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9 O destino das imagens 1. O destino das imagens O título aqui escolhido poderia criar a expectativa de uma nova odisseia da imagem, dessas que nos conduzem do al- vorecer glorioso das pinturas rupestres de Lascaux ao cre- púsculo contemporâneo de uma realidade devorada pela imagem midiática e de uma arte condenada aos monito- res e às imagens de síntese (ou digitais). No entanto, meu propósito é totalmente diverso. Examinando como certa ideia do destino e certa ideia da imagem se enlaçam nesses discursos apocalípticos hoje em voga, gostaria de propor a questão: seria realmente de uma realidade simples e unívo- ca que elas nos falam? Não haveria, sob o mesmo nome de imagem, diversas funções cujo ajuste problemático cons- titui precisamente o trabalho da arte? A partir daí, talvez seja possível, em base mais sólida, refletir sobre o que são as imagens da arte e as transformações contemporâneas do lugar que elas ocupam. Sendo assim, partamos do começo. Do que se está falan- do e o que precisamente nos é dito quando se afirma que daqui em adiante não há mais realidade, apenas imagens? Ou, ao inverso, que doravante não há mais imagens, so- mente uma realidade representando sem cessar a si mesma? Os dois discursos parecem opostos. Todavia, sabemos que não param de se transformar um no outro em nome de um raciocínio elementar: se só há imagens, não existe mais um outro da imagem. E se não existe mais um outro da ima- gem, a noção mesma de imagem perde seu conteúdo, não

Destino Imagens 9 a 11 Site

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  • 9O destino das imagens

    1. O destino das imagens

    O ttulo aqui escolhido poderia criar a expectativa de uma nova odisseia da imagem, dessas que nos conduzem do al-vorecer glorioso das pinturas rupestres de Lascaux ao cre-psculo contemporneo de uma realidade devorada pela imagem miditica e de uma arte condenada aos monito-res e s imagens de sntese (ou digitais). No entanto, meu propsito totalmente diverso. Examinando como certa ideia do destino e certa ideia da imagem se enlaam nesses discursos apocalpticos hoje em voga, gostaria de propor a questo: seria realmente de uma realidade simples e unvo-ca que elas nos falam? No haveria, sob o mesmo nome de imagem, diversas funes cujo ajuste problemtico cons-titui precisamente o trabalho da arte? A partir da, talvez seja possvel, em base mais slida, refletir sobre o que so as imagens da arte e as transformaes contemporneas do lugar que elas ocupam.

    Sendo assim, partamos do comeo. Do que se est falan-do e o que precisamente nos dito quando se afirma que daqui em adiante no h mais realidade, apenas imagens? Ou, ao inverso, que doravante no h mais imagens, so-mente uma realidade representando sem cessar a si mesma? Os dois discursos parecem opostos. Todavia, sabemos que no param de se transformar um no outro em nome de um raciocnio elementar: se s h imagens, no existe mais um outro da imagem. E se no existe mais um outro da ima-gem, a noo mesma de imagem perde seu contedo, no

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  • 10 Jacques Rancire

    h mais imagem. Vrios autores contemporneos opem a Imagem que remete a um Outro e o Visual que s remete a ele mesmo.

    Esse simples raciocnio j suscita uma questo. fcil compreender que o Mesmo o contrrio do Outro. Menos fcil compreender o que o Outro assim invocado. Para comear, diante de que sinais se pode reconhecer sua presen-a ou ausncia? O que nos permite dizer que h um outro de forma visvel numa tela e no em outra? Afirmar que est presente, por exemplo, num plano de A grande testemunha (Au hasard Balthazar) e se ausenta num episdio de Ques-tes para um Campeo?* A resposta mais comum dada pe-los adeptos do visual a seguinte: a imagem televisual no tem o outro em razo de sua prpria natureza: ela carrega sua luz em si mesma, enquanto a imagem cinematogrfica a recebe de uma fonte exterior. o que resume Rgis Debray num livro intitulado Vida e morte da imagem: A imagem aqui tem sua luz incorporada. Ela se revela a si mesma. Sen-do sua prpria fonte, aparece-nos como sua prpria causa. Definio espinosista de Deus ou da substncia.1

    evidente que a tautologia posta como essncia do vi-sual apenas a tautologia do prprio discurso. Este nos diz simplesmente que o Mesmo mesmo, e que o Outro ou-tro. Ele se faz passar por mais que uma tautologia identifi-cando, por meio do jogo retrico de oraes independentes justapostas, as propriedades gerais dos universais com as caractersticas de um dispositivo tcnico. Mas as proprie-dades tcnicas do tubo catdico so uma coisa, as proprie-

    * Questions pour un Champion um jogo bastante popular na televiso francesa, onde exibido h mais de vinte anos; nele, os competidores se es-meram para responder o mais depressa possvel a perguntas sobre cultura geral. [N.T.]

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  • 11O destino das imagens

    dades estticas das imagens que vemos na tela so outra. A tela se presta precisamente a acolher tanto as performan-ces de Questes para um Campeo quanto as da cmera de Bresson. Portanto, fica evidente que as performances que so intrinsecamente diferentes.

    A natureza do jogo que a televiso nos prope e dos afe-tos que ele suscita em ns independente do fato de a luz vir do nosso aparelho. E a natureza intrnseca das imagens de Bresson continua a mesma, quer assistamos s bobinas projetadas numa sala de cinema, quer a uma fita de vdeo ou a um CD na tela da televiso de casa, quer ainda a uma videoprojeo. O mesmo no est de um lado e o outro de outro. Identidade e alteridade se enlaam uma outra de formas diferentes. Nosso aparelho com luz nele incorpora-da e a cmera de Questes para um Campeo nos fazem assistir a uma performance de memria e de presena de esprito que, em si mesma, lhe estranha. J a pelcula da sala de projeo ou a fita de vdeo de Au hasard Balthazar visualizada na nossa tela de TV nos fazem ver imagens que no remetem a nada alm delas mesmas, sendo elas pr-prias a performance.

    A alteridade das imagens

    Essas imagens no remetem a nada alm delas mesmas. Isso no quer dizer que elas sejam, como se fala comumen-te, intransitivas. Significa que a alteridade entra na prpria composio das imagens, mas tambm que essa alteridade depende de outra coisa, no das propriedades materiais do meio cinematogrfico. As imagens de Au hasard Balthazar no so, em primeiro lugar, as manifestaes das proprie-dades de determinado meio tcnico, elas so operaes: re-laes entre um todo e as partes, entre uma visibilidade e

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