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Dicionário da educação do campo

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  • 1. Fundao Oswaldo CruzPresidentePaulo Ernani Gadelha VieiraEscola Politcnica de SadeJoaquim VenncioDiretorMauro de Lima GomesVice-diretor de Gesto e Desenvolvimento InstitucionalJos Orblio de Souza AbreuVice-diretora de Pesquisa e Desenvolvimento TecnolgicoMarcela PronkoVice-diretor de Ensino e InformaoMarco Antnio Santos

2. Roseli Salete Caldart Isabel Brasil Pereira Paulo Alentejano Gaudncio FrigottoOrganizadores 2012 Rio de Janeiro So PauloEscola Politcnica de Sade Joaquim VenncioExpresso Popular 3. Copyright 2012 dos organizadores Catalogao na fonteEscola Politcnica de Sade Joaquim VenncioBiblioteca Emlia BustamanteC145dCaldart, Roseli Salete (org.) Dicionrio da Educao do Campo. / Organizado por Roseli Salete Caldart, Isabel Brasil Pereira, Paulo Alentejano e Gaudncio Frigotto. Rio de Janeiro, So Paulo: Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio, Expresso Popular, 2012. 788 p. ISBN: 978-85-98768-64-9 (EPSJV) ISBN: 978-85-7743-193-9 (Expresso Popular) 1. Educao. 2. Dicionrio. 3. Educao do Campo. 4. Movimentos sociais do campo. I. Pereira, Isabel Brasil. II. Alentejano, Paulo. III. Frigotto, Gaudncio. IV. Ttulo. CDD 370.91734Edio de Texto Joo Sette CamaraLisa StuartReviso Lisa Stuart Capa, Projeto Grfico e Diagramao Z Luiz Fonseca Direitos desta edio reservados a: Escola Politcnica de Sade Expresso Popular Joaquim Venncio/FiocruzRua Abolio, 201 Av. Brasil, 4.365 01319-010 - Bela Vista 21040-360 - ManguinhosSo Paulo, SP Rio de Janeiro, RJTel: (11) 3105-9500 Tel.: (21) 3865-9797 (11) 3522-7516 www.epsjv.fiocruz.brwww.expressaopopular.com.br 4. SumrioApresentao 3A Acampamento21Agricultura camponesa 26Agricultura familiar 32Agriculturas alternativas40Agrobiodiversidade 46Agrocombustveis51Agroecologia57Agroecossistemas65Agroindstria72Agronegcio 79Agrotxicos 86Ambiente (meio ambiente) 94Articulaes em defesa da Reforma Agrria 103Assentamento rural 108C Campesinato 113Capital 121 5. Ciranda Infantil 125Comisso Pastoral da Terra (CPT)128Commodities agrcolas133Conflitos no campo 141Conhecimento 149Cooperao agrcola 157Crdito fundirio 164Crdito rural 170Cultura camponesa 178D Defesa de direitos 187Democracia190Desapropriao 198Desenvolvimento sustentvel 204Despejos 210Direito educao215Direitos humanos 223Diversidade 229E Educao bsica do campo 237Educao corporativa245Educao de jovens e adultos (EJA)250Educao do Campo 257Educao omnilateral 265 6. Educao politcnica272Educao popular 280Educao profissional 286Educao rural 293Emancipao versus cidadania299Ensino mdio integrado305Escola ativa 313Escola do campo324Escola itinerante331Escola nica do Trabalho337Escola unitria 341Estado 347Estrutura fundiria 353F Formao de educadores do campo 359Funo social da propriedade366Fundos pblicos372G Gesto educacional381H Hegemonia389Hidronegcio 395 7. I Idosos do campo403Indstria cultural e educao 410Infncia do campo417Intelectuais coletivos de classe 424J Judicializao 431Juventude do campo437L Latifndio 445Legislao educacional do campo451Legitimidade da luta pela terra 458Licenciatura em Educao do Campo 466M Mstica 473Modernizao da agricultura 477Movimento de Mulheres Camponesas (MMC Brasil) 481Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) 487Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) 492Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) 496MST e educao 500 8. O Ocupaes de terra 509Oramento da educao e supervit513Organizaes da classe dominante no campo 519P Pedagogia das competncias 533Pedagogia do capital 538Pedagogia do movimento 546Pedagogia do Oprimido 553Pedagogia socialista 561Poltica educacional e Educao do Campo 569Polticas educacionais neoliberais e Educao do Campo576Polticas pblicas 585Povos e comunidades tradicionais 594Povos indgenas600Produo associada e autogesto612Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH)618Programa Nacional de Educao na Reforma Agrria(Pronera) 629Q Questo agrria639Quilombolas 645Quilombos 650 9. R Reforma Agrria657Renda da terra667Represso aos movimentos sociais 673Residncia Agrria679Revoluo Verde685S Sade no campo 691Sementes697Sindicalismo rural704Sistemas de avaliao e controle 712Soberania alimentar714Sujeitos coletivos de direitos 724Sustentabilidade 728T Tempos humanos de formao733Terra 740Territrio campons744Trabalho como princpio educativo748Trabalho no campo 755Transgnicos759 10. V Via Campesina765Violncia social 768Autores 777 11. ApresentaoO Dicionrio da Educao do Campo uma obra de produo coletiva. Suaelaborao foi coordenada pela Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio(EPSJV), da Fundao Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro, e pelo Mo-vimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Sua elaborao envolveuum nmero significativo de militantes de movimentos sociais e profissionais daEPSJV e de diferentes universidades brasileiras, dispostos a sistematizar experi-ncias e reflexes sobre a Educao do Campo em suas interfaces com anlisesj produzidas acerca das relaes sociais, do trabalho, da cultura, das prticas deeducao politcnica e das lutas pelos direitos humanos no Brasil.Nosso objetivo foi o de construir e socializar uma sntese de compreensoterica da Educao do Campo com base na concepo produzida e defendidapelos movimentos sociais camponeses. Os verbetes selecionados referem-se prio-ritariamente a conceitos ou categorias que constituem ou permitem entender ofenmeno da Educao do Campo ou que esto no entorno da discusso de seusfundamentos filosficos e pedaggicos. Tambm inclumos alguns verbetes querepresentam palavras-chave, ou que podem servir como ferramentas, do vocabu-lrio de quem atualmente trabalha com a Educao do Campo ou com prticassociais correlatas. Alguns verbetes tm referncia direta com experincias, sujei-tos e lutas concretas que constituem a dinmica educativa do campo hoje. Outrosrepresentam mediaes de interpretao dessa dinmica.O Dicionrio da Educao do Campo visa atingir a um pblico bem diversificado:militantes dos movimentos sociais, estudantes do ensino mdio ps-graduao,educadores das escolas do campo, pesquisadores da rea da educao, profissio-nais da assistncia tcnica, lideranas sindicais e polticas comprometidas com aslutas da classe trabalhadora.Esta primeira edio do Dicionrio inclui 113 verbetes e envolveu 107 autoresem sua produo.A Educao do Campo est sendo entendida nesta obra como um fenmenoda realidade brasileira atual que somente pode ser compreendido no mbito con-traditrio da prxis e considerando seu tempo e contexto histrico de origem. Aessncia da Educao do Campo no pode ser apreendida seno no seu movimentoreal, que implica um conjunto articulado de relaes (fundamentalmente con-tradies) que a constituem como prtica/projeto/poltica de educao e cujosujeito a classe trabalhadora do campo. esse movimento que pretendemosmostrar na lgica de constituio do Dicionrio e na produo de cada texto(considerados os limites prprios a uma obra dessa natureza).A compreenso da Educao do Campo se efetiva no exerccio analtico deidentificar os polos do confronto que a institui como prtica social e a tomada 12. Dicionrio da Educao do Campode posio (poltica, terica) que constri sua especificidade e que exige a relaodialtica entre particular e universal, especfico e geral. H contradies especfi-cas que precisam ser enfrentadas, trabalhadas, compreendidas na relao com ascontradies mais gerais da sociedade brasileira e mundial. O projeto educativoda Educao do Campo toma posio nos confrontos: no se constri ignoran-do a polarizao ou tentando contorn-la. No confronto entre concepes deagricultura ou de educao, a Educao do Campo toma posio, e essa posioa identifica. Porm a existncia do confronto que essencialmente define a Edu-cao do Campo e torna mais ntida sua configurao como um fenmeno darealidade atual.Esse posicionamento distingue/demarca uma posio no debate: a especifi-cidade se justifica, mas ficar no especfico no basta, nem como explicao nemcomo atuao, seja na luta poltica seja no trabalho educativo ou pedaggico. AEducao do Campo se confronta com a Educao Rural, mas no se configuracomo uma Educao Rural Alternativa: no visa a uma ao em paralelo, massim disputa de projetos, no terreno vivo das contradies em que essa disputaocorre. Uma disputa que de projeto societrio e de projeto educativo.Para a composio do Dicionrio tomamos como eixos organizadores da sele-o dos verbetes a trade de alguma maneira j consolidada por determinada tra-dio de debate sobre a Educao do Campo: temos afirmado que esse conceitono pode ser compreendido fora das relaes entre campo, educao e poltica pblica.Porm, decidimos incluir no Dicionrio um quarto eixo, o de direitos humanos, pe-las interfaces importantes de discusso que vislumbramos para seus objetivos.O desafio duplo e articulado: apreender o confronto ou a polarizao prin-cipal que constitui cada eixo e apreender as relaes entre eles. Cada eixo ou cadaparte podem ser entendidos/discutidos especificamente, mas em si mesmos noso a Educao do Campo, que, como totalidade, somente se compreende nainterao dialtica entre essas dimenses de sua constituio/atuao.A prpria questo da especificidade depende da relao: temos afirmado que aespecificidade da Educao do Campo est no campo (nos processos de trabalho,na cultura, nas lutas sociais e seus sujeitos concretos) antes que na educao, masessa compreenso j supe uma determinada concepo de educao: a que con-sidera a materialidade da vida dos sujeitos e as contradies da realidade comobase da construo de um projeto educativo, visando a uma formao que nelasincida. A realidade do campo constitui-se, pois, na particularidade dada pela vidareal dos sujeitos, ponto de partida e de chegada dos processos educativos. Toda-via, seu horizonte no se fixa na particularidade, mas busca uma universalidadehistrica socialmente possvel.A compreenso do movimento interno aos eixos e entre eles nos ajuda a res-ponder, afinal, qual o problema ou a questo especfica da Educao do Campo.No eixo identificado como campo entendemos que o confronto especficofundamental o que se expressa na lgica includa nos termos agronegcio eagricultura camponesa, que manifesta, mas tambm constitui, em nosso tempo,a contradio fundamental entre capital e trabalho. E que coloca em tela (essa uma novidade de nosso tempo) uma contradio nem sempre percebida nesse 14 13. Apresentaoembate: h um confronto entre modos de fazer agricultura, e a pergunta que osmovimentos sociais situados no polo do trabalho esto colocando sociedade serefere ao modo de fazer agricultura que projeta futuro, especialmente consideran-do a necessidade de produzir alimentos para a reproduo da vida humana, paraa humanidade inteira, para o planeta. Essa uma questo que no tem como serformulada desde o polo do capital (ser agenda do agronegcio) seno como farsaou cinismo. Por isso tambm o capital pode admitir (em tempos de crise) discutirsegurana alimentar, mas no pode, sem trair a si mesmo, aceitar o debate acer-ca da soberania alimentar (pautado hoje pela agricultura camponesa).Integra esse confronto a compreenso de que no a mesma coisa tratar deagricultura camponesa e de agricultura familiar: ambos os conceitos se referemaos trabalhadores, mas h uma contradio a ser explorada em vista do embate deprojetos, com o cuidado de no confundi-la com o confronto principal. importante ter presente o movimento desse embate para compreender arelao com um projeto educativo dos trabalhadores que o assuma: o polo daagricultura camponesa no tem como ser vitorioso no horizonte da sociedadedo capital. Em uma sociedade do trabalho, porm, o projeto de uma agriculturade base camponesa certamente ter de ir bem mais longe do que certas posiesassumidas hoje, que a colocam como retorno ao passado, especialmente do pontode vista tecnolgico, ou no particularismo e isolamento de experincias de gruposlocais. Por sua vez, essas experincias, quando radicais, tm sido combatidas pelocapital exatamente porque mostram que h alternativas agricultura industrialcapitalista, e isso desestabiliza sua hegemonia: quanto mais agonizante o sistemamais desesperadamente precisa fazer com que todos acreditem que no h alter-nativas fora da sua lgica, em nenhum plano.Tambm necessrio ter em foco que a porta de entrada da Educao doCampo nesse confronto foi a luta pela Reforma Agrria, que trouxe para a suaconstituio originria os movimentos sociais, como protagonistas do enfrenta-mento de classe, e determinada forma de luta social que carrega junto (nesse eixo ena relao entre os eixos) a relao contraditria e tensa entre movimentos sociais(de trabalhadores) e Estado na sociedade brasileira. prpria desse eixo outra discusso fundamental (justamente para que con-tradies secundrias no tomem o lugar da contradio principal): estamos com-preendendo que o conceito de campons, construdo desde o confronto prin-cipal, pode representar o sujeito (coletivo) da Educao do Campo, ainda que noconcreto real os sujeitos trabalhadores do campo sejam diversos e nem todos caibamno conceito estrito de trabalhadores camponeses. No Dicionrio foram includosoutros conceitos que nos ajudam a explicitar/trabalhar com a diversidade queintegra a realidade e o debate de concepo em que se move a Educao do Cam-po, sem comprometer a unidade do polo do trabalho no embate especfico entreprojetos de agricultura, que consideramos fundamental na atualidade.No eixo identificado como educao (concepo de educao) temos no planoespecfico o confronto principal com a educao rural (tambm na sua faceatual de educao corporativa), mas na base desse confronto est a contra-dio entre uma pedagogia do trabalho versus uma pedagogia do capital, que se 15 14. Dicionrio da Educao do Campodesdobrar nas questes fundamentais de objetivos formativos, de concepo deeducao, de matriz formativa, de concepo de escola.H uma determinada concepo de educao que tem sustentado as lutas daEducao do Campo e est presente nos diferentes eixos. Seu vnculo originrio,que se constitui pelas determinaes do seu nascimento no eixo campo (tomadade posio pelos movimentos sociais dos trabalhadores Sem Terra, pela agricultu-ra camponesa...), com o que tem sido chamado de Pedagogia do Movimento,formulao terica constituda desde a pedagogia do MST (sua base emprica ereflexiva imediata), por sua vez herdeira das prticas e reflexes da pedagogiado oprimido e da pedagogia socialista, e mais amplamente de uma concepode educao e de formao humanas de base materialista, histrica e dialtica.Herana que fundamento, continuidade, recriao desde a sua materialidadeespecfica e os desafios do seu tempo.H uma disputa de projetos educativos e pedaggicos que se radica no con-fronto de projetos de sociedade e de humanidade, e se especifica nos embatesdesses projetos no pensar e fazer a educao dos camponeses. E h tambm po-sies e embates que no representam o confronto principal, mas que precisamser enfrentados, na compreenso de qual forma educativa efetivamente fortalece oscamponeses para as lutas principais e para a construo de novas relaes sociais,porque lhes humaniza mais radicalmente e porque assume o desafio de formaode uma sociabilidade de perspectiva socialista. Desdobram-se desse embate dife-rentes questes: de concepo de conhecimento, da necessria apropriao pelostrabalhadores dos conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade,mas tambm sua tomada de poder sobre as decises acerca de quais conheci-mentos continuaro a ser produzidos, e o modo de produo do conhecimento,e sobre qual forma escolar pode dar conta de participar de um projeto educativocom essas finalidades.No eixo da poltica pblica, os contornos do confronto principal se situamentre os direitos universais, que somente podem definir-se no espao pblico, eas relaes sociais, afirmadas na propriedade privada dos meios e instrumentosde produo da existncia e no Estado que a garante. Considerando que a rela-o entre movimentos sociais e Estado est na constituio da forma de fazer aluta pela Reforma Agrria no Brasil que est na origem da Educao do Campo,entendemos que o confronto que a constitui no est em lutar ou no por pol-ticas pblicas. Porque lutar por polticas pblicas representa o confronto com algica do mercado, expresso da liberdade para o desenvolvimento do polo docapital. Mas uma questo que demarca o confronto diz respeito a quem tem oprotagonismo na luta pela construo de polticas pblicas e a que interesses elasdominantemente atendero. A disputa do fundo pblico para educao, forma-o tcnica, sade, cultura, apoio agricultura camponesa e ao acesso moradia,entre outros, constitui-se em agenda permanente, dado que, cada vez mais, essefundo tem sido apropriado para garantia da reproduo do capital e, no campo,pelo agronegcio.Tambm fundamental considerar nesse embate que quando o polo do traba-lho (por meio das organizaes dos trabalhadores) apresenta demandas coletivas 16 15. Apresentaoao Estado, explicita a contradio entre direitos coletivos e presso direta pelossujeitos de sua conquista concreta versus direitos em tese universais (ou univer-salizados) que devem ser cobrados/atendidos individualmente.E h ainda um confronto acerca da concepo e dos objetivos mais amplosdas relaes necessrias conquista ou construo de polticas pblicas: a partirdos movimentos sociais camponeses originrios da Educao do Campo, trata-sede entender que a luta pela chamada democratizao do Estado (e nos limitesdo que se identifica como Estado democrtico de direito) uma das lutas dessemomento histrico e no a luta por meio da qual se chegar a uma transformaomais radical da sociedade. Por sua vez, isso significa entender que negociaes econquista de espaos nas diferentes esferas do Estado podem ser um caminho aseguir em determinadas conjunturas, mas definitivamente no substituem, nemdevem secundarizar, em nenhum momento, a luta de massas como estratgiainsubstituvel do confronto principal e de formao dos trabalhadores para atransformao e construo da nova forma social.O eixo dos direitos humanos aborda essa tenso e como ela deve ser tratadacom vigilncia crtica. Chama nossa ateno sobre como a violao dos direitoshumanos integra a forma de instaurao dos projetos do grande capital na pe-riferia, dos projetos de modernizao retardatria aos projetos da modernidadeglobalizada. A histria sem pretenso de salvar ou condenar a dialtica negativa epositiva que se movimenta na/pela prxis humana segue um tempo agonizante,de fraturas intransponveis, de memrias reprimidas, um presente estilhaado porguerras e muros, por fome, desinteresse e medo, um presente que no v o mardo futuro. A dificuldade da viso/imaginao do mar do futuro no elimina arealidade de desej-lo, de senti-lo, reatualizando a promessa de viv-lo enquantohumanidade, com necessidade de liberdade. Campo e cidade se indiferenciamna crescente violao dos direitos humanos, que atinge no apenas os militantessociais, mas tambm os trabalhadores, seus filhos e netos, todos desfigurados pelacriminalizao da pobreza e de toda luta social que se coloque no horizonte daemancipao humana.Hoje, compreender as dimenses da luta poltica na sociedade brasileira con-tempornea encarar a crueldade dos limites e das potencialidades que a lutapelos direitos humanos nos revela. No Dicionrio, esse eixo tem interface diretacom as contradies especficas indicadas no eixo das polticas pblicas, especial-mente no que se refere ampliao ou reduo do espao pblico em nomedos interesses do capital, e hoje, notadamente, do capital financeiro. A seleode verbetes tambm busca mostrar a relao entre luta por polticas pblicasde interesse dos trabalhadores e presso (pelas formas de luta assumidas pelosmovimentos sociais) por alternativas ordem jurdica vigente. Qual o significadodo debate no plano jurdico sobre funo social da propriedade, limite depropriedade, sementes modificadas, legitimidade das lutas sociais? O querepresenta uma escola itinerante de acampamentos de luta pela terra ser umaescola pblica? Ao mesmo tempo, preciso trazer tona os movimentos sociaiscomo sujeitos produtores de direitos que vo alm dos direitos liberais a que sepodem vincular hoje as polticas pblicas.17 16. Dicionrio da Educao do CampoO processo de produo do Dicionrio envolveu aproximadamente um anode trabalho, aps a deciso tomada entre os parceiros sobre sua elaborao. Aexperincia anterior da Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio de pro-duo do Dicionrio da Educao Profissional em Sade (2006) foi fundamental paraagilizar decises metodolgicas e de organizao coletiva deste trabalho. As de-cises principais foram tomadas em oficinas, e a definio de que seguiramos,na seleo dos verbetes e seus contedos, a lgica dos eixos antes mencionados,estabeleceu uma dinmica de trabalho ao mesmo tempo por eixo e entre os eixos,seja na indicao dos autores e na elaborao das ementas dos verbetes, seja nainterlocuo com cada autor e no processo de leitura e discusso coletiva dostextos produzidos. Foi sem dvida um processo de formao organizativa detrabalho cooperado para todos ns.Houve uma orientao geral aos autores, de modo a garantir contedos acor-des ao debate proposto e certo padro de formatao dos textos, mas foramacolhidas as sugestes de contedo e as diferenas de estilo de escrita, prpriasdo largo espectro de prticas ou de atuao especfica do conjunto de autoresenvolvido nessa construo. Dada a concepo do Dicionrio como obra de re-ferncia, no foi exigido ineditismo dos textos, e alguns verbetes possuem trechosj publicados por seus autores em outras obras.O Dicionrio, pela seleo e pelo contedo dos verbetes, busca materializara concepo de produo do conhecimento desde uma perspectiva dialtica emque a parte ou a particularidade somente ganha sentido e compreenso dentro deuma totalidade histrica. Nessa concepo, os campos e os verbetes resultam dodilogo com diferentes reas e diferentes formas de produo do conhecimento.Buscamos ter, no conjunto da obra, uma coerncia bsica de abordagem teri-ca, respeitando os contraditrios que expressam o movimento real das discussese das prticas que compem hoje o debate da Educao do Campo e para almdela. Tratamos de questes complexas, sobre as quais no h total consenso ouposies amadurecidas, mesmo a partir de um determinado campo poltico. Ten-tamos no alimentar falsas ou artificiais polmicas, mas tambm nosso objetivosuscitar debates sobre pontos que tm aparecido como fundamentais no avanodo projeto educativo e societrio assumido.O Dicionrio, embora tenha sido elaborado a partir de eixos, foi organizadopelos verbetes em ordem alfabtica, pelo entendimento de que essa viso interei-xos pedagogicamente mais fecunda para o objetivo que temos de firmar umaconcepo de abordagem ou de tratamento terico e prtico da Educao doCampo.Agradecemos a disponibilidade, a disciplina e o trabalho solidrio do conjun-to dos autores dessa obra, sem o que ela no teria sido possvel nesse tempo enem teria a forma que agora apresentamos para a crtica dos leitores. Agradece-mos igualmente a todos os profissionais/trabalhadores da Escola Politcnica deSade Joaquim Venncio que se envolveram em cada procedimento necessrio produo e edio desta obra. 18 17. ApresentaoPor fim, gostaramos de fazer um agradecimento especial a algumas pessoas:Clarice Aparecida dos Santos, Mnica Castagna Molina e Roberta Lobo, que par-ticiparam conosco da equipe de coordenao do Dicionrio, respondendo pe-los eixos de polticas pblicas e direitos humanos, respectivamente; Joo PedroStedile, Neuri Domingos Rossetto e Juvelino Strozake, pela contribuio em di-ferentes momentos da produo desta obra; e a Ctia Guimares, pelo trabalhorigoroso na coordenao do processo de reviso final dos textos.Caber a todos ns, autores e leitores, verificar se o conjunto do Dicionrioconseguiu ajudar a pr alguma ordem nas ideias, evidenciando e contribuindo para acompreenso das relaes que compem a totalidade complexa de constituioda Educao do Campo e para a formulao das questes necessrias continui-dade dessa elaborao e das lutas prticas que justificam e movem/devem moverdebates como esse.Os organizadores 19 18. A AAcampamentoBernardo Manano Fernandes Acampamento um espao de lutao, manifesta tanto resistncia quantoe resistncia. a materializao depersistncia. Em 1962, os sem-terrauma ao coletiva que torna pblica a comearam a organizao de acam-intencionalidade de reivindicar o direi-pamentos no Rio Grande do Sul, porto terra para produo e moradia. O meio do Movimento dos Agricultoresacampamento uma manifestao per- Sem Terra (Master) (Eckert, 1984).manente para pressionar os governos Esse espao de luta passou a ser re-na realizao da Reforma Agrria. Par-produzido por centenas de movimen-te desses espaos de luta e resistncia tos camponeses nas dcadas de 1990 eresultado de ocupaes de terra; outra2000, com diferentes formas de orga-parte, est se organizando para prepa-nizao, mas sempre com o objetivo derar a ocupao da terra. A formao doconquistar a terra (Fernandes, 1996 eacampamento fruto do trabalho de2000; Feliciano, 2006).base, quando famlias organizadas emEstar no acampamento resultadomovimentos socioterritoriais se ma- de decises difceis tomadas com basenifestam publicamente com a ocupa-nos desejos e interesses de quem quero de um latifndio. Com esse ato, astransformar a realidade. Todavia, deci-famlias demonstram sua inteno de dir pelo acampamento optar pela lutaenfrentar as difceis condies nos e resistncia. preciso saber lidar combarracos de lona preta, nas beiras daso medo: ir ou ficar? O medo de no darestradas; demonstram tambm que certo, da violncia dos jagunos e mui-esto determinadas a mudar os rumos tas vezes da polcia. preciso tambmde suas vidas, para a conquista da terra, se preparar para viver em condiesna construo do territrio campons. precrias (Feliciano, 2006). Por ser um Os acampamentos so espaos eespao de mobilizao para pressionartempos de transio na luta pela terra. o governo a desapropriar terras, emSo, por conseguinte, realidades em suas experincias, os sem-terra com-transformao, uma forma de materia-preenderam que acampar sem ocuparlizao da organizao dos sem-terra, dificilmente leva conquista da terra.trazendo em si os principais elementosA ocupao da terra um trunfo nasorganizacionais do movimento. Osnegociaes. Muitos acampamentos fi-acampamentos so, predominante- caram anos nas beiras das rodovias semmente, resultado de ocupaes. Assimque os trabalhadores conseguissem sersendo, demarcam nos latifndios e nos assentados. Somente com a ocupao,territrios do agronegcio os primei- obtiveram xito na luta. Para impedir oros momentos do processo de territo-avano da luta pela terra por meio dasrializao camponesa. aes de ocupao/acampamento, o Acampar uma antiga forma deGoverno Fernando Henrique Cardosoluta camponesa que, associada ocupa-criou a medida provisria n 2.109-50,23 19. Dicionrio da Educao do Campode 27 de maro de 2001, que suspende enfrentamento com jagunos. Podempor dois anos a desapropriao de reasestar localizados na beira das estradas,ocupadas pela primeira vez e por qua-em fundos de vale ou prximo de es-tro anos as ocupadas por duas ou maispiges. Os arranjos dos acampamentosvezes. Essa medida poltica foi um dos so predominantemente circulares oumotivos que levaram a mudanas nas lineares. Nesses espaos, existem lu-formas dos acampamentos. gares onde, muitas vezes, os sem-terraEmbora os acampamentos mante-plantam suas hortas, estabelecem anham a mesma essncia de serem es- escola e a farmcia, e tambm opao de luta e resistncia, conforme local das assembleias.a conjuntura poltica da luta, os sujei-Ao organizar um acampamento, ostos mudam a forma de organizao sem-terra criam diversas comisses oudo acampamento. Os acampamentosequipes, que do forma organizao.como espaos de luta e resistncia so Delas participam famlias inteiras oulugares que marcam as histrias de vidaparte de seus membros. Essas comis-dos sem-terra, como o cineasta Paulo ses criam as condies bsicas paraRufino conseguiu exprimir de maneira a manuteno das necessidades dosto objetiva quanto potica: acampados: sade, educao, segu- rana, negociao, trabalho etc. DessaDos campos, das cidades, das forma, os acampamentos, frequente-frentes dos palcios, os sem-mente, contam com escolas ou seja,terra, este povo de beira de qua-barracos de lona nos quais funcionamse tudo, retiram suas lies desalas de aula, principalmente as quatrosemente e histria. Assim, es- primeiras sries do ensino fundamen-premidos nessa espcie de geo- tal, alm de cursos de alfabetizao degrafia perdida que sobra entre adultos e com uma farmcia im-as estradas, que por onde pas- provisada, que funciona em um dossam os que tm para onde ir, e barracos. Quando acampados dentroas cercas, que onde esto os de um latifndio, plantam em mutiro,que tm onde estar, os sem-terra para garantirem parte dos alimentossabem o que fazer: plantam. Ede que necessitam; quando acampadosplantam porque sabem que te- na estrada, plantam no espao entre aro apenas o almoo que pude-rodovia e as cercas das propriedades;rem colher, como sabem que quando acampados prximos a as-tero apenas o pas que pude-sentamentos, trabalham nos lotes dosrem conquistar. (Paulo Rufino, assentados como diaristas ou em di-O canto da terra, 1991)ferentes formas de meao. Tambm vendem sua fora de trabalho como primeira vista, os acampamentosboias-frias para usinas de lcool e a-parecem ser ajuntamentos desorgani-car e outras empresas capitalistas ou,zados de barracos. Todavia, possuemainda, para pecuaristas.disposies especficas que decorremO cotidiano dos acampamentosda topografia do terreno, das condi- difere pela prpria diversidade cultu-es de desenvolvimento da resistn- ral e regional, mas todos mantm ascia ao despejo e das perspectivas de caractersticas fundantes do movimen-24 20. AcampamentoAto, como a resistncia e o objetivo dee organizando tambm novas famlias,especializar a luta. Nos acampamentos que se integram ao acampamento.do Nordeste ou do Sudeste, poss- Ao organizarem a ocupao davel observar diferenas e semelhan- terra, os Sem Terra promovem umaas nos seus cotidianos (Justo, 2009; ao concreta de repercusso imedia-Loera, 2009; Sigaud, 2009). Alm dasta. A ocupao coloca em questo adiferenas em relao localizao dos propriedade capitalista da terra, quan-acampamentos, h tambm diferenasdo do processo de criao da proprie-na sua durao, por causa das aes e dade familiar, pois ao conquistamreaes dos movimentos, governos, la- a terra, os Sem Terra transformam atifundirios e capitalistas.grande propriedade capitalista emNa dcada de 1980, os acampamen-unidades familiares.tos recebiam alimentos, roupas e rem-O acampamento lugar de mobi-dios, principalmente das comunidadeslizao constante. Alm de espao dee de instituies de apoio luta. Desdeluta e resistncia, tambm espaoo final dos anos 1980 e o incio da d- interativo e comunicativo. Essas trscada de 1990, com o crescimento dodimenses do espao de socializaonmero de assentamentos, os assen-poltica desenvolvem-se no acampa-tados tambm passaram a contribuirmento em diferentes situaes. No in-de diversas formas para a luta. Muitoscio do processo de formao do MST,cedem caminhes para a realizao na dcada de 1980, em diferentes expe-das ocupaes, tratores para preparar rincias de acampamentos, as famliasa terra e alimentos para a populaopartiam para a ocupao somente de-acampada. Esse apoio mais significa-pois de meses de preparao nos tra-tivo quando os assentados esto vincu-balhos de base. Desse modo, os Semlados a uma cooperativa. Essa uma Terra visitavam as comunidades, rela-marca da organicidade do Movimentotavam suas experincias, provocavam odos Trabalhadores Rurais Sem Terradebate e desenvolviam intensamente o(MST), por exemplo. espao de socializao poltica em suasNa segunda metade da dcada dedimenses comunicativa e interativa.1990, em alguns estados, o MST come-Esse procedimento possibilita o esta-ou uma experincia que denominou belecimento do espao de luta e resis-de acampamento permanente ou acam-tncia de forma mais organizada, poispamento aberto. Esse acampamento as famlias das comunidades passam aestabelecido em regies onde existemconhecer os diferentes tipos de enfren-muitos latifndios. um espao de luta tamentos da luta. Em seu processo dee resistncia para o qual as famlias deformao, como resultado da prpriadiversos municpios se dirigem, a fim demanda da luta, o MST construiu ou-de participarem da luta organizada pela tras experincias. Assim, nos trabalhosterra. Desse acampamento permanente,de base, deixou-se de se desenvolver aos Sem Terra partem para vrias ocupa-dimenso interativa, que passou a teres, e podem transferir-se para elas ou, lugar no espao de luta e resistncia.em caso de despejo, retornar ao acam- E ainda, quando h um acampamentopamento permanente. Conforme vopermanente ou aberto, as famlias po-conquistando a terra, vo mobilizando dem iniciar-se na luta, inaugurando o25 21. Dicionrio da Educao do Campoespao comunicativo por meio da ex- menos trs dos acampamentos histri-posio de suas realidades nas reunies cos no processo de formao e territo-para organizar as ocupaes. o querializao do MST: o acampamento daacontece quando os Sem Terra estoEncruzilhada Natalino, em Ronda Altalutando pela conquista de vrias fazen- (RS), de 1980 a 1982; o acampamentodas, e novas famlias vo se somandono Seminrio dos Padres Capuchinhos,ao acampamento, enquanto outras vo em Itamaraju (BA), de 1988 a 1989; esendo assentadas (Fernandes, 2000). o acampamento Unio da Vitria, emNo acampamento, os Sem TerraMirante do Paranapanema, na regiofazem periodicamente anlises da con- do Pontal do Paranapanema (SP), dejuntura da luta. Essa leitura poltica1992 a 1994 (Fernandes, 1996 e 2000).pelos movimentos socioterritoriaisGarantir a existncia do acampamento,no implica maiores dificuldades, poispor meio da resistncia, impedindo aeles esto em contato permanente comdisperso causada por diferentes for-suas secretarias, de modo que podem mas de violncia, fundamental para ofazer anlises conjunturais com basesucesso da luta na conquista da terra.em referenciais polticos amplos, como Os Sem Terra ocupam a terra, pr-os das negociaes em andamento nas dios pblicos e espaos polticos diver-capitais dos estados e em Braslia. As- sos para denunciar os significados dasim, associam formas de luta local comexplorao e da expropriao, lutandoas lutas nas capitais. Ocupam a terra para mudar suas realidades. O acampa-diversas vezes como forma de pressomento como espao de luta e resistn-para abrir a negociao, fazem marchascia no processo de espacializao e ter-at as cidades, ocupam prdios pbli- ritorializao da luta pela terra tambmcos, fazem manifestaes de protesto, promove a espacialidade da luta porreunies etc. Pela correspondncia en-meio de romarias, caminhadas e mar-tre esses espaos de luta no campo e na chas. A caminhada uma necessidadecidade, sempre h determinao de umpara expandir as possibilidades de ne-sobre o outro. As realidades locais so gociao e gerar novos fatos. Em seusmuito diversas, de modo que tendem aensinamentos, por meio de suas expe-predominar nas decises finais as rea-rincias, os Sem Terra tiveram diversaslidades das famlias que esto fazendoreferncias histricas. Alguns exem-a luta. Dessa forma, as linhas polticasplos utilizados na mstica do movimen-de atuao so construdas com base to so a caminhada do povo hebreunesses parmetros. E as instncias re-rumo Terra Prometida, na luta contrapresentativas do MST carregam essaa escravido no Egito; a caminhada deespacialidade e essa lgica, pois umGandhi e dos indianos rumo ao mar,membro da coordenao ou da direo na luta contra o imperialismo ingls; asnacional participa do processo desdemarchas das revolues mexicana e chi-o acampamento at as escalas mais nesa e da Coluna Prestes, entre outras.amplas: regional, estadual e nacional De 2001 a 2010, os acampamentos ga-(Stedile e Fernandes, 1999).nharam novas caractersticas. A medidaTodos os acampamentos tm im- provisria n 2.109-50, promulgada emportncia histrica nas lutas das famlias2001, diminuiu o nmero de ocupa-Sem Terra. Porm, vale destacar peloes, e os Sem Terra, estrategicamente, 26 22. AcampamentoApassaram a acampar prximo das reasda famlia permanecem no acampa-reivindicadas. Embora, em alguns ca-mento e, em alguns casos, passou asos, recebessem apoio de famlias ser espordica. Com essas novas ca-assentadas, a sustentao do acam-ractersticas, os acampamentos, aindapamento passou a ser feita principal- que continuem a ser espaos de lutamente pelas prprias famlias acam- e resistncia e que neles se organizempadas. Outras novas caractersticas manifestaes e reunies de negocia-derivam de fatores como mudanas na o, j no so mais espaos de perma-poltica econmica, com o aumento donncia das famlias acampadas. Porm,emprego e polticas compensatrias o acampamento continua sendo essado tipo Bolsa Famlia etc. , de modo espcie de geografia perdida ondeque a participao nos acampamentos os Sem Terra se renem para pensar,deixou de ser de todos os membros dacompreender, resistir e lutar por seusfamlia apenas um ou dois membros territrios e seu pas.Para saber maisBrasil. Medida Provisria n 2.109-50, de 27 de maro de 2001. Dirio Oficial daUnio. Braslia, 28 mar. 2001.Eckert, C. Movimento dos Agricultores Sem-Terra no Rio Grande do Sul. 1984. Disserta-o (Mestrado em Cincias de Desenvolvimento Agrcola) Instituto de CinciasHumanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Itagua, 1984.Feliciano, C. A. Movimento campons rebelde. So Paulo: Contexto, 2006.Fernandes, B. M. Formao e territorializao do MST no estado de So Paulo. SoPaulo: Hucitec, 1996.______. A formao do MST no Brasil. Petrpolis: Vozes, 2000.Justo, M. G. A fresta: ex-moradores de rua como camponeses. In: Fernandes,B. M.; Medeiros, L. S.; Paulilo, M. I. Lutas camponesas contemporneas: condies,dilemas e conquistas a diversidade de formas de luta no campo. So Paulo:Editora da Unesp; Braslia: Ncleo de Estudos Agrrios e DesenvolvimentoRural, 2009. p. 139-158.Loera, N. C. R. Para alm da barraca de lona preta: redes sociais e trocas emacampamentos e assentamentos do MST. In: Fernandes, B. M.; Medeiros, L. S.;Paulilo, M. I. Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas adiversidade de formas de luta no campo. So Paulo: Editora da Unesp; Braslia:Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural, 2009. p. 73-94.Sigaud, L. A engrenagem das ocupaes de terra. Fernandes, B. M.; Medeiros, L. S.;Paulilo, M. I. Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas adiversidade de formas de luta no campo. So Paulo: Editora da Unesp; Braslia:Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural, 2009. p. 53-72.Stedile, J. P.; Fernandes, B. M. Brava gente: a trajetria do MST e a luta pela terrano Brasil. So Paulo: Perseu Abramo, 1999.27 23. Dicionrio da Educao do Campo AAGRICULTURA CAMPONESAHoracio Martins de Carvalho Francisco de Assis Costa Agricultura camponesa o modo deOs camponeses instauraram, nafazer agricultura e de viver das famlias formao social brasileira, em si-que, tendo acesso terra e aos recur-tuaes diversas e singulares, me-sos naturais que ela suporta, resolvemdiante resistncias de intensidadesseus problemas reprodutivos por meiovariadas, uma forma de acesso li-da produo rural, desenvolvida de talvre e autnomo aos recursos damaneira que no se diferencia o univer- terra, da floresta e das guas, cujaso dos que decidem sobre a alocao legitimidade por eles reafirma-do trabalho dos que se apropriam do da no tempo. Eles investiram naresultado dessa alocao (Costa, 2000,legitimidade desses mecanismosp. 116-130).de acesso e apropriao, pela de- Famlias desse tipo, com essas ca- monstrao do valor de modosractersticas, nos seus distintos modos de vida decorrentes da forma dede existncia no decorrer da histria daexistncia em vida familiar, vici-formao social brasileira, teceram umnal e comunitria. A produomundo econmico, social, poltico e estrito senso se encontra, assim,cultural que se produz, reproduz e afir-articulada aos valores de sociabi-ma na sua relao com outros agenteslidade e da reproduo da famlia,sociais. Estabeleceram uma especifici-do parentesco, da vizinhana e dadade que lhes prpria, seja em relaoconstruo poltica de um nsao modo de produzir e vida comu-que se reafirma por projetos co-nitria, seja na forma de convivncia muns de existncia e coexistnciacom a natureza. sociais. O modo de vida, assim es- As unidades de produo campone- tilizado para valorizar formas desas, ao terem como centralidade a repro-apropriao, redistribuio e con-duo social dos seus trabalhadores di- sumo de bens materiais e sociais,retos, que so os prprios membros da se apresenta, de fato, como umfamlia, apresentam uma racionalidade valor de referncia, moralidadedistinta daquela das empresas capita- que se contrape aos modos delistas, que se baseiam no assalariamen- explorao e de desqualificao,to para a obteno de lucro. Como asque tambm foram sendo repro-famlias camponesas reproduzem a suaduzidos no decorrer da existn-especificidade numa formao social cia da posio camponesa na so-dominada pelo capitalismo, e dado que ciedade brasileira. (Motta e Zarth,a economia camponesa supe os merca-2008, p. 11-12)dos, as unidades de produo campone-sas sofrem influncias as mais distintas O modo campons de fazer agri-sobre o seu modo de fazer agricultura: cultura no est separado do modo de28 24. Agricultura Camponesa Aviver da famlia, pois preciso consi- ou parentes, em coletivos maisderar que osamplos ou com partes do lote ar-rendados a terceiros; [...] trabalhadores familiares no h diversificao de cultivos e podem ser peremptoriamente criaes, alternatividade de uti- dispensados, porque, em geral, lizao dos produtos obtidos, tambm so filhos. Eles devemseja para uso direto da famlia, seja ser alocados segundo ritmos, para usufr uir de oportunida- intensidade e fases do processodes nos mercados, e presena de produtivo. So ento sustenta- diversas combinaes entre pro- dos nas situaes de no traba-duo, coleta e extrativismo; lho e integrados segundo proje- a unidade de produo camponesa tos possveis para constituiopode produzir artesanatos e fazer o e expanso do patrimnio fa- beneficiamento primrio de produ- miliar, para incluso de novas tos e subprodutos; geraes, conforme as alternati- existe garantia de fontes diversas vas de sucesso ou de negaode rendimentos monetrios para a da posio. Essas alternativas famlia, desde a venda da produo so assim interdependentes daat a de remunerao por dias de avaliao da posio e das viabi-servios de membros da famlia; lidades da reproduo da cate- a solidariedade comunitria (troca goria socioeconmica. (Neves,de dias de servios, festividades, ce- 2005, p. 26) lebraes), as crenas e os valoresreligiosos por vezes impregnam as Essa complexa interao, varivelprticas da produo;nos tempos e nas circunstncias, apre- esto presentes elementos da cul-senta diversas caractersticas: tura patriarcal; e, enfim, mas no finalmente, exis- os saberes e as experincias detem relaes afetivas e simbli- produo vivenciados pelas fam- cas com as plantas, os animais, as lias camponesas so referenciais guas, os stios da infncia, com a importantes para a reproduo de paisagem... e com os tempos. novos ciclos produtivos; as prticas tradicionais, o intercm- Na racionalidade das empresas ca- bio de informaes entre vizinhos,pitalistas, a nica referncia o lucro parentes e compadres, o senso co- a ser obtido. E, de maneira geral, o lu- mum, assim como a incorporaocro encarado independentemente dos gradativa e crtica de informaesimpactos sociais, polticos, ambientais sobre as inovaes tecnolgicas e alimentares que ele possa provocar. que se apresentam nos mercados, No modo capitalista de fazer agricultu- constituem um amlgama que con- ra, crescente a concentrao das ter- tribui para as decises familiaresras como resultado do privilegiamen- sobre o que fazer;to da produo em escala, que requer o uso da terra pode ocorrer de ma-grande extenso contnua de rea para neira direta pela famlia, em par-a prtica do monocultivo e tecnologias ceria com outras famlias vizinhascom uso intensivo de insumos qumi- 29 25. Dicionrio da Educao do Campocos, particularmente agrotxicos, queobter o mximo de produo poss-maximizam a produo por rea e, vel por dada quantidade de recurso,em combinao com a mecanizao, sem deteriorar a sua qualidade;alteram e diversificam as formas de com fora de trabalho nem sem-explorao do trabalho, ainda que pre- pre abundante e com objetos dedomine a contratao de trabalhadorestrabalho relativamente escassos, aassalariados temporrios. Como o ob- tendncia de produo diversi-jetivo central das escolhas na empresa ficada e intensiva por unidade decapitalista a mxima lucratividade rea explorada;possvel, a artificializao da agricultu- como os recursos sociais e os mate-ra tem sido o caminho entendido como riais disponveis representam umao mais eficiente.unidade orgnica, so apropriados e controlados por aqueles que estoUma das implicaes da matrizdiretamente envolvidos no proces-tecnolgica e de produo do modoso de trabalho, tendo como refe-capitalista de fazer agricultura a de- rncia um repertrio cultural localgradao ambiental e das pessoas, alm historicamente constitudo;da indiferena perante os interesses a lgica da unidade de produomais gerais da populao, como oscamponesa alicerada na centrali-de construo da soberania popular e dade do trabalho, por isso os nveisalimentar. Para resistirem s presses de intensidade e desenvolvimentoderivadas da racionalidade dominante,da incorporao e inovao tecno-as famlias que praticam o modo cam- lgicas dependem criticamente dapons de fazer agricultura, afirmandoquantidade e qualidade do trabalho;valores que determinam a sua condio o processo de produo tipica-camponesa, tendem a orientar as suas mente fundado numa reproduoescolhas de acordo com as complexi-relativamente autnoma e histo-dades que emergem da sua tensa bus-ricamente garantida, e o ciclo deca por autonomia relativa no que diz produo baseado em recursosrespeito ao capital e da sua inseroproduzidos e reproduzidos duran-crescente nos mercados. Nessa pers-te ciclos anteriores (Ploeg, 2008,pectiva, algumas tendncias da prxisp. 60-61).da agricultura camponesa, alm dascaractersticas referidas anteriormente,O uso corrente da expresso agri-podem ser assinaladas:cultura camponesa por amplas parce-las das prprias famlias camponesas orientada para a produo e para no processo de construo da sua o crescimento do mximo valoridentidade social, pelos movimentos agregado possvel e do emprego e organizaes populares no campo, produtivo; os ambientes econ- por organismos governamentais, pela micos hostis so enfrentados pelaintelectualidade acadmica e por par- produo de renda independente,cela dos meios de comunicao de usando basicamente recursos auto-massa tem sido crescente nas ltimas criados e automanejados; dcadas. Isso decorre, por um lado, da como conta com recursos limitadosaceitao da concepo, no Brasil con- por unidade de produo, tende a temporneo, de que a agricultura cam- 30 26. Agricultura Camponesa Aponesa expresso de um modo de A expresso agricultura familiarse fazer agricultura distinto do modotraz como corolrio da sua concepode produo capitalista dominante, e,a ideia de que a possibilidade de cresci-nesse sentido, o campesinato se apre-mento da renda familiar camponesa ssenta na formao social brasileira compoder ocorrer se houver a integraouma especificidade, uma lgica que lhe direta ou indireta da agricultura fami- prpria na maneira de produzir e deliar com as empresas capitalistas, emviver, uma lgica distinta e contrria particular as agroindstrias. dominante. Em 24 de julho de 2006, foi sancio-Por outra parte, o campesinato senada pelo presidente da Repblica a leiconfronta ideologicamente, e com as con- n 11.326, que estabeleceu as Diretrizessequncias da resultantes, com duas para a Formulao da Poltica Nacionalexpresses j usuais, que se fizeram da Agricultura Familiar e Empreendi-hegemnicas no campo, e que so de-mentos Familiares Rurais, oficializandocorrncia dos interesses das concepesa expresso agricultura familiar comdas empresas capitalistas: agricultura deconcepo distinta daquela da empresasubsistncia e agricultura familiar. capitalista no campo.A expresso agricultura de subsis- A oficializao da expresso agri-tncia, presente nos discursos dominan-cultura familiar teve como objetivotes desde o Brasil colonial, discriminaestabelecer critrios para o enquadra-os camponeses por serem produtores mento legal dos produtores rurais comde alimentos uma tarefa consideradacertas caractersticas que os classifi-subalterna, ainda que necessria para acavam como agricultores familiares.reproduo social da formao social Isso para obteno, por parte dessesbrasileira , contrapondo-os ao modo agricultores familiares, de benefciosdominante de se fazer a agricultura, o governamentais, sendo indiferente oqual se reproduz desde as sesmarias atfato de esses agricultores estarem ema empresa capitalista contempornea, situao de subordinao perante asmantendo a tendncia geral de se espe- empresas capitalistas ou se eram repro-cializar no monocultivo e na oferta de dutores da matriz de produo e tecno-produtos para a exportao.lgica dominante.A partir da denominada Revoluo J a expresso agricultura campo-Verde na agricultura, iniciada em meados nesa comporta, na sua concepo, a es-da dcada de 1950 e revivificada a partirpecificidade camponesa e a construodos anos 1980, com a expanso mun- da sua autonomia relativa em relaodial da concepo de artificializao da aos capitais. Incorpora, portanto, umagricultura e a ampliao dos contratosdiferencial: a perspectiva maior de for-de produo entre as empresas capitalis- talecimento dos camponeses pela afir-tas e as famlias camponesas, introduziu-mao de seu modo de produzir e dese a expresso agricultura familiar, outrora viver, sem com isso negar uma moder-de uso consuetudinrio aqui e acol, mas nidade que se quer camponesa.acentuado desde a dcada de 1990, e con- Nos diversos contextos histricos esagrada em lei (Brasil, 2006) como expres- fisiogeogrficos em que ela se tem seso formal, porque utilizada por progra- afirmado e nas ecobiodiversidades nasmas e polticas pblicas governamentais. quais tm praticado os mais distintos 31 27. Dicionrio da Educao do Camposistemas de produo agropecuria e Os camponeses que no aceitamflorestal e as mais variadas prticas ex- os processos de explorao eco-trativistas, sempre no mbito de suas nmica e de dominao polticaestratgias de reproduo social, a agri- pelas classes dominantes capita-cultura camponesa tem mantido comolistas construram, de certa for-marca indelvel da sua presena a nfa- ma, uma identidade destinada se na produo de alimentos, tanto para resistncia [...]. Ela d origem aa reproduo da famlia quanto para o formas de resistncia coletivaabastecimento alimentar da sociedadediante de uma opresso que, doem sentido amplo. contrrio, no seria suportvel,No Brasil, a produo de alimentosem geral com base em identida-para o mercado interno, apesar de ser des que, aparentemente, foramconsiderada pelos valores dominantesdefinidas com clareza pela his-como o resultado de uma agricultura tria, geografia ou biologia, fa-subalterna, torna-se cada vez mais umacilitando assim a essencializa-opo estratgica para se alcanar a so-o dos limites da resistnciaberania alimentar do pas.[...]. (Castells, 1999, p. 25)Mesmo sendo a principal produtorade alimentos, a agricultura camponesa Segundo Comerford, tem havidono pas enfrentou, e enfrenta, desde formas cotidianas de resistncia e,o seu surgimento no perodo colonialat a poca atual, os mais distintos ti-[...] nesse cotidiano tenso, ospos de empecilhos: dificuldades polti- camponeses mobilizam rela-cas do acesso terra, vrias formases de parentesco, de vizi-de presso e represso para a sua nhana, amizade e compadrio,subalternizao s empresas capita- mais do que organizaes for-listas, explorao continuada damais de representao de inte-renda familiar por diversas fra-resses ou de mobilizao pol-es do capital, induo direta e in- tica. Tais formas informaisdireta para a adoo de um modelo de resistncia, seguindo a linhade produo e tecnolgico que lhesde raciocnio de autores comoera e desfavorvel e a desqualifica-Scott, derivam em boa parte deo preconceituosa e ideolgica dos sua eficcia do fato de no secamponeses, sempre considerados assumir como conflito aberto margem do modo capitalista de e de no se organizar explici-fazer agricultura.tamente como tal. (Comerford,Essas iniciativas de subjugar a agri- 2005, p. 156)cultura camponesa foram exercidasoutrora por latifundirios e seus pre- Muito alm das diferentes maneiraspostos, mas tm sido contemporanea-de como se d a resistncia social damente efetivadas pelas empresas e cor- agricultura camponesa perante as ofen-poraes capitalistas com negcios nosivas do capital, o que est em confron-campo. O processo histrico de subal-to so dois paradigmas profundamenteternizao dos camponeses estimuloudistintos de como se faz agricultura: odiferentes formas de resistncia social: campons e o capitalista.32 28. Agricultura CamponesaA No so raras as situaes em cial brasileira contribuiu para o forta-que unidades familiares camponesas lecimento dos movimentos e organiza-e empresas capitalistas cooperam es sociais populares no campo, queumas com as outras. No so raras, facilitam, ainda que com contradies,tambm, as situaes em que os cam-a passagem de uma identidade de re-poneses tentam imitar a lgica capi- sistncia para uma identidade social detalista, que lhes antagnica, e na projeto (Castells, 1999, p. 22-23). Essamaior parte das vezes inviabilizam-seafirmao da identidade social campo-economicamente por isso. Portanto, nesa concorre para a construo da suacomo sempre, os camponeses esto autonomia como sujeito social e para acercados de armadilhas.sua prtica social como classe, seja no Com a expanso crescente das ino- mbito das lutas de resistncia socialvaes tecnolgicas a partir dos avan- contra a sua explorao pelas distintasos na manipulao gentica, foram fraes dos capitais, seja no mbito da-ampliadas as formas de subalternizao quelas em que defende e afirma a suada agricultura camponesa ao capital, cultura e o seu modo de fazer agricul-que agora se do predominantemente tura e de viver.pelo intenso e impositivo processo deA tendncia da agricultura campo-artificializao da produo agropecu-nesa contempornea de afirmar a suaria e florestal, em particular pela oligo- autonomia relativa perante as diversaspolizao por empresas transnacionaisfraes do capital, de se apoiar no prin-com a oferta de sementes transgnicascpio da coevoluo social e ecolgicae de insumos de origem industrial, e e de enveredar pela agroecologia man-pelo estmulo das agroindstrias es- tm a possibilidade da sua reproduopecializao da produo camponesa.social, dado que constri socialmente Desde ento, o modelo tecnolgico as bases de outro paradigma para se fa-concebido pelos grandes conglomeradoszer agricultura.empresariais transnacionais relacionados A tenso econmica, social, polticacom as empresas capitalistas no campo, e ideolgica gerada no confronto entree que conta com o apoio de diversasa lgica camponesa e a capitalista de sepolticas pblicas estratgicas, tornou-se fazer agricultura permite sugerir queo referencial para o que se denominouse est, desde o Brasil colonial, peran-modernizao da agricultura. E se rei- te uma altercao mais ampla do queficou a produo de mercadorias agrco-somente entre modos de se fazer agri-las (commodities) para a exportao em de- cultura: so concepes e prticas detrimento da produo de alimentos para vida familiar, produtiva, social, culturala maioria da populao.e de relao com a natureza que, no O crescente processo de identidadeobstante coexistirem numa mesma for-camponesa e, portanto, de conscinciamao social, negam-se mutuamente,da sua especificidade na formao so-so antagnicas entre si.Para saber maisBrasil. Lei n 11.326, de 24 de julho de 2006: estabelece as diretrzes para formu-lao da Poltica Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos FamiliaresRurais. Dirio Oficial da Unio, Braslia, 25 jul. 2006. 33 29. Dicionrio da Educao do CampoCastells, M. O poder da identidade. So Paulo: Paz e Terra, 1999. (A era da infor-mao: economia, sociedade e cultura, 2).Clifford, A. W. et al. (org.). Camponeses brasileiros: leituras e interpretaes clssi-cas. 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Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.AAgricultura familiarDelma Pessanha NevesO termo agricultura familiar corres- dutores (agricultores familiares) a seremponde a mltiplas conotaes. Apre-alcanados pela categorizao oficialsenta-se como categoria analtica, de usurios reais ou potenciais do Pro-segundo significados construdos nograma Nacional de Fortalecimento dacampo acadmico; como categoria de Agricultura Familiar (Pronaf) (decretodesignao politicamente diferenciado- n 1.946, de 28 de junho de 1996).ra da agricultura patronal e da agriculturaComo categoria analtica, a despeitocamponesa; como termo de mobilizao de algumas distines reivindicadas nopoltica referenciador da construo decampo acadmico, corresponde dis-diferenciadas e institucionalizadas ade- tinta forma de organizao da produ-ses a espaos polticos de expressoo, isto , a princpios de gesto dasde interesses legitimados por essa mes-relaes de produo e trabalho sus-ma diviso classificatria do setor agro-tentadas em relaes entre membrospecurio brasileiro (agricultura familiar, da famlia, em conformidade com aagricultura patronal, agricultura camponesa);dinmica da composio social e docomo termo jurdico que define a am- ciclo de vida de unidades conjugaisplitude e os limites da afiliao de pro-ou de unidades de procriao familiar.34 30. Agricultura FamiliarAPor essa definio, advogam os autorescorresponde a formas de organizaoque investem na respectiva construo da produo em que a famlia aoconceitual, forma de organizao da mesmo tempo proprietria dos meiosproduo que se perde no tempo e es-de produo e executora das atividadespao, e/ou forma moderna de inser-produtivas. Essa condio imprime es-o mercantil (ver Abramovay, 1992; pecificidades forma de gesto doBergamasco, 1995; Francis, 1994;estabelecimento, porque referencia ra-Lamarche, 1993, p. 13-33; Wanderley,cionalidades sociais compatveis com1999). Engloba a pressuposta agricul- o atendimento de mltiplos objetivostura de subsistncia isto , de orien-socioeconmicos; interfere na criaotao do uso de fatores de produo de padres de sociabilidade entre fam-por referncias fundantes da vida fa- lias de produtores; e constrange certosmiliar e marginais aos princpios demodos de insero no mercado pro-mercado (ver Chayanov, 1981; Silva edutor e consumidor (ver Veiga, 1995;Stolcke, 1981, p. 133-146); a economiaWanderley, 1995).camponesa modo de produzir orien- Como a capacidade e as condiestado por objetivos e valores constru-de trabalho so articuladas com basedos pela vida familiar e grupos de lo-em relaes familiares, a anlise concei-calidade, nesses termos historicamentetual da agricultura familiar leva em con-datado porque articulado presena dosiderao a diferenciao de gnero, osEstado, da cidade (suas feiras e merca-ciclos de vida e o sistema de autorida-dos, sua correspondente diviso socialde familiar em diferentes contextos:do trabalho) e da sociabilidade comu-quando a concepo de famlia integranitria (ver Franklin, 1969; Galeski,a prtica de seus membros como partes1977; Mendras, 1978; Ortiz, 1974;da unidade de produo, rendimentosPowell, 1974; Sjoberg, 1967; Wolf, 1970), e consumo, e, em certos domnios damas tambm produtores mercantis vida social, irmana os afiliados enquan-constitudos em consonncia com or- to coletivo; ou, por contraposio ana-denaes da especializao da produ-ltica, quando os familiares se orientamo nesses termos, referenciada aos por valores individualizantes, exigindofluxos de oferta e demanda do mer-negociaes que abarquem projetoscado, de padronizao da mercadoria individuais e coletivos. Em quaisquere de incluso de tecnologia orientada das situaes, os trabalhadores familia-pela interdependncia entre agricultura res no podem (ou no devem) ser pe-e indstria, fatores que operam na re-remptoriamente dispensados (tal comoordenao das condies de incorpo- ocorre com o assalariamento da forarao do trabalho familiar (ver Aminde trabalho), porque geralmente soe Vergopoulos, 1978; Faure, 1978; tambm filhos ou agregados, herdei-Lenin, 1982; Lovisolo, 1989; Neves, ros do patrimnio por direitos formais1981; Paulilo, 1990; Schneider, 1999; e morais. Em termos gerais, eles soWilkinson, 1986). alocados segundo ritmos, intensidadesPara efeitos de construo de uma e fases do processo produtivo compa-definio geral isto , capaz de abs- tveis com os padres de definio dostratamente referenciar a extensa di-ciclos de vida (meninos, jovens e adul-versidade de situaes histricas e so- tos distintos segundo relaes de gne-cioeconmicas , a agricultura familiar ro, sempre situacionais). So eles ento35 31. Dicionrio da Educao do Camposustentados nas situaes de no traba-orgnica, sistemas agroflorestais etc.).lho e integrados segundo projetos pos- Ademais, os sentidos moralizantes quesveis para constituio e expanso do se consagraram no termo agriculturapatrimnio familiar, para incluso defamiliar pressupunham a resistncianovas geraes. Essa insero em boa poltica concentrao de meios departe definida segundo plausibilida- produo e deteriorao das formasdes de projees mediadas por interfe- de insero do trabalho assalariado narncias mais amplas dos estilos de vidaagroindstria. Abriam assim alterna-socialmente consagrados ou recomen-tivas para a expanso e a reconstitui-dados, ou conforme as alternativas deo de agricultores familiares, mediantesucesso ou negao da posio dos fi- programas de assentamento rural e delhos como agricultores. As alternativastransformao de meeiros e parceirosso assim interdependentes da avalia-em produtores titulares por crditoo da posio por quem a ocupa e dasfundirio, bem como todo o combate aviabilidades de reproduo da catego-formas aviltantes de assalariamento, noria socioeconmica ou profissional.1 limite criminalmente qualificadas comoComo termo de designao distintivatrabalho escravo, trabalho anlogo ao escravo,de projetos societrios, foi construdo vi-trabalho em condies degradantes.sando demarcar defensivamente os in- A associao da forma agricultura fa-vestimentos destinados a preservar a miliar disputa de sentidos atribudosreproduo social de agricultores par- aos projetos societrios, para alm dacelares e relativamente especializados,contraposio agricultura patronal ouinclusive por prticas de criao de va- agroindstria, tambm veio a consoli-lor agregado aos produtos e de inserodar uma distino em relao ao termoem nichos de mercado. O horizonte do agricultura camponesa. Esse embate porprojeto poltico prescrevia a criaoconstruo de sentidos pode ser com-de meios de luta e reafirmao polticapreendido pela qualificao da Agri-da democracia e da cidadania da popu-Cultura Camponesa neste dicionrio.lao qualificada, em termos de recen- Como termo de mobilizao poltica, aseamento, como rural. Aqueles senti- agricultura familiar corresponde a enfei-dos decorreram ento de investimentosxamentos de sentidos ideolgicos paraacadmicos e polticos voltados para a legitimar processos de transferncia dereafirmao da existncia da produorecursos pblicos, consequentemen-familiar, em contextos de construo date diferenciados daqueles que apenashegemonia do capitalismo neoliberal. contemplem o restrito sentido da re-A legitimidade dos sentidos atribudos produo do capital; ou de recursosao termo agricultura familiar pressupu-que circulem na contramo de proces-nha, em nome daqueles efeitos, certassos de concentrao de meios de pro-orientaes de comportamento (econ- duo. Por isso mesmo, na definiomico e poltico) que se contrapusessem do segmento de produtores vincula-aos efeitos desestruturantes do modelo dos agricultura familiar, integram-se,agroindustrial. Demarcavam, ento, o como questo fundamental do debateatrelamento a modelos de desenvolvi- poltico, as acusaes ou defesas domento qualificados como sustentveis carter social daquelas transferncias(prticas produtivas no predatrias,de recursos na forma de crditos con-tais como agroecologia, agriculturatratados a juros subsidiados. Tanto que36 32. Agricultura FamiliarAde imediato foi possvel, no campoNa modalidade das atividades do meiodo debate poltico, distinguir vrios ti- rural e dos modos de apropriao dospos de pblico, a integrando os assen- recursos naturais, reconhecem-se di-tados rurais, antes objeto de programas versas posies sociais e situacionais:especiais de composio financeira do agricultores, silvicultores, aquicultores,patrimnio produtivo, alm de produ-extrativistas e pescadores. A cada umatores antes condenados ao pressuposto dessas posies, correspondem restri-ou ao desejado desaparecimento ribei- es distintivas nos termos da referidarinhos, extrativistas, pescadores artesanais , legislao. Portanto, a definio geral por generalizaes homogeneizan-nesse mesmo ato relativizada, abrindotes, por vezes significativamente reco- assim alternativas para novas incluses,nhecidos como populaes tradicionais.reconhecidas mediante reivindicaesComo termo jurdico, a agricultura fa-polticas de representaes delegadas demiliar exprime percalos e conquistas grupos que se veem como agricultoresalcanadas por investimentos de re- familiares e que lutam por se adequar oupresentantes do campo acadmico, dosredimensionar os critrios bsicos da re-espaos de delegao de porta-vozes ferida categorizao socioeconmica.que reafirmam a legitimada constru- A conquista de tais definies e res-o de interesses especficos dessespectivos direitos importante para aagricultores e de alguns rgos do Es-diminuio de certo insulamento pol-tado. Pela convergncia de intenes etico e cultural. E para o enfrentamen-negociaes de sentidos transversais, to da atribuda e imposta precariedadeesses representantes vieram a colocar material dos camponeses, dos pequenosem prtica a constituio do projetoprodutores, dos arrendatrios, dos parcei-de designao distintiva de agricultoresros, dos colonos, dos meeiros, dos assenta-aambarcados pelo termo agricultor fa-dos rurais, dos trabalhadores sem-terra miliar. Nessa perspectiva, o termo deve designaes mais aproximativas da di-ser entendido pelos critrios que distin- versidade de situaes socioeconmi-guem o produtor por seus respectivoscas assim abarcadas.direitos, nas condies asseguradas pelaPortanto, os sentidos que no con-legislao especfica (decreto n 1.946,texto esto implicados no termo agri-de 28 de junho de 1996, lei n 11.326,cultura familiar acenam para um padrode 24 de julho de 2006, especialmente ideal de integrao diferenciada deartigo 3, e demais instrumentos queuma heterognea massa de produtoresvo adequando os desdobramentos e trabalhadores rurais. Tal integraoalcanados e incorporados): agricultorse legitima por um sistema de atitudesfamiliar o que pratica atividades noque lhe est associado, denotativo dameio rural, mas se torna sujeito de di- insero num projeto de mudanareitos se detiver, a qualquer ttulo, reada posio poltica. Por esse engaja-inferior a quatro mdulos fiscais; deve mento, os agricultores que aderem aoapoiar-se predominantemente em moprocesso de mobilizao tornam-sede obra da prpria famlia e na gestoconcorrentes na disputa por crditosimediata das atividades econmicase servios sociais e previdencirios; nado estabelecimento, atividades essasdemanda de construo de mercados eque devem assegurar o maior volumede cadeias de comercializao menosde rendimentos do grupo domstico.expropriadoras; na reivindicao de37 33. Dicionrio da Educao do Campoassistncia tcnica correspondente aosde concentrao fundiria e seus des-processos de trabalho e produo quedobramentos, ainda objetivados pelacolocam em prtica; na reivindicaoagroindstria ou pelo agronegcio.do reconhecimento como protagonis-Pela objetivao do processo, fo-tas em processos de tomada de deci- ram construdos quadros institucionaisses polticas que lhes digam respeitopara a assistncia tcnica, especializa-ou que sobre eles intervenham o que es profissionais em plano de forma-equivale a tentar interferir nos padreso graduada e ps-graduada, reco-de apropriao de recursos pblicos nhecimentos de inseres produtivas epor outros segmentos de produtoresde autonomia entre mulheres e jovensdo setor agropecurio brasileiro. Ospertencentes ao segmento em pauta.sentidos designativos do termo acenam E por fim se consolidou um dinmicopara desdobramentos e redefinio demercado editorial temtico.objetivos conquistveis no processo deluta pela Reforma Agrria ou pelo aces- A abertura de espaos sociais propi-so terra respaldado pelo estatuto daciadores da elaborao de projetos paraposse, bem como para reivindicaes a construo de categoria sociopro-pelo reconhecimento formal-legal de fissional, em se tratando de processosformas diferenciadas de apropriao de mudanas politicamente desejadas,de recursos naturais. exprime o conjunto de respostas a pro-posies de certos mediadores privi-Pelos mltiplos significados que con- legiados. As respostas correspondemtempla, o termo agricultura familiar sinali-a formas de reconhecimento pblicoza ainda para a minimizao de conflitosda enorme dvida social para com taisno campo, por perda de reconhecimento agricultores. Basta ento considerar quede detratores de espritos mais conserva- eles ainda se apresentam como deman-dores, dado que por ele se prospecta adantes de recursos sociais fundamen-modernidade no campo e se consolida tais, recursos cuja ausncia ou negaoa expanso da massa de consumidores so extravagantes para esse incio deou, como se costuma laurear, a construo milnio (servio escolar, servio mdi-de uma classe mdia no campo. co, energia eltrica e estradas para me-Em consequncia, o engajamentolhorar a mobilidade espacial e escoarorientado para a construo de um pro-a produo), mas tambm recursosjeto poltico para agricultores familiaresinstrumentais para a criao de canaisadquiriu grande importncia. Ele cor- de comunicao com outros mundosrespondeu ao deslocamento social de sociais e espaos de diferenciao deum segmento de trabalhadores e pro- relaes de poder. Em sntese, recur-dutores pobres (nos termos da atribui-sos fundamentais para a incorporaoo de sentido por abrangncia econ- de outras formas de exerccio de cida-mica, poltica e cultural), secularmentedania, dotadas de meios que reneguemmarginalizados dos privilegiados in-a mutilao cultural e a desqualificaovestimentos destinados agricultura social, to eficazes se mostraram e senesse caso, entenda-se a agroindstriamostram para a condenao dos agri-exportadora; ou de trabalhadores poli-cultores pelo atraso e para a fico daticamente emergidos pela expropriao resistncia mudana, tergiversando ainerente consolidao de processosvtima em seu prprio algoz. 38 34. Agricultura FamiliarA Assim sendo, o termo agricultura fa-mitantes dos objetivos preconizadosmiliar vem se consagrando nos quadrospara o trabalho acadmico. A categoriainstitucionais de aplicao do Pronaf, analtica agricultura familiar passa entopoltica de interveno que constituiu a incorporar o mesmo efeito desejan-o respectivo setor produtivo e o conso-te da dupla naturalizao do familiar.lidou em estatuto formal-legal. Respei-E de tal modo que, em termos analticos,tando tal campo semntico, os signifi- pode-se perguntar: o que se ganha aocados que o termo designa devem seridentificar agricultores como familia-compreendidos (mesmo que de formares ou uma forma de produzir comono consensual e, como toda definiofamiliar, para alm da contraposiopoltica, provisria ou contextual) pela poltica ao carter capitalista de certasdefinio jurdica que at aqui o termo al-formas de produzir? Que consequn-canou, isto , conforme os contedoscias pode ter a simplificao do planoatribudos por definies politicamentedos valores familiares aos valores ine-construdas, conquistadas por negocia- rentes objetivao dos princpios daes de interesses e conquistas relati-reproduo do capital? O que se deixavas, cristalizadas nos textos que vode considerar no domnio das relaesinstituindo o Programa Nacional de familiares quando elas aparecem inte-Fortalecimento da Agricultura Fami-gradas apenas a processos produtivos?liar. Na conquista desse reconhecimen- E o que se deixa de considerar na pro-to acadmico, poltico e jurdico, a agri- duo estrito senso quando o vetor decultura familiar pode, em termos bem compreenso se reduz ao domnio dasgerais ou abstratos, ser consensual- relaes familiares?2mente assim conceituada: modelo de or- Como procurei demonstrar nesteganizao da produo agropecuria ondetexto, os traos constitutivos dos agen-predominam a interao entre gesto e tra- tes produtivos que foram rubricadosbalho, a direo do processo produtivo pelos como agricultores familiares no se en-proprietrios e o trabalho familiar, comple- contram to somente nas relaes emmentado pelo trabalho assalariado. jogo nos termos agricultura e famlia, Entrementes, pela necessria am-mas nos diversos projetos polticos debiguidade que confere especial eficciaconstituio de uma categoria socio- definio jurdica, o termo se torna econmica (dotada especialmente deobjeto de tantas outras consagraes direitos sociais e previdencirios), oupolticas. Uma delas diz respeito ade- em projetos societrios concorrentes.so de pesquisadores, em diversos do-Levando-se em conta esses emara-mnios das cincias sociais e agrrias,nhados de sentidos, faz-se necessrioque sistematicamente vm tentandoreconhecer que tanto agricultor familiar construir meios de interpretao, al-categoria socioprofissional e agenteguns deles acompanhando a imediata social correspondentes ao distintivorasteira das mudanas polticas e dassegmento da agricultura familiar quan-diversas formas de insero que voto agricultura familiar so termos clas-ganhando expresso pblica. Essa ade-sificatrios construdos como produ-so orientada pelo investimento inter- tos de ao poltica. So termos cujospretativo, nos casos em que a sintonia sentidos designados devem se adequarno metodologicamente colocada a dinmicas que se desdobram nosem questo, corresponde a efeitos li-campos de luta que elaboram catego- 39 35. Dicionrio da Educao do Camporizaes positivas e negativas. JamaisDiante dos investimentos polti-podem ser compreendidos como um cos para a construo social da ca-estado, como substantivos dotados detegoria socioeconmica (agricultor fa-essncia, pois que eles no tm sentido miliar) ou do exerccio do fazer-crerem si mesmos salvo quando, no de- uma organizao desejada (agricultu-bate poltico, essas reificaes devamra familiar versus agricultura patronal,ser acolhidas para fazer-crer o que seagricultura camponesa), aos cientistasdeseja crvel, o que se deseja real, e, sociais cumpre o dever de restituirpor conseguinte, em nome da dissi-o carter sociolgico da categoria:mulao daquele estatuto que o termoreconhecer que esses termos evo-adquire como recurso de mobilizaocam uma designao social e tmpoltica. Da mesma forma, devemser compreendidos como expressosua eficcia poltica porque criamde espaos de luta na constituio de posies e direitos correspondentes.produtores por diferentes trajetrias,E assim, tambm reconhecer quemormente daqueles que, por diversos esses exerccios polticos e acadmi-interesses, nem sempre politicamentecos so provisrios, porque sempreconvergentes, querem assim ser so-passveis de novas interpretaes ecialmente reconhecidos. contra-argumentaes.Notas1Sobre o peso dos valores familiares na organizao da unidade produtiva, ver Carneiro, 2000.2 Essas questes tm sido por mim refletidas com maior detalhe em outros textos. VerNeves, 1995, 2006 e 2007.Para saber maisAbramovay, R. Paradigmas do capitalismo agrrio em questo. So Paulo: Hucitec;Campinas: Editora da Unicamp, 1992.Amin, S.; Vergopoulos, K. A questo agrria e o capitalismo. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1978.Bergamasco, S. M. P. Caracterizao da agricultura familiar no Brasil, a partir dosdados da PNAD. Reforma Agrria, v. 25, n. 2-3, p. 167-177, maio-dez. 1995.Chayanov, A. V. Sobre a teoria dos sistemas econmicos no capitalistas. In:Silva, J. G.; Stolcke, V. A questo agrria. So Paulo: Brasiliense, 1981. p. 133-163.Faure, C. Agriculture et capitalisme. Paris: Anthropos, 1978.Francis, D. G. Family Agriculture: Tradition and Transformation. Londres:Earthscan, 1994.Franklin, S. H. Peasants concept and context. In: ______. The EuropeanPeasantry. Londres: Methuen, 1969. p. 1-20.40 36. Agricultura Familiar AGaleski, B. Sociologa del campesinado. Barcelona: Pennsula, 1977.Lamarche, H. Introduo geral. In: ______. A agricultura familiar. Campinas:Editora da Unicamp, 1993, p. 13-33.Lenin, V. I. O desenvolvimento do capitalismo na Rssia: o processo de formao domercado interno para a grande indstria. So Paulo: Abril Cultural, 1982.L ovisolo , H. R. Terra, trabalho e capital: produo familiar e acumulao.Campinas: Editora da Unicamp, 1989.Mendras, H. Sociedades camponesas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.Neves, D. P. Agricultura familiar: quantos ancoradouros! In: Fernandes, B. M.;Marques, M. I. M.; Suzuki, J. C. (org.). Geografia agrria: teoria e poder. So Paulo:Expresso Popular, 2007. V. 1, p. 211-270.______. Agricultura familiar: questes metodolgicas. Reforma Agrria, v. 25,n. 2-3, p. 21-35, maio-dez. 1995.______. Campesinato e reenquadramentos sociais: os agricultores familiares emcena. Revista Nera, So Paulo, v. 8, n. 7, p. 68-93, jul.-dez. 2005, .______. Lavradores e pequenos produtores de cana. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.Ortiz, S. Reflexiones acerca del concepto de cultura campesina y de los sis-temas cognoscitivos del campesino. In: Bartolom, L.; Gorostiaga, E. (org.).Estudios sobre el campesinado latinoamericano: la perspectiva de la antropologa social.Buenos Aires: Periferia, 1974. p. 93-108.Paulilo, M. I. S. Produtor e agroindstria: consensos e dissensos o caso de SantaCatarina. Florianpolis: Editora da UFSC, 1990.Powell, J. D. 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O Estado, a agroindstria e a pequena produo. So Paulo: Hucitec;Salvador: Cepa/BA, 1986.Wolf, E. Sociedades camponesas. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. A Agriculturas alternativasPaulo PetersenAs agriculturas alternativasCom base nessa perspectiva hist-rica, as agriculturas alternativas podemem um enfoque histrico ser definidas como sistemas socio-Uma das principais lies aprendi-tcnicos desenvolvidos em respostadas com o estudo da histria da agricul-a bloqueios sociais, econmicos e/outura que a superao de um padro deambientais encontrados na agriculturaorganizao produtiva por outro nunca convencionalmente praticada em con-ocorreu como resultado automtico detextos histricos definidos. Dependen-novas descobertas tecnolgicas. A ado-do das condies polticas e institucio-o em larga escala de novos sistemas nais vigentes, esses sistemas tcnicostcnicos na agricultura costuma esbar-alternativos podem permanecer comorar em obstculos poltico-institucio-opes subvalorizadas pela sociedadenais, mesmo quando esses sistemas jou podem suplantar os padres con-tenham comprovado sua capacidadevencionais de produo. Essa formapara responder a crticos dilemas en- de compreender a noo de agriculturafrentados pelas sociedades em deter-alternativa est bem ilustrada no livrominados momentos de suas trajetriasAlternative agriculture (Thirsk, 1997),histricas. Em outras palavras, so asque reala a importncia decisiva dasrelaes de poder nas sociedades queformas emergentes de agricultura nadeterminam os padres tecnolgi-evoluo do mundo rural ingls duran-cos dominantes em suas agriculturas.te os seis ltimos sculos.Exemplos desse fenmeno esto farta Outra importante sntese sobre ae detalhadamente apresentados no li-evoluo histrica da agricultura foivro Histria das agriculturas no mundo: doelaborada por Ester Boserup, autora doNeoltico crise contempornea (Mazoyerlivro Evoluo agrria e presso demogrficae Roudart, 2010) e evidenciam que a (1987). Para Boserup, os dez mil anosagricultura no fez seu percurso hist- de histria da agricultura podem serrico por meio de uma sucesso linearinterpretados como a incessante bus-de sistemas tcnicos. Pelo contrrio, a ca pela intensificao do uso dos solossituao mais comum foi a convivn- em resposta s crescentes demandascia de diferentes sistemas no tempo e alimentares decorrentes dos aumentosno espao, sendo uns dominantes (ou demogrficos. A autora descreve comoconvencionais) e outros emergentesessa evoluo foi marcada por mudan-(ou alternativos).as na gesto da fertilidade dos solos, 42 38. Agriculturas Alternativas Amediante o encurtamento do tempoagroqumica, a acelerada estruturaodos pousios e, finalmente, a sua com- de um setor industrial voltado para apleta supresso, a adoo de sistemas agricultura (que, em grande medida,alternativos de manejo da biomassa, foi herdeiro de uma indstria blicaviabilizados pela introduo de adubosem desativao) e os pesados inves-verdes e plantas forrageiras, e a maior timentos pblicos comps as condi-integrao ecolgica entre a lavoura ees necessrias para a viabilizao daa pecuria. At o final do sculo XIX,Revoluo Verde, tambm conhecidaas estratgias tcnicas para a gesto dacomo Segunda Revoluo Agrcola.fertilidade eram desenvolvidas comA Revoluo Verde disseminou glo-base no manejo da biomassa localmen-balmente um novo regime tecnolgicote produzida. Porm essas dinmicas baseado na dependncia da agriculturade interdependncia e mtua transfor- em relao indstria e ao capital fi-mao entre os sistemas sociotcnicos nanceiro. Esse processo foi alavancadoe os ecossistemas foram profundamen-ideologicamente sob o manto da mo-te alteradas com o surgimento dos fer-dernizao, uma noo legitimadoratilizantes sintticos. O pai da qumicados arranjos institucionais que pas-agrcola, o alemo Justus von Liebig saram a articular de forma coerente(1803-1873), comprovou por meio deinteresses empresariais com os para-seus experimentos que as plantas se digmas tcnico-cientfico e econmi-nutrem de substncias qumicas, procu-co consolidados. Alm disso, o rumorando assim contestar a teoria humista, que assumiu a agricultura a partir doum postulado terico que fundamenta-final do sculo XIX foi muito funcio-va a prtica da adubao orgnica des-nal para a evoluo do capitalismo emde a Grcia Antiga. As descobertas de um momento histrico de aceleradaLiebig abriram caminho para que o de- industrializao e urbanizao. Nessesenvolvimento tecnolgico na agricul- novo contexto histrico, a agroqumi-tura tomasse o rumo da agroqumica, ca assumiu o estatuto de agriculturapermitindo o paulatino abandono das convencional com base no qual a no-prticas orgnicas de recomposio da o de agricultura alternativa passou afertilidade. Configuraram-se assim as ser referida.condies necessrias para a dissemi-nao das monoculturas em substitui-o s agriculturas diversificadas, ajus- Vertentes de agriculturastadas s especificidades ecolgicas alternativas agroqumicalocais, e os avanos posteriores noscampos da motomecanizao e da ge-O sentido adotado atualmente parantica agrcola. A simplificao ecol- a noo de agricultura alternativa temgica resultante da ocupao da paisa- suas origens ligadas contestao dagem agrcola com monoculturas fez agroqumica organizada por movi-multiplicar-se exponencialmente o n- mentos rebeldes. Essa denominaomero de insetos-praga e de organismos foi empregada por Ehlers (1996) empatognicos, abrindo a frente de inova- seu livro Agricultura sustentvel: origens eo em direo aos agrotxicos. Apsperspectivas de um novo paradigma. Tendoa Segunda Guerra Mundial, a conver- emergido quase que simultaneamentegncia entre os avanos cientficos nana Europa e no Japo nas dcadas de43 39. Dicionrio da Educao do Campo1920 e 1930, esses movimentos coin- matria orgnica e de aditivos paracidiam na defesa de prticas de mane- a adubao, atualmente conhecidosjo que privilegiam o vnculo estrutural como preparados biodinmicos,entre a agricultura e a natureza. Uma que visam reestimular as forasexcelente sntese sobre a emergncianaturais dos solos. Outra noo-das agriculturas alternativas nesse pe- chave de Steiner a concepo darodo foi apresentada no artigo Eco- propriedade agrcola como um or-agriculture: a review of its history andganismo vivo, integrado em si mes-philosophy (Merril, 1983). Para a au-mo, ao homem e ao cosmo.tora, os fundamentos tericos dessesb) Agricultura orgnica: vertente re-movimentos podem ser encontrados lacionada ao trabalho do botnicoem trabalhos cientficos do final do e agrnomo ingls Albert Howardsculo XIX, que realam a importn-(1873-1947). Como todos os agr-cia dos processos biolgicos para anomos formados em sua poca,manuteno da fertilidade dos solosHoward foi levado a defender as mo-agrcolas. Outro texto sobre o temadernas tcnicas agroqumicas comoque se popularizou no Brasil intitula- meio para o progresso na agricultura.se Histrico e filosofia da agricultu-Suas convices foram fortementera alternativa (De Jesus, 1985). Comabaladas quando tentou transferir ospequenas variaes entre esses autores,postulados agroqumicos para a n-os movimentos alternativos podem ser dia, onde trabalhou por vrios anos.categorizados nas seguintes vertentes: Seus conhecimentos sobre gentica e melhoramento vegetal, associados a) Agricultura biodinmica: intima- mente vinculada antroposofia, apurada observao dos mtodos de uma filosofia elaborada pelo austra- manejo tradicionais de fertilizao, co Rudolf Steiner (1861-1925) que abriram-lhe nova perspectiva para a influenciou o desenvolvimento deinvestigao nesse campo. Ao enfa- abordagens metodolgicas em di- tizar a importncia da matria org- ferentes campos do conhecimento,nica na gesto da fertilidade, Howard tais como a pedagogia, a medicina sustentava que o solo no poderia e a psicologia. Atribui-se o nasci- continuar sendo concebido como um mento da agricultura biodinmica amero substrato fsico, dado que nele um ciclo de palestras proferidas porocorrem processos biolgicos essen- Steiner em 1924, nas quais ele enfa-ciais ao desenvolvimento sadio das tizou a importncia da manuteno plantas. Para ele, a fertilidade deve da qualidade dos solos para que asestar assentada no suprimento de plantas cultivadas se mantivessem matria orgnica e, principalmente, sadias e produtivas. A nfase dadana manuteno de elevados nveis de ao tema da sanidade das plantas hmus no solo. Essas ideias o leva- justificava-se pelo aumento da in-ram a desenvolver o processo indore cidncia de insetos-praga e doen- de compostagem, prtica hoje ampla- as com o avano da agroqumica.mente disseminada. Para lidar com essa questo, Steiner apresentou propostas de manejo c) Agricultura biolgica: o modelo de dos solos baseadas no emprego deproduo agrcola organo-biolgico 44 40. Agriculturas AlternativasAteve suas bases lanadas na dca-1970 atualizou a crtica agricul-da de 1930 pelo suo Hans Peter tura convencional, em particularMller. Como poltico, Mller, aoo seu efeito sobre a diminuio darealizar sua crtica agroqumica,qualidade dos alimentos. H quemenfatizava questes de naturezadefenda que Aubert seja o pai dasocioeconmica, entre elas a preo- agricultura biolgica tal como elacupao com a crescente perda de hoje compreendida. Segundoautonomia por parte dos agriculto- Ehlers (1996), difcil precisarres e com a forma que vinha assu-se as ideias de Aubert mantinhammindo a organizao dos mercados ligao com as de Mller e Rush,agrcolas, ao se alargarem os circui-o que justificaria sua proposta detos que encadeiam a produo aoagricultura biolgica como umaconsumo de alimentos. Suas elabo-vertente distinta da orgnica e daraes no foram levadas em con- biodinmica. Um pesquisador quesiderao por cerca de trs dca-certamente exerceu influncia so-das at que o mdico alemo Hans bre Aubert foi o bilogo francsPeter Rush as retomou, centrando Francis Chaboussou, autor da teo-seu foco de ateno nas relaes ria da trofobiose, que correlacionaentre a qualidade da alimentao e a infestao de insetos-praga e pa-a sade humana. A diferena essen- tgenos com o estado nutricionalcial entre essa vertente alternativa das plantas, demonstrando aindae a agricultura orgnica tal comoque a aplicao de agrotxicos epreconizada por Howard que a de fertilizantes solveis provocaassociao entre pecuria e agricul- desordens metablicas que favore-tura no seria a nica