/31/2019 desenlaados

    12/25

    Dizes-me que o amor um vulco

    que escorre em lavas de metal fundido.

    O epicentro de um furaco,

    algo de sem razo mas com sentido.

    Recolho em ti um pssaro ferido,

    ferido fui tambm no corao.

    E enquanto a borrasca um seno

    h um amor no amor escondido.

    O Amor uma equao

    com resultado sempre diferido,

    algo como que uma danao

    que nem o tempo jamais far cumprido.Toda a matria em ebulio

    vapor que podes dar por perdido.

  • 7/31/2019 desenlaados

    13/25

    Dormi ao relento e visitou-me o Sol com o orvalho matinal.

    E era um velo hmido ainda das guas uterinas,

    amnitico.

    Ficou-me na pele o teu sinal,

    uma paleta de cores vespertinas,

    um festim ptico.

    Nmada que sou e peregrino.

    Foras o regao breve de meu retorno,

    o telheiro, o abrigo

    uterino.

    E fora eu ento o adorno

    da tua solido.

    Mais do que o teu amigo,

    o fiel guardiode teu escrino.

    O teu segredo

    e o nosso degredo.

    Lapidar-te-ia como a uma esmeralda,

    na forma de um templo para consagrar Demter.

    Coroar-te-ia a fronte com a grinalda

    das flores que colho pelo ter.

    E sempre que regressasse ptria,

    o teu regao seria a minha mtria.

  • 7/31/2019 desenlaados

    14/25

    Onde haja um calor que abrasa,

    h uma chuva morna que regenera

    tudo o que o fogo arrasa.

    Escrava minha no sejas.

    Cativo teu serei eu.

    Estarei sempre onde me vejas,

    no alcance de um gesto teu.

  • 7/31/2019 desenlaados

    15/25

    Dizem-te agora: Vive um dia de cada vez, o amanh aps o hoje e o hoje aps o ontem.Contempla as rvores e encanta-te com a sua serenidade, estticas na corrente e no fluxodos dias.

    Mas disseram-te, consecutivamente: Aventura-te, sonha, s um ser iluminado no caos

    amorfo da natureza, tens uma alma e um esprito, anseia, estabelece por limites o almdo horizonte.

    E os que te disseram uma foram os que te dizem a outra.

    E olhas agora para ti e despojaram-te de todas as ferramentas do ser. Que te resta senomergulhar no fluxo dos dias, viver um aps outro dia, o hoje igual ao ontem e o

    prognstico do amanh?

    Quando necessitaram o teu fogo, alimentaram-te a alma e serviram-te o Seu Corpo como

    se fora o impulso do teu destino.Agora, quando todo o fogo entrou em regime de rescaldo, sugerem-te que te sujeitescomo o tio a extinguires-te no fluxo dos dias. Porque as rvores tambm se extinguiro,quando o oxignio te faltar.

    Despoja-te da alma, porque a alma selectiva. Procura os corpos olmpicos, de ouro.

    E no h alma que sobre para todos.

    Mergulha ento no fluxo dos dias, no caos amorfo da vida mineral.

    Porque a vida agora aritmtica. E a lngua equivalente matemtica.

  • 7/31/2019 desenlaados

    16/25

    Corpos so corpos, so sal e gua,

    carvo e gelo, um sopro de oxignio.

    Quando se revelam em sorriso ou mgoa,

    foi porque neles soprou bom ou mau gnio.

    O ao ao, o barro barro,

    um vai forja, o outro vem mo.

    So corpos as mos com que te agarro,

    ao a marca que fica nelas ento..

    Corpos so corpos, so vento que corre

    as mos e as mos que a mo agarra,

    quando um corpo ao outro se percorre.

    Mas marcas de ao nunca se apagam,quando um corpo ao outro recorre,

    nas ausncias longas que as horas tragam.

    ----------------------------

    Quando te enlao, sinto que podes levitar.

    s uma projeco no espao,

    um feixe de linhas a traar planos e volumes.

    Sem massa.

    s ter inodoro.

    O excelso inalcanvel.

    Por isso me fluis na ribeira dos sentidos.

  • 7/31/2019 desenlaados

    17/25

    Eu sou tambm as palavras com que me revelo,

    que me brotam no ar que expiro,

    no sou s as mos com que modelo

    a caverna onde me retiro.

    Geme o arado quando a terra lavra

    e a roda da nora quando a gua traz.

    Quando me brota da garganta uma palavra,

    quem fala por mim Satans.

    Se te afago pedes-me um sussurro,

    se sussurro pedes-me um afago.

    Porque no zurrar se sou um burro,

    para aliviar a carga que trago?

    Rasga pois tudo o que escrevi.

    No fique de mim nem rasto nem pegada.

    Eu calo tudo o que ouvi,ficas-me na palavra calada.

    Pediste-me a carne e disse toma.

    Pediste-me o sangue e disse bebe.

  • 7/31/2019 desenlaados

    18/25

    E no tenho j mais que se coma,

    o cadver meu ento recebe.

    Pediste-me amor e dei-te um beijo,

    pediste-me um beijo e dei-te amor.

    Nunca fui mais que um realejo,

    no sinto sede, fome nem dor.

    No sou mais que um realejo,

    a que ds corda por capricho

    ou quando sentes falta de um beijo.

    Um pssaro, um gato ou qualquer bicho

    vido a servir o teu desejo.

    Um traste que cabe em qualquer nicho.

    O lugar da vida lugar de morte,

  • 7/31/2019 desenlaados

    19/25

    um canteiro encostado junto ao muro

    que cerca o talho que te coube em sorte

    Quando te despejaram no escuro.

    Vieste inebriado de futuro,

    no h j lugar que te conforte.

    rompe a onda o caixo do nascituro,

    vai velado pela estrela do Norte.

    A terra macia e o mar duro

    e a onda do vento o contraforte.

    Breve a vida e longa a morte

    e tu s o caixo do nascituro.

    Num canteiro encostado junto ao muro,jaz o passado encostado ao futuro.

    Vi subitamente a minha imagem reflectida numa parede,

    branca de cal.

  • 7/31/2019 desenlaados

    20/25

    No centro e perdido no bestirio.

    E era uma mulher com corpo de pssaro.

    Trinados, chilreios, soavam como o dedilhar de uma harpa.

    E s eu permanecia em silncio e atento,

    surpreendido com a metamorfose.

    Um mocho escarnecia de mim.

    Afinal, todavia ali cativo,

    s eu ali faltava.

    Evadira-me e abandonara a minha me.

    E a memria s um rio pedregoso,

    que corre de juzante para montante.

  • 7/31/2019 desenlaados

    21/25

    Mas que lngua falas tu, afinal,

    esse arranhar de pedras contra o rio,

    esse ranger de portas no quintal,

    esse vai vem do vento em desafio?

    Que lngua me falas tu, bufo?

    Que vem to salobra como o sal,

    to doce como o mel se vai ento,

    um canto vil em tom celestial.

    Que lngua me trazes do rossio?

    Que no vem da garganta mas da mo,

    a pedra errante no vento vadio.

    Muito bem falas quando vens por mal.Vens da com conversas de bafio,

    negro de carvo e branco de cal.

    Dizes da palavra que no supre o gesto.

    e assim pensas o teu silncio impune.

  • 7/31/2019 desenlaados

    22/25

    Mas quando ao gesto falta tudo o resto

    na palavra que o gesto te pune.

    s j uma flor seca de papel,

    um recado inerte flor dos lbios,

    um beijo que te falta flor da pele

    e que queres suprir com ditames sbios.

    Cala-te ento, inspira o sol e vem,

    rasga no meu peito o rosto sombrio.

    Faz de contas que eu no sou ningum,

    sou s o calor que te tira o frio.

    E grita agora como quem se vem

    palavras de amor como um desafio.

    Vives encarcerado entre o princpio e o fim.

    Foste um instante, um gemido, um sorriso e uma lgrima.

  • 7/31/2019 desenlaados

    23/25

    A vida um segmento de recta com dois pontos de apoio,

    um comboio expresso que entre Lisboa e Paris faz catenria.

    Se te projectares para l da tua brevidade,

    ficars com os ps de fora,

    porque o teu caixo ser feito por medida.

    Morrers na tua mortalha.

    S clere.

    No deixes para amanh o que tens que fazer hoje.

    Procura o znite invertido da flecha que a gravidade te imps.

    Amanh sers poeira na estrada.

    Onde comear a urgncia de ser do teu filho

    termina o teu caminho.No queiras que ele limpe o lixo que fizeste.

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