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DEUSA PAI O princípio xenofóbico na mitologia judaico- cristã Kaká Portilho 1 Palavras-Chave: matriarcado, necropolítica, xenofobia, racismo religioso, proselitimo. Resumo: O construto-pilar do pensamento ocidental reside no mito-religioso, mas não somente. Este estudo propõe, a partir da análise das narrativas dos livros que compõe o pentateuco - na bíblia da mitologia judaico-cristã - um levantamento das bases: a) da ordenação do princípio xenofóbico ou ainda, a chamada “intolerância religiosa”, neste artigo, nomeada como racismo religioso; b) a supressão dos vestígios matriarcais e africanos, a favor da construção ideológico-cultural de um sistema denominado patriarcado. É parte integrante da pesquisa de dissertação do mestrado, desenvolvida no Programa de Relações Étnico Raciais do CEFET. A pesquisa analítica propõe uma revisão bibliográfica para investigar os vestígios do matriarcado africana e suas sobrevivências dentro de estruturas sociais afrodiaspóricas. O matriarcado africana é um conceito sistematizado a partir da dissertação, significando estruturas sociais materno- centradas, no seu sentido mais amplo, sugerindo um sistema de matrigestão ou GMATER ®, onde a mulher é a centralidade do poder, sem excluir a presença e a importância do masculino como unidade complementar. O PROSELITISMO E A XENOFILIA Os chamados Konkobas são formados por 4 principais etnias (Bichaboln, Bimonkpel, Bisachun e Bikum -- ou Kombas) que habitam todo nordeste de Gana e noroeste do Togo, cada uma possuindo sua distinção etnocultural e linguìstica e é subdividida em vários grupos menores. Desde a nossa chegada, em 1993, trabalhamos com uma dessas etnias, os Bimonkpeln, onde tivemos o privilégio de chegar em um lugar onde deus estava prestes a derramar da sua graça e alcançar seu povo. (LIDÓRIO, 2008. p. 11) 1 Mestranda do Programa PPRER-CEFET/RJ, coordenadora e pesquisadora do African Studies pelo Centro de Altos Estudos e Pesquisa Afrikana e Afro-Diaspórico (CEPAA) Brasil e Nigéria (University of Ibadan), docente do curso de História Geral da África do Instituto Hoju. Orientadora da pesquisa de dissertação Eneida Cunha (PUC/RJ)

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DEUSA PAI – O princípio xenofóbico na mitologia judaico-cristã

Kaká Portilho1 Palavras-Chave: matriarcado, necropolítica, xenofobia, racismo religioso, proselitimo. Resumo: O construto-pilar do pensamento ocidental reside no mito-religioso, mas não somente. Este estudo propõe, a partir da análise das narrativas dos livros que compõe o pentateuco - na bíblia da mitologia judaico-cristã - um levantamento das bases: a) da ordenação do princípio xenofóbico ou ainda, a chamada “intolerância religiosa”, neste artigo, nomeada como racismo religioso; b) a supressão dos vestígios matriarcais e africanos, a favor da construção ideológico-cultural de um sistema denominado patriarcado. É parte integrante da pesquisa de dissertação do mestrado, desenvolvida no Programa de Relações Étnico Raciais do CEFET. A pesquisa analítica propõe uma revisão bibliográfica para investigar os vestígios do matriarcado africana e suas sobrevivências dentro de estruturas sociais afrodiaspóricas. O matriarcado africana é um conceito sistematizado a partir da dissertação, significando estruturas sociais materno-centradas, no seu sentido mais amplo, sugerindo um sistema de matrigestão ou GMATER ®, onde a mulher é a centralidade do poder, sem excluir a presença e a importância do masculino como unidade complementar.

O PROSELITISMO E A XENOFILIA

Os chamados Konkobas são formados por 4 principais etnias (Bichaboln, Bimonkpel, Bisachun e Bikum -- ou Kombas) que habitam todo nordeste de Gana e noroeste do Togo, cada uma possuindo sua distinção etnocultural e linguìstica e é subdividida em vários grupos menores. Desde a nossa chegada, em 1993, trabalhamos com uma dessas etnias, os Bimonkpeln, onde tivemos o privilégio de chegar em um lugar onde deus estava prestes a derramar da sua graça e alcançar seu povo. (LIDÓRIO, 2008. p. 11)

1 Mestranda do Programa PPRER-CEFET/RJ, coordenadora e pesquisadora do African Studies pelo

Centro de Altos Estudos e Pesquisa Afrikana e Afro-Diaspórico (CEPAA) Brasil e Nigéria (University of Ibadan), docente do curso de História Geral da África do Instituto Hoju. Orientadora da pesquisa de dissertação Eneida Cunha (PUC/RJ)

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Nos últimos cinco séculos, descritos como era da modernidade, observamos o proselitismo ocidental “estuprar cultural e psicologicamente” (ANI, 1994.p. xxxvi) culturas que categorizaram como “outras”, sobretudo, as de matriz africana. Vemos na citação acima, o relato do missionário/antropólogo Ronaldo Lidório, descrito em seu livro: Komkobas: o nascer da igreja em uma tribo africana. O livro dedica-se a narrativa do processo de ‘evangelização’ de uma nação ganesa, e demonstra o seu esforço para fazer novos prosélitos, através do apostolado e do estudo da cultura daquela sociedade.

Nos relatos apresentados em seu texto etnográfico, o missionário e sua esposa descrevem as estratégias de apagamento cultural e imposição dos dogmas bíblicos, negando e demonizando as tradições locais. E junto a isso, a implantação de assistencialismo social, travestido de caridade. Segundo ele, os Komkobas eram muito receptivos a membro de outras ‘tribos’, que podiam inclusive participar de seus ritos, desde que apreendessem seu idioma e suas tradições de dança, “demonstrando ser um povo muito acolhedor” (p.19). Analisando o livro citado e comparando os dados com as conclusões de Diop (2014), no livro: A Unidade Cultural da África Negra, e os estudos de outras sociedades africanas ao longo da investigação da dissertação, percebemos que existe um princípio que se repete em muitas dessas sociedades: a xenofilia (p.173). Este princípio ordenador em sociedades africanas2, descreve a maneira como estas sociedades eram receptivas a outras comunidades de origem cultura diferente das suas, integrando-as como uma parte a mais de sua própria sociedade.

Partindo deste pressuposto, amparada pela tese dos dois berços civilizatórios de

Diop (2014) e a análise antropológica da cultura europeia desenvolvida pela antropóloga Marimba Ani (1994), tomo como premissa: o impositivo centro da gravidade de mundo euro-americana está caminhando para o seu fim. Entretanto, vale ressaltar que trabalhos que desafiam, ou que rompam com as epistemologias do “Norte”, não devam focar seu campo de análise a partir de estruturas de pensamento que tentaram destituir os povos africanos de sua ontologia, como bem descreve Fanon (2008) no capítulo: A Experiência Vívida do Negro (p.103-126). Logo, concordo com Mbembe (2014, p.9), que “a descentralização é a experiência fundamental de nosso tempo”. Ou ainda, reiteirada por Ani (1994. p. 3-9), o “desmame epistemológico”, é um passo fundamental para que possamos compreender a colonialidade como um processo de deseducação (WOODSON, 2005) dos povos colonizados, que ainda tentam descrever suas experiências a partir de pressupostos epistemológicos que os estrangulam.

2 Quando me refiro a um princípio ordenador em sociedade africanas, não estou generalizando ou amplificando como universalidade. Me refiro as sociedades matriarcais que venho investigando há 8 anos. Como são muitas as sociedades, não tenho como citá-las no texto, pois corro o risco de não ter espaço para desenvolver a ideia central proposta. Para maiores informações visitem a página: https://www.facebook.com/mulherismoafricana/?ref=bookmarks

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A CULTURA COMO IDEOLOGIA

As narrativas proselitistas que um dia suscitaram perplexidade, hoje, apenas

demonstram como a estratégia etnocêntrica europeia tem utilizado o campo da “cultura” como arma de assimilação dos povos não europeus. Sendo assim, nossa proposta se desdobra a partir do african studies continentais e diaspóricos.

A ideia de que a cultura de matriz africana pode ser categorizada como cultura das ‘minorias’, tem sido descredibilizada, não apenas por teóricos, mas principalmente por pesquisas continuadas que demonstram o aumento da auto declaração da população brasileira, como negra (preta ou parda), conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Continua 2016 do IBGE3. Além disso, o Brasil é o país, que fora do continente africano, concentra a maior população negra no mundo, em conformidade com a Fundação Cultural Palmares4. Declarar-se negro estaria diretamente relacionado a um ato político, no sentido de reafirmação e reconhecimento cultural do berço africano como princípio de origem ancestral. A causa desse aumento está intimamente ligada as lutas dos movimentos negros africanos e brasileiros, que há muito vem reivindicando reparação histórica a população afrodescendente (me refiro à movimentos não institucionalizados, mas que foram importantes deflagradores das insurgências por libertação da escravidão, a qual, pessoas de origem africana, foram submetidas na diáspora). Estes movimentos contínuos tem garantido a população negra – ainda que a passos lentos diante do passivo que nos legou a escravidão – acesso a alguns dos direitos fundamentais que teoricamente todos os nascidos ou naturalizados no país, teriam garantido. A multiculturalidade brasileira e o predomínio das culturas de matriz africana, não apenas no campo da música, dança, arte, mas principalmente no campo da linguística (LOPES,1995; PETTER, 2000; RAIMUNDO, 1993), assevera que existem preconceitos estruturados em nossa sociedade que se baseiam, ainda hoje, em teorias estruturalista e evolucionistas, de um passado racialista europeu (BITHENCOURT, 2018) que nos impõe o racismo estrutural no Brasil.

Neste estudo, não utilizarei a palavra intolerância religiosa, pois meu trabalho está

investigando o princípio xenofóbico dentro dos livros do pentateuco – parte do antigo testamento da bíblia da mitologia judaico-cristã. Nesta perspectiva, o termo racismo religioso, se torna mais aprazível para os argumentos que irei defender.

3 In: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/18282-pnad-c-moradores, acessado em 01//09/2018. 4 In: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/mre000073.pdf, acessado em 01/09/2018.

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[...] a cultura de um povo representa seus valores, fornecendo bases para compromissos, prioridades e escolhas, dando desse modo, direção ao desenvolvimento e comportamento de grupo: na verdade, ela age para limitar os parâmetros de mudança e padronizar o comportamento de seus membros. Desta forma, a cultura ajuda a iniciar e autorizar a sua própria criação. Ela provém a criação de símbolos e significados partilhados. É por conseguinte, a principal força criativa de consciência coletiva, e é o que torna possível construir uma consciência nacional. Por todas as razões acima, ela impacta sobre a definição de interesse do grupo e é potencialmente política. (ANI, 1994. P. 5)

A cultura é política, e tem sido a maior arma de dominação dos povos colonizados,

que unificam e ordenam suas vivências a partir de experiências euro-americanas. Com esta afirmativa, não assevero que a experiência da população negra no Brasil seja essencialmente africana. Minha reflexão aponta para “sobrevivências” de características essenciais que se mantiveram vivas nas estruturas sociais de matriz africana no país. Isso quer dizer que grande parte de nós, afrodescendentes, reproduzimos comportamentos que são característicos das sociedades matriarcais africanas do passado, as quais fazem parte dos meus estudos. Por este ângulo, a nossa vivência, parte de uma ontologia distinta da experiência eurocentrada, e desta forma, nossas vivências não podem ser transformadas em experiências a partir do berço civilizatório norte (DIOP, 2014).

O RACISMO RELIGIOSO À MODA BRASILEIRA

Apesar das teorias constitucionais, não existe igualdade no Brasil. A garantia de

direito está escrita, ou melhor, está fotografada como uma representação estática de algo que nunca saiu do papel. Os dados estatísticos recentemente lançados através do Atlas da Violência 2018, demonstram que nós negros somos as maiores vítimas de violência letal e o perfil dominante da população prisional. Nossa morte, comparada a população não negra, chega a ser duas vezes e meia superior (16% contra 40,2%). Entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1%. No mesmo período, a taxa entre os não negros teve uma redução de 6,8%. A taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de mulheres não negras. O racismo apesar de não ser um fenômeno social que acontece exclusivamente no Brasil, tem se transformado em uma situação endêmica no país. Rememoramos ainda o crescente número de ataques a religiosos de matriz africana e aos terreiros, onde acontecem as práticas religiosas. Em 2017, segundo a Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos, e o Relatório dos Casos de Intolerância Religiosa no Brasil 2015, entre os anos de 2012-2015, 71,5% dos casos de intolerância religiosa registrados no Rio de Janeiro foram contra praticantes de Matrizes Africanas. Infelizmente, estes dados refletem a

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crescente violação de direitos da população que é maioria na sociedade brasileira. Ser negro no Brasil é sinônimo de não ter direitos.

Em maio deste ano, o padre Fábio de Melo, um dos mais conhecidos e respeitados

representantes da igreja católica no país, ao ministrar uma missa, narra em seu sermão:

[...] Você tem o poder de expulsar demônios. Você treme toda quando vê aquela galinha preta na porta da sua casa [...] Fizeram uma macumba pra mim. Eu preciso ir lá no padre Joel. Se você de fato acredita que uma galinha preta na porta da sua casa, uma garrafa de cachaça e (ênfase) uma farofa de banana, tem o poder de trazer destruição na sua casa, na sua vida, você não conhece a força do Cristo ressuscitado [...]

O vídeo exibindo a ridicularização/demonização dos elementos que pertencem ao culto das religiões de matriz africana foi compartilhado 90 mil vezes e teve mais de 3.000.000 de views. Dada a reverberação e o alcance do vídeo, qualquer retratação pública ou pedido de desculpas não terá o mesmo impacto que o ato de racismo. Essas estratégias de demonização dos símbolos que representam culturas africanas dentro e fora a diáspora, são recorrentes no cotidiano brasileiro. Num relato etnográfico obtido no campo, Barbosa – que viveu uma experiência de racismo dentro da igreja católica, onde fazia catecismo – narra que quando tinha aproximadamente quatorze anos e era parte do grupo de jovens da igreja, em um dos sermões matinais, no início do estudo bíblico, o padre porto-riquenho, Henrique (Igreja da Consolata, no Bairro de Benfica, subúrbio do Rio de Janeiro), pediu para que todos abrissem suas bíblias no livro de Gênesis capítulo 4:8-26. O capítulo descreve o primeiro fratricídio bíblico. “Caim matou Abel, seu irmão. E foi Caim amaldiçoado por deus, errante pela terra. E para que não fosse ferido por qualquer um que o achasse, o senhor lhe pôs um sinal, o sinal da maldição”. Barbosa relata que imediatamente levantou a mão e perguntou ao padre Henrique qual seria o sinal. E ele lhe respondeu: “a cor da pele negra”. Barbosa, que também é negra, saiu porta a fora e contou emocionada:

“Foi um dos momentos mais angustiantes da minha existência. Cheguei em casa, ainda apática e pensativa. Resolvi conversar com minha mãe e dizer a ela que não iria mais frequentar a igreja católica. Minha mãe retrucou e me pediu explicações. Eu prontamente disse a ela: o padre falou que somos amaldiçoadas (sua mãe também era negra). Ele disse, que carregamos a marca da maldição de Caim pela morte de seu irmão Abel.”

Em uma publicação no twitter o pastor e deputado Marcos Feliciano escreve: “os africanos descendem de um ancestral amaldiçoado por Noé”. Após inúmeros protestos nas redes sociais, e sendo um homem público (eleito ao poder legislativo brasileiro), ele

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tenta se retratar através de uma entrevista gravada, e exibida no youtube5. O deputado, acaba reforçando ainda mais sua visão racista sobre o continente africano. Ao ser perguntado sobre o que achava do continente africano, ele responde: ”eu penso que existe algo estranho sobre aquele continente. Eu não tenho uma resposta concreta. Tudo que eu tenho é uma abstração intelectual”. Feliciano não está errado ao reproduzir algo que tem sido pregado há mais de mil anos. Estamos diante de dogmas, que foram re(escritos) e narrados em púlpitos, sermões, livros, durante milênios. Somente em 2014, foram distribuídas 34 milhões de unidades de bíblias por entidades ligadas à Sociedades Bíblicas Unidas (SBU), uma associação que atua em 200 países. No Brasil, foram 7,6 milhões de exemplares distribuídos pela Sociedade Bíblica do Brasil. — É tranquilamente o livro mais distribuído do mundo — afirma Erní Seibert, secretário de Comunicação, Ação Social e Arrecadação da SBB. — “É um patrimônio da Humanidade. Se você viajar para a Europa e quiser entender a arquitetura, precisa conhecer a fé cristã. Se quiser entender a obra do Aleijadinho no Brasil, precisa do texto bíblico. Não é um livro apenas para religiosos”. Os mitos narrados na bíblia, constituem modelo para a sociedade brasileira. E estes modelos são unificados e ordenados como experiência fundamental desta sociedade. Eles constroem a experiência histórica compartilhada na qual nós estamos inseridos.

Encerrando os registros do campo, insiro um importante relato de um professor de uma universidade federal brasileira que participava de uma banca de avaliação de dissertação de mestrado de uma aluna. Para nos situarmos, o projeto tinha como campo temático, a intolerância religiosa como um dos obstáculos à aplicação da lei 10.639/03.

Se um sujeito é digno do seu estudo, você precisa ter respeito por ele. Sou protestante e considero que você comprou uma briga grande. A gente precisa romper as bolhas pra quem a gente fala (...) A população negra é a base das igrejas evangélicas. Sua escrita me dá impressão de uma revolta raivosa ao caracterizar o cristianismo. O cristianismo não é uma religião de opressão (...) O cristianismo começa como religião de escravos, de pobre, de ferrados (...) O cristianismo é um campo de disputa. O mesmo cristianismo que serviu aos europeus para oprimir os outros povos também foi uma religião de libertação dos afro-americanos. Provavelmente até século IV, tinham mais cristãos na África que na Europa (...)”.

O discurso do professor, um pós-doutor, ocupante da academia – outra grande

ferramenta no processo de estupro cultural e psíquico ao qual os povos colonizados foram submetidos – é um importante deflagrador da percepção do cristianismo como

5 In: https://youtu.be/CYAc5og83uk; https://youtu.be/7983P8JhX2c; http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/04/ao-stf-feliciano-diz-que-historia-e-biblia-mostram-maldicao-africanos.html, acessado em 01/05/2018.

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salvador-civilizador dos povos africanos ou afrodiaspóricos. Em nenhum momento do seu discurso, ele menciona que o cristianismo foi apropriado pela cultura ocidental e tornou-se uma das mais importantes armas de facilitação da escravização dos povos africanos, travestido na roupagem ‘salvadora-catequizadora’. Que promoveu a mais violenta tentativa de destituição da linguagem desses povos. Os judeus, não tem agido de forma diferente de seus análogos. Em 2013, o canal estatal israelense IETV provocou choque no pais. Uma denúncia de esterilização em massa de mulheres negras etíopes que tinham origem judaica. O governo israelense admitiu que as mulheres passaram pelo procedimento de esterilização de maneira compulsória6. Ter ascendência africana, marcada pela pele negra, é sinal de maldição. E todas estas religiões apontam um mesmo caminho, estipulando o estereótipo ideal de seus seguidores ou desqualificando os símbolos que fazem parte da cultura ancestral das pessoas de ascendência africana.

A cultura judaico-cristã, une pessoas com crenças e atitudes comuns, ordenado a

vida, além dos limites da intervenção do Estado. E no Rio de Janeiro, temos um grande exemplo disso, que é o fenômeno de violação e expulsão dos terreiros de religiões de matriz africana pelos traficantes que dominam e comandam as favelas na cidade. Apesar de ser um campo importante para pesquisas sobre o tema, neste trabalho, não caberia tal discussão, devido aos limites da submissão.

DE ONDE VEM A BÍBLIA?

A literatura é um sistema, ou seja, um conjunto de elementos inter-relacionados que possui uma estrutura determinada e desempenha funções que nenhum outro sistema pode cumprir na sociedade. Este sistema age com uma série de restrições sobre o leitor, o escritor, o reescritor ou o tradutor, cumprindo seu papel de disseminação de uma ideologia que influencia toda a lógica sociocultural (LEVEVERE, 2007). A escrita tem sido utilizada ao longo dos milênios como modeladora e reguladora eficiente na domesticação.

Os códex ou códice de Leningrado e Aleppo, contém todos os livros que compõem

o antigo testamento. O códex de Leningrado7 é considerado um dos mais antigos e completos manuscritos do texto massorético da Torá, escrito em pergaminho e datado de 1008 EC. Foi catalogado com a sigla “Firkovich B 19”, segundo o Colophon Book8.

6 In: https://www.cartacapital.com.br/internacional/israel-admite-uso-de-contraceptivos-em-imigrantes-judeus-da-etiopia, acessado 05/04 2018. 7 Ver em: http://www.cvkimball.com/Tanach/Tanach.xml. 8 Uma publicação que registra os dados de catalogação de algumas obras antiga, contendo o local da publicação, o editor e a data da publicação.

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Ele tem sido usado como o texto básico para modernas traduções da bíblia, e encontra-se na famosa Biblioteca Pública de São Petersburgo, em Leningrado, na Rússia. Atualmente, é o mais importante texto hebraico reproduzido na Rudolf Kittel's, bíblia hebraica (BHK,1937) e na ou bíblia de Stuttgart (BHS,1977). Sendo também fonte a recuperação de dados ausentes no Códex de Aleppo. Outra versão é a de Kitew, baseada numa tradução feita em Veneza em 1500. O códex de Aleppo (hebraico: Keter Aram Tsova)9 é um manuscrito da bíblia hebraica. Foi escrito por masorah Aser, na cidade de Tiberíades, onde atualmente se localiza o estado de Israel. Ele, além de escrever os manuscritos, foi o responsável por ‘aperfeiçoar’ o sistema que assegurava a pontuação e a recitação dos textos bíblicos (desenvolvidos pelos massoretas de Tiberias), de forma que a transmissão tivesse ‘poucos erros’. Os massoretas (chamados assim do sexto ao décimo século EC) eram considerados os ‘preservadores da tradição’ hebraica. Embora os nomes destes copistas tenham sido mantidos anônimos desde o princípio do ofício, apenas uma das famílias de massoretas teve sua identidade registrada: a família Ben Asher. Esta foi uma família de escribas judeus, responsável por copiar ou reescrever partes do velho testamento que compõe a bíblia hebraica, por um período de mil anos (DOTAN, 1977). Os escritos em hebraico arcaico consonantal que durante séculos se mantiveram sem vogais, ganharam sinais ‘inventados’ pelos massoretas, que agruparam estas vogais às consoantes, com o pretexto de que a pronuncia correta do hebraico estava se perdendo e que os judeus já não eram mais fluentes no idioma. Ainda segundo Dotan, pelo menos três sistemas foram elaborados, mas, o mais prestigioso, foi o dos massoretas em Tiberíades, junto ao mar da Galileia, onde morava a família Ben Asher.

Além da má-conservação do códex Aleppo e as barreiras da língua arcaica, os códex

foram propriedade de inúmeros povos até chegar onde estão. Passaram por muitas mãos, sendo vendidos, comprados, roubados e apropriados. E no caso do de Allepo, seu original, se tornou inacessível à análise de pesquisadores e estudiosos, o que dificulta confirmar sua autenticidade. Somente Umberto Cassuto (1883-1951), em 1943, teve acesso aos escritos e duvidou da autenticidade do códex ser de Maimonidês, apesar de concordar com sua datação. Além disso, os copistas faziam parte um grupo cultural da elite judaica. Dentre eles: juízes, médicos, eruditos, conselheiros e linguistas, com interesses em comum. Segundo Lefevere (2007), a figura do mecenas, também pode ser exercida por instituições e grupos com interesse em comum em prol da construção de uma ideologia ou hegemonia cultural. Os textos massorético, dos comentadores da bíblia hebraica, deram origem ao compilado, contendo trinta e nove livros – base da versão protestante da bíblia. Já a católica baseada na bíblia septuaginta, foi escrita por 70 PHD’s em Alexandria. São vinte e sete livros do novo testamento que compõem o códex Sinaiticus, encontrado na península do Sinai e o códex Vaticano.

9 Ver em: http://aleppocodex.org/.

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Instituições, sejam elas acadêmicas ou religiosas, comerciais ou políticas, mostram uma preferência por uma ética tradutória da igualdade, como uma tradução que possibilite e ratifique discursos cânones, interpretações, pedagogias, campanhas publicitárias e liturgias existentes - pelo menos para assegurar a reprodução contínua e tranquila da instituição. (VENUTI, 2002.p.56)

Os copistas organizaram a substituição de palavras através de anotações nas

margens dos textos, e mesmo não concordando com as substituições anteriores os copistas seguintes mantinham a mudança. M. H. Goshen-Gottstein (1995)10, especialista em manuscritos hebraicos relata uma batalha ideológica de raízes profundas entre os massoretas, caraítas e rabinos. Durante estes conflitos nasceu o Talmud, uma coletânea de livros sagrados que registrava as discussões rabínicas que pertenciam à lei, ética, costumes e história do judaísmo, que foi considerado em algumas épocas mais importante que a própria bíblia judaica. Além disso, os filólogos, discordam em suas interpretações. As palavras que decidem o que significa cada termo estão pautadas em uma “única” forma de compreender o mundo, a sua própria. E assim nasceram os arcabouços do Judaísmo e do Cristianismo que influenciaram o surgimento do Islã, as artes, as tradições e o pensamento ocidental. Os reescritos copiados de geração a geração, durante milênios, em milhares de idiomas, são distribuídos em todo o mundo. A eficiência desta distribuição dentro de religiões societárias como o judaísmo e o cristianismo, vem garantindo a difusão ideológica, hoje muito bem solidificada. As guerras expansionistas coloniais deram lugar a “salvação”, das “almas sem almas” ou como disse Aristóteles, “as almas sem diligência” (TOSI, 2003). A cristandade medieval engendrou ideais cristãs na mente do homem medieval que perduram até os dias de hoje. AS TRADUÇÕES DA BÍBLIA NO BRASIL E A XENOFOBIA

Os judeus fazem parte de um sistema fechado, ou seja, utilizam as escrituras nas primeiras versões dos copistas, sendo pouco flexíveis com as revisões e atualizações dos “originais”. Já o cristianismo, dividido em catolicismo e protestantismo, é um sistema aberto, isto é, permite as revisões, as atualizações, inclusive com adaptações culturais, e utilização de termos ‘inexistentes’ à época dos escritos iniciais. Vejamos:

Não se voltem para MÉDIUNS nem procurem ESPÍRITAS, porque vocês serão contaminados por eles. Eu sou o senhor, seu deus. Levítico 19:31

10 In: https://wol.jw.org/pt/wol/d/r5/lp-t/1995688, acessado em 01/02/2018.

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O termo espiritismo, surgiu como um neologismo criado pelo pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail (conhecido como Allan Kardec), para nomear especificamente o corpo de ideias por ele sistematizadas em "O Livro dos Espíritos" (1857). A palavra espírita, é um termo empregado para designar um seguidor da filosofia do espiritismo. E a palavra médium, designa o espírita que serve de instrumento de comunicação entre os espíritos encarnados e desencarnados.

Comparando com a versão Almeida Atualizada, o mesmo versículo é traduzido assim:

Não vos voltareis para os que consultam os mortos nem para os feiticeiros; não os busqueis para não ficardes contaminados por eles. Eu sou o senhor vosso deus. Levítico 19:31

Nesta lógica, as traduções bíblicas podem estabelecer ou romper com a ideologia religiosa inicial, e inclusive incitar a xenofobia entre seus fiéis seguidores. De acordo com Diop (2014, p. 130), o estilo nômade de vida dos arianos, estabelece cada família como entidade absoluta, uma célula autônoma e autossuficiente. Ele afirma que este modelo se manteve até depois da formação das nações, preservando as famílias separadas umas das outras, prevalecendo a lei do isolamento. Dando origem a fronteiras intransponíveis entre as cidades. Erguendo-se assim barreiras entre o insider e o outsider, ou o nativo e o estrangeiro. Estes obstáculos, segundo ele sugere, dão origem a xenofobia, ou seja, o medo ao a aversão ao estranho/estrangeiro. O outro é visto como inimigo que precisa ser conquistado ou derrotado. Da mesma forma, a mitologia judaico-cristão se estabelece. A partir da maldição de Caim e sua descendência até a invasão de Canaã, com o pretexto desta ser a terra de herança do “povo escolhido’.

DEUS-PAI OU DEUSA-PAI? A ORIGEM DOS CANANEUS

Para os seguidores da religião judaico-cristã, a ideia de deus único parece estar bem consolidada.

Seus são os patriarcas, e deles procede a descendência humana de Cristo, quem é deus sobre todos, sempre digno de louvor! Um homem. Filipenses 2: 6

No entanto, antes da ascensão do monoteísmo na região denominada como “Israel”,

o deus Yhwh fazia parte de um contexto politeísta. Um panteão composto por deuses-pares (feminino-masculino). Uma interpretação semelhante aparece na cidade de Khemenu (denominada pelos gregos como Hermópolis), capital do XV nomo do Alto Kemet (Antigo Egito). Um panteão de oito deuses, agrupados em quatro casais. Esses deuses eram denominados Hemu. A origem deles pode variar: por vezes eram

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apresentados como primeiros deuses que existiram; em outros casos eram filhos de Atun e Shu, mas invariavelmente apresentam-se como pares-complementares.(WILKINSON, 2003). Divindades originais que representavam a soma da existência antes da criação. Eles formaram a base do mito da criação para Kemetyus. Juntos personificaram a essência do caos primacial antes da criação do mundo. Nun e Naunet: as águas primordiais, a cheia, primavera do Nilo, o Caos; Huh e Hauet: a eternidade e o espaço infinito; Kuk e Kauket: o que havia antes da luz, escuridão ou o portador da luz; e, finalmente, Amon e Amaunet (o ar ou o vento em sua característica de invisibilidade, e nesse sentido, o invisível, o oculto). O último casal variou em alguns períodos, podendo substituído por Tenemu e Tenemuit, Niau e Niaut ou Gereh e Gerhet. A partir destes quatro elementos primordiais tudo tinha se originado (WILKINSON, 2003). Outras filosofias africanas nos revelam a paridade complementar do feminino-masculino na sua crença de criação do universo. Yhwh provavelmente foi adorado ao lado de sua consorte, Asherah. Reconstruir a presença da Deusa Asherah na vida de mulheres e homens no Antigo Israel é um esforço de,

“voltar a um ponto anterior ao monoteísmo patriarcal, até religiões nas quais uma Deusa era a imagem divina dominante ou então era emparelhada com a imagem masculina de uma forma que tornava ambas modos equivalentes de aprender o divino" (Ruether, 1993, p. 46).

De acordo com a tabela das nações que aparecem no capítulo 10 de Gênesis, após

o dilúvio que destruiu a Terra, Nóe, a esposa, e seus três filhos: Cam, Sem e Jafé, - segundo a mitologia, os únicos sobreviventes da catástrofe – foram os responsáveis pelo povoamento da Terra. Cam, filho mais velho, partiu para o sul da Judéia, chegando ao norte do Continente Africano. Teve quatro filhos. A um deles deu o nome de Kush, que não por coincidência foi um grande reino africano localizado ao sul do Assuão entre a primeira e a sexta Catarata do rio Nilo (1970 a.C). Seus outros filhos se espalharam entre os países que eram divididos pelo Mar Vermelho. Canaã, seu filho mais novo, deu origem ao nome da nação e aos povos que colonizaram a costa oriental do mediterrâneo (Líbano e Israel).

"Canaã gerou a Sidom, seu primogênito, e Hete, e ao jebuseu, o amorreu, o girgaseu, o heveu, o arqueu, o sineu, o arvadeu, o zemareu e o hamateu. Depois se espalharam as famílias dos cananeus. Foi o termo dos cananeus desde Sidom, em direção a Gerar, até Gaza; e daí em direção a Sodoma, Gomorra, Admá e Zeboim, até Lasa." Gênesis, 10:15-19

Os cananeus formavam os povos que habitaram a “terra prometida” na época da chegada de Abraão. Compunham sete nações distintas: os fenícios, os filisteus, os amonitas, os heteus, os jebuseus, os amorreus e os heveus (Dt 7:1). A descendência

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dos povos cananeus foi quase sempre atribuída a Cam. Algumas das cidades antigas fundadas pelos cananeus são Gezer, Meguido, Jericó, Sodoma, Gomorra e Jerusalém (Gn 10:19). Canaã era uma terra promissora e própria para a agricultura e pecuária (Gn 3:8). Os cananeus eram grandes e poderosos. Adoradores da natureza, ensinavam aos homens a cooperação, o controle os ciclos e as estações. À suas deidades eram atribuídos poderes divinos. Constituídos por muitas raízes culturais, tinham diversos deuses em seu panteão. Na religião cananeia o deus principal era El e sua esposa era Asherah. Dos setenta filhos que geraram, nasceu Baal, “senhor da terra”, deus do tempo atmosférico. Sua esposa Astarote, era a personificação do princípio reprodutivo da natureza. Os babilônios a chamavam de Isthar. Por Canaã ser totalmente dependente da chuva para suas plantações, foi muito conveniente tomar para si o deus da chuva do povo amorreu. Baal era deus da chuva, do trovão e da fertilidade do solo. Nada mais apropriado para um povo que vivia da agricultura. Para os cananeus, a chuva era o sêmen de Baal caindo sobre a terra, tornando-a fértil. Para os cananeus, Baal era o senhor do tempo; ele fazia chover, trovejar ou fazer sol. Ele era adorado principalmente nos montes, ou lugares altos. Mas podia também ser adorado em qualquer lugar que tivesse um Astarote (um pedaço de tronco fincado na terra, igual a um totem). Isso porque a esposa de Baal, era simbolizada por tronco de árvore ou planta. Jezabel, princesa sidônia, esposa do rei Acabe, era adoradora de Astarote (I Rs 16:31-33).

Na descrição da mitologia, no livro de Deuteronômio:

Porém, das cidades destas nações que o senhor, teu deus, te dá em herança, não deixarás com vida tudo o que tem fôlego. Antes, como te ordenou o senhor, teu deus, destruí-las-á totalmente: os heteus, os amorreus, os cananeus, os ferezeus, os heveus e os jebuseus, para que não vos ensinem a fazer segundo todas as suas abominações, que fizeram a seus deuses, pois pecaram contra o senhor, vosso deus. (Deuteronômio 20:16-18)

Deus ordena que os hebreus não façam aliança com os cananeus e não se misturem com eles em matrimônio. A sentença de morte e a destruição do povo cananeu e da sua cultura vem descrita livro de Gênesis capítulo 7:1-6:

1 Quando o senhor, teu deus, te traz para a terra, você está entrando

para possuir e expulsar diante muitas nações - os heteus, os girgashitas, os amorreus, os cananeus, os perizeus, os heveus e os jebuseus, sete nações maiores e mais fortes do que você - 2 e quando o senhor seu deus os entregou e tu os derrotou, destrua-os totalmente. Não faça nenhum tratado com eles, e não mostre nenhuma misericórdia. 3 Não se familiarize com eles. Não dê suas filhas a seus filhos ou leve suas filhas para seus filhos, 4 pois eles vão afastar seus filhos de me seguir para servir outros deuses, e a raiva do senhor vai se queimar contra você e rapidamente destruí-lo. 5 Isto é o que você deve fazer com eles: Divida seus altares,

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esmague suas pedras sagradas, reduza os seus Asherah à pó b e queime seus ídolos no fogo. 6 Pois você é o povo sagrado para o senhor seu deus. O senhor, seu deus, escolheu você dentre todos os povos da face da terra para ser seu povo, sua possessão preciosa.

Igualmente nos livros de Êxodo (34:16), Josué (3:10), Levítico (14:34), Números (31:17), Gênesis (24:13), o deus judaico-cristão reafirma a violência com que o povo cananeu deve ser destruído. Após ver a nudez de seu pai embriagado (Gênesis 9:18 -10:32), Cam viu seu filho Canaã tornar-se servo de seus irmãos e tios. A partir desta narrativa, escrita, reescrita e traduzida por mãos e mentes humanas, o deus todo-poderoso dos judeus e cristãos sentenciou toda uma nação, amaldiçoando de dizimando sua descendência. Qual seria o tamanho da violação de Cam ao ver a nudez e a embriaguez de seu pai que justificaria a subalternização e sentença de morte de todos os seus descendentes? Canaã foi amaldiçoado. Ele ia ser o menor dos servos de seus irmãos. Cam foi o antepassado daqueles que construíram grandes cidades e impérios, incluindo a Babilônia, a Assíria, Nínive e o Kemet. Put, provavelmente, foi o pai dos povos negros, segundo a mitologia bíblica.

Carol Christ (2005, p.17) ressalta que “re-imaginar o poder divino como Deusa tem importantes consequências psicológicas e políticas”, como caminho de descolonização do pensamento que naturaliza a dominação masculina. Segundo Schroer (1995, p. 40), o culto à Deusa era exercido tanto por homens como por mulheres, mas veio sobretudo ao encontro das necessidades das mulheres, pois lhes oferecia mais espaço no âmbito religioso.

Reconstruir a memória da Deusa a partir dos dados arqueológicos e identificando na literatura bíblica a relação conflituosa que se estabelece com ela.

Asherah, a deusa proibida, esposa do deus Javé do tetragrama sagrado YHWH. Deus não estava sozinho. A pesquisadora Francesca Stavrakopoulou do Departamento de Teologia da Religião na Universidade de Exeter foi uma das pioneiras a afirmar que o deus de Israel teve uma esposa. Alguns citam Dt. 33.2 e alegam que a tradução “à sua direita, havia para eles o fogo da lei” deveria ser interpretada como “à sua direita estava Ashera”, no intento de dizer que deus estava com sua esposa. É uma possibilidade, mas a maioria dos eruditos não concordam. O versículo pode ser entendido também como “e com ele havia miríades de Cades, à sua mão direita guerreiros [ou: anjos] dela”11. “Com [as] miríades de Cades; à sua mão direita [havia] com ele anjos”; “e com ele milhares de santos. As recentes descobertas arqueológicas em templos antigos da história sagrada, têm demonstrado pistas de que deus não estava sozinho. Há 3000 anos, os judeus ortodoxos, após o aparecimento bíblico dos israelitas, reúnem-se para prestar homenagem a Javé, o todo poderoso deus de Israel. Abandonam os rituais pagãos do passado para forjar uma aliança com um único deus, a quem chamaram de YHWH. “Não terá outros deuses além de mim” (Exo 20). Antes disso,

11 Veja JTS, Vol. 2, 1951, pp. 30, 31. LXX.

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os antigos judeus eram pagãos, adoravam vários deuses, dentre eles a deusa-mãe, o símbolo quintessencial da vida e da fertilidade. Foi a deusa-mãe derrotada pelo deus de Israel como a Torá sugere? Ou teria sido suprimida pelos tradutores da bíblia? Nos últimos anos postularam que os antigos israelitas adoraram Asherah e outras divindades ao lado de Javé, o Deus do Antigo Testamento. Agora outros tomaram um passo além e afirmam que a suposta esposa de Javé, Asherah, foi posteriormente retirada da Bíblia por escribas com uma agenda monoteísta.

Existem muitas investigações acerca da existência de Asherah e inclusive achados arqueológicos que poderiam comprovar a sua existência (HESTRIN, 1991; STARKEU, 1934; Discovery, DENVER, 1993; NEUENFELDT, 1999; CROATTO, 2001; KENYON, 1960; OTTERMAN, 2005), todavia, este é um estudo inicial que propõe questões para reflexão. Seus desdobramentos virão em artigos futuros.

CONCLUSÕES PRELIMINARES

A mitologia judaico-cristã, é parte de um conjunto de ideologias que corroboram com a construção e a manutenção hegemônica de um projeto estratégico de poder concisamente estruturado, que ao longo de milênios tem tornado através da cultura, seus dogmas e símbolos, ‘universais e únicos’, funcionando como ferramentas de satisfação e reafirmação do seu próprio ethos em supressão de todas as culturas que não sejam a sua própria.

A xenofobia, aparece nos versículos que fazem parte do livro doutrinário da religião, sendo parte importante da formação de novos fiéis. Não podemos negar que haja nos dados apresentados nesta investigação inicial, elementos importantes que descrevem como eliminar os povos que carregam a marca da maldição. A mesma marca que até os nossos dias é difundida por formadores de opinião e líderes influentes, das religiões de base judaico-cristã. Assim como Feliciano e Fábio de Melo, todos os dias ouvimos casos e exemplos de racismo religioso no Brasil. Infelizmente, o racismo é um elemento estrutura na cultura brasileira e pelos dados apresentados, estamos longe de frear as violências cometidas contra a população afro-descentes e sua cultura. Vivemos além do simples epstemicídio, vivemos o holocausto negro não foi temporal. Nunca sessou desde que as ideologias coloniais começaram a ser constituídas.

Asherah e YHWH eram o par vital, mito fundador, par divino que promove a fertilidade

através de sua união? O culto à Deusa, a dama-do leão, existiu no início da história de Israel, na época de Salomão? Com todas as evidências a favor da deusa, a supressão do culto a Asherah, no ápice do monoteísmo, foi orquestrada pelos autores, padre e escritores do velho testamento. Com medo da influência e do poder da deusa-mãe

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principalmente às mulheres. Estes representavam os ortodoxos, a ala direita, partidos nacionalistas, elitistas, os intelectuais da época, todos homens, representavam o governo, e segundo eles deveria haver apenas um deus. Asherah era uma verdadeira ameaça ao que Deus deveria ser e por isso deveria desaparecer. Apesar do fascínio que as mulheres exerciam aos homens, elas eram invejadas pela capacidade reprodutiva e por sua liberdade sexual. A atitude masculina muito enraizada no mundo antigo considerava as mulheres objeto de prazer. Alguns de seus nomes: Asterate, Asterath, Astarote, Astorate, Asterote, Astorete, Astartes, Astartéia, Asera, Baalat. Filha de Baal, irmã gêmea de Camoesh.

A história, as ideologias, são narrativas humanas, escritas por homens. No ocidente,

os homens são sempre brancos e de origem euro-americana. São estas as mentes que escrevem cada uma das ferramentas ideológicas nas quais somos submetidos.

Este foi um estudo preliminar. A genealogia de Abraão e o primogênito de Sara, a

matrilinearidade, matrifocalidade bíblica e a polemica existência de Lilith, são investigações que estão em andamento.

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