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Direito das Obrigações II 1. Gestão de negócios Noção (art. 464º) – dá-se a gestão de negócios, quando uma pessoa assume a direcção de negócio alheio e por conta do respectivo dono, sem para tal estar autorizada. A gestão de negócios é uma figura de criação romana sendo posteriormente acolhida nos Direitos das famílias pandectística e napoleónica. A gestão de negócios não é considerada como fonte de contratos nem de delitos; aparece fortemente ligada ao édito do pretor. Apesar de estar relacionada com algumas práticas de costume baseadas na boa fé, é considerada uma criação técnica e humana. Requisitos – há gestão de negócios quando: “Uma pessoa assume a direcção de um negócio sem para tal estar autorizada”; Existe prática de actos materiais e jurídicos relativos a matéria alheia; Há falta de mandato ou relação semelhante; Há intenção de agir por conta do ausente; Se trate de uma actuação útil sem o intuito de causar danos. A partir da gestão de negócios surgem as acções que tanto podem ser feitas pelo dono do negócio (titular dos interesses que estão a ser dirigidos) contra o gestor ou por este contra aquele. Ao dono do negócio é atribuída a ratio adicio, isto é, um conjunto de três elementos que o levarão a decidir o desfecho da gestão não autorizada: Ratificação – convalida e aprova a gestão de negócios; Confirmação (art. 288º) – confirma o negócio nulo ou anulado; Sanação – corrige os vícios do negócio. Por esta ordem de ideias, o dono do negócio poderá, em primeiro lugar, aprovar a gestão, ou, em alternativa, apropriar-se dos actos do gestor quando não considerar nulo ou anulado o negócio resultante da gestão não autorizada. Com a queda do Império Romano, a figura da gestão de negócios foi aproximada dos quase-contratos, patamar onde se colocava o mandato. A partir desta classificação, o instituto é construído em torno dos direitos do gestor e não dos do dono do negócio. O 1

Direito das Obrigações II

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Ano lectivo 2010/2011 Regência: Prof. Dr. António Menezes Cordeiro

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Direito das Obrigações II

1. Gestão de negócios

Noção (art. 464º) – dá-se a gestão de negócios, quando uma pessoa assume a direcção de negócio alheio e por conta do respectivo dono, sem para tal estar autorizada. A gestão de negócios é uma figura de criação romana sendo posteriormente acolhida nos Direitos das famílias pandectística e napoleónica. A gestão de negócios não é considerada como fonte de contratos nem de delitos; aparece fortemente ligada ao édito do pretor. Apesar de estar relacionada com algumas práticas de costume baseadas na boa fé, é considerada uma criação técnica e humana.

Requisitos – há gestão de negócios quando:

“Uma pessoa assume a direcção de um negócio sem para tal estar autorizada”; Existe prática de actos materiais e jurídicos relativos a matéria alheia; Há falta de mandato ou relação semelhante; Há intenção de agir por conta do ausente; Se trate de uma actuação útil sem o intuito de causar danos.

A partir da gestão de negócios surgem as acções que tanto podem ser feitas pelo dono do negócio (titular dos interesses que estão a ser dirigidos) contra o gestor ou por este contra aquele. Ao dono do negócio é atribuída a ratio adicio, isto é, um conjunto de três elementos que o levarão a decidir o desfecho da gestão não autorizada:

Ratificação – convalida e aprova a gestão de negócios; Confirmação (art. 288º) – confirma o negócio nulo ou anulado; Sanação – corrige os vícios do negócio.

Por esta ordem de ideias, o dono do negócio poderá, em primeiro lugar, aprovar a gestão, ou, em alternativa, apropriar-se dos actos do gestor quando não considerar nulo ou anulado o negócio resultante da gestão não autorizada.

Com a queda do Império Romano, a figura da gestão de negócios foi aproximada dos quase-contratos, patamar onde se colocava o mandato. A partir desta classificação, o instituto é construído em torno dos direitos do gestor e não dos do dono do negócio. O Direito francês vem afirmar que a gestão de negócios atende à solidariedade humana mas o Código Napoleão trata, mais uma vez, esta figura como um quase-contrato. Isto porque, no Direito francês, a representação (mandato) não está autonomizada mas, pelo contrário, muito formalizada; por outro lado, também não se conhecia o enriquecimento sem causa. A gestão de negócios vem colmatar as falhas de ambos: atenua a exigência de formalidades que acompanham o mandato e assume a fonte de responsabilidades que provêm do enriquecimento sem causa.

Apesar de o Código Napoleão classificar a gestão de negócios como um quase-contrato, o BGB não vai pelo mesmo caminho: coloca-a “no meio” dos diversos contratos existentes no cerne das fontes das obrigações em geral, uma vez que é, efectivamente, a conclusão de um negócio sem mandato e uma relação jurídica obrigacional especial. O Direito alemão é mais técnico que o francês por não ter um carácter ideológico, isto é, dá-se a objectivação da gestão de negócios por não se focar em torno da solidariedade humana; antes da autonomia da sua fonte como uma verdadeira obrigação. A grande problematização da gestão de negócios é o seu posicionamento no Código Civil, uma vez que se desdobra numa figura que demonstra a gestão lícita de assuntos alheios sem contratação anterior. O Código Vaz Serra adopta o BGB, instaurando no seu 464º artigo a gestão de negócios como uma das fontes das obrigações em geral.

Dogmática geral

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A gestão de negócios é uma figura que representa um incidente histórico-cultural originário do Direito romano. É um serviço, uma actuação livre de uma pessoa que se faz passar por gestor de um negócio que não é seu. Em sentido estrito, é uma actuação não autorizada. A gestão de negócios pode ser:

Uma actividade puramente material; Uma actividade jurídica (celebração de um acto jurídico como um contrato); Uma actividade instantânea; Uma actividade contínua; De carácter patrimonial ou não-patrimonial; Profissional (o gestor envolve o acto na sua profissão) ou não profissional; Comum ou diligente (de carácter necessário); Própria (com intenção de ajudar o dono) ou imprópria (em beneficio próprio); Em erro (o gestor age em relação a negócio alheio pensado que era próprio); Representativa (em nome do dono) ou não representativa (em nome do gestor); Legítima (actua conforme os pressupostos da gestão) ou ilegítima; Lícita (o gestor actua conforme a lei) ou ilícita; Conhecida ou não conhecida pelo dono do negócio; Meramente presumível pelo dono do negócio; Conforme ou não conforme a vontade do dono do negócio; Aprovada (o dono está de acordo com a gestão); Não aprovada (o dono não está de acordo com a gestão mas pode ratificá-la); Proveitosa (útil para o dono); Desastrosa (danosa para o dono).

Figuras afins

a) Contrato de mandato (art. 1157º e SS.) – desta figura resulta uma actividade jurídica praticada por conta de outrem através de um contrato. Ao contrário do mandato, a gestão de negócios pode não ser uma actividade jurídica e não tem qualquer contrato precedente à sua formação; daí a gestão não ser autorizada. Nesta não existe uma prestação de serviço (art. 1154º).

b) Poder parental (responsabilidades parentais) – o exercício do poder paternal é efectuado pelos pais no total interesse dos filhos. A gestão de negócios é inteiramente livre, ao passo que o poder paternal está constitucionalmente instituído. É um poder-dever e não um acto totalmente espontâneo.

Para haver representação têm que se verificar três pressupostos:

Actuação do representante em nome do representado (contemplatio domini); Actuação do representante por conta do representado; Com poderes de representação.

O gestor não tem poderes de representação, apenas actua por conta do dono do negócio; quando a gestão é representativa, aí, actuará, também, em nome do dono do negócio. A gestão de negócios pode envolver uma actividade jurídica quando o gestor se relaciona com terceiros, o que não quer dizer que nasça um contrato a favor de terceiro, justamente porque a própria gestão de negócios não é um contrato; quanto muito, poderão surgir direitos e deveres na esfera do terceiro envolvido.

Na gestão de negócios o Direito preocupa-se com a actuação do gestor uma vez que, quando esta for ilícita e danosa, pode gerar responsabilidade civil aquiliana (483º e SS.), enquanto no enriquecimento sem causa, o Direito ocupa-se de desfazer o enriquecimento. O gestor pode,

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ainda, actuar em estado de necessidade na iminência de perigo embora este não seja um dos pressupostos de existência da gestão de negócios.

Funções da gestão de negócios

Solidariedade espontânea – não se pode concluir indubitavelmente que é uma das funções da gestão de negócios já que a maior parte é ilícita, isto é, o gestor age por interesse próprio e não para proveito do dono do negócio; por outro lado, a ideia de solidariedade não pode ser, de todo, posta de lado, uma vez que a gestão de negócios é um quase-contrato e, por isso, não tem um carácter auto-justificativo da sua existência;

É puramente livre – atenua exigências burocráticas e falhas do mercado; pode ter uma natureza distributiva no que concerne, por exemplo, à divisão do risco dentro de uma sociedade. Tem, assim, uma função justificada e legítima.

Requisitos da gestão de negócios

a) Direcção do negócio – por direcção entenda-se o controlo do negócio por parte do gestor. A direcção pode ser directa (feita pelo próprio gestor) ou indirecta (feita através de um representante ou auxiliar) e pode, ainda, ser feita por uma pessoa colectiva através dos seus administradores. A direcção pode indicar uma actuação positiva (facere/dare) ou apenas uma mera abstenção por parte do gestor (non facere). Por negócio compreenda-se um acto jurídico, um conjunto de negócios ou um acto puramente material;

b) Alienedade do negócio (art. 464º) – o negócio é claramente alheio quando o gestor exerce um direito. Trata-se de alienedade objectiva. A questão coloca-se em relação ao exercício de uma liberdade: já é alienedade? Esta é subjectiva porque recai na dúvida de saber se é própria ou alheia. Por exemplo, a compra de insecticida para combater uma praga no prédio do vizinho representa uma acção humana com uma finalidade. A alienedade não pode ser “levada à letra”: implica a determinação da acção do gestor em relação à esfera do dono.

c) Actuação por conta do dono (art. 1157º) – o gestor age com o intuito de produzir efeitos na esfera jurídica do dono do negócio. A actuação por conta do dono pode derivar da própria alienedade (teoria objectiva) ou o gestor actua por conta do dono por ter intenção de agir em relação a este (teoria subjectiva).

d) Por interesse do dono – para haver gestão de negócios, o gestor tem “de se conformar” com o interesse do dono.

“Interesse” aparece em várias vertentes. Em sentido objectivo, interesse é a susceptibilidade que algo tem para satisfazer necessidades do sujeito; em sentido subjectivo, representa uma relação de apetência que se constitui entre a pessoa e algo que ela deseje. Por fim, em sentido técnico-jurídico, o interesse é um conjunto de valores protegidos pelo Direito que, quando violados, podem dar lugar a um dano. Para haver gestão de negócios, o gestor tem de actuar objectivamente no interesse do dono do negócio, segundo o prof. Menezes Cordeiro.

e) Falta de autorização (art. 464º, última parte) – em sentido técnico, traduz-se num acto jurídico unilateral requerido para a perfeição de determinado negócio.

No caso da gestão de negócios, o gestor age fora de qualquer relação quer permita a sua legitimação, isto é, sem autorização, através de:

Mandato ou relação semelhante;

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Procuração; Status (situação que permita o gestor agir, por exemplo o poder parental); Normas habilitantes (legítima defesa, acção directa).

Regime

Deveres do gestor (art. 465º)

465º/a) – Respeitar o interesse objectivo do dono, o que delimita negativamente a acção do gestor porque o interesse está protegido pela ordem jurídica (interesse em sentido técnico-jurídico). A relação jurídica entre o gestor e o dono do negócio cria um dever acessório, já que a gestão de negócios caracteriza-se por uma obrigação sem dever de prestar; Para além de ter de respeitar o interesse objectivo (útil) do dono, o gestor tem, igualmente, de respeitar a sua vontade conhecida, real ou presumível (não hipotética, alegada). Quando o interesse do dono não coincida com a vontade, o gestor não deve agir; no entanto, o gestor é inteiramente livre em relação à sua gestão: quando a vontade do dono é conhecida, o gestor tem que a respeitar, a não ser que seja contrária à lei ou à ordem pública. Quando não exista vontade, a acção do gestor é discricionária, embora este tenha que respeitar o interesse do dono do negócio.

465º/b) / 1161º – dever de aviso por parte do gestor ao dono do negócio; 465º/c) – prestação de contas; 465º/d) – dever de informação, imediatamente a seguir ao aviso; 465º/e) – dever de entrega (coisas moveis – transmissão/direitos – transferência);

466º – Responsabilidade do gestor: dever de continuar a gestão – o gestor não pode interromper a gestão injustificadamente, embora esta não tenha que a manter interminavelmente. A gestão não continuada não pode causar danos ao dono uma vez que ainda estão “em jogo” deveres acessórios. A actuação injustificada, em termos de responsabilidade, trata-se de responsabilidade civil aquiliana, extra-contratual, porque não há contrato nem obrigação de prestação principal (483º), podendo, apenas, causar um dano. Em relação aos deveres acessórios, a responsabilidade civil é obrigacional, isto é, contratual (798º) porque está em causa o não cumprimento de uma obrigação.

Obrigações do dono do negócio

468º – Reembolso das despesas do gestor – o dono terá que reembolsar o gestor quando o prejuízo criado seja fundadamente considerado indispensável para a gestão do negócio. O dono não pode fazer um juízo de mérito em relação à acção do gestor, uma vez que não existe obrigação principal e, por isso, o conteúdo da gestão é discricionário. Poder-se-á fazer um juízo legal da gestão.

470º – Remuneração do gestor – apenas tem lugar se o exercício corresponder à actividade profissional do gestor. Para atenuar esta regra, o esforço do gestor tem de ser compensado.

Direitos do dono do negócio

465º a contrario;

Direitos potestativos – aprovar a gestão (concordância da iniciativa do gestor, o que traduz a renúncia da indemnização – 469º) e ratificar a gestão (os actos do gestor feitos em nome do dono do negócio passam para a sua esfera jurídica).

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A aprovação da gestão feita pelo dono do negócio tem como efeito jurídico a renúncia pela indemnização dos danos causados e a ratificação, que diz respeito aos diversos actos do gestor, tem como consequência a apropriação dos mesmos actos pelo dono do negócio, transferindo-os para a sua esfera jurídica.

Terceiros – há que ter em conta que os efeitos relativamente a terceiros produzem-se conforme a sua índole, isto é, se os terceiros são completamente estranhos à gestão de negócios, e aí apenas relevam os direitos acessórios que acompanham todas as obrigações, ou se são terceiros interessados e que contratam com o gestor.

Nesta segunda hipótese há que distinguir a actividade do gestor:

Se for em nome do dono do negócio, trata-se de uma gestão representativa (contemplatio domini) – é aplicado o regime da representação sem poderes (268º), que exige a ratificação dos actos para a produção de efeitos na esfera jurídica do dono;

Se for em nome próprio, os efeitos da gestão produzem-se na esfera jurídica do gestor, aplicando-se o regime do mandato sem representação (461º), tendo o gestor que transferir os efeitos para a esfera jurídica do dono do negócio; se não o fizer, pode dar lugar à execução específica, como defende o prof. Menezes Cordeiro, e não apenas a uma simples indemnização.

Aplicação prática

Em 45 anos de vigência do Código Civil, apenas foram proferidas 30 decisões judiciais de gestão de negócios. Esta figura não se pauta pela solidariedade que a sua actividade propõe, uma vez que, nas situações em que se verificou a sua existência, se conclui que não tiveram um papel útil: a maior parte fora ilícita.

Natureza da gestão de negócios

Qual a natureza da gestão de negócios? Terá natureza contratual? Este instituto segrega uma linguagem própria, tendo uma autonomia de raiz. A gestão de negócios é um espaço de autodeterminação do gestor, isto é, a lei apenas o limita no seu campo de actuação, inserido num conjunto de deveres instrumentais (informação, aviso, prestação de contas, entrega), pautado por vários direitos que lhes correspondem (direito de informação, aviso, prestação de contas, entrega, indemnização pelos danos causados, …). A gestão de negócios é um acto jurídico em sentido estrito porque resulta numa relação jurídica complexa, sem obrigação de dever de prestar principal; não é um contrato, nem se qualifica como um quase-contrato. É, evidentemente, uma das fontes das obrigações, autónoma e sem natureza contratual e, também, não se relaciona com a responsabilidade civil.

2. Enriquecimento sem causa

Noção (art. 473º) – aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustificadamente se locupletou.

O enriquecimento sem causa situa-se entre a gestão de negócios e a responsabilidade civil, sendo uma fonte de obrigações. É uma figura que se dinamiza no Direito Romano, sendo mais tarde estudado por Savigny, autor que vai enquadrar este instituto no Direito Alemão da Pandectística. Este instituto nasce com o Direito Romano, como uma condictione (enriquecimento sem causa), e não como uma condicione (condição), levada a cabo por acções. A actio per condictione representava uma notificação feita ao devedor para este entregar qualquer coisa que, injustamente, estava em seu poder. As acções foram tipificadas, ao longo do

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tempo, pelo pretor, já que a acção per condictione cobria uma grande variedade de situações, apresentando-se como abstracta. Foram fixados cinco grandes tipos de condictiones:

a) Condictio indebiti – cumprimento de uma obrigação inexistente;

b) Condictio causa data causa non secuta – prestação efectuada que vise um resultado que não chegue a ocorrer;

c) Condictio ob turpem vel iniustam causam – pagamentos para fins contrários ou vedados ao Direito;

d) Condictio furtiva – reage à subtracção irregular de uma coisa cuja restituição seja pedida;

e) Condictio sine causa – mantém-se como residual, abrangendo uma serie de situações em que a causa, inicialmente existente ou, pelo menos aparentemente inexistente, se viesse a revelar como em falta: a causa finita.

Devido à grande evolução que esta figura acarretou, podem retirar-se várias conclusões:

Densidade de matéria técnica; Ideia de restituição independentemente da condictio que fica em causa; Matéria residual, estanque e definida ao essencial; Concessão de novas acções: actio in rem verso – coisa que deve ser retrovertida;

Princípio geral de equidade, com relevo para Pompónio – “Iure naturae aequum neninem cum alterius detrimento et iniuria fieri locupletioem” (pelo Direito natural é equ que ninguém enriqueça à custa de outrem).

Numa evolução subsequente, este instituto é retomado pelo Humanismo ao analisar o Direito Romano clássico; com o Iluminismo dá-se, por outro lado, o alargamento das condictiones. No Direito Romano há um extremo tecnicismo enquanto na pré-codificação francesa o pêndulo é de extremo idealismo, onde o enriquecimento sem causa apenas existe para a restituição do enriquecimento injustificado, sem especificar quaisquer condictiones. Também o Common Law descobre esta figura num período tardio, já no século XX: o grande tecnicismo que ronda esta figura faz com que seja ignorada por estes dois sistemas. O enriquecimento sem causa foi inserido na pandectística e aplicada no Direito Alemão através de Savigny, contrariamente ao Código Napoleão, que não faz referência a esta figura, integrando-se apenas pela jurisprudência, e ao Common Law.

Grandes Sistemas europeus do enriquecimento sem causa

i. Francês – no Direito francês, os antecedentes ao Código Napoleão não são favoráveis à figura do enriquecimento sem causa. O mesmo código não o refere, tendo apenas algumas consagrações diversas a favor de outros institutos. Por outro lado, aparece a figura da repetição do indevido através da utilização da actio in rem verso. O enriquecimento sem causa aparece, mais tarde, por via jurisprudencial (apesar de esta começar por o negar); só a partir do séc. XX é que este instituto foi aplicado, in fine, com base na equidade.

Requisitos próprios do enriquecimento sem causa (consagrados pelo Direito francês por referência à figura da repetição do indevido – a própria actio in rem verso):

Empobrecimento e enriquecimento co-relativos; O empobrecido não tenha cometido nenhum acto ilícito; Da parte do empobrecido não pode haver nenhum interesse particular;

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Falta de causa; Matéria subsidiária em caso de não existir outra solução na lei.

ii. Alemão – as condictiones romanas são introduzidas na pandectística por Savigny, depois de um re-estudo intenso feito pelo autor, com o intuito de se aplicar Direito Romano actual. Há uma nova arrumação das figuras que vai desembocar no enriquecimento sem causa, consagrado no BGB.

Neste sistema, a figura do enriquecimento sem causa não foi considerada matéria subsidiária, podendo ser invocada ainda que esteja presente um instituto concorrente. Para além da referência que o BGB introduz no Direito civil alemão, começa por caracterizar o instituto como unitário; mais tarde, vem-se a distinguir modalidades de enriquecimento sem causa: de prestação – não tem razão para prestar – e de intervenção – não tem razão para intervir na esfera jurídica de terceiro. Esta divisão é feita a propósito do preceito do BGB que consagra o enriquecimento sem causa: “Aquele que por prestação, ou outro modo (…)”. Depois desta evolução, retorna-se à ideia inicial de que o enriquecimento sem causa é uma figura unitária, para, depois, se voltar à concepção que, finalmente, vinga: a diferenciação de modalidades dentro do mesmo instituto. A questão que se coloca é se convém a abstracção, ou não, do instituto, ou a sua separação para a resolução do caso concreto.

iii. Anglosaxónico – o Direito inglês não faz referência ao enriquecimento sem causa até ao séc. XX, criando um instituto muito diferente do criado pelo Direito alemão. Os Estados Unidos reconhecem primeiro esta figura.

Referência ao Direito Europeu – na Europa há vários tipos de consagrações do enriquecimento sem causa:

Expressas (Direito alemão); Jurisprudenciais (Direito francês); Inexistentes (Direito inglês); Subsidiárias (Direito francês); Com várias modalidades (Direito alemão); Com apenas uma vertente (Direito francês – actio in rem verso).

iv. Lusófono – em Portugal é consagrada, em primeiro lugar, a figura da repetição do indevido a propósito do cumprimento. É o prof. Guilherme Moreira que introduz o ensino da pandectística por tradição científica: a partir deste momento a doutrina portuguesa refere o enriquecimento sem causa, deixando de aludir a actio in rem verso.

Na prática, estas modificações vêm solucionar os casos de mútuo com falta de forma (art. 1143º) – se não houver um escrito assinado, não se pode provar o empréstimo feito. Estas situações foram solucionadas através de um princípio geral: ninguém pode enriquecer por causa alheia – recorre-se quando não haja outra solução em situação de lacuna ou por analogia, desenhando-se, infelizmente, a subsidiariedade deste instituto.

A partir de 1944 foi feito o projecto do Código Civil de Vaz Serra, sendo feita a recepção do enriquecimento sem causa sem natureza subsidiária por influência da pandectística; por outro lado, há uma certa autonomia da repetição do indevido. Na versão actual do código, esta figura vem disposta nos artigos 473º a 482º e aparece em outros 17 artigos dispersos, integrados em vários institutos diferenciados.Por isto, tem de se ter em conta se, na resolução de uma situação concreta, se utiliza o regime do enriquecimento sem causa ou se este é integrado nos outros institutos dispersos. O sistema português tem uma recepção do Direito alemão e do Direito francês mas torna-se num sistema híbrido porque tem um princípio geral – art. 473º – e dentro do enriquecimento sem causa aparece, autonomamente, a repetição do indivíduo.

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Dogmática geral

Modalidades do enriquecimento sem causa – segundo o art. 473º, é atribuído um carácter unitário ao instituto. Apesar disso, por via doutrinária, existem várias modalidades autónomas – por prestação e por intervenção. O enriquecimento sem causa também pode ser:

Directo – deslocação do empobrecido para o enriquecido – ou indirecto – quando há um terceiro intermediário entre os dois;

Voluntário – há assentimento do enriquecido – ou forçado – quando não há assentimento do enriquecido, isto é, não tem conhecimento do enriquecimento;

Isolado – quando é aplicado o regime dos arts. 473º e SS. – integrado – quando faz parte do regime de outros institutos que o referenciam.

O enriquecimento sem causa é uma fonte de obrigações que não nasce da vontade das partes mas de um facto jurídico, que se reporta a uma deslocação patrimonial, ao qual o Direito atribui efeitos. O cérebro da análise jurídica tem em conta esta deslocação patrimonial, constatando-se que houve uma massa que se deslocou sem causa. Este instituto tem o objectivo de a desfazer. O sistema português é de carácter híbrido, isto é, comporta um princípio geral do enriquecimento sem causa e figuras herdeiras das condictiones que se articulam entre si. O enriquecimento sem causa em sentido amplo abrange duas ordens de pressupostos:

Enriquecimento sem causa stricto sensu, consagrado no art. 473º/1, pactuando o princípio geral com o nº2 do mesmo preceito (especificações herdeiras de condictiones romanas).

Em sentido estrito, o enriquecimento sem causa pode ser feito por prestação – deslocação patrimonial sem causa, sendo dinheiro, não devido, transferido, através de uma conduta humana (daí dizer-se que há uma prestação) – ou por intervenção – não se trata de uma conduta realizada a favor de terceira: é, antes, uma interferência que valoriza/enriquece determinado património. Em ambos os casos, o património de alguém cresce por ser beneficiado pelo enriquecimento sem causa.

Existência de uma figura autónoma apresentada nos artigos 476º a 478º – repetição do indevido (condictio indebiti).

Requisitos do enriquecimento sem causa

a) Haver um enriquecimento/benefício – tem em conta o aumento do património, seja no aumento do activo ou na diminuição do passivo. A deslocação não é obrigatoriamente patrimonial: pode-se tratar de um direito pessoal.

b) Haver um empobrecimento – há um dano. O dano, no sentido do enriquecimento sem causa, tem em conta o empobrecimento de alguém e não em sentido técnico (supressão de uma vantagem protegida pelo Direito), senão haveria lugar à responsabilidade civil.

Por exemplo, um cavalo está num prado e A dá uma volta nele, não sabendo que o cavalo é de B. Aqui, há que ter em conta a teoria do conteúdo da destinação que defende o empobrecimento de B, neste caso. Do ponto de vista da destinação jurídica dos bens, quem os utiliza é o seu proprietário e não um terceiro, sendo o património de uma pessoa é empobrecido por outrem. Também constitui empobrecimento o desvio de utilidades de um património para outro. A questão coloca-se quando se pretende determinar o cálculo do valor, quer do enriquecimento, quer do empobrecimento, sendo correspectivos um do outro:

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Abstracto – corresponde ao valor da deslocação patrimonial; Concreto – equivale à diferença no património, antes e depois da deslocação.

Por exemplo, A tem uma bicicleta, sem pneus, que vale 50€; com pneus, vale 200€. Os pneus custaram 30€ a B, que pôs uns pneus novos na bicicleta. A diferença está inerente à situação concreta do património, isto é, como estava antes e como ficou depois da deslocação patrimonial feita por B, podendo ser superior que o valor abstracto. A bicicleta valorizou-se em 150€ apesar de B apenas ter gasto 30€ nos pneus novos.

c) À custa de outrem – comporta uma relação de causalidade entre o enriquecimento e o empobrecimento. O enriquecimento tem de ser, inevitavelmente, à custa de outrem; alguém tem que ficar empobrecimento e alguém tem que beneficiar disso, devido à posterior obrigação de restituir.

d) Imediação – não abrange uma relação directa entre o empobrecido e o enriquecido. Podem existir mais intervenientes no enriquecimento sem causa que representam uma placa giratória representativa entre quem é realmente enriquecido e empobrecido; tem de haver uma deslocação patrimonial entre dois patrimónios, ainda que tenha havido intervenção de várias pessoas, podendo não haver uma relação directa entre o enriquecido e o empobrecido.

e) Falta de causa.

Consequência do enriquecimento sem causa (art. 479º) – o grande efeito surtido por este instituto é a obrigação (porque o enriquecimento sem causa é uma fonte de obrigações) de restituir, em espécie, isto é, o objecto que criou o enriquecimento. Muitas vezes já não é possível reconstituir a situação anterior do empobrecido, tendo que se calcular um valor correspondente à sua perda, aplicando-se a teoria do triplo limite. Esta vem estabelecer que o enriquecido tem que restituir o enriquecimento em concreto até ao maior dos limites: há que ter em conta o valor do empobrecimento tanto em concreto, como em abstracto.

Por exemplo, no caso da bicicleta, o enriquecimento de A, em concreto, foi de 150€ e, em abstracto, foi de 30€, porque cada pneu valia 15€. B empobreceu-se em 30€, sendo o empobrecimento abstracto igual ao concreto, que tem o valor de 30€. Num segundo exemplo, B pensava que ia receber um violino, que valia 500€, como deixa testamentária, portanto restaurou-o. A restauração custou 1500€ a B mas valorizou o violino em 300€, valendo este, agora, 800€. No entanto, não é B que recebe o violino, mas a sua irmã C; embora B tenha gasto 1500€ no restauro, o enriquecimento, em concreto, de C, é de 300€.

Casos de enriquecimento sem causa stricto sensu (473º/1 – princípio geral)

a) Enriquecimento por causa finita, isto é, pagamento de uma prestação que deixou de existir. Por exemplo, uma pessoa que pague a pronto um curso de ballet e, que por motivos de doença, não pode voltar a dançar. Dado que pagou uma parcela a mais, tem direito a reaver uma contra-prestação que equivale ao período não usufruído;

b) Pagamento de uma prestação destinada a efeitos que não se verifiquem. Por exemplo, o administrador do condomínio que precisa de dinheiro para obras no prédio pede o dinheiro aos condóminos, sendo que três não pagam. Por isto, o administrador terá que devolver o dinheiro aos condóminos que pagaram.

O ordenamento jurídico português consagra a subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa (474º), tendo que se fazer uma interpretação restritiva do preceito. O enriquecimento sem causa é bastante difícil de se aplicar na prática, daí o seu carácter subsidiário. É preferível

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que o empobrecido seja restituído por exemplo, através de responsabilidade civil porque o enriquecimento sem causa é-lhe menos favorável. O prof. MENEZES CORDEIRO entende que deve ser o sujeito a escolher a solução mais adequada ao caso, tendo em conta a subsidiariedade do instituto. Se o regime imperativo, como a responsabilidade civil, resolver o problema mas restar uma parcela compatível com o enriquecimento sem causa, aí, aplica-se o seu regime. Isto não acontece quando se verifica a caducidade do instituto imperativo: por exemplo, numa situação em que o empobrecido deixa passar o prazo para proceder contra o enriquecido através de responsabilidade, entra a resolução através do enriquecimento sem causa. Esta figura não é muito “simpática” para o empobrecido; há que permitir soluções justas sempre que possível.

c) Restituição por perecimento ou deterioração culposa da coisa, a partir do momento em que o enriquecido sabe que enriqueceu sem causa (480º) – por exemplo, A tem vacas e estas comem a palha de B; as vacas engordam e aumentam de valor em função da palha de B. Aqui, B tem uma pretensão contra A no montante das palhas (480º/a). Situação diferente é se, por exemplo, os empregados de A confundem a sua palha, por erro desculpável, com a de B, mas esta perece antes de as vacas a comerem. Se A não sabia da situação, então não tem que restituir em espécie a B, uma vez que a palha fora destruída; se A soubesse que a palha era de B e depois estragou-se, A vai ter que restituir o valor da palha à data em que teve conhecimento de que se enriqueceu (480º/b).

Prescrição do enriquecimento sem causa (art. 482º) – para além da prescrição ordinária de 20 anos, que se contam desde o momento do enriquecimento, o empobrecido tem 3 anos para pedir a restituição ao enriquecido, dentro dos 20 anos, contados a partir da data em que teve conhecimento do seu direito.

Ratio do enriquecimento sem causa – este instituto tem duas funções principais:

Protecção do contrato – pretende que não haja deslocações patrimoniais que não correspondam à vontade das pessoas. Estas devem enriquecer/empobrecer através de, por exemplo, um contrato e não “à custa de outrem”;

Protecção da propriedade – relacionada com a teoria do conteúdo da destinação que defende a forma de distribuição e gozo dos bens, ou seja, é o proprietário que deve gozar os seus bens, e não um terceiro sem causa.

O enriquecimento sem causa destina-se, particularmente, a prevenir uma deslocação patrimonial despropositada de bens. Há uma protecção de retaguarda, uma vez que são situações que o próprio legislador pretende que não aconteçam, daí a letra da lei ser, por vezes, rude: “à custa de outrem”, “injustamente se locupletou”, “sem causa”. Este instituto caracteriza-se por uma ilicitude imperfeita porque, na maior parte dos casos, não é desejado mas também não é ilícito, uma vez que não há culpa.

Casos de enriquecimento sem causa especiais (476º-478º)

A repetição do indevido é uma figura autónoma dentro do enriquecimento sem causa lato senso. Esta figura baseia-se sempre num caso de enriquecimento sem causa de prestação porque há um acto voluntário do empobrecido em querer cumprir uma obrigação que não existe (animus solvendi). Se não existir animus solvendi não se está perante um caso de repetição do indevido mas de enriquecimento sem causa em sentido estrito. O regime das obrigações naturais prevalece sobre este, uma vez que é subsidiário. Por exemplo, o credor natural não tem que repetir (restituir) a prestação paga pelo devedor.

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Consequência da repetição do indevido – o enriquecido tem que devolver o valor do enriquecimento. A diferença para o regime do princípio geral é que o pagamento da obrigação que não existia é devolvido, uma vez que esta diz respeito a uma prestação.

a) Repetição do indevido:

i. 476º/1 – Cumprimento voluntário de prestação inexistente;

ii. 476º/2 – Caso em que o credor ratifica a prestação e o devedor não tem que a repetir, exonerando-se do seu pagamento. Por exemplo, A deve 100€ a C mas dá-os a B para este, consequentemente, os entregar a C. Se C ratificar os 100€ de B, a obrigação extingue-se; se C exigir os 100€ ao verdadeiro devedor que é A, este terá que exigir os 100€ a B.

iii. 476º/3 – Prestação feita por erro desculpável do devedor sem decurso do tempo da obrigação. Nesta situação, o credor só se enriquece porque o devedor pagou a dívida antecipadamente. Por exemplo, A deve 200€ a B, tendo que pagar no dia 31 de Março. A fica muito doente e baralhado com o tempo, pensando que, quando acorda, já é fim do mês e paga os 200€ a B, sendo verdadeiramente dia 10 de Março.

b) Cumprimento de obrigação alheia na convicção de que é própria por erro desculpável do devedor tendo este direito à restituição da prestação (477º);

c) Cumprimento de obrigação alheia na convicção de estar obrigado a cumpri-la (478º) – há equilíbrio entre os interesses do credor, do verdadeiro enriquecido que é o devedor, e o terceiro que se confunde. Se o credor tiver conhecimento do erro aplica-se o enriquecimento sem causa em sentido estrito.

Invalidade dos negócios jurídicos

No caso de um negócio jurídico ser nulo ou anulável, haverá, em princípio, enriquecimento sem causa, uma vez que existe uma causa finita. No entanto, na medida do art. 289º, não há lugar para a aplicação deste regime supletivo.

3. Responsabilidade civil

A figura da responsabilidade civil remonta à época clássica romana. Na distinção de Gaio, as obrigações nascem ou de um contrato (acordo por mútuo consentimento que exige o respeito pela palavra) ou de um delito (dano com necessidade jurídica e/ou moral associada de o ressarcir). O contrato representa um encontro de vontades e é, por isso, uma área criativa baseada na ideia de circulação de riqueza; já o delito, por resultar da lei, é uma área de defesa e concentração que constitui a distribuição de danos. O contrato tem como base a técnica de consentimento, ao passo que a responsabilidade civil actua por uma técnica de indemnização pela prática de delitos ou pelo risco (mesmo que não se tenha violado uma regra de Direito – responsabilidade civil objectiva), por exemplo, os acidentes de trabalho.

A responsabilidade civil não aparece como um instituto autónomo porque é uma das fontes das obrigações e a matéria surge nesta disciplina por razoes de ordem histórica.

Este figura tem uma expressão muito própria, aparecendo no nosso idioma em meados do séc. XX, sendo tratado como o instituto em si, e também como fonte de obrigações – o agente fica obrigado a uma adstrição (indemnização) para com o lesado. A responsabilidade civil surge em dois termos distintos:

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Responsabilidade civil por factos ilícitos ou delitos (483º-498º); Responsabilidade civil contratual pela violação de um contrato (798º e SS.).

No primeiro caso trata-se de responsabilidade civil aquiliana que diz respeito a situações não obrigacionais; já o segundo diz respeito a situações obrigacionais resultantes da violação de um contrato. Diferente da responsabilidade civil aquiliana (por factos ilícitos) é a responsabilidade civil por actos lícitos que representa uma responsabilidade pelo sacrifício. A figura da responsabilidade civil por excelência é o dano – supressão de uma vantagem tutelada pelo Direito (noção normativa que corresponde à necessidade sugerida pelo próprio instituto).

Como ponto de partida, na época clássica romana, os delitos começaram por ser ajustados por vingança do lesado; com intenção de harmonizar este conflito, a Lei das XII Tábuas veio introduzir uma moderação no “ajuste de contas”: isto é, os delitos eram coerentes com a forma com que era praticados. Por exemplo, o agente que partisse um braço ao lesado iria, igualmente, ver o seu braço partido por obra do (agente) ofendido. Esta foi a solução dada pela Lei de Talião. Admitia-se igualmente, em alternativa ao Talião, uma solução pecuniária em termos de eficiência económica útil. Na Lei das XII Tábuas não estava diferenciado o campo civil e o penal dos delitos, ou seja, a indemnização e a pena mas havia uma tipificação dos mesmos, o que acabaria por se revelar vantajoso, uma vez que à desvantagem estava associada uma desvantagem correspondente. No ano 283 A.C. aparece a Lex Aquilia de damno que vem impor a indemnização por parte de quem matar um escravo ou um animal, generalizando-se esta compensação a todos os delitos. Esta lei tem como pressuposto a ilicitude (iniuria) da acção humana como voluntária para causar um dano, para haver obrigação de indemnizar; apenas a dois grupos de pessoas não era imputada a responsabilidade civil aquiliana: às crianças e aos dementes. Por outro lado, na III tábua estava instituída a responsabilidade do devedor que não cumprisse com a sua obrigação: daqui nasce a Lex Poetelia Papiria Denexis que extingue a anterior que autorizava a morte ou escravidão do devedor que não conseguisse pagar a sua dívida; a lei institui, portanto, a responsabilidade pelo património e não pela pessoa do devedor. Como os delicta estavam tipificados na Lei das XII Tábuas, era relativamente fácil atribuir uma indemnização pelo dano causado, por um nexo de causalidade. Ao longo da evolução da figura da responsabilidade civil há uma certa tendência para a conformidade entre as duas formas que dela resultam principalmente por causa dos seus pressupostos, como por exemplo a culpa. Na era pós-clássica, a noção de responsabilidade civil aquiliana é direccionada para a culpa e para o dano, no sentido de forma mais grave de culpa. Com a influência do Direito Canónico, a ideia de “culpa” passa a ganhar um sentido ligado ao pecatum (maleficium no Direito Romano); já no período do Humanismo há uma aproximação ao Direito Romano, atribuindo-se um sentido subjectivo ao delictum e, na época posterior, de jus-naturalismo, desenvolvem-se as causas de justificação para o aperfeiçoamento da figura da ilicitude. No período da codificação, o sistema continental bifurcou.

Os sistemas continentais

I. Sistema francês – a necessidade de legislar a matéria da responsabilidade civil na própria língua deu azo a alguns problemas por a tradução não coincidir com o latim. É usada a expressão “faute” no sentido de dano e não de falta. A responsabilidade civil francesa assenta num pressuposto único – precisamente, a faute – que passa para o Código Napoleão, não sendo uma noção clara. É um sistema monista por ter apenas um pressuposto de actuação e tem um carácter muito amplo por se reconduzir facilmente à obrigação de indemnizar, própria da responsabilidade civil aquiliana (daí ser um sistema especial ao delitual);

II. Sistema alemão – na pandectística aparece um pretexto unificado entre a culpa e a ilicitude mas Jhering vem chamar a atenção para situações de ilicitude que não pressuponham culpa porque o agente age de boa fé, não havendo lugar a responsabilidade civil; para além de a acção violar a lei, tem que haver culpa (censura do agente), podendo esta ser graduada, ou seja, culpa em sentido estrito ou dolo. Este

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Responsabilidade civil

Extra-obrigacional

delitual/aquiliana (483º) pelo risco (499º) pelo sacrifício

(339º/2)

Obrigacional

pelo não cumprimento

(798º)pelo risco pelo sacrifício

sistema é dualista ou analítico porque consagra a culpa e a ilicitude como pressupostos da responsabilidade civil; para além de ser um sistema mais restritivo, é especial ao contratual. No BGB é aceite o esquema de Jhering em casos de violação de um direito subjectivo absoluto, de norma de protecção ou de uma situação contrária aos bons costumes.

O modelo anglosaxónico – modelo anglosaxónico veicula-se por um caminho muito diferente. A responsabilidade civil é estudada a partir dos torts por influência dos delitos do período romano, não havendo diferenciação de pressupostos para a sua actuação.

A experiência lusófona: pré-codificação e Código de Seabra

Em Portugal, ainda na época das Ordenações, a figura da responsabilidade civil começa por actuar na ordem de um pressuposto único, a culpa, como acontece no sistema continental francês; por outro lado, no Código de Seabra é instituída a ilicitude e não a culpa como pressuposto desta figura. Já no séc. XX, o prof. Guilherme Moreira começa a ensinar a responsabilidade civil contrapondo culpa à ilicitude, caminho resultante do sistema alemão, especial ao contratual. A responsabilidade civil corresponde à imputação de um dano a uma esfera jurídica diferente daquela em que ocorreu. O dano ocorre, aqui, como a diminuição ou supressão de uma vantagem juridicamente tutelada pelo Direito; assim, a responsabilidade civil é a transferência do dano da esfera jurídica do lesado para a do agente, sendo contrária à regra geral de que a imputação de danos é feita na esfera jurídica onde estes se dão.

Tipos de responsabilidade civil (não constituem uma classificação em rigor, não existindo um critério lógico entre os vários tipos de responsabilidade civil):

Do ponto de vista histórico, o ordenamento jurídico português virou-se para a pandectística através do ensino do prof. Guilherme Moreira, porque o Código de Seabra apenas referia a ilicitude mas não mencionava a culpa (como comportamento censurável do agente). Os requisitos do BGB foram integrados na doutrina nacional, exigindo-se, agora, dois requisitos de responsabilidade civil – a ilicitude e a culpa – adaptando-se o sistema germânico da responsabilidade civil, que também foi aceite pela jurisprudência. O Código Vaz Serra é, portanto, um código híbrido:

A responsabilidade civil extra-obrigacional tem quatro requisitos, sendo que dois (a ilicitude e a culpa) são autónomos um do outro porque pode haver ilicitude sem culpa e vice-versa, dominando a filosofia germânica;

A responsabilidade civil obrigacional é, por sua vez, de filiação napoleónica porque a culpa não é discriminada da ilicitude, valendo como um pressuposto único de actuação deste subsistema.

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Porém, os dois subsistemas podem cruzar-se porque num ou noutro a culpa pode extravasar o seu tipo (culpa como faute ou diferente de ilicitude). O prof. Canaris sugere, ainda, as circunstâncias em que a ilicitude visa proteger alguém, isto é, quando há a violação de uma norma jurídica, a ilicitude procurada determina quem vai ser protegido; por sua vez, a culpa vai determinar quem vai ser obrigado a indemnizar, por ter uma conduta contrária àquela que lhe seria legalmente exigida. Por terem pressupostos distintos, os sistemas germano e francês traduzem, igualmente, resultados diferentes: é mais difícil provar a culpa e a ilicitude quando estes são autónomos um do outro; é mais fácil provar quando o pressuposto é único.

Responsabilidade civil extra-obrigacional

O lesado tem que provar a culpa do agente; A responsabilidade é subsidiária quando há mais do que um devedor; A prescrição é de 3 anos (498º); Responsabilidade do comitente (500º); Se o dano foi causado apenas por negligência pode-se aplicar o art. 494º; O credor/lesado não pode renunciar aos seus direitos (809º).

Responsabilidade civil obrigacional

O agente tem de provar que não tem culpa; A responsabilidade é parciária quando há mais do que um devedor; A prescrição é de 20 anos (prazo geral – 309º); Responsabilidade por actos do representante legal (800º); Não há atenuação do regime, independentemente de dolo ou culpa; Pode-se estabelecer cláusulas penais (810º).

A responsabilidade civil obrigacional é mais rigorosa para o devedor, ao contrário do que acontece com a responsabilidade civil aquiliana, por violação de um dever específico. Não obstante as diferenças, os subsistemas podem relacionar-se: por exemplo, a obrigação de indemnizar é comum a ambos. O que fazer quando um caso preenche as duas figuras? Esse caso não é o caso de não cumprimento do contrato porque a responsabilidade civil obrigacional é especial à extra-obrigacional. Na concorrência de regimes, deve o lesado escolher o que lhe é mais favorável (tem pretensões jurídicas a vários títulos).

Terceira via da responsabilidade civil

O 3º sistema de responsabilidade civil, encaixado entre os dois subsistemas extra-obrigacional e obrigacional, começou por ser estudado na Alemanha quando surgiram casos em que não havia um contrato mas uma grande proximidade negocial entre as partes (culpa in contrahendo ou obrigação sem dever de prestar principal). O nosso sistema da responsabilidade civil é suficientemente amplo desde 1966: nunca foi necessária a 3ª via, ou porque existem artigos expressos na lei que resolvam estes casos (227º), ou existem artigos dispersos bastante densos que possam solucionar estas situações. Por isso, a 3ª via não foi acolhida no nosso ordenamento jurídico. Estando a expressão “3ª via” livre, é usada para designar outra realidade, proposta pelo prof. MENEZES CORDEIRO: em matéria de responsabilidade civil extra-obrigacional existem determinados deveres específicos. Por exemplo, há presunção de culpa se o dono de um cão não tomar conta dele e se morder uma pessoa; por outro lado, o dono pode ter adoptado todas as diligências necessárias mas o cão mordeu à mesma. Os casos dos arts. 491º-493º são de 3ª via da responsabilidade civil mas estão enxertados com normas específicas da responsabilidade civil obrigacional (deveres específicos no tráfego jurídico). A 3ª via representa uma situação mista, embora com mais semelhanças à responsabilidade civil aquiliana.

Figuras afins

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Enriquecimento sem causa – com a responsabilidade civil não se pretende empobrecer ou enriquecer sem causa; apenas ressarcir um dano;

Responsabilidade patrimonial – é um princípio geral de Direito, aplicado a todo o Direito privado: pelas violações cometidas por uma pessoa responde apenas o seu património (601º e SS.).

Objectivos da responsabilidade civil

Ressarcir danos (escopo tradicional); Realização das obrigações, no que toca à responsabilidade civil obrigacional;

Prevenção – uma pessoa que sabe de antemão que pode ser sujeita a indemnizar, tende a ser mais diligente;

Retribuir o dano ao agente que o causou.

Estes objectivos são mais difíceis de se projectarem na prática no que toca à responsabilidade civil pelo risco, uma vez que se prescinde da culpa. O objectivo da responsabilidade civil neste caso é a socialização do risco: por exemplo, a sinistralidade rodoviária em Portugal é elevada, havendo riscos cuja suportação é, igualmente, avultada. Cria-se a responsabilidade civil sobre o risco para ser mais fácil as seguradoras pagarem os sinistros.

Importância da responsabilidade civil

A responsabilidade civil assenta em valores culturais do ocidente, tendo um especial afecto relativo à pessoa. Esta figura é individual e implica culpa, acompanhada de um juízo de censura, distinguindo o que é permitido do que não é permitido (condição da liberdade e da segurança das pessoas). A responsabilidade civil apela para uma maior solidariedade da sociedade civil e não para a formação de um direito egoísta que se reduz a um contrato (universo de dois).

Fenómeno da socialização do risco

O dano é imputado no círculo diferente de onde ele ocorre, sendo reportado da esfera jurídica que inicialmente o sofreu;

Os danos praticados por uma pessoa colectiva são imputados na sua esfera jurídica e não na do titular do órgão que o pratica, havendo socialização do risco no sentido da sua expansão;

Imputação objectiva independente de culpa. Por exemplo, a entidade empregadora suporta acidentes de trabalho (é um seguro obrigatório).

Pressupostos da responsabilidade civil delitual (aqüiliana)

i. Facto – como um acto humano para efeitos da responsabilidade civil. O acto é uma acção humana que tem um sentido, sendo uma acção final; distingue-se do facto natural porque não tem em conta uma causa-efeito.

A acção abrange, também, omissões (“não fazer”) porque se alcançam os mesmos efeitos que uma acção. A omissão (art. 486º) pode ser condição de responsabilidade civil quando, por força da lei, se deveria praticar o acto omitido (deveres de tráfego – evitam a produção de danos – e deveres de diligência) – neste caso, por lei, porque do negócio jurídico traduz-se o incumprimento que cabe na responsabilidade civil obrigacional. Assim, o finalismo não é central porque através de uma omissão não é possível delimitar-se o seu fim. No facto está em

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causa a conduta ou o resultado? O que preocupa ao legislador é o dano, ao passo que para o Direito penal vale a conduta. Não se abdica totalmente da conduta no Direito civil, sobretudo em situações de prática de deveres de tráfego.

Os factos humanos presumem-se inimputáveis quando há falta de capacidade de entender e há falta de capacidade de querer (488º). O Direito não se pode compadecer com as estas limitações, tratando as pessoas de igual forma, presumindo que estas são livres (a não ser que estejam em causa condutas que não são voluntárias). É possível distinguir ou separar o facto da ilicitude? É, para efeitos de análise, mas o facto ilícito é uma realidade unida que não deve ser desdobrada, para efeitos de responsabilidade civil porque é a ilicitude que permite determinar o facto em causa.

ii. Ilicitude (483º) – traduz-se na violação ou inobservância de regras jurídicas. “Aquele que violar o direito de outrem ou qualquer disposição legal” – há aqui uma repetição porque na violação de um direito de outrem também se viola uma norma jurídica que permite a sua existência; para além de se violar um direito, este também se viola ilicitamente porque não há causa de justificação que legitime o facto em questão.

A ilicitude pode desdobrar-se em duas hipóteses: primeira, em relação a direitos subjectivos, onde está implícita a culpa, afastando-se, desde já, as expectativas e a protecção dos direitos programáticos; segunda, em relação a disposição legal destinada a proteger interesses alheios (normas de protecção). Estas normas de protecção visam valores protegidos pelo Direito que, uma vez suprimidos, causam um dano; quando a conduta do agente é contrária a uma norma de protecção, atingindo os interesses da norma violada, está a produzir um dano. Por exemplo, as normas de regulamentação e do funcionamento dos elevadores determinam que a porta só se deve abrir quando o ascensor estiver no piso correspondente, para não se por em causa a segurança das pessoas. Nestes casos, de violação de uma norma de protecção, é mais difícil determinar a culpa do agente. Em bom rigor, os pressupostos da ilicitude não são os mesmos quando há violação destas duas situações, para efeitos de responsabilidade civil.

Natureza da ilicitude – a ilicitude é subjectiva, isto é, tem em conta um facto humano voluntário. Por exemplo, se alguém aponta uma arma a outrem, tem que se saber qual é o fim desse acto (brincar, matar, ter legitimidade para a usar, etc.).

iii. Culpa – é um requisito muito importante para legitimar o uso deste instituto. De acordo com os artigos que se referenciam a “culpa”, no Código Civil, existem oito possíveis sentidos diferentes para a mesma; diferem porque não enquadram no mesmo contexto. Já na responsabilidade civil, culpa pode ter dois significados – 483º e 798º.

Natureza da culpa

Acepção psicológica – imputação psicológica do facto ao agente. Esta acepção regrediu, na medida em que o fundamento para o facto jurídico humano não é meramente objectivo, isto é, tem uma conduta voluntária;

Acepção ético-normativa – a culpa é um juízo de censura que o Direito faz, relativamente a alguém que tenha violado a lei. A culpa tem em conta uma instância de controlo autónoma, ou seja, é um juízo de censura que pode ser mais grave (dolo) ou menos grave (negligência).

A culpa tem de ser uma questão de Direito para se poder recorrer ao tribunal. A partir do momento em que a culpa é convertida num juízo de censura, esta é relevante para o Direito porque é um juízo jurídico que implica bitolas de valor.

Modalidade de culpa

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Dolo – juízo de censura sobre o agente que directa (porque ele pretende), necessária (não pretende violar a regra directamente) ou eventualmente (o agente tem um plano que pode envolver a violação de uma norma jurídica, caindo em dolo se a violar);

Mera culpa (negligência) – juízo de censura feito ao agente que violar um dever de cuidado. Há negligência grosseira quando o acto é consciente, isto é, o agente tem conhecimento da existência dos deveres de cuidado. Em relação à prova da culpa, o art. 487º/1 alude que é ao lesado que cabe provar o acto (e não a culpa); o nº 2 do preceito tem em conta a prova da negligência, acentuada por critérios de um bom pai de família.

Relevância da culpa no Direito Civil

Art. 494º – No caso de mera culpa (negligência), o autor do dano é obrigado a indemnizar o lesado. Há que ter em conta que a mera culpa actua através de pressupostos que se aplicam apenas no contexto: por exemplo, o mendigo que actua com negligência não terá, com certeza, a mesma penalização pela actuação negligenciada por um homem muito rico.

Presunção de culpa

A presunção de culpa recai no dolo – quando se prova que não há dolo, a presunção de culpa recai na negligência. Mesmo quando a actuação seja culpa por negligência, é necessário que o agente tenha consciência da violação da lei? A ignorância da lei, geralmente, não aproveita a ninguém, mas o juízo de censura é mais grave para o agente que tenha conhecimento da ilicitude da sua actuação. A teoria do dolo defende que o agente tem que ter consciência da ilicitude: para o prof. MENEZES CORDEIRO não, uma vez que o dolo é o juízo de censura sobre o agente que viole regras jurídicas.

iv. Ausência de causa de justificação – para haver responsabilidade civil, o agente tem que violar ilicitamente as normas jurídicas. São causas de justificação:

Colisão de direitos (335º), devendo ser reduzido aquele que cause menos danos; Acção directa (336º); Legítima defesa (337º); Estado de necessidade (339º); Consentimento do lesado (340º) em relação a direitos disponíveis.

v. Causas de excusa

Pode-se apresentar como causa de excusa todo o facto que, apesar de não integrar propriamente a impossibilidade de entender e querer, consubstanciadora de inimputabilidade, conduz, no entanto, a uma tal perturbação da vontade do agente que evita o juízo de desvalor, integrante da ideia de culpabilidade, isto é: havendo causa de excusa, não há culpa.

O erro desculpável; Medo invencível; A desculpabilidade.

Por erro desculpável deve entender-se o falso entendimento, por parte do agente, dos elementos condicionantes que ditaram a sua atitude objectivamente contrária à norma, quando não existisse nenhum dever de cautela, em ordem a evitar o engano. O erro deve, desta forma, recair sobre factores determinantes da conduta – essencialmente – e não deve ser, ele próprio, fruto de violação de deveres de cuidado – desculpabilidade. O medo invencível também exclui a reprovação do agente, pela afectação que acarreta à sua vontade que se pretende livre e esclarecida. Necessário é, no entanto, que o medo recaia em aspectos verdadeiramente condicionantes do comportamento do agente – essencialidade – e que seja de molde a, em

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termos de normalidade, explicar o desvio da vontade – invencibilidade. A desculpabilidade surge como factor de tal natureza que, face ao sentir geral, impede a reprovação do Direito, com referência a uma conduta.

vi. O dano

Ideia geral; dano real e dano de cálculo

O dano é a supressão ou diminuição de uma situação favorável: uma noção natural de dano, a confrontar com o correspondente conceito jurídico. O nível axiológico do dano pode advir de uma de duas situações:

Ou a de existir um bem atribuído, em termos permissivos, a uma pessoa – isto, é um direito subjectivo. Por exemplo, existe dano se for destruída uma coisa, objecto de um direito de propriedade de A;

Ou a de vingar, simplesmente, uma vantagem garantida pelo Direito, mas que ou por não corporizar um bem, ou por não assumir a forma de uma permissão específica, surge, simplesmente, como interesse protegido. Por exemplo, existe dano se B for impedido de contratar.

A noção de dano defendida encontra apoio directo no art. 483º/1 do Código Civil. O dano real é o prejuízo correspondente às efectivas vantagens – materiais ou espirituais – que forma desviadas do seu destinatário jurídico; o dano de cálculo é a expressão monetária do dano real.

Danos patrimoniais e danos morais

Um dano é patrimonial quando a situação vantajosa prejudicada tenha natureza económica; quando assuma, simplesmente natureza espiritual, o dano diz-se não patrimonial ou moral. O dano moral reporta-se a vantagens que o Direito não admita que possam ser trocadas por dinheiro, embora sejam compensáveis, naturalmente, em sede de responsabilidade civil. A tendência actual vai, inequivocamente, no sentido de admitir o dano moral como dano proprio sensu. Para tanto, constata-se que a responsabilidade civil não tem exclusiva função reconstitutiva, podendo-se contentar com simples papel compensatório. Nem é, para tanto, necessário recorrer à possibilidade de reparar danos morais: um dano patrimonial que, por qualquer razão, não seja reparável em espécie induz, na vítima, meras pretensões compensatórias. Assim sendo, fácil se torna defender que, se por definição o dano moral não é redutível a dinheiro, ele é, não obstante, compensável patrimonialmente. Não se trata, naturalmente, de uma compensação perfeita. O Código Vaz Serra acolhe a ideia de dano não patrimonial, no seu art. 496º/1, nos termos seguintes: na fixação de indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

A natureza do dano

Define-se oportunamente o dano como a diminuição de uma qualquer vantagem tutelada pelo Direito. Fundamentalmente, degladiam-se, neste ponto, duas orientações: a do dano abstracto e a do dano concreto.Segundo esta contraposição, a teoria do dano abstracto diria que o dano consistiria na diferença de valores existentes no património, antes ou depois da lesão ou, se se quiser, na diferença entre o valor real do património com a lesão e o seu valor hipotético se lesão alguma tivesse ocorrido. Pelo contrário, a teoria do dano concreto defende, simplesmente, que o mesmo se traduz na lesão de um determinado bem. Insatisfeito com a dicotomia das teses, o prof. CASTRO MENDES propôs a seguinte sistematização para as teorias explicativas da natureza do dano:

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Subjectivas – o dano teria por objecto a pessoa ou algo que se define em função a ela. A sua principal modalidade explicitá-lo-ia como uma lesão a um interesse;

Objectivas – o dano implicaria a perda de valor de um património ou a lesão de uma coisa ou de um interesse (objectivo);

Intermédias – as que misturam elementos objectivos e subjectivos; as que constroem dois conceitos de dano, um objectivo e outro subjectivo; as que apresentam o objecto do dano como algo de intermédio entre a pessoa e o bem.

Finda esta análise, mantém-se a noção do dano primeiro apontada – a qual indicia a sua natureza – isto é, o dano como diminuição de uma vantagem tutelada pelo Direito.

vii. O nexo de causalidade

Problemática geral

Entre a violação ilícita e culposa de um direito subjectivo ou de uma norma de protecção e o dano ocorrido, deve haver uma certa relação. Tem merecido o apoio generalizado dos autores a doutrina da causa adequada: esta orientação parte da ideia de conditio sine qua non: o nexo causal de determinado dano estabelece-se, naturalmente, sempre em relação a um evento que, a não ter ocorrido, levaria à inexistência de dano. Isto é: se mesmo sem evento, houvesse dano, haveria que procurar a sua causa em nível diferente. Simplesmente, como existirão, fatalmente, vários eventos nessa situação, trata-se de determinar qual deles, em termos de normalidade social, é adequado a produzir um dano, assim, se uma pessoa é ligeiramente ferida, numa agressão e morre, depois, por acidente ocorrido quando ia receber tratamento, não pode, ao agressor, ser atribuída a morte: uma pequena ofensa corporal não é a causa adequada de morte.

Posição adoptada

No tocante ao nexo de causalidade requerido pela responsabilidade civil aqüiliana, cumpre, deixar explícito que não existem, no estado actual da Ciência do Direito, fórmulas universais válidas. O art. 563º do Código Civil, a propósito da obrigação de indemnização dispõe: a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão. No domínio da causalidade, pode-se distinguir dois planos para efeitos de análise:

A causalidade enquanto pressuposto de responsabilidade civil; A causalidade como bitola de indemnização.

No primeiro plano opera como filtro negativo a conditio sine qua non: se o facto ilícito foi indiferente para a produção do dano, não há como imputá-lo ao agente. Mas não chega: pela positiva, haverá que formular um juízo humano de implicação: dadas as condições existentes, era compaginável, para a pessoa normal, colocada na situação do agente, que a conduta deste teria como resultado razoavelmente provável ou, simplesmente, possível, a produção do dano. A “pessoa normal” é uma pessoa social, integrada no meio onde o problema se ponha.

Em síntese, pode-se afirmar que a causalidade, enquanto pressuposto de responsabilidade civil, se desenvolve em quatro tempos:

Conditio sine qua non – todas as condições retiradas (se não acontecesse o dano) são equiparadas. Por exemplo se uma vaca é vendida com uma bactéria a um talho e o filho de um cliente morre. No limite, é responsabilizado o produtor;

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Adequada, em termos de normalidade social – a violação do direito constitui uma causa adequada à produção do dano; ou

Provocada pelo agente para obter o seu fim;

Consoante com os valores tutelados pela norma violada – não faz sentido ser a ultima condição a que contribui para o dano. Por exemplo, uma pessoa é atropelada e não é socorrida: a culpa não é do hospital mas do sujeito que atropelou. Então e quanto se tem em conta circunstâncias anormais aptas para provocar o dano? A causa é adequada. Por exemplo, o cardíaco que morre porque lhe pregam um susto – é “normal”; mas pregar um susto a uma pessoa que não tenha este problema, não é normal que morra.

Enquanto bitola de indemnização, a causalidade vai permitir responder a questões deste tipo: há que cotar com os danos indirectos ou apenas com os directos? Como conjugar concursos de causas ou, mais latamente, de imputações? Para o prof. MENEZES CORDEIRO, não há nenhum critério de imputação do nexo causal no Código Civil, no que respeita à noção de responsabilidade civil subjectiva do art. 483º.

A responsabilidade pelo risco

As origens

A responsabilidade pelo risco, também dita responsabilidade objectiva, imputação objectiva ou imputação sem culpa, é a situação na qual uma pessoa – o imputado ou respondente – fica adstrita a ressarcir outra, por um determinado dano, independentemente de, ilicitamente e com culpa, o ter originado. Trata-se de uma figura delicada, uma vez que prescinde de culpa: quer como elemento individualizador da pessoa que irá ficar obrigada a indemnizar, quer como factor significativo-ideológico justificante da própria situação de responsabilidade. A responsabilidade pelo risco desenvolveu-se como um reflexo da imputação delitual: certas actividades perigosas deveriam, havendo danos, dar azo a deveres de indemnizar.

Implicações dogmáticas

Numa leitura simplista poder-se-ia afigurar que a responsabilidade pelo risco, nas suas várias concretizações, se reconduziria a uma responsabilidade delitual, mas sem os requisitos da culpa e da ilicitude mas não é assim. As diferenças dogmáticas entre a responsabilidade comum, de tipo delitual e os diversos casos de responsabilidade pelo risco são tidas em conta pelo art. 499º:

“Na parte aplicável”: não operam as regras atinentes ao facto, à imputabilidade, à ilicitude, à culpa e ao próprio nexo de causalidade; o “facto-risco” terá de ser reconstituído, caso a caso, outro tanto sucedendo com a causalidade;

“Na falta de preceitos legais em contrário”: por “preceitos legais” deve entender-se, em geral, o Direito especialmente aplicável, envolvendo normas, princípios e interconexões que entre eles se estabeleçam.

A responsabilidade do comitente

Seguindo a ordem do Código Civil, a responsabilidade do comitente é a primeira hipótese nele prevista, de responsabilidade pelo risco. Ela surge assim apresentada (500º/1): aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar.

Os pressupostos

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a) A comissão – o primeiro pressuposto inserido no art. 500º/1, para a responsabilidade do comitente, e a situação de alguém encarregar outrem de uma comissão ou o acto e o efeito de comitir;

b) Danos, causalidade e imputação ao comissário – havendo comissão, o art. 500º/1 depende, ainda, dos pressupostos seguintes:

A ocorrência de danos; Causados pelo comissário; Desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar.

A ocorrência de danos é o ponto de arranque de qualquer situação de responsabilidade civil. O art. 500º/1 não especifica pelo que, nos termos gerais, estão incluídos todos os tipos de danos, assim como os morais. Todavia, só serão de relevar os danos que ocorram no âmbito da comissão em jogo, causados pelo próprio comissário.

c) No exercício da função – o art. 500º/2 faz a seguinte precisão, relativamente à responsabilidade do comitente: a responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada.

A ideia do legislador é a de delimitar o âmbito do risco que vai repercutir no comitente. Mas até onde vai a fronteira? Há que ter em conta uma orientação extensiva: basta que os danos sejam causados o exercício da função e não por causa desse exercício.

A responsabilidade pelo sacrifício

Aspectos gerais – há responsabilidade pelo sacrifício sempre que o Direito admita, como lícita, a prática de determinados danos mas, não obstante, confira ao lesado o direito a uma indemnização. Por isso fala-se, também, por responsabilidade por actos lícitos. A ideia de base é simples: o Direito, de acordo com critérios normalmente enformados pelo interesse público exige, em certos casos, sacrifícios selectivos que envolve a supressão ou a compreensão de direito privados ou o postergar de interesses seus legitimamente protegidos. Quando tal suceda, impõe-se compensar o atingido.

O Direito privado; a tipicidade

Procurando fixar directrizes de ordem geral, encontram-se dois requisitos:

A permissão de causar um dano, através da inobservância de direitos subjectivos ou de interesses juridicamente tutelados e a imposição de um dever de indemnizar.

A permissão de causar um dano é, seguramente, excepcional. Uma autorização geral para lesar as pessoas, em áreas de tutela jurídica, não surge compaginável com uma ideia consistente de ordenamento civil. Pode-se, por isso, falar de uma tipicidade de situações de possível imputação pelo sacrifício, que se infere do art. 483º/2.As previsões do sacrifício

No CC há diversas previsões de imputação do sacrifício. Podemos agrupá-las em três blocos: o estado de necessidade (339º), a lesão ao direito de propriedade e o incumprimento de contratos.

O estado de necessidade permite destruir ou danificar coisa alheia com o fim de remover o perigo actual de um dano manifestamente superior, do agente do de terceiro. Quanto à indemnização, a lei é muito lata: ela é integral e recai sobre o agente quando o perigo for

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provocado por sua “culpa” exclusiva (como qualquer circunstancialismo que lhe seja imputável); ou ela pode ser equitativa, cabendo ao agente e, ainda, aos que tiraram proveito do acto ou contribuíram para o estado de necessidade.

No domínio dos direitos reais, encontramos situações de sacrifício previstas quanto ao direito de propriedade e aplicáveis na presença de direitos reais de gozo (ou do próprio arrendamento) de conteúdo equivalente. Assim, por exemplo, o proprietário de prédio onde sejam construídas ou mantidas obras, instalações ou depósitos de substâncias corrosivas ou perigosas, mesmo quando lícitas, deve indemnizar os vizinhos pelos danos sofridos (1347º/3). Neste caso, o saber se se está perante uma imputação pelo risco ou uma imputação pelo sacrifício depende de determinar se, imaginando que os danos fossem previsíveis, é lícito ou não provocá-los. No primeiro há sacrifício; no segundo, risco (na falta de “culpa”). Com uma importante consequência prática: os danos podem ser proibidos sempre que não se esteja perante uma previsão de sacrifício.

A responsabilidade pelo sacrifício ocorre, ainda, em casos nos quais seja permitido o não-cumprimento de um contrato. Terá, então, natureza obrigacional. Por exemplo, o dono da obra pode desistir da empreitada a todo o tempo, contanto que indemnize o empreiteiro dos seus gastos e trabalho e dos proveitos que poderia ter tido (1229º).

Regime geral e natureza

Por opção do legislador, não há um regime geral para a responsabilidade pelo sacrifício. A possibilidade de causar licitamente danos na esfera alheia é um privilégio que deve ser visto com cuidado uma vez que tem natureza excepcional. É uma responsabilidade sem ilicitude e sem culpa mas daí não se pode inferir que, para o Direito, seja indiferente a ocorrência dos danos a que ela conduza.

O dever de indemnizar

Generalidades

Etimologicamente, indemnização é a causa ou o efeito de indemnizar, isto é, de tomar indemne (in+damno) ou seja, sem dano. Dentro do sistema da responsabilidade civil, a indemnização pode traduzir:

A obrigação de indemnizar (562º-572º); O objecto da obrigação de indemnização, isto é, a sua prestação; A situação jurídica que compreende um fenómeno de responsabilidade civil.

A obrigação de indemnizar surge como um vínculo estruturalmente creditício. Apresenta, no entanto, características próprias que têm justificado a sua autonomização:

Tem, como fonte, um simples facto jurídico que integra qualquer imputação; Tem, como sujeitos, o lesado (credor) e o imputado (devedor); Tem, como conteúdo, uma prestação que se traduz na supressão do dano; Tem, por escopo, a aludida supressão.

Modalidades; em especial: específica e pecuniária

A indemnização, enquanto vínculo obrigacional, pode ser classificada em várias modalidades, de acordo com diversos critérios. Salientam-se:

O dos sujeitos; O do tipo de imputação; O da espécie de dano; O do conteúdo;

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O do escopo.

Quanto aos sujeitos, pode-se considerar a indemnização como plural ou singular, consoante se verifique, ou não, um fenómeno de complexidade subjectiva. Quando ao tipo de imputação, a indemnização é delitual, pelo risco ou pelo sacrifício; esta classificação não se confunde com a que opera consoante a espécie de dano a ressarcir e que permite obter indemnização por danos morais ou por danos patrimoniais. Por exemplo, da imputação pelo risco derivada de uma colisão de veículos pode resultar uma obrigação de indemnizar danos morais e danos patrimoniais, assim como a violação de um direito real pode conduzir ao dever de indemnizar, também de danos patrimoniais e danos morais. Quanto ao conteúdo, a indemnização pode ser específica ou genérica. Diz-se específica quando a respectiva prestação implique a entrega, ao lesado, de um bem igual ao prejudicado; é pecuniária quando haja, apenas, lugar à restituição do valor correspondente ao da lesão, normalmente através de uma entrega em dinheiro. Como referência à distinção entre esta modalidade de indemnização cumpre ter em conta o art. 566º/1. Resulta, deste preceito uma nítida preferência pela indemnização específica, considerada mais perfeita do ponto de vista da reparação do dano.

Em princípio, esta terá lugar como regra, só não se aplicando:

Quando não seja possível; Quando não repare integralmente os danos; Quando seja excessivamente onerosa para o devedor.

A indemnização específica não é, de um modo geral, possível, sempre que o bem lesado não seja fungível. É o que sucede com os danos morais. A hipótese de, através de uma entrega específica, não se conseguir uma reparação integral de danos deriva de que, muitas vezes, as lesão de um bem provoca danos conexos com a própria lesão em si, os quais, naturalmente, não desaparecem retroactivamente, com a substituição do bem lesado. Não deve concluir-se da letra da lei, que em tal eventualidade, toda a indemnização deva ser paga em dinheiro. Finalmente, pode acontecer que a indemnização específica, sendo possível, acarrete, para o obrigado a indemnizar, um esforço que não tenha qualquer equivalência com a vantagem do lesado. Posto o que se pode, então, recorrer à indemnização pecuniária.

Delimitações; compensatio lucri cum damno; culpa do lesado

A regra geral no tocante à determinação é a da equivalência ao montante do dano imputado. Existem, no entanto, diversas excepções a esse princípio que, operando como autenticas delimitações ao princípio fundamental referido, conduzem a que a indemnização seja inferior aos danos verificados. Na imputação delitual, normalmente, não há quaisquer limitações: a indemnização deve cobrir integralmente todos os danos imputados. O único desvio deriva do art. 494º: quando a imputação se faça a título de mera negligência. Ao contrário do que sucede na imputação subjectiva, é frequente, na imputação objectiva, nomeadamente pelo risco, a existência de limites às indemnizações, que, dessa forma, podem ficar aquém dos danos. Assim, no caso das indemnizações assacadas a inimputáveis, nos termos do art. 489º/2, devem as mesmas ser calculadas (…) de forma a não privar a pessoa não imputável dos alimentos necessários, conforme o seu estado e condição, nem dos meios indispensáveis para cumprir os seus deveres legais de alimentos.

A contraposição entre a responsabilidade civil ilimitada e a responsabilidade objectiva limitada oferece um máximo de interesse, no tocante aos danos provocados por veículos: quando haja ilicitude, todos os danos provocados devem ser ressarcidos; pelo contrário, quando se verifique a mera aplicação dos esquemas de imputação delitual, aplicam-se os limites do art. 508º.

Sujeitos da indemnização; complexidade subjectiva; terceiro violador da obrigação

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Em princípio, são sujeitos da indemnização o lesado e a pessoa a quem os danos sejam imputados. Por isso, se a determinação do titular da indemnização é, normalmente, de apreensão imediata, só através da aplicação das regras da imputação se torna possível reconhecer o devedor da mesma indemnização. De qualquer forma, na imputação delitual, é obrigado o autor da lesão; na imputação objectiva, surge como responsável o beneficiário do processo que originou os danos.

No campo da responsabilidade delitual, pode acontecer que a imputação recaia sobre varias pessoas, todas reconhecidas como autoras da lesão. Nesse contexto, o art. 497º/1 estabelece uma regra de complexidade subjectiva na respectiva obrigação de indemnização, com um regime de solidariedade. A complexidade subjectiva na indemnização, na forma de solidariedade, surge, ainda, na responsabilidade pelo risco em sede de colisão de veículos, conforme manda o art. 507º/1. Nos termos gerais (513º) deve entender-se que a indemnização solidária só surge quando prescrita por lei ou quando acordada pelas partes. Em todas as outras situações de complexidade subjectiva no ressarcimento, há que aplicar o regime supletivo da parciariedade.

Como consequência da refutação da total relatividade das obrigações, deve entender-se que qualquer terceiro que viole um crédito ou, de alguma forma, colabore com o devedor em tal violação, é responsável, nos termos gerais, pelos prejuízos causados, desde que se verifiquem os requisitos da imputação delitual.

Cumprimento das obrigações

Cumprir uma obrigação significa realizar aquilo que está previsto no programa obrigacional e tem como consequência a satisfação do interesse do credor. O cumprimento é tratado como forma de extinção de uma obrigação; no entanto, a extinção não é o único efeito do cumprimento. Por exemplo, as obrigações duradouras não extinguem o dever de cumprimento, antes pelo contrário: fortalecem a relação obrigacional entre as partes.

Realizar a prática do devido – todo o regime das obrigações é materializado no cumprimento. Tendo em conta a sua natureza jurídica, o cumprimento não é um negócio jurídico: não há liberdade de estipulação; também não é um acto jurídico stricto sensu porque não há liberdade de celebração. O cumprimento é um facto jurídico stricto sensu – é um acto devido, sem liberdade. O cumprimento também não é um direito, é um dever como necessidade jurídica do cumprimento do acto: não existe direito de cumprimento ou não.

Princípios norteadores deste instituto

1. Princípio da boa fé – este princípio desdobra-se na medida do esforço do devedor, uma vez que este tem de satisfazer o interesse do credor; o acto de cumprimento tem de ser feito que não perturbe a vida normal do credor. Este princípio não está associado à autonomia privada porque o cumprimento não é livremente negociável: tem de ser, simplesmente, cumprido;

2. Princípio da tutela da propriedade – o cumprimento defeituoso prejudica o património do credor;

3. Princípio da correspondência (pontualidade) – segundo um critério qualitativo, a prestação realizada tem de ser idêntica à prestação devida;

4. Princípio da integralidade – segundo um critério quantitativo, a prestação realizada tem de ser idêntica à prestação devida.

5. Princípio da concretização – a prestação tem de corresponder, forçosamente, ao que foi combinado. Deste princípio resultam vários critérios:

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Prazo

O prazo é o momento em que a prestação tem de ser cumprida ou que pode ser exigida, correspondendo ao vencimento da obrigação. O art. 777/1º determina um prazo geral se não for estipulado pelas partes ou se não resultar da lei; apesar disso, há alguns prazos que resultam da natureza do negócio celebrado. Por exemplo, se o Estado contrata uma entidade para limpar as escolas após as eleições, a obrigação terá que ser realizada no dia 6 de Junho. O prazo pressupõe exigibilidade fraca da obrigação quando há possibilidade de provocar o vencimento, ou seja, o credor pode exigir o cumprimento da mesma – há uma interpolação (declaração do credor perante o devedor para que este cumpra) Por exemplo, A diz a B para pagar “daqui a 2 dias”. Passados esses dois dias, quando o devedor tem de cumprir a obrigação, dá-se exigibilidade forte, senão a obrigação vence o prazo de cumprimento; se passarem os dois dias sem que o devedor cumpra o pagamento, o credor pode exigir o cumprimento da obrigação.

Benefício do prazo – relativamente a quem beneficia do prazo antes de pagar a obrigação, se não for estipulado, é o devedor – 779º. Há interusurium por parte do devedor porque este retira vantagens decorrentes do prazo por exemplo se beneficiar 100€ dos 500€ que deve.

Lugar da prestação – para haver cumprimento é necessário que o devedor e o credor se juntem para se saber onde o devedor cumpre a prestação. Ou é estipulado ou decorre da natureza do lugar: por exemplo, se A contratar um canalizador para tratar dos canos da sua casa, a obrigação de os reparar será, efectivamente, na sua casa e não no jardim.

Legitimidade – qualidade do sujeito que o habilita a agir numa determinada situação jurídica. Receber a prestação trata-se de legitimidade passiva – em princípio só o credor pode receber a prestação (769º-771º); realizar o cumprimento trata-se de legitimidade activa (767º/1) – o credor não pode recusar o cumprimento da prestação por terceiro senão há mora (768º/1), podendo apenas recusar nos casos do 768º/2.

Imputação do cumprimento – por exemplo, A pede 500€ a B e no dia seguinte pede-lhe mais 200€ emprestados e, passada uma semana, envia-lhe um cheque de 600€: a questão que se coloca é onde se vão imputar estes 600€, se no empréstimo de 500€ ou no de 200€ (783º).

O cumprimento tem como efeito primordial a extinção da obrigação, podendo, contudo, não acontecer no caso das obrigações duradouras ou no caso de transmissão da obrigação. Há ainda situações que correspondem ao cumprimento mas que não extinguem os deveres pós-eficazes da obrigação – culpa pós pactum finitum:

Pós-eficácia aparente – por exemplo, com o divórcio, o ex-cônjuge terá que prestar alimentos. Este dever não decorre da pós-eficácia do casamento: é, antes, um dever que deriva do próprio instituto do divórcio;

Pós-eficácia virtual – quando um certo efeito está associado à extinção de uma obrigação pelo cumprimento da mesma;

Pós-eficácia continuada – está relacionada com deveres que derivam da boa fé, antes, durante e após o cumprimento do contrato;

Pós-eficácia em sentido estrito – corresponde aos deveres que nascem realmente do cumprimento da prestação principal, tendo base no princípio da boa fé; nascem porque houve uma obrigação, um dever de prestar principal.

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Quando se fala em não cumprimento há que fazer duas distinções: incumprimento stricto sensu – não execução da prestação principal e incumprimento latu sensu – inobservância de quaisquer condutas. Perante uma situação de incumprimento há um juízo de censura por parte do Direito, ou seja, há culpa e lugar a uma obrigação de indemnizar. O regime será diferente quando a prestação se tornar impossível por causa não imputável ao devedor.

Modalidades de não cumprimento

Incumprimento da prestação principal ou de deveres acessórios; Incumprimento parcial (prestação principal fraccionada) ou total; Incumprimento definitivo ou infinitivo (mora).

No incumprimento há ausência de prestação, violação negativa do contrato, ou, então, há cumprimento defeituoso da prestação principal ou de deveres acessórios – violação positiva do contrato.

Modalidades de não cumprimento stricto sensu

a) Mora do devedor – situação jurídica na qual uma prestação não é realizada no momento devido mas que ainda é passível de ser realizada. Para isso, há que estabelecer um prazo, a prestação ainda ser possível e o credor tem que ter interesse na realização da mesma – 808º/1 a contrario (se o credor ainda tiver interesse objectivo – susceptibilidade que a prestação tem para satisfazer a necessidade do credor).

Para haver mora, é necessário que a prestação seja exigível em sentido forte, que seja concretizável, tenha liquidez, e tem que haver um acto ilícito por parte do devedor.

Ou o prazo é fixado por acordo das partes – mora ex persona (805º/1); Ou o prazo é fixado pela natureza da obrigação – mora ex re (805º/2).

Para a mora é necessário um juízo de censura – culpa – no sentido de faute do agente. A simples mora constitui a obrigação de restituir os danos provocados ao credor mais a obrigação de prestar principal – 804º. Numa obrigação pecuniária, a mora representa os juros da prestação principal.

Risco – quando a obrigação se torna impossível por facto não imputável ao credor nem ao devedor, o risco é do credor; quando há mora, o risco é do devedor (806º/807º).

Quando é que acaba a mora? Quando o devedor cumpre ou quando se passa a um estado de incumprimento definitivo por perda do interesse do credor ou porque o devedor não cumpre, de todo, a sua obrigação, podendo o credor avisá-lo por meio de uma interpolação indemunitória.

Destes factos resulta uma situação altamente burocrática para o credor ver a sua obrigação realmente cumprida se o devedor nunca prestar o devido.

b) Mora do credor – o credor pode ser responsabilizado pelas despesas desnecessárias que provoca ao devedor (808º/1). O credor pode entrar em mora quando não colabora com o devedor para este efectivar a sua prestação – 813º: em relação ao risco, se o credor não aceita a prestação, por mora, o risco é do mesmo – 814º/1; quando o facto não é imputável ao dolo do devedor, é o credor que tem de acarretar o risco – 815º/1. A lei não exige a culpa do credor para funcionar a mora (natureza da mora do credor).

c) Não cumprimento definitivo – há incumprimento definitivo quando a prestação já não é possível de ser realizada ou ainda é possível mas já não há interesse do credor ou ainda é possível mas já passou da interpolação indemunitória.

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Consequências

Desaparece a prestação principal mas mantêm-se os deveres acessórios; Se uma das prestações for incumprida definitivamente resolve-se o contrato e a outra

parte também não cumpre;

Se há declaração de não cumprimento por parte do devedor, há exigibilidade forte por parte do credor, o que não se confunde com a dúvida de impossibilidade objectiva, isto é, se não há prazo, o credor pode exigir o cumprimento; se o prazo beneficiar o credor, este prescinde do benefício; se for mora não é necessária a interpolação indemunitória.

Quando há resolução do contrato, este desaparece e devem ser indemnizados os danos para que o lesado fique na mesma posição se não houvesse contrato – vertente do interesse negativo; noutra orientação, devem ser indemnizados os danos causados para colocarem o lesado na posição se tivesse ocorrido o contrato – concepção do interesse positivo, que é limitada pelo estádio avançado do contrato. Este entendimento está disposto no art. 562º e é fundado na culpa in contrahendo – como se transpõe para a resolução do contrato no caso de não cumprimento? A resolução do contrato prevê a nulidade do mesmo, porque tem eficácia retroactiva, não havendo, realmente, contrato e, por isso não há indemnização. Não pode ser esta a solução: havendo solução do contrato, o incumpridor tem de indemnizar todos os danos – 798º.

Realização coactiva da prestação – 817º: o direito do credor fica configurado no tribunal, exigindo o cumprimento do devedor; senão, há execução a partir do património do mesmo.

Execução específica

De coisa determinada – 827º; De coisa fungível (a prestação é feita pelo devedor ou por terceiro) – 828º; De prestação de facto negativo – 829; De facto não fungível com sanção pecuniária compulsória que se destina a fazer com

que o devedor cumpra a prestação, não indemnizando o credor – 829º-A; Do contrato-promessa – 830º.

Instituto de alterações das circunstâncias – modalidades de incumprimento impossível

Impossibilidade física; Impossibilidade jurídica;

Impossibilidade absoluta – relativamente a todos os devedores; Impossibilidade relativa – tendo em conta apenas um devedor

Impossibilidade temporária; Impossibilidade definitiva; Impossibilidade efectiva – em quaisquer circunstâncias; Impossibilidade económica – quando é muito onerosa para o devedor; Impossibilidade inicial; Impossibilidade superveniente; Impossibilidade moral – quando colide com outros direitos.

No caso de a impossibilidade não for imputável ao devedor (790º, 793º, 794º), ao contrário da impossibilidade imputável ao mesmo (801º/1, 802º), há que ter em conta que não há uma actuação culposa do devedor, o risco não cabe ao devedor mas sim ao credor porque é o detentor do direito e o devedor não atinge o resultado da obrigação.

Violação positiva do contrato – dá-se quando o cumprimento da prestação inserida no contrato não é satisfatório, não constituindo uma forma de extinção da obrigação, ao contrário do que acontece com o não cumprimento definitivo ou o incumprimento por impossibilidade. O cumprimento imperfeito trata-se de um cumprimento inadequado da prestação principal ou do

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não cumprimento dos deveres acessórios – 763º/1 – podendo o credor recusar a prestação por causa deste vício. Quando o credor aceita a prestação sem conhecer o vício, pode anular o contrato; se sabe do vício pode ser indemnizado ou pode perdoar o devedor, tendo em conta que o conhecimento do vício tem de ser demonstrado por um consenso entre ambos, isto é, o conhecimento e a desculpa do vício não é unilateral, tem de resultar de um encontro de vontades. Qual a natureza jurídica do cumprimento imperfeito? De acordo com a teoria da cisão, o cumprimento ainda se trata de cumprimento; contudo, no que se refere ao cumprimento defeituoso constitui um dano.

Cumprimento e não cumprimento das obrigações

I. O cumprimento das obrigações

O cumprimento de uma obrigação é a realização das actuações nela previstas. Nos casos-base, ele implica a satisfaça do interesse do credor, através da prestação do devedor, de modo a obter a realização do seu escopo. Em geral, ele postula a efectivação de todos os deveres, a cargo do devedor ou do credor e que possam ser conexionados com determinada obrigação.

Os princípios do cumprimento

No domínio do cumprimento, pode-se enunciar os princípios seguintes:

O princípio da boa fé; O princípio da tutela da propriedade; O princípio da correspondência; O princípio da integralidade; O princípio da concretização.

O cumprimento é fundamentalmente, concretização da ideia de Direito: por isso comina, a lei, a ambas as partes, o dever genérico de actuar de boa fé (art. 762º/2). O princípio da propriedade privada (art. 62º CRP) é convocado pelo seguinte a não haver cumprimento, são atingidos os direitos do credor. Estes têm tutela constitucional.

A correspondência, a integralidade e a concretização

O princípio da correspondência diz respeito à proposição segundo a qual o cumprimento deve reproduzir, qualitativamente, o figurino abstracto de comportamento humano dado pelo binómio direito à prestação/dever de prestar. O princípio da integralidade diz que a prestação não deve ser efectuada por partes (art. 763º/1), excepto se outra coisa for devida por convenção, lei ou usos. O princípio da concretização reúne o conjunto dos parâmetros necessários para transmutar o comportamento devido, previsto na obrigação, numa atitude concreta, real e efectiva.

O prazo da prestação

Diz-se prazo da prestação o momento em que esta deve ser cumprida; quando esse momento chega, ocorre o vencimento da obrigação que torna a obrigação imediatamente exigível. O prazo da prestação pode estar predeterminado por disposição legal, por estipulação das partes ou pela natureza das coisas.

A interpelação; exigibilidade fraca e forte

Quando o momento da determinação do prazo caiba ao credor, por convenção, por disposição legal ou por natureza das coisas, pode o mesmo provocar o vencimento da obrigação por meio de interpelação (805º/1 e 2), isto é, por meio de declaração, judicial ou extra-judicial, feita ao devedor, de que este deve cumprir. Pode suceder que a interpelação só seja possível a partir de

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determinado momento, com a advertência do qual a prestação também se diz exigível – exigibilidade fraca, distinguindo-se da exigibilidade forte que ocorre depois do vencimento da obrigação. Dada a natureza dinâmica de que se reveste a fenomenologia obrigacional, qualquer prazo, uma vez estabelecido, pode ser alterado: pode ser prolongado ou antecipado. O prolongamento do prazo redunda numa moratória.

Para averiguar das possibilidades de antecipação do prazo, para além da hipótese de tal se verificar por expressa injunção legal, há que atender a favor de quem é o prazo estabelecido, isto é, quem tem o beneficio do prazo.Nos termos do art. 779º, o prazo pode ser estabelecido:

Em benefício do devedor; Em benefício do credor; Em benefício de ambos.

O mesmo preceito determina que, quando outra coisa não se mostre, o prazo tem-se por estabelecido a favor do devedor. Quando o prazo é estabelecido a favor do devedor, o credor não o pode antecipar; o devedor pode, porém, fazê-lo, sendo a prestação havida como cumprimento efectivo (440º e 476º/3, implicitamente). O devedor pode perder o benefício do prazo com o efeito automático de a obrigação se tornar imediatamente exigível (ou em sentido fraco) quando fiquei insolvente ou, por culpa sua, diminua as garantias do crédito ou não sejam prestadas as garantias prometidas (780º/1). Sendo o prazo estabelecido a favor do credor, este pode provocar o vencimento antecipado da obrigação, ao contrário do devedor; se o for em benefício de ambos, a antecipação só é viável por acordo.

O lugar da prestação

O lugar do cumprimento advém da norma jurídica ou da vontade das partes (772º/1). O Código contém normas específicas supletivas em relação a obrigações de entrega de coisa móvel e pecuniárias. A obrigação de entrega de coisa móvel deve ser cumprida no lugar onde a coisa se encontrava no momento da conclusão do negócio (773º/1). O mesmo princípio tem aplicação quando se trate de coisa genérica a ser escolhida de um conjunto determinado ou d coisa que deva ser produzida em certo lugar (773º/2). As obrigações pecuniárias devem ser efectuadas no lugar do domicílio do credor ao tempo do cumprimento (774º). Porém, se as partes tiverem estipulado que o cumprimento se efectue no domicílio do credor, entende-se que tiveram em conta o domicílio que ele tinha no momento da constituição da obrigação e não no cumprimento. Assim, se o credor mudar de domicílio, deve a obrigação ser satisfeita no local do domicílio do devedor ou no novo domicílio do credor.

Suscita-se o problema geral da alteração superveniente do lugar da prestação. Esta pode emergir de dois factores: de acordo entre as partes ou de evento que torne impossível o cumprimento no lugar fixado. Neste ultimo caso, manda o art. 776º que se apliquem as normas supletivas dos art. 772º-774º aos cumprimentos em causa. E quando da aplicação destas normas, o cumprimento se inviabilize? Em tal hipótese, entende-se que, se as partes não acordaram nenhum local, há que recorrer ao tribunal, por aplicação analógica do art. 777º/2.

A legitimidade e o cumprimento

A legitimidade é a qualidade de um sujeito que o habilite a agir no âmbito de uma situação jurídica considerada. No domínio do cumprimento, tem legitimidade activa aquele que possa efectuar a prestação devida (767º/1). Face às excepções do 767º/2, pode-se proclamar que a prestação pode ser efectuada por qualquer pessoa, respeitando, naturalmente, as regras referidas ao tempo e ao lugar da prestação, excepto:

Quando tenha sido expressamente acordado que só o devedor possa cumprir;

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Quando a substituição prejudique o credor.

O CC reforça esta injunção ao determinar que o credor incorre em mora perante o devedor quando recuse a prestação efectuada por terceiro (768º/1). A única excepção a este regime emerge do 768º/2, segundo o qual o credor pode recusar a prestação quando, cumulativamente:

O devedor se oponha ao cumprimento por terceiro; O terceiro não possa ficar sub-rogado no crédito (592º).

A lei entende que, sendo a prestação fungível – com a consequência de ser indiferente, para o credor, a realização da prestação pelo devedor ou por terceiro – nenhuma razão existe para impedir o cumprimento realizado por terceiro.

Tem legitimidade passiva, para efeitos do cumprimento, aquele que possa receber a prestação. A regra geral (769º) é de que a prestação deve ser feita ao credor ou ao seu representante – neste último caso, o devedor só está obrigado a aceitar a indicação do credor se assim se tiver convencionado (771º). A prestação pode ser feita a terceiro nos termos do art. 770º; fora dos casos previstos neste preceito, a prestação feita a terceiro não extingue a obrigação e pode ser repetida pelo devedor (476º/2). Consequentemente, não consubstancia qualquer cumprimento.

A imputação do cumprimento

Diz-se imputação do cumprimento a identificação de determinado comportamento como devido, nos termos de certa obrigação. A regra geral é a de que a imputação seja feita pelo devedor (783º/1). Pode, porém, não ser assim efectivamente quando um devedor adstrito a várias dívidas do mesmo género, em face do mesmo credor, efectue um cumprimento insuficiente para extinguir todas as dívidas, sendo necessário determinar, com precisão, por conta de que dívida é feito o cumprimento. Quando o devedor não use a faculdade que lhe é conferida de fazer a imputação, funcionam as regras supletivas do art. 784º.

A prova do cumprimento

Efectuado o cumprimento de uma obrigação, tem o seu autor – normalmente o devedor – o máximo interesse em poder provar a ocorrência, isto é, em demonstrar a sua realização. O Direito confere ao devedor a faculdade de recusar o cumprimento enquanto não lhe for dada a quitação, ou seja, enquanto não lhe for passada declaração, normalmente constante de documento específico – o recibo – de como o cumprimento foi realizado (787º/2).

Os efeitos do cumprimento

Normalmente, o cumprimento é realizado pelo devedor perante o credor. O seu efeito primordial típico é, nessa eventualidade, a extinção da obrigação, a qual implica, por seu turno, outros efeitos: a extinção do direito do credor e a liberação do devedor. Do cumprimento nem sempre resulta a extinção das obrigações: é o que sucede quando seja, nomeadamente, realizado por terceiro. Para além do efeito primordial, o cumprimento produz efeitos acessórios. Assim:

Opera como facto constitutivo do dever, por parte do credor, de passar quitação ou de restituir o título do crédito;

Acarreta a extinção das garantias reais ou pessoais conexionadas com o crédito; Obriga a contraparte a efectuar, ela própria, a prestação devida, não mais se podendo

opor em nome da excepção do contrato não cumprido.

A afirmação paradigmática da natureza extintiva do cumprimento cede em duas situações de relevo: nas obrigações duradouras e nos deveres acessórios. Quanto às primeiras, é pacifico que o cumprimento não conduza à sua extinção. Pelo contrário: antes as reforça. Os deveres acessórios podem substituir ao cumprimento. Em bom rigor, o efeito extintivo manifesta-se,

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apenas, relativamente à prestação principal e às prestações secundárias que venham a ser executadas. Este fenómeno está no coração da culpa pos pactum finitum.

De acordo com a descoberta de Jhering, antes de concluído um contrato, poderia haver, já, deveres a observar pelas partes, sob pena de responsabilidade: culpa in contrahendo. Desta feita, verifica-se uma projecção simétrica: depois de extinta a relação obrigacional e tendo cessado o contrato, ainda se manifestam determinados deveres para as partes: são os deveres pós-eficazes – é o instituto denominado culpa pos pactum finitum.A ocorrência de feitos jurídicos depois da extinção do dever de prestar é possível por vias distintas; o fenómeno sucede independentemente da natureza das obrigações em causa. Nessa medida, pode falar-se em pós-eficácia das obrigações em sentido amplo, cuja expressão dá abrigo a realidades jurídicas diversas: à pós-eficácia aparente, quando os efeitos sejam imputados, por disposição legal expressa, à extinção de certas obrigações; à pós-eficácia virtual, sempre que a fonte da obrigação tida por extinta postule deveres secundários eficazes apenas depois da execução da prestação principal; a eficácia continuada corresponde à manutenção, para lá do cumprimento da prestação principal, de deveres secundários já anteriormente manifestados e à pós-eficácia estrita, limitada à sobrevivência, face à obrigação, de deveres acessórios. Não existe pós-eficácia do dever de prestar principal.

II. O não cumprimento das obrigações

Há não cumprimento, incumprimento ou inadimplemento, sempre que o devedor não realize, de acordo com as regras aplicáveis, a prestação devida. O incumprimento, numa noção normativa, é a não realização da prestação devida, enquanto devida. Pode-se distinguir:

O incumprimento stricto sensu, relativo à não execução da prestação principal; O incumprimento lato sensu que reporta à inobservância de quaisquer elementos

atinentes à posição do devedor ou do credor, estando em causa os deveres acessórios.

Do incumprimento em sentido estrito pode-se separar a impossibilidade da prestação. A prestação é a conduta humana; consequentemente, não pode haver prestação devida quando esta implique um comportamento que não seja possível. Caso o incumprimento de determinada prestação devida venha, supervenientemente, a tornar-se impossível, extingue-se a prestação principal. O dever de prestar principal extinto não dá lugar a um incumprimento. O problema atinge o auge se for tido em conta que a destruição do bem-prestação, através da impossibilidade, pode ser provocada pelo devedor – esta situação aproxima do incumprimento em sentido estrito, pelo que art. 801º/1 equipara os seus regimes.

No momento do cumprimento, quando a prestação seja possível mas não tenha sido acatada pelo devedor, há incumprimento. Quando, pelo contrário, nesse mesmo momento a prestação já não é possível, ainda que por obra do devedor, não há incumprimento mas impossibilidade. No entanto, é fácil constatar que, no momento da prestação, esta pode ser possível e não ter lugar:

Por acto de terceiro; Por acto do credor; Por qualquer outro facto não voluntário.

Modalidades de incumprimento

Consoante se trate da inobservância da actividade devida ou dos ditames da boa fé que a devem circundar, pode-se distinguir o incumprimento da prestação principal ou incumprimento das prestações secundárias e o incumprimento de deveres acessórios, reconduzível à violação positiva do contrato ou ao incumprimento imperfeito. Estando em causa aspectos qualitativos e quantitativos do cumprimento, a distinção pode operar entre cumprimento defeituoso e cumprimento parcial. As regras sobre prazo da prestação, conjugadas com a sua possibilidade,

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permitem distinguir o incumprimento definitivo do incumprimento temporário ou mora. Uma última distinção discerne o incumprimento subjectivo – não concretização do interesse do credor – do incumprimento objectivo – não realização da actividade/prestação devida. Só neste caso cabe falar em incumprimento; a não concretização do interesse do credor é fórmula ampla que engloba, por exemplo, a impossibilidade superveniente da prestação. É possível unificar o incumprimento das prestações acessórias, o cumprimento defeituoso e o cumprimento parcial (inexacto, imperfeito ou violação positiva do contrato): cumprimento inexacto, cumprimento retardado e incumprimento definitivo.

O não cumprimento stricto sensu

A mora do devedor

Há cumprimento retardado quando, no momento da prestação, esta não seja efectuada. Pode suceder que uma determinada prestação só possa ser cumprida no momento aprazado, tornando-se impossível depois disso. Em tal hipótese, verifica-se, com o incumprimento, a extinção da obrigação (melhor: do dever de prestar principal), por impossibilidade. Haverá responsabilidade quando essa situação tenha sido ilicitamente provocada, em termos de causar danos ao credor: para tal, é necessário que a impossibilidade seja absoluta e definitiva. O interesse do credor é determinante na manutenção da obrigação cujo cumprimento seja retardado: quando o credor, pelo atraso, perca o interesse que tinha na prestação, considera-se esta como impossibilitada – 792º/2 – seguindo-se o regime do incumprimento definitivo – 808º/1. O interesse deve ser apreciado objectivamente – 808º/2 – isto é, deve ser tomado como a aptidão que tenha a prestação para satisfazer as necessidades do credor.

Requisitos do atraso; a mora

Para além da questão da necessidade da subsistência da obrigação, para que de cumprimento retardado se possa falar, apresentam-se como requisitos do verdadeiro atraso:

A exigibilidade da prestação – entendida em sentido forte; A sua certeza – prende-se com a ausência de dúvidas sobre a extinção da obrigação; A sua liquidez – de conteúdo determinado e conhecido.

Ao atraso ilicitamente provocado pelo devedor chama-se mora do devedor; quando o seja pelo credor, há mora do credor. A mora em si é um atraso ilícito no cumprimento, isto é, um retardamento objecto de valoração jurídica negativa. Há mora do devedor sempre que, por acto ilícito e culposo deste, se verifique um cumprimento retardado. O art. 805º trata esta matéria precisamente a propósito do momento da constituição em mora – esse momento coincide, em princípio, com o do prazo da prestação (777º/1). Em consonância com o fundamento do prazo da prestação, para efeitos de mora, é tradicional a distinção entre:

Mora ex persona – é aquela que implica a fixação do prazo da prestação através da interpelação (805º/1). A mora ex re pressupõe um vencimento com qualquer outra origem (805º/2, a) e b). A hipótese de o devedor ter impedido a interpelação integra um caso de mora ex persona (805º/2, c).

Responsabilidade obrigacional

Segundo o art. 804º/1, a simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor. “Simples mora” visa contrapor o preceito à hipótese de incumprimento definitivo. A mora envolve a manutenção do dever de prestar principal mas como implica danos para o credor, ela obriga o devedor inadimplente a indemnizar (799º/1). Nas obrigações pecuniárias, a lei entende que há sempre danos, fixando, por facilidade, o seu montante no equivalente aos juros legais (806º/1).

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A perpetuatio obligationis

A situação de mora do devedor tem, além da responsabilidade, o efeito de fazer correr por este o risco da impossibilidade superveniente da prestação. Em princípio, o risco pela impossibilidade superveniente da prestação atinge o credor; em situação de mora esse risco inverte-se: o devedor responde pelos danos que, independentemente de actuação sua, possam advir (807º/1).

A situação de mora do devedor, como modalidade de retardamento da prestação, apenas se verifica a titulo transitório. Assim ela cessa:

Com o cumprimento, acompanhado pelas indemnizações a que haja lugar; Com o incumprimento definitivo. Este, por seu turno, verifica-se nos termos do art.

808º/1: quando, objectivamente, o credor perca o interesse na prestação ou quando o devedor não cumpra o prazo razoavelmente fixado pelo credor: a chamada interpelação admonitória, extinguindo, igualmente, o dever de prestar principal.

A mora do credor e o atraso imputável a terceiros

Há mora do credor quando, ilicitamente, este provoque o atraso do cumprimento. Também se fala em mora do credor para traduzir o atraso causado por ele, independentemente da existência de um juízo de licitude. Havendo mora do credor, a situação jurídica atingida mantém-se; nascem, contudo, diversas obrigações e altera-se a preexistente. Assim, nos termos do art. 816º, o credor em mora deve indemnizar o devedor. A obrigação preexistente altera-se, da forma seguinte: enfraquecendo-se o direito do credor ou intensificando-se o risco que corre contra ele.

O direito do credor enfraquece porquanto o devedor apenas proceda ilicitamente quando actue com dolo – 814º/1 – e o credor perde o direito a quaisquer juros, legais ou convencionados, vencidos depois da mora – 814º/2. Concomitantemente, intensifica-se o risco que, contra o credor, já naturalmente ocorria:

Qualquer impossibilidade superveniente da prestação vai ser suportada pelo credor, incluindo a impossibilidade devida a negligência do devedor;

Em obrigações recíprocas, a impossibilidade da prestação do credor em mora não o exonera do dever de prestar, sem prejuízo do disposto no art. 815º/2, parte final.

A mora do devedor e a mora do credor traduzem, respectivamente, o cumprimento retardado imputável ao devedor e ao credor. Pode, no entanto, suceder que se dê um atraso na prestação por acto de terceiro. Quid iuris? Em primeiro lugar há que indagar se existe, ou não, ilicitude por parte do terceiro em questão. Se a resposta for positiva, verifica-se, contra o terceiro, uma imputação delitual: ele deverá ressarcir todos os danos que, com a sua atitude, tenha causado, quer ao credor, quer ao devedor. Se não houver ilicitude o atraso deve ser assacado a caso fortuito, repercutindo-se, então, os danos na esfera daquele por conta de quem corra o risco. Normalmente: na esfera do credor.

O não cumprimento definitivo

O incumprimento definitivo traduz uma desistência, por parte do Direito, de manter em vida o dever de prestar principal, na expectativa de que o devedor inadimplente o cumpra.

A prestação principal já não é possível; A prestação principal é possível mas, mercê do seu retardamento, deixou de ter

interesse para o credor (808º/1, 1ª parte), apreciado objectivamente (808º/2);

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A prestação principal é possível, tem interesse para o credor, mas não foi executada num prazo razoavelmente fixado pelo credor (808º/1, 2ª parte).

A impossibilitação da prestação principal leva à sua substituição pelo dever de indemnizar: não há alternativa. A exigência da interpelação admonitória (808º/1, 2ª parte) redunda no seguinte, quando se trate de uma obrigação sem prazo:

É necessária a fixação de um prazo; Fixado o prazo, impõe-se uma interpelação, para passar à exigibilidade forte (805º/1); Esgotado esse prazo, cabe fazer uma interpelação admonitória, fixando um “prazo

razoável” (808º/1, 2ª parte); ultrapassado este novo prazo, há incumprimento definitivo, podendo o credor aceder à fase executiva ou à fase indemnizatória.

A resolução por incumprimento

A resolução do contrato implica a supressão das prestações principais. Mantém-se, todavia, uma relação entre os contraentes, em parte decalcada do contrato existente. Ela é composta pelos deveres acessórios e por um dever de indemnizar que compense o credor fiel pelas vantagens que lhe atribuiria o pontual cumprimento do contrato e que suprima todos os demais danos.

A excepção do contrato não cumprido

A excepção do contrato não cumprido tem origem na antiga bona fides romana: entendia-se que, em prestações recíprocas, não seria correcto, a uma das partes, exigir da outra o cumprimento de uma prestação quando ela própria estivesse em falta. O art. 428º/1 compreende uma noção clara da excepção do contrato não cumprido, com os requisitos:

Existência de prazos idênticos para ambas as prestações; O não cumprimento de uma delas ou a não oferta de cumprimento.

A declaração de não cumprimento: o problema

Pode acontecer que, numa obrigação pendente, o devedor tome a iniciativa de se dirigir ao credor dizendo-lhe antecipadamente que a não irá cumprir. Perante uma obrigação cujo incumprimento se avizinhe, o credor deverá, sucessivamente, interpelar o devedor, aguardar a mora, proceder à fixação do prazo admonitório e aguardar a expiração deste para então passar às consequências do incumprimento definitivo.

A doutrina sublinha a necessidade de uma declaração de não cumprimento séria, honesta, precisa e definitiva. Enquanto for possível voltar atrás, o devedor deve fazê-lo. A declaração de não cumprimento exprime a intenção consciente e definitiva de trocar o contrato pelas consequências da sua inexecução.

A realização coactiva da prestação

Do incumprimento definitivo emerge, nomeadamente, a obrigação a cargo do devedor de indemnizar o credor por todos os danos que lhe tivessem sido causados. Essa indemnização segue o regime geral da obrigação de indemnizar. Surge, no entanto, um outro efeito: a possibilidade do credor recorrer aos tribunais para, através da força estadual, conseguir as vantagens que o Direito lhe atribui e o devedor lhe recusa. A intervenção do Estado coloca-se a dois níveis: o da acção de cumprimento e o da execução.

Na acção de cumprimento, o credor, alegando como causa de pedir o facto jurídico de que emerge o crédito, pede ao tribunal que condene o devedor a cumprir – 817º. O devedor condenado tem vivo interesse em cumprir para evitar nova acção, desta feita executiva. A acção

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de cumprimento só pode ter lugar em relação à prestação que ainda possa ser cumprida. Se a prestação se tiver impossibilitado, a acção de cumprimento deve pedir não a efectivação da obrigação extinga mas antes a realização da indemnização a que caiba.

Se o devedor, condenado judicialmente a cumprir, não realizar a prestação, segue-se o último recurso: a realização coactiva da prestação, não sendo, em rigor, necessária a prévia condenação do devedor para se poder recorrer à realização coactiva; basta que exista qualquer outro título executivo diferente da sentença condenatória.A execução simples consiste na apreensão e venda de certos bens, normalmente do devedor, para, dessa forma, se obterem meios de pagamento a entregar ao credor. Por esta fórmula, obtém-se a realização coactiva de prestações pecuniárias, onde ocupam lugar de destaque as indemnizações deste tipo. A execução específica (827º-830º) distingue:

A entrega de coisa determinada – entrega da coisa devida ao credor; A prestação de facto fungível – o mesmo efectuado por terceiro à custa do devedor; A prestação de facto negativo – à custa de quem se obrigou a não fazer; O contrato-promessa.

Qualquer execução específica pressupõe que a prestação a realizar coactivamente seja ainda possível, não se tendo, consequentemente, extinto a obrigação respectiva. Assim sendo, o Estado vai efectuar, à custa do devedor inadimplente, a própria prestação em falta. Ocorrida a execução específica ou a simples execução pecuniária, a obrigação extingue-se os mesmos termos do cumprimento.

A impossibilidade do cumprimento

A impossibilidade tem um duplo papel: quando reportada ao negócio jurídico, ela surge como um factor invalidante, nos termos do art. 280º ou quando aferida à prestação, ela é apresentada como causa de extinção da obrigação (790º/1) ou como fonte de responsabilidade para o devedor, quando lhe seja imputável (801º/1).

O regime da impossibilidade

A possibilidade é física ou jurídica, consoante o conteúdo ou o objecto contundam com a natureza das coisas ou com o Direito. A possibilidade é absoluta ou relativa – também dita objectiva ou subjectiva – conforme atinja o objecto do negócio, sejam quais forem as pessoas envolvidas ou, pelo contrário, opere somente perante os sujeitos concretamente considerados. A possibilidade é temporária ou definitiva em função da sua extensão temporal e em termos de previsibilidade: no primeiro caso, é previsível que ela cesse, ao contrário do que sucede no segundo. Enquanto requisito negativo, releva a impossibilidade definitiva. Por fim, a impossibilidade inicial opera logo no momento da celebração e a impossibilidade superveniente que se manifesta apenas mais tarde.A impossibilidade não imputável ao devedor

A impossibilidade superveniente de uma prestação diz-se inimputável ao devedor quando, cumulativamente, ela não tenha advindo de uma actuação culposa, não tenha ocorrido numa área em que o risco coubesse, por inteiro, ao devedor e o próprio devedor não tenha assumido a garantia do resultado da prestação. O devedor que, como dolo ou negligência, inviabilize a prestação, suportará as consequências do incumprimento assim provocado (801º/1). Perante o não cumprimento, funciona a presunção do art. 799º/1, cabendo ao devedor fazer a prova de que a prestação se impossibilitou e de que tal impossibilidade não lhe é imputável. Feita esta demonstração, a prestação principal extingue-se (790º/1) e o risco corre, nos termos gerais, pelo titular do direito a essa prestação, isto é, pelo credor.

A impossibilidade imputável ao devedor

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A propósito da impossibilidade não imputável ao devedor, caso não haja cumprimento, presume-se a culpa do inadimplente. Perante a impossibilidade superveniente da prestação, o art. 801º/1 tem aplicação imediata, a menos que logre ilidir a presunção do art. 799º/1. Sendo a impossibilidade imputável ao devedor, aplicam-se as regras do incumprimento definitivo.

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