Didascalicon Hugo de Sao Vitor

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Output fileUm mergulho na cultura da Idade Mdia: este o Didasclicon da arte de ler, um dos livros medievais mais lidos nos tempos atuais. Por ele, o leitor sintoniza-se com o universo de pensamentos humanos e divinos, que habitavam as escolas e as mentes estudantis do sculo XII. Este escrito do Mestre Hugo de So Vtor, pequena enciclopdia do saber e da sabedoria da poca, emana e mantm um frescor, que conforta e vivifica o homem moderno.9788532625373EDITORAVOZESUma vida pelo bom livroE-mail: [email protected] Da arte de ler*5 a189H895DIDit,. A EDITORA VOZESHugo de So VtorParis v chegar, no comeo de 1100, ondas de jovens vindos de todos os cantos de uma Europa finalmente pacificada, que vivia um novo florescimento das cidades, aps as invases brbaras dos sculos V-VIII e aps a anarquia feudal e sombria dos sculos IX-X.Era um momento cultural nico, quando o papel vindo da China, o velino em pergaminhos finos, a tinta dos rabes, a minscula carolngia, a adoo da escrita em itlico e a caneta com ponta de feltro facilitavam nas oficinas dos copistas a compilao de livrosr que eram encomendados por bibliotecas, juristas, mercadores e senhores. Este florescer do sculo XII em artes e escolas marca, segundo o pedagogo Ivan Illich, o advento da "cultura livresca", que vem at os nossos dias, quando o livro est sendo substitudo pelo vdeo.Hugo de So Vtor um dos atores desta "revoluo cultural do sculo XII". Havia na Frana trs escolas renomadas: a de Chartres, a de Notre-Dame e, mais famosa, a da Abadia de So Vtor, na margem esquerda do Sena. Delas nascer, em 1215, a Universidade de Paris. Hugo encarna o esprito da Escola de So Vtor e era conhecido pelos estudantes como filsofo, telogo, exegeta, mstico, gramtico.Vendo tantos jovens desejosos de estudar, o Mestre Hugo quis oferecer-lhes uma introduo ao saber, um livro que apresentasse as vrias disciplinas e auxiliasse o estudante a montar o seu prprio itinerrio intelectual. Nasce, assim, em 1127, o Didasclicon da arte de ler, resumo dos saberes seculares e divinos da poca e exortao acerca do que ler, como ler, em qual ordem ler.Trata-se, na histria, do primeiro livro endereado aos estudantes. Pela primeira vez na histria as "cincias mecnicas", isto , o trabalho manual, passam a fazer parte da reflexoDIDASCLICON DA ARTE DE LEREDITORA VOZESColeo Pensamento Humano -Confisses - Santo Agostinho -Ser e tempo (Parte I) - Martin Heidegger -Ser e tempo (Parte II) - Martin Heidegger -Sonetos a Orfeu e elegias de Duno - R.M. Rilke -A cidade de Deus (Parte I; Livros I a X) - Santo Agostinho -A cidade de Deus (Parte II; Livros XI a XXII) - Santo Agostinho -O livro da divina consolao (e outros textos seletos) - Mestre Eckhart -O conceito de ironia - S.A. Kierkegaard -Os pensadores originrios - Anaximandro, Parmnides e Herclito -A essncia da liberdade humana - F.W. Schelling -Fenomenologia do esprito (Parte I) - G.W.F. Hegel -Fenomenologia do esprito (Parte II) - G.W.F. Hegel -Hiprion ou o eremita na Grcia - Friedrich Hlderlin -Da reviravolta dos valores - Max Scheler -Investigaes filosficas - Ludwig Wittgenstein -Verdade e mtodo - Hans-Georg Gadamer -Hermenutica - Friedrich D.E. Schleiermacher -Didasclicon da Arte de Ler - Hugo de So VtorCoordenao: Emmanuel Carneiro LeoConselho EditorialHermgenes HaradaSrgio WrublewskiGilvan FogelArcngelo R. BuzziGilberto Gonalves GarciaMareia S Cavalcante SchubackDados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)de So Vtor, Hugo, 1096-1141Didasclicon da arte de ler / Hugo de So Vtor ; Introduo e traduo Antonio Marchionni. - Petrpolis, RJ: Vozes, 2001.Ttulo original: Didasclicon de Studio LegendiBibliografia.ISBN 85.326.2537-11. Conhecimento 2. Filosofia medieval 3. Livros e leitura I. Marchionni, Antonio. II. Ttulo.01.0209 CDD-028ndices para catlogo sistemtico:1. Arte de ler: Obras medievais 028Hugo de So VtorDIDASCLICONDA ARTE DE LERIntroduo e traduo de Antonio Marchionni\\\^ It EDITORA VOZESPetrpolis 2001 2001, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Lus, 100 25689-900 Petrpolis, RJ Internet: http://www.vozes.com.br BrasilTodos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poder ser reproduzida ou transmitida por qualquer formae/ou quaisquer meios (eletrnico ou mecnico, incluindo fotocpia e gravao) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permisso escrita da Editora.Editorao e org. literria: Renato Kirchner e Orlando dos ReisISBN 85.326.2537-1DOAO/HE-CIENCIA8 HUMANAS E EDUCAOR e01 atro IM o. 470.001 D a ta: 09/1 2/2008Autor: VTOR, HUGO DE 8AO TlttJlo:DIDA8CALICON DA ARTE DE LERPreo:,00Doador: Dl VERSOSEste livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.SUMRIOApresentao, 7 Introduo, 9Didasclicon da arte de ler, 41 Prefcio, 43 Livro I, 47 Livro II, 83 Livro III, 131 Livro IV, 169 Livro V, 205 Livro VI, 235 Apndices, 267Bibliografia, 27977APRESENTAORecm-sados de uma civilizao que, em termos de comunicao, pode dizer-se do livro, no nos ocorre espontaneamente ter este fenmeno tambm uma data de ingresso no espectro de usos e costumes da humanidade. Em verdade, mesmo entre os gregos, cuja literatura fez-se parmetro das demais, at Plato, como o atesta o Fdon, foi o livro destinado a objetivos precisos e s aps significativo estgio probatrio angariou prestgio como lugar da tradio e veculo da sabedoria no processo civili-zatrio. Todavia, h de ser este filsofo, por fora do excelente acabamento de seus dilogos, que, para alm do registro dos mitos, das leis e dos gestos e feitos humanos, crnica e histria, h de dar o impulso decisivo para que a escrita se torne coextensiva oralidade, e o livro venha a ser, mais e mais, constante necessria, na instituio do saber.Entretanto, na tradio crist, o livro j se encontra de tal modo integrado na disciplina e na eruditio, que passa a ser inclusive sacramental desta mesma tradio: como Agostinho o conhece desde os dilogos em Cassicaco. Dos livros sagrados teologia acadmica ou algo similar nos quadros da Antigidade tardia, passando pela liturgia e pelas vrias formas de catequese, o pensamento cristo crescente h de transmitir Idade Mdia o que codificou e editou, bem como o que herdou dos antigos e h de faz-lo sob a forma do livro, o que faz da leitura um momento decisivo do seu ser, como o atesta a Regula Benedicti. No estranha, pois, que o De Doctrina Christiana, de Agostinho, nascido livro e como tal transmitido, fosse semente de outros livros e paradigma de todo um gnero.A Idade Mdia, sem o livro, seria simplesmente outra. Donde o Disdasclicon de Hugo de So Vtor, ele prprio uma arte de ler, fazer pleno sentido qual lugar e veculo da doutrina crist, segundo o referido exemplo agostiniano. Inspirado nesta doutrina, o livro do Vitorino no apenas um marco da tradio, mas um ato desta e, como tal, no apenas acolhe e transmite, mas nela integra o que colhe em seu meio e em seus tempos, bem como, no que lhe cabe, a constitui, preservando-a qual movimento ativo, o exato contrrio de um depsito. Isto o Vitorino logra saciedade. O fruto que produz, destinado a fazer-se rvore, agora tornado acessvel ao pblico de lngua portuguesa, como fruto, ele prprio, do labor acadmico do Dr. Antonio Marchionni. Chega o momento de dar-lhe a palavra, precisamente quando se prev para o livro um outro status ou um outro destino, para que ele a d, por sua vez, ao mestre medieval da arte de ler.Francisco Benjamin de Souza Neto Professor Livre-Docente do Depto. de Filosofia - UNICAMPINTRODUO"So trs as regras mais necessrias leitura: saber o que se deve ler, em que ordem se deve ler, como se deve ler.Neste livro se trabalha sobre estas trs regras, uma por uma".(Da arte de ler, Prefcio)O leitor de lngua portuguesa tem em mos, finalmente, um dos livros medievais atualmente mais lidos nos crculos culturais do mundo. Percorrendo a obra Da arte de ler, o leitor jovem e adulto mergulha no mundo cultural do comeo do segundo milnio, quando os jovens de toda a Europa acorriam para as escolas das cidades europias, que naquele momento iam adquirindo uma nova vitalidade aps os sculos da anarquia feudal.Sobretudo depois que o famoso pedagogo Ivan Illich escreveu Du lisible au uisible Illich, I., Du lisible au visible, sur 1'Art de lire de Hugues de Saint-Victor (Do lisvel ao visvel, sobre a arte de ler de Hugo de So Vtor), Paris, d. du Cerf, 1991. Em ingls: In the Vineyard of the Text: A Commentary to Hugh's Didasclicon (Na seara do texto: comentrio ao Didasclicon de Hugo de So Vtor), University of Chicago Press, 1993., que um ensaio sobre a revoluo intelectual do sculo XII a partir do Da arte de ler, este livro de Hugo de So Vtor considerado um divisor de guas no saber mundial, de maneira a poder-se falar, diz Illich, de um "antes e aps Hugo". Com efeito, incitando seus jovens a "ler tudo", Hugo estava inaugurando aquela era do livro, que daria vida Universidade e duraria at o comeo deste terceiro milnio, quando o livro est sendo substitudo pela pgina eletrnica, prancheta onde leremos on Une via rdio jornais, revistas e livros.Esta obra de Hugo mais conhecida como Didasclicon. O ttulo completo Didasclicon da arte de ler (Didasclicon de Studio Legendi). Os autores da poca costumavam dar s suas obras um ttulo grego e o termo Didasclicon queria significar "coisas concernentes escola". Ns preferimos apresentar esta traduo com o ttulo Da arte de ler e o subttulo menor Didasclicon.A primeira a SapinciaNesta Introduo e em toda a Traduo do livro, manteremos o termo Sapincia significando a Mente de Deus. O termo sabedoria, mais usual na lngua portuguesa falada, no traduziria bem a pregnncia do latim Sapientia, como usado por Hugo de So Vtor na esteira da tradio patrstica e posterior. Em Agostinho e em Francisco de Assis, por exemplo, Jesus, o Verbo e Filho de Deus, invocado como "a Sapincia do Pai" {Sapientia Patris), expresso que encontramos tambm no Didasclicon da arte de ler (IV, 8).Imagine voc, leitor, o primeiro dia de aula no comeo de setembro de 1127 na Escola de So Vtor em Paris. A grande sala com abbadas ogivais ressoa o burburinho dos jovens alunos, que vieram dos quatro cantos da Europa pacificada. Curiosos, eles fixam os olhos na entrada da sala, onde finalmente aparece a figura do renomado Mestre Hugo, que segura na mo seu ltimo livro apenas escrito: Didasclicon da arte de ler. Faz-se silncio. Os alunos se levantam. O Mestre sobe ctedra e entoa uma reza de iluminao. Senta, e todos sentam. No silncio total, sentindo sobre si os olhos sagazes da classe, o Mestre declama pausadamente a primeira frase do livro...: "De todas as coisas a serem procuradas, a primeira a Sapincia, na qual reside a forma do bem perfeito".Ao jovem aluno logo ensinado que a Sapincia , entre todas as coisas, a primeira. Mas esta Sapincia no alguma coisa, um estgio do conhecimento ou uma sabedoria qualquer. A Sapincia Algum. a Segunda Pessoa da Trindade, o Verbo, o Logos, o Pensamento divino, a Mente de Deus.Por que esta Sapincia deve ser a primeira a ser procurada? Porque ela - explica Hugo - a nossa origem. Conhecendo-a, conhecemos a ns mesmos. Com efeito - continua o Mestre - estava escrito na trpode do templo de Apolo em Delfos o famoso ditado: "Conhece-te a ti mesmo". Mas, o que significa para o homem conhecer-se a si mesmo, seno conhecer a sua prpria origem, o lugar divino de onde veio?A Sapincia forma do bem perfeito. Ela , antes de tudo, a forma do prprio Deus, que bom e perfeito. Em segundo lugar, a forma do mundo. O mundo e o homem estiveram dentro daquela forma e foram moldados por ela antes de serem criados, como a massa de areia e cimento posta numa frma ou molde antes de virar tijolo, ou como o arquiteto engendra a casa na sua mente antes de transp-la para a prancheta. Como forma causal que cria o mundo, esta forma transfere a sua bondade perfeita para todo o universo. O mundo bom. O homem , originariamente, bom.Em suma, tudo aquilo que o homem quer saber sobre si mesmo est l, na sua origem, no seu arqutipo, na sua forma boa, na Sapincia. Em vo - diz Hugo - o homem procura conhecer fora de si aquilo que ele . Basta olhar para dentro de si, descobrindo em si os traos da Sapincia, da mesma forma que o filho se auto-conhece descobrindo em si a frma gentica do seu genitor.E como que o homem chega a conhecer esta Sapincia? Hugo responde que tudo comea com o ato de ler, seguido pelo ato de refletir e enfim pelo ato de contemplar.A leitura, portanto, o comeo do saber. O bom aluno, diz Hugo, "ouve com prazer todos, l tudo, no despreza escrito algum, pessoa alguma, doutrina alguma... pois nenhum texto h, que no tenha algo a ser aproveitado, quando lido no tempo e no modo apropriado" (III, 13). Hugo injetava nos jovens uma grande fome de ler e saber. Estudar, lendo, significa conhecer a Sapincia. Por isso, a filosofia, que comea com a leitura, nada mais que um exerccio de amizade com Deus: "A procura da Sapincia uma amizade com a divindade e com a sua pura mente" {Sapienti-ae studium est diuinitatis et purae mentis illius amicitia, I, 2).Com esta saudao programtica - procurem primeiro a Sapincia! - comeava o ano escolstico na Escola da Abadia de So Vtor, na margem esquerda do rio Sena. O homem medieval vivia com as antenas viradas para o alto, sondando os sinais do eterno. Era normal inaugurar um ano escolar com uma exortao de cunho espiritual-metafsico, contrariamente a quanto acontece hoje entre ns, que questionaramos como ingerncia indevida da religio uma exortao deste tipo diante de uma classe.No longe da Escola de So Vtor, havia, na Ilha do Rio Sena, uma outra escola, a de Notre-Dame, onde os jovens se encantavam com as argumentaes do Mestre Abelardo. Em seguida, Abelardo transferir o seu ensino na colina de Sainte-Genevive, de onde desciam os vinhedos at o vale, onde ficava a Abadia de So Vtor. Destas escolas nascer, ao redor de 1200, a Universidade de Paris. Os mestres Hugo e Abelardo brilham, na primeira metade do sculo XII, entre os maiores luminares da cena cultural de Paris e da Europa. Abelardo mais exegtico e lgico, Hugo mais mstico, filosfico e teolgico.Uma filosofia cristDa arte de ler , antes de tudo, um texto de filosofia. Nele no se faz recurso autoridade dos livros sagrados, como faria a teologia. Nele, tudo explicado com a luz da razo, como faz a filosofia. Mesmo quando, nos 3 ltimos livros, Hugo ensina como ler os livros sagrados, o faz numa compostura racional.Trata-se, claramente, de uma filosofia crist, cujo ponto de partida a existncia do Ser Transcendente, Deus, que d ao mundo a existncia (causa agente), a forma (causa formal), a matria (causa material), a finalidade (causa final).Deus, em Da arte de ler, definido por Hugo sobretudo com a palavra Razo (Ratio). Deus , em si, uma ordem, uma harmonia, uma inteligncia racional. Este conceito de Ratio um dos mais importantes na filosofia do Da arte de ler. Criando o mundo, Deus dota-o de sua prpria racionalidade, de sua prpria ordem. A Sapincia criadora "A Razo nica e primeira de todas as coisas" (sola rerum primaeva ratio, I, 2)No se trata de uma razo lgica ou instrumental, como nas filosofias modernas. A razo dos modernos apenas a capacidade cognitiva e discursiva do homem. Chama-se lgico tudo aquilo que est na mente humana. A razo lgica um fato humano, a regra do pensar mental na conduo do saber cientfico. Ela uma funo neurolgica do crebro humano, sem nenhum parentesco com a divindade.A Ratio do Da arte de ler a Ratio onto-lgica de Algum que (ontos) independentemente da mente humana, antes desta, causa e ordem desta. Esta Ratio, criando o mundo, torna-o semelhante a si mesma, divinamente ordenado e harmnico. Ela o arqutipo do mundo. A Razo Divina, portanto, encontra-se estendida, depositada no universo e sobretudo no homem.Desta Ratio o mundo e o homem so constitutivamente, no apenas metaforicamente, semelhana, simulacro, espelho (simili-tudo, simulacrum, speculum). Forma perfeita do mundo, a Ratio divina in-forma o mundo. E a mente humana, parecida com as estruturas racionais do universo (rerum omnium similitudine in-signita, I, 1), um pouco tudo {omnia esse dicitur, 1,1), nela cabendo tudo (universorum capax est, I, 1), e possui as condies para compreender tudo, inclusive o prprio Deus, a Sapincia.Esta ordem racional do homem no universo continuamente ferida no corpo e no esprito pelas formas sensveis e materiais que distraem o homem. Como restaurar esta ordem? A semelhana do homem com a Sapincia restaurada pelo prprio homem, mediante a atividade manual do trabalho e, sobretudo, pela atividade intelectual: "somos reparados pelo conhecimento" (doctrina reparamur, I, 1). Nisto insere-se o ato de ler, cuja finalidade introduzir aquele que l e estuda naquele conhecimento que restaura em ns a semelhana com a divindade. Concepo grandiosa do saber humano! evidente, nesta filosofia de Hugo, o seu parentesco com conceitos neoplatnicos, orientais e cristos a um s tempo. O Pseu-do-Dionsio, o Comentrio de Macrbio ao ciceroniano Somnium Scipionis e os escritos de Bocio inspiram conceituai e verbalmente as pginas do Da arte de ler. Particularmente vivos so, decorrentes do Timeu de Plato e dos neoplatnicos Flon e Plotino, conceitos como a correspondncia entre a alma do mundo e a alma do homem, a definio do homem essencialmente como alma, a divindade do intelecto humano, a reciprocidade da Ratio em seus trs nveis: na mente divina, na natureza, no homem.Uma filosofia da educaoEnquanto destinado a ensinar o que ler, como ler, por que ler, o Da arte de ler tambm um texto de filosofia da educao.Vendo aquelas ondas de jovens que chegavam nas escolas de Paris, o Mestre Hugo concebeu a idia de apresentar-lhes um quadro geral dos estudos e das disciplinas, para que eles se situassem e pudessem escolher. , na histria, o primeiro livro pedaggico direcionado diretamente aos alunos, que nele encontravam um roteiro sobre o que ler e como ler. Alm disso, nele os jovens encontravam conselhos sobre as qualidades que fazem do jovem um bom discpulo, cuja virtude suprema a disciplina.Vejamos, por um momento, o currculo escolar da poca, varivel antes da criao das universidades em 1200, mais fixo com a multiplicao delas.Primeiro, estudava-se na faculdade das artes o trvio (trs vias, artes da linguagem: gramtica, dialtica e retrica) e o qua-drvio (quatro vias, artes das coisas: aritmtica, msica, geometria, astronomia). Era uma espcie de colegial, que acontecia entre os 14 e os 20 anos. Em artes, estudavam-se os livros de lgica, matemtica, fsica e metafsica dos filsofos gregos, rabes e dos prprios mestres que davam os cursos.Depois, acedia-se s faculdades de teologia, direito ou medicina, que duravam 6 anos para adquirir a licena e o doutorado. Mas o estudo da teologia durava de 8 a 15 anos, e o doutorado em teologia podia ser obtido com a idade mnima de 35 anos.Em medicina, estudavam-se Hipcrates, Galeno e as sumas rabes de Avicena e Averroes. Em direito, estudavam-se principalmente os decretos cannicos da Igreja e a legislao imperial. Em teologia, discutiam-se as sentenas de algum pensador exmio (auctoritas). As aulas costumavam comear com a leitura de um texto de um grande autor {lectio, lio), e em seguida procedia-se a questes {quaestio) e discusses (disputatio).Para que serve a educao? Para onde voc, jovem, quer ir mediante o estudo e a leitura? Para onde um professor de ento e de hoje quer levar o aluno pelo ato de ensinar? A resposta clara em Hugo. Fazer artes, teologia, direito e medicina tem a finalidade de, conhecendo as maravilhas da natureza, conhecer o Artfice dela. Em suma, o ler e o ensinar so um entretenimento com a Mente divina.Mas o ato de ler tambm um ato moral e poltico, pois aquele que se alimentou da leitura deve alimentar a cidade, vigiando sobre ela como uma sentinela.Uma introduo ao saberO Da arte de ler tambm uma Introduo aos estudos, a primeira introduo escrita no segundo milnio.Hugo tinha diante dos olhos outras introdues ao saber, de outros grandes pedagogos, as quais lhe servem de fontes: o Da Doutrina Crist de Agostinho (sculo V), o Das npcias da filologia e de Mercrio de Marciano Capella (s. V), as Instituies das lies divinas e seculares de Cassiodoro (s. VI), as Etimologias de Isidoro (s. VII), o Da formao dos clrigos de Rbano Mauro (s. IX).Este gnero de Introdues ao saber nasce em ambientes alexandrinos na metade do sculo II, estende-se pelos ambientes srio-rabes e penetra nos ambientes latinos a partir de Bocio, no sculo V. O termo filosofia era utilizado para indicar o saber em geral, ou melhor, a reflexo mais profunda sobre o significado das vrias cincias.Os alexandrinos e os rabes foram os primeiros a iniciar o costume de enquadrar estas introdues em seis perguntas: 1) o que a filosofia? 2) por que chamada assim? 3) qual a sua inteno? 4) qual a sua finalidade? 5) quais as suas divises e subdivises? 6) o que deve-se dizer sobre cada uma delas? O Da arte de ler, em seus primeiros trs livros, responde a todas estas perguntas: 1) elenca quatro definies de filosofia, 2) explica a origem grega do termo atribuda a Pitgoras, 3) declara a inteno da filosofia, 4) mostra a sua finalidade, 5) prope as divises da filosofia, acrescentando a novidade das cincias mecnicas, isto , o trabalho manual, 6) d explicaes sobre cada uma das partes nas quais a filosofia se subdivide.Acerca da primeira pergunta, o que a filosofia, a primeira definio a etimolgica, atribuda a Pitgoras, na qual a filosofia o amor (filia) da Sapincia (sofa). O filsofo no aquele que possui a Sapincia, mas aquele que humildemente procura, amando-a, a Sapincia. Esta Sapincia em Hugo , como dissemos, a Mente de Deus: A filosofia o amor e o zelo e em um certo sentido uma amizade para com a Sapincia, a qual, no carecendo de nada, mente viva e nica causa primordial das coisas (I, 2; II, 1).A segunda definio, de sabor estico, conhecida em ambientes romanos, bizantinos, agostinianos e latinos: A filosofia a disciplina que investiga exaustivamente as razes de todas as coisas humanas e divinas (I, 4; II, 1).A terceira definio evoca a mentalidade grega: A filosofia a arte das artes e a disciplina das disciplinas (II, I).A quarta definio chama em causa a idia da morte. Trata-se da morte desejada ou fsica, que para o estico representa o grau mximo de liberdade. A preocupao com a morte (cura mortis) , em Ccero, nos Padres e na Escolstica, uma "fonte de sabedoria": A filosofia a meditao sobre a morte, que convm sobretudo aos cristos, os quais, subjugada a ambio deste sculo, por meio da convivncia especulativa j vivem semelhana da ptria futura (II, 1).Uma novidade na cultura mundial: o trabalho como parte do saber filosficoEm termos de diviso geral do saber e de classificao das cincias, chegam at Hugo duas tradies: a) a tradio platni-co-estico-agostiniano-isidorense, que divide a filosofia em fsica, tica e lgica, b) a tradio aristotlico-alexandrino-boecia-na, que divide a filosofia em terica, prtica e poitica. De 900 a 1100 corre um perodo de silncio nas Introdues Filosofia. Repentinamente, sob o impacto dos textos greco-rabes e dos primeiros textos cientficos de Aristteles, o sculo XII explode. o momento do Da arte de ler.Hugo introduz uma grande novidade, acrescentando filosofia as cincias mecnicas e dividindo-a em quatro partes: terica, prtica, mecnica, lgica. A terica se divide em teologia, matemtica e fsica; a matemtica compreende aritmtica, geometria, astronomia e msica. A prtica se divide em solitria (tica, moral), privada (econmica, dispensativa), pblica (poltica, civil). A mecnica engloba 7 cincias: manufatura da l, armadura, navegao, agricultura, caa, medicina, lazer. A lgica se divide em gramtica (arte de escrever) e ratio disserendi (arte de argumentar); a arte de argumentar se divide em demonstrativa, provvel e sofstica; a provvel se divide em dialtica e retrica.Como pode-se observar, as sete artes liberais do trvio e do quadrvio situam-se nas subdivises da matemtica e da lgica. As 7 cincias mecnicas, pela primeira vez na histria, adquirem o status de saber parte. Eis o esquema:1717terica ' teologia matemtica-fsicaaritmtica msica geometria astronomia1717prtica individual (moral) privada (econmica) pblica (poltica)1717filosofia i1717mecnica