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FIDΣS 70 FIDES, Natal, v.4 , n. 2, jul./dez. 2013. ISSN 0000-0000 Recebido 29 out. 2013 Aceito 30 out. 2013 FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS: UM DIÁLOGO SÓCIO-JURÍDICO Érica Verícia Canuto de Oliveira Veras RESUMO A família é essencial ao ser humano, e condição para sua humanização e sociabilidade, além de ser um fenômeno permanente e global. Em todas as épocas e sociedades sempre existiu alguma espécie de arranjo familiar, sempre se regenerando e se reconfigurando. É nesse contexto que se insere a discussão sobre essa composição plural da família brasileira, o lugar das famílias simultâneas, fazendo uma discussão entrelaçando Direito e Ciências Sociais. O trabalho é composto de dois temas centrais: transformações nos comportamentos, no casamento e na família, conectando-os a processos mais amplos de transformação social. Nele serão estudadas as transformações na família, a capacidade de resiliência da família, o valor social da família e o desejo de família e, também, como ponto central inevitável, há uma discussão sobre a monogamia, sob o ponto de vista da teoria de Engels, das teorias feministas e do direito. A monogamia, enquanto dogma, se apresenta como o principal empecilho para que se reconheçam as famílias simultâneas. Discutem-se a origem, os fundamentos e a crise do modelo monogâmico. Palavras-Chave: Família. Transformações. Monogamia. Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutoranda em Direito pela Universitat Politècnica de València / Espanha. Docente de Direito das Famílias na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Promotora de Justiça do Rio Grande do Norte.

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    Recebido 29 out. 2013

    Aceito 30 out. 2013

    FAMLIAS SIMULTNEAS: UM DILOGO SCIO-JURDICO

    rica Vercia Canuto de Oliveira Veras

    RESUMO

    A famlia essencial ao ser humano, e condio para sua humanizao

    e sociabilidade, alm de ser um fenmeno permanente e global. Em

    todas as pocas e sociedades sempre existiu alguma espcie de arranjo

    familiar, sempre se regenerando e se reconfigurando. nesse contexto

    que se insere a discusso sobre essa composio plural da famlia

    brasileira, o lugar das famlias simultneas, fazendo uma discusso

    entrelaando Direito e Cincias Sociais. O trabalho composto de

    dois temas centrais: transformaes nos comportamentos, no

    casamento e na famlia, conectando-os a processos mais amplos de

    transformao social. Nele sero estudadas as transformaes na

    famlia, a capacidade de resilincia da famlia, o valor social da

    famlia e o desejo de famlia e, tambm, como ponto central

    inevitvel, h uma discusso sobre a monogamia, sob o ponto de vista

    da teoria de Engels, das teorias feministas e do direito. A monogamia,

    enquanto dogma, se apresenta como o principal empecilho para que se

    reconheam as famlias simultneas. Discutem-se a origem, os

    fundamentos e a crise do modelo monogmico.

    Palavras-Chave: Famlia. Transformaes. Monogamia.

    Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Mestranda em Cincias Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutoranda em Direito pela Universitat Politcnica de Valncia / Espanha.

    Docente de Direito das Famlias na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Promotora de Justia do Rio

    Grande do Norte.

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    CONSIDERAES INICIAIS

    A famlia essencial ao ser humano, e condio para sua humanizao e

    sociabilidade, alm de ser um fenmeno permanente e global. Em todas as pocas e

    sociedades sempre existiu alguma espcie de arranjo familiar.

    A despeito de sempre existir, e ser, portanto, antiga, a famlia vem passando por

    muitas transformaes, de to significativas que so, chegou-se a vaticinar o fim da famlia.

    Mas o que se observou foi justamente o contrrio. A famlia revelou-se com imensa

    capacidade de regenerar-se e recompor-se. Alm disso, percebeu-se que o desejo de famlia

    ainda estava presente nos projetos das pessoas, mesmo sob outras bases e configuradas em

    novos modelos.

    nesse contexto que se insere a discusso sobre essa composio plural da famlia

    brasileira o lugar das famlias simultneas. Como aporte terico, se pretende aproximar o

    Direito das Cincias Sociais, com o objetivo de discutir o fato social com a norma aplicada a

    respeito.

    O trabalho composto de dois temas centrais. No primeiro ponto, faz-se a discusso

    sobre as transformaes nos comportamentos, no casamento e na famlia, conectando-os a

    processos mais amplos de transformao social. Nele sero estudadas as transformaes na

    famlia, a capacidade de resilincia da famlia, o valor social da famlia e o desejo de famlia.

    Por fim, e como ponto central inevitvel, h uma discusso sobre a monogamia, sob

    o ponto de vista da teoria de Engels, das teorias feministas e do direito. A monogamia,

    enquanto dogma, se apresenta como o principal empecilho para que se reconheam as

    famlias simultneas. Discutem-se a origem, os fundamentos e a crise do modelo

    monogmico.

    O que se verifica, todavia, a inevitvel tendncia de reconhecimento dos arranjos

    simultneos, em razo, no s da aceitao social, como tambm do grande nmero de

    demandas que chegam ao Poder Judicirio, em busca de visibilidade e outorga de direitos.

    Nessa medida, a famlia mosaico (com homem, mulher e filhos) apenas mais um

    tipo de arranjo familiar, dentre o leque de arranjos possveis, em uma sociedade cada vez mais

    marcada pela pluralidade e por dinmicas inovadores, que vo alm do modelo padro.

    A histria mostra que a poligamia e a poliandria sempre existiram, de forma mais ou

    menos velada. O que h de novo que estes tipos de arranjos esto sendo visibilizados e esto

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    sendo objeto de busca de base legal para serem reconhecidos na legislao brasileira. Existem,

    inclusive, as famlias poliafetivas, cujos membros possuem poliorientao sexual.

    O questionamento do modelo monogmico de famlia e da heterossexualidade como

    normatividade tem gerado um sem nmero de possibilidades relativas aos arranjos afetivos,

    metaforicamente podendo se apresentar como um caleidoscpio, que se transforma a cada

    novo olhar.

    nesse contexto que se prope o presente trabalho, propondo o debate e discusso a

    respeito da monogamia e a heteronormatividade imposta, com modelos no hegemnicos.

    Para Bento (2006), no artigo As famlias que habitam a famlia,

    Pesquisadores que estudam a "famlia", para alm dos marcos heterossexual,

    se deparam com questes inusitadas, ausentes em estudos tradicionais.

    Trnsitos identitrios, deslocamentos, conflitos e rupturas que podem parecer

    confusos, existem em profuso nas relaes sociais e comeam a ser eleitos

    como temas por cientistas sociais e o primeiro resultado a constatao de

    que o conceito de famlia povoado por uma multiplicidade de famlias.

    A idealizao da famlia com divises binrias das tarefas a partir das

    diferenas sexuais, (ao homem a rua, mulher o lar), a imagem do lar como

    espao de conforto espiritual, do lcus interdito aos conflitos e as disputas,

    so imagens idlicas que guardam pouca conexo com a realidade e que tem

    como funo restringir a noo de famlia aos marcos da heterossexualidade.

    O Direito, antes oferecia aos novos modelos de famlia somente a invisibilidade. A

    condio de inexistncia foi, ento, substituda pela punio. No intuito de desencorajar a

    infidelidade conjugal, o legislador ptrio e o Judicirio convergiram no entendimento de que

    as unies constitudas em paralelo a outro casamento ou outra unio estvel consistiam em

    formas de concubinato, afastadas do conceito de famlia, cujos efeitos repercutiam apenas na

    seara obrigacional. Negando completo reconhecimento enquanto famlia e,

    consequentemente, direitos.

    A compreenso do processo histrico de transformao dos arranjos familiares,

    ligado a uma transformao social maior e mais ampla, como parte integrante desse mesmo

    mover, nos conduz discusso sobre os diversos aspectos da monogamia, visto se revelar

    com o principal entrave para o reconhecimento social e jurdico das famlias simultneas.

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    1 TRANSFORMAES NOS COMPORTAMENTOS, NO CASAMENTO E NA

    FAMLIA, VINCULAM-SE A PROCESSOS MAIS AMPLOS DE

    TRANSFORMAO SOCIAL

    1.1 Transformaes na famlia

    O objetivo do presente tpico procurar entender como os comportamentos e

    padres heterogneos, flexveis, instveis, plurais, de casamento e de famlia em um

    determinado segmento social vinculam-se a transformaes sociais mais amplas, no curso das

    quais se redefiniram as prticas de gnero (VAITSMAN, 1994).

    Srvulo A. FIGUEIRA (1986) afirma que no podemos nos tornar completa e

    plenamente modernos da noite para o dia. O autor diz que carros se modernizam como

    tambm os modelos de famlia, sendo possvel trocar de carro sem sentir saudade, adaptando-

    se ao novo sem conflitos. O mesmo no acontece com os modelos e os ideais de famlia que

    se sucedem rapidamente. Para ele, as pessoas podem se definir como modernas,

    ultramodernas, arcaicas, desorientadas... e estes rtulos, ao mesmo tempo, resultam

    do processo de mudana social acelerada, so um modo de lidar com ele, mas impedem a

    captao de sua dinmica e arquitetura complexas. Segundo o autor, tudo s muda

    rapidamente na superfcie. O novo e o moderno convivem com o arcaico e antiquado.

    FIGUEIRA (1986) afirma que h grande diferena entre famlia ideal e a famlia

    real. Ele relata que na sociedade brasileira, at os anos 50, o tipo de famlia que parecia

    prevalecer era o hierrquico. Passados mais de trinta anos, houve mudanas, atravs de um

    processo de modernizao, guiado pelo ideal de uma famlia igualitria. Para FIGUEIRA

    (1986), alm das vrias causas sociais e polticas por trs deste processo, alm da

    nuclearizao e privatizao progressivas da famlia, a ideologia do igualitarismo que parece

    ter tido o maior impacto sobre as relaes familiares. Entretanto, repisa o autor, tudo isso se

    d no plano ideal, pois a realidade da famlia moderna est longe de ser linear, mostrando-se

    ambgua.

    Segundo ele, uma parte importante da modernizao da famlia se deve passagem

    do ideal hierrquico para o ideal igualitrio. A ideologia igualitarista a responsvel por esta

    eroso das fronteiras rgidas entre categorias sociais. FIGUEIRA (1986) assegura que os

    discursos no s nos empurram para os ideais igualitrios e individualistas como inibem as

    manifestaes do pensamento hierrquico. A modernizao da famlia , para o autor, um

    processo complexo que resulta da modernizao dos ideais e das identificaes da dissoluo

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    e da criao de categorias classificatrias, da plurificao das aparncias e da psicologizao

    dos discursos. Quase no preciso repetir que este processo est longe de ser linear e que seus

    resultantes so, portanto, complexos.

    O autor defende a ideia de uma modernizao relativa na famlia, que

    Se deve ao fato de que a sucesso de ideais no processo de

    modernizao, ao ser extremamente rpida, no d aos sujeitos a

    oportunidade de se modernizar realmente no seu funcionamento,

    profundamente, nos seus contedos e na sua identidade. Preso no

    descompasso entre a grande velocidade da modernizao e a grande

    inrcia da subjetividade, o nico modo do sujeito conseguir ser

    moderno, tentar acompanhar as transformaes, atravs da

    modernizao do contedo do comportamento, atravs da

    modernizao relativa. (FIGUEIRA, 1986, P. 29)

    Conclui FIGUEIRA (1996) que no h uma nova famlia brasileira. O que h a

    convivncia do moderno com o arcaico.

    Aproxima-se dessa ideia JENI VAITSMAN (1994), quando enfatiza que anlises

    apontam os conflitos no processo de transformao da famlia, j que a modernizao no

    plano da subjetividade e da famlia seria, muitas vezes, apenas aparente, com a persistncia de

    elementos tradicionais coexistindo com comportamentos aparentemente modernos. Enfatiza o

    autor que no campo da subjetividade, as mudanas profundas so mais lentas, nem sempre

    acompanhando o passo da mudana social, evidenciando-se as dificuldades de se usar a

    categoria modernizao na anlise de processos que dizem respeito a um campo subjetivo.

    VAITSMAN (1994) relata que, at poucas dcadas, a nica forma aceita de

    institucionalizar as relaes afetivo-sexuais era atravs do casamento legal e indissolvel, mas

    que hoje, neste campo, a heterogeneidade instituiu-se, ganhou legitimidade social e cultural.

    Depois da aprovao do divrcio em 1977, as relaes conjugais no formalizadas

    legalmente generalizaram-se. Grande foi o nmero de pessoas que se separaram e que

    reconstruram suas relaes conjugais. Alm disso, os casais homossexuais conquistaram

    espao, bem como as pessoas que viviam ss, livres do estigma de solteires, as mes

    solteiras e os descasados de ambos os sexos que, juntamente com o exerccio simultneo de

    alguma atividade remunerada, assumiram a criao dos filhos sem a presena cotidiana de um

    parceiro (VAITSMAN, 1994).

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    Para o autor, difundiram-se os valores individualistas, antiautoritrios e igualitrios

    atravs das transformaes operadas na famlia. Sobre esse marco da absoro de tais valores,

    afirma que

    Estas transformaes difundiram-se entre homens e mulheres

    urbanos, portadores de valores individualistas, antiautoritrios e

    igualitrios, que geralmente cursaram a universidade, compartem um

    certo discurso e fazem parte de segmentos sociais com uma certa

    identidade sociocultural. Nestes segmentos, tornam-se instveis,

    frgeis, as normas (at que a morte os separe) e os valores

    (felizes para sempre) que organizavam e legitimavam o casamento

    e a famlia conjugal desenvolvidos no Brasil urbano a partir das

    ltimas dcadas do sculo XIX. A manuteno do casamento e

    consequentemente a da famlia subordinou-se satisfao

    emocional, princpio que passou a orientar comportamentos e

    estimular as pessoas a recusar relaes ntimas sentidas como

    insatisfatrias. (FIGUEIRA, 1994)

    A famlia conjugal moderna e individualista estruturou-se atravs de uma hierarquia,

    de uma diviso sexual do trabalho que impedia o exerccio da liberdade e igualdade de forma

    equivalente pelos dois sexos. Mesmo tendo surgido o individualismo como um conjunto de

    valores universalistas, conformou-se concretamente como um individualismo patriarcal,

    legitimando as relaes hierrquicas entre homens e mulheres, nas esferas pblica e privada.

    No sculo XIX, em pelo desenvolvimento da sociedade industrial, a individualidade

    assumiria um significado de singularidade, conferido pelo romantismo e pela nova diviso do

    trabalho: cada pessoa assume e deveria assumir uma posio que ela e ningum mais pode

    preencher. Uma posio que deve ser procurada at ser encontrada. (SIMMEL, 1971)

    Com o desenvolvimento da individualidade, ampliou-se o crculo de pessoas que se

    tornaram passveis de escolha como parceiros no casamento, ampliando tambm a liberdade

    de escolha.

    Para VAITSMAN (1994), o individualismo traria as maiores contradies do

    casamento moderno, fundado no amor e na livre escolha. Primeiro porque a individualidade

    e a complementariedade de cada um ergue barreiras entre os dois, fazendo do outro algo de

    inatingvel que determinado pela individualidade. E segundo porque a livre escolha o

    ponto fraco do casamento moderno (e, consequentemente, da famlia moderna conjugal), que

    por isso mesmo sempre esteve sujeito dissoluo, aprovada ou no pela lei secular ou

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    religiosa. Defende que, quanto maior a possibilidade efetiva de escolher, maior o espao par

    ao conflito entre o individual e o coletivo se expressar. Acrescenta que

    O casamento fundado na concepo moderna de amor singular, eterno

    e dirigido a um indivduo nico e insubstituvel, que provoca o

    imaginrio social romntico e burgus do perodo de ouro da

    modernidade, parece ter ficado para trs. Nas circunstncias histricas

    atuais, a noo de eternidade das relaes e dos sentimentos foi

    abalada e isto manifesta-se no fato de que l onde o indivduo

    encontrava maior estabilidade e segurana, casamentos e famlias

    passaram a desfazer-se e refazer-se continuamente.

    O tipo moderno de famlia e casamento entrou em crise porque foram

    abalados seus fundamentos: a diviso sexual do trabalho e a dicotomia

    entre pblico e privado atribuda segundo o gnero. Em vrios lugares

    do mundo industrializado, como parte da prpria dinmica da

    modernizao que inicialmente as excluiu do mundo pblico, as

    mulheres foram aumentando sua participao no ensino superior, nas

    atividades profissionais, polticas, sindicais, artsticas e culturais a

    partir das ltimas dcadas, redefinindo as fronteiras entre o pblico e o

    privado atribudas segundo o gnero. Desempenhando mltiplos

    papis na esfera pblica e em suas vidas cotidianas, muitas mulheres

    deixaram de restringir suas aspiraes ao casamento e aos filhos.

    Desafiaram a dicotomia entre pblico e privado, conquistaram direitos

    como cidads, constituram-se como indivduos. O individualismo

    patriarcal foi abalado e a igualdade entre homens e mulheres colocou-

    se como possibilidade social. Com isso, explodiu o conflito entre o

    individual e o coletivo no casamento e na famlia. (VAITSMAN,

    1994)

    VAITSMAN (1994) concorda com FIGUEIRA quanto afirmao do

    individualismo, que levou a uma transformao da famlia hierrquica em famlia igualitria,

    onde os papis e atribuies de gnero e gerao estariam com seus contornos cada vez mais

    diludos.

    Para VAITSMAN (1994), sociologicamente, estas mudanas no significam a

    transio de um tipo tradicional de famlia ou casamento para outro moderno, mas, ao invs

    disso, sinalizam justamente o esgotamento do tipo moderno de casamento e famlia. Esse

    esgotamento est ligado ruptura da dicotomia entre papis pblicos e privados atribudos

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    segundo o gnero, que produziu transformaes marcantes no modo como homens e mulheres

    passaram a construir suas identidades e a administrar suas relaes de casamento e famlia.

    O autor (1994) defende que a famlia tronou-se mais igualitria e as atribuies de

    gnero diluram-se. Contudo, argumenta que a famlia hierrquica no se tornou moderna,

    pois foi justamente a famlia moderna e hierrquica que nas classes mdias urbanas veio

    sofrer a concorrncia cada vez maior de novas formas de famlia. E acrescenta que

    Com a industrializao e a separao entre a unidade domstica e

    atividades empresariais, a diviso sexual do trabalho na sociedade

    reorganizou-se. A famlia privatizou-se, com a consequente excluso

    das mulheres das prticas que, na construo das sociedades

    modernas, passaram a ser exercidas numa esfera pblica, que se

    transformou na medida no s de poder prestgio e riqueza, mas

    tambm da cidadania.

    A gnese das sociedades modernas e de sua forma tpico-ideal de

    famlia, aquela formada pelo homem provedor financeiro, a me dona-

    de-casa e os filhos solteiros vivendo sob um mesmo teto, foi marcada

    pela dicotomia entre papis pblicos e privados atribudos segundo o

    gnero. Estas relaes estruturaram o padro que ficou conhecido

    como famlia conjugal moderna e que, por ter como um de seus

    princpios a livre escolha do cnjuge, tambm foi associado ao

    individualismo e s ideias de liberdade e igualitarismo.

    A teoria sociolgica, sobretudo a de tradio funcionalista, ao vincular

    a famlia conjugal moderna aos processos de modernizao e

    industrializaes, considera-a como uma instituio igualitria.

    (VAITSMAN, 1994)

    Com efeito, o aprofundamento da modernizao, da industrializao e da

    urbanizao, as mulheres redefiniram sua posio na sociedade, minando a dicotomia entre

    pblico e privado atribuda segundo o gnero. VAISTAM (1994) no aceita falar em um

    movimento de modernizao da famlia, mas sim de crise e transformaes da tpica famlia

    moderna. Com isso, os conflitos entre os valores igualitrios e as prticas hierrquicas

    presentes na estrutura da famlia conjugal moderna afloraram e ela entrou em crise.

    O autor afirma que no pertinente falar em modernizao da famlia quando as

    relaes sociais que definem a famlia conjugal moderna so substitudas por outros tipos de

    relaes, que passam a institucionalizar-se sob outras formas. Nessa vertente, a modernizao

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    da famlia vinculou-se historicamente industrializao, que a retirou para o mundo privado,

    dando-se o significado do ncleo formado por pai/me/filhos.

    O padro de famlia conjugal moderna no desapareceu totalmente, mas certamente

    entre os seguimentos das classes mdias onde se considera que a famlia tenha se

    modernizado, a famlia moderna vem desaparecendo, substituda pelas relaes com novos

    contedos e institucionalizando-se sob novas formas. (VAITISMAN, 1994)

    Quase que instintivamente, torna-se oportuno indagar se essas novas formas e com

    contedos de casamento e famlia, que vem difundindo e ganhando legitimidade entre

    segmentos das classes mdias urbanas, e que se assemelha com diferentes reas do

    pensamento, da arte e da cultura, pode ser caracterizada como uma tendncia ps-moderna.

    A ps-modernidade traz a heterogeneidade, a pluralidade, a flexibilidade, a

    instabilidade e a incerteza como regra, tanto na literatura, quanto na arquitetura, na arte e no

    discurso filosfico, nas prticas econmicas e polticas, assim no casamento e na famlia

    VAITSMAN (1994) defende que no se trata da substituio de um tipo dominante

    de famlia a conjugal moderna por outro tipo, a ps-moderna uma vez que a famlia

    marcada pela dicotomia entre papis no desapareceu, nem foi substituda por outro tipo de

    famlia que possa ser chamada ps-moderna.

    Na verdade, pode-se falar em famlia e casamento em situao ps-moderna,

    justamente em razo da inexistncia de um modelo dominante, seja no que diz respeito s

    prticas, seja enquanto um discurso normatizador das prticas. A norma a inexistncia de

    um padro dominante.

    DILNOT (apud VAITSMAN, 1994) define o ps-moderno como um processo de

    interligao de fronteiras entre tipo de prticas que convencionalmente so considerados

    como inteiramente diferentes.

    GIDDENS (apud VAITSMAN, 1994) no v as ltimas dcadas do sculo XX como

    ps-modernidade, mas sim como alta modernidade, quando as consequncias da modernidade

    se radicalizaram e universalizaram velozmente, unificando e desagregando o mundo, e

    esvaziando-se o espao e o tempo.

    As declaraes sobre o fim da famlia so julgadas obsoletas pelos estudiosos

    (ROUDINESCO, 2003), como tambm hostilizam o familiarismo redescoberto, que indica

    no a ruptura de uma ordem estabelecida, mas o desejo de integrao a uma norma outrora

    infame e fonte de perseguio.

    Se antes, tudo o que no fosse casamento heterossexual e monogmico estaria

    excludo da normatividade, agora, com a transformao dos modelos de famlia, tudo aponta

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    para um acesso esperado para os que estavam fora da norma em razo das suas prticas

    sexuais. Nesse contexto, Roudinesco (2003) afirma que o temor dos conservadores inverteu-

    se, no sentido de se incomodarem com o fato de prticas sexuais marginalizadas quererem

    submeter-se norma.

    [...] o grande desejo de normatividade das antigas minorias

    perseguidas semeia problemas na sociedade. Todos temem, com

    efeito, que no passe do sinal de uma decadncia dos valores

    tradicionais da famlia, escola, nao, ptria e, sobretudo, da

    paternidade, do pai, da lei do pai e da autoridade sob todas as formas.

    Como consequncia, no mais a contestao do modelo familiar que

    incomoda os conservadores de todos os lados, mas, ao contrrio, a

    vontade de a ele se submeter.

    1.2 A capacidade de resilincia da famlia

    A famlia encontra-se em constantes mudanas e transformaes, acompanhando o

    movimento e dinamismo prprios das relaes sociais. Embora muitos tenham vaticinado a

    sua extino, o que se observa uma grande capacidade de transformar-se e reconfigurar-se.

    Petrini (2003) assegura a capacidade de regenerar-se da famlia e o seu carter

    permanente. Em suas palavras,

    No so poucos os estudiosos que afirmam que, no meio das

    turbulncias, a famlia empenha-se em reorganizar, na sociedade ps-

    moderna, aspectos da sua realidade que o ambiente sociocultural vai

    desgastando. Reagindo aos condicionamentos externos e, ao mesmo

    tempo, adaptando-se a eles, a famlia encontra novas formas de

    estruturao que, de alguma maneira, a reconstituem, sendo

    reconhecida como uma estrutura bsica permanente da experincia

    humana e social.

    I.3 O valor social da famlia

    Afirma-se ser a famlia, no decorrer da evoluo histrica, matriz no processo

    civilizatrio, como condio para humanizao e socializao das pessoas. Petrini (2003)

    defende a experincia da famlia como fonte de humanizao e de socializao.

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    Embora assumindo diversas configuraes, e transformando-se constantemente ao

    logo do tempo, a famlia permanece como fundamento da sociedade, na medida em que

    podem ser observados os caracteres de constncia no tempo e universalidade. Ela um

    fenmeno universal presente em todo e qualquer tipo de sociedade (Lvi- Strauss apud

    Petrini, 2003).

    Segundo Petrini (2003), a famlia uma forma constitutiva da espcie humana. E

    acrescenta, como argumento que:

    Muitos estudiosos observam que a estrutura familiar continua presente

    nas diversas culturas, em todos os perodos histricos, como forma de

    relao social constitutiva da espcie humana. Esta encontra, no

    ambiente da famlia, no s os elementos favorveis sobrevivncia,

    mas as condies essenciais para ao desenvolvimento e a realizao da

    pessoal. Alguma forma de agregao familiar pode ser reconhecida

    em todas as culturas e em todas as pocas histricas.

    No espao da vida familiar, verificam-se experincias humanas bsicas que duram

    no tempo, independente da vontade das pessoas envolvidas, como o parentesco, a ligao

    entre as geraes (Petrini, 2003).

    1.4 O desejo de famlia

    Roudinesco (2003) declara que, mesmo diante de tantas transformaes e

    reconfiguraes, nada disso impede que a famlia seja, atualmente, reivindicada como nico

    valor ao qual ningum quer renunciar. Segundo a autora (Roudinesco, 2003), ela amada,

    sonhada e desejada por homens, mulheres e crianas de todas as idades, de todas as

    orientaes sexuais e de todas as condies.

    Com o semelhante pensamento, Petrini (2003) afirma que a investigao cientfica

    mais recente, no Brasil, e no exterior, acumula dados que descrevem um enfraquecimento das

    relaes familiares, mas identifica tambm indcios e evidncias de uma surpreendente

    vitalidade do ideal familiar.

    Luigi Giussani (1993) define como senso religioso o conjunto de exigncias

    elementares de justia, de liberdade, de verdade, de felicidade, que se constituem como o

    ncleo mais originrio do homem e que emerge como desejo. No mesmo sentido, Micea

    Eliade (1978) elaborou o conceito de homo religiosus. Tanto nas definies de senso

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    religioso quanto nas de homo religiosus, o desejo de viver um arranjo familiar est inserido,

    como uma necessidade e busca do ser humano.

    2 QUESTIONAMENTOS SOBRE A MONOGAMIA

    2.1 Teoria de Engels e a monogamia

    Segundo Engels (1991), o surgimento da propriedade individual deu causa ao

    nascimento e proliferao de vrios institutos: o casamento monogmico, a prostituio, o

    adultrio. Ainda, para o mesmo autor, a prostituio um dos pilares que do base de

    sustentao ao sistema monogmico de casamento. Silva (1996), seguindo o mesmo

    entendimento, assevera que [...] a prostituta sempre teve dois papis importantssimo na

    sociedade: acalmar o nimo dos celibatrios, prolongar os casamentos instveis e, at mesmo,

    os estveis. E conclui: [...] a prostituio funciona como um mecanismo estabilizador do

    sistema monogmico de casamento [...].

    A expresso famlia, conforme Engels, foi inventada pelos romanos para designar

    um novo organismo social, cujo chefe mantinha sob seu poder a mulher, os filhos e certo

    nmero de escravos, com o ptrio poder romano e o direito de vida e morte sob todos eles. J

    a famlia monogmica, que nasce no perodo de transio entre a fase mdia e superior da

    barbrie, expresso da grande derrota histrica do sexo feminino em todo o mundo, nas

    palavras de Engels.

    A monogamia, segundo esse modelo, baseia-se no predomnio do homem, o qual tem

    como finalidade procriar filhos cuja paternidade seja indiscutvel. Os laos conjugais ficaram

    mais slidos, cabendo somente ao homem romp-los, a quem, igualmente, se concede o

    direito infidelidade. Quanto mulher, exige-se que guarde uma castidade e fidelidade

    conjugal rigorosa.

    A monogamia aparece na histria sob a forma de escravizao de um sexo pelo

    outro. Para Engels, a monogamia foi um grande progresso histrico, mas, ao mesmo tempo,

    iniciou, juntamente com a escravido, as riquezas privadas.

    A monogamia, portanto, de modo algum fruto do amor sexual individual e no se

    baseia em condies naturais, mas econmicas, isto , o triunfo da propriedade privada sobre

    a propriedade comum primitiva.

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    Engels argumenta que as mais diversas formas de famlia poligmica (os harns do

    Oriente, as famlias mrmons etc.) nada mais so que a institucionalizao da mesma

    monogamia. Para ele, nesses modelos poligmicos h um nico parceiro para a mulher e

    vrias mulheres para um s homem. Esse argumento serve para fundamentar a ideia central da

    sua tese de que a monogamia e o patriarcalismo so inseparveis.

    Entretanto, segundo crtica de Lessa (2012), o que se poderia esperar, como corolrio

    da argumentao de Engels que o comunismo fosse a superao da monogamia, tal como

    defende a superao do Estado, da propriedade privada e das classes sociais. Mas no foi essa

    posio adotada por Engels. No esta, todavia, a sua posio. Para ele, o que, sem sombra

    de dvida, vai desaparecer da monogamia o conjunto dos caracteres que lhe foram

    impressos pelas relaes de propriedade a que deve sua origem. Esses caracteres so, em

    primeiro lugar, a preponderncia do homem e, depois, a indissolubilidade do matrimnio.

    (Engels, 1979)

    Em suma, Engels defende que o comunismo superaria a famlia monogmica, mas

    no a monogamia. E para sustentar sua argumentao, explica sua concepo de qual seria a

    essncia do amor sexuado individual: () desde que o amor sexual , por sua prpria

    natureza, exclusivista embora em nossos dias esse exclusivismo s se realize plenamente

    sobre a mulher , o matrimnio baseado no amor sexual ser, por sua prpria natureza,

    monogmico. (Engels, 1979)

    Lessa se posiciona contrariamente Engels e afirma que a monogamia desaparecer

    junto com a propriedade privada, por ser a expresso da opresso patriarcal na organizao

    familiar. Ele acredita que a monogamia surge e se desenvolve como expresso histrica do

    patriarcalismo, sendo este o seu contedo histrico.

    A defesa pela permanncia da monogamia, por Engels, segundo Lessa, se deve ao

    fato de que ele acreditava que ela excluiria o amor homossexual, que para Engels era um "feio

    vcio" e "repugnante prtica", consequncia da contaminao dos homens pela decadncia das

    mulheres trazida pela famlia monogmica.

    Nessa linha de raciocnio, Lessa defende que

    [...] seria razovel postularmos que hoje os indivduos revelam a

    capacidade de amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo. E isto vale

    para as mulheres e para os homens: no uma consequncia imediata

    do patriarcalismo, como a prostituio. As opes e as dolorosas

    escolhas a que so foradas as pessoas que, na confluncia de dois

    grandes amores, tm que abandonar um deles pelo outro, uma

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    experincia muito mais generalizada do que reconhecida se as obras

    de arte continuarem sendo um reflexo adequado do tpico socialmente

    vivido. Tal como em A era da inocncia de Edith Wharton, a tragdia

    aqui a dolorosa escolha imposta aos que amam (dos dois grandes

    amores, um dos dois deve ser vivido sob a forma de ser deixado para

    trs) e, a seguir, o fato de que tal escolha no pode deixar de ter

    consequncias negativas para o futuro desenvolvimento do amor que

    se decidiu preservar se no por outro motivo, pela simples razo de

    promover o embrutecimento, um rebaixamento do desenvolvimento

    afetivo, de quem coube a dolorosa escolha. Dois grandes amores, tal

    como dois fachos de luz, no se anulam reciprocamente: talvez uma

    sociedade que possibilite aos indivduos amarem tanto quanto forem

    capaz faa com que dois amores concomitantes potencializem-se

    mutuamente. E que, por esta mediao, amores concomitantes tornem

    no apenas mais rica cada relao amorosa, como tambm mais ricos,

    capazes de emoes mais elevadas, os indivduos neles envolvidos.

    2.2 Teorias Feministas e Monogamia

    Com efeito, a exigncia social da fidelidade feminina, com o paradigma ocidental da

    monogamia, a nada mais que mais uma forma de dominao do feminino pelo masculino e

    expresso evidente do controle da sexualidade feminina, no estreito limite da

    heteronormatividade.

    Certamente para as tericas do patriarcado, a exemplo de Maria Luiza Heilborn

    (1991), no estudo Gnero e Hierarquia A Costela de Ado Revisitada, h respaldo para a

    explicao e manuteno do paradigma da monogamia, diante da superficial e discutvel

    afirmao da pertinncia da teoria da hierarquia, como forma de equacionar as questes de

    gnero.

    A autora se fundamenta na teoria do antroplogo francs Luis Dupont (teoria da

    hierarquia e seus corolrios) que se prope sistematizar as razes pelas quais h uma

    constante estrutural de assimetria na montagem da relao entre os gneros. Para Heilborn

    (1991), o modelo ocidental de sociedade, voltado singularidade, nega o princpio social

    fundamental, que a hierarquia. Ela assegura, apoiando-se no pensamento de Dupont, que

    modernos se insurgem (contra o princpio hierrquico), mas justamente ele que nos d a

    compreenso da natureza dos limites e das condies de realizao igualitarismo moral e

    poltico ao qual os modernos esto ligados.

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    Nessa perspectiva, a teoria da hierarquia rege-se pela ideia de significao da

    totalidade em relao ao homem, e sendo a mulher apenas parte desse todo (costela), haveria

    evidente hierarquia de gnero.

    Fcil seria conformar e reforar a manuteno da monogamia frente ao pensamento

    da teoria da hierarquia, segundo a qual a fidelidade somente exigida da mulher, sendo a sua

    sexualidade vigiada e reprimida.

    Por outro lado, faz-se a anlise e confrontao da teoria da performatividade, de

    Judith Butler (2003), em simetria com Berenice Bento (2011) com a teoria queer, e com o

    pensamento de Gayle Rubin (2003), com a proposta do sistema sexo/gnero, alm de Eve

    Kosofsky Sedgwick (1993), com a epistemologia do armrio, Joan Scott (1989), com a

    teoria de Gnero, uma categoria til para anlise e Lia Zanota Machado (1988), com a

    proposta metodolgica de desnaturalizao do gnero e desconstrucionismo.

    Poderia um enunciado performativo ser bem-sucedido se sua formulao no se

    repetisse em um enunciado "codificado"?. Com essa indagao, Judith Butler (2003)

    questiona em que medida o discurso adquire a autoridade para produzir o que nomeia, atravs

    da citao das convenes da autoridade. De certo modo, como poderia o discurso ser tornado

    vlido quando no h uma codificao, uma referncia?

    Segundo ela, a sexualidade humana resultante do processo de materializao da

    norma construda socialmente, assegurando que as normas regulatrias materializam o sexo e

    produzem essa materializao atravs de uma reiterao forada destas normas.

    Judith Butler (2003) prope o conceito de performatividade, entendido como o poder

    reiterativo do discurso para produzir os fenmenos que ele regula e constrange. Para a autora,

    as normas regulatrias do "sexo" trabalham de uma forma performativa para constituir a

    materialidade dos corpos e, mais especificamente, para materializar o sexo do corpo, para

    materializar a diferena sexual a servio da consolidao do imperativo heterossexual.

    Porm, a autora adverte que essa materializao dos corpos nunca completa, j que

    no h uma conformao completa s normas pelas quais sua materializao imposta. Judith

    Butler (2003) afirma que, na verdade, so as instabilidades, as possibilidades de

    rematerializao abertas que colocam em questo a fora hegemnica daquela mesma lei

    regulatria. Atravs das fissuras na norma regulatria, aparecem outras possibilidades de

    materializao.

    Os sujeitos so formados pela matriz excludente da heterossexualidade. A fissura

    produz os seres abjetos, que considerado como o no sujeito, o que est na zona inabitvel

    da vida social, restando a margem como ambincia.

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    Os seres abjetos no so invisveis. Eles so vistos e ignorados, mas so

    continuamente vigiados.

    Para Judith Butler (2003), negar e excluir o ser abjeto construir o sujeito. A

    identificao com a abjeo ser persistentemente negada.

    Em virtude dessa reiterao que produz o efeito naturalizado do sexo que fossos

    e fissuras so abertos e podem ser vistos como as instabilidades constitutivas dessas

    construes, como aquilo que escapa ou excede a norma.

    Judith Butler (2003) afirma que as desidentificaes coletivas propem facilitar

    uma recontextualizao da questo de se saber quais corpos pesam quais corpos ainda devem

    emergir como preocupaes que possam ter um peso crtico.

    A autora contrria posio que o gnero algo que o indivduo revela, descobre.

    Afirma que se o gnero construdo, ele no necessariamente construdo por um eu ou

    por um ns que se coloca antes daquela construo. No fica claro que possa haver um eu

    ou um ns que no tenha sido submetido, que no tenha sido sujeitado ao gnero, onde a

    generificao construda, entre outras coisas, pelas relaes diferenciadoras pelas quais os

    sujeitos falantes se transformam em ser.

    A questo no mais "como o gnero constitudo como uma certa interpretao do

    sexo" mas, ao invs disso, "atravs de que normas regulatrias o prprio sexo

    materializado?"

    Com efeito, a monogamia uma norma regulatria que tem por finalidade o

    funcionamento da hegemonia heterossexual com ascendncia masculina, a fim de considera-la

    como legitimamente vivel. Essa materializao da norma na formao corporal, segundo

    Judith Butler (2003), produz um domnio de corpos abjetos, um campo de deformao, o qual,

    ao deixar de ser considerado como plenamente humano, refora aquelas normas regulatrias.

    O que, na abordagem apresentada no presente trabalho, produz o ser abjeto do poliamorismo

    ou famlias simultneas.

    No mesmo sentido, Berenice Bento (2011), propondo a disjuno entre o mundo

    plural e a poltica binria. A autora indaga seria possvel operar o mundo da poltica a partir

    do marco da diversidade, da diferena.

    Berenice Bento (2011) revela que h evidente e radical disjuno, j que no mundo

    das relaes sociais h pluralidade, enquanto que, na esfera poltica, tudo se passa como se a

    nica forma eficaz de mudar uma dada conjuntura acionando a mquina binria.

    Com razo, a autora pe em relevo que, enquanto no mundo da poltica a nfase est

    na identidade, nas pesquisas, o que salta aos olhos a diferena.

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    Nessa linha de pensamento, Berenice Bento (2011) faz questionamentos sobre quem

    faz cincia e quem faz poltica. Ela denuncia que a estratgia mais poltica de construir o

    mundo imagem e semelhana de determinados interesses imersos no discurso cientfico, da

    aparente neutralidade cientfica. Foi nesse saber cientfico que se fundamentaram para

    perseguir gays e lsbicas

    Nesse contexto, as teorias e polticas queers propiciaram conflitos e fissuras nas

    questes de gneros e sexualidades. Entretanto, Bento adverte que no podemos falar em

    estudos queers como um todo homogneo, assegurando que h pontos de unidade, como, por

    exemplo: a crtica concepo de sujeito herdado do iluminismo; a impossibilidade de

    analisar o corpo s margens dos dispositivos de poder que produzem a naturalizao das

    identidades; a ideia de que no existe uma essncia masculina e feminina, o gnero s pode

    ser compreendido quando remetido s prticas performatizadas; a crtica ao binarismo.

    Nessa mesma perspectiva, Eve Kosofsky Sedgwick (1993), no texto A

    epistemologia do armrio, afirma que uma estrutura narrativa to elstica e produtiva no

    afrouxar facilmente seu controle sobre importantes formas de significao social.

    O texto fala de homossexualidade (o armrio gay), e sobre a insupervel

    confrontao entre revelar ou no a condio. No entanto, o estudo pode ser utilizado para

    tentar fornecer um aparato terico ao tema do presente trabalho, a partir da discusso sobre o

    que espao pblico e onde se situa o espao privado.

    A autora traz a discusso sobre duas decises importantes da Corte Americana, em

    que houve o Poder Judicirio teve a oportunidade de se pronunciar se a sexualidade seria

    assunto de relevncia pblica ou se estava no espao privado da vida humana. Em especfico,

    se a revelao da homossexualidade tinha alguma coisa a ver com interesse pblico ou a

    ningum, alm do prprio protagonista, interessava. E a deciso da Suprema Corte foi no

    sentido de que no interessava a ningum o que ele fazia, que no mesmo: se a

    homossexualidade, por mais densamente adjudicada que seja, no deve ser considerada

    questo de interesse pblico, na opinio vinculante da Suprema Corte ela tampouco subsiste

    sob o manto do privado.

    Sedgwick (1993) afirma que acredita que

    [...] todo um conjunto das posies mais cruciais para a contestao do

    significado na cultura ocidental do sculo XX est consequente e

    indelevelmente marcado pela especificidade histrica da definio

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    homossocial/homossexual, particularmente, mas no exclusivamente,

    masculina, desde mais ou menos a virada do sculo.

    Essa revelao conforma-se com o pensamento do presente trabalho, na medida em

    que a monogamia, como produto da cultura ocidental, somente pode ser contestada,

    questionada, a partir da discusso sobre a sexualidade e a dominao masculina.

    nessa mesma vertente que Gayle Rubin (2003) se prope a problematizar a questo

    de gnero, com as diversas teorias, na tentativa de explicar a sujeio da mulher e a tentativa

    de domestic-la (sistema sexo/gnero), e coloc-la no modelo de casamento monogmico.

    No texto El Trfico de Mujeres: Notas sobre La Economia Poltica del Sexo, a

    partir da obra de Lvi-Strauss, sobre as Estruturas Elementares do Parentesco, Rubin (2003)

    busca explicar como se d a troca e o trfico de mulheres entre os diversos grupos, para

    formar a famlia.

    Nesse sentido, Rubin (2003) afirma que toda sociedade tem um sistema sexo/gnero

    uma srie de arranjos pelos quais a matria-prima biolgica do sexo humano e da procriao

    moldada pela interveno humana, social.

    Os sistemas de parentesco variam enormemente de uma cultura para outra. Eles

    contm todo tipo de normas desconcertantes que determinam com quem uma pessoa pode ou

    no pode se casar.

    A obra de Lvi-Strauss (1982) uma tentativa, feita no sculo XX, de desenvolver o

    projeto do sculo XIX de entender o casamento humano. Na obra, o casamento visto como

    uma imposio da organizao cultural sobre os fatos da procriao biolgica, dando nfase

    sexualidade na sociedade humana.

    Lvi-Strauss (1982) entende que a essncia dos sistemas de parentesco reside na

    troca de mulheres entre homens e, com isso, constri uma teoria implcita da opresso sexual.

    Ele afirma que o tabu do incesto deve ser entendido como um mecanismo para garantir que

    essas trocas se realizem entre famlias e entre grupos diferentes.

    A um s tempo, questiona-se se o incesto mecanismo para garantir que a troca de

    mulheres se realizem em famlias de grupos diferentes, a monogamia mecanismo para

    garantir o que?

    Certamente, a garantia da certeza do parentesco consanguneo, evidenciado na

    paternidade certa.

    Troca de mulheres uma maneira sinttica de expressar o fato de que as relaes

    sociais de parentesco determinam que os homens tenham certos direitos sobre as mulheres e

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    que as mulheres no tm os mesmos direitos nem sobre si mesmas nem sobre seus parentes de

    sexo masculino. Nesse sentido, a troca de mulheres revela uma percepo profunda de um

    sistema no qual as mulheres no tm direitos plenos sobre si mesmas.

    Para Rubin (2003), se Lvi-Strauss tem razo em ver a troca de mulheres como um

    princpio fundamental do parentesco, a subordinao das mulheres pode ser vista como um

    produto das relaes por meio das quais sexo e gnero so organizados e produzidos. A troca

    de mulheres um primeiro passo na construo de um conjunto de conceitos com os quais se

    podero descrever os sistemas sexuais.

    Na continuidade da anlise sobre as teses de Lvi-Strauss, Rubin (2003) destaca que

    a explicao da estrutura lgica subjacente toda anlise do parentesco, leva a um nvel mais

    geral de pensamento acerca da organizao social do sexo baseado em gnero

    obrigatoriedade da heterossexualidade e represso da sexualidade da mulher.

    Rubin (2003) conclui que gnero uma diviso dos sexos imposta socialmente. um

    produto das relaes sociais e de sexualidade. Os sistemas de parentesco baseiam-se no

    casamento. Por isso, transformam pessoas do sexo masculino e pessoas de sexo feminino em

    homens e mulheres, sendo que cada um uma metade incompleta que s pode completar-

    se unindo-se outra. Para ela, o parentesco encoraja a heterossexualidade.

    Em nuas palavras, o gnero imposto aos indivduos como forma de o casamento ser

    garantido. Obviamente, o casamento heterossexual e monogmico.

    por isso mesmo que, segundo Rubin, a monogamia uma forma de opresso da

    sexualidade feminina, s reforando o sistema de parentesco aludido por Lvi-Strauss.

    No pensamento de Joan Scott (1989), em Gnero, uma categoria til para anlise,

    gnero importante para problematizar o lugar da mulher na relao com o homem, j que

    tece crticas ao patriarcalismo, ao feminismo marxista e s teorias psicanalticas. A autora

    afirma que gnero tem uma histria. E, para ela, o uso do conceito de gnero coloca nfase

    sobre todo um sistema de relaes que pode incluir o sexo, mas que no diretamente

    determinado pelo sexo nem determina diretamente a sexualidade.

    A autora afirma que no campo das cincias humanas e da crtica, na linha ps

    estruturalista, que a discusso de gnero toma uma direo de categoria de anlise. Assim, na

    definio de gnero, Scott preconiza ser elemento constitutivo das relaes sociais, baseado

    nas diferenas entre os sexos, e forma de significar as relaes de poder.

    E no campo das relaes de poder que se discute o paradigma ocidental da

    monogamia, como forma de opresso do sexo feminino. Para Scott (1989),

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    S podemos escrever a histria desse processo se reconhecermos que homens

    e mulheres so, ao mesmo tempo, categorias vazias e transbordantes. Vazias

    porque elas no tm nenhum significado definitivo e transcendente;

    transbordantes porque, mesmo quando parecem fixadas, elas contm dentro

    delas, definies alternativas, negadas ou reprimidas.

    O pensamento de Lia Zanota Machado (1988), com a proposta metodolgica de

    desnaturalizao do gnero e desconstrucionismo, tambm se conforma com essa linha

    terica. Para a autora, a metodologia desconstrucionista, aliada crtica foucaltiana do poder,

    hermenutica e descrio densa, tal como elaboradas e combinadas pelas pesquisas de

    gnero e pelas pesquisas feministas, foi capaz de produzir a desnaturalizao metodolgica de

    gnero.

    Em linhas conclusivas, mas no com a pretenso de esgotar um tema to instigante e

    desafiador, que se afirma que a teoria queer atua na diferena sexual para descontruir. um

    processo de desnaturalizao do gnero (no algo na natureza, pensa nas identidades sexuais

    e como essa identidade naturalizada).

    Com isso, as teorias queers tentam explicar a opresso da mulher, j que a

    sexualidade no da ordem da natureza, mas da ordem do poder. Se por um lado, s se pode

    entender o que gnero se acessar as discusses sobre relaes de poder, por outro, pode-se

    ter uma compreenso do gnero na fico da diferena sexual. O gnero enquanto uma norma,

    gnero enquanto performace. Isso porque no h uma essncia anterior prtica. preciso

    reiterar a norma de gnero para se tornar homem ou mulher. Os sujeitos, para serem

    considerados humanos, obedecem a uma regra que tem um corpo como fundante.

    2.3 Direito e Monogamia

    ...pois ao Direito no dado sentir cimes pela parte supostamente

    trada...

    Ayres Brito (Ministro do Supremo Tribunal Federal)

    Nos dias atuais, esto desaparecendo os elementos necessrios para a predominncia

    da monogamia. Se, no pensamento de Engels, a monogamia tem lugar na famlia

    matrimonializada, verifica-se um declnio da importncia do casamento oficial. Essa

    realidade, aliada a um aumento significativo do nmero de separaes e divrcios, com a

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    experincia do casamento-rompimento-recasamento, torna ntida uma maior preferncia pelas

    unies livres e surgem no cenrio outros arranjos familiares menos usuais.

    Com efeito, as unies livres proporcionam novos pactos conjugais, tambm mais

    livres da interferncia do Estado e dos regulamentos legais. Entretanto, no se pode negar que

    o valor jurdico dado monogamia tem reflexo direto e imediato no reconhecimento do

    poliamorismo.

    Nesse contexto, h um nmero significativo de autores do direito que elencam a

    monogamia como um princpio do Direito das Famlias, ou seja, como parte de um ncleo

    intangvel da vida conjugal. Ao mesmo tempo, a monogamia, assim considerada enquanto

    princpio jurdico, tem sido corriqueiramente utilizada na defesa da impossibilidade do

    reconhecimento das unies simultneas como forma de famlia.

    impossvel negar que os valores monogmicos encontram-se arraigados

    profundamente nas sociedades ocidentais. Uma prova clara dessa afirmao a de que no h,

    atualmente, qualquer ordenamento jurdico nos pases do Ocidente que aceite a poligamia ou

    poliandria como formas de constituio de famlia.

    Neste tpico, no entanto, no se pretende investigar acerca das origens culturais,

    polticas ou religiosas que culminaram com a disperso dos valores monogmicos em nossa

    sociedade, mas sim discutir se a monogamia consiste, verdadeiramente, em princpio

    juridicamente tutelado, comando normativo, bem como acerca das consequncias da sua

    superao como dogma estruturante do Direito das Famlias aplicadas ao caso especfico das

    unies simultneas.

    Explica Pereira (2004) que a monogamia se refere a um modo de organizao da

    famlia conjugal que encontra como contraponto o reconhecimento jurdico de uma relao

    extraconjugal simultnea quela j existente, seja ela paralela a um casamento ou a uma unio

    estvel. Para o autor, o fato de existirem relacionamentos adulterinos fora do ncleo

    conjugal no se incompatibiliza com o sistema monogmico, desde que estes relacionamentos

    no obtenham a tutela jurdica, isto , no sejam aceitos como se famlias fossem.

    A poligamia e a poliandria, nesse sentido, se caracterizariam pela compatibilizao

    entre mais de um ncleo conjugal, composto por um membro em comum. A infidelidade,

    nesses casos, tambm poderia se fazer presente quando o cnjuge ou companheiro mantivesse

    relaes conjugais com outrem alm do nmero de cnjuges previsto no ordenamento

    jurdico.

    J para Dias (2011) a monogamia no configura um princpio estatal do Direito das

    Famlias, mas sim uma regra que se limita proibio da coexistncia entre suas relaes

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    matrimonializadas, isto , no atingiria as situaes de simultaneidade entre duas unies

    estveis ou uma unio estvel e um casamento.

    Faria-se refletida, pois, na vigncia do crime previsto no artigo 235 do Cdigo Penal,

    que tipifica como crime a conduta de contrair, algum, sendo casado, novo casamento

    (caput), ou ainda, a de contrair casamento com pessoa j casada, se conhecida essa

    circunstncia (Pargrafo 1).

    Argumenta a referida terica que a Constituio no contempla o sistema

    monogmico enquanto princpio, tanto que rejeita a discriminao dos filhos advindos de

    relaes extraconjugais.

    A monogamia seria, sob tal tica, funo ordenadora da famlia, decorrente do

    triunfo da propriedade privada e de um conjunto de regras morais, interesses antropolgicos e

    psicolgicos, despidos de qualquer valor jurdico.

    A orientao que se mostra mais consentnea com as novas diretrizes do Direito, no

    entanto, a de Silva (2012). Para este autor, a imposio da monogamia como princpio

    estruturador do Direito de Famlia um discurso aprisionado em lugar comum.

    Ele consequncia da construo poltica e histrica da dominao masculina,

    referendada pelo direito cannico e, posteriormente, confirmada pelo Cdigo Civil, atravs de

    diversos dispositivos legais, que objetivam punir patrimonialmente o cnjuge que

    descumprir o dever de fidelidade apregoado pelo artigo seu 1.566, inciso I.

    Trata-se, em diferentes termos, de uma principiologia de excluso, pois com

    fundamento no to famigerado princpio da monogamia que a produo legislativa

    infraconstitucional e a sua interpretao pelos Tribunais tem renegado ao mundo do no

    direito e da invisibilidade jurdica diversas pessoas e arranjos familiares. A permanncia da

    caracterizao do concubinato em nosso ordenamento o maior exemplo dessa poltica de

    excluso social.

    No entanto, refora aquele jurista, a monogamia no subsiste enquanto princpio

    juridicamente relevante quando colocada em prova frente tbua axiolgica dos princpios

    constitucionais da dignidade humana, da solidariedade, da igualdade, da liberdade e da

    democracia (SILVA, 2012, p. 15).

    No h como no dar guarida ao posicionamento do autor. A constituio

    monogmica de famlia representa apenas uma forma de convivncia humana. parte do

    todo, parcela da miscelnea de arranjos afetivos que hoje podem ser encontrados em uma

    sociedade plural como a nossa.

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    Consider-la como princpio estruturante de nosso arcabouo legal o mesmo que

    afastar da tutela do Direito das Famlias1 toda uma gama de outras formas de convivncia que

    nutrem os mesmos laos de afetividade to caractersticos do conceito constitucional de

    famlia.

    , portanto, forma de discriminao, que tem em suas razes mais profundas valores

    religiosos e polticos carecidos de juridicidade, devendo ser, por isso, retirada do ordenamento

    jurdico por violar diretamente o princpio da igualdade ou da no discriminao, arrolado

    pelo artigo 3, inciso IV, da Constituio Federal, como um dos objetivos da Repblica

    Federativa do Brasil.

    Com fundamento no princpio da monogamia, doutrina e jurisprudncia tem

    tratado o concubinato e as unies simultneas como relaes de fato, capazes de produzirem

    efeitos apenas no campo obrigacional, afastados da proteo familiarista (FARIAS;

    ROSENVALD, 2009).

    Este tratamento, consoante j destrinchado no tpico anterior, reduz os componentes

    desses arranjos familiares a meros scios de uma sociedade empresria. Afasta da

    possibilidade de concesso de direitos alimentcios, previdencirios ou mesmo sucessrios

    para pessoas que conviveram com outras em um ambiente familiar. Como negar, ento, que

    os conviventes em simultaneidade tem tido a sua dignidade e a sua liberdade reiteradamente

    ofendidas?

    clarividente que a monogamia, quando elevada ao carter de princpio

    estruturante do Direito das Famlias, no se compatibiliza com o sistema constitucional

    fundado na igualdade, na afetividade, solidariedade e liberdade, como bem defendido por

    Silva (2012).

    A monogamia, nessa perspectiva, vive uma verdadeira crise em um meio de

    tolerncia e convivncia harmnica com valores culturais plurais, que caracterstica da atual

    fase do Direito das Famlias, marcado pela aceitao de uma pluralidade de arranjos

    familiares, que no se esgota nas previses expressas do texto constitucional.

    J se sentem sinais dessa crise com a prpria flexibilizao do dever conjugal da

    fidelidade, estampado no art. 1.566, inciso I, do Cdigo Civil. Fala-se em flexibilizao a

    comear pela alterao legislativa que expurgou do Direito Penal, em 2005, o crime de

    adultrio, previsto no artigo 240 do Cdigo Penal.

    1 Aqui, ressalta-se o carter plural da expresso, pois, conforme j colocado em tpico anterior, a famlia brasileira plural e heterognea, cheia de nuances prprias e em processo constante de modificao.

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    A partir da referida reforma, a fidelidade deixa de ser um bem jurdico de relevncia

    para que se justifique a sua proteo penal. Com acerto, agiu o legislador infraconstitucional,

    pois no havia nada de mais aberrante do que o Estado se ocupar em intervir na esfera ntima

    do casal, punindo penalmente os consortes que mantivessem relaes extraconjugais.

    O Poder Constituinte Reformador, no ano de 2010, mais uma vez reafirmou a

    superao do dever de fidelidade entre os cnjuges, ao dispor, atravs da Emenda

    Constitucional n 66, que o casamento civil se dissolve atravs do divrcio. Ps-se findo, a

    partir de ento, o obsoleto instituto da separao e, com ela, a discusso acerca da culpa

    pelo fim dos laos matrimoniais.

    O artigo 1.572 do Cdigo Civil, atualmente revogado pela Emenda Constitucional n

    66 previa a possibilidade de um dos cnjuges, na separao judicial, imputar ao outro a

    violao grave dos deveres do casamento dentre eles o de fidelidade gerando diversas

    sanes, como a utilizao do nome do outro (art. 1.578, CC), o direito de pleitear alimentos

    que no se restringissem aos necessrios sua sobrevivncia (art. 1.704, pargrafo nico,

    CC).

    Estas eram as nicas consequncias sofridas por aquele que descumprisse o dever de

    fidelidade imposto pela lei. Com a revogao de todos os dispositivos legais que tratam acerca

    da separao judicial, esvai-se tambm qualquer consequncia para o cnjuge infiel.

    O dever de fidelidade reduziu-se, nessa toada, a mero dever moral, pois no h que

    se falar em dever jurdico se do seu descumprimento no decorre uma sano.

    A bem da verdade, tanto a monogamia quanto o dever da fidelidade conjugal se

    resumem a valores morais e culturais, que no devem ser elevados categoria de institutos

    com efeitos jurdicos, no cabendo ao Estado perquirir acercar da fidelidade dos cnjuges ou

    mesmo da sua escolha quanto forma de se relacionar enquanto famlia.

    Esta uma concluso que estende seus efeitos diretamente ao caso especfico das

    unies em simultaneidade. Sejam elas constitudas em concomitncia ao casamento ou

    mesmo a outra unio estvel, o fato que a sua formao carrega em seu mago o

    descumprimento de um dever de fidelidade, em que um dos componentes de um ncleo

    familiar anterior, passa a manter relaes no eventuais e com intuito de constituio de

    famlia com outrem.

    Nesses casos, o dogma monogmico tambm se mostra quebrantado, uma vez que se

    verifica a formao de famlias paralelas juridicamente reconhecidas e protegidas pelo Direito

    das Famlias.

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    por essa razo que aqueles que entendem a monogamia como um princpio

    estruturante do Direito, com fora normativa, o reconhecimento das unies simultneas como

    espcies de entidades familiares estaria rechaado por encontrar bice do princpio

    monogmico.

    Todavia, essa tese cai por terra a partir da construo do pensamento que tem como

    ponto de partida o fundamento de que a monogamia e o dever de fidelidade conjugal se

    encontram superados em um contexto de constitucional e no subsistem frente aos princpios

    da dignidade da pessoa humana, da afetividade, da liberdade e igualdade entre as famlias.

    Essa a concluso a que se pretendia conduzir: a de que as unies simultneas so, a

    partir de uma leitura da Constituio, formas de famlia, no podendo os dogmas

    monogmicos ser utilizados como pretexto para excluir a proteo do Direito das Famlias aos

    indivduos que optaram por assim conviverem.

    REFERNCIAS

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    CONCURRENT FAMILIES: A SOCIAL AND LEGAL DIALOGUE

    ABSTRACT

    Family is central to human being and condition for his humanization

    and sociability, aside from being a permanent and global

    phenomenon. In all eras and societies has always existed some kind of

    family arrangement, always regenerating and reconfiguring. It is in

    this context that is part of the discussion on this plural composition of

    Brazilian family the place of families, making a simultaneous

    discussion intertwining law and social sciences. The work is

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    composed of two central themes: transformations in behaviors, in

    marriage and in the family, by connecting them to broader processes

    of social transformation. It will be studied the transformations in the

    family, the family resilience capacity, the social value of family and

    the desire for family and, also, how central unavoidable point, there is

    a discussion about monogamy, from the point of view of the theory of

    Engels, feminist theory and law. Monogamy, while dogma, presents

    himself as the main hindrance to recognize concurrent families.

    Discusses the origin, the fundamentals and the crisis of the

    monogamous model.

    Key words: Family. Transformation. Monogamy.