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Recebido 29 out. 2013
Aceito 30 out. 2013
FAMLIAS SIMULTNEAS: UM DILOGO SCIO-JURDICO
rica Vercia Canuto de Oliveira Veras
RESUMO
A famlia essencial ao ser humano, e condio para sua humanizao
e sociabilidade, alm de ser um fenmeno permanente e global. Em
todas as pocas e sociedades sempre existiu alguma espcie de arranjo
familiar, sempre se regenerando e se reconfigurando. nesse contexto
que se insere a discusso sobre essa composio plural da famlia
brasileira, o lugar das famlias simultneas, fazendo uma discusso
entrelaando Direito e Cincias Sociais. O trabalho composto de
dois temas centrais: transformaes nos comportamentos, no
casamento e na famlia, conectando-os a processos mais amplos de
transformao social. Nele sero estudadas as transformaes na
famlia, a capacidade de resilincia da famlia, o valor social da
famlia e o desejo de famlia e, tambm, como ponto central
inevitvel, h uma discusso sobre a monogamia, sob o ponto de vista
da teoria de Engels, das teorias feministas e do direito. A monogamia,
enquanto dogma, se apresenta como o principal empecilho para que se
reconheam as famlias simultneas. Discutem-se a origem, os
fundamentos e a crise do modelo monogmico.
Palavras-Chave: Famlia. Transformaes. Monogamia.
Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Mestranda em Cincias Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutoranda em Direito pela Universitat Politcnica de Valncia / Espanha.
Docente de Direito das Famlias na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Promotora de Justia do Rio
Grande do Norte.
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CONSIDERAES INICIAIS
A famlia essencial ao ser humano, e condio para sua humanizao e
sociabilidade, alm de ser um fenmeno permanente e global. Em todas as pocas e
sociedades sempre existiu alguma espcie de arranjo familiar.
A despeito de sempre existir, e ser, portanto, antiga, a famlia vem passando por
muitas transformaes, de to significativas que so, chegou-se a vaticinar o fim da famlia.
Mas o que se observou foi justamente o contrrio. A famlia revelou-se com imensa
capacidade de regenerar-se e recompor-se. Alm disso, percebeu-se que o desejo de famlia
ainda estava presente nos projetos das pessoas, mesmo sob outras bases e configuradas em
novos modelos.
nesse contexto que se insere a discusso sobre essa composio plural da famlia
brasileira o lugar das famlias simultneas. Como aporte terico, se pretende aproximar o
Direito das Cincias Sociais, com o objetivo de discutir o fato social com a norma aplicada a
respeito.
O trabalho composto de dois temas centrais. No primeiro ponto, faz-se a discusso
sobre as transformaes nos comportamentos, no casamento e na famlia, conectando-os a
processos mais amplos de transformao social. Nele sero estudadas as transformaes na
famlia, a capacidade de resilincia da famlia, o valor social da famlia e o desejo de famlia.
Por fim, e como ponto central inevitvel, h uma discusso sobre a monogamia, sob
o ponto de vista da teoria de Engels, das teorias feministas e do direito. A monogamia,
enquanto dogma, se apresenta como o principal empecilho para que se reconheam as
famlias simultneas. Discutem-se a origem, os fundamentos e a crise do modelo
monogmico.
O que se verifica, todavia, a inevitvel tendncia de reconhecimento dos arranjos
simultneos, em razo, no s da aceitao social, como tambm do grande nmero de
demandas que chegam ao Poder Judicirio, em busca de visibilidade e outorga de direitos.
Nessa medida, a famlia mosaico (com homem, mulher e filhos) apenas mais um
tipo de arranjo familiar, dentre o leque de arranjos possveis, em uma sociedade cada vez mais
marcada pela pluralidade e por dinmicas inovadores, que vo alm do modelo padro.
A histria mostra que a poligamia e a poliandria sempre existiram, de forma mais ou
menos velada. O que h de novo que estes tipos de arranjos esto sendo visibilizados e esto
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sendo objeto de busca de base legal para serem reconhecidos na legislao brasileira. Existem,
inclusive, as famlias poliafetivas, cujos membros possuem poliorientao sexual.
O questionamento do modelo monogmico de famlia e da heterossexualidade como
normatividade tem gerado um sem nmero de possibilidades relativas aos arranjos afetivos,
metaforicamente podendo se apresentar como um caleidoscpio, que se transforma a cada
novo olhar.
nesse contexto que se prope o presente trabalho, propondo o debate e discusso a
respeito da monogamia e a heteronormatividade imposta, com modelos no hegemnicos.
Para Bento (2006), no artigo As famlias que habitam a famlia,
Pesquisadores que estudam a "famlia", para alm dos marcos heterossexual,
se deparam com questes inusitadas, ausentes em estudos tradicionais.
Trnsitos identitrios, deslocamentos, conflitos e rupturas que podem parecer
confusos, existem em profuso nas relaes sociais e comeam a ser eleitos
como temas por cientistas sociais e o primeiro resultado a constatao de
que o conceito de famlia povoado por uma multiplicidade de famlias.
A idealizao da famlia com divises binrias das tarefas a partir das
diferenas sexuais, (ao homem a rua, mulher o lar), a imagem do lar como
espao de conforto espiritual, do lcus interdito aos conflitos e as disputas,
so imagens idlicas que guardam pouca conexo com a realidade e que tem
como funo restringir a noo de famlia aos marcos da heterossexualidade.
O Direito, antes oferecia aos novos modelos de famlia somente a invisibilidade. A
condio de inexistncia foi, ento, substituda pela punio. No intuito de desencorajar a
infidelidade conjugal, o legislador ptrio e o Judicirio convergiram no entendimento de que
as unies constitudas em paralelo a outro casamento ou outra unio estvel consistiam em
formas de concubinato, afastadas do conceito de famlia, cujos efeitos repercutiam apenas na
seara obrigacional. Negando completo reconhecimento enquanto famlia e,
consequentemente, direitos.
A compreenso do processo histrico de transformao dos arranjos familiares,
ligado a uma transformao social maior e mais ampla, como parte integrante desse mesmo
mover, nos conduz discusso sobre os diversos aspectos da monogamia, visto se revelar
com o principal entrave para o reconhecimento social e jurdico das famlias simultneas.
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1 TRANSFORMAES NOS COMPORTAMENTOS, NO CASAMENTO E NA
FAMLIA, VINCULAM-SE A PROCESSOS MAIS AMPLOS DE
TRANSFORMAO SOCIAL
1.1 Transformaes na famlia
O objetivo do presente tpico procurar entender como os comportamentos e
padres heterogneos, flexveis, instveis, plurais, de casamento e de famlia em um
determinado segmento social vinculam-se a transformaes sociais mais amplas, no curso das
quais se redefiniram as prticas de gnero (VAITSMAN, 1994).
Srvulo A. FIGUEIRA (1986) afirma que no podemos nos tornar completa e
plenamente modernos da noite para o dia. O autor diz que carros se modernizam como
tambm os modelos de famlia, sendo possvel trocar de carro sem sentir saudade, adaptando-
se ao novo sem conflitos. O mesmo no acontece com os modelos e os ideais de famlia que
se sucedem rapidamente. Para ele, as pessoas podem se definir como modernas,
ultramodernas, arcaicas, desorientadas... e estes rtulos, ao mesmo tempo, resultam
do processo de mudana social acelerada, so um modo de lidar com ele, mas impedem a
captao de sua dinmica e arquitetura complexas. Segundo o autor, tudo s muda
rapidamente na superfcie. O novo e o moderno convivem com o arcaico e antiquado.
FIGUEIRA (1986) afirma que h grande diferena entre famlia ideal e a famlia
real. Ele relata que na sociedade brasileira, at os anos 50, o tipo de famlia que parecia
prevalecer era o hierrquico. Passados mais de trinta anos, houve mudanas, atravs de um
processo de modernizao, guiado pelo ideal de uma famlia igualitria. Para FIGUEIRA
(1986), alm das vrias causas sociais e polticas por trs deste processo, alm da
nuclearizao e privatizao progressivas da famlia, a ideologia do igualitarismo que parece
ter tido o maior impacto sobre as relaes familiares. Entretanto, repisa o autor, tudo isso se
d no plano ideal, pois a realidade da famlia moderna est longe de ser linear, mostrando-se
ambgua.
Segundo ele, uma parte importante da modernizao da famlia se deve passagem
do ideal hierrquico para o ideal igualitrio. A ideologia igualitarista a responsvel por esta
eroso das fronteiras rgidas entre categorias sociais. FIGUEIRA (1986) assegura que os
discursos no s nos empurram para os ideais igualitrios e individualistas como inibem as
manifestaes do pensamento hierrquico. A modernizao da famlia , para o autor, um
processo complexo que resulta da modernizao dos ideais e das identificaes da dissoluo
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e da criao de categorias classificatrias, da plurificao das aparncias e da psicologizao
dos discursos. Quase no preciso repetir que este processo est longe de ser linear e que seus
resultantes so, portanto, complexos.
O autor defende a ideia de uma modernizao relativa na famlia, que
Se deve ao fato de que a sucesso de ideais no processo de
modernizao, ao ser extremamente rpida, no d aos sujeitos a
oportunidade de se modernizar realmente no seu funcionamento,
profundamente, nos seus contedos e na sua identidade. Preso no
descompasso entre a grande velocidade da modernizao e a grande
inrcia da subjetividade, o nico modo do sujeito conseguir ser
moderno, tentar acompanhar as transformaes, atravs da
modernizao do contedo do comportamento, atravs da
modernizao relativa. (FIGUEIRA, 1986, P. 29)
Conclui FIGUEIRA (1996) que no h uma nova famlia brasileira. O que h a
convivncia do moderno com o arcaico.
Aproxima-se dessa ideia JENI VAITSMAN (1994), quando enfatiza que anlises
apontam os conflitos no processo de transformao da famlia, j que a modernizao no
plano da subjetividade e da famlia seria, muitas vezes, apenas aparente, com a persistncia de
elementos tradicionais coexistindo com comportamentos aparentemente modernos. Enfatiza o
autor que no campo da subjetividade, as mudanas profundas so mais lentas, nem sempre
acompanhando o passo da mudana social, evidenciando-se as dificuldades de se usar a
categoria modernizao na anlise de processos que dizem respeito a um campo subjetivo.
VAITSMAN (1994) relata que, at poucas dcadas, a nica forma aceita de
institucionalizar as relaes afetivo-sexuais era atravs do casamento legal e indissolvel, mas
que hoje, neste campo, a heterogeneidade instituiu-se, ganhou legitimidade social e cultural.
Depois da aprovao do divrcio em 1977, as relaes conjugais no formalizadas
legalmente generalizaram-se. Grande foi o nmero de pessoas que se separaram e que
reconstruram suas relaes conjugais. Alm disso, os casais homossexuais conquistaram
espao, bem como as pessoas que viviam ss, livres do estigma de solteires, as mes
solteiras e os descasados de ambos os sexos que, juntamente com o exerccio simultneo de
alguma atividade remunerada, assumiram a criao dos filhos sem a presena cotidiana de um
parceiro (VAITSMAN, 1994).
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Para o autor, difundiram-se os valores individualistas, antiautoritrios e igualitrios
atravs das transformaes operadas na famlia. Sobre esse marco da absoro de tais valores,
afirma que
Estas transformaes difundiram-se entre homens e mulheres
urbanos, portadores de valores individualistas, antiautoritrios e
igualitrios, que geralmente cursaram a universidade, compartem um
certo discurso e fazem parte de segmentos sociais com uma certa
identidade sociocultural. Nestes segmentos, tornam-se instveis,
frgeis, as normas (at que a morte os separe) e os valores
(felizes para sempre) que organizavam e legitimavam o casamento
e a famlia conjugal desenvolvidos no Brasil urbano a partir das
ltimas dcadas do sculo XIX. A manuteno do casamento e
consequentemente a da famlia subordinou-se satisfao
emocional, princpio que passou a orientar comportamentos e
estimular as pessoas a recusar relaes ntimas sentidas como
insatisfatrias. (FIGUEIRA, 1994)
A famlia conjugal moderna e individualista estruturou-se atravs de uma hierarquia,
de uma diviso sexual do trabalho que impedia o exerccio da liberdade e igualdade de forma
equivalente pelos dois sexos. Mesmo tendo surgido o individualismo como um conjunto de
valores universalistas, conformou-se concretamente como um individualismo patriarcal,
legitimando as relaes hierrquicas entre homens e mulheres, nas esferas pblica e privada.
No sculo XIX, em pelo desenvolvimento da sociedade industrial, a individualidade
assumiria um significado de singularidade, conferido pelo romantismo e pela nova diviso do
trabalho: cada pessoa assume e deveria assumir uma posio que ela e ningum mais pode
preencher. Uma posio que deve ser procurada at ser encontrada. (SIMMEL, 1971)
Com o desenvolvimento da individualidade, ampliou-se o crculo de pessoas que se
tornaram passveis de escolha como parceiros no casamento, ampliando tambm a liberdade
de escolha.
Para VAITSMAN (1994), o individualismo traria as maiores contradies do
casamento moderno, fundado no amor e na livre escolha. Primeiro porque a individualidade
e a complementariedade de cada um ergue barreiras entre os dois, fazendo do outro algo de
inatingvel que determinado pela individualidade. E segundo porque a livre escolha o
ponto fraco do casamento moderno (e, consequentemente, da famlia moderna conjugal), que
por isso mesmo sempre esteve sujeito dissoluo, aprovada ou no pela lei secular ou
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religiosa. Defende que, quanto maior a possibilidade efetiva de escolher, maior o espao par
ao conflito entre o individual e o coletivo se expressar. Acrescenta que
O casamento fundado na concepo moderna de amor singular, eterno
e dirigido a um indivduo nico e insubstituvel, que provoca o
imaginrio social romntico e burgus do perodo de ouro da
modernidade, parece ter ficado para trs. Nas circunstncias histricas
atuais, a noo de eternidade das relaes e dos sentimentos foi
abalada e isto manifesta-se no fato de que l onde o indivduo
encontrava maior estabilidade e segurana, casamentos e famlias
passaram a desfazer-se e refazer-se continuamente.
O tipo moderno de famlia e casamento entrou em crise porque foram
abalados seus fundamentos: a diviso sexual do trabalho e a dicotomia
entre pblico e privado atribuda segundo o gnero. Em vrios lugares
do mundo industrializado, como parte da prpria dinmica da
modernizao que inicialmente as excluiu do mundo pblico, as
mulheres foram aumentando sua participao no ensino superior, nas
atividades profissionais, polticas, sindicais, artsticas e culturais a
partir das ltimas dcadas, redefinindo as fronteiras entre o pblico e o
privado atribudas segundo o gnero. Desempenhando mltiplos
papis na esfera pblica e em suas vidas cotidianas, muitas mulheres
deixaram de restringir suas aspiraes ao casamento e aos filhos.
Desafiaram a dicotomia entre pblico e privado, conquistaram direitos
como cidads, constituram-se como indivduos. O individualismo
patriarcal foi abalado e a igualdade entre homens e mulheres colocou-
se como possibilidade social. Com isso, explodiu o conflito entre o
individual e o coletivo no casamento e na famlia. (VAITSMAN,
1994)
VAITSMAN (1994) concorda com FIGUEIRA quanto afirmao do
individualismo, que levou a uma transformao da famlia hierrquica em famlia igualitria,
onde os papis e atribuies de gnero e gerao estariam com seus contornos cada vez mais
diludos.
Para VAITSMAN (1994), sociologicamente, estas mudanas no significam a
transio de um tipo tradicional de famlia ou casamento para outro moderno, mas, ao invs
disso, sinalizam justamente o esgotamento do tipo moderno de casamento e famlia. Esse
esgotamento est ligado ruptura da dicotomia entre papis pblicos e privados atribudos
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segundo o gnero, que produziu transformaes marcantes no modo como homens e mulheres
passaram a construir suas identidades e a administrar suas relaes de casamento e famlia.
O autor (1994) defende que a famlia tronou-se mais igualitria e as atribuies de
gnero diluram-se. Contudo, argumenta que a famlia hierrquica no se tornou moderna,
pois foi justamente a famlia moderna e hierrquica que nas classes mdias urbanas veio
sofrer a concorrncia cada vez maior de novas formas de famlia. E acrescenta que
Com a industrializao e a separao entre a unidade domstica e
atividades empresariais, a diviso sexual do trabalho na sociedade
reorganizou-se. A famlia privatizou-se, com a consequente excluso
das mulheres das prticas que, na construo das sociedades
modernas, passaram a ser exercidas numa esfera pblica, que se
transformou na medida no s de poder prestgio e riqueza, mas
tambm da cidadania.
A gnese das sociedades modernas e de sua forma tpico-ideal de
famlia, aquela formada pelo homem provedor financeiro, a me dona-
de-casa e os filhos solteiros vivendo sob um mesmo teto, foi marcada
pela dicotomia entre papis pblicos e privados atribudos segundo o
gnero. Estas relaes estruturaram o padro que ficou conhecido
como famlia conjugal moderna e que, por ter como um de seus
princpios a livre escolha do cnjuge, tambm foi associado ao
individualismo e s ideias de liberdade e igualitarismo.
A teoria sociolgica, sobretudo a de tradio funcionalista, ao vincular
a famlia conjugal moderna aos processos de modernizao e
industrializaes, considera-a como uma instituio igualitria.
(VAITSMAN, 1994)
Com efeito, o aprofundamento da modernizao, da industrializao e da
urbanizao, as mulheres redefiniram sua posio na sociedade, minando a dicotomia entre
pblico e privado atribuda segundo o gnero. VAISTAM (1994) no aceita falar em um
movimento de modernizao da famlia, mas sim de crise e transformaes da tpica famlia
moderna. Com isso, os conflitos entre os valores igualitrios e as prticas hierrquicas
presentes na estrutura da famlia conjugal moderna afloraram e ela entrou em crise.
O autor afirma que no pertinente falar em modernizao da famlia quando as
relaes sociais que definem a famlia conjugal moderna so substitudas por outros tipos de
relaes, que passam a institucionalizar-se sob outras formas. Nessa vertente, a modernizao
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da famlia vinculou-se historicamente industrializao, que a retirou para o mundo privado,
dando-se o significado do ncleo formado por pai/me/filhos.
O padro de famlia conjugal moderna no desapareceu totalmente, mas certamente
entre os seguimentos das classes mdias onde se considera que a famlia tenha se
modernizado, a famlia moderna vem desaparecendo, substituda pelas relaes com novos
contedos e institucionalizando-se sob novas formas. (VAITISMAN, 1994)
Quase que instintivamente, torna-se oportuno indagar se essas novas formas e com
contedos de casamento e famlia, que vem difundindo e ganhando legitimidade entre
segmentos das classes mdias urbanas, e que se assemelha com diferentes reas do
pensamento, da arte e da cultura, pode ser caracterizada como uma tendncia ps-moderna.
A ps-modernidade traz a heterogeneidade, a pluralidade, a flexibilidade, a
instabilidade e a incerteza como regra, tanto na literatura, quanto na arquitetura, na arte e no
discurso filosfico, nas prticas econmicas e polticas, assim no casamento e na famlia
VAITSMAN (1994) defende que no se trata da substituio de um tipo dominante
de famlia a conjugal moderna por outro tipo, a ps-moderna uma vez que a famlia
marcada pela dicotomia entre papis no desapareceu, nem foi substituda por outro tipo de
famlia que possa ser chamada ps-moderna.
Na verdade, pode-se falar em famlia e casamento em situao ps-moderna,
justamente em razo da inexistncia de um modelo dominante, seja no que diz respeito s
prticas, seja enquanto um discurso normatizador das prticas. A norma a inexistncia de
um padro dominante.
DILNOT (apud VAITSMAN, 1994) define o ps-moderno como um processo de
interligao de fronteiras entre tipo de prticas que convencionalmente so considerados
como inteiramente diferentes.
GIDDENS (apud VAITSMAN, 1994) no v as ltimas dcadas do sculo XX como
ps-modernidade, mas sim como alta modernidade, quando as consequncias da modernidade
se radicalizaram e universalizaram velozmente, unificando e desagregando o mundo, e
esvaziando-se o espao e o tempo.
As declaraes sobre o fim da famlia so julgadas obsoletas pelos estudiosos
(ROUDINESCO, 2003), como tambm hostilizam o familiarismo redescoberto, que indica
no a ruptura de uma ordem estabelecida, mas o desejo de integrao a uma norma outrora
infame e fonte de perseguio.
Se antes, tudo o que no fosse casamento heterossexual e monogmico estaria
excludo da normatividade, agora, com a transformao dos modelos de famlia, tudo aponta
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para um acesso esperado para os que estavam fora da norma em razo das suas prticas
sexuais. Nesse contexto, Roudinesco (2003) afirma que o temor dos conservadores inverteu-
se, no sentido de se incomodarem com o fato de prticas sexuais marginalizadas quererem
submeter-se norma.
[...] o grande desejo de normatividade das antigas minorias
perseguidas semeia problemas na sociedade. Todos temem, com
efeito, que no passe do sinal de uma decadncia dos valores
tradicionais da famlia, escola, nao, ptria e, sobretudo, da
paternidade, do pai, da lei do pai e da autoridade sob todas as formas.
Como consequncia, no mais a contestao do modelo familiar que
incomoda os conservadores de todos os lados, mas, ao contrrio, a
vontade de a ele se submeter.
1.2 A capacidade de resilincia da famlia
A famlia encontra-se em constantes mudanas e transformaes, acompanhando o
movimento e dinamismo prprios das relaes sociais. Embora muitos tenham vaticinado a
sua extino, o que se observa uma grande capacidade de transformar-se e reconfigurar-se.
Petrini (2003) assegura a capacidade de regenerar-se da famlia e o seu carter
permanente. Em suas palavras,
No so poucos os estudiosos que afirmam que, no meio das
turbulncias, a famlia empenha-se em reorganizar, na sociedade ps-
moderna, aspectos da sua realidade que o ambiente sociocultural vai
desgastando. Reagindo aos condicionamentos externos e, ao mesmo
tempo, adaptando-se a eles, a famlia encontra novas formas de
estruturao que, de alguma maneira, a reconstituem, sendo
reconhecida como uma estrutura bsica permanente da experincia
humana e social.
I.3 O valor social da famlia
Afirma-se ser a famlia, no decorrer da evoluo histrica, matriz no processo
civilizatrio, como condio para humanizao e socializao das pessoas. Petrini (2003)
defende a experincia da famlia como fonte de humanizao e de socializao.
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Embora assumindo diversas configuraes, e transformando-se constantemente ao
logo do tempo, a famlia permanece como fundamento da sociedade, na medida em que
podem ser observados os caracteres de constncia no tempo e universalidade. Ela um
fenmeno universal presente em todo e qualquer tipo de sociedade (Lvi- Strauss apud
Petrini, 2003).
Segundo Petrini (2003), a famlia uma forma constitutiva da espcie humana. E
acrescenta, como argumento que:
Muitos estudiosos observam que a estrutura familiar continua presente
nas diversas culturas, em todos os perodos histricos, como forma de
relao social constitutiva da espcie humana. Esta encontra, no
ambiente da famlia, no s os elementos favorveis sobrevivncia,
mas as condies essenciais para ao desenvolvimento e a realizao da
pessoal. Alguma forma de agregao familiar pode ser reconhecida
em todas as culturas e em todas as pocas histricas.
No espao da vida familiar, verificam-se experincias humanas bsicas que duram
no tempo, independente da vontade das pessoas envolvidas, como o parentesco, a ligao
entre as geraes (Petrini, 2003).
1.4 O desejo de famlia
Roudinesco (2003) declara que, mesmo diante de tantas transformaes e
reconfiguraes, nada disso impede que a famlia seja, atualmente, reivindicada como nico
valor ao qual ningum quer renunciar. Segundo a autora (Roudinesco, 2003), ela amada,
sonhada e desejada por homens, mulheres e crianas de todas as idades, de todas as
orientaes sexuais e de todas as condies.
Com o semelhante pensamento, Petrini (2003) afirma que a investigao cientfica
mais recente, no Brasil, e no exterior, acumula dados que descrevem um enfraquecimento das
relaes familiares, mas identifica tambm indcios e evidncias de uma surpreendente
vitalidade do ideal familiar.
Luigi Giussani (1993) define como senso religioso o conjunto de exigncias
elementares de justia, de liberdade, de verdade, de felicidade, que se constituem como o
ncleo mais originrio do homem e que emerge como desejo. No mesmo sentido, Micea
Eliade (1978) elaborou o conceito de homo religiosus. Tanto nas definies de senso
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religioso quanto nas de homo religiosus, o desejo de viver um arranjo familiar est inserido,
como uma necessidade e busca do ser humano.
2 QUESTIONAMENTOS SOBRE A MONOGAMIA
2.1 Teoria de Engels e a monogamia
Segundo Engels (1991), o surgimento da propriedade individual deu causa ao
nascimento e proliferao de vrios institutos: o casamento monogmico, a prostituio, o
adultrio. Ainda, para o mesmo autor, a prostituio um dos pilares que do base de
sustentao ao sistema monogmico de casamento. Silva (1996), seguindo o mesmo
entendimento, assevera que [...] a prostituta sempre teve dois papis importantssimo na
sociedade: acalmar o nimo dos celibatrios, prolongar os casamentos instveis e, at mesmo,
os estveis. E conclui: [...] a prostituio funciona como um mecanismo estabilizador do
sistema monogmico de casamento [...].
A expresso famlia, conforme Engels, foi inventada pelos romanos para designar
um novo organismo social, cujo chefe mantinha sob seu poder a mulher, os filhos e certo
nmero de escravos, com o ptrio poder romano e o direito de vida e morte sob todos eles. J
a famlia monogmica, que nasce no perodo de transio entre a fase mdia e superior da
barbrie, expresso da grande derrota histrica do sexo feminino em todo o mundo, nas
palavras de Engels.
A monogamia, segundo esse modelo, baseia-se no predomnio do homem, o qual tem
como finalidade procriar filhos cuja paternidade seja indiscutvel. Os laos conjugais ficaram
mais slidos, cabendo somente ao homem romp-los, a quem, igualmente, se concede o
direito infidelidade. Quanto mulher, exige-se que guarde uma castidade e fidelidade
conjugal rigorosa.
A monogamia aparece na histria sob a forma de escravizao de um sexo pelo
outro. Para Engels, a monogamia foi um grande progresso histrico, mas, ao mesmo tempo,
iniciou, juntamente com a escravido, as riquezas privadas.
A monogamia, portanto, de modo algum fruto do amor sexual individual e no se
baseia em condies naturais, mas econmicas, isto , o triunfo da propriedade privada sobre
a propriedade comum primitiva.
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Engels argumenta que as mais diversas formas de famlia poligmica (os harns do
Oriente, as famlias mrmons etc.) nada mais so que a institucionalizao da mesma
monogamia. Para ele, nesses modelos poligmicos h um nico parceiro para a mulher e
vrias mulheres para um s homem. Esse argumento serve para fundamentar a ideia central da
sua tese de que a monogamia e o patriarcalismo so inseparveis.
Entretanto, segundo crtica de Lessa (2012), o que se poderia esperar, como corolrio
da argumentao de Engels que o comunismo fosse a superao da monogamia, tal como
defende a superao do Estado, da propriedade privada e das classes sociais. Mas no foi essa
posio adotada por Engels. No esta, todavia, a sua posio. Para ele, o que, sem sombra
de dvida, vai desaparecer da monogamia o conjunto dos caracteres que lhe foram
impressos pelas relaes de propriedade a que deve sua origem. Esses caracteres so, em
primeiro lugar, a preponderncia do homem e, depois, a indissolubilidade do matrimnio.
(Engels, 1979)
Em suma, Engels defende que o comunismo superaria a famlia monogmica, mas
no a monogamia. E para sustentar sua argumentao, explica sua concepo de qual seria a
essncia do amor sexuado individual: () desde que o amor sexual , por sua prpria
natureza, exclusivista embora em nossos dias esse exclusivismo s se realize plenamente
sobre a mulher , o matrimnio baseado no amor sexual ser, por sua prpria natureza,
monogmico. (Engels, 1979)
Lessa se posiciona contrariamente Engels e afirma que a monogamia desaparecer
junto com a propriedade privada, por ser a expresso da opresso patriarcal na organizao
familiar. Ele acredita que a monogamia surge e se desenvolve como expresso histrica do
patriarcalismo, sendo este o seu contedo histrico.
A defesa pela permanncia da monogamia, por Engels, segundo Lessa, se deve ao
fato de que ele acreditava que ela excluiria o amor homossexual, que para Engels era um "feio
vcio" e "repugnante prtica", consequncia da contaminao dos homens pela decadncia das
mulheres trazida pela famlia monogmica.
Nessa linha de raciocnio, Lessa defende que
[...] seria razovel postularmos que hoje os indivduos revelam a
capacidade de amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo. E isto vale
para as mulheres e para os homens: no uma consequncia imediata
do patriarcalismo, como a prostituio. As opes e as dolorosas
escolhas a que so foradas as pessoas que, na confluncia de dois
grandes amores, tm que abandonar um deles pelo outro, uma
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experincia muito mais generalizada do que reconhecida se as obras
de arte continuarem sendo um reflexo adequado do tpico socialmente
vivido. Tal como em A era da inocncia de Edith Wharton, a tragdia
aqui a dolorosa escolha imposta aos que amam (dos dois grandes
amores, um dos dois deve ser vivido sob a forma de ser deixado para
trs) e, a seguir, o fato de que tal escolha no pode deixar de ter
consequncias negativas para o futuro desenvolvimento do amor que
se decidiu preservar se no por outro motivo, pela simples razo de
promover o embrutecimento, um rebaixamento do desenvolvimento
afetivo, de quem coube a dolorosa escolha. Dois grandes amores, tal
como dois fachos de luz, no se anulam reciprocamente: talvez uma
sociedade que possibilite aos indivduos amarem tanto quanto forem
capaz faa com que dois amores concomitantes potencializem-se
mutuamente. E que, por esta mediao, amores concomitantes tornem
no apenas mais rica cada relao amorosa, como tambm mais ricos,
capazes de emoes mais elevadas, os indivduos neles envolvidos.
2.2 Teorias Feministas e Monogamia
Com efeito, a exigncia social da fidelidade feminina, com o paradigma ocidental da
monogamia, a nada mais que mais uma forma de dominao do feminino pelo masculino e
expresso evidente do controle da sexualidade feminina, no estreito limite da
heteronormatividade.
Certamente para as tericas do patriarcado, a exemplo de Maria Luiza Heilborn
(1991), no estudo Gnero e Hierarquia A Costela de Ado Revisitada, h respaldo para a
explicao e manuteno do paradigma da monogamia, diante da superficial e discutvel
afirmao da pertinncia da teoria da hierarquia, como forma de equacionar as questes de
gnero.
A autora se fundamenta na teoria do antroplogo francs Luis Dupont (teoria da
hierarquia e seus corolrios) que se prope sistematizar as razes pelas quais h uma
constante estrutural de assimetria na montagem da relao entre os gneros. Para Heilborn
(1991), o modelo ocidental de sociedade, voltado singularidade, nega o princpio social
fundamental, que a hierarquia. Ela assegura, apoiando-se no pensamento de Dupont, que
modernos se insurgem (contra o princpio hierrquico), mas justamente ele que nos d a
compreenso da natureza dos limites e das condies de realizao igualitarismo moral e
poltico ao qual os modernos esto ligados.
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Nessa perspectiva, a teoria da hierarquia rege-se pela ideia de significao da
totalidade em relao ao homem, e sendo a mulher apenas parte desse todo (costela), haveria
evidente hierarquia de gnero.
Fcil seria conformar e reforar a manuteno da monogamia frente ao pensamento
da teoria da hierarquia, segundo a qual a fidelidade somente exigida da mulher, sendo a sua
sexualidade vigiada e reprimida.
Por outro lado, faz-se a anlise e confrontao da teoria da performatividade, de
Judith Butler (2003), em simetria com Berenice Bento (2011) com a teoria queer, e com o
pensamento de Gayle Rubin (2003), com a proposta do sistema sexo/gnero, alm de Eve
Kosofsky Sedgwick (1993), com a epistemologia do armrio, Joan Scott (1989), com a
teoria de Gnero, uma categoria til para anlise e Lia Zanota Machado (1988), com a
proposta metodolgica de desnaturalizao do gnero e desconstrucionismo.
Poderia um enunciado performativo ser bem-sucedido se sua formulao no se
repetisse em um enunciado "codificado"?. Com essa indagao, Judith Butler (2003)
questiona em que medida o discurso adquire a autoridade para produzir o que nomeia, atravs
da citao das convenes da autoridade. De certo modo, como poderia o discurso ser tornado
vlido quando no h uma codificao, uma referncia?
Segundo ela, a sexualidade humana resultante do processo de materializao da
norma construda socialmente, assegurando que as normas regulatrias materializam o sexo e
produzem essa materializao atravs de uma reiterao forada destas normas.
Judith Butler (2003) prope o conceito de performatividade, entendido como o poder
reiterativo do discurso para produzir os fenmenos que ele regula e constrange. Para a autora,
as normas regulatrias do "sexo" trabalham de uma forma performativa para constituir a
materialidade dos corpos e, mais especificamente, para materializar o sexo do corpo, para
materializar a diferena sexual a servio da consolidao do imperativo heterossexual.
Porm, a autora adverte que essa materializao dos corpos nunca completa, j que
no h uma conformao completa s normas pelas quais sua materializao imposta. Judith
Butler (2003) afirma que, na verdade, so as instabilidades, as possibilidades de
rematerializao abertas que colocam em questo a fora hegemnica daquela mesma lei
regulatria. Atravs das fissuras na norma regulatria, aparecem outras possibilidades de
materializao.
Os sujeitos so formados pela matriz excludente da heterossexualidade. A fissura
produz os seres abjetos, que considerado como o no sujeito, o que est na zona inabitvel
da vida social, restando a margem como ambincia.
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Os seres abjetos no so invisveis. Eles so vistos e ignorados, mas so
continuamente vigiados.
Para Judith Butler (2003), negar e excluir o ser abjeto construir o sujeito. A
identificao com a abjeo ser persistentemente negada.
Em virtude dessa reiterao que produz o efeito naturalizado do sexo que fossos
e fissuras so abertos e podem ser vistos como as instabilidades constitutivas dessas
construes, como aquilo que escapa ou excede a norma.
Judith Butler (2003) afirma que as desidentificaes coletivas propem facilitar
uma recontextualizao da questo de se saber quais corpos pesam quais corpos ainda devem
emergir como preocupaes que possam ter um peso crtico.
A autora contrria posio que o gnero algo que o indivduo revela, descobre.
Afirma que se o gnero construdo, ele no necessariamente construdo por um eu ou
por um ns que se coloca antes daquela construo. No fica claro que possa haver um eu
ou um ns que no tenha sido submetido, que no tenha sido sujeitado ao gnero, onde a
generificao construda, entre outras coisas, pelas relaes diferenciadoras pelas quais os
sujeitos falantes se transformam em ser.
A questo no mais "como o gnero constitudo como uma certa interpretao do
sexo" mas, ao invs disso, "atravs de que normas regulatrias o prprio sexo
materializado?"
Com efeito, a monogamia uma norma regulatria que tem por finalidade o
funcionamento da hegemonia heterossexual com ascendncia masculina, a fim de considera-la
como legitimamente vivel. Essa materializao da norma na formao corporal, segundo
Judith Butler (2003), produz um domnio de corpos abjetos, um campo de deformao, o qual,
ao deixar de ser considerado como plenamente humano, refora aquelas normas regulatrias.
O que, na abordagem apresentada no presente trabalho, produz o ser abjeto do poliamorismo
ou famlias simultneas.
No mesmo sentido, Berenice Bento (2011), propondo a disjuno entre o mundo
plural e a poltica binria. A autora indaga seria possvel operar o mundo da poltica a partir
do marco da diversidade, da diferena.
Berenice Bento (2011) revela que h evidente e radical disjuno, j que no mundo
das relaes sociais h pluralidade, enquanto que, na esfera poltica, tudo se passa como se a
nica forma eficaz de mudar uma dada conjuntura acionando a mquina binria.
Com razo, a autora pe em relevo que, enquanto no mundo da poltica a nfase est
na identidade, nas pesquisas, o que salta aos olhos a diferena.
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Nessa linha de pensamento, Berenice Bento (2011) faz questionamentos sobre quem
faz cincia e quem faz poltica. Ela denuncia que a estratgia mais poltica de construir o
mundo imagem e semelhana de determinados interesses imersos no discurso cientfico, da
aparente neutralidade cientfica. Foi nesse saber cientfico que se fundamentaram para
perseguir gays e lsbicas
Nesse contexto, as teorias e polticas queers propiciaram conflitos e fissuras nas
questes de gneros e sexualidades. Entretanto, Bento adverte que no podemos falar em
estudos queers como um todo homogneo, assegurando que h pontos de unidade, como, por
exemplo: a crtica concepo de sujeito herdado do iluminismo; a impossibilidade de
analisar o corpo s margens dos dispositivos de poder que produzem a naturalizao das
identidades; a ideia de que no existe uma essncia masculina e feminina, o gnero s pode
ser compreendido quando remetido s prticas performatizadas; a crtica ao binarismo.
Nessa mesma perspectiva, Eve Kosofsky Sedgwick (1993), no texto A
epistemologia do armrio, afirma que uma estrutura narrativa to elstica e produtiva no
afrouxar facilmente seu controle sobre importantes formas de significao social.
O texto fala de homossexualidade (o armrio gay), e sobre a insupervel
confrontao entre revelar ou no a condio. No entanto, o estudo pode ser utilizado para
tentar fornecer um aparato terico ao tema do presente trabalho, a partir da discusso sobre o
que espao pblico e onde se situa o espao privado.
A autora traz a discusso sobre duas decises importantes da Corte Americana, em
que houve o Poder Judicirio teve a oportunidade de se pronunciar se a sexualidade seria
assunto de relevncia pblica ou se estava no espao privado da vida humana. Em especfico,
se a revelao da homossexualidade tinha alguma coisa a ver com interesse pblico ou a
ningum, alm do prprio protagonista, interessava. E a deciso da Suprema Corte foi no
sentido de que no interessava a ningum o que ele fazia, que no mesmo: se a
homossexualidade, por mais densamente adjudicada que seja, no deve ser considerada
questo de interesse pblico, na opinio vinculante da Suprema Corte ela tampouco subsiste
sob o manto do privado.
Sedgwick (1993) afirma que acredita que
[...] todo um conjunto das posies mais cruciais para a contestao do
significado na cultura ocidental do sculo XX est consequente e
indelevelmente marcado pela especificidade histrica da definio
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homossocial/homossexual, particularmente, mas no exclusivamente,
masculina, desde mais ou menos a virada do sculo.
Essa revelao conforma-se com o pensamento do presente trabalho, na medida em
que a monogamia, como produto da cultura ocidental, somente pode ser contestada,
questionada, a partir da discusso sobre a sexualidade e a dominao masculina.
nessa mesma vertente que Gayle Rubin (2003) se prope a problematizar a questo
de gnero, com as diversas teorias, na tentativa de explicar a sujeio da mulher e a tentativa
de domestic-la (sistema sexo/gnero), e coloc-la no modelo de casamento monogmico.
No texto El Trfico de Mujeres: Notas sobre La Economia Poltica del Sexo, a
partir da obra de Lvi-Strauss, sobre as Estruturas Elementares do Parentesco, Rubin (2003)
busca explicar como se d a troca e o trfico de mulheres entre os diversos grupos, para
formar a famlia.
Nesse sentido, Rubin (2003) afirma que toda sociedade tem um sistema sexo/gnero
uma srie de arranjos pelos quais a matria-prima biolgica do sexo humano e da procriao
moldada pela interveno humana, social.
Os sistemas de parentesco variam enormemente de uma cultura para outra. Eles
contm todo tipo de normas desconcertantes que determinam com quem uma pessoa pode ou
no pode se casar.
A obra de Lvi-Strauss (1982) uma tentativa, feita no sculo XX, de desenvolver o
projeto do sculo XIX de entender o casamento humano. Na obra, o casamento visto como
uma imposio da organizao cultural sobre os fatos da procriao biolgica, dando nfase
sexualidade na sociedade humana.
Lvi-Strauss (1982) entende que a essncia dos sistemas de parentesco reside na
troca de mulheres entre homens e, com isso, constri uma teoria implcita da opresso sexual.
Ele afirma que o tabu do incesto deve ser entendido como um mecanismo para garantir que
essas trocas se realizem entre famlias e entre grupos diferentes.
A um s tempo, questiona-se se o incesto mecanismo para garantir que a troca de
mulheres se realizem em famlias de grupos diferentes, a monogamia mecanismo para
garantir o que?
Certamente, a garantia da certeza do parentesco consanguneo, evidenciado na
paternidade certa.
Troca de mulheres uma maneira sinttica de expressar o fato de que as relaes
sociais de parentesco determinam que os homens tenham certos direitos sobre as mulheres e
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que as mulheres no tm os mesmos direitos nem sobre si mesmas nem sobre seus parentes de
sexo masculino. Nesse sentido, a troca de mulheres revela uma percepo profunda de um
sistema no qual as mulheres no tm direitos plenos sobre si mesmas.
Para Rubin (2003), se Lvi-Strauss tem razo em ver a troca de mulheres como um
princpio fundamental do parentesco, a subordinao das mulheres pode ser vista como um
produto das relaes por meio das quais sexo e gnero so organizados e produzidos. A troca
de mulheres um primeiro passo na construo de um conjunto de conceitos com os quais se
podero descrever os sistemas sexuais.
Na continuidade da anlise sobre as teses de Lvi-Strauss, Rubin (2003) destaca que
a explicao da estrutura lgica subjacente toda anlise do parentesco, leva a um nvel mais
geral de pensamento acerca da organizao social do sexo baseado em gnero
obrigatoriedade da heterossexualidade e represso da sexualidade da mulher.
Rubin (2003) conclui que gnero uma diviso dos sexos imposta socialmente. um
produto das relaes sociais e de sexualidade. Os sistemas de parentesco baseiam-se no
casamento. Por isso, transformam pessoas do sexo masculino e pessoas de sexo feminino em
homens e mulheres, sendo que cada um uma metade incompleta que s pode completar-
se unindo-se outra. Para ela, o parentesco encoraja a heterossexualidade.
Em nuas palavras, o gnero imposto aos indivduos como forma de o casamento ser
garantido. Obviamente, o casamento heterossexual e monogmico.
por isso mesmo que, segundo Rubin, a monogamia uma forma de opresso da
sexualidade feminina, s reforando o sistema de parentesco aludido por Lvi-Strauss.
No pensamento de Joan Scott (1989), em Gnero, uma categoria til para anlise,
gnero importante para problematizar o lugar da mulher na relao com o homem, j que
tece crticas ao patriarcalismo, ao feminismo marxista e s teorias psicanalticas. A autora
afirma que gnero tem uma histria. E, para ela, o uso do conceito de gnero coloca nfase
sobre todo um sistema de relaes que pode incluir o sexo, mas que no diretamente
determinado pelo sexo nem determina diretamente a sexualidade.
A autora afirma que no campo das cincias humanas e da crtica, na linha ps
estruturalista, que a discusso de gnero toma uma direo de categoria de anlise. Assim, na
definio de gnero, Scott preconiza ser elemento constitutivo das relaes sociais, baseado
nas diferenas entre os sexos, e forma de significar as relaes de poder.
E no campo das relaes de poder que se discute o paradigma ocidental da
monogamia, como forma de opresso do sexo feminino. Para Scott (1989),
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S podemos escrever a histria desse processo se reconhecermos que homens
e mulheres so, ao mesmo tempo, categorias vazias e transbordantes. Vazias
porque elas no tm nenhum significado definitivo e transcendente;
transbordantes porque, mesmo quando parecem fixadas, elas contm dentro
delas, definies alternativas, negadas ou reprimidas.
O pensamento de Lia Zanota Machado (1988), com a proposta metodolgica de
desnaturalizao do gnero e desconstrucionismo, tambm se conforma com essa linha
terica. Para a autora, a metodologia desconstrucionista, aliada crtica foucaltiana do poder,
hermenutica e descrio densa, tal como elaboradas e combinadas pelas pesquisas de
gnero e pelas pesquisas feministas, foi capaz de produzir a desnaturalizao metodolgica de
gnero.
Em linhas conclusivas, mas no com a pretenso de esgotar um tema to instigante e
desafiador, que se afirma que a teoria queer atua na diferena sexual para descontruir. um
processo de desnaturalizao do gnero (no algo na natureza, pensa nas identidades sexuais
e como essa identidade naturalizada).
Com isso, as teorias queers tentam explicar a opresso da mulher, j que a
sexualidade no da ordem da natureza, mas da ordem do poder. Se por um lado, s se pode
entender o que gnero se acessar as discusses sobre relaes de poder, por outro, pode-se
ter uma compreenso do gnero na fico da diferena sexual. O gnero enquanto uma norma,
gnero enquanto performace. Isso porque no h uma essncia anterior prtica. preciso
reiterar a norma de gnero para se tornar homem ou mulher. Os sujeitos, para serem
considerados humanos, obedecem a uma regra que tem um corpo como fundante.
2.3 Direito e Monogamia
...pois ao Direito no dado sentir cimes pela parte supostamente
trada...
Ayres Brito (Ministro do Supremo Tribunal Federal)
Nos dias atuais, esto desaparecendo os elementos necessrios para a predominncia
da monogamia. Se, no pensamento de Engels, a monogamia tem lugar na famlia
matrimonializada, verifica-se um declnio da importncia do casamento oficial. Essa
realidade, aliada a um aumento significativo do nmero de separaes e divrcios, com a
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experincia do casamento-rompimento-recasamento, torna ntida uma maior preferncia pelas
unies livres e surgem no cenrio outros arranjos familiares menos usuais.
Com efeito, as unies livres proporcionam novos pactos conjugais, tambm mais
livres da interferncia do Estado e dos regulamentos legais. Entretanto, no se pode negar que
o valor jurdico dado monogamia tem reflexo direto e imediato no reconhecimento do
poliamorismo.
Nesse contexto, h um nmero significativo de autores do direito que elencam a
monogamia como um princpio do Direito das Famlias, ou seja, como parte de um ncleo
intangvel da vida conjugal. Ao mesmo tempo, a monogamia, assim considerada enquanto
princpio jurdico, tem sido corriqueiramente utilizada na defesa da impossibilidade do
reconhecimento das unies simultneas como forma de famlia.
impossvel negar que os valores monogmicos encontram-se arraigados
profundamente nas sociedades ocidentais. Uma prova clara dessa afirmao a de que no h,
atualmente, qualquer ordenamento jurdico nos pases do Ocidente que aceite a poligamia ou
poliandria como formas de constituio de famlia.
Neste tpico, no entanto, no se pretende investigar acerca das origens culturais,
polticas ou religiosas que culminaram com a disperso dos valores monogmicos em nossa
sociedade, mas sim discutir se a monogamia consiste, verdadeiramente, em princpio
juridicamente tutelado, comando normativo, bem como acerca das consequncias da sua
superao como dogma estruturante do Direito das Famlias aplicadas ao caso especfico das
unies simultneas.
Explica Pereira (2004) que a monogamia se refere a um modo de organizao da
famlia conjugal que encontra como contraponto o reconhecimento jurdico de uma relao
extraconjugal simultnea quela j existente, seja ela paralela a um casamento ou a uma unio
estvel. Para o autor, o fato de existirem relacionamentos adulterinos fora do ncleo
conjugal no se incompatibiliza com o sistema monogmico, desde que estes relacionamentos
no obtenham a tutela jurdica, isto , no sejam aceitos como se famlias fossem.
A poligamia e a poliandria, nesse sentido, se caracterizariam pela compatibilizao
entre mais de um ncleo conjugal, composto por um membro em comum. A infidelidade,
nesses casos, tambm poderia se fazer presente quando o cnjuge ou companheiro mantivesse
relaes conjugais com outrem alm do nmero de cnjuges previsto no ordenamento
jurdico.
J para Dias (2011) a monogamia no configura um princpio estatal do Direito das
Famlias, mas sim uma regra que se limita proibio da coexistncia entre suas relaes
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matrimonializadas, isto , no atingiria as situaes de simultaneidade entre duas unies
estveis ou uma unio estvel e um casamento.
Faria-se refletida, pois, na vigncia do crime previsto no artigo 235 do Cdigo Penal,
que tipifica como crime a conduta de contrair, algum, sendo casado, novo casamento
(caput), ou ainda, a de contrair casamento com pessoa j casada, se conhecida essa
circunstncia (Pargrafo 1).
Argumenta a referida terica que a Constituio no contempla o sistema
monogmico enquanto princpio, tanto que rejeita a discriminao dos filhos advindos de
relaes extraconjugais.
A monogamia seria, sob tal tica, funo ordenadora da famlia, decorrente do
triunfo da propriedade privada e de um conjunto de regras morais, interesses antropolgicos e
psicolgicos, despidos de qualquer valor jurdico.
A orientao que se mostra mais consentnea com as novas diretrizes do Direito, no
entanto, a de Silva (2012). Para este autor, a imposio da monogamia como princpio
estruturador do Direito de Famlia um discurso aprisionado em lugar comum.
Ele consequncia da construo poltica e histrica da dominao masculina,
referendada pelo direito cannico e, posteriormente, confirmada pelo Cdigo Civil, atravs de
diversos dispositivos legais, que objetivam punir patrimonialmente o cnjuge que
descumprir o dever de fidelidade apregoado pelo artigo seu 1.566, inciso I.
Trata-se, em diferentes termos, de uma principiologia de excluso, pois com
fundamento no to famigerado princpio da monogamia que a produo legislativa
infraconstitucional e a sua interpretao pelos Tribunais tem renegado ao mundo do no
direito e da invisibilidade jurdica diversas pessoas e arranjos familiares. A permanncia da
caracterizao do concubinato em nosso ordenamento o maior exemplo dessa poltica de
excluso social.
No entanto, refora aquele jurista, a monogamia no subsiste enquanto princpio
juridicamente relevante quando colocada em prova frente tbua axiolgica dos princpios
constitucionais da dignidade humana, da solidariedade, da igualdade, da liberdade e da
democracia (SILVA, 2012, p. 15).
No h como no dar guarida ao posicionamento do autor. A constituio
monogmica de famlia representa apenas uma forma de convivncia humana. parte do
todo, parcela da miscelnea de arranjos afetivos que hoje podem ser encontrados em uma
sociedade plural como a nossa.
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Consider-la como princpio estruturante de nosso arcabouo legal o mesmo que
afastar da tutela do Direito das Famlias1 toda uma gama de outras formas de convivncia que
nutrem os mesmos laos de afetividade to caractersticos do conceito constitucional de
famlia.
, portanto, forma de discriminao, que tem em suas razes mais profundas valores
religiosos e polticos carecidos de juridicidade, devendo ser, por isso, retirada do ordenamento
jurdico por violar diretamente o princpio da igualdade ou da no discriminao, arrolado
pelo artigo 3, inciso IV, da Constituio Federal, como um dos objetivos da Repblica
Federativa do Brasil.
Com fundamento no princpio da monogamia, doutrina e jurisprudncia tem
tratado o concubinato e as unies simultneas como relaes de fato, capazes de produzirem
efeitos apenas no campo obrigacional, afastados da proteo familiarista (FARIAS;
ROSENVALD, 2009).
Este tratamento, consoante j destrinchado no tpico anterior, reduz os componentes
desses arranjos familiares a meros scios de uma sociedade empresria. Afasta da
possibilidade de concesso de direitos alimentcios, previdencirios ou mesmo sucessrios
para pessoas que conviveram com outras em um ambiente familiar. Como negar, ento, que
os conviventes em simultaneidade tem tido a sua dignidade e a sua liberdade reiteradamente
ofendidas?
clarividente que a monogamia, quando elevada ao carter de princpio
estruturante do Direito das Famlias, no se compatibiliza com o sistema constitucional
fundado na igualdade, na afetividade, solidariedade e liberdade, como bem defendido por
Silva (2012).
A monogamia, nessa perspectiva, vive uma verdadeira crise em um meio de
tolerncia e convivncia harmnica com valores culturais plurais, que caracterstica da atual
fase do Direito das Famlias, marcado pela aceitao de uma pluralidade de arranjos
familiares, que no se esgota nas previses expressas do texto constitucional.
J se sentem sinais dessa crise com a prpria flexibilizao do dever conjugal da
fidelidade, estampado no art. 1.566, inciso I, do Cdigo Civil. Fala-se em flexibilizao a
comear pela alterao legislativa que expurgou do Direito Penal, em 2005, o crime de
adultrio, previsto no artigo 240 do Cdigo Penal.
1 Aqui, ressalta-se o carter plural da expresso, pois, conforme j colocado em tpico anterior, a famlia brasileira plural e heterognea, cheia de nuances prprias e em processo constante de modificao.
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A partir da referida reforma, a fidelidade deixa de ser um bem jurdico de relevncia
para que se justifique a sua proteo penal. Com acerto, agiu o legislador infraconstitucional,
pois no havia nada de mais aberrante do que o Estado se ocupar em intervir na esfera ntima
do casal, punindo penalmente os consortes que mantivessem relaes extraconjugais.
O Poder Constituinte Reformador, no ano de 2010, mais uma vez reafirmou a
superao do dever de fidelidade entre os cnjuges, ao dispor, atravs da Emenda
Constitucional n 66, que o casamento civil se dissolve atravs do divrcio. Ps-se findo, a
partir de ento, o obsoleto instituto da separao e, com ela, a discusso acerca da culpa
pelo fim dos laos matrimoniais.
O artigo 1.572 do Cdigo Civil, atualmente revogado pela Emenda Constitucional n
66 previa a possibilidade de um dos cnjuges, na separao judicial, imputar ao outro a
violao grave dos deveres do casamento dentre eles o de fidelidade gerando diversas
sanes, como a utilizao do nome do outro (art. 1.578, CC), o direito de pleitear alimentos
que no se restringissem aos necessrios sua sobrevivncia (art. 1.704, pargrafo nico,
CC).
Estas eram as nicas consequncias sofridas por aquele que descumprisse o dever de
fidelidade imposto pela lei. Com a revogao de todos os dispositivos legais que tratam acerca
da separao judicial, esvai-se tambm qualquer consequncia para o cnjuge infiel.
O dever de fidelidade reduziu-se, nessa toada, a mero dever moral, pois no h que
se falar em dever jurdico se do seu descumprimento no decorre uma sano.
A bem da verdade, tanto a monogamia quanto o dever da fidelidade conjugal se
resumem a valores morais e culturais, que no devem ser elevados categoria de institutos
com efeitos jurdicos, no cabendo ao Estado perquirir acercar da fidelidade dos cnjuges ou
mesmo da sua escolha quanto forma de se relacionar enquanto famlia.
Esta uma concluso que estende seus efeitos diretamente ao caso especfico das
unies em simultaneidade. Sejam elas constitudas em concomitncia ao casamento ou
mesmo a outra unio estvel, o fato que a sua formao carrega em seu mago o
descumprimento de um dever de fidelidade, em que um dos componentes de um ncleo
familiar anterior, passa a manter relaes no eventuais e com intuito de constituio de
famlia com outrem.
Nesses casos, o dogma monogmico tambm se mostra quebrantado, uma vez que se
verifica a formao de famlias paralelas juridicamente reconhecidas e protegidas pelo Direito
das Famlias.
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por essa razo que aqueles que entendem a monogamia como um princpio
estruturante do Direito, com fora normativa, o reconhecimento das unies simultneas como
espcies de entidades familiares estaria rechaado por encontrar bice do princpio
monogmico.
Todavia, essa tese cai por terra a partir da construo do pensamento que tem como
ponto de partida o fundamento de que a monogamia e o dever de fidelidade conjugal se
encontram superados em um contexto de constitucional e no subsistem frente aos princpios
da dignidade da pessoa humana, da afetividade, da liberdade e igualdade entre as famlias.
Essa a concluso a que se pretendia conduzir: a de que as unies simultneas so, a
partir de uma leitura da Constituio, formas de famlia, no podendo os dogmas
monogmicos ser utilizados como pretexto para excluir a proteo do Direito das Famlias aos
indivduos que optaram por assim conviverem.
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CONCURRENT FAMILIES: A SOCIAL AND LEGAL DIALOGUE
ABSTRACT
Family is central to human being and condition for his humanization
and sociability, aside from being a permanent and global
phenomenon. In all eras and societies has always existed some kind of
family arrangement, always regenerating and reconfiguring. It is in
this context that is part of the discussion on this plural composition of
Brazilian family the place of families, making a simultaneous
discussion intertwining law and social sciences. The work is
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composed of two central themes: transformations in behaviors, in
marriage and in the family, by connecting them to broader processes
of social transformation. It will be studied the transformations in the
family, the family resilience capacity, the social value of family and
the desire for family and, also, how central unavoidable point, there is
a discussion about monogamy, from the point of view of the theory of
Engels, feminist theory and law. Monogamy, while dogma, presents
himself as the main hindrance to recognize concurrent families.
Discusses the origin, the fundamentals and the crisis of the
monogamous model.
Key words: Family. Transformation. Monogamy.