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Diego Cavazotti MILAGRES E IMPERIOS NA LlTERATURA DE J.G. BALLARD CURITIBA 2011 Trabalho de Conclusao de Curso apresentada ao Curso de Letras da Faculdade de Ciemcias Humanas, Letras e Artes da Universidade Tuiuti do Parana, como requisito parcial para a obtenc;:ao do grau de Licenciado em Letras Portugues I Ingles. Orientador Profl Ora. Cristiane Smith

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Diego Cavazotti

MILAGRES E IMPERIOS NA LlTERATURA DE J.G. BALLARD

CURITIBA

2011

Trabalho de Conclusao de Cursoapresentada ao Curso de Letras daFaculdade de Ciemcias Humanas,Letras e Artes da Universidade Tuiutido Parana, como requisito parcialpara a obtenc;:ao do grau deLicenciado em Letras Portugues IIngles. Orientador Profl Ora. CristianeSmith

SUMARIO

1. INTRODU<;;Ao 09

2. OS PACTOS EM AUTOBIOGRAFIAS 12

3. 0 IMPERIO DO SOL, VERDADES E (IN)VERDADES 28

4. APOS MUITOS OUTROS, MAIS UM MILAGRE DA VIDA 39

5. CONCLUsAo 47

6. REFERENCIAS 52

1. INTRODU<;:AO

o presente trabalho visa analisar dais romances do escritor ingles James

Graham Ballard (1930-2009). 0 Imperio do Sol (2007) e Milagres da Vida: de

Shangai a Shepperton (2009), sob a 6tica da tearia do genera autobiogrilfico.

Lanl'aremos mao das tearias de Philippe Lejeune (1938 -), Milan Kundera (1929 -) e

Silviano Santiago (1936 -), dentre outros, para entender as especificidades de um

genera que, par ser popular, muitas vezes e tido como simples e "transparente"

A primeira parte, 0 segundo capitulo, aborda a teoria acerca da autobiografia,

dando prioridade a Philippe Lejeune,l te6rico frances que elaborou a teoria do Pacto

Autobiografico. T omaremos, ainda, como base as estudos de Silviano Santiago e

Milan Kundera, escritores que teorizam a literatura autobiografica e a representay80

da realidade. Lanyamos mao de Qutros te6ricos, a tim de complementar e

aprofundar nossas reflexoes te6ricas.

Na segunda parte, 0 terceiro capitulo, iremos analisar 0 Imperio do Sol, um

Bildungsroman2 descrito como uma semi autobiografia pelo proprio autor. 0 livro

relata um episodio de grande importancia historica e pessoal: a ocupag8o japonesa

em territorio chines no periodo da Segunda Guerra Mundial, sob a 6tica de urn

garoto ingles3, Mesclando 0 relato historico com elementos ficcionais, esta obra pode

gerar uma extensa analise sobre a questao da mimese4 em um relato autobiografico.

AlE3m de representar a realidade, Ballard representa em seu livro uma nao-realidade,

I Uma das referencias mais representativas na area dos estudos do genera autobiografico.

2 Subgenero do romance que narra 0 processo de crescimento e amadurecimento do herOi.

1~0 unico romance em lingua inglesa que narra esse episodio da hist6ria.

4 Representa~ao da reaJidade,

10

pais inclui situagoes ficcionalizadas que, no entanto, nao deixam de S8r "verdades",

uma vez que metaforizam 0 seu estado emocional durante a guerra. E, portanto,

a polemica da questao da Realidade x Fic9ao que nos voltaremos no capitulo tres.

A terceira parte, no quarto capitulo de nosso trabalho, trata da analise de

Milagres da Vida: de Shangai a Shepperton, uma autobiografia completa de Ballard'

o autor decide escrever esse livra no tim de sua vida, ao saber que era portador de

um cancer incuravel. Diferentemente de 0 Imperio do Sol, esta obra relata fielmente

(au pelo men os damos ao autor este eredito por confessar que esta sendo fiel a

suas palavras) a vida do autor do inicio ao fim. Milagres da Vida naD acrescenta

eventos inexistentes, au omite eventos significativos para que a hist6ria S8 molde ao

modelo de sua propria vontade. Este capitulo busca mostrar como a obra S8 maida

as caracteristicas propostas par Lejeune e, ainda estabelecer algumas diferenc;as

basicas entre 0 Imperio do Sol, analisada no capitulo tres, findando com a

conclusao de nossas analises no capitulo cinco.

A autabiografia e urn genera par vezes subestimado dada a sua papularidade,

e talvez par isso mesmo merec;a uma atenc;ao especial. As quest6es que

procuramos refletir ao longo deste trabalho foram: Onde esta a "real" realidade nas

obras de literatura (principalmente na obra de Ballard)? Onde se concentra a fic9ao

nas obras autobiograficas? Como livrar-se da influencia intensa da ficc;ao cientifica

ao escrever um livro para "falar de si"? Talvez a transito de Ballard em generos

radicalmente diferentes traga caracterrsticas proprias de sua literatura para a

autobiografia, e a dor de um autor "que fez tudo para esquecer (os traumas da

5Dizemos autobiografia com pi eta, pois apesar de em 0 Imperio do Sol Ballard fazer um relato autobiogrMico, a

narrativa abrange em torno de quatro anos de sua adolescencia.

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guerra)", somente possa ser exorcizada par um livre quando ele faz "tudo para

lembrar,,6.

Ha pouquissimos estudos sabre J.G. Ballard no Brasil. Na lingua inglesa,

encontramos livros criticos sabre 0 autor. 0 site youtube tern entrevistas

iluminadoras, nas quais Ballard aborda 0 Imperio do Sol e outras obras. Uma das

fontes rnais ricas e completas sobre Ballard e 0 site ballardian7, que compila artigos

teoricos e criticos, entrevistas e acesso e informac;oes sabre eventos academicos

que se destin am aos estudos ballardianos. No Brasil, tivemos acesso a Ballard por

meio das aulas de literaturas de lingua inglesa com a proF Ora Cristiane Smiths. Ha

tambem um artigo sabre Crash: Estranhos Prazeres9, Dutra obra de J,G. Ballard de

grande sucesso e expressao. Nao encontramos nenhum estudo publicado em nossa

lingua materna sabre 0 Imperio do Sol, apesar do grande sucesso alcanyado por

essa obra, e tam bern nada foi encantrada sabre Milagres da Vida, pravavelmente

par ser uma publica9ao recente. Com a fim disseminar ainda mais no meio

academico as obras desse inventive auter este trabalho trata de suas obras.

6 Citado em aulas da Prof! Ora. Cristiane Smith.

1http://www.bal1ardian.com.disponivelsomenteemingles .

•Que tambem trabalhou este tema em sua apresenta~ao no evento Invisibilidades III, evento sobre Fic~ao

Cientifica realizado em Sao Paulo nos dias 21 e 22 de agosto de 2010, onde tratou de 0 Imperio do Sol sob a

6tica da Fic~ao Cientifica.

9 Trabalho de autoria de Paula Cordeiro http://www.bocc.ubLpt/oag/cordeiro-paula-crash.pdf.

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2. OS PACTOS EM AUTOBIOGRAFIAS

o presente capitulo prop6e cempor uma revisao teerica do genera

autobiografico. Busca-se fundamentos principalmente na obra do teorica Philippe

Lejeune, que sintetiza conceitos importantes sabre a autobiografia, definindo-a e

expllcando suas principais particularidades e diferen9a ao compara-Ia aos Qutros

generos. Lejeune e autor de L'aulobiographie en France (1971). Em 1975, publicou a

tese, que Ihe deu a reconhecimento mundial e eredito merecido, intitulada de Le Pacte

Aulobiographique (traduzida para 0 portugues, recebendo 0 fiel titulo de 0 Paclo

Autobiografico (2008)), e que, de acordo com 0 proprio autor, e uma extensao e

melhoria da teeria proposta na obra anterior. Alguns anos ap6s, em 1986, fez algumas

revis6es no texto inicial, acrescentou outras ideias e publicou 0 Pacta Aulobiografico

(8IS), e, em 2001, fez uma releitura e 0 Pacto Autobiografico, 25 anos depois nos veio

as maos. Por esta notavel contribuic;:ao e que este te6rico se tornou digno de nota e urn

nome de necessaria menc;:ao ao nos engendrarmos pelos caminhos da autobiografia.

Para podermos ter maio res referemcias ace rca do assunto e das

problematicas a serem discutidas neste trabalho, lanc;:amos mao dos ensinamentos de

outros autores par meio de obras como Uteratura e vida literana: polemicas, diarios e

relratos (1985), de Flora Sussekind, e 0 narrador p6s-moderno, um capitulo do livro

Nas rna/has da tetra: ensaios (2002), de Silvia no Santiago. Outra obra que tern urn

importante papel nos estudos de literatura e representac;:ao da realidade, Mimesis - a

representaq80 da realidade na literatura ocidental, de Erich Auerbach, obra consagrada

que trata das obras mais influentes da literatura ocidental, e que nos dara algumas

contribuic;:6es para este estudo.

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Com base nas teorias de Lejeune, a seguir forneceremos urn resumo das

caracteristicas de autobiografia e 0 que naa se enquadra neste tipo de narrativa. Este

resume sera primordial nas analises que faremos neste trabalho mais adiante. Segue

uma definiy30 pro posta pelo te6rico.

DEFINICAo: narrativa retrospectiva em prosa que urna pessoa real faz de suapr6pria existemcia, quando focaliza especialmenle sua hist6ria individual, emparticular a hist6ria de sua personalidade. (Lejeune 2008, p.14)

Tambem estabelece alguns pontes importantes que a autobiografia deve

seguir para ser qualificada como tal:

1. Forma da Linguagem:a) narrativa;b) prosa.

2. Assunto tratado: vida individual, hist6ria de urna personalidade.

3. Situa~ao do autor. Identidade do autor (cujo nome remete a uma pessoa real)e do narrador.

4. Posi~ao do narrador:a) identidade do narrador e do personagem principal;b) perspectiva retrospectiva da narrativa. (-, p. 14)

Pensar na forma de linguagem (1) utilizada, pode parecer irrelevante, mas uma

autobiografia, para pertencer a tal genero, constitui uma narrativa em prosa. Poem as,

versos, baladas, sonatas, au outros tipos de narrativas, que nao sejam em prosa, nao

podem ser qualificados como autobiografias. as textos podem conter elementos

autobiograficos em grande parte ou em toda a sua extensao, elementos da vida pessoal

do autor, que nos permitem caracteriza-Io de tal forma, devido aos importantes tra90s

reveladores da vida de urn personagem real, ou ate rnesmo serem a narrativa de sua

vida, mas os textos devem seguir esta forma de linguagern, em prosa, para que sejam

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considerados parte integrante do genera.

Como desenvolveremos no decorrer deste trabalho, a assunto (2) a 5er

tratado deve ser uma narrativa que relate uma historia obrigatoriamente de cunha

veridica, alem de que a tema principal deve consistir na vida de um individuo. Urna

narrativa que trata em sua maior parte da vida de uma pessoa, mas que 5e detem de

forma significativa no relato da vida de Qutros, naD pode 5er considerada uma

autobiografia, pois nao e um relata de uma vida individual, mas sim uma juntura de

muitas vivencias, que se volta para outro lado, e se torna urn romance devido a este

teer de intromissoes e atent;(ao que 5e da a narrativas alheias a hist6ria de vida do

personagem principal. Veremos rnais adiante que 0 foco narrativo e um fator de grande

relevancia para a definir;c3o e limitar;ao do genera autobiogrMico (-, p.14).

A identidade do autor e do narrador (3), sao a mesma remetendo a uma

(mica pessoa real. A identidade do autor, narrador e do protagonista da historia e a

mesma, pais afinal se trata do relata de vida de quem escreve a texto. E isso est a

intrinsecamente ligado a posi~ao do narradar (4). Assim como e fata logico que a

narrativa deve ser construida par meio de uma perspectiva retrospectiva, ou seja, a

narrativa deve contar fatos ocorridos na vida do narradar, trazendo-nos uma

retrospectiva de sua vida. Isto e, precisamos de um narrador em primeira pessoa, que

tenha a mesma identidade do personagem e do autor da historia (-, p.14).

Ap6s essas definir;oes, Lejeune afirma que uma autobiografia e uma obra

que preenche ao mesmo tempo todas essas categorias. 0 autor nos da uma lista dos

outros generos, que possuem muitas caracteristicas autobiograficas e, par isso,

algumas vezes, podem ate ser parcialmente classificados dentro do genera, mas nos

apresenta em quais categorias esses tipos textuais nao satisfazem as requisites, e per

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isso naD pod em ser cham ados de autobiografias:

•mem6rias: (2),• biografia: (4 a)- romance pessoal: (3),- poema autobiografico: (1 b),- diario: (4 b) ,- auto-retralo ou ensaio: (1 8 e 4 b). (-, p.14)

Sendo assim, de acordo com as definic;:6es de Lejeune, uma obra podera

ser qualificada como autobiografica somente se: a narrador, a persona gem principal e 0

autor fcrem a mesma pessoa. Ainda assim engloba narrativas em primeira pessoa,

cnde a narrador e 0 personagem sao a mesma pessoa. Assim como narrativas

impessoais, em que a personagem e designado em terceira pessoa. Tambem devemos

deixar bern claro que hit urn grande numero de narrativas nas quais 0 narrador se

apresenta em primeira pessoa, mas naD compartilha a mesma identidade do autor.

Sendo assim, 0 inverso e da mesma forma possivel, haver identidade entre narrador e

personagem principal sem 0 emprego da primeira pessoa.

Ao colocarmos 0 problema do autor em evidfmcia, veremos que a

autobiografia e mais objetiva em certos pontos do que a fic<;ao, que em certos

momentos pode nos confundir sobre questoes de identifica<;ao com 0 autor x

personagem x narrador. Em uma narrativa biografica em terceira pessoa, temos de

levar em conta os pontos a seguir: 0 autor e 0 mesmo que 0 narrador, e 0 mesmo que

o personagem, entretanto, devido a obra estar escrita em terceira pessoa, podemos

identificar alguma impessoalidade e isso pode nos levar a desacreditar 0 texto como

autobiografico, [evando a qualifica-Io como "uma biografia escrita pelo interessado, mas

escrita como uma simples biografia" (-, p.16), de acordo com as palavras do proprio

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Lejeune. Essa pode ser a impressao que teremos sabre uma autobiografia escrita com

o foea narratiVQ em terceira pessoa. Por vezes, se tarnara diffcil associar a narrador ao

autor, pais 0 proprio autor, que e 0 narrador, trata a si mesmo no texto como "ele",

levando·nos aver seu personagem como "ele", Dutro que naD 0 proprio, e nao como

veriamos 0 "eu" em uma obra memorialistica usual.

A escolha do foco narrativo em terceira pessoa para uma obra

autobiografica pode ser tom ada par varios motivos. Falar de si mesma em terceira

pessoa pode tanto exaltar 0 escritor, fazendo com que suas obras pare~am mais

importantes, au ate 0 contrario, tornando 0 personagem mais humilde, como pod em os

encontrar em certas autobiografias religiosas da era medieval. Em ambos os casos,

como jei mencionamos, 0 narrador assume certo distanciamento em relayao a seu

personagem, seja um distanciamento do olhar da hist6ria, seja um distanciamento para

possibilitar 0 enaltecimento ou simplificayao do fato ocorrido.

o tipo de narrativa usual de uma autobiografia, com 0 foco narrativo em

primeira pe550a, merece atenyao para algumas considera90es importantes: como 5e

manifesta a identidade do autor e do narrador? Lejeune afirma que, para 0

autobi6grafo, e comum a questao "Quem sou eu?", para entender melhor a si mesmo, e

poder assim encontrar a alma do narrador, e seu "eu" no personagem. De igual forma,

ao encontrar-se nesta sucessao de repeti90es do mesmo ser (autor = narrador =personagem), 0 leitor, para se situar e compreender melhor de quem se trata, ou 5e

tratam, a obra pergunta: "Quem e 'eu'?" (-, p.19). Para a compreensao da obra em

primeiro plano Is50 e muito importante. Ao chegar a essa questao, 0 lei tor deve levar

em considerayao alguns pontos importantes, para que entenda e tenha certeza de que

o autor, narrador e personagem sao a mesma pessoa:

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1. Referencia: Os pronomes pessoais utilizados no texto 56 tern referencia

dentra dele mesma. 0 "eu" 56 existe quando ha alguem produzindo enunciado, fora

deste contexte 0 "eu" naD e aplicavel (-, p.19).

2. Enunciado: Os pronomes pessoais que sao utilizados nesse contexte

marcam a identidade do sujeito da enunciayao e do sujeito do enunciado. Vemos par

meio disso que naD e a pessea que define 0 "eu", mas talvez seja 0 "eu" que define a

pessoa, au seja, que 56 existe pessoa no discurso (-. p.19).

Encontramos tambem a questao do nome pr6prio. "E no nome proprio

que pessoa e discurso se articulam, antes de S8 articularem na primeira pessoa", de

acordo com Lejeune (-, p.22). Para entendermos mel her, ele nos exemplifiea com a

imagem do aprendizado da lingua por uma crianya. Ao aprender a se expressar

linguisticamente, ela fala de si mesma na terceira pessoa, e chama a si mesma pelo

proprio nome, ate aprender que pode usar a primeira pessoa. Apos este aprendizado,

cada ser humane utilizara 0 "eu" para falar de si mesmo. No discurso oral, sempre que

necessario e feito um retorno a referencia, seja a apresentayao pelo proprio locutor, ou

por um terceiro. Ja no discurso escrito e a assinatura que designa 0 enunciador.

No nome pr6prio, como mencionamos no paragrafo acima, e necessario

ter uma referencia, seja 0 proprio locutor ou um terceiro. No caso da autobiografia, e da

mesma forma. E precise uma previa apresentayao do autor. No caso dos textos

impressos, essa enunciayao fica a cargo do nome impresso na capa do livro e na folha

de rosto. Esse nome nos traz uma carga historica, e a evidemcia da existencia do autor.

Ele, nesse momento, e uma pessoa publica, e esta inserido em uma linha de cantata

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entre 0 texto e 0 extratexto, Isto a, uma pessoa real, socialmente responsavel, e que

produz e reproduz urn ou mais discursos. Para a leitor que nao conhece a pessoa real,

apesar de acreditar em sua existemcia, 0 autor se define como capaz de produzir aquele

discurso, e entao ira imagina-Io a partir deste discurso. Mesma sem ser uma regra,

consideramos este produtor de discursos urn escritor ap6s urn segundo titulo publicado.

pois entaD seu nome se torna urn "denominador comum de dois textes diferentes"

(p.23), dando-nos rnais eredilo de seu primeiro texte, inclusive. Veremos nesse

momenta que 0 autor nao e redutivel apenas a urn ideal, mas sim a varias ideias e

ideais diferentes, podendo produzir urn terceiro, au Qutros ah§m desses que foram

produzidos. Podemos observar que, esse historico precedente a preduyao e a leitura de

uma autobiografia, e uma parte irnportante para 0 desenvolvimento e aceitayao da obra,

pOis se ela for 0 primeire livre, seu autor e urn desconhecido, e mesmo que 0 retratado

seja sua propria historia, falta aos olhos do leitor um signa de realidade, uma preduyao

anterior de outros textos, e neste caso, nao autobiograficos, que formarao um "espa<;:o

autobiogratico" .

Nesse "espa<;:o autobiogrMico", 0 autor e um nome de pessoa, que

assume a autoria de uma serie de textos diferentes publicados par ele. A sua realidade

e atestada por meio de suas publica<;:6es precedentes, sua lista de obras anteriores,

que frequentemente se encontrarao inscritas no pr6prio livre. Como mencionamos

anteriormente, a autobiografia ira estabelecer um criterio, que define este genere e toda

a literatura memorialistica, no qual ha de se encontrar identidade entre 0 autor, narrador

e a pessoa de quem se fala.

Nesta elucida<;:ao, nao podemos deixar de pensar no pseud6nimo. Este e

um nome diferente do que 0 autor registrou em cartorio, e, portanto, um nome ficticio,

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mas nao deixa de ser urn nome de autor. NaG e urn nome falso, mas urn "nome de

pena", como e chamado. 0 pseudonimo pede ser responsavel par uma produc;ao, ou

mais de uma, mas e incomum que seja autor de uma autobiografia. Seu nome e tao

autentico quanta 0 do autor, a maior diferenc;a e que cada urn nasceu em urn momento

hist6rico diferente. Sendo assim, naD se deve confundir 0 pseud6nimo com 0 nome do

autor, au com 0 nome de algum personagem, mesma que seja ele quem narra a

historia.

Ap6s essa descric;ao do Pseud6nimo, chegamos em urn ponto em que

devemos definir met her ainda urn romance autobiogratico. Este tipo de narrativa

engloba narrativas em primeira pessoa (que estabelecem uma identidade entre 0

narrador e 0 personagem) e "impessoais" (de personagens em terceira pessoa).

Lejeune se deparou com dais diferentes conceitos quando comec;:ou sua pesquisa. 0

primeiro, que foi a que escolheu, e definido per Larousse, em 1886: "Vida de um

individuo escrita per ele proprio". Larousse contrap6e a autobiografia as Memorias, pais

a primeira exerce um papel de confissao, ja a segunda conta fatos que podem ser

alheios ao narrador. Mas, entao, a segundo sentido, "autobiografia pode designar

tambem qualquer texto em que a autor parece expressar sua vida au seus sentimentos,

quaisquer sejam a forma do texto e a contrato proposto par ele"; au seja, este tipo de

narrativa pode ser romance, poema, tratado filos6fico etc., se ele teve a intenc;:ao de

contar sua vida, seja secreta au condicional, a relato e autobiografico.

Essa definiC;:30 nos leva a pensar em outras possibilidades tambem, como

a do romance biografico, e a propria ficyao. 0 romance biogrcifico pode ser classificado

no plano da fiCC;:30biografica (ao ser uma narrativa hist6rica sabre os feitos de alguem

que nao 0 auter, e que busca retratar fielmente a vida de quem se trata a obra). Mas

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este tipo de narrativa, onde 0 autor e personagem recebem names distintos naD pode

5e classificar como autobiografica, de acordo com Lejeune, mesmo que 0 editor a tenha

encontrado em urn s6tao au bau, pais nao ha identidade entre 0 autor, narrador e her6i.

Por nao haver rela<;:ao entre as tres atuantes mencionados, esse tipo de narrativa ja e

descartado do ambito da autobiografia.

Ja. quando nao hi! nome do personagem, encontramos urn her6i

indeterminado, sem sabermos se ele e 0 autor au Dutra pessoa, a defini<;:3o deste tipo

de narrativa dependera do pacta feito entre 0 autor e 0 leiter, que pode 5er inclusive

considerado urn pacta ausente. Nesta mesma linha, podemos encontrar urn texto que

naD estabelece nenhum tipo de pacta, nem autobiografico nem romanesco.

Entao chegamos a um pacto que caminha bem pr6ximo ao autobiografico,

que de acordo com 0 conceito de autobiografia atestado acima, este tipo de narrativa

poderia se qualificar como 0 pacto romanesco. A qualificaC;ao com uma narrativa ficticia

e, muitas vezes, indicada na capa ou na pagina de rosto. Neste tipo de obra, podemos

encontrar varias equac;6es de distribuiC;ao entre autor, narrador e her6i: a) autor =

narrador t heroi; b) autor ¢. narrador = personagem; c) autor ¢. narrador ¢. personagem;

d) autor = narrador = personagem. Ao vermos estas possibilidades podemos nos

confundir principalmente com a quarta proposiC;ao, mas de acordo com umas das

definic;6es sobre autobiografia elucidadas por Lejeune, e considerado um relato

autobiografico "autobiografia pode designar tambem qualquer texto em que 0 autor

parece expressar sua vida ou seus sentimentos, quaisquer sejam a forma do texto e 0

contrato proposto por ele" (-, p.53).

A questao que surge agora seria: como distinguir a autobiografia do

romance? Se nos ativermos apenas a analise interna da estrutura do texto, nao iremos

encontrar grandes diferenc;as, na verdade nao ha diferenc;a alguma. Os procedimentos

utilizados pel a autobiografia para atestar autenticidade ao relato podem ser,e muitas

vezes fcram, imitados pelo romance. Par meio do romance nos e permitido chegar mais

perto da verdade pessoal individual e intima do autor, isto e, 0 projeto que a relato

autobiografico visa a fazer. Lejeune sintetiza esta ideia com a seguinte cita9ao:

As mem6rias s6 sao sinceras pela melade, por maior que seja a preocupa<;80com a verdade: ludo e sempre mails complicado do que dizemos. Talvez sechegue mesmo mais perto da verdade no romance.(-, p,42)

Silviano Santiago (2002) discorre sobre essa questao em seu estudo

sobre a narrador p6s-maderno ao problematizar os tipos de narrativa:

Quem narra uma hisl6ria e quem a experimenta, ou quem ave? Ou seja: eaquele que narra ayoes a partir da experiencia que tern delas, ou e aquele quenarra a<;oes a partir de urn conhecimento que passou a ter delas por Ie-lasobservado em outro? (SANTIAGO 2002, p,44)

Entramos entao novamente na discussao sobre a veracidade dos fatos

narrados na narrativa autobiografica, biografica e 0 romance. Santiago sugere que se

determinada narrativa e expressa na experiE!Ocia de uma aC;ao, autobiografica,

empresta maior autenticidade a materia. Ja se a experiemcia e proporcionada por um

olhar lan9ado, e discutivel falar da autenticidade de uma experiemcia, pcrque se obtem

a experiencia por meio da observa9aa de um terceiro. Entao lan9a a questaa: "S6 e

autentico 0 que eu narro a partir do que experimento, ou pode ser autentico 0 que eu

narro e conhe<;o por ter observado?" (-, p.44). Somente 0 fato de se incluir urn

subtitulo de ~autobiografian isso nos levara a erer que 0 doeumento e fidedigno por

completo.

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o pacto que e aceito e a parte primordial nesse ponto. A observancia e

aceita~ao do narrador, que confessa extrair caisas de sua vida real, isso representa a

realidade, mas essa narrativa e exterior a vida do narrador. A verossimilhanc;a em

ambos as campos, 0 da ficc;ao au da autobiografia, e a parte que fara com que 0

enunciado seja aceito, e a pacto aceito. Como assevera Santiago: ~O narrador (... ) sabe

que 0 'real' e 0 'autentico' sao construc;6es de linguagem" (-, p.47); ista e, a narrativa

5e constr6i como autentica e real par meio da reproduC;2Io do enunciado, a criac;ao de

uma referenda urn locutor que permita que a texto receba urn eredile de veracidade,

mesmo sendo ficcional. Par isse, a narrativa memorialistica e historica, e uma visaa do

passado e do presente. Existe para falar da pobreza da experiencia, que nao esta

contida na fic~ao. Nessa afirma~ao Santiago nao concorda com a ideia de Lejeune de

que a fic~ao contem mais elementos autobiograticos do que a propria autobiografia,

mas nao se opoe de forma radical, pois em outro momento nos faz tambem a seguinte

proposiryao: "narrador e leitor se definem como espectadores de uma a9aO alheia que

os empolga, emociona, seduz, etc." (-, p.51). Esta afirma9ao nos diz que a narrativa

autobiografica e uma representa9ao da constru9aO feita de nossa imagem por meio de

nos sa visao, desenvolvida muitas vezes par meio da visao que os oulros tern de n6s, e

que no enunciado se torna uma representa9ao de algo que nao e mais nossa imagem,

mas sim a representatyao da imagem criada par nos mesmos. Isso faz com que 0

narrador e a leitor se tornem espectadores desta representaryao, que ja nao e mais a

realidade, mas sim sua representaryao. E aqui a ficryao e a realidade, pois ambas sao

representaryoes de real ida des existentes ou nao, entram no campo da mimese, que

esta sempre presente em estudos sobre a literatura, e suas formas de representaryc3o, e

iremos lanyar mao dela neste trabalho, que e em grande parte, senao a maior, uma

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discussao sabre a representac;:ao de muitas realidades.

A mimese nos traz proposic;:oes do ambito de nos questionarmos ate que

ponto 0 que tenho em maos e real, em se tratando de um romance (hist6rico ou

biografica). Muitas vezes tom amos um romance, que sempre tern um carater ficcional,

como realidade absoluta. Devida a tal confusao que teve de se separar, ou conceituar,

a fic980 e a realidade. A ficyao e a realidade estavam muito pr6ximas no inicio, issa e

encontrado em uma das principais obras da Literatura Classica, a lliada de Homero,

que, per tralar de urn acontecimento historica, e ista e muito normal na literatura, fal tid a

por muitos como a verdade absoluta acerca do epis6dio tratado no livro. Alguns

acreditam que as livros de Homero nao foram escritos por "um Homero", mas sim que

eram historias, neste caso rea is, que 0 povo comelfou a transmitir atraves da cultura

oral e por ser mais facil lembrar do texto em verso assim fol feito, assim como foi felto

com a Biblia. Nao se trata de afirmar que a Guerra de Troia nao existiu, mas que nem

tad os os personagens citados, ou seus atos como relatados no livro, foram exatamente

como da forma exposta. E ai que a ficvao e a realidade entram em cantata, ao se

juntarem para falar de alga real de forma mais poetica e atrativa, a que acaba se

tornando a arte literaria.

E par que mesmo apos muitos esclarecimentos sabre esses problemas,

muitas pessoas continuam tendo a texto ficcional como verdade absoluta? Porque

foram sempre levadas a crer que a ficvao e bem proxima, ou ate faz parte total do real.

Desde a infimcia, quando ensinamos fabulas as crianvas, au quando dizemos que elas

nasceram do repolho au que a cegonha as trouxe, procuramos fazer com que elas

acreditem que aquele mundo, onde existem duendes e lobos falantes e um mundo real,

isso tudo para que elas acreditem ser a vida e uma coisa super divertida e bela, e a

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partir desse momento elas sao levadas a crer ser a ficc;:ao e a realidade sao duas caisas

semelhantes. Mas este nao e 0 grande problema, 0 problema e que se a crianc;:a nao

receber 0 devido esclarecimento sempre achara que tudo, inclusive sua vida (iS50 ate

eerto momento, depois ela aprendera a distinguir) e urn conto fantasioso com

elementos da realidade, que e 0 conceito de urn texto ficcional e naD da vida real. lsto

e a ficc;:ao, a retratayao da realidade, nada mais do que elementos reais intercalados

com elementos ficcionais.

as conceitos principais de representar;ao da realidade se encontram na

classica obra de Erich Auerbach (2007). intitulada Mimesis - a representaqao da

reaJidade na literatura ocidental. Nesta obra, Auerbach lanc;a mao das mais importantes

obras literarias classicas de fic~ao do ocidente. 0 que citamos acima e uma breve

amostra da importancia de um estudo como este na teoria litera ria e em um estudo

sabre a autobiografia. Em sua obra, ao tratar de alguns trechos da obra Divina

Comedia, de Dante Alighieri, Auerbach apresent uma importante defini~ao sabre a livre

de Dante, mas que se aplica a nossa discussao de cren~a no ficcional:

... [0 texto liten3rio el uma obra de arte imitativa da realidade, na qual aparecemtodos as campos concebiveis da realidade: passado e presente, grandezasublime e desprezivel vulgaridade, hist6ria e lenda, tragedia e comedia, homeme paisagem ... (2007, p.162)

Esse livre e bastante esclarecedor ao assunto que estamos discutindo. A

mimese e a representa~ao da realidade. Tomemos como exemplo uma fotografia, que

parte de algo real para uma representa~ao nem sempre fiel a realidade. Muitos de nos

passarao aver esta representa~ao da realidade, a fotografia, como uma verdade plena

do momento em que virem a imagem em diante. Pode ser um homem com trejeitos e

25

vestimenta afeminados, que esta trajado de tal forma apenas para uma festa a fantasia,

mas que naD tern real semelhan<;;a alguma com a personagem retratado. A citac;;ao

acima menciona, novamente, que as obras literarias sao imitac;;ao da realidade, e que

existem elementos da realidade contidos nas obras ficcionais, a que faz com que

tenhamas a crenrya, muitas vezes ingenua, de que aquela obra e totalmente real.

Em sua obra Uteratura e Vida Uteraria, Flora Sussekind (1985) nos de

grandes mostras da aplicabilidade de algumas dessas teorias aqui citadas em nossa

literatura nacional, mas a obra tambem explana sabre a mimese moderna e p6s-

mederna, que tern de tomar algumas posi96es e exercer algumas funtyoes para que

atinja mais completamente seus objetivos esteticos, filos6ficos e ideo16gicos:

Para exercer tais funtyoes a lileralura apta par negar-se enquanto fictyao eafirmar-se como verdade. 0 naluralismo lorna-se todo poderoso. OptyclOdestacada ( ... ) onde assinala a forte lendencia - sabreludo a partir dos anos 70 -para S8 Mvollar a literatura mimetica~, ~fazer uma literatura pr6xima do realismo,quer dizer, que leve em conla a verossimilhantya realisla- (SUSSEKIND 1985,p.57)

Sabemos que existem muitos te6ricos que conceituaram e estudaram

profundamente a problematica dos pactos ficcionais, biograficos, autobiograficos,

representagao da realidade, mas ha uma citagao de urn, podemos dizer assim, "praticow

da literatura. Milan Kundera (2009), autor do importante livro A Insustentavelleveza do

ser, tambem enveredou pela teoria, nao tao profundamente como Auerbach ou

Santiago, mas em sua obra A Arte do Romance, prop6e uma interessante e importante

definigao aplicavel a analises de romance e autobiografias:

Exislem varias maneiras de apreender 0 eu. Primeiro, pela atyao. Depois, na vidainlerior. Quanto a voce, afirma: 0 eu e determinado pela essen cia de sua

26

problematica existencial. Essa atitude tern em voce numerosas conseqGencias.Por exemplo, sua obsessao em compreender a essencia das situ8yoes pareeetamar superadas a seus olhos todas as tecnicas de descrir;ao. Voce naa dizquase nada na aparencia fisica de seus personagens. E, como a procura demolivar;Oes psicologicas Ihe interessa menos do que a analise das situ8<;oes,voce tambern e muito avaro sabre 0 passado de seus personagens. 0 caratermuito abstrato de sua narraliva nao ameaya tamar seus personagens menosvivos? (KUNDERA 2009, p.37)

Este trecho da obra de Kundera remete novamente a muitas t6picos

discutidos ate 0 momento neste trabalho, e outras ideias importantes. Ele define 0 "eu",

que ja tratamos anteriormente. Diz que 0 ~eun a uma tematica do problema existencial.

Em uma obra autobiografica vemos esta problematica, pais como diz Kundera no trecho

acima "Primeiro, pela ac;:ao. Depois, na vida interior". Somente dessa forma pode se dar

a construc;:ao de um texto memorialistico; a ac;:ao da vida do autor se desenrola, e entao

~Depoisn ele medita sobre sua vida e decide externar 0 que viveu por meio do papel.

Essa decisao 56 se toma ap6s a reflexao de que ele possui algo importante para relatar

ao mundo, que sua ~problernatica existencial" atingiu urn ponto onde sua obsessao par

entender a si mesmo, buscar as motivac;:6es psicol6gicas que formaram seu carater, e

leva ram a conseqOencias que perrnearam os atos de sua vida, devem ser

desvendadas.

Em urna autobiografia, assirn como rnencionado no trecho acima, 0 tipo

fisico do her6i nao a 0 foco. Nao e necessario uma explorac;:ao muito estendida, pois ja

conhecernos 0 autor, e por meio de sua imagem podemos ser levados a reconhecer a

seu "eu anterior". Mesmo ao se buscar a maior fidelidade possivel em urna obra

autobiografica, sabemos que a mente humana e seletiva e busca par representar as

co isas que mais Ihe agradam, e assim como e citado acima, a autor a avaro de certa

forma com seus personagens, e pode ata fazer terem menos expressao em seu relato

27

do que realmente tiveram na cena vivida, que pode ser extremamente diferente de sua

representayao. Como ja mencionamos, a narrativa autobiografica e uma representac;ao

da construc;ao feita de nossa imagem par meio de nossa visao, que e desenvolvida

muitas vezes por meio da visao que as Qutros tern de nos, e no enunciado se torna uma

representac;ao de algo que naD e mais nossa imagem, mas sim a representac;ao da

imagem que temos de nos mesmas, e assim funciona com a imagem dos outros; ja naD

e a imagem real destes, mas sim a representac;ao de sua imagem, por meio da

construc;ao que a autor faz, baseando-se em suas lembranc;as, sentimentos,

sensac;oes, e outros muitos estlmulos que 0 levam a eriar e dar determinada forma ao

texto memoriaHstico, que passa a ser a representac;:aa de suas mem6rias ap6s ser

passado para a papel.

Aa nos munirmas de teorias e definic;:6es sabre as especificidades da

autobiografia, sobre 0 que pode (ou nao) ser considerada uma autobiografia, faremas

nos pr6ximo capitulo uma analise comparativa entre 0 Imperio do Sol e Milagres da

vida: de Shangai a Shepperton: urna aulobiografia, abras de James Ballard que se

encontram totalmente ou - em parte - dentro dos moldes da autobiografia.

28

3. 0 IMPERIO DO SOL, VERDADES E (IN)VERDADES.

Este capitulo visa analisar 0 romance 0 Imperio do Sol a luz da tearia

da autobiografia, e verificar ate que ponto 0 romance de Ballard insere-s8 no genera

ou subeverte-o. Faremos urn breve resumo sabre a hist6ria narrada no livro de

Ballard, e em seguida analisaremos a obra como mencionado acima.

A Segunda Guerra Mundial e a palco de 0 Imperio do Sol (2007), uma obra

semi autobiografica do autor James Ballard. E classificada pelo proprio auter desta

forma par S8 tratar, principalmente, de urn epis6dio ocorrido em sua adolescencia, e

passui muitos elementos que naD chegaram a realmente ocorrer da forma relatada,

tanto com ele como com Qutros.

A hist6ria se passa na China, no periodo da Segunda Guerra Mundial.

Jim, como James Ballard chama a si me sma na hist6ria narrada par ele em terceira

pessoa, e urn menino de doze anos, que vive em Shangai desde 0 nascimento.

Viveu no pais durante toda a infancia e parte da adolescencia, e nao falava

praticamente nada em sua lingua natal, pais seus pais falavam apenas Ingles em

casa, fazendo com que a garoto se sentisse urn estrangeiro onde vivia. Os

empregados da casa eram todos chineses, a garoto mal se comunicava com eles, e

nao fazia questao de aprender urn meio de faze-Io.

A Republica Chinesa passava por um momento de dificuldades' Havia

derrubado a monarquia e com iss a iniciou-se uma guerra civil, trazenda desuniaa e

grande pobreza aa pais. Quando a Segunda Guerra Mundial tamou maior fan;a na

Europa, e a Japao se tornou urn aliado da Alemanha, a pais estava sem uma tan;a

rnilitar competente, sem uma identidade que buscasse defender, pais ap6s muitas

seculos com a monarquia, teve seu metoda de gaverna alterado, e estava sem uma

I http:/NNM.segundaguerramundial.com.brlsgm/

29

definic;:ao clara de que caminho iria seguir daquele momento em diante. Os

japoneses, com sua extrema disciplina e organizac;ao, invadiram a China, e com

uma populayao muitas vezes menor, conseguiram dominar urn pais com uma

extensao territorial muitas vezes maior que 0 seu. 0 merito desta conquista fo; a

vulnerabilidade que os chineses sofriam.

Os japoneses nao desejavam ter um verdadeiro dominio politico sobre

a China, mas apenas criar estados fantoches, pais seria demasiado trabalhoso

tamar conta de urn territ6rio tao extenso. Uma das medidas que tomaram fo; internar

chineses e estrangeiros em campos de concentrayao. Jim foj transferido a urn

destes campos, como muitos dos seus conhecidos. Seus pais fcram junto com ele

(mas nesta historia Ballard omite esta informal'ao, na verdade ele altera este evento

no relato de 0 Imperio do Sol, nos dando a ideia de que a maior forl'a de busca por

sobrevivencia existente em Jim era a vontade de reencontrar seus pais), e em seu

campo vivem apenas pessoas nao nascidas na China, de variadas nacionalidades.

o garoto nutre urna grande admiral'ao pelos soldados japoneses, rnesrno recebendo

maus-tratos deles. Tem um grande apreyo pel a dedicayao e disciplina dos

niponicos.

Jim fica atgum tempo vagando sozinho peta cidade, buscando alimento

e abrigo. Esconde-se dos sold ados japoneses par algum tempo, mas logo e

capturado. 0 garato conhece Basie, um americano que se encontrava na mesma

condiyao que ele, vagando pela cidade em busca de abrigo e comida. Sao

encontrados pelos sold ados japoneses e presos no campo de concentrayao. Com

Basie aprende a arte da sobrevivencia, 0 conhecimento da vida no mundo hostil.

Ap6s serem internados no campo a menino tem cantata tambem com um medico

ingles, Dr. Ransome, que da educal'ao formal ao garoto. Ensina latim e outras

30

materias que 0 menino deveria estar aprendendo na escola, al8m de que 0 rapaz

pass a a ser seu ajudante em alguns servic;:os, como tambem e ajudante de Basie.

Nesses cenarios de destruiC(ao, desolac;:ao e catastrofes em seu red or,

Ballard gravou para urn futuro proximo imagens que seriam a principal base de sua

ficc;ao cientifica, genera pelo qual 0 escritor e primordialmente conhecido. Casas

abandonadas, pessoas em mise ria e a beira da morte, piscinas vazias, rios

contaminados, carras destruidos; enfim, as cenarios que, como ele descreveu, foram

dificeis de esquecer e moldaram grande parte de sua ficc;:aoque foi escrita entre as

anos 50 e 80'-

Ballard afirma que 0 Imperio do Sol Eo uma biografia. Em alguns momentos

o qualifica como urn romance e em Qutros ainda 0 apresenta sendo uma semi

autobiografia). Como ja mencionado, ele diz isso por que incluiu muitas coisas que

realmente aconteceram, sobre outros eventos realizou uma adaptar;ao, e

acrescentou sua versao da hist6ria como paderia ou ate gostaria que tivesse

acontecido. Ha uma citar;c30dele proprio sabre sua obra:

~ precisamente isso. Eu reinventei 0 meu passado ao estilo das fic.-;Oes queeu havia previamente escrito. Em Shanghai, realmente se encontravampiscinas vazias, hote!is abandonados e lodos as vestfgios de uma situar;aocriada pela guerra lecnol6gica. Os romances e contos que escrevi entre1956 e 1980, au seja, antes de 0 imperio do sol, enfatizavam as minhasobsessOes pessoais. ~ par isso que eu, neste ultimo romance, retorno adais relatos: Jim, meu alter ego, v~ a exist~ncia como um her6i que leulodos as meus livros. Nao e nada supreendente no fato de que meus temasde ficr;a.o cientffica estejam presentes em 0 imperio do Sol. Que escritornolo teria sido marcado pela sua adolescencia? E suponha que eu tenhaseguido a carreira medica, com a qual eu inicialmente sonhara, antes deescrever, e que a Imperio do Sol fosse 0 primeiro romance de um homemde 50 anos, bem, ele nao seria a mesmo livro, porque nao teria aexperiencia adquirida pete meu trabalho com a ficr;tio cientrfica. Todos asescritores desenvolvem uma mitologia pr6pria. Eu simplesmente apliqueiessa mitologia pessoal as minhas mem6rias da juventude. Utilizando formasradicais de Fe, tive a tendencia a adolar uma luz mais pungente (a enfaseno livro e muito mais violenta do que no romance) para que as imagens sedestacassem com mais for.-;a. Em 0 Imperia do Sol eu quis fazer como se

2 hltp:llballardian.com/le-passe-compose-de-j.g-ballard

3 Informaryao adquirida em aula ministrada por prof' Ora. Cristiane Smith.

31

essas imagens aparecessem pela primeira vez4.

As palavras do proprio autor explicam que seu objetivo era reinventar

seu passado nos moldes das ficc;oes que havia escrito ate aquele momento, e que

esta obra 56 foi passivel devido ao trabalho anterior que realizou com sua produC;80

ficciona!. Outras palavras de Ballard ajudarn a ter rnais certeza de que este relato

semi autobiografico foi seu principal objetivo desde que S8 propos a escrever esta

obra, e nao 0 projeto de urna autobiografia fie!.

Em primeiro lugar, eu disse que as eventos aconteceram ha mais de 40anos atr~s. E depois, as cartas fazem sentido se consideramos a hostilidadedo meu protagonista com relacao aos britanicos, Estes ultimos foramridicularizados; julgados severamente. Olha, a (mica coisa que me importa ea verdade da imaginaCao, a qual, todas as coisas consideradas, e separadada verdade prosaica. Ficar com a verdade pura e imposslvel. Mesmo 0historiador mais serio tern problemas em reconstituir esse ou aquele eventocom exalid~o e cada historiador tern a sua pr6pria maneira de ver as coisas.Na minha verdade "imaginaliva", 0 real e a funda<;:<3.osobre a qual euelaborei uma fic9~0 nao apenas conforme 0 que eu vi de Shanghai, mastambem de tudo 0 que aconleceu no Extremo Oriente. Tudo que eu evoqueino romance certamente aconteceu, talvez nao no campo onde eu meenconlrava, mas em algum lugar naquela regi~o do mundo entre 1937 e1945. !: um romance, apenas um romance. A essl!ncia consiste emdespertar uma simpalia emocional, tocar a imagina<;:a.odo leitor que naoconhece nada dos eventos em questao. Urn relato literal n~o teriaconseguido isto. 0 romance alarga a visao, tern a ver com uma verdadehipertrofiada. As obsessoes, as fantasias sao praticamente os (micoselementos que n6s temos certeza. Nossas invenyoes SaO as (micasrealidades que nos restarn5

.

Ballard deixa claro no trecho acima que um texto construido por um

autor sempre possui elementos autobiograficos, mesmo que algumas coisas citadas

nao sejam como realmente aconteceram. Quando afirma que todas as situa90es

incluidas no texto acontecerem de alguma forma, mesmo que nao tenha side com

ele, mas ocorreram em algum lugar do mundo naquele periodo, onde pessoas

passaram experiencias semelhantes. Sabemos que este relato possui muito mais

elementos autobiograficos que outros textos do proprio autor par se tratar de urn

• hltp:/lbaliardian.comJIe-passe-compose-de-j-g-ballard - Traduzido par Ora. Cristiane Smith.S Idem nota 4.

32

evento digno de nota em sua adolescencia, po is ele mesmo diz que a realidade que

Ihe resta e a sua cria921o, textual e ficcional.

Afirmal'oes semelhantes podem ser encontradas na obra A Arte do

Romance, de Milan Kundera, que e dividida entre ensaios reflexivos do 8uter sobre a

arte da literatura e alguns trechos de entrevistas feitas a urna revista nova-iorquina.

Kundera canclui que Uo romance e 0 lugar onde a imagina9~10 pode explodir como

num sonho" (2009. p.22). Assevera tambem que muitos pensam ser 0 romance uma

confissao do 8uter, mas 0 romance naD e apenas isso, e sim "urna explora<;:2Io do

que e a vida humana, na armadilha em que se transformou 0 mundo" (-, p.32). Ao

S8 falar de 0 Imperio do Sol, sabemos que estas afirma<;:oes sao bern proximas do

que a proprio Ballard menciona ter buscado fazer em seu desabafo sabre 0

passado. Sabemos que naD era sua pretensao em momento algum fazer um relato

totalmente verossimil, mas tambem nao desejava apenas escrever um romance,

pais se 0 desejasse poderia ter criado um personagem que nao fosse ele mesma, e

se inspirado nos cenarios que viveu para montar sua narrativa. Tambem nao

desejava falar sobre as coisas como elas realmente fcram, po is elas poderiam soar

como uma confissao de sofrimento. E apesar de grande sofrimento, 0 campo de

concentragao trouxe conhecimento, fazendo com que Ballard se desprendesse do

modo de vida burgues que levava, levando-o a olhar para os temas importantes da

vida por meio de uma nova 6tica, e adquirir entao destreza para relata-los com sua

pena.

Pensando, ainda, sobre a questao do romance autobiografico e

realidade, voltemo-nos a Lejeune. Ao apresentar 0 conceito do pacto referencial, que

e formada pelo conjunto de obras escritas pelo autor anterior a autabiografia,

Lejeune prepara urn caminho para 0 pacto autobiogratico (2008, p.36). Espera-se

33

que em urn trabalho autobiografico 0 auter ira se apegar it verdade, mas este

juramenta naD existente, muitas vezes e apenas urn blefe, fazendo com que 0 mais

importante a ser estabelecido seja 0 pacto autobiogrilfico entre aquele que produz 0

cenario e quem observa 0 ocorrido. Lejeune cita Vapereau para esclarecer melhor

esta ideia:

A autobiografia abre um grande espa90 a fantasia e quem a escreve nac eabsolutamente obrigado a ser exato quanta aos fatos, como nas Mem6rias,ou a dizer tada a verdade, como nas canfissOes. (LEJEUNE 2008, p.54)

o te6rico frances refor~a este conceito citando Qutros autores mais

uma vez, neste momento e Gide, autor de As Palavras: UEsta mais do que na hara

de dizer enfim a verdade. Mas eu 56 poderia faze-Io em uma obra de ficC;ao."(-,

p.44). Podemos ver que alguns aulores acredilaram eslar Iralando mais da verdade

ao falar de suas experiencias em um romance do que em uma biografia ou

autobiografia. Ballard, assim como estes, tratou de muitas verdades importantes em

sua obra semi autobiografica, que nao poderia tratar em uma autobiografica, ou

possivelmente nao queria tratar desta forma, pois muitas vezes as metatoras sao

muito mais fortes e importantes que a verdade por si so.

Tratando das metaforas que James Ballard usou em sua abra, a

justificativa para a uso desses recursos seria por esta nao ser uma obra totalmente

autobiagritfica, ou seja, uma obra que permite acrescimo de infarmacyoesque naa

sejam apenas de carater pessoal. Em uma autobiografia 0 auter busca falar sabre

suas memorias e experiemcias, mas canseguimas entende-las apenas por sua otica,

ja em uma abra como 0 Imperio do Sol podemos ver 0 distanciamenta do narrador,

do aulor e do personagem, apesar de nesle casa se Iralarem da mesma pessaa.

Nao e estritamente a opiniao do autor, mas os fatos como ocorreram, e nao trata

34

apenas de sua existencia, mas de diversos eventos, que nao tern necessaria mente

sua 8<,;:210 au colaborag2lo.

Podemos encontrar em Jim, seus pais, Basie e Dr. Ransome

interessantes imagens dos ambientes e imperios que se encontravam no momento

do relata. Essas figuras, utilizadas metaforicamente, sao a forma que Ballard nos

apresenta, par meio de sua visao dos fates ocorridos, a retrato da China como uma

na<,;:aosem vida, sem fOfC;8S para lutar par seu pava. A independen cia e a

proclama<,;:ao da republica, conquistadas com muito esfofC;o, causaram a desuniao

da popula<,;:c3o,fazendo com que nao tivessem os recursos e fOf<';:8S necessarias para

lutar contra seus algoz85, sendo par fim facilmente dominados sem possibilidades

de cumprir dali em diante seu papel de estado. Personagens que se igualam a esta

navao sao os pais de Jim, que ao irem para China devido ao trabalho do pai do

garoto adquiriram total independencia financeira, uma nova experiencia e nova

carga nacional. Possuiam uma grande casa e tudo 0 que sempre desejaram, mas

nao tinham uniao e os principios basicos necessarios para se manter um lar,

provavelmente devido as mud an vas que ocorreram ao se mudarem para a China,

afastando-os de sua estrutura familiar. Assim como 0 estado chines, os pais do

menino nao puderam lutar contra a invasao, e durante a sua prisao perderam

inclusive seu papel de pais, sendo que nao eram mais capazes ou se esforvavam

para defender seu filho. Por muitas vezes 0 jovem teve maior coragem e forva

dentro do campo de concentravao, e isso fez com que enxergasse que poderia

proclamar a sua independencia daquele momento em diante, ja que estas duas

entidades que deveriam ter fornecido seguranva e protev80 em um momenta critico

nao 0 fizeram, e para ele foi 0 exemplo de um imperio em derrocada.

Outros imperios que nao lutaram entre si, mas invertem seus papeis

35

significativamente neste perfodo sao as EUA e 0 Reino Unido. 0 imperio britanico

nao acreditou que a maquina alema iria conseguir chegar tao longe com seu

blitzkrieg, muito menas que os japoneses kamikazes poderiam conquistar tanto

espa~o quanto conseguiram. A coroa inglesa suportou por muito tempo as baixas

em contingente e perda de territorio de influencia na Europa, limitando-se a defender

principalmente sua na~ao. Ja os americanos, que passaram parte da guerra apenas

abastecendo de varias formas seus parceiros, com armas e alimento, no momento

oportuno e necessario entraram na guerra e fizeram sua parte dando cabo da for~a

japonesa, retomando 0 controle da Europa. Passaram assim a ser 0 novo imperio

que se estabeleceria como 0 dominante e de maior influencia pelas pr6ximas

decadas. A Inglaterra ainda manteve urn importante poder e representatividade, mas

os EUA se tornaram dominantes, em alguns momentos chegando a inverter os

pap';is do passado ao fazer com que a antiga metropole acatasse a algumas de

suas decis6es.

Basie e Dr. Ransome sao as figuras representativas destes governos. 0

americano, assim como sua na~ao, abastece, recebe informa~6es e suprimentos de

diferenciados lugares, e esta muito bem interado de tudo 0 que acontece na guerra.

Fica aparentemente como espectador, mas esta aguardando 0 momenta certo para

agir. Dr. Ransome por sua vez, trabalha ativamente no hospital do campo, e

algumas vezes ate recebe ajuda de Basie com seus suprimentos. 0 medico sofre

agress6es e reprimendas dos soldados japoneses repetidas vezes, e muitas vezes

sem grandes motivos. Ao se aproximar do fim da guerra os japoneses abandonam 0

campo, e neste momento Basie ja havia escapado com outros de seus colegas, por

meio de urn plano bern arquitetado. 0 medico e outros ficam sem saber 0 que fazer,

enquanto as fugitivos ja encontravam abrigo e alimento em outras paragens,

36

assegurando sua sobrevivencia, ao contrario de muitos Qutros internos que

acabaram par morrer sem alimenta, ah~m das doenC;:8s que adquiriram.

o exercito japones surpreendeu muitas pessoas nesse interim de

ascensao e derrocada de irnperios. Muitos acreditavam que a forc;:a niponica nao

duraria muito tempo, par serem em menor numero e um pais de pequena extensao

territorial. Mas a extrema fOfc;:a adquirida pela disciplina fez com que conseguissem 0

sucesso conhecido em suas conquistas. Assim como muitos nao acreditavam no

poder de luta e de subsist€mcia dos japoneses, muitos acreditavam que Jim nao

poderia sobreviver no campo de concentraryao onde foi internado. Mostrando 0

contr<3rio do que S8 pensava, Jim nao apenas conseguiu sobreviver no campo, mas

assegurou a sobrevivencia de muitos outros neste periodo. 0 rapaz era quem sabia

de tudo a que estava acontecendo, tanto com as internos como com os soldados,

sempre ajudando todos as lados. 0 internamento foi um perioda de grande

sofrimento, mas fez com que 0 menino crescesse (assim como 0 Japao se tornou

uma na~ao grandemente desenvolvida ap6s sua recupera~ao da guerra). Jim

desenvolveu uma personalidade lutadora, realizando coisas notaveis nas decadas

seguintes, adquirindo grande destaque em varios campos de atua~ao,

principalmente na literatura.

Ao construir estas simbologias por meio de seus personagens Ballard

coloca em pratica 0 que Santiago sintetiza com as seguintes palavras:

Por que se olha? Para que se olha? Razao e finalidade do olhar lan9ado aooutro nao se dao a primeira vista, por que se trata de um dialogo-em-literatura (isto e, expressa par palavra) que, paradoxalmente, fica aquem aualem das palavras. A fic9ao existe para falar da incomunicabilidade deexperi~ncias: a experi~ncia do narrador e do personagem. Aincomunicabilidade, no entanto, se recobre pela tecido de uma rela9ao,rela9aa esta que se define pela olhar. Uma ponte, feita de palavras, envalvea experi~ncia muda do olhar e torna passfvel a narrativa. (SANTIAGO 2002,p.52)

37

Em nosso objeto de estudo nao havia uma incomunicabilidade entre 0

personagem e 0 autor, pais ambos eram 0 mesma, ainda que distanciados pelo usa

do narrador em terceira pessoa. No entanto, podemos afirmar que 0 trabalho que a

autor buscou neste foco narrativD ao tratar de suas memorias, como ja

mencionamos, era para que a seu objetivo nao ficasse nem "ah~m nem aquem das

palavras" (-, p.52), Pudemos entender mais facilmente que nesse episodio Ballard

nao olhava apenas para si, mas olhava para Qutros eventos. Na verdade, no

momenta em que sua juventude S8 desenrolava e prov8.vel que nao tivesse

entendimento ou essa visa a dos fatos, mas no momento em que decidiu tamar a

caneta as maDS para retratar. Venda entao a episodio de outra forma, tomou a

decisao de retrata-Ia como 0 fez, estabelecendo um distanciamento por meio do foco

narrativo e, por haver digerido os eventos por meio de sua memoria, que desejava

esquecer os fatos ocorridos, foi mais facil criar partes que nao encontrou em sua

mente. Na primeira citac;ao deste capitulo6, a escritor afirma que as experiencias que

teve foram a causa de sua forma de escrever, e os eventos anteriores somados

trouxeram a prod uta final deste texto. Ele afirma que se tivesse sido de outra forma

(tanto a desenrolar dos fatos como sua vida apos eles) a desfecho teria sido

totalmente diferente.

Recuperando 0 pensamento de Santiago, 0 teo rico explica que a autor

procura dar "autenticidade em uma aC;ao, que por nao ter respaldo da vivencia,

estaria desprovida de autenticidade" (-, p.47). Santiago afirma que a

verossimilhanc;a e dependente da logica que se cria internamente no relata: "0

narrador ( ..) sa be que a "real" e 0 "autentico" sao construc;oes de linguagem" (-,

p.47).

6 Pagina 26 dcstc trabalho.

38

Vemos entao que muitos te6ricos ja elucidaram que dentro do genera semi

autobiogratico e do romance encontramos grande parcela da narrativa

autobiogratica. Urn autor pede tazer uma autobiografia para talar de si mesma e de

suas experiencias, aparentemente Ballard utilizou 0 genera autobiografico para

abordar quest6es hist6ricas, re!ativizar 0 poderio dos chamados paises que

representavam grande imperios e situ a-los num ambiente de guerra que aD mesma

tempo que enfatizava a hegemonia dos Estados Unidos, da lnglaterra, da China e do

Japao, tambem colocava em cheque 0 mesma poder. Mais interessante ever a

percePCY<3ode Jim ao presenciar todas estas eoisas (imagens que S8 fixaram em sua

mente, fazendo com que no futuro se criasse urn universo que foi chamado de

ballardiano), e apenas com doze anos conseguir subsistir ante esta guerra de

poderes e interesses existentes nos negras an os do maior massacre de nos sa

hist6ria.

Percebemos varias transgress6es feitas ao genera autobiografico em aImperio do Sol, veremos a seguir que a ultima publicagao de Ballard, Milagres da

vida: de Shangai a Shepperlon: uma aulobiografia, possui elementos em sua

estrutura que a deixam bern mais pr6xima do contrato autobiografico.

39

4. APOS MUITOS OUTROS, MAIS UM MILAGRE DA VIDA.

a presente capitulo realizara a analise do relato autobiografico Milagres da

vida: de Shangai a Shepperton sob a otica das teorias autobiog,,'ficas. e de

represental:(ao da realidade. Iremos tambem verificar como a obra S8 insere nos

moldes do pacto autobiogratico e, qual e a carga de representac;a.o da realidade que

este trabalho nos fornece.

Em 2008. vinte e quatro anos apos 0 sucesso de 0 Imperio do Sol. que

recebeu inclusive uma adaptac;ao para 0 cinema, dirigida por Steven Spielberg,

Ballard decidiu escrever outra autobiografia. Mas desta vez seria um relato proximo

da realidade. Essa decisao foi tomada ao receber a noticia de seu medico que havia

desenvolvido cancer de prostata. doen9a que ja se espalhara pelos ossos de sua

coluna, deixando claro que nao havia muitas esperanc;as a nao ser esperar 0 tim

certa. Ao receber tal noticia decidiu escrever urn livre de suas memorias, uma

autobiografia, mas agora seguindo as trilhas classicas de uma autobiografia como

veremos a seguir.

Como vim os no capitulo 2, Ballard ja havia escrito um livre que tratava de

suas experiemcias, porem, neste momento, desejou apresentar sua vida como

realmente foi, pois na obra anterior nao 0 havia feito por completo. Cabe, entao,

indagar: qual e a diferen9a entre as obras em sua estrutura? Santiago apresenta

uma sintese de como se inicia e se estrutura uma obra autobiografica, em

compara9ao com as narrativas p6s-modernas:

Par isso, a narrativa memorialista e necessariamente hist6rica (e nessesentido e mais pr6xima das grandes conquistas da prosa modernista), isto e,e uma visao do passado no presente, procurando camuflar 0 processo dedescontinuidade geracional com uma continuidade palavrosa e racional dehomem mais experiente. (SANTIAGO 2002, p.56)

40

Podemos compreender nesse trecho que 0 discurso memorialistico, nesse

case a autobiografia, e urn relato hist6rico que segue a cronologia sincr6nica dos

acontecimentos ao longo do tempo. Ao falar de seu passado, 0 narradof, apresenta

a relato de sua experiencia, au, como insinua Santiago, uma falsa impressao de

grande experi€mcia que S8 aproxima mais de demagogia e procura ate camuflar

algumas de suas atitudes. No entanto, mesmo nao passando de demagogia,

sabemos que esta e uma narrativa merecedora de mais eredito que a leitura de urn

romance que oscila nebulosamente entre a mundo da memoria e 0 da fiC98.0, pais a

autor ira tratar de sua vida e, normalmente, comega falando do episodio de seu

nascimento para que a leitor compreenda melhor toda a sua trajetoria ate 0

presente. Dessa forma e passivel acompanhar 0 processo completo de

desenvolvimento da personalidade 0 levou a se tomar 0 individuo que se encontra

relatando os fatos. E assim que James Ballard inicia 0 seu relato de Milagres da

Vida:

Nasci no Hospital Geral de Shangai em 15 de novembro de 1930, ap6s umparto dificil que minha mae, de compleiyZlo delicada e quadris estreitos,gostava de descrever para mim em detalhes, falando como se isso revelassea injuslit;:areinante no mundo. (BALLARD 2009, p.11)

Sabemos apos esta afirmayao do autor, onde se iniciou sua eXperiElncia de

vida. Alguns irao relatar com maior emoyao, outros farao de forma diferente, mas

este paragrafo inicial nos leva a entrar na historia com 0 pensamento de que nao

encontraremos ficyao nas paginas seguintes. Alguns romances podem se iniciar da

mesma forma, mas ao encontrarmos na capa a palavra "autobiografia" sabemos que

o tratamento que direcionaremos ao texto sera diferente.

41

Nesse momento, estabelece-se urn centrate com 0 auter. Urn centrate que

sera mantido durante toda a obra enos levara a encara-Ia de forma diferente de

Qutros textos que estamos habituados a apreciar. Este centrate que decidimos firmar

com 0 autor S8 chama "pacta autobiogratico" Como mencionado no capitulo teorico,

Phillipe Lejeune cunhou 0 termo ao estudar esse genera literario. Ademais, fcram

abordados alguns pressupostos que delineiam e norteiam os limites e cam in has que

o pacta autobiografico segue, mas eles de nada servem S8 nao tivermos urn texto a

ser analisado, que foi 0 foco de nosso ultimo capitulo e sera tambem a deste. Ao

falar da identidade do narrador, personagem e autor, Lejeune sugere 0 seguinte

esquema no que se refere a identidade de nome entre autor, narrador e

personagem:

A identidade de nome entre autor, narrador e personagem pode serestabelecida de duas maneiras'

1. Implicitamente, na Iiga9ao autor-narrador, no momento do pactoautobiogratico. Este pode assumir duas form as:

a) Uso de tftufos que nao deixem pairar nenhuma duvida quanto ao fatode que a primeira pessoa remete ao nome do autor (hist6ria de minhavida, autobiografia etc.);

b) SessEioiniciaf do texto onde 0 narrador assume compromissos juntoao leitor, comportando-se como se fosse 0 autor, de tal forma que 0leitor nao tenha nenhuma duvida quanta ao fato de que 0 "eu" remeteao nome escrito na capa do livro, embora 0 nome nao seja repetidono texto

2. De modo patente no que se refere ao nome assumido pel0 narrador-personagem na pr6pria narrativa, coincidindo com 0 nome do autorimpresso na capa. (LEJEUNE 2008. p.27)

Por meio deste esclarecimento podemos verificar que Milagres da vida e uma

obra que forma seu pacto Implicitamente (1), pois 0 uso do titulo (a) "autobiografia"

na capa nos assevera do que ira se tratar 0 conteudo da obra. No caso do objeto de

estudo em questao nao ha uma sessiio inicial (b), que muitas vezes ocorre sen do

apresentada como um prefacio da obra explicando os motivos e desejos do autor ao

42

trazer a vida este relato, mas 0 livre de Ballard deixa claro que a genera a ser

seguido e a autobiografia.

T ambem ja men cion amos que S8 espera que urna autobiografia seja

precedida de urn hist6rico literario (no case de urn autor), au seja, urna serie de

obras diterentes, freqOentemente mencionadas no relato autobiografico. Lejeune, ao

elucidar 0 trabalho do autor autobi6grafo, afirma que "ele extrai sua realidade da lista

de suas primeiras obras" (-, p.23), que e semelhante a afirma980 feita pelo proprio

Ballard ao dizer que "nossas invenryoes sao as (micas realidades que nos restam1".

Vemos entao que a autobiografia segue seus pr6prios caminhos em S8 tratar

da forma que S8 refere a vida do autor, mas 0 que dizer sabre a sua estrutura?

Quais sao as diferenry8s que podem ser encontradas na estrutura de uma

autobiografia e de urn romance? Como menciona Lejeune alguns podem dizer que

romance e uma narrativa criada com originalidade (ou apenas invenc;ao para

alguns), e a autobiografia urn relato de profundidade (ou urn relato insipido para os

que nao a apreciam) (-, p.55). Mas se tratando da forma do texto, de seus

elementos mais particulares temos uma explanac;ao do teorico frances:

"Como distinguir autobiografia e romance autobiografico? Tenho de confessarque, se nos ativermos a analise interna do texto, nao h:3 nenhuma diferenqa"[ef. p.26 desta ediyao]. Conseqoentemente, concentrei-me nos elementosque, a margem do texto, fazem a diferenga: 0 nome proprio e 0 contrato. (-,p.60)

Como e mencionado no trecho acima, apenas a analise interna do texto nao

apresenta grandes diferenc;as, mas os elementos que determinam sua diferenc;a em

relac;ao aDs outros e 0 "contrato" e 0 "nome proprio". Contrato que sabemos ser 0

1 http://baliardian.comlie-passe-compose-de-j-g-baliard-TraduzidoporOra.Cristiane Smith.

43

pacto autobiografico. Geralmente nao encontramos grandes dificuldades ao

verificarmos 58 urn relata 58 encaixa no genera autobiografico e, par isso, 0 que

mais importa e que 0 pacto seja "firmado" e "cumprido" (-, p.37). Nesse caso, 0

unome pr6prio" e de importancia primordial, pais e nele que 0 centrate ira ter base,

onde pode,,; afirmar ser parte de um relato de uma vida real, por possuir espa90

dentro da historia de vida de alguns seres reais, que possuem urn nome registrado

em documentos que podem ser encontrados no plano real. Santiago refon;a esta

ideia ao dizer que "0 que vale na relac;:ao a dais estabelecida pelo olhar e uma

corrente de energia, vital (grifemos: vital), silenciosa, prazerosa e secreta." (2002,

p.56), ou seja, a for9a que 0 pacto autobiog,,;fico tem e de grande relevancia, e diz

respeito diretamente ao auter e ao leitor. Pode ser "secreta au silenciosa", como

menciona Santigo, no ambito de que ambos 58 compreendem sem grandes

dificuldades, apenas par uma palavra au um paragrafo, dando assim inicio a uma

rela9ao de confian9a e desabafo.

Esse e 0 tipo de narrativa que encontramos no livro Milagres da Vida de

Ballard. Nesse relato, diferentemente do que encontramos em 0 Imperio do Sol, nos

deparamos com uma confissao do autor sobre seus momentos mais intimos. E certo

que, mesmo sabendo se tratar de uma autobiografia, devemos ter cautela em

acreditar em tudo que esta escrito, afinal e a visao de uma pessoa apenas sobre os

fatos e 0 seu relato geralmente foi elaborado anos depois de alguns dos

acontecimentos mencionados (diferentemente de diarios que geralmente sao

escritos em datas pr6ximas a do evento ocorrido). Um exemplo na obra do autor

ingles e 0 relato do campo de concentragEio em que ficou internado durante a

Segunda Guerra Mundial. Em 0 Imperio do Sol, informa que seus pais e ele foram

separados, pois se perdeu deles e um momento de manifestagoes no centro da

44

cidade ap6s 0 ataque de Pearl Harbor. Ficou alguns dias em urn hospital, e assim

que saiu do hospital se dirigiu para casa, chegando 121encontrou-a vazia e

permaneceu par ali par algum tempo esperando que seus pais retornassem, mas ao

perceber que isso nao aconteceria saiu explorar a cidade em busea de alimenta, e

acabou sendo capturado pelos soldados japoneses. Sabemos nessa hist6ria que

seu maior anseio e reencontrar seus pais, que nao estao com ele no campo. Ja em

Milagres da Vida, sabemos par meio dele mesmo2 que seus pais estavam juntos no

campo, e que decidiu suprimi-Ios da primeira hist6ria pais, no momenta de

dificuldade, nao cumpriram seu papel de pais ao deixar de lado a obrigac;ao que

tinham em proteger e defende-Io dos males encontrados durante sua estadia no

campo. Na verdade chegou par vezes a pensar que estava sazinho no campo para

que tivesse um incentivo maior para lutar pela vida.

Oeparamos-nos aqui com uma das muitas situac;oes que e a diferenya

entre as dais relatos. Tambem nos leva a pensar se a ultimo relata e totalmente fiel,

au se assim como a primeiro nao ira continuar nos pregando pec;as. Flora Sussekind

trata sabre isso com estas palavras:

E se 0 leitor por algum momenta se sente possuidor de inequivocasconfissOespessoais, mais uma rasteira do livro: a intimidade e apenas umcart30 postal. A proximidade entre quem assina 0 texto e quem 0 Ie eimpasslvel. E nao da para reclamar. Fomos avisados. (...) entre 0 sujeitobiograficoe 0 sujeito dos diarios, (ha) uma barreira (SUSSEKIND1985, p.77,italico acrescentado)

Por vezes, nos sentimos, assim como cita Flora, traidos ao descobrir

que a verdade relatada nao era a verdade final. No caso de Milagres da Vida, existe

de fato a proximidade entre quem assina 0 texto e quem Ie. Chegamos entao a

2 Ballard havia esclarecido essa duvida em outras ocasiOes e enlrevistas. Ele teve de esclarecer devido ell

popularidade que 0 Imperio do Sol adquiriu em seu lancamento, 0 que suscitou uma serie de opini6es, inclusivede pessoas Que estiveram com Ballard no campo de Lunghua, e confirmaram as versoes de Mi/agres da Vida.Muilas dessas pessoas afirmaram a invenlividade de Jim no campo de concentra<;ao. Qulras falam que Ballard

45

perceber que este relata trata da sinceridade par parte do autor, pois ao retarnar a

afirmac;:ao de Ballard sabre nossas invenc;oes serem as (micas realidades que iraQ

assegurar que nossa imagem perdure, podemos concluir que uma de suas mais

importantes criac;;:oes e personagens e ele mesma. Em outra irnportante obra sua

Crash: estranhos prazeres (1973). coloca a si mesmo como a protagonista da

hist6ria, mesma S8 tratando de uma ficc;:ao caloca seu nome em urn personagem

que narra a historia em primeira pessoa. Milan Kundera nos explica esta

necessidade que alguns autores tern de manter seus personagens em varios relatos,

ficcionais au nao:

Pais tarnar um personagem ~vivo" signifiea: if ate 0 tim de sua problematicaexistencial. 0 que signifiea: if ate 0 tim de algumas situac6es, de algunsmotivos, ate mesmo de algumas palavras com que ele e mold ado. Nadamais. (KUNDERA 2009, p.39)

A necessidade de Ballard tratar de si mesmo em mais de uma obra e 0 que

Kundera nos apresenta ao citar 0 escritor de A Divina Comedia, "Dante disse: "Em

toda a a~ao, a primeira inten~ao daquele que age e revelar sua pr6pria imagem" (-,

p.29). Muitos escritores, senao a maioria, colocam em muitas de suas obras

elementos de suas vidas camuflados em seus personagens, algumas vezes para

que nao sejam descabertos. Ballard ja fez a contrario, pais afinal ah~m de falar

apenas sabre suas ideias 0 autor busca tambem falar sabre si mesma. Mais uma

vez a autor de A Insustentavel Leveza do Ser nos esclarece alguns dos caminhos

tomados par Ballard:

Prestando-se ao papel de homem publico, 0 romancista pOe em perigo suaobra, que carre 0 risco de ser considerada um simples apendice de seusgestos, de suas declarac6es, de seus pontos de vista. Ora, 0 romancista naoe 0 porta-voz de ninguem e chego a dizer que ele nao e nem mesmo 0 porta-voz de suas pr6prias ideias. (-, p.146)

em a Imperio do Sol fez um desservico, pais traiu a mem6ria da Segunda Guerra Mundial e a presenca britanicana China.

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o trabalho de Ballard com as diferentes tipos de narrativas permitiram que

sua obra estabelecesse e convidasse diferentes formas de pactos com 0 leitor.

Alguns desses pactos, em 0 Imperio do Sol, serao rompidos apenas para dar lugar

a Qutros, sugerindo uma leitura que ativa diferentes niveis de mimese. Por ser urn

dos personagens mais importantes de sua obra Ballard S8 tornou urn escritor que foi

precursor em alguns campos. Encontramos em sua autobiografia alguns de seus

questionamentos que nos ajudam a entender urn pouco melhor per que tomou

certos caminhos ao escrever, e que acertou em suas escolhas:

Enquanto isso, minha atividade de escritor continuava emperrada.Sensatamente eu havia desistido dos esfon;:os de superar Q Finnegan'sWake, e sabia que nao era tao vigoroso, nem tao m6rbido para imitarHemingway. Meu problema e que eu ainda nao tinha encontrado uma formaque me conviesse. A fic~ao popular era popular demais, e a fic~ao literariasMa demais. (2009, p.147)

No ultimo capitulo de sua autobiografia, encontramos seu relata final,

agradecendo a medico que a tratou muito bem, e que gra9as a ele teve foryas para

escrever sua autobiografia. 0 ultimo capitulo seria entao a prefacio inexistente no

inicio do livro, explicando a objetivo de escrita e a sua motiva9ao. Com a publicayao

desta obra, Ballard se calou para a literatura, e algum tempo ap6s sua impressao

sua voz se calou desta vida. Uma grande perda para a mundo literario, mas se sua

doenya nao houvesse sid a diagnosticada informando-Ihe do mal iminente que viria a

Ihe ocorrer talvez nao teriamos muitas peyas importantes para entender a fascinante

quebra cabec;as que foi James Graham Ballard (1930-2009).

47

5. CONCLUSAO

Durante esse estudo pudemos verificar que autobiografia e romance

biogratico, au semi autobiografia, estao bern pr6ximos na forma e tipo textual. A

narrativa pode muitas vezes ter 0 mesma foco, e muitas outras caracteristicas

semelhantes. Vimos tambem que naD sao apenas as elementos textuais que nos

permitem entender como uma narrativa S8 constroi, qual e seu objetivD, e quais sao

as mensagens e contratos que 0 autor busca fazer canasco. Nesta conclusao iremos

fazer uma compara9ao entre as duas obras (0 Imperio do Sol e Milagres da Vida), e

continuaremos utilizando as referencias te6ricas mencionados ate 0 presente

momento. Primeiramente encontramos urn importante questionamento apresentado

par Lejeune, nos fornecendo a resposta no mesmo trecho: "Quem decidira qual e

inten9ao do auter, se ela for secreta? Claro que e 0 leitor" (2008, p.53). Pudemos ver

durante este trabalho que 0 pacto sempre sera firmado por duas partes, apesar de

uma sempre estar firmada mesmo antes da leitura (que e a parte do texto e do

autar), a outra (que consiste na aceita(fao do leitor) s6 sera firmada no inicio da

leitura, e na cren(fa que sera colocada no texto. 0 te6rico explana urn pouco mais

par meio desta cita(fao:

Ora, no pacta autobiografico, como, alias, em qualquer "contrato de leitura",ha uma proposta que s6 envolve a autor: a leitor fica livre para ler au nao e,sobretudo, para ler como quiser. 1550e verdade. Mas se decidir ler, deveralevar em conta essa proposta, mesmo que seja para negligencia-Ia oucontesta-la, pOisentrou em um campo magnetico cujas linhas de for9a vaoorientar sua rea9aO. Quando voce Ie uma autobiografia, nao se deixasimplesmente levar pel0 texto como no caso de um contrato de fic9aO au deuma leitura simplesmente documentaria. voce se envolve no pracesso·alguem pede para ser amado, para ser julgado, e e voce quem devera faze-10.De outro lado, ao se comprometer a dizer a verdade sabre si mesmo, 0

autor a obriga a pensar na hip6tese de uma reciprocidade: voce estariapronto a fazer a mesma coisa? E essa simples ideia incamoda. A diferen9ade outros contralos de leitura. a pacta autobiografico e contagioso. Eresempre comporta um fantasma de reciprocidade, vfrus que vai par em estadode alerta lodas as defesas de leiter. (-, p.74)

48

Vemos aqui, como mencionamos no paragrafo aeirna, que 0 pacto S8 firma

par meio de urn centrate de duas pessoas, mas S8 0 leitor naD decidir aceitar a

contrato, nada podera ser feite nesse casco A questao de aceitar eu nao 0 acordo

depende dele. Assim como podemos ter certeza S8 0 pacto sera firmado au nao? Na

verdade, sabemos que as leitores costumam aceitar 0 pacta e encarar a obra como

ela foi idealizada, pais S8 naD for apreciada dessa forma naD tera sentido le-Ia.

Como podemos observar na citay80 aeirna, este fen6meno e tam bern contagioso,

pais 0 leitor passa a S8 questionar sabre a sua existencia, e par vezes pade S8

imaginar relatando sua experiencia a Qutras pessoas. Kundera explana sabre este

ass unto, nos dando esclarecimentos relevantes:

Todos os romances (e autobiografias) de todos os tempos se voltam para 0enigma do eu. Oesde que voc~ cria urn ser imaginario, um personagem, ficaautomaticamente confrontado com a questao: 0 que e 0 eu? Como 0 eu pedeser apreendido? E uma dessas questOes fundamentais sobre as quais 0romance como tal se baseia. Pelas diferentes respostas a essa questao, sevoc~ quiser, pode distinguir diferentes tendencias e, talvez, diferentesperlodos na hist6ria do romance. Os primeiros narradores europeus nemconhecem a abordagem psicol6gica. (KUNDERA 2009, p.29, italicosacrescenlados)

Haviamos nos deparado com afirmac;6es semelhantes feitas par Lejeune na

revisao teorica, e com isso podemos ver que a maior de todas as motivac;oes e

questoes para se desenvolver textos como autobiografias e semi autobiografias sao

as questionamentos sabre 0 "eu". Como ja haviamos citado no capitulo anterior,

Ballard buscou sempre resolver a questao do eu em si mesmo. Buscou comparar

sua hist6ria com ela mesma, e em outro momenta comparar nova mente com ela

mesma (Crash x 0 Imperio do Sol x Milagres da Vida). Ao analisar narrativas como

essas, nos deparamos com termos de comparac;ao e criterios, dentro de

autobiografias e semi autobiografias, que tratam sabre a veracidade e a

individualidade que poderao nos nortear sabre como devemos encarar a

representa9ao da realidade nestas obras:

49

o leiter freqoentemente esquece que, nesses julgamentos, a autobiografiaaparece em dais nlveis: ela e, ao mesmo tempo, um dos termos dacompara9~o e 0 criteria que serve para comparac;8o. Qual seria essa verdadeda qual Q romance permite chegar mais perto, senao a verdade pessoal,individual, intima do autor, isto e, aquila que tode a projeto autobiograficovisa? Par assim dizer, e enquanto autobiografia que 5e decretou ser aromance mais verdadeiro. (LEJEUNE 2008, p.42, grifo do autor)

Encontramos nessa citag80 a afirmag80 de que a autobiografia e 0 terma e 0

criteria para a compara98o com a verdade. Por meio das obras de Ballard podemos

verificar isso fortemente, pais ao escrever seu primeiro relato pessoal, que narfa a

historia de sua adolescencia, passamos a entender e levar aquela retrata9ao da

realidade como verossimil, passando a crer que 0 autor e sincero em suas

coloca90es e relatos. Algum tempo apos a publica9~w do livro, 0 autar relata em

entrevistas, e par fim em sua autobiografia, que 0 principal evento que leva Jim a

lutar pel a sobrevivencia e falso, po is seus pais estavam presentes no campo,

internados com ele. Como jil foi abordado no terceiro capitulo, a "verda de da qual 0

romance permite chegar mais perto" (-, p.42), no caso dessa semi autobiografia, e

a verdade externa e interna a vida do autor. Os fatos que ocorreram nos espa90s em

que Jim se encontrou, e tambem onde a guerra se desenrolou, sao verdades que

Ballard procurou retratar par meio de sua otica, mas nao desejou que fosse por meio

de uma autobiografia pois nao desejava dar tanta enfase sobre este episodio em sua

historia pessoal (apesar de ter side urn evento que definiu seu futuro como pessoa e

como escritor). Ele costumava dizer que levou muito tempo para esquecer e muito

tempo para lembrar dos fatos da guerra, e isso pode ser 0 motivo de Jim e ele

passarem para alguns a imagem de que sao pessoas diferentes. Entretanto, ao

lermos 0 Imperio do Sol encontraremos muitos tra90s importantes da personalidade

de Ballard em sua adolescencia, que sao informa96es relevantes para 0

entendimento do universo baliardiano, informa,oes que nao sao enfatizadas no livro

Milagres da Vida. Levando em considera9<3.0 essas informa96es podemos sim

50

afirmar, como Lejeune, que a romance biografico possui mais informa90es pr6ximas

da realidade do que a autobiografia.

Podemos compreender entao que, as maiores diferenyas entre a relato sabre

a adolescencia de Ballard e 0 de sua vida par completo sao as criterios de

veracidade, ou seja, 0 Imperio do Sol nao se adequa a algumas das defini,oes

estabelecidas para que seja considerada uma autobiografia, mas mesma assim

transcende Qutras. Par deixar de relatar a verdade em alguns momentos, ja

mencionados, naD S8 adequa ao malde de autobiografia, todavia sendo seu

narrador, personagem e autor a mesma pessoa pade ser qualificada como tal. Ao

nos depararmos com esta, e Qutras duvidas referentes a obra de Ballard, temas

mais uma vez urn esclarecimento dado par Lejeune:

Em oposiC;~1Oa todas as formas de ficC;~o,a biografia e a autobiografia s~otextos referenciais: exatamente como 0 discurso cientrfico ou hist6rico, elesse propOe a fornecer informac;Oesa respeito de uma "realidadeH externa aotexto ease submeter portanto a uma prova de verificar;ao. Seu objetivo n~o esimplesmente verossimilhanc;a, mas a semelhanc;a com 0 verdadeiro. Nao aUefeitode rea!", mas sim a imagem do real. Todos esses textos referenciaiscomportam entao 0 que chamarei de pacta referencia/, impllcito ou explicito,no qual se incluem uma definiC;aodo campo do real visado e urn enunciadodas modalidades e do grau de semelhanc;a aos quais 0 texto aspira. (-. p.36)

Ao analisar esta referencia podemos concluir que a objetivo de Ballard foi,

senao, "fornecer informac;6es a respeito de uma "realidade" externa ao texto ease

submeter portanto a uma prova de verificaqiio" (-, p.36). Seu objetivo nao foi a

verossimilhanc;a, mas sim a retratac;ao de fatos verdadeiros, que nao deixa de ser a

representac;ao da realidade, mas nao apenas como representac;ao imitativa e sim

como uma imagem do real. Mesmo assim nao podemos incluir esta obra total mente

como uma autobiografia, pais ela foge as definic;6es de Lejeune, seguindo muito

mais a que Sussekind menciona, "Dessa mane ira, 0 romance parece avisar seu

leitor que a pacta emocional au 0 biografica nao sao posslveis ali. 0 trato e outr~.

Eo ficcional [?]." (1985, p.51). Se voltarmos a este ponto iremos perder as

51

definic;:6es que alcanc;:amos, sendo assim, podemos afirmar como Sussekind que "0

trato e outro" (-, p.51), mas nao ficcional nem totalmente autobiografico, e urn pacto

referencial, pois 0 que mais nos importa nesta obra de Ballard sao as referemcias de

realidade apresentadas, e naG apenas sua confissao dos fatos vividos par ele.

Ja Milagres da Vida nao apresenta problemas muito grandes, em rela9ao asua qualificac;:ao como obra autobiografica au Qutro tipo de texto. As contribuic;:6es

anteriores a esta obra ajudaram-na a S8 formar como urn relata concreto, pois a

autor ja havia experimentado Qutros tipos de narrativas confessionais antes dessa.

Sendo assim. par meio de Lejeune temes 0 esclarecimento de que "0 modele no

caso (desla) ( ... ) (aula) biografia, e, pais, a vida de urn homem "tal como foi". (2008,

p.38, italicos acrescentados). E por fim vemos que as inquieta90es de Ballard

sempre foram a interrogayao existencial. Kundera retrata este mesmo pensamento

na citavao a seguir:

Um tema e uma interroga9ao existencia1. E cada vez mais me dou conta deque tal interrogayao e, afinal, 0 exame de palavras particulares, de palavras-lema. 0 que me leva a insistir: 0 romance (e a autobiografia) e baseadoprimeiramente em algumas palavras fundamentais, (2009, p.82, grifo nosso)

o romance, a semi autobiografia e a autobiografia sao baseados em temas de

interroga<;:ao e palavras fundamentais. Para Ballard 0 maior tema, e a maior palavra

fundamental foi ele mesmo. Suas obras, de diferentes form as, retratam a ele proprio,

e Jim, James, ou apenas Ballard nos trouxeram grandes impressoes,

esclarecimentos e como toda grande obra deixaram mais algumas inquieta<;:6es

existenciais em nossas vidas.

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REFERENCIAS:

LEJEUNE, Philippe. 0 pacta autobiografico: de Rosseau a internet. Bela Horizonte:Editora UFMG, 2008.

AUERBACH, Erich. Mimesis: a representa9ao da realidade na literatura ocidental.Sao Paulo: Perspectiva, 2007.

SUSSEKIND, Flora. Literatura e vida literaria: polemicas, diarios e retratos. Rio deJaneiro: Jorge Zahar Editora. 1985.

KUNDERA, Milan. A arte do romance. sao Paulo: Companhia das Letras, 2009.

SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra: ensaios. Rio de Janeiro: Rocco, 2002

BALLARD, James G. Crash: estranhos prazeres. Rio de Janeiro: Record, 1997.

BALLARD, James G. 0 Imperio do sol. Rio de Janeiro: BestBolso, 2007

BALLARD, James G. Milagres da vida: de Shangai a Shepperton: uma autobiografia.Sao Paulo: Companhia das Letras, 2009