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    65Cadernos de Pesquisa, n. 118, maro/ 2003Cadernos de Pesquisa, n. 118, p. 65-88, maro/ 2003

    PROFESSORES, DESENCANTO COM APROFISSO E ABANDONO DO MAGISTRIO

    FLAFLAFLAFLAFLAVINS REBOLVINS REBOLVINS REBOLVINS REBOLVINS REBOLO LAPOO LAPOO LAPOO LAPOO LAPODoutoranda da Faculdade de Educao da USP e professora da Universidade de Sorocaba

    [email protected]

    BELMIRA OLIVEIRA BUENOBELMIRA OLIVEIRA BUENOBELMIRA OLIVEIRA BUENOBELMIRA OLIVEIRA BUENOBELMIRA OLIVEIRA BUENOProfessora Associada da Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo

    [email protected]

    RESUMOAo examinar a questo do abandono do magistrio pblico na rede de ensino do Estado de SoPaulo, este artigo teve como principal objetivo compreender de que modo esse processo tecidoao longo da vida e da experincia profissional dos professores. O estudo focalizou o perodo de1990-1995 e se baseou em dados quantitativos, obtidos na Secretaria Estadual de Educao, a

    partir dos quais verificou-se, no interregno, um aumento da ordem de 300% nos pedidos deexonerao do magistrio, e em dados qualitativos, obtidos de um questionrio, enviado a 158ex-professores da rede pblica, e de 16 entrevistas sobre histrias de vida profissional. As anli-

    ses evidenciam que, alm dos baixos salrios, as precrias situaes, a insatisfao no trabalho eo desprestgio profissional esto entre os fatores que mais contribuem para que os professoresdeixem a profisso docente. Mostram tambm que esse processo acontece lentamente, pormeio de uma srie de mecanismos pessoais e institucionais de que os docentes fazem uso, atque ocorra o abandono definitivo.PROFESSORES EXPERINCIA PROFISSIONAL CARREIRA ESCOLAR HISTRIA DE VIDA

    ABSTRACT

    TEACHERS, DISENCHANTMENT IN THE PROFESSION AND QUITTING THE PUBLIC

    SCHOOLS. The goal of this study was to investigate why teachers give up their work at the State ofSo Paulo (Brazil) public schools, understanding how this process is woven throughout their lives and

    professional experience. The study focused on the period between 1990 and 1995, and was basedon two types of data: quantitative data, collected from the State Secretariat for Education revealedan increasing of 300%, approximately, in teachers resignations in that period. Qualitative data wereobtained through answers given to 158 questionnaire, besides 16 interviews on teachers

    professional life histories. The analyses showed that, apart from low wages, bad working conditions,

    Algumas idias bsicas contidas neste texto foram publicadas em verso resumida na revistaEducao em Debate, v.2, n.41, p.30-42, 2001, sob o ttulo Professores retirantes: um estudosobre o abandono do magistrio.

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    professional debasement, and dissatisfaction at work were among the factors that contributed mostto teachers disenchantment in their profession. They also showed that quitting does not happen

    suddenly. The teacher goes through several stages, in general very difficult and conflicting, beforecoming to the decision of giving up teaching at the public school or the teaching profession itself.TEACHERS PROFESSIONAL EXPERIENCE TEACHING CAREER HISTORIES OF LIVES

    Os grandes desafios enfrentados pelo sistema de ensino pblico no Brasil nosltimos trinta anos levaram um grande nmero de pesquisadores a se dedicar aoestudo do fracasso escolar, focalizando especialmente o aluno e os entraves ao seurendimento. Instigados a obter melhor compreenso dos fatores extra e intraesco-lares que determinam o fracasso escolar, muitos preocuparam-se no apenas em

    saber por que os alunos so reprovados ou deixam a escola, mas tambm em pro-por sadas que pudessem inibir os altos ndices de evaso, mais tarde equacionadoscomo de excluso, devido ao peso que a instituio escolar tem nesse processo.

    Esse interesse explica, pelo menos em parte, por que os professores e atemtica de sua formao levaram um tempo maior para ocupar espaos maisprivilegiados, tanto no mbito das polticas educacionais como no das agendas depesquisa. Essa tendncia, entretanto, deve ser tambm entendida como reflexo deum movimento mais amplo que vem ocorrendo em outros pases desde os anos1980, quando as prticas de ensino comearam a receber maior ateno e foramcomplementadas, progressivamente, por um olhar sobre a vida e a pessoa do pro-fessor (Nvoa, 1994).

    Tais perspectivas de investigao tm contribudo para fazer aflorar a ques-to da insatisfao dos professores no magistrio, um tema que tem sido objeto deestudo cada vez mais freqente nos ltimos anos, tanto no Brasil como em outroscontextos. Quer seja entendido como um dos sintomas do chamado mal-estar

    docente, conforme expresso cunhada pelo pesquisador espanhol Jos ManuelEsteve (1992), quer como manifestao das vrias formas de esgotamento queafetam os professores, comumente enfeixadas sob a denominao de burnout, osestudiosos so concordes em reconhecer que esse fenmeno desencadeado poruma multiplicidade de fatores e alimentado tanto pela escola como pela comunida-de e a sociedade em geral (LeCompte, Dworkin, 1991). Na medida que esse fen-meno de propores cada vez mais abrangentes diz respeito e afeta aquilo que crucial ao exerccio da profisso do magistrio, ou seja, o envolvimento com o

    trabalho; a crena na importncia do ensino para as futuras geraes; a percepode reconhecimento e valorizao da atividade docente por parte dos alunos, dos

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    pais e da sociedade; a garantia de condies satisfatrias de trabalho e de salriocondizente com o esforo; enfim, tudo o que se refere ao bem-estar do professor as pesquisas tm procurado apreender e descrever esse fenmeno, chamandoateno para as conseqncias que dele decorrem no s para os professores,

    como para os alunos e a sociedade. Desse modo, temos visto multiplicarem-se osestudos que focalizam a vida e o trabalho de professores e, tambm, outros volta-dos aos processos e prticas da formao continuada.

    Sem perder de vista tais preocupaes, este texto adota uma perspectivaum tanto diversa, de vez que tem como objeto de estudo o abandono da profissodocente, ou do magistrio pblico, por parte de professores que trabalharam narede estadual, em So Paulo. Ao centralizar-se na anlise das histrias de vida pro-

    fissional de ex-professores, o artigo busca levar em conta os fatores de ordemexterna que so determinantes para o abandono, bem como as disposies inter-nas dos indivduos, de modo a compreender como os fatos e acontecimentos sopercebidos e vivenciados pelos professores e como se combinam para desenca-dear esse processo. O abandono, como ser visto, no acontece repentinamente.Vrias etapas, em geral muito difceis e conflituosas, so vividas pelo professor atque ele tome a deciso de deixar definitivamente a escola pblica ou a prpriaprofisso docente.

    Em 1995, quando a pesquisa teve incio, havia a suspeita de que a cada anoum nmero crescente de professores deixaria a rede pblica de ensino, no Estadode So Paulo. Essa suspeita baseava-se em informaes veiculadas pela mdia e,tambm, nas observaes no sistemticas que fazamos nas escolas em que traba-lhvamos (uma de ns como pesquisadora e a outra como docente). Em vistadisso, a investigao foi realizada com o objetivo de, primeiramente, certificar-se dapresena e das propores desse fenmeno e, depois, de conhec-lo mais deperto a partir da vivncia dos prprios professores. A primeira parte da pesquisaincluiu, assim, um levantamento realizado na Secretaria de Estado da Educaosobre a exonerao de professores efetivos nos cinco anos precedentes ao incioda investigao (1990-1995). A segunda parte envolveu a aplicao de um questio-nrio a um grupo de 158 ex-professores da Delegacia de Ensino (DE) que apresen-tou o maior ndice de evaso e, a seguir, a realizao de entrevistas com 16 delescom vistas a colher narrativas sobre histrias de vida profissional1.

    1 Os dados aqui apresentados constam da dissertao de mestrado de Flavins Rebolo Lapo(1999).

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    PANORAMA DA EVASO DOCENTE NO ESTADO DE SO PAULO

    A rede estadual de ensino de So Paulo contava, em 1995, com 230 milprofessores, dos quais 78.135 eram professores efetivos. Este nmero representa-

    va apenas 34% do total de professores da rede, uma vez que os 66% restanteseram docentes contratados a ttulo precrio, por tempo determinado. Por essemotivo, optou-se por trabalhar apenas com os professores efetivos, por serem elesdocentes habilitados e terem ingressado por concurso pblico, o que de certa for-ma indicativo de seu interesse e determinao em se tornarem professores darede estadual. Em relao aos professores no efetivos (admitidos em carter tem-porrio ACTs), por terem um contrato de trabalho por tempo determinado, ficadifcil saber se no esto mais na rede estadual por vontade prpria ou porque no

    conseguiram aulas. Outro aspecto considerado ao se optar pelo trabalho com osefetivos foi a estabilidade no emprego, conferida pelo concurso de ingresso, porsupor-se que a garantia de no ser demitido, seno por processo administrativo,em um pas onde o ndice de desemprego muito grande, poderia ser consideradafator decisivo para que o professor no deixasse o emprego. Entretanto, como servisto, no o que sempre acontece.

    Os dados obtidos permitiram constatar que de 1990 a 1995 houve um au-

    mento da ordem de 300% nos pedidos de exonerao no magistrio pblico, emSo Paulo, com um crescimento mdio anual de 43%, portanto. Quando essesdados foram agrupados por regio (Interior, Grande So Paulo e So Paulo-Capital)ou por categoria docente (professor I, II ou III)2 os dados apresentaram ndicesbastante discrepantes, tal como pode-se observar nos quadros abaixo.

    O que fica flagrante nesses dados que So Paulo (capital) foi a regio queapresentou os ndices mais elevados de exonerao, com uma mdia anual de 88pedidos por delegacia de ensino DE e um total de 1.850 nos cinco anos em

    estudo. Isto representa quase o dobro da mdia das exoneraes nas delegacias daregio metropolitana de So Paulo (que inclui 38 municpios) e mais que o triplo damdia dos pedidos que ocorreram nas delegacias do interior do estado. Consta-

    2 Essa nomenclatuta foi alterada a partir de 1996 no Estado de So Paulo. Professor I (P I)designava o docente habilitado para ensinar apenas nas quatro primeiras sries do ensino de1 grau;Professor II(P II), o docente habilitado para ensinar nas quatro ltimas sries do ensino

    de 1 grau; eProfessor III(P III), aquele que podia ensinar das quatro ltimas sries do 1 grauat o 2 grau. Mantivemos no texto estas denominaes pelo fato de serem as vigentes poca do estudo.

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    tou-se ainda que, na capital, a 14a DE foi a que teve o maior nmero de pedidos,com um total de 158 exoneraes entre 1990 e 1995. Esse nmero representaquase o dobro da mdia de exoneraes por DE da capital no mesmo perodo,que foi de 88, como visto.

    QUQUQUQUQUADRO 1ADRO 1ADRO 1ADRO 1ADRO 1

    DISTRIBUIO DOS PROFESSORES EFETIVDISTRIBUIO DOS PROFESSORES EFETIVDISTRIBUIO DOS PROFESSORES EFETIVDISTRIBUIO DOS PROFESSORES EFETIVDISTRIBUIO DOS PROFESSORES EFETIVOS POR CAOS POR CAOS POR CAOS POR CAOS POR CATEGORIATEGORIATEGORIATEGORIATEGORIA

    REDE ESTREDE ESTREDE ESTREDE ESTREDE ESTADUADUADUADUADUAL DE SO PAL DE SO PAL DE SO PAL DE SO PAL DE SO PAAAAAULULULULULO (1990-1995)O (1990-1995)O (1990-1995)O (1990-1995)O (1990-1995)

    PPPPProfessor Irofessor Irofessor Irofessor Irofessor I PPPPProfessor IIrofessor IIrofessor IIrofessor IIrofessor II PPPPProfessor IIIrofessor IIIrofessor IIIrofessor IIIrofessor III

    EfetivosEfetivosEfetivosEfetivosEfetivos 47.466* 63* 33.370*

    ExoneradosExoneradosExoneradosExoneradosExonerados 2.308 3.082

    * Nmero mdio ao longo do perodo.

    QUQUQUQUQUADRO 2ADRO 2ADRO 2ADRO 2ADRO 2

    DISTRIBUIO DOS PROFESSORES EFETIVDISTRIBUIO DOS PROFESSORES EFETIVDISTRIBUIO DOS PROFESSORES EFETIVDISTRIBUIO DOS PROFESSORES EFETIVDISTRIBUIO DOS PROFESSORES EFETIVOS POR REGIOOS POR REGIOOS POR REGIOOS POR REGIOOS POR REGIO

    REDE ESTREDE ESTREDE ESTREDE ESTREDE ESTADUADUADUADUADUAL DE SO PAL DE SO PAL DE SO PAL DE SO PAL DE SO PAAAAAULULULULULO (1990-1995)O (1990-1995)O (1990-1995)O (1990-1995)O (1990-1995)

    N. deN. deN. deN. deN. de N. deN. deN. deN. deN. de N. de DEsN. de DEsN. de DEsN. de DEsN. de DEs Mdia deMdia deMdia deMdia deMdia de TTTTTotal deotal deotal deotal deotal dedocentesdocentesdocentesdocentesdocentes escolas*escolas*escolas*escolas*escolas* exoneraesexoneraesexoneraesexoneraesexoneraes exoneraesexoneraesexoneraesexoneraesexoneraes

    efetivos*efetivos*efetivos*efetivos*efetivos* por DE*por DE*por DE*por DE*por DE* no perodono perodono perodono perodono perodoInteriorInteriorInteriorInteriorInterior 46.245 4.378 102 24 2.467

    Grande So PGrande So PGrande So PGrande So PGrande So Pauloauloauloauloaulo 14.260 1.324 22 48 1.073

    CapitalCapitalCapitalCapitalCapital 19.494 980 21 88 1.850

    TTTTTotalotalotalotalotal 79.999 6.682 145 5.390

    * Nmeros mdios ao longo do perodo, pois o nmero de escolas e de docentes efetivos s vezes aumentou, outrasvezes decresceu de um ano para outro.

    O quadro 1 mostra os dados reagrupados de acordo com o nvel funcionaldos professores. O nmero de P II efetivos, nesse perodo, era muito pequenoquando comparado ao dos P I e P III. Em 1990 havia apenas 126 P II efetivos emtoda a rede estadual e, em 1995, apenas 20; respectivamente, menos de 0,2% emenos de 0,03% do total de professores nesses anos. Por essa razo, e pelo fato dea Secretaria da Educao ter anunciado que no realizar mais concursos pblicospara efetivao desses professores, decidiu-se por no consider-los neste estudo.

    Em relao aos P I, os dados evidenciaram que esta categoria foi a que apre-

    sentou o maior nmero de professores efetivos na rede estadual de ensino, che-gando a 64% do total de professores em 1993. Curiosamente, nesta categoria

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    que foram encontrados os mais baixos ndices de exonerao. Considerando-seque o professor primrio (como ainda freqentemente chamado o P I) ocupa onvel mais baixo na hierarquia do sistema educacional, por ser a categoria que per-cebe os menores salrios, esse dado conduz a uma indagao inevitvel: o que

    mantm estes professores trabalhando na rede estadual de ensino? Seria pelo fatode trabalharem com uma nica classe, ou no mximo com duas, geralmente emuma mesma escola, e, assim, criarem vnculos mais fortes com os alunos, portantomais difceis de serem rompidos? Ou seria pela falta de um diploma de nvel supe-rior e, por isso, terem menos chances profissionais no mercado de trabalho? Essasquestes, embora instigantes e mesmo que indicativas de um lado reverso do aban-dono, no foram enfrentadas neste trabalho por duas razes: primeiro porque isso

    nos distanciaria de nosso objeto; segundo, porque, em vista do prprio objeto,foram colhidos depoimentos apenas de professores que abandonaram o magist-rio pblico e que pertenciam categoria que apresentou o maior ndice de exone-raes, ou seja, os Professores III. Desse modo, na segunda etapa, a pesquisa tra-balhou com este grupo de professores e com a 14aDelegacia de Ensino da capital.

    PERFIL DE UM GRUPO DE EX-PROFESSORES

    O primeiro contato com os 158 ex-professores desse grupo foi feito medi-ante um questionrio enviado por correio, com o qual se buscava obter algunsdados preliminares: idade, tempo de servio na rede estadual de ensino, motivo(s)para a exonerao e a atual profisso. Com esse questionrio foi enviada uma cartaque, de maneira breve, explicava os objetivos da pesquisa. Desse total, retornaram29 questionrios preenchidos, cujos dados permitiram traar um perfil desses ex-professores.

    Primeiramente, confirmaram que o magistrio um espao de trabalho pre-

    dominantemente feminino, de vez que dentre esses 29 ex-professores, 22 somulheres. Alm disto, indicam que uma parcela das mulheres est deixando a pro-fisso docente ou, pelo menos, o ensino mdio pblico, com a ambio de traba-lhar no ensino superior ou, qui, em outras profisses, j que, no tocante esco-laridade, a maioria do grupo (22) continuou os estudos em nvel de ps-graduao.Ao pedirem exonerao, 11 possuam curso de especializao; 7, o mestrado; e 4,o doutorado. O que se percebe, comparando a data em que esses professoressaram da rede pblica com a data de trmino dos cursos de ps-graduao, queo pedido de exonerao acontece prximo do final desses cursos ou logo aps asua concluso. Nesses casos, os motivos dos pedidos de exonerao so dois: o

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    diploma de ps-graduao abre novas perspectivas e amplia as oportunidades nomercado de trabalho; a pequena valorizao, na carreira do magistrio pblico, dosprofessores que possuem a ps-graduao. Ser portador do ttulo de mestre, porexemplo, dava direito mesma promoo recebida pelo professor que, num pe-

    rodo de 10 anos, teve, no mximo, 20 faltas, mesmo que no tivesse realizadonenhum curso de aperfeioamento ou especializao.

    Para a maioria dos professores desse grupo 20, dentre os 29 o incio naprofisso se deu quando ainda eram estudantes, sendo que 14 iniciaram em escolasda rede pblica estadual e 6 em escolas da rede privada. Apenas 9 dos 29 professo-res que responderam ao questionrio se iniciaram na profisso quando j estavamformados em nvel superior. Esse fato pode ser visto como um dos aspectos que

    auxiliam na desvalorizao do professor como profissional. Segundo Eliot Freidson(1998), uma das condies para o estabelecimento e reconhecimento social deuma ocupao como profisso a exposio educao superior e ao conheci-mento formal abstrato que ela transmite e, ainda, que essa educao seja pr-requisito para a obteno de posies especficas no mercado de trabalho, excluindoaqueles que no possuem tal qualificao.

    O ingresso na rede estadual, para 25 desses 29 ex-professores foi como ACT,alguns permanecendo at dez anos na rede pblica dentro desse regime de trabalho,

    para s depois serem efetivados por meio de concurso pblico de provas e ttulos. Oprofessor ACT, como a prpria expresso sugere, admitido, geralmente, para subs-tituir um professor efetivo que se encontra afastado do servio, o que leva a supor quedeveriam ser em nmero inferior aos efetivos. No entanto, no o que se verifica eesse fato talvez seja, entre outros, um dos responsveis pela alta rotatividade de pro-fessores nas escolas da rede pblica, pois todo final de ano letivo tais professores sodesligados do quadro e s voltam no ano seguinte se ainda houver a vaga. Essarotatividade gera uma falta de vnculo do professor com a escola, o que pode trazer

    graves conseqncias para um to necessrio e almejado ensino de qualidade. Essarotatividade fica clara no grupo estudado, para o qual o tempo mdio de servio narede pblica foi de oito anos. Dentre os ex-professores, nove dizem ter perdido aconta do nmero de escolas em que trabalharam; dez passaram por mais de oitoescolas; e os demais (dez) passaram por uma mdia de quatro escolas.

    Outro aspecto evidenciado nos questionrios o tempo que esses profes-sores permaneceram na rede pblica. A quase totalidade do grupo s pediu a exo-

    nerao aps, no mnimo, cinco anos de exerccio profissional, sendo que a maiorias o fez aps dez anos de trabalho na rede pblica. Estes dados diferem bastantedas concluses a que chegou Saul Neves de Jesus em sua tese de doutorado:

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    Relativamente etapa de carreira em que ocorre o abandono da profisso docentecom maior freqncia, considera-se que o perodo crtico so os dois primeirosanos de prtica profissional, de acordo com os resultados obtidos em diversas inves-tigaes (Sweeney, 1991). Por exemplo, Mark e Anderson (1985) verificaram que

    pelo menos um tero dos professores abandonam a profisso docente nos primei-ros quatro anos de prtica profissional. Da mesma forma, Schlechty e Vance (1983)estimaram que cerca de um tero dos professores deixam o ensino durante osprimeiros cinco anos e que 15% o fazem durante o primeiro ano de experinciaprofissional. (1995, p.51)

    Assim, para guardar as devidas propores, importante considerar o tama-nho reduzido do grupo de ex-professores efetivos com o qual se trabalhou, secomparado aos ACTs que compunham, poca, a maior parte do quadro de do-

    centes da rede estadual de ensino, e sobre os quais difcil saber se deixaram ouno a rede pblica ou o magistrio, por que o fizeram e aps quanto tempo deatividade profissional. Alm disso, h falta de outros estudos sobre esta questoque, a propsito do Estado de So Paulo, pudessem oferecer mais elementos e darmaior coeso aos dados aqui apresentados.

    A esse grupo de professores foi perguntado, tambm, por que deixaram arede estadual de ensino. Os motivos alegados para o pedido de exonerao foram

    os seguintes:QUQUQUQUQUADRO 3ADRO 3ADRO 3ADRO 3ADRO 3

    MOTIVMOTIVMOTIVMOTIVMOTIVOS ALEGADOS POS ALEGADOS POS ALEGADOS POS ALEGADOS POS ALEGADOS PARA A EXARA A EXARA A EXARA A EXARA A EXONERAOONERAOONERAOONERAOONERAO

    Motivos N. de professoresMotivos N. de professoresMotivos N. de professoresMotivos N. de professoresMotivos N. de professores

    Baixa remunerao + pssimas condies de trabalho 5

    Baixa remunerao + oportunidade de emprego mais rentvel 4

    Baixa remunerao 3

    Necessidade de tempo livre para concluir a ps-graduao 3Baixa remunerao + falta de perspectiva de crescimento profissional 2

    Falta de perspectiva quanto a mudanas na rede estadual 2

    Nascimento de filhos 2

    Baixa remunerao + desencanto com a profisso 2

    Baixa remunerao + mudana de cidade 1

    Mudana de cidade 1

    Falta de condies dignas de trabalho 1

    Insatisfao com a estrutura do sistema educacional 1

    Problemas de sade 1Trabalhar em negcio prprio 1

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    Pelo quadro 13 percebe-se que a baixa remunerao citada por 17 dos 29professores que responderam ao questionrio como motivo para a exonerao,porm, apenas sete restringiram-se a esse aspecto, trs mencionando somente abaixa remunerao e outros quatro acrescentando que deixaram a rede pela opor-

    tunidade de um emprego mais rentvel. O que fica bastante evidente que aquesto salarial, embora tenha aparecido como o motivo mais referido, veio, namaioria dos casos, acompanhada de outros motivos, relacionados sobretudo faltade perspectivas de crescimento profissional e s pssimas condies de trabalho,aspectos claramente decorrentes do modo como o estado gere a educao e oensino pblico. Alm disso, cabe observar que quatro professores alegaram apenasmotivos ligados estrutura do sistema de ensino, enquanto os demais, em nmero

    de oito, referiram-se unicamente a razes de foro pessoal. Estes que no mencio-nam a questo salarial totalizam, portanto, 12 docentes de um total de 29. Comisto, o que possvel depreender do quadro que a questo salarial, ainda que semostre como preponderante, no um fator que, isolado, tenha desencadeado asada da rede pblica, pelo menos na maioria dos casos.

    Os depoimentos e as histrias de vida colhidas iro elucidar melhor comotais processos foram tecidos.

    COLHENDO HISTRIAS DE VIDA PROFISSIONAL

    A questo da evaso docente, tal como proposta e formulada neste trabalho,indicou desde o incio da investigao que um estudo com histrias de vida seria umaforma de apreender melhor os processos que levam determinados indivduos a dei-xarem o magistrio ou a rede pblica de ensino. As histrias de vida se constituemem relatos complexos, nos quais se entrelaam a origem social, os valores, interes-ses e opinies, os relacionamentos interpessoais, enfim, tudo o que, de uma forma

    ou de outra, contribui para a constituio do indivduo e o seu modo singular de agir.Admitiu-se que, ao narrarem seus percursos de formao e de vida profissional, osex-professores estariam fornecendo elementos importantes e fundamentais para secompreender de que modo determinados fatos, situaes, experincias e senti-mentos se enredaram nas tramas de suas vidas e se combinaram a ponto de produ-zirem um tal desfecho, qual seja, a retirada da profisso ou da escola pblica3.

    3 Por motivos de espao, foram suprimidas aqui maiores consideraes a respeito do professore suas relaes com o trabalho docente, bem como sobre a pesquisa com histrias de vidade professores. Remetemos o leitor a outros trabalhos, nos quais esses temas foram tratados:Lapo (1999, parte I), e Bueno (1996; 2002).

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    Assim, os dados que se buscavam prioritariamente, quais sejam, os percur-sos profissionais desses professores, foram coletados por meio de entrevistas. Porter como objetivo colher os relatos de histria de vida profissional, o tipo de en-trevista que se mostrou mais adequada foi a entrevista aberta, situao em que o

    professor poderia discorrer mais livremente sobre sua vida profissional, construin-do, reconstruindo ou desconstruindo suas narrativas. Mesmo tendo sido elaboradoum roteiro com alguns pontos considerados importantes, para o caso de se fazernecessrio argir ou instigar o professor a falar mais sobre determinados fatos ouacontecimentos e, mesmo considerando que a questo central da entrevista j ti-vesse sido informada, os professores puderam direcionar livremente o relato, de-terminando o fio condutor, as relaes entre os acontecimentos da vida profissional

    e privada etc., bem como o tempo que dispensaram s suas narrativas.Como j dito, foram entrevistados 16 ex-professores, cujas histrias permi-tiram o desvelamento do processo de abandono. Examinando, a partir dos relatos,desde os determinantes que atuaram na escolha profissional desse grupo de pro-fessores, as dificuldades enfrentadas nos primeiros tempos de profisso, a busca deestabilidade por meio da realizao do concurso pblico e os fatores de satisfaoe insatisfao com o magistrio durante o percurso profissional; e, ainda, exami-nando de que forma esses fatores se combinam com as representaes sobre o

    trabalho docente e as aspiraes, necessidades e interesses dos professores, cons-tatou-se que o abandono da rede estadual de ensino e/ou da profisso docenteno se constitui em um ato isolado, apenas dependente da situao profissionalvivida no momento da exonerao. Tambm no se configura como um ato semrelao com a vida pessoal, com a histria passada e com o projeto de futuro decada professor. Na verdade, trata-se de um conjunto de experincias e expectati-vas no satisfeitas que, ao longo dos anos, vo se amalgamando at chegarem aodesfecho, nem sempre desejado, do abandono da rede pblica ou da profissodocente.

    A CONSTITUIO DO PROCESSO DE ABANDONO

    Do mesmo modo que o se tornar professor um processo contnuo, peloqual o indivduo se constri como professor, tambm o deixar de ser professormostrou-se, com base nas histrias dos ex-professores, como um processo que tecido ao longo do percurso profissional. No entanto, difcil saber em que mo-mento esse processo se inicia. Alguns autores, ao investigarem temas relacionadoss representaes de professores sobre a profisso docente e escolha do magis-

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    trio, argumentam que o percurso que conduz certos indivduos a esta profissotem razes em suas histrias mais remotas de escolarizao e, at mesmo, no pe-rodo que antecede a entrada na escola (Bueno, 1996; Catani, Bueno, Sousa, 2000).

    O abandono, neste caso, no significa apenas simples renncia ou desistn-

    cia de algo, mas o desfecho de um processo para o qual concorrem insatisfaes,fadigas, descuidos e desprezos com o objeto abandonado; significa o cancelamentodas obrigaes assumidas com a instituio escolar, quando o professor pede exo-nerao do cargo ou, de maneira mais abrangente, o cancelamento das obrigaesprofissionais, quando deixa de ser professor. Esse cancelamento, visto como a rup-tura total dos vnculos necessrios ao desempenho do trabalho, pode ser decor-rente da ausncia parcial e/ou do enfraquecimento anterior desses vnculos.

    O trabalho, para que seja realizado satisfatoriamente e para que cumpra seupapel equilibrador, requer o estabelecimento de vnculos especficos com determi-nadas classes de objetos: instituies, pessoas, instrumentos, organizaes. Essesvnculos, no caso deste estudo, so entendidos como o conjunto de relaes que oprofessor estabelece com a escola e com o trabalho docente, e que depende dacombinao das caractersticas pessoais do professor, das formas de organizao efuncionamento da escola, do grupo e do contexto social em que ambos (professore escola) esto inseridos. Quando a organizao do trabalho docente e a qualidade

    das relaes estabelecidas dentro do grupo (incluindo-se a o resultado obtido como trabalho em sala de aula) no correspondem aos valores e s expectativas doprofessor, este se v diante da dificuldade de estabelecer ou manter a totalidade devnculos necessrios ao desempenho de suas atividades no magistrio. Assim, pode-se dizer que o abandono conseqncia da ausncia parcial ou do relaxamentodos vnculos, quando o confronto da realidade vivida com a realidade idealizada nocondiz com as expectativas do professor, quando as diferenas entre essas duasrealidades no so passveis de serem conciliadas, impedindo as adaptaes neces-

    srias e provocando frustraes e desencantos que levam rejeio da instituio e/ou da profisso.

    O estabelecimento desse conjunto de relaes exige a mobilizao, por par-te da pessoa do professor, de todas as suas foras. Quando h a percepo de queessa mobilizao no ser compensadora, no haver empenho em realiz-la, isto, o professor no reconhece como vlida a relao entre o dispndio de energianecessrio e o resultado que ser obtido. Essa percepo, ou a avaliao que oindivduo faz da situao e que determinar o estabelecimento ou no desses vn-culos, dependente dos vnculos passados e dos vnculos potenciais, bem comodas condies presentes.

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    Nesse sentido, um primeiro aspecto a ser considerado o modo pelo quala profisso docente foi escolhida. No caso deste estudo, h que se ressaltar quenenhum dos docentes cujos percursos foram analisados queria realmente ser pro-fessor. Ser professor era a escolha possvel no incio da vida profissional. Tornar-se

    professor aparece, na maioria dos relatos, como a alternativa possvel e exeqveldo sonhar-se mdico(a), advogada(a), arquiteto(a), veterinrio(a) etc.

    No entanto, mesmo no sendo a ocupao sonhada pelos professores, apso incio na profisso, principalmente durante os primeiros anos, a maior parte esfor-ou-se e empenhou-se em estabelecer esses vnculos. Ou seja, houve um empe-nho em realizar o trabalho da melhor forma possvel, em adaptar-se ao novo papele em encontrar satisfao e auto-realizao no trabalho docente. Segundo ChristopheDejours (1991), executar uma tarefa sem investimento material ou afetivo exige aproduo de esforo e de vontade, em outras circunstncias suportadas pelo jogoda motivao e do desejo. A motivao e o desejo, nesse caso, so representadospelos aspectos positivos encontrados pelos professores no incio da carreira. Pareceter havido um encantamento quando da entrada na profisso, com os aspectossociais e econmicos que esse incio representou; uma conquista, e o seu saborpareceu ter colocado sombra os problemas e as dificuldades. Mesmo no caso deum professor que afirma que no esperava acabar na profisso [...], que acreditava

    que aquilo era uma coisa passageira,houve o estabelecimento de vnculos suficientespara mant-lo exercendo a profisso por 13 anos em escolas da rede estadual. Osvnculos existiram, e mesmo que no representem a totalidade dos vnculos neces-srios, parece que foram suficientes para evitar o abandono nos primeiros temposda carreira. Porm, a manuteno e o fortalecimento desses vnculos existentesdependem do tipo de respostas que o professor recebe da escola e da sociedade eque, se no so satisfatrias, se no correspondem s suas expectativas, acabampor enfraquec-los at a ruptura definitiva.

    Segundo Bohoslavsky (1977), quando o indivduo pensa em uma profisso,ele pensa em algo que se relaciona com a realizao pessoal, a felicidade, a alegriade viver, etc., como quer que isto seja entendido, e quando o envolvimento comesse algo deixa de resultar na realizao pessoal, a tendncia ser, certamente,diminuir o envolvimento, diminuir os esforos. Assim, pode-se afirmar, com basenos depoimentos obtidos, que o processo de abandono ocorreu, principalmentepara os professores em estudo, por meio do enfraquecimento ou relaxamento dosvnculos existentes.

    Esse enfraquecimento ou relaxamento dos vnculos conseqncia da com-binao de vrios fatores geradores de dificuldades e insatisfaes que se foram

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    acumulando durante o percurso profissional. Analisando em particular os professo-res deste estudo, percebe-se pelos seus depoimentos que h um mal-estar4 ron-dando esses profissionais. Por se encontrarem inseridos em uma sociedade que setransforma muito rapidamente e que exige constantes mudanas e adaptaes, eles

    se sentem insatisfeitos ao no conseguirem dar conta das exigncias que lhes sofeitas no campo profissional. As exigncias nem sempre so claramente explicitadase entendidas pelos professores, mas so sentidas mediante a percepo de que ascoisas na escola no esto indo bem, de que por mais que se esforcem no conse-guem atingir um nvel de excelncia exigido pela sociedade a ponto de reverter asituao de precariedade profissional em que se encontram.

    O contedo dos depoimentos permitiu constatar a presena de alguns as-

    pectos relacionados ao contexto social que se mostraram relevantes para a insatis-fao com o trabalho docente. Primeiramente, por gerarem uma sobrecarga detrabalho; depois, a falta de apoio dos pais dos alunos, um sentimento de inutilidadeem relao ao trabalho que realizam, a concorrncia com outros meios de trans-misso de informao e cultura e, tambm, claro, os baixos salrios.

    Outro aspecto enfatizado pelos professores como fonte de insatisfao como magistrio o modo pelo qual est organizado o sistema educacional e, maisespecificamente, a escola como instituio pblica de prestao de servios e como

    local de trabalho. Esta organizao influi diretamente no desempenho e no grau desatisfao do professor com o trabalho docente. Alguns referem-se impossibilida-de de participar das decises sobre o rumo do ensino, ao excesso de burocracia e falta de apoio e de reconhecimento do trabalho por parte das instncias superio-res do sistema educacional, como fatores geradores de desmotivao e insatisfa-o com o trabalho. Nos depoimentos evidenciam-se, ainda, vrios aspectos pro-vocadores de insatisfao no trabalho, que podem ser identificados como decor-rentes da atual organizao do sistema de ensino. So eles: a burocracia institucio-nal e o controle do trabalho do professor, a escassez de recursos materiais, a faltade apoio tcnico-pedaggico e a falta de incentivo ao aprimoramento profissional.

    H tambm um outro fator ao qual os professores deram nfase: a qualida-de das relaes interpessoais no ambiente de trabalho. O trabalho docente se cons-titui em uma atividade centrada nas relaes interpessoais e nas dinmicas relacionais

    4 Esta expresso tem sido usada largamente na literatura dos ltimos anos que versa sobre os pro-fessores e o magistrio, especialmente aps a publicao, em 1986, da obra de Jos ManuelEsteve,O mal-estar docente, e de sua traduo para o portugus, em 1992. A pesquisa que deuorigem a este texto baseia-se em grande parte nas anlises desenvolvidas por esse autor.

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    estabelecidas no ambiente escolar, que so determinantes do sucesso do ensino eda qualidade de vida do professor. Nesse sentido, pode-se dizer que o relaciona-mento com diretores, com os demais professores e com os alunos um dos prin-cipais fatores de satisfao ou insatisfao no trabalho e, tambm, o grande respon-

    svel pelo envolvimento nas atividades profissionais.Em grande medida, essas relaes so determinadas pelo tipo da estrutura

    organizacional e tambm pelas representaes e expectativas das pessoas envolvi-das. Se essas relaes no condizem com as expectativas e representaes dosprofessores, elas podem afetar o grau de envolvimento com o trabalho e a prpriarealizao profissional. Relaes que no priorizam a sinceridade, que no propi-ciam a expresso de pontos de vista divergentes, que no estimulam a solidarieda-

    de e o apoio mtuo, que no valorizam o trabalho realizado, que so baseadas emestruturas hierrquicas rgidas etc., geram sentimentos de raiva e medo, de compe-titividade exacerbada, de baixa auto-estima, de frustrao etc., resultando em umgrande mal-estar. Tentando livrar-se desse mal-estar, os professores assumem pos-turas defensivas que podem ir desde comportamentos agressivos, queixas constan-tes, crticas excessivas etc., at o distanciamento do ambiente, restringindo o conv-vio com os alunos, colegas e diretores ao mnimo possvel.

    Todos esses fatores levam percepo de que o trabalho que est sendo

    realizado no tem relao com as suas necessidades, expectativas e interesses, ouseja, o trabalho docente no corresponde s representaes que o professor tem enem est sendo suficiente para concretizar o seu projeto de futuro. A no corres-pondncia entre o real e o idealizado e entre o real e o projetado dificultam a pro-duo de vontade e esforo para manter os vnculos existentes. medida que apercepo dessa no correspondncia se amplia, o enfraquecimento dos vnculoscom a instituio e com o trabalho aumenta. um processo cumulativo que, aodesenvolver-se, gera diferentes tipos de abandono antes do abandono definitivo.

    AS DIFERENTES FORMAS DE ABANDONAR

    A ruptura total e definitiva dos vnculos estabelecidos com a escola e com otrabalho docente, mesmo quando estes j esto enfraquecidos pelas dificuldades einsatisfaes, muito difcil de ser realizada, como se pde depreender das narrati-vas dos professores. A dificuldade de abandonar definitivamente o trabalho se devea vrios fatores. Um deles o fato de que o estabelecimento desses vnculos custouesforos por parte da pessoa, e ter de afastar-se provocar, alm da frustrao, asensao de fracasso, de ter sido malsucedida em seus esforos. Outro fator so as

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    perdas que o abandono implica. Tudo o que foi conquistado ser perdido: o cargo,o trabalho, as pessoas. Sero perdidos tambm os sonhos e ideais relacionados aoser professor, uma parte da identidade e uma parte da vida, tal como se nota nodepoimento de dois dos professores, um homem e uma mulher:

    Apesar de tudo eu pedi exonerao com tristeza, porque parece que eu deixei vinteanos da minha vida para trs... como se eu no tivesse feito nada... (Slvio, 50a,13rp)5

    Eu senti muito.... foi doloroso. Afinal de contas, um concurso pblico, foi umaconquista minha. Poucas pessoas conseguem passar na classificao que eu passei...Foi uma conquista, e abrir mo assim... frustrante... (Ana, 32a,1rp)

    Renunciar a essas coisas no fcil, mesmo quando elas no se apresentamexatamente como se esperava. Toda perda difcil e se torna ainda mais difcil edolorosa quando est associada ao confronto com as limitaes e a sensao deimpotncia para reverter a situao e manter o que foi conquistado. Nesse sentido,o abandono definitivo ser adiado pelo maior tempo possvel, para que a sensaode fracasso e de perda tambm seja adiada.

    Outro fator a ser considerado por tambm dificultar a ruptura definitiva aimportncia que o dinheiro recebido pelo trabalho tem para a pessoa. Se o profes-sor no consegue outra atividade rentvel, que garanta a sua sobrevivncia e a de

    sua famlia, ele dificilmente deixar definitivamente o trabalho, por mais insatisfeitoque possa estar. A esse propsito, Jos Manuel Esteve (1992) afirma que a atitudemais freqente, dadas as atuais expectativas de emprego, a de manter mais oumenos assumido o desejo de abandonar a profisso docente, porm, sem chegar aum abandono real, recorrendo ento a diferentes mecanismos de evaso dos pro-blemas cotidianos.

    Esse adiamento do abandono definitivo de um trabalho que no mais fontede prazer e equilbrio, seja por qual motivo for as atuais expectativas de emprego,

    o medo de se sentir fracassado, o medo das perdas, ou outros acaba por gerardiferentes mecanismos de evaso, que serviro de vlvulas de escape para aspresses a que a pessoa est exposta, uma vez que essas no podem ser eliminadasdefinitivamente no momento. Nos depoimentos dos professores foi possvel iden-tificar a utilizao, antes da exonerao da rede estadual de ensino e/ou do abando-no definitivo da profisso docente, de diversos desses mecanismos de evaso, os

    5 Todos os nomes de professores, neste texto, so pseudnimos. Os nmeros que se seguema eles referem-se, respectivamente, idade do professor na data da entrevista e ao total deanos em que trabalhou na rede pblica estadual.

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    quais contriburam para que a frustrao e o sofrimento provocados pelos conflitose insatisfaes a que estavam submetidos fossem minimizados. Tais mecanismos,que se caracterizam por um distanciamento fsico ou psicolgico do trabalho e indi-cam o enfraquecimento e at mesmo a ruptura de alguns vnculos, so nomeados

    neste estudo como abandonos temporrios e abandonos especiais. A utilizao deum ou mais desses tipos de abandono vai depender do modo como o indivduotende a reagir ou ajustar-se aos estados de insatisfao com o trabalho.

    ABANDONOS TEMPORRIOS

    Esse tipo de abandono concretiza-se por meio de faltas, licenas curtas elicenas sem vencimentos. O afastamento fsico do ambiente de trabalho permite

    ao professor equilibrar-se pelo distanciamento das dificuldades geradoras dos con-flitos que est vivenciando. H, ainda, a possibilidade de se dedicar a outras ativida-des (no s de trabalho, mas tambm, em alguns casos, de lazer) que propiciamum ajustamento harmonioso para os conflitos e uma aproximao com seus ideaise projetos.

    Os motivos para esses abandonos temporrios so vrios, e um deles ano satisfao da necessidade de realizao profissional. Quando o magistrio no

    promove as condies necessrias para alcan-la, os professores, decididos a pro-curarem outras formas de satisfazer tal necessidade, afastam-se temporariamentecom o objetivo de encontrar outras atividades, ou ter mais tempo para se dedicar aelas, de modo a compensar ou propiciar essa realizao. Um outro emprego, oucursar uma ps-graduao, pelo fato de melhor corresponder s necessidades eexpectativas, torna-se prioridade, como afirmaram alguns professores:

    ...nesse meio tempo eu pedi afastamento por dois anos e falei assim: Bom, eu vouficar na escola particular... que me pagava um pouco mais e peguei s rede particu-lar. (Fernanda, 36a, 10rp)

    Eu no tinha quase licenas... Ah! Para me dedicar mais l na escola particular houveuma poca em que eu me afastei daqui, sem vencimentos, pela 220... ou 202... eununca sei, aquela lei... que voc tem direito a afastamentos sem vencimentos e semprejuzo do cargo... (Regina, 55a, 23rp)

    ...eu pedi licena sem vencimentos, paguei o Inamps, todas as coisas que devia...porque eu tinha inteno de voltar para a rede... Por isso, eu pagava todas as coi-sas... E ia retomar, mas a pesquisa aumentou, se estendeu muito e no daria tem-po... eu fiquei com medo de voltar e no conseguir dar conta de tudo... A eu pediexonerao... (ngela, 45a, 4rp)

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    Bom... em paralelo s aulas eu tenho uma atividade, eu fao tradues de russo.Ento teve uma poca em que eu estava assim com muito trabalho... e eu pedi umafastamento por dois anos... uma poca que ns fizemos cinco livros... (Fabiana,38a, 11rp)

    Outro motivo para os abandonos temporrios a impotncia para resolveros problemas cotidianos encontrados no magistrio, o que leva a um afastamentopara esperar que as coisas se resolvam por meio de outras instncias. No entanto,com esses afastamentos temporrios, a tenso e os conflitos provocados pelas difi-culdades e pela insatisfao com o trabalho so adiados; no h soluo para osproblemas, apenas a fuga deles. Muitas vezes, ao retornar, o professor, que saiuesperando que as coisas melhorassem, encontra a mesma situao, o que acaba

    por gerar insatisfao ainda maior.Esse tipo de abandono pode se constituir na primeira etapa do processo queleva ao abandono definitivo, pois, alm de oferecer uma soluo apenas temporriapara os conflitos, tambm pode provocar, como ocorreu em alguns casos, umasensao de mal-estar gerada pela percepo de que esses mecanismos so umaforma de prejudicar os outros, principalmente os alunos.

    Me especializei na Unicamp, fiz o mestrado... e fui perdendo o teso mesmo... de

    ver o descaso com que a educao tratada... Eu falei: Puxa, para eu fazer isso...Ento eu tirei mais uma licena, tirei duas licenas de dois anos, sem vencimentos,da na minha volta eu falei: Olha, eu quero me exonerar... Eu no poderia continuardo jeito que eu estava, por causa da minha prpria formao profissional... Eu tiveuma formao muito boa, eu no aceitava estar prejudicando, inclusive, os alunos...(Eduardo, 50a, 17rp)

    Quando a pessoa no consegue adaptar-se a essa situao que vai contra osseus princpios e valores, que contraria o modo pelo qual concebe a sua profisso

    e a atividade que exerce, a soluo encontrada o abandono definitivo. Mas istoainda custa a chegar. Nos casos em estudo, antes de tomar a deciso de abando-nar de modo definitivo o ensino pblico e/ou a profisso do magistrio, os profes-sores passaram por outras experincias que configuram formas temporrias deabandono.

    DOIS TIPOS ESPECIAIS DE ABANDONO: REMOO E ACOMODAO

    O termo remoo est sendo aqui empregado por ser o que utilizadopelos professores e pela Secretaria de Estado da Educao de So Paulo. Essa se-

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    cretaria, ao promover o concurso de remoo, oferece aos professores efetivos apossibilidade de se transferirem de escola sem perderem o vnculo de empregocom o estado. Jos Manuel Esteve (1992) tambm analisou o mecanismo de eva-so e concluiu que, mediante essa estratgia, os professores tentam escapar de

    situaes conflitantes ou de ms relaes com os colegas. Importante assinalar quetodos os professores deste estudo utilizaram-se do mecanismo, ainda que por dife-rentes razes.

    Foram mais ou menos sete... oito escolas e na nona escola, essa ltima onde euestava, eu me exonerei para ocupar esse cargo tcnico que eu tenho aqui no insti-tuto. [...] O professor, s vezes, muda porque no se sente bem trabalhando naque-la escola, no se sente bem integrado, ento ele muda para uma outra escola. Essa

    uma convenincia, digamos, poltica, mas que eu reconheo como um direitodele de mudar... Se voc no se sente bem em uma escola, voc tem direito demudar. (Slvio, 50a, 13rp)

    H ainda um outro motivo que justificou as remoes realizadas por essesprofessores, que a comodidade e a segurana de trabalhar em local prximo residncia. Mudar de escola para fugir de situaes e ambientes desagradveis oupara obter maior facilidade de locomoo ou, ainda, para diminuir a distncia entrea casa e o trabalho, acaba por provocar uma grande rotatividade dos professores.Alm disso, nem sempre a remoo um recurso eficiente, pois a mesma situaoconflitiva pode ser encontrada nas outras escolas. A remoo, ou transferncia ,ento, um mecanismo que, ao mesmo tempo que oferece a possibilidade ao pro-fessor de afastar-se das situaes que provocam insatisfao e desequilbrio, ofere-ce-lhe, tambm, a possibilidade de encontrar outros tipos de dificuldades, talvez atmaiores do que as que vinha enfrentando.

    ...procurando mais conforto no sentido de estar mais prximo de minha casa, eu

    tinha os filhos pequenos, ento eu procurava sempre vir um pouquinho mais per-to... A primeira remoo foi da zona norte pr zona oeste, que eu j morava aqui nazona oeste e depois, quando eu mudei, quando construmos essa casa aqui eu jfiquei de olho na vaga dessa escola aqui, que foi a minha ltima escola... Mas eusempre me removi tendo em vista uma escola boa, com bastante aulas de ingls...(Regina, 55a, 23rp)

    Eu fui assaltado duas vezes ao voltar de Osasco... tinha esses inconvenientes. Eumorava l no Jardim Arpoador, na Raposo Tavares, e era meio ermo onde o nibus

    de Osasco parava. Nessa altura eu no tinha carro, nunca chegava antes de meia-noite no ponto final e ainda tinha que pegar um outro nibus para ir para casa... A,por essa razo, eu pedi remoo para So Paulo... (Hilton, 55a, 7rp)

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    Eu tive uma sorte, porque teve concurso de remoo em 89 e em 90 eu me remo-vi aqui, para o bairro onde eu moro. Uma escola linda, maravilhosa, era um colgiomaravilhoso. S que igualzinho da periferia, igualzinho, igualzinho, igualzinho... Umaestrutura pssima, sem direo, alunos marginais, biblioteca fechada por falta de

    pessoas, laboratrio destrudo, destrudo... Eu acabei pedindo exonerao nessaescola. (Estela, 45a, 9rp)

    Quando, por quaisquer razes, o professor no quer ou no pode fazer usodos abandonos temporrios ou da remoo, ou, mesmo quando faz uso dessesabandonos e os conflitos no so eliminados, sua frustrao e insatisfao com otrabalho aumentam ainda mais. Nessa situao, se o professor no pode abando-nar definitivamente o trabalho, as tenses a que ficar exposto sero intensas. Esseestado de tenso, se levado ao extremo, leva os professores a manifestarem um talesgotamento de suas energias que eles no conseguem, de fato, continuar traba-lhando. No podendo deixar o trabalho, recorrero a outro mecanismo de evaso,aqui denominado acomodao. quando se pode perceber com maior clareza amanifestao do burnout, expresso utilizada por autores estrangeiros para designaro fenmeno de estresse acentuado dos professores, que vem sendo observadoem vrios pases e que, por isso, tem sido objeto de estudo nos ltimos anos.

    Margaret LeCompte e Anthony Dworkin (1991), ao realizarem uma reviso

    sobre o tema, observaram que oburnout um constructo que permanece nebulo-so, pelo fato de ser utilizado muitas vezes como umatrait definition. Ou seja, umadefinio que enumera caractersticas que tipificam os indivduos que possuem oconstructo. No o caso de reproduzir aqui as extensas anlises apresentadas poresses autores emGiving up on school: students dropouts and theacher burnouts [Oabandono da escola: estudantes reprovados, professores acomodados], mas, sim, deressaltar alguns traos que, enumerados por eles, tambm foram encontrados napesquisa que deu origem a este trabalho. Por exemplo, LeCompte e Dworkin

    afirmam que quando fatores estruturais no permitem a realizao de metas pes-soais, os indivduos perdem a f nas instituies que estruturam suas vidas cotidia-nas, como as escolas. Embora a perda de f por parte dos indivduos, segundo eles,no crie automaticamente meios alternativos para a satisfao das metas pessoais,eles argumentam que um considervel conjunto de evidncias sugere que, sob taiscondies, o que acaba por acontecer que as pessoas passam a desacreditar napossibilidade de atingirem seus objetivos naquele local de trabalho, de vez que se

    sentem enfraquecidas e tomadas por sentimentos de impotncia, de falta de senti-do naquilo que fazem, isoladas pessoalmente, sentindo-se estranhas em seu pr-prio meio e estranhas em relao a si prprias. Estes sentimentos, conforme os

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    autores, definem claramente aquilo que expresso por alunos e professores quedizem estar abandonando a escola. Curioso que entre as pesquisas analisadas porLeCompte e Dworkin, esses mesmos sentimentos foram entendidos por algunsautores como parte de um processo de alienao. Assim, o aspecto de maior

    convergncia entre as vrias definies encontradas por eles foi a grande similarida-de entre alienao e burnout. Com base nisso, eles adotam a seguinte definio,como sendo a que melhor expressa e sintetiza esse constructo:

    Burnout uma forma extrema de alienao especfica de papel caracterizada por umsentimento de que o trabalho de algum destitudo de sentido e que essa pessoaest impotente para realizar mudanas que podem tornar o trabalho mais significati-vo. Alm disto, esse sentimento de falta de sentido e impotncia reforado por

    uma crena de que as normas associadas ao papel e situao so ausentes,conflitantes ou inoperantes, e que essa pessoa est s e isolada entre os colegas eclientes. (LeCompte, Dworkin, 1991, p.94)

    A acomodao, entendida como o distanciamento da atividade docentemediante condutas de indiferena a tudo que ocorre no ambiente escolar, ou deum tipo de inrcia, no sentido de buscar inovaes e melhorias no ensino, e umno envolvimento com o trabalho e com os problemas cotidianos da escola, talcomo observado nesta pesquisa, certamente corresponde a vrias das caractersti-cas do burnout. No entanto, optou-se aqui pelo uso do termo acomodao porduas razes: primeiro para assegurar maior fidelidade aos sentimentos vivenciadospelos professores que participaram do estudo, uma vez que muitos deles usaramessa palavra durante as entrevistas. Segundo, porque o burnout, conforme esclare-cido por LeCompte e Dworkin (1991), no envolve unicamente o desejo de aban-donar ou o abandono efetivo, pois muitos que vivem o burnout nunca deixaroseus empregos, enquanto muitos que o deixam no passaram por esse processo.

    Deste modo, no tipo de abandono caraterizado por acomodao pode haver apresena doburnout, mas no necessariamente. Nesse caso, no h o distanciamentofsico, uma vez que o professor comparece escola, ministra as aulas, cumpre asobrigaes burocrticas, porm executa essas atividades dentro de um limite querepresenta o mnimo necessrio para manter-se no emprego.

    Embora esse tipo de abandono tenha sido citado por todos os professoresdeste estudo, nem todos o utilizaram como mecanismo de evaso. No entanto,ele se torna, mesmo quando no utilizado, um elemento de frustrao e insatisfa-

    o a mais com o trabalho. A dedicao e o envolvimento com as atividades docen-tes, para serem percebidos como teis e prazerosos pelos professores, precisam

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    ser compartilhados e reconhecidos pelos colegas e superiores; quando isto noacontece h uma sensao de que todo o esforo despendido intil. Alguns ma-nifestaram claramente esse sentimento:

    Enquanto eu trabalhava eu via colegas que davam uma bola para a molecada esentava lendo jornal. O descaso com que a educao tratada... No quero sermelhor que ningum no, mas eu sempre trabalhei srio... (Eduardo, 50a, 17rp)

    ...voc acaba sozinho, chateado, falando assim: Puxa, porque que eu quero serdiferente? Deixa eu entrar no esquema.... Mas eu no gostava disso, eu adoravaser professor! (Eduardo, 50a, 17rp)

    ...porque voc no v o professor se preparando para a aula, se empenhando emmelhorar a qualidade da aula... E sabe o que eu acho mais terrvel nisso tudo? a

    viso que o aluno passa a ter do professor e da profisso... Ele associa o professor aum fracassado... (Fabiana, 38a, 11rp)

    Este tipo de abandono parece ser mais prejudicial, tanto para os prpriosprofessores quanto para a escola e a profisso, do que o abandono definitivo, pois,os professores que se utilizam desse mecanismo acabam se frustrando e se sentin-do ainda mais insatisfeitos, na medida em que sentem que com suas atitudes deacomodao deixam os outros infelizes e desmotivados, alm de colaborarem para

    a desvalorizao da profisso. A utilizao dessa estratgia no parece ser, entretan-to, consciente e planejada. No caso dos professores que a utilizaram, os depoi-mentos obtidos indicam que esse parece ser um ltimo recurso de que lanammo para manter-se minimamente equilibrados e para poder lidar com os conflitosgerados pelas solicitaes externas ou internas, que so avaliadas [...] como exces-sivas ou acima de suas possibilidades (Limongi-Frana, Rodrigues, 1996). Os aban-donos temporrios e especiais so modos de enfrentar os conflitos gerados pelotrabalho e, conforme afirma Christophe Dejours, esse enfrentamento decorre de

    uma economia psicossomtica, em que

    O aparelho psquico seria, de alguma maneira encarregado de representar e defazer triunfar as aspiraes do sujeito, num arranjo da realidade susceptvel de pro-duzir, simultaneamente, satisfaes concretas e simblicas... [subtraindo] o corpo nocividade do trabalho e [permitindo] ao corpo entregar-se atividade capaz deoferecer as vias melhor adaptadas descarga de energia. (1991, p.62)

    Muitos dos professores afirmam terem feito uso dos abandonos tempor-

    rios e especiais para conclurem a ps-graduao, para se dedicarem a um outrotrabalho mais prazeroso ou, apenas, para pensarem melhor na deciso que esta-

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    vam prestes a tomar. No entanto, h um limite para tais abandonos, e quando ele atingido, ocorre o abandono definitivo.

    O ABANDONO DEFINITIVO

    Todas as formas de abandonar, os abandonos temporrios e especiais referi-dos anteriormente, conforme se pde depreender dos relatos, tornam-se maisfreqentes no perodo imediatamente anterior ao pedido de exonerao, ou seja,ao abandono definitivo. Parece haver um momento em que eles no so maissuficientes para minimizar as tenses e as frustraes do professor. Dois professo-res retratam esse perodo do seguinte modo:

    O ltimo ano que eu dei aula eu fiz coisas absurdas... Pelo menos uma vez por mseu abandonava a classe... Eu estava dando aula noite, com um pessoal da pesada...(Estela, 45a, 9rp)

    Depois de cinco anos de escola, de ter sido professor da rede l em Osasco, queeu comecei a ver mesmo como aquilo mina... Vai minando voc, voc vai ficandoum cara infeliz por dentro, voc vai ficando rancoroso com uma poro de coisas...e da vira um caos... terrvel... (Hilton, 55a, 7rp)

    De modo geral, quando esses abandonos temporrios e especiais se tor-nam ineficientes ou insuficientes que ocorre o abandono definitivo. Essa no-suficin-cia que os mecanismos de evaso passam a ter com o decorrer do tempo, prova-velmente esteja relacionada ao fato de que, ao retornarem, os professores encon-trem a mesma situao, sem que tenha havido alteraes significativas para a melhoriada vida no trabalho e, com isso, o desnimo e o desencanto do professor voaumentando. Mas preciso considerar, tambm, que h um limite para a utilizaodesses mecanismos de evaso. Eles no podem ser utilizados indefinidamente. Eles

    so restringidos no s pelas normas que regem o sistema educacional, que limitamo tempo para os distanciamentos fsicos, mas, tambm, e principalmente, pelascaractersticas do prprio professor, o modo pelo qual ele enfrenta as situaesconflitantes, por sua posio existencial diante da vida e do trabalho que determinao tipo e o tempo dos distanciamentos psicolgicos.

    Assim, deixar de ser professor, deixar definitivamente a profisso docente e arede estadual de ensino foi o modo que os professores deste estudo encontrarampara restabelecer o seu equilbrio, para terem a oportunidade de realizar-se pessoal

    e profissionalmente. Embora nem todos os professores do grupo estudado tenhamabandonado o trabalho docente, aqueles que ainda permanecem exercendo a

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    docncia no ensino mdio seja na rede municipal de ensino de So Paulo, seja narede particular afirmam que pretendem deix-la. Se isto ocorrer no se sabe,mas o fato a ser destacado que, para esses professores, a insatisfao com otrabalho permanece e, se no for revertida, provavelmente, resultar, tambm, no

    abandono da profisso, como fizeram os demais professores entrevistados.Jos Manuel Esteve (1992) afirma que o absentesmo, aqui discutido de for-

    ma ampliada sob o nome de abandonos temporrios e especiais, tem como ltimaopo um gesto de sinceridade: o abandono real da profisso docente. Um ltimogesto, uma ltima ao que exige fora e vontade, que exige a superao de medose inseguranas. Uma ltima ao que representou, para os professores deste estu-do, a soluo encontrada para um processo de conflitos e insatisfaes constitudo

    lentamente durante seus percursos profissionais; o desfecho inevitvel de um pro-cesso que h muito vinha se desenvolvendo.

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    Recebido em: dezembro 2002Aprovado para publicao em: dezembro 2002