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Diorama Acordaria disposto aos progressos, ainda que as mãos vagas em busca do despertador o traíssem já nos primeiros raios de consciência. Foi o vinho da véspera, em grandes goles, o que declarara que o dia vindouro seria, este sim, um outro dia. E o mesmo tônico era o único responsável por fazê-lo tombar os olhos na ribalta do espelho sobre a pia, enquanto espumava as gengivas com dentifrício. Nos fundos da arcada sentiu a retração dolorosa. Apertava muito forte a escova contra os dentes. A boca tinha gosto de pólvora. Era tão necessário fazer-se outro, não deixar-se levar pelo vórtice dos vícios miúdos. O que fazer se apenas o vinho o ajudava a apartar uma certa ligação telefônica? A saída era entrincheirar- se. Bebia antissocialmente. Reclusava a incontinência no apartamento, sob a fachada de uma falsa bonomia. Disposto a avançar, o langor predominava. Claro: trabalhava. Havia de. Mas estar desperto era outra coisa. Fazia tempo que não estava consciente, com os pensamentos como um jardim depois da chuva. Nos últimos ciclos, era aquela mistura suja de dia com a noite. E ele - o seu corpo, as suas ideias - nasciam desta franja indistinta. Não podia matutar demasiado. Porque aí lembraria que os meses também foram hiatos. Estivera abrigado, quiçá, a uma ideia obsoleta de contentamento. Toda aquela dispersão. E agora era ele e o apê. O mais era remoto. Um lugar desabitado, sim, se comparado aos fins de tarde de antanho, quando tios e pais e avó discorriam anedotas à mesa da cozinha. Aprendeu tarde que era assim que firmavam biografias. Ele não tinha com quem lembrar. Ele e o apê não palestravam. O apê, um pequeno município. Um prefeito, um habitante. Em pauta, o interruptor do banheiro. Para ganhar tempo, levou um abajur, que apenas divisava os contornos da ducha, dos óculos sobre o balcão. Uma gambiarra, adiando sem previsões a data de votação na assembleia. O plano b, o plano q.

Diorama

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Conto escrito por Tiago Novaes

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Diorama

Acordaria disposto aos progressos, ainda que as mãos vagas em busca do despertador o traíssem já nos primeiros raios de consciência. Foi o vinho da véspera, em grandes goles, o que declarara que o dia vindouro seria, este sim, um outro dia. E o mesmo tônico era o único responsável por fazê-lo tombar os olhos na ribalta do espelho sobre a pia, enquanto espumava as gengivas com dentifrício.

Nos fundos da arcada sentiu a retração dolorosa. Apertava muito forte a escova contra os dentes. A boca tinha gosto de pólvora. Era tão necessário fazer-se outro, não deixar-se levar pelo vórtice dos vícios miúdos. O que fazer se apenas o vinho o ajudava a apartar uma certa ligação telefônica? A saída era entrincheirar-se. Bebia antissocialmente. Reclusava a incontinência no apartamento, sob a fachada de uma falsa bonomia. Disposto a avançar, o langor predominava. Claro: trabalhava. Havia de. Mas estar desperto era outra coisa. Fazia tempo que não estava consciente, com os pensamentos como um jardim depois da chuva. Nos últimos ciclos, era aquela mistura suja de dia com a noite. E ele - o seu corpo, as suas ideias - nasciam desta franja indistinta.

Não podia matutar demasiado. Porque aí lembraria que os meses também foram hiatos. Estivera abrigado, quiçá, a uma ideia obsoleta de contentamento. Toda aquela dispersão. E agora era ele e o apê. O mais era remoto. Um lugar desabitado, sim, se comparado aos fins de tarde de antanho, quando tios e pais e avó discorriam anedotas à mesa da cozinha. Aprendeu tarde que era assim que firmavam biografias.

Ele não tinha com quem lembrar. Ele e o apê não palestravam. O apê, um pequeno município. Um prefeito, um habitante. Em pauta, o interruptor do banheiro. Para ganhar tempo, levou um abajur, que apenas divisava os contornos da ducha, dos óculos sobre o balcão. Uma gambiarra, adiando sem previsões a data de votação na assembleia. O plano b, o plano q.

O filtro, a chaleira, o açúcar e o leite, cada coisa num canto em uma cozinha miúda. A casa uma segunda pele. A ficção do avanço e de um dia novo. Duas horas de leitura, três horas de escrita, mais uma ou duas dedicadas às mensagens. Tão simples, e a conta não fechava. O manjericão estava murcho; talvez fosse a hora de trocar a roupa de cama.

Esteve contemplando figuras projetadas. As sombras daquelas garotas leves que dançavam no parque. Garotas que subiam nas árvores, que faziam estrelas no gramado, que liam poesia com a fé dos metafísicos. Para ele, as letras eram teclas sob um papel de parede que nem papel e nem parede eram, representando um atlas cuja imagem estática há muito não se divisava. Tudo o que manipulava eram pastas, arquivos, ícones. Justo ele, um iconoclasta.

Avançava; um avatar. Retomava as formas cíclicas. Um artesão, como o homem que faz cadeiras, sei lá. Estudava tanto. Conhecia um arsenal bíblico, bélico, de proposições. Articulava pensadores e isso o distraía. Incluía-os na história. E enquanto articulava edifícios, publicava aquilo e isto. E no entanto aquela aspiração

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ao perene fazia mal às suas costas. E talvez o menisco inflamado, a protusão lombar, a gastrite, o reumatismo e a calcificação do ombro esquerdo fossem traumas de uma guerra que não combateu. Fossem índices de uma negação. Os cálculos de uma inteligência sem corpo.

Que ramerrão, logo ao despertar. Deveria prolongar a manhã. Levou a xícara de café para a sacada, de onde avistava o parque e o céu crispado. Poucas semanas antes e aquele vazio era escusa para alegria. Mas então a ligação telefônica não parecia tão iminente. Tratava-se apenas de uma possibilidade feliz. Caso obtivesse uma resposta desfavorável, nada perderia.

Se ao menos pudesse telefonar ele próprio. Sabia que não era assim que funcionava. Para qual número? Não informavam. Havia um endereço eletrônico para as dúvidas, e só. Como formular perguntas a uma máquina? Quais nomenclaturas utilizar? E se acaso encontrasse alguém do outro lado da linha, um deslize ou mal-estar poria tudo a perder. Afinal, talvez a temperança fosse um critério avaliável. Um titubeio corresponderia a uma fraqueza de espírito.

A camiseta verde de um passeador de cachorros o remeteu ao sonho que o despertador dissipara. Já estava na II Guerra havia algumas noites. Deveria concluir uma tese, trancafiada num cofre dentro de um submarino que rumaria até a Patagônia. Embarcaria também, mas havia se esquecido da senha para acessar a tese. Tentava digitar os quatro números do cartão de crédito, e a trava não cedia.

Recordou de uma passagem de Imre Kertész (o Nobel, não o fotógrafo) que dialogando com Adorno afirmava que depois de Auschwitz só se poderia falar de Auschwitz. Sorte cronológica a de Proust, que não viveu o holocausto, que poderia escrever sobre ninfeias e descrever campanários de Combray antes do bombardeio.

Por que não saía? Por que se resignava a observar do alto a rua e a praça, coando a luz sobre as mães que proseavam, enquanto as proles rolavam pela grama? O quiosque cheio de notícias frescas. A gelateria. O clube de xadrez. O cinema. O café, amargo demais sem o leite. Contemplou os gerânios da sacada, que ardiam naqueles dias secos. A terra se abria, expondo as frágeis raízes.

Acusativo, voltou-se para o telefone. Falta pouco. Deve faltar. Não, dirão. Não há materialidade em seu objeto. O meio está perfeito. O introito, impecável. Muito bem justificado. Mas o que você queria? Indeferido. O pleiteante não sai à rua. Opera em ziguezagues, sob muitos e variegados pressupostos. Descreve gerânios, cita húngaros ao acaso. Este hibridismo que nos apresenta é uma falta absoluta de rigor. O pleiteante não é multidisciplinar. É um vira-latas.

É possível que não dissessem coisa alguma. Ou que já estivessem dizendo. Que a resposta tenha sido encaminhada há meses a um terceiro, que tomaria as providências cabíveis. E que o silêncio servisse para que o pensamento se enclausurasse no corpo ferido, em círculos, como a libélula que entrou por acaso e não pode sair. Talvez alguém tivesse tomado o seu objeto e estivesse voando com ele, empinando-o no céu, dando corda a sua dança etérea.

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Sob a vista das crianças no parque, aquietou. O café esfriara. Os gerânios purpúreos fibrilavam com o vento. A casa estava no lugar, e isso era bom. Cogitou apanhar caderno e lápis. O dia precisava começar.