Deslocamento e memória na escrita de si: Uma leitura de ... ria-na... · PDF file1 Mestranda do Programa de Pós ... leitor diante de uma inevitável aceitação de que não se pode

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    Deslocamento e memria na escrita de si:

    Uma leitura de Varia Imaginacin

    Dayane Campos da Cunha 1

    RESUMO: Este trabalho tem por objetivo analisar, a partir da leitura de Varia

    Imaginacin, da escritora argentina Sylvia Molloy, as relaes entre memria, escrita de

    si e deslocamento na constituio de um sujeito fragmentrio, em constante trnsito nas

    esferas lingustica, geogrfica e temporal. O vivido retorna, atravs da rememorao e

    imaginao, em fragmentos que se espalham pelos relatos, minando a(s) certeza(s) dos

    fatos e fixando apenas flashes daquilo que passa ou se imagina passar.

    Palavras-chave: Escritas de si; Deslocamento; Memria.

    O presente trabalho tem como fio condutor a questo da memria nas escritas de

    si e sua relao com a experincia do deslocamento geogrfico, temporal e lingstico.

    Tenciono analisar a obra da escritora argentina Sylvia Molloy, Varia Imaginacin a

    partir de sua configurao hbrida autobiografia, autorretrato. Minha leitura parte da

    ideia de que assim como constitudo por pedaos e deslocamentos, o texto seja, em si,

    migrante, participando, sem reduzir-se a nenhum dos gneros autorrepresentativos,

    atravs dos quais se figura- do latim figurare: traar o perfil, o desenho- ou se des-

    figura um sujeito.

    Para pensar essas questes lano mo do livro citado e dos diversos textos que

    com ele se relacionam, quais sejam, as entrevistas concedidas pela escritora por ocasio

    de seu lanamento e seu estudo sobre a autobiografia hispano-americana compreendida

    no perodo do sec. XIX e XX, que recebeu o ttulo em portugus de Vale o escrito: a

    escrita autobiogrfica na Amrica hispnica, procurando estabelecer possveis dilogos

    entre os mesmos.

    1 Mestranda do Programa de Ps-Graduao em Letras: Estudos Literrios da Universidade Federal de

    Juiz de Fora

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    Busco compreender em que medida o retorno ao passado, s recordaes se

    constitui como um intento de tornar possvel o que se configura desde sempre como

    impossibilidade, a saber: resgatar da disperso do vivido e, vale mencionar, imaginado,

    o que se apresenta como restos, runas. De que modo, com quais estratgias o eu

    trabalha na recuperao dessas runas.

    O livro foi publicado em julho de 2003 pela editora Beatriz Viterbo e se divide

    em quatro partes temticas: Familia, Viaje, Citas e Disrupcin. Em cada uma das partes

    encontramos relatos breves, recordaes de experincias pessoais ou de outras pessoas,

    ouvidas na infncia, as quais tm lugar principalmente na cidade de Olivos, Argentina,

    pas em que Sylvia Molloy viveu at os vinte anos. Molloy professora da

    Universidade de Nova Yorque, escritora e crtica literria.

    Como j mencionado, ela investiga o gnero autobiogrfico e em seu livro de

    ensaios Vale o escrito: a escrita autobiogrfica na Amrica hispnica, a escritora

    defende, como Paul de Man, que o relato autobiogrfico mais bem apreendido atravs

    de uma figura de linguagem- a prosopopeia, que consiste em fazer falar e responder os

    ausentes, os mortos e os seres sobrenaturais (MOLLOY, 2003a, p. 10), isto , deixar a

    morte falar atravs da grafia das palavras. Nesse sentido, escrever sempre uma

    tentativa de preencher um vazio, tentativa sempre renovada e sempre fracassada, de dar

    voz quilo que no fala, de trazer o que est morto vida, dotando-o de uma mscara ( a

    textual) ( MOLLOY, 2003a, p.13).

    Assim entendido, a palavra a mscara detrs da qual o leitor v/imagina

    aqueles sujeitos e vozes que j no esto l. Para Molloy a escrita de si uma re-

    presentao [em lugar de] ou uma volta narrao, j que para a autora a vida , em si

    mesma, relato.

    A vida sempre, necessariamente, uma histria; histria que contamos a ns mesmos

    como sujeitos, atravs da rememorao; ouvimos sua narrao ou a lemos quando a

    vida no nossa. [...] A linguagem a nica maneira de que disponho para ver minha existncia. Em certo sentido, j fui contado- contado pela mesma histria que estou

    narrando. (MOLLOY, 2003a, p. 19)

    importante notar que, para a escritora, a autobiografia, ou seja, a escrita da

    prpria vida, no algo que se faa de forma pura, aqui no sentido de acesso direto

    aos fatos, mas antes, uma re-construo das runas que habitam a memria.

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    Em entrevista a Ariel Schettini, Molloy explica que, ao escrever Varia

    Imaginacin, no tentou traar um itinerrio ou reconstruir um yo, isto , buscar uma

    identidade, mas, segundo ela, trabalhar certas imagens ou situaes que me haviam

    ficado na recordao, porque haviam passado a mim ou a outro, e eu ouvia esse relato

    (MOLLOY. Entrevista a Schettini, 2003, traduo prpria).2 Em outra entrevista, Molloy afirma,

    ainda sobre seu livro: a pesar de sua origen, em alguns casos autobiorfica, a pesar do

    uso da primeira pessoa, so textos nem mais nem menos fictcios que outros. A escrita

    autobiogrfica, por outro lado, sempre um exerccio de fico (MOLLOY. Entrevista

    a Massare, 2003, traduo prpria).3

    Vemos ento que Varia Imaginacin responde de certo modo ao conceito de

    autobiografia tal como o entende Molloy. Para ela, a questo de se escrever passa no

    pela questo de verdade ou mentira, mas pelo uso da palavra, pela articulao dos fatos.

    Isso no significa que Molloy no acredite, como Lejeune, que se possa comprometer a

    dizer a verdade com sinceridade, mas trata-se antes de uma aguda conscincia de que

    h muitas verdades e que a eleio por uma ou outra implica um processo ficcional no

    sentido de que no se acessa a verdade ltima dos fatos, pois essa verdade no existe.

    O que se diz ser sempre releitura subjetiva, ainda que de acontecimentos que apontam

    para o exterior, para a esfera do vivido.

    Proponho ento compreender o livro de Molloy como uma escrita de si que

    abriga relatos, fragmentos do vivido, reconstruo de momentos, de frases, de gestos,

    trabalho imaginativo (por isso Varia Imaginacin, que remete ao carter de

    multiplicidade, de incompletude, e claro, ao trabalho inventivo), enfim uma mescla que

    de certo modo vem responder ao que a escritora compreende como auto-bio-grafia. Esse

    um texto em que se mostra o tempo todoa conscincia do fragmentrio e do

    deslocamento. Um texto que, como a prpria autora, est no em um lugar, mas em um

    entre-lugar, e se percebe como um no estar del todo.

    2 trabajar ciertas imgenes o situaciones que me haban quedado em el recuerdo, porque me haban

    pasado a mi o a outro , y yo oa ese relato( MOLLOY. Entrevista a Schettini, 2003). 3 pese a su origen, en algunos casos autobiogrfico, pese al uso de la primera persona, son textos, ni ms

    ni menos fictcios que otros. La escritura autobiogrfica, por otra parte, es siempre un ejercicio de

    ficcin (MOLLOY. Entrevista a Massare, 2003).

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    1. As estratgias da memria

    Na palavra, morre o que d vida palavra, a

    palavra a vida dessa morte

    Maurice Blanchot

    A narradora-protagonista de Varia imaginacin questiona a fragilidade da

    rememorao e reflete sobre o ato de (se) lembrar, que se constitui muitas vezes em (se)

    imaginar.

    No primeiro relato - intitulado Casa tomada- temos uma situao de no-

    coincidncia das recordaes. Trata-se de um amigo de infncia e da protagonista que

    veem as mudanas sofridas pela casa da narradora ao longo dos anos de forma distinta.

    Eles se lembram; portanto possuem um recuerdo compartido, mas que se constitui ao

    mesmo tempo de vises dissonantes. Para Pablo (o amigo), a casa da narradora- em

    Olivos- est totalmente mudada, agregaram quase um edifcio inteiro, de dois andares,

    enorme [...] do que me lembro muito bem (MOLLOY, 2003b, p. 12)4 e no entanto,

    para a protagonista, a casa mal est ampliada, segue igual (Idem, ibidem.p.12).5

    Como podemos ver, eles no conseguem chegar a um acordo e a narradora,

    consciente das armadilhas da memria conclui: Acaso los dos tengamos razn, o que

    corrobora com o que Molloy havia afirmado sobre toda vida ser uma construo

    narrativa.

    A narradora reflete, em diversos momentos, sobre os aspectos do exerccio de

    rememorao, sobre a impossibilidade de se acessar o todo dos acontecimentos.

    No captulo intitulado Ruin o leitor se v diante de uma narrativa feita de

    constantes desencontros entre leituras, suscitadas por umas cartas que um personagem

    havia encontrado depois de anos no apartamento da me. Ao final, lemos: Eu poderia

    ser a mulher que encontrou as cartas; ou a que as escreveu. Mudei detalhes, inventei

    outros, acrescentei um personagem. A fico sempre melhora o presente ( MOLLOY,

    2003b p. 97, traduo prpria).6 O trecho condensa a ideia da autobiografia como uma

    4 est totalmente cambiada, le han agregado casi un edificio entero, de dos pisos, enorme[...] del que me acuerdo muy bien (MOLLOY, 2003b,p. 12) 5 la casa est apenas ampliada, sigue igual (Idem, ibidem.p.12). 6 Yo habra podido ser la mujer que encontro las cartas; o la que las escribi. He cambiado detalles, he inventado otros, he aadido un personaje. La ficcin siempre mejora lo presente( MOLLOY, 2003b p.

    97).

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    forma de fico, tal como Molloy afirmou na citada entrevista, ademais de colocar o

    leitor diante de uma inevitvel aceitao de que no se pode saber mais do que dado