Dimensões da Palavra Biderman

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  • 7/23/2019 Dimenses da Palavra Biderman

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    Filologia e Lingstica Portuguesa, n. 2, p. 81-118, 1998.

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    DIMENSES DA PALAVRA

    Maria Tereza Camargo Biderman*

    RESUMO: A palavra a pedra de toque da linguagem humana. Vrios so os ngulos sob osquais esta complexa matria pode ser analisada. Sero abordados aqui algumas das dimen-ses mais importantes dessa entidade: o valor mgico da palavra e a potncia criadora doverbo; a dimenso cognitiva que se associa ao problema da nomeao e da designao darealidade, gerando o vocabulrio das lnguas naturais; a dimenso significativa onde se exami-na a questo do signo lingstico e sua relao com a realidade.

    Palavras-chave : palavra, categorizao lexical, processo de nomeao, vocabulrio das lnguasnaturais, signo lingstico.

    1. A DIMENSO MGICA E RELIGIOSA DA PALAVRA

    1.1 O nome e a essncia do ser

    m muitas religies e culturas acredita-se que foi a lin-guagem que ordenou o caos primitivo transformando-onum cosmos significativo. Cada cultura foi ordenando, aseu modo, o caos primevo atravs de seus mitos. Apala-

    vra assume assim nos mitos de cada cultura uma fora transcendental;nela deitam razes os entes e os acontecimentos. Por ser mgica, caba-lstica, sagrada, apalavra tende a constituir uma realidade dotada depoder. Os mitos falam dos segredos e das essncias escondidas na

    palavra instituidora do universo.O homem primitivo acredita que o nome no arbitrrio mas

    existe um vnculo de essncia entre o nome e a coisa ou objeto que ele

    * UNESP, Campus de Araraquara.

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    designa. Assim sendo, no separa a palavra do referente que ela no-meia. Cr que se pode atuar magicamente sobre uma pessoa atravsde seu nome. Por isso esse homem primitivo considera seu nome comoparte vital de seu prprio ser. Em seu livro clssico The Golden Bough(A Rama Dourada), Frazer cita muitos exemplos de povos onde foiconstatada a crena no poder mgico da palavra.

    Um aborgene australiano acredita que um inimigo poderia pra-

    ticar magia negra contra ele, se conhecesse seu nome. Na Ilha de Chilono Chile, os ndios guardam seus nomes em segredo; se um espritomalvolo os conhecesse poderia fazer-lhes mal; no os conhecendo,seria impotente para agir. Na Colmbia Britnica (Canad) e no arqui-plago malaio acontece a mesma coisa. Ningum pronuncia seu pr-prio nome. Esse mesmo tabu existe na Nova Guin e na frica do Sul.Tal comportamento se baseia no fato de que se teme o mal provenien-te dos maus espritos. Esses povos primitivos temem revelar o prprionome a feiticeiros, que teriam assim uma maneira de fazer maldadescontra a pessoa detentora daquele nome.

    Os antigos egpcios recebiam dois nomes: o nome verdadeiro e

    o nome onomstico, isto , o nome grande e o nome pequeno. Oonomstico, ou nome pequeno, era pblico; o verdadeiro, porm, erasecreto e ciosamente ocultado.

    Em muitas sociedades arcaicas o nome de um rei, de um chefeou de uma pessoa sagrada tabu.

    No Dahomey o nome do rei era secreto; se algum capeta o co-nhecesse poderia fazer-lhe mal. Os nomes com que os europeus co-nheceram esses reis no eram seus nomes verdadeiros mas meros t-tulos. No antigo Sio era muito difcil descobrir o nome verdadeiro deum rei, pois esse era mantido em segredo por medo de bruxarias;

    quem o dissesse seria encerrado em um calabouo. Para referir-se aorei, diziam: o augusto, o perfeito, o supremo, o grande imperador, odescendente dos anjos. Entre os sulus (mar de Sulu, sul das Filipinas)ningum mencionava o nome do chefe da tribo ou os nomes dos paisdo chefe; nem pronunciava palavras comuns que coincidissem ou re-

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    cordassem de algum modo o nome tabuado. Em Madagascar tanto osnomes de famlia como os de pessoas so tirados do vocabulrio co-mum. Por isso, preciso inventar um vocbulo novo, substituindo oanterior, para o objeto proibido (animal, planta, cor, etc.) quando essenome se torna tabu. E mais: so tabuados os nomes prprios de reis echefes no s vivos, mas tambm soberanos mortos.

    Entre os sakalavos, um povo da Polinsia, quando morre o rei,

    os nobres e o povo, reunidos em torno do cadver, escolhem solene-mente um novo nome para o extinto monarca e esse ser o nome comque ser referido no futuro. Adotado o novo nome, o antigo se tornasagrado e ningum ousar pronunci-lo sob pena de morrer.

    Frazer cita ainda muitos outros casos em vrias latitudes da ter-ra onde o fenmeno se repete: na Oceania, nas Amricas, na frica,etc. E vale lembrar a lenda citada por Frazer sobre o nome do deus Ra.

    No antigo Egito o grande deus Ra tinha muitos nomes, mas ogrande nome, que lhe dava poder sobre os outros deuses e sobre oshomens, s era conhecido dele mesmo. Invejosa do poder do grandedeus, a deusa Isis fez-lhe uma feitiaria. Criou uma serpente com a

    terra umedecida com a saliva do grande deus e essa serpente o mor-deu e envenenou-o. O veneno foi penetrando profundamente no gran-de deus e ele j no podia mais andar. Ento Isis lhe disse: dize-meteu nome, Pai divino, pois viver aquele que for chamado por teu nome.Ra tentou escamotear a resposta, mas o veneno foi-lhe penetrandomais e mais fundo no corpo. E Isis continuou: se no me disseres teu

    verdadeiro nome, o veneno no sair, pois viver aquele cujo nomefor pronunciado. E como o veneno queimava como fogo o deus Radisse: Consinto que Isis busque dentro de mim e que meu Nome pas-se de meu peito a seu peito. Ento o deus se ocultou dos demaisdeuses e seu lugar na barca da eternidade ficou vazio. Assim foi tirado

    do grande deus o seu nome e Isis, a feiticeira, falou: Saia para fora,peonha, saia de Ra. Sou Eu, Eu mesma, aquela que vence o veneno eque o atira ao solo; porque o nome do grande deus lhe foi arrebatado.Deixa Ra viver e que morra o veneno. Assim falou a grande Isis, arainha dos deuses, a que conhece a Ra por seu verdadeiro nome.

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    Acreditava-se pois que aquele que conhecesse o verdadeiro nomede algum possua o verdadeiro ser, a essncia do deus ou do homem.Poderia inclusive forar uma divindade a obedecer-lhe como um escra-

    vo obedece seu amo. Assim a arte da magia consistia em obter dosdeuses a revelao de seus nomes sagrados.

    Na tradio judaica o nome de Deus sagrado e impronuncivel.Nessa tradio, segundo o relato do livro do xodo, quando Moiss

    tirou o povo judeu da escravido do Egito para lev-lo terra prome-tida, no deserto do Sinai, Deus deu a seu povo o declogo os dezmandamentos. Um dos mandamentos dizia: No pronunciars o nomedo Senhor, teu Deus, em vo, pois o Senhor no deixa impune quempronuncia o seu nome em vo. (xodo, 20, 7).

    1.2 A palavra criadora

    Nas numerosas tradies culturais dos homens a linguagem sur-ge com a palavra instituidora que abre ao ser o espao para ele semanifestar. Todas as culturas nascem de umapalavra criadora, dita emtempos imemoriais por um poder divino.

    A primeira palavra em sua eficacidade transcendente est inti-mamente ligada instituio da humanidade. A primeira palavra a

    vocao mesma do homem humanidade. (Gusdorf, La parole, apudCrippa, 1975, p. 101). Ainda segundo Gusdorf Todas as grandes reli-gies conferem um lugar doutrina do Verbo divino, na instituio doreal (ibidem, p. 16, apud Crippa, 1975). Deus disse e as coisas foramfeitas. As coisas surgem em sua diversidade multiforme da palavra di-

    vina. Assim disse Deus... ecoam muitos mitos. Os mitos procuram tra-

    duzir uma crena de todas as culturas: as coisas existem e so o queso porque foram faladas por um poder instituidor original.

    A primeira pgina do primeiro captulo do Gnesis, o primeirodos livros bblicos, conta-nos o mito da criao do mundo pela palavracriadora de Deus:

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    Deus disse: Que a luz seja! e a luz se fez. Deus viu que a luz eraboa, e Deus separou a luz das trevas. Deus chamou a luz dia e as trevasnoite. Houve uma tarde e uma manh: primeiro dia [ Gen.I, 3-5]. E as-sim a criao vai emergindo ao apelo da palavra divina.

    O gesto criador de Deus identifica-se com esta palavra ontolgicaessencialmente divina. O que ns homens somos e o que sabemosnasce dessa revelao primordial da palavra criadora, do gesto divino

    de dizer.Na ndia afirmam antigos relatos: Da palavra dependem todosos deuses, os animais e os homens; na palavra repousam todas ascriaturas. A palavra imperecvel...

    Em muitas tradies culturais o homem possui um poder incon-testvel sobre todos os outros entes porque os deuses o agraciaramcom a palavra. Segundo mitos das mais variadas mitologias, os ho-mens aprenderam a falar com os deuses nas origens da histria huma-na. Ora, os mitos constituem a linguagem primordial das culturas. Asculturas so desempenhos histricos das comunidades humanas. E asculturas so to diferentes porque a palavra pode falar e ser falada dediversas maneiras, em linguagem e lnguas diversas. (Crippa, 1975,p. 101)

    A histria das religies atribui sacralidade s origens. Os mitos,constituindo a linguagem adequada s primordialidades, so religio-sos, ou envolvidos pela fora do sagrado. (Crippa, 1975, p. 104) Omundo mtico um mundo sagrado. Por isso tambm a cultura sa-grada. Cada povo e cada revelao sagrada parte de acontecimentosdivinos singulares ou constitudos de maneira singular. H sempre,porm, uma histria original, ou seja, uma proposio mtica de acon-tecimentos que se verificaram num tempo primordial, anterior ao in-

    cio da histria. (Crippa, 1975, p. 105) Confronte-se o que acima foireferido sobre a cultura judaica, relatos esses recebidos e ciosamenteconservados pelas culturas crists.

    No mundo mtico h uma relao ntima entre mito e realidadede um lado, e mito e sacralidade, do outro (Crippa, 1975, p. 111).

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    Nesta viso religiosa impossvel separar a histria e as culturashumanas da manifestao original e criadora dos deuses na instituiodo real.

    1.3 A palavra divina

    Para a Bblia judaico-crist a palavra no apenas um sinal dafora divina criadora mas se identifica com essa prpria fora. Ao lon-go de mais de dois mil anos de histria, desde o limiar do Gnesis no

    Antigo Testamento aos Evangelhos do Novo Testamento, a palavra semanifesta com esse significado. assim que os profetas do AntigoTestamento, principalmente Isaas e os psalmistas, falam da eficciada palavra que no retorna a Deus sem ter dado o seu fruto.

    Na Bblia a fora da palavra divina no se circunscreve a Deus, masdifunde-se por seus enviados: os profetas. Porque eles so arautos do

    Altssimo, os profetas so dotados do mesmo dom divino que lhes comunicado na sua misso. Um dos momentos privilegiados desta ma-nifestao o relatado no livro do profeta Ezequiel (sc. VI A.C.). Sob o

    impulso do Esprito de Deus o profeta Ezequiel conduzido ao meio dovale coberto de ossadas ressequidas. Ele disse: pronuncia um orculosobre essas ossadas.[...] Pronunciei o orculo como havia recebido aordem; e houve um grande rudo enquanto eu pronunciava o orculo eproduziu-se um movimento: as ossadas se aproximaram umas das ou-tras. Olhei: eis que havia sobre os ossos nervos, crescia carne e esten-dia-se pele por cima; mas no havia sopro neles. Ele me disse: Pronunciaum orculo sobre o sopro, pronuncia um orculo, filho do homem; dizeao sopro: Assim fala o Senhor Deus: Sopro, vem dos quatro ventos, so-pra sobre estes mortos e eles vivero. Pronunciei o orculo como haviarecebido a ordem, o sopro entrou neles e eles reviveram; puseram-se de

    p: era um exrcito numeroso. (Ez. 38, 1-10)Nos textos cristos do incio do cristianismo, os cronistas dos

    relatos evanglicos da vida e dos feitos de Jesus Cristo atribuem palavra um poder instituidor e vital. Numerosos poderiam ser os exem-plos colhidos nestas narrativas; eis alguns deles:

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    1) Havia uma grande tempestade; o barco onde estavam Jesus e seusdiscpulos quase ia a pique. Ento, pondo-se de p, ele ameaou os

    ventos e o mar, e fez-se uma grande bonana. Os homens maravilha-vam-se e diziam: quem este, a quem at os ventos e o mar obede-cem? (Mateus, 8, 26-27)

    2) Lzaro, irmo de Marta e Maria adoecera e morrera... Quando che-garam ao sepulcro Jesus disse: Retirai esta pedra. Marta, a irm do

    defunto, lhe disse: Senhor, ele j deve estar cheirando mal... Pois fazquatro dias... [...] Ento, Jesus ergueu os olhos e disse: Pai, eu te dougraas por me teres atendido. Por certo, eu bem sabia que me atendessempre, mas falei por causa desta multido que me cerca, a fim de queeles creiam que tu me enviaste. Tendo assim falado, gritou com vozforte: Lzaro, vem para fora! E aquele que tinha estado morto saiu...(Joo, 11,1-44)

    E assim se sucedem muitos outros milagres descritos nesses li-vros que atestam a eficcia vificadora da palavra de Cristo.

    Uma das passagens mais caractersticas sobre a palavra divina

    nas narrativas evanglicas aquela sobre o episdio da tentao deCristo pelo demnio. Aps 40 dias de jejum no deserto, Jesus estavacom fome; o tentador aproxima-se dele, dizendo: Se tu s o Filho deDeus, dize a estas pedras que se transformem em pes. A essa tenta-o Jesus respondeu: No s de po vive o homem mas de toda apalavra que sai da boca de Deus.

    sobretudo no quarto evangelho que esta dimenso mstica ereligiosa da palavra atinge seu pice com a doutrina de Joo sobre o

    Verbo de Deus. Ouamos o prprio Joo:

    No incio era o Verbo, e o Verbo estava voltado para Deus, e o

    Verbo era Deus. Ele estava no incio voltado para Deus. Tudo se fezpor meio dele; e sem ele nada se fez do que foi feito. Nele estava a

    vida, e a vida era a luz dos homens, e a luz brilha nas trevas, e as trevasno a compreenderam.[...] E o Verbo se fez carne e habitou entre ns.(Joo, I, 1-5, 14)

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    2. A DIMENSO COGNITIVA DA PALAVRA

    2.1 A categorizao do conhecimento e a nomeao da realidade

    a partir da palavra que as entidades da realidade podem ser no-meadas e identificadas. A denominao dessas realidades cria um uni-verso significativo revelado pela linguagem.

    Em seu clssico livro Biological foundations of language o neu-rolingista E. Lenneberg elaborou uma teoria que podemos aceitarcomo bsica para a interpretao do fenmeno da categorizao lin-gstica e a conseqente nomeao do universo, bem como sua rela-o com o vocabulrio de uma lngua natural. Farei uma explanaode suas idias adaptando-as aos propsitos deste trabalho.

    A atividade de nomear, isto , a utilizao de palavras para de-signar os referentes extra-lingsticos especfica da espcie humana.

    A nomeao resulta do processo de categorizao. Entende-se porcategorizao a classificao de objetos feita por um sujeito humano,resultando numa nica resposta a uma determinada categoria de est-

    mulos do meio ambiente. A categorizao supe tambm a capacida-de de discriminao de traos distintivos entre os referentes percebi-dos ou apreendidos pelo aparato sensitivo e cognitivo do indivduo.

    Nesse processo de diferenciao as categorias originais podemvir a ser subdivididas, ou ainda suprimidas; podem ser tambm reor-ganizadas e reformuladas, redundando em outras categorias gerais ouespecficas. A espcie humana organiza o conhecimento atravs dessecomplexo processo de categorizao. Por outro lado, o homem tem acapacidade de relacionar vrias categorias umas com as outras e, con-seqentemente, de responder relao entre as coisas, em vez de

    reagir diretamente s prprias coisas.Vejamos como o homem organiza o mundo sensorial represen-

    tando-o com a linguagem e mais especificamente com palavras.

    As palavras podem ser consideradas como etiquetas para o pro-cesso de categorizao. Por conseguinte, as palavras que constituem

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    aquilo que seria o dicionrio de uma lngua natural so uma lista euma amostragem das etiquetas de categorias naturais com que a es-pcie humana processa o conhecimento; contudo, as palavras no someros rtulos de objetos especficos existentes no mundo real. Pode-mos afirmar que a maioria das palavras designam campos de concei-tos em vez de coisas fsicas. quase certo que seja assim, pois se fossede outra maneira nos depararamos com uma enorme dificuldade para

    explicar por que as palavras se referem a classes abertas. Por exemplo:no podemos definir a categoria rotulada como casa partindo da enu-merao de todos os objetos que recebem esse nome. A qualquer novoobjeto que satisfizesse certos critrios seria possvel atribuir essa eti-queta. mais fcil dizer o que esses critrios no so que dizer o queso. Assim eles no so um conjunto finito de variveis objetivamentemensurveis tais como: textura, cor, dimenses fsicas, etc. Exceto paraumas poucas palavras, que constituem um caso especial os vocbu-los que designam experincias como cor, temperatura, tamanho, etc.No podemos predizer que objeto poderia ser denominado casa e qualno, considerando s as dimenses fsicas desses objetos. Conclui-se

    que o processo de categorizao e a nomeao ou designao atravsde palavras devem fundamentar-se em algo muito abstrato.

    O processo de categorizao subjaz semntica de uma lnguanatural. Os critrios de classificao usados para classificar os objetosso muito diferenciados e variados. s vezes, o critrio o uso que ohomem faz de um dado objeto; s vezes, um determinado aspectodo objeto que fundamenta a classificao; s vezes, um determinadoaspecto emocional que um objeto pode provocar em quem o v, eassim por diante.

    Voltemos ao exemplo de casa. Geralmente o objeto casa se apli-

    ca a estruturas que servem de abrigo ao homem ou aos animais; po-rm, freqentemente muda-se o critrio de categorizao como resul-tado de extenses metafricas que se d a essa palavra. Isso ocorre,por exemplo, com casa de Deus, casa de David, casa de cmbio e noportugus europeu, casa de banho. A facilidade com que se pode mu-

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    dar o critrio de categorizao evidencia o fato de que a categorizao um processo criativo e dinmico de organizao cognitiva. Os crit-rios de classificao podem alterar-se e expandir-se para incluir reali-dades at ento inexistentes como invenes novas, ou novas cria-es mentais dos seres humanos.

    Pode-se considerar a formao de conceitos como o processocognitivo primrio e a nomeao (designao) como o processo

    cognitivo secundrio. Os conceitos so modos de ordenar ou de trataros dados sensoriais. Assim sendo, a conceptualizao vem a ser opr-prio processo cognitivo.

    O homem desenvolveu a capacidade de associar palavras a con-ceitos. Como as palavras permanecem atravs do tempo entesouradaspor uma cultura e transmitidas de gerao a gerao, o processo deconceptualizao parece mais esttico do que efetivamente . Nesseponto preciso distinguir o processo individual de formao de con-ceitos por parte de um sujeito, do acervo de conceitos transmitidosmaterialmente atravs das geraes por meio do vocabulrio herdadoe transmitido, sobretudo nas sociedades dotadas de uma tradio es-crita. Na dimenso individual, o lxico conceptualizado como umconjunto de representaes, isto , de objetos mentais que se con-substanciam nas palavras que esse indivduo domina e das quais ele seserve. Essa dualidade entre o individual e o social tem que ser bementendida para evitar ambigidades.

    Por outro lado, a memria de cada indivduo no um arma-zm de pensamentos ou um arquivo de impresses sensveis memo-rizadas, pois os conceitos so dinmicos, apesar de estarem regis-trados fisiologicamente na memria. As palavras no so meras eti-quetas de conceitos j completados e armazenados; so etiquetas

    sim, mas de um processo de categorizao ou de uma famlia de taisprocessosin fieri. Devido natureza dinmica do processo subjacente,os referentes das palavras podem mudar muito, os significados po-dem expandir-se e as categorias esto sempre abertas a mudanas.Em suma, as palavras rotulam os processos cognitivos mediante os

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    quais o homem interage cognitivamente com seu meio ambiente.

    (Lenneberg, 1975, p. 374)

    Alm disso, existe uma margem de liberdade biolgica nacognio humana. Cada indivduo pode conceptualizar de um modomuito pessoal. Na verdade seu vocabulrio muito mais limitado quesua capacidade de conceptualizao. Como somos dotados da mesmacapacidade cognitiva, os interlocutores com que interagimos podem

    entender a semntica de nossos enunciados, ainda que nossas pala-vras assumam significados diferentes, designando novas conceptuali-zaes.

    A semntica de uma dada lngua natural constitui apenas umadas muitas maneiras pelas quais se pode organizar o universo cogniti-

    vo. Assim, na categorizao de um elemento da realidade o processode classificao pode-se fazer a partir de um dado aspecto deste refe-rente como se disse antes, um trao semntico percebido como maisproeminente; por exemplo, grande, alto, redondo, retangular, etc. por isso que as palavras no podem estar ligadas s coisas de maneiraessencial como acreditam culturas arcaicas, tema discutido na unida-

    de anterior. Voltaremos a essa questo quando discutirmos a arbitra-riedade do signo lingstico.

    Se considerarmos os dois ngulos da questo o individual e osocial podemos opor o processo de cognio e de nomeao ao seuresultado, ou seja, o lxico de uma lngua natural. Como diz Lennebergum lxico como uma fotografia que congela o movimento. ( ibidem,p. 375)

    Concluindo: o lxico de uma lngua constitui uma forma de re-gistrar o conhecimento do universo. Ao dar nomes aos referentes, o

    homem os classifica simultaneamente. Assim, a nomeao da realida-de pode ser considerada como a etapa primeira no percurso cientficodo esprito humano de conhecimento do universo. Ao identificar se-melhanas e, inversamente, discriminar os traos distintivos que indi-

    vidualizam esses referentes em entidades distintas, o homem foi es-

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    truturando o mundo que o cerca, rotulando essas entidades discrimi-nadas. esse processo de nomeao que gerou e gera o lxico daslnguas naturais. Por outro lado, podemos afirmar que, ao nomear, oindivduo se apropria do real como simbolicamente sugere o relato dacriao do mundo na bblia judaico-crist, anteriormente referido, emque Deus incumbiu ao primeiro homem dar nome a toda a criao edomin-la. A gerao do lxico se processou e se processa atravs deatos sucessivos de cognio da realidade e de categorizao da expe-rincia, cristalizada em signos lingsticos: as palavras.

    Por conseguinte, os conceitos so modos de ordenar os dadossensoriais da experincia. Atravs de um processo criativo de organi-zao cognoscitiva desses dados foram surgindo as categorizaes lin-gsticas expressas em sistemas classificatrios: os lxicos das lnguasnaturais. Assim, podemos afirmar que o homem desenvolveu uma es-tratgia engenhosa ao associar palavras a conceitos que simbolizamos referentes.

    O processo de cognio e de apropriao do conhecimento as-sumiu formas distintas conforme as culturas, ou seja, os sistemas lexi-cais das numerosssimas lnguas naturais (vivas ou mortas). Visto comoas palavras etiquetam modos de cognio seria de esperar que todosos sistemas semnticos das lnguas naturais tivessem certos aspectosformais em comum. Entretanto, as lnguas constituem sistemas se-mnticos muito distintos e variados. A conceptualizao da realidadeconfigura-se lingisticamente em modelos categoriais arbitrrios no-coincidentes. As categorias lingsticas no so nem coincidentes, nemequivalentes, embora possamos admitir que as lnguas naturais te-nham tipos de semntica universalmente compreensveis.

    2.2 A categorizao e o relativismo lingstico

    Ao tratar da dimenso cognitiva da palavra, preciso considerara hiptese do relativismo lingstico, ou hiptese Sapir-Whorf.

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    A chamada hiptese Sapir-Whorf, muito divulgada nas dcadasde cinqenta e sessenta, contestava os universais lingsticos particu-larmente no domnio da categorizao. Para esta teoria, a conceptua-lizao da realidade se revela claramente nos idiomas, pois todo siste-ma lingstico manifesta, tanto no seu lxico como na sua gramtica,uma classificao e uma ordenao dos dados da realidade que sotpicas dessa lngua e da cultura com que ela se conjuga. Isso significaque cada lngua traduz o mundo e a realidade social segundo o seuprprio modelo, refletindo uma cosmoviso que lhe prpria, expres-sa nas suas categorias gramaticais e lxicas. Conseqentemente, serque a estrutura semntico-categorial de uma lngua pode restringir aliberdade do falante de categorizar?

    Vamos examinar sucintamente essa teoria e tentar responder aesta pergunta.

    No primeiro quartel do sculo vinte o lingista americano EdwardSapir esboou as premissas do relativismo lingstico. Para Sapir alngua socialmente formada influencia [...] a maneira pela qual a socie-dade concebe a realidade (Sapir, 1947, p. 11). A linguagem tem uma

    funo heurstica, pois as suas formas predeterminam, para ns, cer-tos modos de observao e de interpretao. ( idem, ibidem, p. 11).Em outro estudo, The status of linguistics as a science (A posio dalingstica como cincia) Sapir mais explcito ainda:

    A linguagem um guia para a realidade social.[.....] Os seres humanos no vivem s nomundo objetivo, ou s no mundo da atividade social como normalmente se admite, masvivem quase totalmente merc da lngua especfica que se tornou o meio de expressopara a sua sociedade. ilusrio imaginar que algum possa fundamentalmente ajustar-se realidade sem o uso da linguagem e que a lngua seja apenas um recurso qualquer pararesolver problemas especficos de comunicao ou reflexo. O fato que o mundo real ,em grande parte, construdo inconscientemente sobre a base dos hbitos lingsticos dogrupo. No existem duas lnguas, por mais semelhantes que sejam, que possam ser consi-

    deradas como representantes da mesma realidade social. Os mundos em que vivem asdiferentes sociedades humanas so mundos distintos e no um s e mesmo mundo, aoqual se teriam aposto etiquetas diferentes. (Sapir, 1947, p. 11)

    Dentro desta viso terica a percepo que o indivduo tem darealidade, de certa forma, pr-moldada pelo sistema lingstico que ele

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    fala, pois as categorias existentes na sua lngua o predispem para certasescolhas de interpretao do real.

    Embora tais idias j estejam claramente expressas nos escritosde Sapir, foi outro lingista americano, Benjamin L. Whorf, quem pro-curou demonstrar factualmente esta teoria, desenvolvendo-a inclusi-

    ve at as suas ltimas conseqncias na dcada de quarenta. A suaformulao mais radical e menos abstrata que a de Sapir, tendo Whorf

    procurado aplic-la a lnguas indgenas da Amrica, o Hopi, em parti-cular. Vrias demonstraes do relativismo lingstico, elaboradaspor Whorf, se encontram no seu livro Lanquage, thought and reality.No estudo intitulado Science and linguistics, B. L. Whorf exprime assuas idias claramente:

    Constatou-se que o sistema lingstico subjacente a cada lngua (em outras pa-lavras, a gramtica) no apenas um instrumento de reproduo para emitir idiasmas ele sobretudo um modelador de idias, o programa e o guia para a atividademental do indivduo. [...] As categorias e os tipos que ns isolamos do mundo dosfenmenos no os encontramos a porque eles estejam encarando cada observadorface a face; pelo contrrio, o mundo apresentado num fluxo caleidoscpico de im-presses que tm que ser organizadas por nossas mentes e isso significa, em grande

    parte, pelo sistema lingstico em nossas mentes. Ns recortamos a natureza,organizamo-la em conceitos, e lhe atribumos significados da forma como o fazemosporque constitumos as partes contratantes de uma conveno, segundo a qual deve-mos organiz-la assim tal conveno se mantm na nossa comunidade lingstica e codificada nos moldes da nossa lngua. Naturalmente essa conveno implcita e noformulada, mas seus termos so absolutamente coercitivos; no podemos falar sequer,a no ser subscrevendo a organizao e a classificao dos dados decretados por essaconveno. Somos assim introduzidos em um novo princpio de relatividade, o qualestabelece que todos os observadores no so movidos pela mesma evidncia fsica, auma mesma viso do universo, a menos que seus backgrounds sejam similares, oupossam ser calibrados de alguma forma. (Whorf, 1958, p. 5). fcil constatar que no possvel definir um evento, uma coisa, um objeto, uma relao, etc., a partir danatureza, mas defini-los sempre envolve um retorno circular s categorias gramaticaisda lngua do definidor. (ibidem, 6)

    A seguir, Whorf exemplifica com a classe dos nomes e dos ver-bos em Hopi, mostrando que, nessa lngua, o critrio para classificarum evento como verbo a sua breve durao. Alm disso, sendo acultura Hopi alheia nossa noo de tempo, a lngua Hopi no conhece

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    a categoria do tempo no verbo, possuindo apenas as categorias do as-pecto e do modo.Outro exemplo citado por Whorf neste artigo: noNootka, lngua da ilha de Vancouver, temos a impresso de que todas asclasses de eventos so classificadas como verbos, pois podem sermarcadas pelas flexes verbais. Mais um exemplo lembrado por Whorf:na lngua esquim no se tem s uma palavra para neve. No universoesquim a neve uma realidade cotidiana e fundamental. Por isso nesse

    meio ambiente esse referente percebido e categorizado de modo maisespecfico do que em nossas culturas ocidentais, sobretudo se estabele-cermos um confronto com um pas como o Brasil em que a neve quaseuma mera imagem pictrica de realidades muito distantes. Isso no querdizer que o esquim v a neve de modo diferente, mas que sua cultura,isto , a experincia coletiva acumulada em sua comunidade percebemelhor os detalhes dessa realidade do que o habitante de um pas tropi-cal, ou mesmo de um indivduo de Paris, ou Nova Iorque, onde essefenmeno fsico no exerce o mesmo impacto que no mundo esquim.

    Assim, se constata que o esquim, de uma certa forma, de fato percebeo mundo objetivo de modo distinto. E por isso que o esquim tem

    palavras distintas para designar as diferentes formas pelas quais a nevese apresenta sua percepo sensorial, vocbulos esses que no tmcorrespondncia em portugus. Cada uma das seguintes perfrases por-tuguesas neve que cai, neve no cho, neve compactada dura comogelo, neve semiderretida lamacenta, neve voando levada pelo ven-to equivale a uma s palavra em esquim. Devo ressalvar que todasessas reflexes sobre o subconjunto lxico neve no as disse Whorf,mas sou eu que assim afirmo.

    Convm lembrar tambm outra ilustrao fornecida por Sapirem 1911 em uma conferncia feita na Associao Antropolgica Ame-

    ricana sobre Lngua e meio ambiente. Mostrando como o lxico deuma lngua reflete claramente o ambiente fsico e social dos falantes,Sapir cita a lngua dos ndios paiutes que viviam nas regies desrticasdo Arizona, Nevada e Utah nos Estados Unidos. A lngua paiute possuigrande riqueza de vocbulos para designar detalhes minuciosos da

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    realidade geofsica, palavras essas inexistentes em ingls, tais como:cho arenoso, vale semicircular ou cavo, desfiladeiro sem gua, desfila-deiro com regos dgua, lenis dgua ou brejos, falda de montanha ouescarpa de desfiladeiro que no recebe sol, regio ondulosa cortada depequenas lombadas montanhosas. (Sapir, 1969, p. 46). O importante que cada um desses conceitos expresso por uma s palavra em paiute.Isso testemunha quo vital o papel da gua para essa comunidade. Em

    razo das condies desrticas de seu meio ambiente, os paiutes desen-volveram sua percepo para detectarem os menores sinais de possibi-lidade de existncia de gua no solo, formulando conceitos precisossobre a realidade fsica e denominando-os com palavras especficas.

    2.3 A no-equivalncia entre o vocabulrio das lnguas naturais

    Consideremos outro exemplo do relativismo lingstico, essefornecido por Hockett (Chinese versus English, Hoijer, 1954, p. 120).Esse lingista fez um confronto entre o chins e o ingls, demonstran-

    do como no existe equivalncia entre as estruturas lxicas de uma ede outra lngua. Ampliei uma das ilustraes oferecidas por Hockett,acrescentando o portugus na comparao. Confronte-se:

    termos designadores de frutasem ingls, chins e portugus:

    INGLS CHINS PORTUGUS

    Strawberries yng mi, tsaumi morangos

    Berries

    Fruit shweigwo fruta

    guo * Obs:guo = frutas e/ou nuts

    Note-se que o chins e o portugus no tm correspondentespara berries e que o ingls e o portugus no tm palavras equivalen-

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    tes aguo. Por outro lado, o portugus e o ingls possuem o arquilexema(hipernimo)fruta,fruit; o chins possui o arquilexemaguo, que tantoo portugus como o ingls no possuem. Se confrontarmos o portu-gus e o ingls, o termo ingls nuts constituzi outro ndice do relati-

    vismo lingstico. O Webster define nutassim: < semente ou frutoseco que possui uma casca e miolo ou polpa interior; tambm o pr-prio miolo ou casca >. Ora, o portugus no possui nenhum termopara designar este conceito.

    No livro Como aprendi o portugus, e outras aventuras, PauloRnai (famoso intelectual e tradutor de origem hngara) relata um casoemblemtico sobre os descaminhos da traduo. Ele estava traduzindopoemas do portugus para o hngaro. Num dado momento, Rnai ten-tava entender a aluso aos morros cariocas nos poemas de cunho socialque estava traduzindo. Consultando por correspondncia um jovem po-eta brasileiro, o referido poeta deu-lhe uma lista de sinnimos para apalavra morro, a saber: colina, outeiro, etc. Ora, Rnai continuava noentendendo. Depois de ter feito vrias consultas ao seu correspondentepor carta, ele finalmente chegou ao valor correto da palavra morro na-

    quele contexto especfico : conjuntos de habitaes populares tosca-mente constitudas e desprovidas de recursos higinicos. Esse fato do-cumentava uma situao oposta ao meio ambiente de sua cidade Bu-dapeste. A moravam os ricos em palacetes construdos nos morros dacidade, justamente o oposto do Rio de Janeiro onde morro sinnimodefavela. Portanto, embora morro possa ser traduzido por seu equiva-lente em hngaro ao nvel da denotao, ao nvel da conotao a equi-

    valncia no existe, confirmando o relativismo lingstico.

    Comparando dois ou mais pares de lnguas, podemos multiplicar

    ao infinito os exemplos ilustrativos desse fenmeno da univocidade dovocabulrio de uma lngua por oposio a outro ou outros idiomas. Issoocorre at mesmo entre lnguas da mesma famlia lingstica que tmgrande semelhana estrutural como o caso das lnguas latinas. Eisexemplos entre francs e portugus e entre o espanhol e o portugus.

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    FRANCS PORTUGUS

    chmage = tempo passado sem trabalhar; interrupo do trabalho

    dbouch = sada que permite passar de um lugar fechado para um lu-gar mais aberto; modo de escoar (vender) um produto; pers-pectiva que se abre

    dtente = diminuio da tenso internacional

    Podemos considerar estas palavras intraduzveis em portugus,isto , sem um equivalente exato.

    Entre o espanhol e o portugus podemos alistar uma grandesrie dos chamados falsos amigos em que o significado da palavraem cada uma dessas lnguas no corresponde absolutamente queleque seria esperado na lngua alvo, tendo em vista vocbulo de formasemelhante na lngua de partida.

    ESPANHOL PORTUGUS:

    aposentar = hospedar, isto , dar um aposento a algum

    cena = ceia, a ltima das refeies do dia

    padre = pai

    pitar = apitar, buzinar; assobiar vaiando

    risco = penhasco alto

    Alguns exemplos mais:INGLS PORTUGUS:

    cup of tea = aquilo que a preferncia, a predileo de algum

    to make a hit =fazer sucesso

    a hit= um sucesso

    A no-equivalncia semntica entre os signos lingsticos de duasou mais lnguas o mais eloqente exemplo de como cada lngua re-corta o universo cognoscvel sua maneira, na criao de seu repert-rio lexical. Essa discrepncia entre o lxico das lnguas naturais atinge

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    seu pice no domnio das expresses idiomticas. Algumas ilustraesdeste fenmeno:

    ingls: heads and tails = port. cara ou coroa, ou ainda:

    ingls: heads and tails = par ou mpar

    inversamente do portugus para o ingls:ser pau para toda obra = be a jack of all trades

    bater na porta errada = to bark up the wrong tree

    confiar desconfiando = take it with a grain of salt

    let bygones be bygones = o que passou passou

    ao Deus dar = from hand to mouth

    vamos abrir o jogo = lets put the cards on the table

    De fato, a expresso idiomtica proposta aqui como traduoem cada um desses casos nunca exatamente igual na outra lngua;trata-se apenas de uma aproximao, visto como as expresses idio-

    mticas exprimem caractersticas tpicas de uma dada cultura. Exem-plos de expresses idiomticas do portugus praticamente intraduzveisso quebrar um galho, dar um jeitinho, ambas de sentido muito seme-lhante, exprimindo aspectos tpicos de nossa cultura brasileira em quese procura contornar tudo aquilo que no contornvel. Creio queno possvel exprimir corretamente o significado dessas expressesnem em ingls, nem em francs. Talvez em nenhuma outra lngua.

    Esse fato sempre gerou grandes problemas para os tradutores.O famoso adgio italiano traduttore, traditore, isto , tradutor, trai-dor, baseia-se nesse sentimento da distoro do sentido operado na

    traduo de uma lngua para outra. De fato, mesmo entre lnguas toprximas como o portugus e o espanhol a traduo freqentementealtera o sentido original da lngua de partida.

    Alm dos vocbulos que nomeiam seres, coisas, um caso tpicode relativismo lingstico o dos pronomes de tratamento. As equiva-

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    lncias praticamente no existem entre duas ou mais lnguas, porqueo sistema pronominal de tratamento se refere a um sistema socialestruturado no interior de uma cultura. s vezes, temos at a falsaimpresso de que pronomes semelhantes entre culturas afins so equi-

    valentes. Consideremos a frase latina Ave, Caesar, morituri te salutant,que os gladiadores romanos proferiam diante da tribuna do impera-dor romano no Coliseu antes de combaterem os lees; ela poderia sertraduzida por: Salve, Csar, aqueles que vo morrer te sadam. Ora, ote do portugus no corresponde ao te do latim clssico; de fato, aoposio se estabelece entre o singular tu e o plural vos no latim. O tuem latim pode ter um tom solene enquanto em portugus o te colo-quial.

    possvel traduzir por aproximao, no perfeitamente, sobre-tudo poesia. No caso de uma composio potica a traduo sempreadultera o original; a rigor, para apreender o significado de um poemaem sua plenitude, preciso saber a lngua em que ele foi escrito. E tambm por causa dessa impossibilidade de estabelecer equivalnciasperfeitas entre o lxico de duas lnguas que a traduo automtica via

    computador continua sendo uma utopia, e talvez ser sempre assim.Por conseguinte, no podemos usar como parmetro para todas

    as lnguas, as categorias lingsticas do indo-europeu, pois o indo-europeu apenas uma dentre as dezenas de famlias de idiomas exis-tentes no mundo. medida que formos conhecendo mais e mais ln-guas, certamente iremos conhecer novas formas de categorizar o uni-

    verso e a experincia.

    Vrios lingistas aceitaram parcialmente a hiptese Sapir-Whorf,embora ressalvando que s se pode admitir uma verso moderada

    dessa teoria. Pode-se certamente admitir que a linguagem influenciao nosso modo de percepo da realidade (Schaff, 1974, p. 254). Ade-mais muito difcil comprovar cientificamente o relativismo lings-tico. Seria necessrio testar essa hiptese usando um volume muitogrande de dados para um nmero igualmente grande de lnguas de

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    famlias lingsticas muito distintas e historicamente isoladas, de modoque no tivesse ocorrido nenhuma influncia mtua entre as lnguasque seriam usadas para comprovar ou refutar a hiptese do relativismolingstico. Eis o problema que se pe: como verificar em que medidao comportamento humano afetado pelas categorias lingsticas dalngua que o indivduo fala? Como a lngua influencia o conhecimentoe o modo de ver a realidade? Tem-se que admitir, sem dvida, que umalngua constitui uma forma de representao da realidade, sobretudoo lxico dessa lngua; muito difcil, porm, comprovar experimental-mente como opera esse relativismo lingstico.

    Nas dcadas de cinqenta e sessenta, alguns lingistas americanoscomo John Carroll, R. Brown, E. Lenneberg e J. Casagrande resolveramcolocar prova essa teoria, realizando vrias pesquisas para test-la.

    Entre os numerosos tipos de testes usados por esses e outroslingistas para comprovar ou refutar a tese do relativismo lingsti-co, escolheram as cores como estmulo ideal por causa de sua nature-za fsica. Os pesquisadores buscavam determinar a correlao entreum estmulo fsico e o processo de nomeao/categorizao, resultan-te desse estmulo. Os testes foram aplicados tanto a falantes nativosdo ingls como a falantes nativos de lnguas indgenas como o navajoe o zuni. O objetivo desta pesquisa foi testar a atribuio de um nomea uma cor.

    A vantagem da escolha das cores que se trata de um tipo deestmulo universal, alm do fato de que se pode realizar experimentoscontrolveis, em que se pode trabalhar com medies e parmetrosobjetivos para controlar a percepo dos sujeitos. Utilizaram o mapade cores de Munsell, selecionando 24 cores. Nos testes os pesquisa-dores usaram cartes coloridos. As cores desses cartes eram de dois

    tipos: 1) saturao mxima como foco bsico da cor e 2) nuanas des-sas cores nas margens de transio entre as cores do espectro. Quan-do se tratava do foco de saturao mxima da cor, todos os sujeitosusavam o mesmo nome para denomin-la. Inversamente, as hesita-es por parte dos sujeitos na nomeao das cores, bem como as

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    discordncias quanto aos nomes dados pelos falantes ao estmulo co-lorido, ocorriam no caso de cores nuanadas nos limites da escalacromtica entre os focos de saturao. Nesses casos os sujeitos come-avam a usar adjetivos qualificativos para tentar caracterizar o matizda cor: vermelho amarelado, vermelho sujo, alaranjado pardo, etc.

    Ora, quando uma lngua tem uma palavra para nomear uma ca-tegoria, sobretudo se esse vocbulo for uma palavra curta por exem-

    plo, verde certo que, muitas e muitas vezes no passado, seus falan-tes a utilizaram para referir essa categoria. Pode-se considerar, portan-to, que essa categoria tem um alto ndice de codificao. A medida dedeterminao do nome correlacionada com a latncia da resposta foidenominada por Brown e Lenneberg de codificabilidade. A codificabi-lidade , pois, uma medida de concordncia entre os falantes de umalngua em dar um mesmo nome ao mesmo estmulo; no exemplo empauta, uma cor. Uma boa concordncia entre os falantes (isto umacodificabilidade alta) pode dever-se a dois fatores independentes: o

    vocabulrio da lngua pode oferecer aos falantes uma palavra muitocaracterstica, nica e no-ambigua para um estmulo muito especfi-

    co. Por exemplo: vermelho para designar a cor fsica do sangue. Ouento, o estmulo pode ter sido bem pouco codificado na lngua, masser-lhe atribudo um realce especial num determinado contexto porexemplo, o cabelo vermelho. Alis, ficou evidente tambm que certascategorizaes culturais manifestam-se claramente nas denominaesem que os falantes usam sistematicamente o mesmo nome para umacor, ainda que se trate de uma nuana pouco caracterstica de umadada cor. o caso, por exemplo, na lngua inglesa, do uso de red (ver-melho)para designar a pele dos ndios americanos.

    Outro fenmeno curioso revelado por estes testes: foi mostradaa um sujeito uma determinada cor num carto colorido; essa pessoa

    nomeou-a de alaranjado pardo. Posteriormente a mesma nuana foinomeada pelo mesmo sujeito como ocre. Explica-se: no caso da corisolada, a pessoa interrogada nomeava-a da forma que lhe parecia maisadequada sua percepo. Entretanto, quando essa mesma cor apare-ceu em outro contexto, em outra moldura cultural, o falante chamou a

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    mesma cor de outra forma, a saber: ocre. Isso porque, nesse segundocaso, a mesma cor aparecia nas paredes de uma vila italiana.

    Outros testes evidenciaram que a capacidade de identificar umreferente e de lhe dar um nome tem algo a ver com a estruturaosemntica mental dos falantes em virtude de sua lngua materna. aqui que entrariam os esteretipos da percepo moldados conformeessa lngua materna. De qualquer forma os resultados das pesquisas

    no confirmaram a hiptese de que existe uma presso tirnica daspalavras sobre a cognio humana como afirmava o relativismo lin-gstico de Whorf.

    Foi possvel concluir tambm que os sujeitos utilizam os recur-sos disponveis no vocabulrio da sua lngua materna para a refern-cia. E mais: os conceitos que podem ser nomeados e facilmente for-mulados no idioma nativo dos falantes so mais fceis de adquirirporque j se encontram codificados no lxico desse idioma.

    Resumindo: as diferenas entre as lnguas, fato que tanto impres-sionou Whorf, no devem interferir no processo cognitivo. fatoinconteste que nossas caractersticas biolgicas entre as quais se en-contra a capacidade de conceptualizao e um modo peculiar decategorizao so comuns a todos os homens. indiscutvel que o pro-cesso de formao de conceitos deve ser regulado de alguma forma pordeterminantes biolgicos; portanto, em todos os idiomas a nomeaodeve ter propriedades formais bastante similares. As lnguas naturais sedistinguem por seus processos de conceptualizao especficos, que serefletem no seu vocabulrio. Contudo, como os falantes utilizam as pa-lavras livremente para etiquetar seus prprios processos de conceptua-lizao, o significado esttico das palavras registrado pelos dicionriosno parece restringir as atividades cognitivas dos falantes.

    importante tambm concluir que a transmisso do repertriolexical de gerao em gerao atravs da educao informal e formalexerce papel importante na categorizao/ conceptualizao do uni-

    verso, ao fornecer ao indivduo um estoque de nomes j codificadosnessa cultura.

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    preciso lembrar ainda que o vocabulrio no criado (ou recria-do) pelo indivduo mas que ele adquirido atravs do processo socialda educao. De fato, atravs do processo de educao social o homemadquire tanto a lngua da sua comunidade como o seu vocabulrio. Nes-sa aprendizagem o falante-aprendiz recebe da sociedade um produtoacabado a lngua que vem a ser o produto da experincia acumuladahistoricamente na cultura da sua sociedade. Essa cristalizao da expe-rincia social tanto cultural como lingstica o ponto de partida e ofundamento tanto do pensamento como da linguagem individual. En-quanto ponto de partida social do pensamento individual, a linguagem a mediadora entre o que social, dado, e o que individual, criador,no pensamento individual. Na realidade, a sua mediao exerce-se nosdois sentidos: no s transmite aos indivduos a experincia e o saberdas geraes passadas, mas tambm se apropria dos novos resultadosdo pensamento individual, a fim de os transmitir sob a forma de umproduto social s geraesfuturas.(Schaff, 1974, p. 250-1). Nessa pas-sagem Schaff est-se referindo ao pensamento na sua correlao com alinguagem. Contudo, podemos parafrasear suas idias aplicando-as

    lngua materna enquanto sistema de categorizao do universo, bemcomo seus reflexos no acervo vocabular desse mesmo idioma. E sendo alngua essa mediadora, ela transmite s novas geraes o vocabulriorevisto e reformulado pela atual gerao. Ela vai transmitindo tambmas novas criaes vocabulares e obviamente conceptuais que os indiv-duos da atual gerao vo gerando e incorporando ao tesouro lexical dalngua para deix-lo como patrimnio aos que se lhe seguirem.

    3. A DIMENSO LINGSTICA DA PALAVRA

    3.1. O signo lingstico. Significado e referncia

    Em seu Cours de linguistique gnrale, Saussure formulou o mo-delo clssico do signo lingstico, estabelecendo alguns axiomas bsi-

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    cos sobre o problema da significao. O primeiro axioma o da rela-o indissolvel entre um conceito e uma imagem acstica.

    O signo lingstico une no uma coisa e um nome, mas umconceito e uma imagem acstica. (edio De Mauro,1994, p. 98)[...]O signo lingstico pois uma entidade psquica com duas faces quepode ser representado com a figura seguinte, adaptada do modelosaussuriano:

    "RVORE"

    ARBORARBOR

    Saussure props manter signo lingstico como termo tcnico

    para o conjunto total e substituir conceito e imagem acstica respec-tivamente por significado e significante.

    significado

    significante

    signo lingstico

    Depois de definir signo lingstico, Saussure constatou que aarbitrariedade uma caracterstica bsica do signo lingstico. Contu-do, preciso fazer uma ressalva sobre o termo arbitrrio. No se deve

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    pensar que o falante escolhe livremente o significante. O signo lin-gstico imotivado, isto , arbitrrio com relao ao significado (p.101), ou seja, com respeito ao significado, o significante no tem ne-nhuma relao natural com a realidade.

    No captulo Imutabilidade e mutabilidade do signo do Cours,Saussure afirma que a comunidade lingstica impe ao falante umsignificante e que o signo lingstico escapa nossa vontade. De fato,

    seja qual for o momento histrico em que focalizarmos o idioma, alngua evidencia-se sempre como uma herana de pocas anteriores.Podemos imaginar que, num momento preciso, se estabeleceu uma cor-relao entre um significante e um significado, ou seja, foi atribudo umconceito a um referente; contudo, esse fato quase nunca constatado.

    A certido de nascimento das palavras no registrada. Por conseguin-te, estamos diante de um paradoxo. De um lado, parece que o falantetem total liberdade de escolha do signo lingstico, podendo categorizare recategorizar os dados da realidade livremente, embora use modelosde categorizao prontos que a educao lingstica introjetou em suamente. De outro lado, o vocabulrio da lngua manifesta-se como um

    acervo cultural um produto herdado das geraes precedentes.E por causa dessa herana que Saussure reitera o fato de que o

    signo imutvel. Segundo Saussure, o signo resiste a qualquer substi-tuio arbitrria porque a lngua uma instituio social. A primeirarazo para justificar a imutabilidade do signo exatamente o fato de eleser arbitrrio. Como argumenta Saussure, se o signo fosse fundamenta-do em uma norma racional poderia ser contestado; mas como isso noocorre, o carter arbitrrio da sua cunhagem o protege contra substitui-es. A segunda razo o nmero elevadssimo de signos (palavras) deuma lngua. Assim sendo, o vastssimo vocabulrio de uma lngua, for-

    mando um sistema estruturado, impe comunidade dos falantes ummecanismo to complexo que ela impotente para transform-lo. Efinalmente deve-se considerar a inrcia a toda inovao lingstica.

    Continuemos a parafrasear/ refletir sobre as idias de Saussure. Alngua utilizada por todos a todo momento; difundida na comunidade

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    dos falantes e manipulada por ela, a lngua algo de que todos os indi-vduos se servem todo dia. Nesse sentido, no se pode estabelecer com-parao entre ela e as outras instituies. As prescries de um cdigo,os ritos de uma religio, os sinais martimos, etc., s ocupam simultane-amente um determinado nmero de indivduos e durante um tempolimitado; a lngua, pelo contrrio, cada um participa dela a todo instan-te, e por isso que ela sofre sem cessar a influncia de todos. Esse fato

    fundamental basta para mostrar a impossibilidade de uma revoluo. Alngua de todas as instituies sociais aquela que propicia as menorespossibilidades s iniciativas [individuais]. Ela faz corpo com a vida damassa social, e essa, sendo naturalmente inerte, manifesta-se claramen-te como um fator de conservao. (p. 107-8). Essa fixidez advm dofato de que a lngua se situa no tempo, continuando duradouramentenuma comunidade de falantes atravs das idades. o tempo que alteraos signos lingsticos e que introduz outro fator importante: a mutabili-dade do signo. Assim mutabilidade e imutabilidade so solidrios e cons-tituem as duas faces da moeda. Na verdade o signo no muda integral-mente de uma vez; as alteraes vo se verificando paulatinamente atra-

    vs da histria. Embora seja difcil determinar as causas das mudanasocorridas no signo lingstico, elas acarretam um deslocamento da re-lao entre o significado e o significante. Essa uma das conseqnci-as da arbitrariedade do signo lingstico. esse carter arbitrrio quedistingue a lngua de todas as outras instituies sociais.

    E em que se baseia a mutabilidade do signo? Ela decorre, em par-te, das mudanas culturais operadas na sociedade no decorrer da hist-ria; e, em parte, da ao desses fatores sobre a lngua falada por umamassa considervel de falantes. Um exemplo desse tipo de mudanasocorre na classe do substantivo que simboliza o modelo ideal de signo

    lingstico. Um caso tpico o envelhecimento e morte de palavras emconseqncia do desaparecimento de instituies, costumes e objetos.

    Veja-se, a ttulo de ilustrao, algumas palavras que desapareceram doportugus contemporneo porque a coisa designada no existe mais,ou no se usa mais: aguazil, bacamarte, candeeiro, canga, caravela, cas-

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    tial, ceroula, coche, mucama, palmatria, senzala, tlbure, etc. Essesvocbulos s ocorrem em textos ou referncias histricas do passadode nossas sociedades brasileira e portuguesa. s vezes, pode ocorrer areutilizao de um significante para designar um novo conceito. o quedizia Saussure sobre o deslocamento da relao entre significado esignificante. Um exemplo a palavra candeeiro acima referida. No por-tugus brasileiro ela desapareceu; porm, no portugus europeu ela

    designa uma luminria qualquer, um artefato qualquer que produz luz.Inversamente, no portugus europeu j no se usa a palavra aougue,substituda por talho, enquanto no Brasil continuamos a designar lo-cal, estabelecimento comercial onde se vendem carnes por aougue.Em outras classes de palavras como o verbo e o adjetivo as mudanasso mais lentas e menos radicais. Eis exemplos de como se alteraramconceitos de verbos como surgire treinar. No portugus renascentistasurgirsignificava aportar, lanar ferro no porto; logo era termo tcni-co da marinha. O dicionarista Moraes (edio de 1813) abona essa defi-nio com dois autores do sxulo XVI: Joo de Barros e Diogo do Couto.O dicionarista Aulete (1 ed. 1881) citando Frei Luis de Sousa, tambmdo sc. XVI, define surgir:aparecer ou chegar por via martima, aportar,ancorar. Constatamos assim como mudou o conceito desse verbo queno s ampliou largamente sua rea de significao, como deixou de sermonossmico para tornar-se polissmico no portugus contemporneo.Mais curioso ainda o caso do verbo treinar. Segundo Moraes (1813),citando como abonaoA arte da caa (sc. XV ou XVI ?), eis o significa-do de treinar: acostumar a ave de caar com o cevo da sua ral, para aacostumar a empolgar nelas pelo gosto do costume [atualizei a orto-grafia]. Vemos, pois, que um significado tcnico extremamente especfi-co, usado apenas no domnio da caa para uma ave de rapina (o falco),

    expandiu-se muito. Hoje significa tornar apto, capaz de realizar umadeterminada tarefa ou atividade, isto , atualmente o verbo se aplica aqualquer atividade tcnica ou prtica e embora continue a ser usadopara animais, mais usado para humanos. Assim falamos de treinarcavalos, mas tambm de treinar professores, soldados, esportistas.

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    Modernamente esse verbo usado com maior freqncia no domniodo esporte para designar fazer exerccios tcnicos para se tornar umbom atleta em qualquer esporte como futebol, vlei, natao, tnis eat mesmo se diz treinar Frmula I , Frmula Indy, ou seja, o verbo seaplica tambm a dirigir carro em corridas de alta velocidade.

    No artigo muito conhecido Natureza do signo lingstico, Ben-veniste critica a formulao do conceito de signo por Saussure, apon-

    tando alguns senes, mas tambm fazendo reparos indevidos (1976,p. 53-9). Ao assinalar que o francs boeuf [=boi] e o alemo oks sereferem mesma realidade, o raciocnio de Saussure estaria falseado,exatamente porque ele no menciona a presena fundamental do ter-ceiro elemento que deveria ser considerado para estabelecer o signolingstico, a saber: a realidade. O argumento principal de Saussure paracomprovar a arbitrariedade do signo seria invalidado, pois o fato deduas lnguas diferentes atribuirem nomes diferentes ao mesmo referen-te fsico no pertinente para Benveniste. Contudo, esse argumento deque o signo arbitrrio por no ter nenhuma ligao com a realidade

    no o ponto crucial. A meu ver, o que est implcito no texto de Saus-sure que a nomeao de um referente com este ou aquele nome que arbitrria. Isto , no ato de nomeao, o nomeador poderia atribuirqualquer nome (significante) a qualquer objeto da realidade. Mas claroque Benveniste tem razo ao insistir no papel da realidade na configura-o do signo, o que ser discutido mais adiante. Continuando com aargumentao de Benveniste. Um dos componentes do signo, a ima-gem acstica, constitui o seu significado. Entre significante e o significa-do, o lao no arbitrrio; pelo contrrio, necessrio . (1976, p. 55)Ora, julgo que no bem isso que Saussure chama de arbitrrio. Claroque Benveniste tem razo na sua argumentao quando afirma que, no

    seu esprito (ou de qualquer falante), esto indissoluvelmente associa-das essas duas faces do signo. O conceito (significado) boi foro-samente idntico na minha conscincia ao conjunto fnico (significan-te) boi. (1976, p. 55) O significante a traduo fnica de um concei-to; o significado a contrapartida mental do significante. Essa consubstan-

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    cialidade do significante e do significado garante a unidade estrutural dosigno lingstico. (1976, p. 56) Assim, Benveniste julga at intil defen-der o princpio da arbitrariedade do signo; contudo, admite que ao di-zer que o signo imotivado, Saussure tocou o ponto fundamental. Benve-niste aplaude tambm as concluses notveis tiradas por Saussure dessaspremissas, a saber: a mutabilidade e imutabilidade do signo lingstico.Tambm acolhe a teoria saussuriana a respeito do valor lingstico e da

    sua relao com o fato de que a lngua um sistema de signos.Diversamente de Saussure e mesmo de Benveniste, o lingistaitaliano Mario Alinei argiu a questo da motivao no processo denomeao dos elementos da realidade. Mostrou como o signo moti-

    vado no momento de sua criao. Nesse momento de gnese, as ca-ractersticas distintivas do referente sero individualizadas e ressalta-das, motivando o nome aposto a esse referente. Esse semanticista fezescola na Europa. Um dos melhores trabalhos de sua escola foi o rea-lizado por ele e seus discpulos sobre o arco-ris. A conceptualizaodeste mesmo referente materializou-se de modo bastante distinto em

    vrias lnguas europias, cada cultura destacando um conjunto de tra-

    os desse fenmeno fsico. Assim, a definio de arco-ris varia emcada cultura, dependendo de crenas e outros aspectos culturais queenvolvem esse objeto. Reconhece Alinei que, na gnese, a nomeao motivada; porm, com o passar do tempo e a permanncia do signo, apalavra pode tornar-se opaca em sua significao. A elucidao damotivao semntica original dos nomes levaria descoberta daetimologia da palavra e da histria de sua evoluo semntica.

    3.2 O valor lingstico da palavra

    O que vem a ser o valor lingstico de uma palavra para Saussure?O valor constitui um dos aspectos do significado de uma palavra. Se o

    valor fosse excludo a lngua seria reduzida a uma simples nomencla-tura (Cours, 1985, p. 158). A lngua um sistema onde todos os ter-

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    mos so solidrios . (idem, p. 159) O valor de um signo resulta da pre-sena simultnea dos outros signos dentro do sistema e aos quais ele secontrape, formando uma rede semntica.

    Vejamos um exemplo para ilustrar as relaes smicas de oposi-o existentes num conjunto de signos relacionados. Em portuguspara exprimir a qualidade de um ser, de uma coisa, de um estado, deum fato que dura muito, que dura sempre, que dura para sem-

    pre, que no muda, que pouco sujeito a mudanas, ou ainda,porque dura sempre existe sempre, est sempre presente, vriosadjetivos compem uma variada e complexa rede de significaes, asaber: duradouro X durvel X inaltervel X invarivel Xconstante Ximutvel X permanente X perptuo X perene. As oposies existentesentre cada uma dessas palavras e todas as outras e as demarcaes defronteiras significativas entre elas vo criando o valor prprio de cadaum desses adjetivos atributivos. As variegadas nuanas de sentido seestabelecem pelo acrscimo ou eliminao de traos significativos.Comparando cada uma dessas palavras com as outras similares domesmo campo semntico, vo-se evidenciando as oposies e con-

    trastes de sentido. Veja-se o valor desses adjetivos em combinatriacom substantivos aos quais atribuem qualidades: EFEITO duradouro XCARTERduradouro X MATERIAL durvel X TECIDO durvel X CON-DUTA inaltervel X SORRISO inaltervel X PERGUNTA invarivel X RES-POSTA invarivel X AUMENTO constante X COMPANHIA constante XTEMPERATURA constante X CMBIO imutvel X EXPRESSO imutvelX ASSENTO permanente X MEMBRO permanente X RESIDNCIAper-manente X JAZIGO perptuo X DESCANSO perptuo X DITADORper-ptuo X ATUALIDADE perene X FONTE perene.

    Este exemplo demonstra claramente que o valor de uma palavra

    dentro do sistema emana da complexa rede de significaes que setece no interior do lxico de uma lngua. Parafraseando Saussure, po-demos afirmar que o valor que se soma ao significado bsico de umsigno puramente diferencial; esse valor definido no por seu con-tedo (semntico) mas negativamente por suas relaes com os ou-

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    tros termos do sistema. A caracterstica fundamental de cada signo ser o que os outros signos no so. (Cours, p. 162)

    3.3 Termos tcnicos e nomes prprios

    Seguindo a concepo de Hjelmslev, pode-se partir da substn-

    cia do contedo para a forma do contedo. Nessa perspectivaonomasiolgica parte-se do conceito para a denominao lingstica.Nesse outro plo, deparamo-nos com os termos tcnicos. Aqueles cujosconceitos se impem de fora do sistema lingstico, dados pela rea-lidade cognitiva descrita e interpretada pelas cincias. Nesse novouniverso de significao um termo tcnico de uma lngua A tem equi-

    valente exato em outra lngua B. Melhor dizendo: esses termos souniversais, internacionais; eles pairam acima do relativismo e dasidiossincrasias lingsticas e designam um referente identificado e dis-criminado de modo idntico por qualquer lngua natural. Trata-se deum autntico caso de universal lingstico no mutvel universo dosidiomas naturais.

    O termo tcnico no o nico signo em que o conceito total-mente caudatrio do universo extra-lingstico. Quando o referente um objeto da realidade fsica a nomeao pode chegar a um grau m-ximo de identidade entre palavra e coisa referida, praticamente identi-ficando o nome com seu referente. o caso dos nomes prprios, so-bretudo topnimos. Freqentemente no processo de nomeao, onomeador levou em conta caractersticas tpicas do referente paranome-lo. Consideremos alguns topnimos brasileiros adaptados do tupi.O significado do nome nessa lngua descreve as caractersticas fsicas do

    referente: Iguau [ = gua grande]; Par[ = o mar, o rio volumoso referncia ao rio Amazonas];Pindorama [ = a regio ou o pas das pal-meiras];Araraquara [ = o refgio das araras]; Caraguatatuba [ = o stiodos gravats onde abundam essas plantas]. No fenmeno da toponmiao nome fica definitivamente colado ao referente, passando at de uma

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    lngua para outra muito diversa, como acabamos de constatar nessesemprstimos feitos ao tupi pelo portugus brasileiro. Nesse contextodesaparece a caracterstica dinmica da atribuio de um nome/pala-

    vra a um referente. Deve ser por isso que normalmente se tem a sen-sao de que os nomes prprios no fazem parte da lngua, ou me-lhor, no integram o vocabulrio da lngua. Assim, o nome prpriopode ser considerado como um caso parte do signo lingstico, tan-

    to os topnimos como os antropnimos.Nas culturas arcaicas geralmente os nomes atribudos s pesso-as tm um significado, indicando, muitas vezes, a vocao, ou o desti-no do indivduo. Na cultura hebraica antiga, o livro do Gnesis explicaassim o nome daprimeira mulher: Ela ser chamada Mulher, pois foitirada do homem. (Gen.II, 23) Tambm o patriarca dos hebreus, aque-le de quem descende toda a nao judaica, teve seu nome alteradopelo prprio Deus, o que explicitado na seguinte passagem doGnesis: No te chamaro mais com o nome de Abro, mas teu nomeser Abrao, pois te concederei tornar-te o pai de uma multido denaes... (Gen., XVII, 5)

    Muitas so as culturas primitivas em que o nome tem um signifi-cado ligado quilo que se acredita ser a essncia da pessoa. O antro-plogo Akinnaso, da Nigria, num curioso estudo sobre a basesociolingstica dos nomes prprios em yoruba lembra o escritor LewisCarrol no livro Atravs do espelho: Meu nome Alice...[...] O quesignifica? Um nome tem que significar alguma coisa? perguntou Ali-ce ambigamente. Na sua cultura yoruba a nomeao de uma crianarecm-nascida um ritual, uma festividade celebrada em comunidadepor parentes, amigos, vizinhos, conhecidos. A cerimnia de nomea-o constitui uma iniciao simblica do beb na sociedade e na vida.

    Atravs dessa cerimnia, a criana introduzida no sistema de valoresda sociedade yoruba. O nome que atribudo criana evidencia cla-ramente que ela vista como um reflexo da ordem social, pois so oseventos, valores, e crenas da sua famlia ou comunidade que forne-cem as regras para a criao do nome do beb. Ora, o nome para o

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    yoruba se identifica com a essncia da pessoa. Parafraseando o antro-plogo, poderamos dizer: aquilo que chamamos rosa, se tivesse ou-tro nome no teria um cheiro to suave e poderia at cheirar mal, oupoderia nem cheirar! (Akinnaso, 1980, p. 299)

    3.4 O tringulo da significao

    No estudo Kaspar Hauser ou a fabricao da realidade, I. Bliksteinexamina as principais teorias sobre o signo lingstico, analisando asidias de Saussure, Peirce, Ogden e Richards, S.Ullmann, Kurt Baldinger,Umberto Eco e Greimas. Faz crticas muito pertinentes s formulaestericas de todos esses lingistas, sobretudo no caso dos cinco primei-ros por terem eles virtualmente ignorado a fabricao da realidade nainterpretao humana do universo cognoscvel. No vou repetir todasas crticas de Blikstein a essas teorias. Vou considerar que sua formula-o do conceito de signo lingstico aquela que devemos endossar.Contudo, gostaria de fazer algumas ressalvas. Julgo que muito emboraBlikstein tenha razo ao criticar a postura logicista de Ogden e Richards,no me parece justo censurar os demais tericos Ullmann, Baldingerou Eco por no terem ido alm do tringulo da significao.

    S Heger foi alm do tringulo, propondo uma nova configura-o a de um trapzio representao equivocada, que no teve se-guidores, evidenciando esse fato a no-aceitao deste novo modelo.Parece que a emblematizao da semiose em forma de tringulo insubstituvel. Quero dizer: quando um cientista formula um modeloterico que d conta dos fenmenos, no carece substitu-lo; cabe tosomente aperfeio-lo. E isso que cada um dos sucessores de Ogden

    e Richards foram fazendo como mostrou Blikstein em seu livro. A cadanova formulao do tringulo foi registrado um avano na interpreta-o do fenmeno da significao e sua correlao com o universo. Otringulo de Ullmann, por exemplo, j traduz para a linguagem da Se-mntica a simbolizao proposta por seus antecessores. Baldinger

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    percebeu alguns elementos mais, a saber: no vrtice do nome apare-cem como parassinnimos: significante e imagem acstica, conceitosesses j definidos por Saussure. No segundo vrtice do tringulo indi-ca significado/conceito e no terceiro vrtice: realidade/coisa. Tambmme parece que Eco contribuiu para a interpretao do conjunto aoinvocar a unidade cultural. Devemos admitir com ele que o significa-do de um termo uma unidade cultural (apud Blikstein, 1995, p. 35).

    Ao discutirmos o relativismo lingstico de Whorf, ressaltamos aimportncia da cultura nas interpretaes e formulaes lingsticas.O vocabulrio de uma lngua compreende o conjunto de termos e deemblemas dessa cultura. Por isso discordo de Blikstein. No acho quea a noo de unidade cultural seja ambga. Pelo contrrio, ao invocara cultura na representao do tringulo semitico, Eco est legitima-mente introduzindo uma outra interface que os lingistas contempo-rneos (to formalistas!) tm ignorado. No subscrevo o modelo deEco ipsis litteris ; contudo, concordo que a dimenso cultural igual-mente fundamental. Seria possvel exemplificar com muitos smbolosculturais dependendo da lngua e da cultura no Brasil, por exemplo,

    no imaginrio popular, figuras como a mula sem cabea, o lobisomem.Um outro aspecto do problema igualmente importante: o signo

    lingstico constitui uma unidade lxica que faz parte do patrimniolxico-cultural herdado que o falante recebe e introjeta, embora tam-bm perceba e conhea atravs de seus sentidos e de sua capacidadecognitiva. E mais: importam tambm as estruturas sociais com suahierarquia correlata. Assim, alm dos vocbulos que nomeiam seres,coisas, um caso tpico de relativismo lingstico e dependncia cultu-ral so as formas pronominais de tratamento. As equivalncias prati-camente no existem entre duas ou mais lnguas, porque um sistema

    pronominal de tratamento se refere a um sistema sociocultural corre-lacionado com hierarquias sociais. s vezes, temos a falsa impressode que pronomes semelhantes entre culturas afins so equivalentes;podemos afirmar, contudo, que se trata de uma iluso. Basta conferirum exemplo entre outros, o caso do latim acima citado.

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    conceito/significado

    nome/palavra/ significante coisa/referente/objeto

    extra-lingstico

    realidade

    Tambm fiz minha adaptao do famoso tringulo da significao.

    A meu ver, esse emblema deve ser legitimamente atribudo a Ogden e

    Richards; todos os demais lingistas fizeram adaptaes dele como eu

    prpria estou fazendo. O objetivo de mais uma nova verso enquadrar

    a questo que me est ocupando, a saber: a dimenso lingstica da

    palavra. Na unidade anterior j foi discutido o processo da categorizao

    lingstica pelos sujeitos que, percebendo a realidade, a traduzem ou

    interpretam por meio de palavras, que nada mais so que etiquetas

    verbais apostas a conceitos. Desse processo resulta a nomeao da rea-

    lidade, ou do universo, gerando o vocabulrio das lnguas naturais. As-

    sim, concordo com Blikstein que o lado direito do tringulo no podeser de modo algum ignorado, ou posto na sombra, ainda que introduza

    enormes complicadores para a teoria lingstica.

    Por outro lado, a interpretao dos dados da realidade captados

    pelos sentidos, conceptualizados pela mente e cristalizados em pala-

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    vras, no coincide obviamente com a realidade nem se identifica comela. Coseriu afirma com razo: no se trata de estruturas objetivasda realidade ... mas de estruturaes impostas realidade pela inter-pretao humana. (apud Blikstein, 1995, p. 46).

    Embora no adote o modelo grfico de Blikstein para o tringu-lo, concordo com ele: lingistas e semilogos deveriam alargar suametodologia de anlise, voltando-se agora tambm para o lado direi-

    to do tringulo de Ogden e Richards em que se coloca o referente e explorando o mecanismo pelo qual a percepo/ cognio transfor-ma o real em referente. (Blikstein, 1995, 46). Os lingistas ignora-ram indevidamente o referente. Alguns como Umberto Eco chegam aafirmar que o problema do referente no tem qualquer pertinncia.Discordando, vou tambm fazer minhas as palavras de Blikstein:

    o referente um produto da dimenso perceptiva/cognitivado homem;

    o referente cognoscvel;

    o referente tem vinculao direta com a significao lingstica

    (na medida em que no , mas representa a realidade extra-lingstica).Portanto, o referente parte integrante e essencial do signo lin-

    gstico. E por isso que o modelo dicotmico do signo lingsticoproposto por Saussure se v definitivamente superado pela matriztridica do tringulo semitico. Como bem diz Blikstein no porquea realidade extra-lingstica que o referente deva ficar fora da Lin-gstica. De fato, a significao se origina e lana as suas razes nouniverso cognoscvel, interpretado e simbolizado por palavras. E oconjunto dessas palavras vem a ser o lxico da lngua. Podemos con-cluir, pois, que o conceito (significado) tributrio de uma realidade

    que o antecede e precede, realidade essa que nossa percepo/cogniopercebe e interpreta, criando o objeto mental ou unidade cultural aoqual atribumos um nome, isto , a palavra ou significante. Assim oreferente e o universo de que ele procede geram o fenmeno da signi-ficao.

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    ABSTRACT: The word is the cornerstone of human language. Several approaches may be usedto analyse this complex subject. We shall consider here the most important dimensions of thisentity: the magic value of the word and its creative power; the cognitive dimension associatedwith the question of naming and designation of reality, generating the vocabulary of naturallanguages; the significative dimension where the issue of the linguistic sign is analysed together

    with its relationship with reality.

    Keywords: word, lexical categorization, naming process, vocabulary of natural languages,linguistic sign.