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DIREITO DOS VALORES MOBILIÁRIOS EDIÇÃO EBOOK 2016 Instituto dos Valores Mobiliários

DIREITO DOS VALORES MOBILIÁRIOS · que o costume, a doutrina e a ... OLIVEIRA ASCENSÃO, ... lecionada pela primeira vez em Portugal num curso de licenciatura

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DIREITO DOS VALORES

MOBILIÁRIOS

EDIÇÃO EBOOK

2016

Instituto dosValoresMobiliários

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ÍNDICE

Nota Prévia ..............................................................................2

C F A , O protagonismo de Amadeu Ferreira na fundação do direito dos valores mobiliários em Portugal .....................................................................................3

C F A , Swaps de troca e swaps diferenciais ............................................................................. 11

L G C , O regime de controlo administrativo da idoneidade na adequação dos corpos sociais às instituições de crédito e sociedades fi nanceiras ................31

L G C M P , A nova regulamentação dos mercados fi nanceiros – um Tsunami regulatório? (I) .....................................................................120

L G C M P , A nova regulamentação dos mercados fi nanceiros – um Tsunami regulatório? (II) ....................................................................171

A F , Novidades da infraestrutura do mercado de capitais: o Regulamento nº 909/2014 relativo à melhoria da liquidação de valores mobiliários na União Europeia e às Centrais de Valores Mobiliários ...........................................234

J L – Contributo para o estudo do sistema de controlo e da função de cumprimento (“Compliance”) .......279

R L R , A tributação dos ganhos obtidos em Portugal pelas sociedades através de instrumentos fi nanceiros derivados ..............................................................................375

M S , Ensaio sobre os requisitos substantivos da OPA concorrente ..................................................................418

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N P

Com a publicação deste seu primeiro e-book o Instituto dos Valores Mobiliários dá início a uma nova era na divulgação e comunicação da produção científi ca, procurando disponibilizá-la mais facilmente àqueles que diariamente lidam com matérias tão específi cas como são as dos valores mobiliários e dos mercados fi nanceiros, procurando assim dar continuidade a um dos objectivos que presidiram à sua constituição: contribuir para a investigação, ensino e divulgação das Ciências Jurídica, Económica e Financeira, no âmbito do mercado de valores mobiliários.

Não obstante quebrar a tradição da publicação em papel, o Instituto dos Valores Mobiliários não perde a memória. Por esta razão, o texto inicial, da autoria de Carlos Ferreira de Almeida e intitulado “O protagonismo de Amadeu Ferreira na fundação do direito dos valores mobiliários em Portugal”, visa recordar um dos seus Fundadores e prestar-lhe uma justa homenagem. Ainda que as Instituições se não confundam com os Homens, sem estes, nada seriam.

Reúnem-se aqui também, estudos resultantes da preparação das conferências proferidas no âmbito do Curso de Pós-Graduação em Direito dos Valores Mobiliários, sobre temas com grande actualidade, como sejam os swaps, o controlo da idoneidade e compliance.

Publicam-se ainda dois trabalhos que particularmente se destacaram, da autoria de alunos do Curso de Pós-Graduação, sobre temas cientifi camente relevantes e com grande interesse prático.

Junho de 2016O Instituto dos Valores Mobiliários

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O PROTAGONISMO DE AMADEU FERREIRA

NA FUNDAÇÃO DO DIREITO DOS VALORES MOBILIÁRIOS EM PORTUGAL1

Carlos Ferreira de Almeida

O Código do Mercado de Valores Mobiliários, de 19912, é o marco que sinaliza a fundação do direito dos valores mobiliários em Portugal. Na interferência entre as fontes de direito, é frequente que o costume, a doutrina e a jurisprudência inspirem a lei. Neste caso, que não é único, foi a lei a propulsora da doutrina e o primeiro passo para a criação de uma disciplina jurídica.

O Código do Mercado de Valores Mobiliários – inovador, mesmo ao nível mundial, tanto pela grande amplitude como pela relativa prioridade cronológica – foi obra de uma equipa presidida por José Luís Sapateiro, a sua mais proeminente fi gura, em que participaram também Nunes Pereira (pelo Banco de Portugal), Carlos Alberto Rosa3, Veiga Anjos (pela Bolsa do Porto), Álvaro Dâmaso (pela Bolsa de Lisboa). Nunes Pereira, mais tarde vice-presidente e presidente da CMVM, redigiu o primeiro anteprojeto sobre ofertas públicas e intermediação fi nanceiros; Carlos Rosa redigiu o primeiro anteprojeto sobre mercados4.

1 Texto baseado na comunicação apresentada em 3 de novembro de 2015 na Conferência de Homenagem a Amadeu Ferreira promovida pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.

2 Aprovado pelo Decreto-Lei nº 142-A/91, de 10 de abril, que entrou em vigor 90 dias após a publicação (artigo 2º, nº 1).

3 A quem se deve, com mais dois autores (Carlos Moreno e Miranda Barbosa), a primeira complicação anotada sobre Legislação dos Mercados Monetário, Cambial e Financeiro, Coimbra, 1972.

4 Informação prestada por Nunes Pereira; cfr. também o seu artigo intitulado Quinze anos de codifi cação mobiliária em Portugal, Direito dos valores mobiliários, VIII, 2008, p. 265 ss (p. 267 s).

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Sintetizando a partir de um texto de Teixeira dos Santos5, que foi Secretário de Estado e Ministro das Finanças e presidente da CMVM:

O Código do Mercado de Valores Mobiliários foi pensado no contexto da adesão à CEE. Os mercados de valores mobiliários foram liberalizados. As bolsas, até então detidas pelo Estado, passaram para a propriedade e administração das associações de bolsa. Foi eliminada a necessidade de autorização administrativa para as ofertas públicas. Criou-se um sistema de registo, controlo e depósito dos valores mobiliários e de compensação e liquidação das operações. Procedeu-se ao enquadramento sancionatório dos ilícitos de mercado. E criou-se uma entidade responsável pela regulação e supervisão dos mercados de valores mobiliários: a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.

Ora, acrescento eu, a CMVM, além das suas específi cas funções, veio a ter um papel decisivo no desenvolvimento doutrinário do direito dos valores mobiliários. E esse papel tem continuado, sem interrupção, também durante o mandato do atual Conselho Diretivo, desde 2005, com Carlos Tavares, como presidente, e Amadeu Ferreira, como vice-presidente.

Mas vamos por ordem cronológica. Logo nos primeiros tempos após a publicação e vigência do

Código do Mercado de Valores Mobiliários, surgiram alguns artigos em torno dos maiores desafi os emergentes da inovação legislativa, uns operacionais, outro concetuais.

No campo operacional, a primazia coube ao estudo das ofertas públicas, com a publicação das seguintes obras:

J. NUNES PEREIRA, O regime jurídico das ofertas públicas de aquisição no recente Código do Mercado de Valores Mobiliários: principais desenvolvimentos e inovações, Revista da Banca, nº 18, 1991, p. 35 ss;

5 A evolução do mercado de capitais português, http://www.fep.up.pt/docentes/ftsantos/ interven%C3%A7%C3%B5es/Economia_Pura_Abril2001.pdf.

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RAÚL VENTURA, Ofertas públicas de aquisição e de venda de valores mobiliários, Estudos vários sobre sociedades anónimas, Coimbra, 1992, p. 103 ss;

JOSÉ MIGUEL JÚDICE e outros, OPA. Ofertas públicas de aquisição. Legislação comentada, Lisboa, 1992;

C. OSÓRIO DE CASTRO, Os casos de obrigatoriedade do lançamento de uma oferta pública de aquisição, em Problemas societários e fi scais do mercado de valores mobiliários, Lisboa, 1992, p. 7 ss;

A. TEIXEIRA GARCIA, OPA, Da oferta pública de aquisição e do seu regime jurídico, Coimbra, 1995 (tese de mestrado, apresentada em Coimbra em 1992, discutida em 1994);

A. MENEZES CORDEIRO, Da tomada de sociedades (takeover): efectivação, valoração e técnicas de defesa, Revista da Ordem dos Advogados, 1994, p. 761 ss;

J. CALVÃO DA SILVA, Oferta pública de aquisição (OPA), Estudos de Direito Comercial (Pareceres), Coimbra, 1996, p. 199 ss.

AMADEU JOSÉ FERREIRA, o nosso homenageado de hoje, debruçou-se sobre um outro tema operacional, clássico, para o esclarecer e, de certo modo, o reconstruir, escrevendo o artigo intitulado Ordem de bolsa, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, 1992, II, p. 467 ss, ainda hoje uma obra de referência.

No âmbito concetual, os valores mobiliários surgiam como objeto jurídico digno de estudo autónomo, em especial, de início, em relação aos temas de que se ocuparam as seguintes obras. Assim:

Sobre o conceito e a estrutura dos valores mobiliários:C. OSÓRIO DE CASTRO, Valores mobiliários. Conceito e

espécies, Porto, 1996, produto da regência de um curso de pós-graduação em Direito do Mercado de Capitais na Universidade Católica (Porto)6;

6 Cfr. P. COSTA E SILVA, Direito dos Valores Mobiliários. Relatório, Lisboa, 2005, p. 58 s.

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OLIVEIRA ASCENSÃO, Valor mobiliário e título de crédito, COSTA SANTOS, Direitos inerentes aos valores mobiliários (em especial, os direitos equiparados a valores mobiliários e o direito ao dividendo), FAZENDA MARTINS, Direito reais de gozo e garantia sobre valores mobiliários, PAULO CÂMARA, Emissão e subscrição de valores mobiliários, todos publicados em Direito dos valores mobiliários, Lisboa, Lex, 1997, p. 27 ss, p. 55 ss, 99 ss e p. 201 ss.

Sobre a representação escritural dos valores mobiliários:Os antecedentes vêm de um Decreto-Lei de 19887, preparado

por PESSOA JORGE, autor do artigo Acções escriturais (Projecto de diploma legal), O Direito, 1989, I, 93 ss. Para o enquadramento sistemático do tema, dei modesta contribuição no artigo intitulado Desmaterialização dos títulos de crédito: valores mobiliários escriturais, Revista da Banca, nº 26, 1993, p. 23 ss. Mas a obra maior, neste campo, é a monografi a que AMADEU JOSÉ FERREIRA apresentou como tese de mestrado: Valores mobiliários escriturais – Um novo modo de representação e circulação de direitos, Coimbra, Almedina, 1997 (antes policopiada como dissertação de mestrado, entregue e discutida em 1994). Na arguição que me coube (e de que guardo apontamento escrito) tive ensejo de salientar, além do mais, o apurado sentido do encadeamento argumentativo, o aproveitamento de conhecimentos técnico-profi ssionais ao serviço da ciência do direito, a harmonização do pormenor com a construção dogmática. Tal como então previa, este livro constitui ainda hoje, apesar das alterações legislativas, “um contributo imprescindível para quem pretenda […] estudar em Portugal o regime e a natureza dos valores mobiliários escriturais”8.

Antecipando-se, mais uma vez, na construção jurídico-dogmática de um objeto fi nanceiro complexo, AMADEU JOSÉ FERREIRA foi também o único jurista que, ao tempo, se aventurou a tratar do

7 Decreto-Lei nº 229-D/88, de 4 de julho. 8 Amadeu Ferreira: o jurista e o amigo, O Fio das Lembranças. Biografi a de

Amadeu Ferreira (org. Teresa Martins Marques, Âncora, 2015, p. 417.

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conceito e da negociação de instrumentos fi nanceiros derivados, publicando o artigo Operações de futuros e opções, Direito dos Valores Mobiliários, Lisboa, Lex, 1997, p. 121 ss.

O ano de 1997 foi particularmente fecundo nestes primórdios do direito português dos valores mobiliários, graças à atividade de duas instituições: a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários. Amadeu Ferreira estava presente nestes dois polos de desenvolvimento e serviu de elo ligação entre eles (sem esquecer a contribuição similar de Paula Costa e Silva e de Paulo Câmara).

A Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa promoveu, em 1997, a publicação em livro das comunicações apresentadas nº 1º Curso sobre Direito dos Valores Mobiliários, que se realizara no ano anterior9.

AMADEU JOSÉ FERREIRA assume, nesse mesmo ano, a regência da disciplina de Direito dos Valores Mobiliários, que é lecionada pela primeira vez em Portugal num curso de licenciatura em Direito10 e que origina um livro intitulado Direito dos Valores Mobiliários, Lisboa, 1997, com os sumários desenvolvidos (467 páginas) das lições dadas, na cadeira assim intitulada, ao 5º ano da licenciatura na Faculdade de Direito de Lisboa. Nesta obra são estudados sucessivamente os seguintes tópicos: a autonomia do Direito dos Valores Mobiliários, as suas fontes e evolução, as instituições intervenientes, o conceito de valor mobiliário e a sua tipologia, os instrumentos fi nanceiros derivados, as ofertas públicas, os contratos de colocação, a responsabilidade civil pelo prospeto. Trata-se pois na verdade de um manual que constitui, como o autor, com exatidão, escreveu no prefácio, “a primeira abordagem completa e sistemática publicada” em Portugal sobre o direito dos valores mobiliários.

9 Direito dos valores mobiliários, Lisboa, Lex, 1997, já citado. 10 Regência de Amadeu José Ferreira em 1997/98 e 98/99; regência de Paulo

Câmara, em 1999/2000 e 2000/01; cfr. COSTA E SILVA, Direito dos Valores Mobiliários. Relatório, cit., p. 24, 41 ss.

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Também em 1997, a CMVM inicia a publicação dos Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, que, primeiro em papel, depois em suporte digital, vem acolhendo importantes artigos de natureza jurídica e fi nanceira. O nº 51, com dois volumes publicados em 201511, compõe-se de 14 ensaios de homenagem a Amadeu Ferreira.

O editorial do nº 1 foi subscrito por João Duque, professor de fi nanças, que era ao tempo diretor do Gabinete de Estudos da CMVM. O nº 2 inclui um artigo de AMADEU JOSÉ FERREIRA sobre Sistemas de pagamentos e falência (Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 2, 1998, p. 39 ss). A partir do nº 5, de 1999, Amadeu Ferreira passa a assinar as notas de apresentação dos Cadernos na qualidade de diretor do Gabinete de Estudos.

Ainda em 1997, o Ministro das Finanças, Sousa Franco, nomeou o grupo de trabalho encarregado de elaborar o projeto de um código substitutivo do Código do Mercado de Valores Mobiliários, com o mandato para o simplifi car e modernizar. Aceitei o convite para presidir àquele grupo com uma única condição: a integração na comissão de Amadeu Ferreira, que, no meu entender, era, ao tempo, a pessoa que melhor dominava as matérias que o novo código haveria de regular12. Noutro texto, tive ocasião de evocar o modo como Amadeu Ferreira serviu como impulsionador e principal executor dos trabalhos da comissão13. Não seria justo todavia omitir os papéis de Paulo Câmara e de Frederico da Costa Pinto na elaboração dos primeiros textos sobre ofertas públicas e sobre a parte sancionatória.

O ano de 1998 é também muito rico de acontecimentos que, centrados na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, infl uíram no começo da estabilização do direito português dos valores mobiliários:

11 Datado de agosto de 2015, mas efetivamente publicado em novembro (cfr. nota 1).

12 Já antes Amadeu Ferreira tivera na CMVM intervenção importante em estudos preparatórios de uma possível revisão do código vigente (testemunho de Nunes Pereira, em O Fio das Lembranças, cit., p. 576).

13 Amadeu Ferreira: o jurista e o amigo, cit., p. 413 ss.

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Por iniciativa de Oliveira Ascensão, é criado o Instituto dos Valores Mobiliários, que, logo no ano letivo de 1998-99, inicia o Curso de Pós-graduação em Direito dos Valores Mobiliários. A participação ativa de Amadeu Ferreira neste curso revela-se nas quatro lições que proferiu no 1º Curso14 e muitas outras nos cursos seguintes. O sucesso futuro deste Curso de Pós-graduação é bem evidente pela realização sem interrupções (no ano letivo de 2015-2016 decorre a 20ª edição) e pela qualidade dos conteúdos. Uma boa parte das lições aí proferidas deu origem a artigos que foram publicados numa (quase) revista com o título de Direito dos Valores Mobiliários (volume I, 1999; volume X, 2011; a partir de então, os artigos são publicados no sítio na internet do Instituto dos Valores Mobiliários).

No mesmo ano de 1998, são discutidas e aprovadas naquela Faculdade quatro dissertações de mestrado, o que demonstra a vitalidade da inserção precoce da temática em ambiente universitário: de PAULO CÂMARA, Parassocialidade e transmissão de valores mobiliários, policopiado; de J. BRITO PEREIRA, A OPA obrigatória, Coimbra, 1998; de S. NASCIMENTO RODRIGUES, A operação de reporte, policopiado; de C. COSTA PINA, Dever de informação e responsabilidade pelo prospecto no mercado primário de valores mobiliários, Coimbra, 1999. Tive a honra de participar em todos estes júris, como orientador ou como arguente.

Em novembro de 1999, é publicado o Código dos Valores Mobiliários, produto afi nal de toda a elaboração que, desde 1991, a comunidade jurídica pôs ao serviço da política legislativa.

Para sintetizar e fl exibilizar o texto, o Código prevê, para cada matéria, regulamentação a elaborar pela CMVM. O primeiro conjunto destes regulamentos, mais de uma dezena, alguns bastante complexos e extensos, quase todos ainda em vigor, sem ou com

14 “Os instrumentos derivados”; “Oferta pública de subscrição: lançamento e especialidades na génese dos valores mobiliários”; “Os derivados OTC”; “A revisão do Código dos Valores Mobiliários” (esta em conjunto comigo e Paulo Câmara).

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alterações15, foi aprovado e publicado logo em fevereiro de 2000, a tempo da publicação antes da entrada em vigor do Código em 1 de março. Ora, foi, mais uma vez, Amadeu Ferreira quem teve a cargo esta tarefa, que desempenhou com a sua habitual celeridade e competência16.

Pode dizer-se que o ciclo de fundação do direito português dos valores mobiliários se situa entre a publicação do primeiro código, em 1991, e o início de vigência do segundo código, em 2000. Seguiu-se um período de crescente maturação, sempre com Amadeu Ferreira como protagonista, até à sua morte prematura em 2015, que me privou – que nos privou – de um amigo e de um jurista de excelência.

15 Regulamentos nºs 5/2000, 16/2000, 17/2000 e 18/2000, sobre mercados, 6/2000, sobre auditores, 7/2000, sobre notação de risco, 8/2000, sobre reporte e empréstimo de valores mobiliários, 10/2000, sobre ofertas e emitentes, 11/2000, sobre deveres de informação, 12/2000, sobre intermediação fi nanceira, 13/2000, sobre entrega de elementos, 14/2000, sobre registo de valores mobiliários, 15/2000, sobre sistemas de liquidação.

16 Citado testemunho de José Nunes Pereira, em O Fio das Lembranças, cit., p. 576 s.

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SWAPS DE TROCA E SWAPS DIFERENCIAIS*

Carlos Ferreira de Almeida**

Lembrando o Amadeu Ferreira, com saudade

Sobre os contratos de swap já escrevi mais do que uma vez, não há muito1. Volto ao tema para confrontar o que escrevi com um conjunto impressionante, em quantidade e profundidade, de decisões jurisprudenciais e de artigos posteriores, que, em tempo concentrado (2013-2015), refl etem perspetivas diversas e soluções contrastantes.

Os principais objetivos deste texto são: 1º salientar a diferença entre swaps de troca e swaps diferenciais, que tem sido quase sempre desconsiderada ou contrariada, mas que, em minha opinião, é um ponto essencial na discussão sobre a validade de cada um destes subtipos contratuais; 2º demonstrar que é compatível a validade de um contrato de swap com a sua qualifi cação como aposta2.

* Artigo já publicado nos Ensaios de homenagem a Amadeu Ferreira, Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 50, 2015, vol. I, p. 11 ss.

** Professor catedrático jubilado da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

1 Contratos diferenciais, Estudos comemorativos dos 10 anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Coimbra, 2008, vol. II, p. 81 ss (p. 90 ss e passim) = Direito dos Valores Mobiliários, vol. X, Coimbra, 2011, p. 9 ss (p. 21 s e passim); Contratos II. Conteúdo. Contratos de troca, 3ª ed., Coimbra, 2012, p. 116 ss (1ª ed., 2007, p. 134 ss; 2ª ed., 2011, p. 117 ss); Contratos III. Contratos de liberalidade, de cooperação e de risco, 2ª ed., Coimbra, 2013, p. 278 ss (1ª ed., 2012, p. 269 ss). No presente artigo estão transcritas algumas passagens destes textos, sem citação específi ca.

2 Não serão pois abordadas outras questões relevantes e candentes relativas aos swaps, como o impacte da alteração das circunstâncias (J. CALVÃO DA SILVA, Swap de taxa de juro: inaplicabilidade do regime da alteração das circunstâncias, Revista de Legislação e de Jurisprudência, nº 3986, 2013, p. 364

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1. Swaps de troca

À letra, swap signifi ca troca de uma coisa por outra. No campo dos contratos, o swap surgiu como meio de aproveitamento recíproco da acessibilidade ou das vantagens de duas empresas atuando em mercados fi nanceiros diferentes. De início, swap designava (apenas) o contrato pelo qual as partes se obrigavam reciprocamente a pagar, em datas futuras, o montante das obrigações devidas pela outra parte perante terceiro, por efeito de contratos de mútuo (ou de outros contratos fi nanceiros) expressos em divisas diferentes (currency swap) ou com diferentes modalidades de cálculo da taxa de juro, v. g. taxa de juro fi xa e taxa de juro variável (interest rate swap).

No cumprimento de tais obrigações, as prestações são, na maioria das vezes, efetuadas diretamente à outra parte, com autonomia em relação aos contratos com terceiros. Não há pois no swap assunção de dívida nem obrigação de cumprimento a terceiro.

Este elemento de troca surge em quase todas as defi nições do contrato de swap propostas em textos portugueses, tanto na doutrina (jurídica e económica) como na jurisprudência: troca de prestações pecuniárias3, troca de quantias pecuniárias4, troca de pagamento

ss; PEDRO GONZALEZ & JOÃO VENTURA, Contrato de swap e alteração de circunstâncias – anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 1387/11.5TBBCL.G1.S1, Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 48, 2014, p. 63 ss; acórdão da Relação de Guimarães de 31.01.2013, relatora Conceição Bucho, além de outros artigos e acórdãos adiante citados), os pactos de jurisdição (acórdão do STJ de 11.02.2015, relator Silva Jesus), a arbitragem (acórdão da Relação de Lisboa de 24.02.2015, relatora M. Rosário Morgado), o dever de informação e o erro (acórdãos da Relação de Lisboa de 17.02.2011, relator Correia de Mendonça, e de 28.04.2015, relator Ramos de Sousa; acórdão do STJ de 16.06.2015, relator Paulo Sá), a admissibilidade como título executivo (acórdão da Relação de Coimbra, de 15.10.2013, relatora Albertina Pedroso).

3 P. BOULLOSA GONZALEZ, Interest Rate Swaps: perspectiva jurídica, Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 44, 2013, p. 10 ss (p. 15, 22); acórdão da Relação de Coimbra de 15.10.2013, cit.

4 Acórdãos da Relação de Lisboa de 17.02.2011, cit., e de 13.05.2013 (relatora M. Rosário Morgado).

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sem dinheiro5, troca de fl uxos fi nanceiros6, risco económico em troca de uma remuneração7.

A opinião comum vai no sentido da qualifi cação do contrato de swap como sinalagmático8 e alguma doutrina atribui a todos os contratos de swap uma função de troca9, mas há também opiniões no sentido de que são contratos abstratos10. A tipifi cação como contrato de permuta é discutida, sustentada por uns11 e recusada por outros, com o argumento de que não tem como objetivo a transferência de propriedade12. Nesta orientação, o swap é qualifi cado como atípico.

Como melhor se verá pela sequência, os contratos de swap não se reconduzem a uma tipifi cação única e a uma só qualifi cação.

5 Acórdão da Relação de Lisboa de 28.04.2015, cit.6 A. PEREIRA DE ALMEIDA, Instrumentos fi nanceiros: os swaps, Estudos

em Homenagem a CFA, Coimbra, 2011, II, p. 37 ss (p. 67). 7 Acórdão do STJ de 10.10.2013 (relator Granja da Fonseca). 8 M. CLARA CALHEIROS, O contrato de swap, Coimbra, 2000, p. 81; P.

MOTA PINTO, Contrato de swap de taxas de juro, jogo e aposta e alteração das circunstâncias que fundaram a decisão de contratar, Revista de Legislação e de Jurisprudência, 2014, nº 3987, p. 391 ss, nº 3988, p. 14 ss (nº 3987, p. 397); acórdão do STJ de 10.10.2013, cit.; acórdãos da Relação de Lisboa de 13.05.2013, cit., e de 15.01.2015 (relatora Manuela Gomes).

9 PEREIRA DE ALMEIDA, ob. cit., p. 68; MOTA PINTO, ob. cit., nº 3987, p. 399.

10 J. ENGRÁCIA ANTUNES, Os derivados, Cadernos do Mercado dos Valores Mobiliários, nº 30, 2008, p. 91 ss (p. 101, em relação a todos os derivados); acórdão da Relação de Lisboa de 21.03.2013 (relatora A. Azeredo Coelho, “quando da análise do clausulado contratual não resultar a derivação”); acórdão do STJ de 11.02.2015 (relator Sebastião Póvoas).

11 J. CANTIGA ESTEVES, Contratos de Swap Revisitados, Cadernos do Mercado dos Valores Mobiliários, nº 44, 2013, p. 71 ss (permuta de fl uxos fi nanceiros, p. 71, 81); PEREIRA DE ALMEIDA, ob. cit., 69 (mas também diferencial, quando as prestações se compensam); HELDER MOURATO, O Contrato de Swap de Taxa de Juro, Coimbra, 2014, p. 114 (contrato de permuta fi nanceira); acórdão da Relação de Lisboa, de 17.02.2011, cit.

12 ANTÓNIO M. VITORINO, Estudo sobre permuta de divisas e de taxas de juro (“swaps”), Revista da Banca, nº 40, 1996, p. 113 ss (p. 117); M. CLARA CALHEIROS, O contrato de swap, cit., p. 122.

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Na modalidade originária, em que cada um dos contraentes se obriga ao pagamento efetivo de obrigações devidas a terceiro, o swap é na verdade um contrato sinalagmático e causal, com função económico-social de troca. É causal, porque o seu próprio conteúdo revela – e a sua validade exige – uma função económico-social, que, nesta espécie de contratos, é a função de troca, caraterizada pela bilateralidade de custos e de benefícios para as partes e a divergência das fi nalidades típicas de cada uma delas.

Os contratos de swap são autónomos em relação aos contratos de fi nanciamento ou de compra e venda subjacentes13, mas a autonomia (isto é, a ininvocabilidade de exceções provenientes de relação subjacente) não se confunde com abstração, que consiste na compatibilidade da validade do ato com a omissão de causa, compreendida como função económico-social. A abstração determina sempre a autonomia, mas pode haver autonomia negocial sem abstração14.

Não se vê, além disso, por que não qualifi car como contratos de permuta ou de escambo os swaps com este perfi l, porque o tipo social moderno de permuta se distanciou da compra e venda, enquanto modelo de contrato transmissivo, agrupando um conjunto diversifi cado de contratos que têm em comum a troca de bens ou serviços por outros bens ou serviços. As prestações e outras atribuições podem ser ou não contemporâneas, envolver ou não transferência de propriedade15 e terem até ambas natureza monetária, desde que em nenhuma delas se reconheça uma função de meio de pagamento (de preço).

13 ANTÓNIO M. VITORINO, loc. cit.; MOTA PINTO, ob. cit., nº 3987, p. 402.

14 Para mais desenvolvimentos justifi cativos destas asserções, ver os meus livros Contratos II, cit., p. 102 ss, 111 ss, e Contratos III, cit., p. 205 s.

15 Próximo, D. DI BISCEGLIE, Il bater (o bartering), I singoli contratti (org. Cassano), Cedam, 2010, tomo I, cap. XIX, p. 535 ss, acentuando as diferenças em relação à permuta tradicional, que se restringia à transferência simultânea da propriedade sobre coisas corpóreas.

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Se todos os contratos de swap fossem deste modelo – mas não são –, não haveria lugar para qualquer controvérsia acerca da sua admissibilidade legal em face das restrições à validade dos contratos de jogo e de aposta, visto que não têm com estes qualquer coincidência estrutural ou funcional.

2. Swaps diferenciais

Os swaps evoluíram de modo a abranger, além da fi nalidade originária (satisfação de necessidades complementares), também outras fi nalidades (cobertura de risco e especulação) e, além da referência originária estrita a passivos fi nanceiros das partes, também a referência a outros bens, designadamente ativos fi nanceiros e mercadorias.

A ampliação foi mesmo ao ponto de admitir referências meramente nocionais, isto é, construídas exclusivamente para a delimitação das obrigações contratuais das partes, sem menção de (e sem relação direta e concreta com) obrigações ou créditos perante terceiros. Em consequência, nalgumas modalidades de swap, as obrigações recíprocas foram substituídas por uma só obrigação de pagamento pela parte em desfavor da qual se verifi que a diferença entre os valores que, no vencimento, teriam as obrigações recíprocas.

Os swaps passaram a ser, na sua esmagadora maioria, contratos diferenciais, isto é, contratos em que é devida uma só prestação em dinheiro, que, no caso16, é igual à diferença entre os valores de referência inicial a bens (reais ou nocionais) e os valores de mercado em data futura desses mesmos bens. Ou, dito de modo, swap diferencial é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a pagar à outra a diferença em seu desfavor, apurada pela comparação entre os valores das obrigações ou dos créditos, reais ou nocionais,

16 Porque, para abranger também outros contratos diferenciais (v. g., futuros e opções diferenciais), a segunda parte do conceito haveria de ser mais complexa.

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de cada uma das partes numa data inicial e os respetivos valores numa data futura ou em sucessivas datas.

A prestação – única ou periódica, sempre e só em dinheiro – benefi cia aquela das partes que tenha previsto corretamente a alta ou a baixa do valor de mercado, a valorização ou desvalorização de um dos bens em relação ao outro. No swap diferencial, não há portanto prestações recíprocas nem sequer troca. De swap (troca), estes contratos só têm o nome, que evoca a sua origem.

Se o passivo ou o ativo de referência for nocional, o swap é necessária e essencialmente diferencial17, porque, nesta hipótese, não há obrigações devidas a terceiro nem é possível a entrega ou a transferência dos passivos ou dos ativos ou (pretensamente) subjacentes, tudo se resumindo ao pagamento de uma diferença de valores.

Se os valores de referência se reportarem a obrigações, a créditos ou a outros ativos existentes, o swap será diferencial, se da interpretação resultar a necessária liquidação fi nanceira do contrato18, ou seja, que só é devida uma prestação, a pagar pela parte que seja perdedora na comparação temporal de valores.

A possibilidade, frequente, de o apuramento das diferenças se fazer por ajustes periódicos não descarateriza a natureza diferencial, porque em caso algum há reciprocidade de prestações, embora as sucessivas prestações a favor de uma ou de outra das partes possam ser lançadas em conta corrente.

Os swaps diferenciais não são portanto contratos sinalagmáticos.

17 Apenas se têm aqui em conta os contratos diferenciais diretos (simples ou stricto sensu) por oposição aos indiretos ou complexos, em que a obrigação de pagamento de uma diferença em dinheiro não constitui o objeto (ou o único objeto) do contrato, que pode, ainda assim, ser, de facto, cumprido através de liquidação fi nanceira por diferença. Também não se consideram os contratos potencialmente diferenciais, em que o pagamento por diferença constitui um modo de cumprimento alternativo em relação ao cumprimento por entrega efetiva e integral dos bens trocados.

18 O modo de operar pode revelar que as partes interpretaram o contrato ou o modifi caram tacitamente em sentido de que resulta ser qualifi cado como essencialmente diferencial.

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A quantia a pagar não resulta da compensação de duas obrigações19, mas do modo de cálculo da prestação correspondente a uma só obrigação. Enquanto a compensação (legal ou contratual) resulta de um direito potestativo, que, por natureza, pode ser ou não exercido e que tipicamente deriva de duas ou mais fontes obrigacionais diferentes, o montante em dívida nos swaps diferenciais resulta da fórmula contratual de aplicação necessária para a determinação de uma prestação única emergente de um só contrato.

A invocação do nº 2 (c) do ISDA Master Agreement 2002, como argumento a favor da compensação, é inconsistente. Na verdade, esta cláusula refere-se a netting, que é uma modalidade de cumprimento, alternativa à entrega (delivery), pelo pagamento de uma só obrigação calculada por diferença de valores. No mesmo contrato-quadro, a compensação (set-off) é regulada em cláusula diferente (nº 6 (f), a propósito da resolução (early termination)20-21. A distinção entre netting e set-off é especialmente relevante no direito da insolvência, em consequência da oponibilidade da primeira à massa falida e da tendencial inoponibilidade da segunda22.

19 Como entendem ANTÓNIO M. VITORINO, ob. cit., p. 118 ss; M. CLARA CALHEIROS, ob. cit., p. 82, 94 s, 106 ss, 164; BOULLOSA GONZALEZ, ob. cit., p. 26; MOTA PINTO, ob. cit., nº 3987, p. 397. Também o acórdão do STJ de 29.01.2015 (relator Bettencourt de Faria) se refere à “compensação como forma de extinção das obrigações” emergentes do contrato de swap.

20 Para um quadro das diferenças entre netting e set-off, ver o documento da ISDA – International Swaps and Derivatives Association – sobre Enforceability of close-out netting in the People’s Republic of China, p. 5 e 47 (http://siteresources.worldbank.org/GILD/Resources/ Low4.pdf). Pode também consultar-se http://lexisweb.co.uk/sub-topics/set-off-and-netting. Sobre payment netting, em geral e em contratos de swap, A. HUDSON, The Law of Finance, 2ª ed., London, 2013, p. 541 s, 1185 ss. Em textos portugueses, netting aparece geralmente traduzido por compensação – PEREIRA DE ALMEIDA, ob. cit., p. 61; CALVÃO DA SILVA, Swap de taxa de juro: a sua legalidade e autonomia e inaplicabilidade da excepção do jogo e aposta, Revista de Legislação e de Jurisprudência, nº 3979, 2013, p. 253 ss (p. 257); HELDER MOURATO, O Contrato de Swap de Taxa de Juro, cit., p. 96, nota 141; acórdão da Relação de Lisboa de 08.05.2014 (relator Sacarrão Martins).

21 O tema “compensação, netting e clearing” era nuclear no projeto de dissertação de doutoramento do homenageado AMADEU JOSÉ FERREIRA.

22 Para o direito português, ver ANTÓNIO M. VITORINO, ob. cit., p. 128 ss, e o artigo 99º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas.

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Além disso, aquele contrato-quadro pretende aplicar-se a um conjunto muito aberto de contratos (diferenciais ou não). A decisão sobre se, num caso concreto, há ou não compensação e se o contrato merece ou não a qualifi cação como diferencial, depende sempre da interpretação do conjunto das cláusulas contratuais, relacionando as que são gerais com as que são específi cas23.

As referências, no direito português, aos swaps diferenciais vão em direções muito diversas: segundo uma opinião, o swap de taxa de juro é um contrato diferencial por natureza, porque tem como referência bens nocionais ou virtuais24; segundo a opinião contrária, há nos contratos de swap similitude com os contratos diferenciais, mas essa similitude é vista como um risco para a sua validade e fi nalmente recusada25.

A possibilidade de os contratos de swap serem diferenciais é admitida por alguns autores26. Outros consideram a categoria sem relevância27 ou evitam esta qualifi cação, mencionando apenas a admissibilidade de liquidação fi nanceira28.

Noutras ordens jurídicas, neste ponto próximas da portuguesa, registam-se opiniões que qualifi cam como contratos diferenciais os swaps e, em geral, os derivados com liquidação fi nanceira (cash-

23 Ver notas 17 e 18 supra.24 HELDER MOURATO, Swap de taxa de juro: a primeira jurisprudência,

Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 44, 2013, p. 29 ss (p. 39 s); ID., O Contrato de Swap de Taxa de Juro, cit., p. 71. O acórdão da Relação de Coimbra de 15.10.2013, cit., parece admitir esta qualifi cação, aderindo à defi nição de contrato diferencial proposta por aquele A., sem todavia deixar de se referir à troca de prestações pecuniárias.

25 M. CLARA CALHEIROS, O contrato de swap, cit., p. 106 ss. 26 PEREIRA DE ALMEIDA, ob. cit., p. 65; CALVÃO DA SILVA, Swap de

taxa de juro: a sua legalidade e autonomia…, cit., p. 266. 27 MOTA PINTO, ob. cit., nº 3988, p. 26. 28 BOULLOSA GONZALEZ, Interest Rate Swaps, cit., p. 26; ENGRÁCIA

ANTUNES, Os derivados, cit., p. 104, 109 s, 121 s. O acórdão da Relação de Lisboa de 08.05.2014, cit., refere o cálculo do “diferencial entre dois montantes”, com pagamento da diferença líquida, após “compensação (netting)”.

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settled fi nancial derivatives)29 ou que consideram o diferencial como objeto típico e fundamental dos contratos derivados30.

A posição correta parece-me ser a de que, sob este aspeto, coexistem duas modalidades de contrato de swap: aqueles em que há efetiva reciprocidade de obrigações (swaps de troca) e aqueles em que é devida uma só prestação (em períodos predeterminados ou a fi nal) pela diferença de valores (swaps diferenciais).

Não se pode ignorar a existência da primeira modalidade, só porque a prática atual a tem desvalorizado (mas as modas evoluem, apesar de os operacionais da fi nança terem tendência para agir e falar como se o modelo mais recente ou mais frequente fosse o único possível). Ainda menos, se pode recusar a modalidade diferencial, só para manter a ideia de troca, que, neste modelo, é irrealista e não passa de fi cção31.

3. Função de risco dos swaps diferenciais; assimilação aos contratos de aposta

Como todos os contratos diferenciais, os swaps diferenciais são contratos causais32, porque o seu próprio conteúdo revela – e a sua validade exige – uma função económico-social. A esta função já se chamou “causa especulativa”33, mas a especulação não pode ser erigida em causa, é um motivo entre outros possíveis, mesmo nos

29 HUDSON, The Law of Finance, cit., p. 1192, mencionando o nº 85 do Financial Services and Markets Act 2000 (Regulated Activities) Order 2001.

30 E. GIRINO, I Contratti Derivati, 2ª ed., Milano, 2010, p. 16 ss (embora adiante, p. 190 s, distinga entre “derivados”, em que a natureza diferencial é “objeto do negócio”, e “contratos diferenciais”, adotando uma noção destes muito restrita e incomum, enquanto simples poder de cumprimento por liquidação fi nanceira; cfr. nota 17).

31 HELDER MOURATO, Swap de taxa de juro, cit., p. 30, nota 6.32 Assim, PEREIRA DE ALMEIDA, ob. cit., p. 67, ENGRÁCIA ANTUNES,

Os derivados, cit., p. 127 (para todos os contratos diferenciais) e todos os AA. e acórdãos, a seguir citados, que explicitam uma causa contratual ou uma função económico-social para esta classe de contratos.

33 GIRINO, I Contratti Derivati, cit., p. 239 ss.

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contratos diferenciais. Parece-me preferível usar uma expressão mais genérica: função económico-social de risco34.

Tal como nos contratos de troca, verifi ca-se nos contratos diferenciais divergência entre a fi nalidade global do contrato e a fi nalidade de cada um dos contraentes. Mas não são contratos de troca, são contratos de risco, porque o custo fi nal recai apenas sobre uma das partes e o benefício favorece apenas a outra. E são contratos de risco puro35, porque a obrigação a pagar pela parte perdedora à parte ganhadora resulta de um fator de risco endógeno, criado pelo próprio contrato e independente de outro interesse direto para os contraentes que não seja a possibilidade de ganho36.

De entre os contratos de risco puro, os contratos diferenciais têm estrutura homóloga à da aposta37. Contrato de aposta é o contrato em que as partes estipulam que quem erre acerca da previsão ou da verdade de um facto se obriga a efetuar uma prestação patrimonial

34 Assim, HELDER MOURATO, O Contrato de Swap de Taxa de Juro, cit., p. 64 ss, embora integre também uma componente funcional de troca (p. 67). Explicitamente contra a função de risco, que considera objeto do contrato, MOTA PINTO, ob. cit., nº 3987, p. 398 s. Para o acórdão do STJ de 10.10.2013, cit., a aleatoriedade dos contratos de swap tem o sentido de que “é o risco e incerteza que fornece a própria causa e objeto contratuais”. Em minha opinião, causa e objeto são elementos diferentes do contrato: a causa é a função económico-social, o objeto é a referência a cada um dos bens a que respeitam as funções e os efeitos contratuais (nos swaps diferenciais, a quantia em dinheiro a pagar por uma das partes); cfr. meu Contratos II, cit., p. 55 ss, 91 ss.

35 Na nomenclatura que venho adotando, os contratos com função de risco subdividem-se em contratos de garantia e contratos de risco puro: nos contratos de garantia (hipoteca, fi ança, garantia autónoma, seguro), o risco é exógeno e, se o contrato for gratuito, a superveniência de um custo é apenas eventual; nos contratos de risco puro (jogo, aposta, contratos diferenciais), o risco é endógeno e o custo é certo quanto à sua verifi cação, embora incerto quanto à parte sobre quem recai.

36 Ver mais sobre o tema no nº 5 infra, texto sequente à nota 55. 37 E não à do jogo stricto sensu, porque a determinação de quem ganha e de quem

perde é estranha à ação de qualquer dos contraentes. Mas, para o caso em análise, a distinção entre jogo e aposta (com critério discutido) é indiferente, porque dela não depende a validade ou invalidade do contrato de swap diferencial.

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a favor de quem acerte38. Ora, como se viu, nos contratos diferenciais há também uma só prestação que benefi cia aquela das partes que tenha previsto corretamente a alta ou a baixa do valor de mercado, a valorização ou desvalorização de um dos bens em relação ao outro.

Em comparação com a generalidade dos contratos de apostas, os contratos diferenciais (incluindo os swaps diferenciais) dispõem de um elemento específi co, que carateriza o evento de risco – a cotação no mercado de um bem de referência, pelo qual se determina não só quem é a parte ganhadora como também, por comparação com o valor inicial de referência, qual é o montante da prestação a pagar pela parte perdedora.

É a assimilação à aposta – apenas dos swaps diferenciais, não dos swaps de troca – que suscitou ao longo da história, e continua suscitando em Portugal, a questão da sua eventual invalidade, tendo em conta o artigo 1245º do Código Civil.

Mas, como adiante se pretende demonstrar, a verifi cação de que os contratos diferenciais se podem qualifi car, pela estrutura e pela função de risco puro, como uma categoria específi ca dos contratos de aposta não justifi ca, por si só, um juízo de invalidade dos contratos de swap diferenciais.

4. Argumentos contra a validade dos swaps de especulação pura; refutação

Há quem entenda que os swaps diferenciais de taxa de juro só são permitidos se forem contratos de garantia, instrumentos de cobertura de risco, exógeno, real e não fi ctício, decorrente do normal desenrolar da atividade económica. Os contratos diferenciais que não correspondam a este modelo constituiriam especulação pura,

38 Ou perde a entrada que efetuou em favor de quem acerte ou da entidade promotora do sistema (mas este subtipo de aposta real quanto à constituição não é relevante para a comparação com os contratos de swap diferenciais).

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aos quais se aplicaria a exceção de jogo e de aposta do artigo 1245º do Código Civil39.

Um autor acrescenta que tais swaps se desviam da função originária, sendo nulos por ilicitude da causa40. Em acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, também se invocou contra a validade de tais contratos, ditos de pura especulação, a desconformidade com a ordem pública e o artigo 99º, alínea c), da Constituição41.

Quanto à exceção de jogo, a refutação é óbvia: o artigo 1247º do Código Civil exclui o regime geral do Código aplicável a contratos de jogo e de aposta quando haja legislação especial. Nesta hipótese, a nulidade só poderia portanto resultar dessa legislação especial, não da aplicação do artigo 1245º.

Ora, os swaps, com liquidação física ou fi nanceira, e os contratos diferenciais, constam do elenco dos instrumentos fi nanceiros regulados pelo Código dos Valores Mobiliários, conforme resulta do seu artigo 2º, nº 1, alíneas e) e d), que, para o efeito, valem como legislação especial aplicável aos contratos desta natureza que se possam qualifi car como contratos de aposta. Como a lei nada diz sobre a sua invalidade, ter-se-á de concluir que são válidos, o que deriva, implícita mas certamente, de serem atualmente contratos legalmente típicos42 e de a regulação legal pressupor a admissibilidade, se forem negociados com a intervenção de um intermediário fi nanceiro43.

39 HELDER MOURATO, Swap de taxa de juro, cit., p. 41; ID., O Contrato de Swap de Taxa de Juro, cit., p. 71 ss, 113 s; J. LEBRE DE FREITAS, Contrato de swap meramente especulativo: regimes de validade e de alteração de circunstâncias, Revista da Ordem dos Advogados, 2012, vol. IV, p. 943 ss (p. 949 ss). Próximo, na argumentação e na conclusão, o acórdão do STJ de 29.01.2015, cit.

40 LEBRE DE FREITAS, ob. cit., p. 949, 952 s.41 Acórdão citado na nota 39. 42 AMADEU J. FERREIRA, Títulos de crédito e instrumentos fi nanceiros.

Guia de estudo, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 2011-2012, policop., p. 129.

43 Agindo em nome próprio (ainda que por conta de outrem) ou como contraparte central de um sistema de negociação (cfr. artigos 258º e seguintes do Código dos Valores Mobiliários), sob qualquer forma organizada admitida por

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É este um imperativo do direito comunitário, no caso, o anexo I, secção C, da Diretiva 2004/39/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de abril de 2004, relativa aos mercados de instrumentos fi nanceiros (DMIF), que, no elenco de instrumentos fi nanceiros, inclui contratos diferenciais e swaps, com diversos conteúdos e com liquidação por entrega física ou pagamento em dinheiro. Para este anexo remetem vários preceitos daquela Diretiva, entre os quais o artigo 4º, n º 1, 2), que delimita os serviços e atividades de investimento em função da sua incidência sobre qualquer dos instrumentos enumerados naquela Secção C do Anexo I.

Como se escreveu, com clareza e sem complicações, em acórdão da Relação de Lisboa44: “O contrato de swap é um contrato lícito, admitido e tutelado no nosso ordenamento jurídico, designadamente pelo art. 2º do Código de Valores Mobiliários e pela Diretiva 2004/39/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de abril de 2004, transposta para o nosso direito pelo Decreto-Lei n.° 357-A/2007, de 31 de outubro, que alterou o CVM”.

Contra esta conclusão, escreveu-se: “A referência que é feita ao swap no artigo 2º, nº 1, alínea e), do Código dos Valores Mobiliários e a sua consequente sujeição, sem mais, à respetiva regulação não implica o reconhecimento indiscriminado de todas as modalidades do contrato (inominado) de swap nem o afastamento do regime geral do artigo 1245º do Código Civil”45.

Mas não é assim46. No que para o efeito importa, o artigo 204º, nº 1, alínea b), daquele Código admite como objeto de negociação em

lei (artigo 198º do mesmo Código). Os contratos diferenciais sem intervenção de intermediário fi nanceiro que se confi gurem como aposta lícita são também efi cazes, mas apenas na medida em que geram obrigações naturais (artigo 1245º, 2ª parte). Segundo a opinião dominante, a aposta é lícita (hoc sensu) quando as previsões sobre a evolução de cotações em mercado ou de outros eventos dependam, em parte signifi cativa, do grau de informação, da perícia e da aptidão interpretativa dos contraentes.

44 De 13.05.2013 (relatora M. Rosário Morgado), cit. 45 LEBRE DE FREITAS, ob. cit., p. 969.46 O acórdão da Relação de Lisboa de 21.03.2013, já citado, que decidiu um

litígio suscitado por um contrato celebrado antes da transposição da DMIF, em

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mercado “instrumentos fi nanceiros derivados, cuja confi guração permita a formação ordenada de preços” e o artigo 227º, nº 2, remete para o Regulamento nº 1287/2006, de 10 de Agosto, da Comissão Europeia a defi nição das caraterísticas dos instrumentos fi nanceiros suscetíveis de negociação em mercado regulamentado. Ora os artigos 37º a 39º deste Regulamento, que concretiza e desenvolve os artigos 40º e 4º, nº 1, 2), da DMIF, só contêm requisitos de informação e de transparência, sem qualquer menção à natureza especulativa ou não especulativa dos instrumentos fi nanceiros, incluindo derivados diferenciais. Na mesma linha, o Regulamento da CMVM nº 2/2012, de 25 de outubro, sobre produtos fi nanceiros complexos, limita-se a consagrar deveres informativos, sem excluir nem referir instrumentos especulativos.

Parece-me pois exata a conclusão de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça47: “Os contratos de swap de taxa de juro, que não têm o propósito direto de cobertura de risco, não são proibidos por lei, tal como o não são aqueles cujo valor nocional não corresponde a um passivo real”.

Os contratos de swap, ainda que diferenciais e sem motivação na cobertura de risco, são válidos, apesar de serem qualifi cáveis como contratos de aposta. A invocação da lei para justifi car a sua validade não é um argumento último48, é o argumento primeiro e essencial em que radica a sua validade.

2007, alinha com a tese da degradação em mera aposta do contrato de swap que não cubra o risco de uma concreta operação fi nanceira e da consequente exceção de jogo, mas parece reconhecer que da transposição da DMIF para o artigo 2.º, n.º 1, alínea d,) do CVM resulta a admissibilidade de contratos diferenciais.

47 De 11.02.2015 (relator Sebastião Póvoas), cit., embora não subscreva outros considerandos; cfr. notas 10 e 48.

48 CALVÃO DA SILVA, Swap de taxa de juro: a sua legalidade e autonomia…, cit., p. 265. Para este A., como para o acórdão do STJ do 11.02.2015 (relator Sebastião Póvoas), cit., o primeiro fundamento de validade decorre da recusa de qualifi cação como contratos de aposta, sendo apenas subsidiária a invocação do artigo 1247º do Código Civil.

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Esta política legislativa permissiva é discutível e pode não ser a melhor, mas é sem dúvida o direito vigente. A aplicação do artigo 1245º do Código Civil aos swaps e a outros derivados diferenciais seria contrária ao Código dos Valores Mobiliários e ao direito da União Europeia49.

A existência de uma lei que admite aquele tipo contratual é incompatível com o apelo à ordem pública, salvo inconstitucionalidade. O invocado artigo 99º da Constituição, estabelece como objetivo (do Estado) “o combate às atividades especulativas”, mas insere-se no âmbito da “política comercial” (obviamente relacionada com o abastecimento de bens de consumo), sem referência paralela no título sobre “sistema fi nanceiro e fi scal” (artigos 101º e seguintes). De qualquer modo, aquele artigo 99º é uma norma que tem como único destinatário o Estado, não os agentes económicos em sentido estrito, pelo que a sua aplicação só poderia originar inconstitucionalidade por omissão.

5. Ensaios de distinção entre swap e aposta para sustentar a validade dos contratos de swap; refutação

Para sustentar a licitude dos contratos de swap, têm sido invocados argumentos que os distinguem da aposta (e/ou do jogo) e a consequente inaplicabilidade do citado artigo 1245º.

Segundo uma opinião, o jogo difere dos swaps, porque nele não existe troca ou permuta nem carácter periódico das prestações, “antes se verifi cando uma de duas situações: (i) a entrega por uma das partes à outra de certa quantia pecuniária, (ii) consequente

49 No acórdão da Relação de Lisboa de 08.05.2014, cit., escreveu-se: “A qualifi cação de contratos de swap de taxas de juros celebrados por instituições fi nanceiras [ ] como contratos de jogo e aposta, com a consequente negação de efi cácia vinculativa aos seus efeitos, limitaria a possibilidade de recurso a tais contratos na nossa ordem jurídica e pelas empresas portuguesas [ ], colocando-as em desvantagem perante a generalidade das ordens jurídicas onde tais contratos são admitidos”.

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obrigação de uma das partes de realizar certa prestação pecuniária ou em espécie, sujeita a condição suspensiva de verifi cação de determinado resultado”50. Ou, com raciocínio semelhante: “No jogo e aposta, os contratantes prometem-se reciprocamente e sob condição idêntica, uma determinada soma ou uma coisa, de tal forma que, no fi nal, só um deles será credor do outro. Não assim no contrato de swap que visa organizar o pagamento recíproco de somas de dinheiro em que o valor nominal de ambas ou de uma só das prestações a efetuar, ou, pelo menos, o seu valor real, não está determinado desde logo, antes depende do nível das taxas de juro que se verifi car num determinado mercado de capitais51.

Ora, como se viu, a troca de prestações só se verifi ca numa certa classe de swaps, não nos swaps diferenciais. Nestes, tal como a aposta, só uma das partes será credora da outra, recaindo sobre a outra parte a obrigação de realizar certa prestação pecuniária, dependente da verifi cação de certo resultado futuro52.

Segundo outra opinião, o swap não pode ser equiparado ao jogo e à aposta, porque a sua “função económico-social é de gestão, cobertura ou controlo de riscos, uma função de garantia ou segurança”, um interesse para os contraentes “digno de proteção legal (artigo 398º, nº 2, do Código Civil)”, não “um passatempo ou fi m lúdico ou uma quantia pecuniária com efeito (cego) da sorte”53.

Se este critério não fosse completado com um argumento subsidiário de validade com base legal54, redundaria afi nal na restrição da licitude aos contratos de swap em relação aos quais se

50 BOULLOSA GONZALEZ, Interest Rate Swaps, cit., p. 20 s. 51 Acórdão da Relação de Lisboa de 13.05.2013, cit. 52 Em nenhum caso, o evento (o resultado) é uma condição em sentido

próprio, porque esta determina a efi cácia ou inefi cácia total do contrato, enquanto, nos contratos de risco, o evento tem efeito apenas parcial, determinante ou conformador de uma prestação (cfr. os meus livros Contratos III, cit., p. 281, e Contratos IV. Funções. Circunstâncias. Interpretação, Coimbra, 2014, p. 115 ss, 120 ss, 155 ss).

53 CALVÃO DA SILVA, loc. cit. 54 Cfr. nota 48.

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demostrasse aquela função de garantia, o que, como disse, contraria as leis em vigor.

Segundo outro critério ainda, o risco nos contratos de jogo e de aposta é endógeno, enquanto nos contratos de swap o risco é exógeno. Numa variante desta ideia, o risco nos contratos de swap pode ser exógeno ou endógeno, mas estes são então contratos de aposta. Desta nuance resulta uma notável diferença na aplicação do mesmo critério a uma mesma classe de contratos – os contratos de swap meramente especulativos – que são válidos para quem considere que o risco é ainda exógeno, não sendo portanto contratos de aposta55, ou que são inválidos para quem considere que o risco assumido é então endógeno, sendo portanto contratos de aposta56.

Em minha opinião, nos contratos de swap diferenciais, pelo menos naqueles em que os valores de referência inicial são virtuais ou nocionais, como são os índices fi nanceiros e os contratos fi ccionados no contrato de swap, o risco é efetivamente endógeno, porque é construído pelas partes apenas como instrumento de cálculo da prestação.

Mesmo que uma das partes tenha em vista a cobertura de risco numa outra operação, não é o risco nessa operação que serve de referência a esta classe de contratos de swap. A eventual conexão fi nanceira não passa de um motivo, não mencionado no contrato de swap e portanto sem infl uência nas suas vicissitudes, que são determinadas por comparação de outros valores com valores relativos a passivos ou a ativos fi ccionados57.

55 MOTA PINTO, ob. cit., p. 18, 21; acórdão da Relação de Lisboa de 08.05.2014, cit. Semelhante, M. CLARA CALHEIROS, O contrato de swap, cit., p. 96, ao escrever: “o jogador cria o risco, o especulador utiliza o risco para fi ns úteis”.

56 HELDER MOURATO, Swap de taxa de juro, cit., p. 40; ID., O Contrato de Swap de Taxa de Juro, cit., p. 74 ss, 113 s; LEBRE DE FREITAS, ob. cit., p. 953; acórdão do STJ de 29.01.2015, cit.

57 M. LIMA REGO, Contrato de seguro e terceiros. Estudo de direito civil, Coimbra, 2010, p. 150, nota 315), escreve, tendo em vista alguns derivados, que “se fi cciona o risco exógeno, sendo apenas real o risco endógeno”.

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Mesmo que aqueles valores se apurem por fl utuações do mercado real58, a natureza nocional e, em consequência, a natureza endógena do risco resulta de os valores de referência inicial com que se comparam serem artifi cialmente criados para cálculo da diferença a pagar. A participação de um elemento externo para cálculo da prestação a pagar não basta para excluir a endogenia do risco, como não exclui na aposta cujo resultado dependa da verifi cação de um facto da vida real (por exemplo, quem é o vencedor num ato eleitoral).

Todavia, ainda que o risco envolvido seja endógeno e que tenham estrutura igual à dos contratos de aposta, nem por isso os contratos de swap diferenciais estão sujeitos à exceção de jogo, porque a lei a afastou ao admitir, sem distinção de validade, referências reais e nocionais.

Finalmente, segundo o critério que vem obtendo mais adesões59, a distinção entre swap e aposta assentaria num elemento intencional, razão de ser da proibição legal: a intenção de jogo ou de aposta, caraterizada pela intenção especulativa lúdica, de entretenimento ou de lucro, associada a atividades não produtivas, sem fi m económico sério. Se essa intenção for bilateral, isto é, comum a ambas as partes ou só de uma delas mas reconhecível pela outra, haveria contrato de jogo ou de aposta a que se aplica o artigo 1245º. Pelo contrário, a ligação a uma atividade económica séria, designadamente a intermediação fi nanceira, retira à especulação a intenção de jogo e aposta e, portanto, a qualifi cação e o regime correspondentes60.

58 Cfr. CALVÃO DA SILVA, loc. cit. 59 Por vezes usado em cumulação com o critério anterior. 60 MOTA PINTO, ob. cit., nº 3988, p. 18 ss. Próxima, M. CLARA

CALHEIROS, O contrato de swap, cit., p. 93, que vislumbra no jogo e na aposta intenção especulativa de ambas as partes; ID., O contrato de swap no contexto da actual crise fi nanceira global, Cadernos de Direito Privado, no 42, 2013, p. 3 ss (p. 9), quando distingue entre especulação hasardeuse e sérieuse. Semelhante é a ideia subjacente ao acórdão da Relação de Lisboa de 13.05.2013, cit., no qual se lê: “No contrato de jogo e aposta, e ao contrário do que sucede no de

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A primeira objeção a este critério advém de, sem base legal e sem paralelo noutros contratos, erigir motivos em elemento de tipifi cação contratual, com a consequente difi culdade ou impossibilidade de aplicação. Como se apuram os motivos? A intenção lúdica e a especulação não podem coincidir ou cumular-se? Se nada se provar em relação aos motivos de uma ou de ambas as partes, o contrato deve ou não ser qualifi cado como jogo ou aposta?61.

A segunda objeção resulta de o critério pressupor, embora sem tornar explícito, que a intenção comum de jogo preenche a situação do artigo 281º do Código Civil, que comina com nulidade os negócios cujo fi m comum seja contrário à lei, à ordem pública ou aos bons costumes62. Os argumentos para refutar a ideia subjacente são os mesmos que antes apresentei para refutar a tese da invalidade dos swaps de especulação pura, com a qual a tese da invalidade de swaps em que se detete intenção de jogo ou de aposta tem afi nal evidentes afi nidades, enquanto convergem num (não assumido) anátema lançado sobre o jogo.

A terceira objeção incide sobre a ideia de “atividade económica séria”. Aceita-se que a intervenção de intermediário fi nanceiro,

swap, em que a exposição à incerteza é apenas o efeito secundário do esforço de perseguir um objetivo comercial ou fi nanceiro legítimo, a vontade de contratar é exclusivamente dominada pelo desejo de submissão à contingência da verifi cação de um acontecimento incerto [ ]. No contrato de aposta ambas as partes, e não apenas uma delas, tem uma intenção especulativa. Já no jogo se encontra uma especulação independente de qualquer justifi cação”. Também no acórdão do STJ de 11.02.2015 (relator Sebastião Póvoas), cit., se escreveu, como primeira linha de argumentação (cfr. nota 48): “A especulação é uma fi nalidade legítima que, só por si, não se confunde com a fi nalidade típica dos jogadores ou dos apostadores. O especulador atua com o objetivo de lucrar enquanto o apostador busca um fi m lúdico; o especulador faz uma previsão racional da evolução das variáveis e o apostador não; aquele exerce a sua atividade no contexto de um mercado com relevante função económica e social”.

61 No citado artigo de MOTA PINTO, nº 3987, p. 408, faz-se notar a “irrelevância e a inviabilidade prática de apuramento das concretas fi nalidades” das partes nos contratos de swap.

62 Na verdade, não se vê que outra norma legal possa justifi car a nulidade aferida por uma intenção comum.

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autorizado e fi scalizado pela entidade pública de supervisão, seja um índice de seriedade63. Mas pergunta-se: Quais são os elementos defi nidores de “atividade económica séria”? Por que razão a atividade económica de organização de jogos autorizados por lei e fi scalizados pelo Estado não é uma atividade económica séria?

Em resumo, a intenção como critério para distinguir entre aposta (ou jogo) e swap é desconforme com a lei, que admite os contratos de swap sem dependência da intenção ou dos motivos dos contraentes.

6. Conclusão: os contratos de swap diferenciais como contratos de aposta válidos por força da lei

Os contratos de swap podem ser de troca ou diferenciais. Só em relação a estes, com estrutura assimilável à aposta, é concebível colocar a questão da exceção de jogo.

Como as leis que preveem e regulam os contratos não distinguem entre swaps com e sem função especulativa e falham os vários critérios de distinção entre swap e aposta, os contratos de swap diferenciais, negociados com a intervenção de um intermediário fi nanceiro, são válidos por força da lei, ainda que tenham estrutura e função homólogas da estrutura e da função dos contratos de aposta.

Os swaps não são imunes a invalidades e fornecem até terreno propício a invalidades, por aplicação, caso a caso, de fundamentos gerais de invalidade (v. g. erro, usura, violação da lei). Mas, sendo contratos legalmente típicos, não sofrem de invalidade genérica associada a um subtipo contratual ou a uma categoria de motivos.

63 Mas não é a seriedade o critério da validade. É a inserção no objeto da atividade dos intermediários fi nanceiros. Cfr. supra nota 43.

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O REGIME DE CONTROLO ADMINISTRATIVO DA IDONEIDADE1 NA ADEQUAÇÃO DOS CORPOS

SOCIAIS ÀS INSTITUIÇÕES DE CRÉDITO E SOCIEDADES FINANCEIRAS.

Luís Guilherme Catarino2

Sumário: O actual regime de forte controlo administrativo da idoneidade dos membros de órgãos sociais de instituições fi nanceiras é um refl exo de vários paradoxos. O primeiro, de que mercados mais livres exigem mais regras jurídicas. O segundo, de que em mercados deixados à iniciativa privada se assiste à publicização de funções privadas, espécie de second best das denominadas relações de sujeição especial na Administração Pública. O terceiro, e mais importante, de que nas relações Globalizadas o Direito tem de substituir o pretenso chamamento de outras formas de legitimação e normação de condutas, como a Ética. É que um indivíduo pode ser perigosíssimo em termos de conduta profi ssional se o seu nível ético for reduzido, quer por má-fé, quer por verdadeiro desconhecimento do êthos. Mas mal utilizado, o nível ético padrão pode favorecer uma ecologia profi ssional e a captura, destruindo a Confi ança no sistema que só a autoridade pública pode conservar.

1 “Idoneidade”: Qualidade do Idóneo: Capacidade, Aptidão, Conveniência (Lat. Idoneitate) – Dicionário Porto Editora. O presente texto corresponde ao Seminário lecionado no Seminário do IVM em 2014, atualizado no corrente ano de 2016 para publicação na revista da concorrência.

2 Professor Auxiliar da Faculdade de Economia UAL. Director-Adjunto da CMVM. As opiniões expendidas no texto, de acordo com anteriores regras ortográfi cas, apenas vinculam o Autor. Agradecimentos são devidos à Sra. Dra. Conceição Aguiar, Eminente Jurista da CMVM.

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Introdução ao tema.

O exercício por pessoas singulares das funções de administração e fi scalização nas instituições de crédito (latamente, de todas as entidades sujeitas à supervisão do Banco de Portugal, doravante designadas por “instituições fi nanceiras”), encontra-se submetido a um procedimento administrativo de prévia autorização, após avaliação da “adequação” para “o exercício do cargo e no decurso de todo o seu mandato”. A adequação “(…) consiste na capacidade de assegurarem, em permanência, garantias de gestão sã e prudente das instituições de crédito, tendo em vista, de modo particular, a salvaguarda do sistema fi nanceiro e dos interesses dos respetivos clientes, depositantes, investidores e demais credores” (artigo 30º, nºs 1 e 2 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro - doravante Regime Geral ou RGIC3).

A adequação para o desempenho cargos em órgãos de administração e de fi scalização – requisito legal que se encontra atualmente estendido a outros cargos ou funções consideradas essenciais nas instituições fi nanceiras - é uma cláusula geral que contém conceitos indeterminados e implica a verifi cação de pressupostos objetivos mas também subjetivos dos nomeados para os órgãos sociais: a idoneidade pessoal, profi ssional e patrimonial de que trataremos; a qualifi cação profi ssional; a independência pessoal, profi ssional e de espírito; a disponibilidade (arts. 30º, nºs 3 e 4, e 30º-C).

A aferição da adequação traduz-se num vasto poder administrativo discricionário balizado pelo objecto do acto - aferição das condições necessárias para garantir uma gestão sã e prudente da instituição -, e pelo seu fi m - salvaguarda do risco individual

3 Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, a versão actualizada e consolidada disponível em https://www.bportugal.pt/pt-PT/Legislacaoenormas/Documents/RegimeGeral.pdf Doravante todos os artigos sem indicação de fonte reportam-se ao RGIC.

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(proteção dos interesses dos clientes, depositantes, investidores e demais stakeholders) e do risco sistémico (proteção de todo o sistema fi nanceiro). O exercício desta competência depende da prévia verifi cação de pressupostos ou condições legais, desde logo a verifi cação pela empresa da adequação funcional do indivíduo e do conjunto de indivíduos (nos órgãos plurais) i) face aos cargos a ocupar em concreto, ii) às atividades desenvolvidas pela empresa, iii) no âmbito da sua política interna de seleção e de controlo, iv) com observância de critérios legais prudenciais ou meramente políticos como o de discriminação em razão do sexo (“destinada a aumentar o número de pessoas do género sub-representado (…) em cada momento), artigo 30º, nº5.

Numa tendência contrária ao movimento de desregulação administrativa que apostou na substituição dos regimes de licenciamento e de autorização pelas meras notifi cações ou comunicações (prévias) à Administração, o Decreto-Lei nº 157/2014, de 24 de outubro, procedeu a uma profunda alteração do RGIC, nomeadamente no usualmente denominado regime geral de autorização administrativa para exercício de cargos sociais em instituições fi nanceiras. O reforço da proibição (relativa) do exercício de uma profi ssão foi instituído numa difícil atividade administrativa de polícia: a que tem em vista a prevenção de riscos de solvabilidade de uma empresa através de garantias de uma gestão sã e prudente. A formulação deste juízo implica uma forte averiguação inicial da conformidade ou da adequação pessoal (e profi ssional) dos candidatos ao exercício das funções. A decisão administrativa de autorização ou de proibição funda-se na verifi cação de capacidade dos interessados face a factos presentes e passados conhecidos, que determinarão uma convicção baseada num juízo de prognose de garantia de capacidade futura.

No presente artigo debruçamo-nos sobre este mecanismos legal, pois:

i) A verifi cação administrativa prévia da idoneidade de uma pessoa para uma profi ssão não é uma novidade no ordenamento jurídico nem é condição única, sendo um dos requisitos da verifi cação da adequação pessoal;

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ii) A aferição da idoneidade é uma atividade de supervisão prudencial que se aplica igualmente a outras pessoas que não apenas os membros dos órgãos sociais, porque exercem funções consideradas essenciais ou de direção de topo (denominadas de key persons ou pessoas elegíveis devido a funções essenciais4 , artigo 33º-A RGIC);

iii) O controlo da idoneidade reveste uma natureza de poder-dever de vigilância que incide primariamente sobre as instituições fi nanceiras, sobre as autoridades administrativas reguladoras nacionais (com cooperação interinstitucional nacional e comunitária, vg das autoridades de supervisão comportamental), e sobre o Banco Central Europeu no caso de instituições fi nanceiras signifi cativas5;

iv) A verifi cação destas condições legais (também ditas de fi tness and propriety para o exercício de funções) deve manter-se a todo o tempo, detendo o regulador responsável pela supervisão prudencial fortes poderes discricionários de verifi cação que permitem atuar a todo o tempo através de medidas individuais e extraordinárias.

4 “Colaboradores cujas funções lhes conferem uma infl uência signifi cativa na administração e fi scalização da instituição de crédito, mas que não são membros do órgão de administração e fi scalização. Podem incluir-se entre quem desempenha funções essenciais os responsáveis por linhas de negócio signifi cativas, os gerentes de sucursais constituídas no EEE, responsáveis por fi liais estabelecidas em países terceiros, e ainda os responsáveis pelas funções de apoio e de controlo interno” - Orientações da EBA, de 22nov2012, EBA/GL/2012/06.

5 No caso das “instituições fi nanceiras signifi cativas” a competência para a avaliação da adequação ou idoneidade cabe ao Banco Central Europeu, a quem os reguladores bancários nacionais devem comunicar todos os atos de autorização e registo e demais atos administrativos secundários relativos à composição dos órgãos sociais (bem como outros factos relevantes para esta matéria como processos judiciais ou administrativo-sancionatórios interpostos contra tais pessoas) - artigos 4º, nº1, al. e) do Regulamento nº 1024/2013/EU do Conselho, de 15 de outubro de 2013, Mecanismo Único de Supervisão ou MUS, e 93º do Regulamento-Quadro do MUS do BCE, de 16 de abril de 2014. Para uma noção objetiva, subjetiva e estrutural de sistema monetário e fi nanceiro, Costa Pina, 2004, 22 e bibliografi a citada e Maria Leitão Marques et al., 2008, 413 ss.

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Não sendo um tema novo, a verifi cação deste requisito regulatório ganhou uma especial acuidade enquanto refração do movimento de re-regulação fi nanceira mundial decorrente das graves repercussões para os estados e para cidadãos, para os mercados, os investidores e reguladores, do gigantesco esquema piramidal (Ponzi Scheme) criado por Bernard Madoff. A fraude criada por alguém que fora presidente de um dos maiores mercados tecnológicos do mundo, mercado gerido por uma empresa dotada de fortes poderes de autorregulação e supervisão sobre os seus membros e participantes, colocou na agenda regulatória mundial três refrações essenciais:

1. A primeira, com menos chances de sucesso devido à autorrefl exividade do sistema fi nanceiro, convoca a accountability dos reguladores (desde logo nos fora internacionais de desregulação) que falharam na regulamentação, na deteção ou na atuação perante as irregularidades verifi cadas nos mercados. Esta accountability continua a ser diabolizada pela insuportável pressão fi nanceira que traria sobre os reguladores, mas existem outras formas de accountability não necessariamente pecuniárias, como o Bank of England, acaba de demonstrar ao colocar em consulta pública medidas legislativas para fazer face a queixas contra os reguladores6. As “falhas regulatórias” (que são muitas vezes governmental failures) deveriam ser seriamente pensadas para evitar que a autopoiesis do sistema fi nanceiro continue a abrir fendas jorrando externalidades negativas para o seu exterior, evitando também o grave efeito reputacional negativo. Na realidade, o caso Madoff acarretou um enorme descrédito para a norte-americana Securities and Exchange Commission dadas as anteriores falhas ocorridas desde a década de noventa. Relembramos a falência das socialmente

6 Complaints against the Regulators (the Bank of England, the Financial Conduct Authority and the Prudential Regulation Authority) – CP5/16, in https://www.fca.org.uk/static/documents/policy-statements/ps16-11.pdf acedido em 5.4.2016) Sobre as formas de “accountability”, vd o nosso artigo nesta Revista, 2014; pp. 171-239.

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relevantes morgage and loans companies (M&L), a explosão das “bolhas especulativas” dot.com (empresas tecnológicas), o fi m de colossos como a Enron ou a Worldcom na vertigem da “contabilidade criativa”, os escândalos de avantajamento de administradores das empresa face aos investidores (que levou ao afastamento da autorregulação da corporate governance), o admirável Mundo Novo dos derivados OTC, da securitização e da disseminação pelo público de instrumentos “tóxicos”, do conúbio das sociedades de rating e de outros gatekeepers privados com grandes bancos internacionais e governos (fenómeno da revolving door), da never ending story das dívidas públicas nacionais….

2. A segunda traduz-se num crescente apelo global à ética nos negócios e à moral nas condutas dos profi ssionais do sector, questão importante no atual ecossistema do mundo fi nanceiro global. É real a preocupação decorrente do facto de ser cada vez mais pronunciada a existência de uma “ecologia profi ssional” ou uma comunhão de interesses profi ssionais, políticos e de cultura entre indivíduos que funcionam dentro do mesmo círculo profi ssional e sectorial7. “Estes indivíduos transitam entre o sector privado e o sector público, governamental ou administrativo independente, numa real “captura intelectual”. As suas ligações pessoais e políticas e a vasta informação de que dispõem (e consequente infl uência mas também confl ito de interesses), a sua socialização, determinam uma formação cultural e profi ssional homogénea, um clube fechado (narrow) cujos membros rodam “naturalmente” entre os diversos sectores e criam a respetiva policy” – o “Washington corridor”8. A idoneidade deverá ponderar no futuro a essência de confl itos de interesses inerente à translação de Presidentes e titulares de

7 “Board Companies can’t be Old Boys Clubs”, escrevia o Economist de 7Dez2013, após o famoso Sarbanes-Oxley Act de 2002 Este Act tinha também como objetivo dar resposta aos escândalos “corporativos” de 2000, mas não evitou o proliferar de confl ito de interesses e falta de independência dos gestores.

8 Catarino, 2014: 72 ss.; Catarino e Peixe, 2014, Parte I.

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órgãos sociais entre instituições fi nanceiras concorrentes, por vezes promovidas pelos próprios reguladores e membros de governos, ou os movimentos destes servidores públicos que, conhecendo todo o sector e players, aceitam lugares nas respetivas administrações9.

3. A terceira decorre de a autopoiesis do sistema ser reforçada perante o movimento da globalização (os fora internacionais são atualmente dominados por governos e políticos com falta grave de legitimidade democrática e não por reguladores) e o transbordar do Direito e dos estados (são este fora quem dita as normas que regem todo o sistema internacional sem olhar ou conhecer particularidades e necessidades locais). Que padrão de garantia de adequação e idoneidade se pode exigir a administradores nomeados por acionistas com domicílio ou sede fora da União Europeia, com tradições, cultura e interesses diversos? Como combater esta nova “guerra fria” fi nanceira “armada” com novos campeões nacionais, sobretudo de estados emergentes? Qual o estado ou regulador nacional que assume o ónus político-fi nanceiro de se opor a que um fundo soberano ou uma empresa fi nanceira, direta ou indiretamente dominada por um estado autoritário ou teocrático (ou por uma oligarquia familiar ou empresarial opaca), invistam fortemente os seus vastos recursos fi nanceiros nos seus mercados ou nas principais instituições nacionais - adquirindo participações qualifi cadas e nomeando os seus administradores?

O premente apelo à ética e à moral (e à “ecologia”) nos negócios é uma reação a esta realidade hodierna, tal como o reforço do controlo público visa a salvaguarda da solvabilidade das instituições

9 A recente lei-quadro de algumas entidades independentes (Lei nº 67/2013, de 28 de agosto) pretendeu combater este fenómeno de revolving door entre sectores, mas de forma parcial: por um lado permitiu expressamente esta “translação” dos membros dos órgãos sociais em exercício (mas não dos demais “dirigentes”, numa demonstração pouco saudável do designado “Washington corridor”); por outro, porque não preveniu a captura do regulador pela entrada de dirigentes da indústria regulada ou de membros de órgãos políticos.

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e do conjunto do sistema. Considerado durante algum tempo como o problema da regulação fi nanceira, a necessidade de adequação é apenas um dos muitos dilemas regulatórios que ganhou atualidade e notoriedade devido ao forte impacto público de comportamentos pessoais ilícitos e danosos baseados em “correntes de confi ança pessoal”.

O controlo da conformidade legal de comportamentos e qualidades pessoais intrínsecas a estes profi ssionais e a garantia da sua repercussão positiva no sistema fi nanceiro foi cometido aos bancos centrais. Foram criados à semelhança das agencies norte-americanas e do Bundesbank enquanto administração pública especializada, especifi camente orientada e meritocrática. As entidades administrativas independentes foram criadas há mais de um século para funcionar como um “Governo de Sábios”. Pretende-se que sejam também imparciais e independentes. Imparciais subjetiva e objetivamente, e Independentes dos governos, dos políticos e da indústria, foram consideradas em tempos como o melhor remédio para a “governance” de sectores específi cos e fuga à captura pelas empresas e pela partidocracia ante a necessidade de proteção individual face a atividades públicas e privadas colidentes com direitos, liberdades e garantias fundamentais10.

Após uma era de fraca intervenção num espectro político dominado pelo monetarismo, pelo Thatcherismo e pela Reaganomics, pelo paradigma da autorregulação e posterior desregulação legal, as sucessivas governmental e regulatory failures do início do séc. XXI quase determinaram o ocaso destas autoridades e dos seus vastos e crescentes poderes. As acusações de captura e de omissão regulatória e os efeitos reputacionais negativos somados à grave crise mundial que eclodiu em 2007/2008 obrigam-nas a caminhar

10 Entre a vastíssima bibliografi a sobre esta nova forma de administração independente de peritos, Vital Moreira e Maçãs, 2003: 250; Luís C Catarino, 2010; Victor Calvete, 2013; Pedro Gonçalves, 2013, Vital Moreira, 1994; Vieira de Andrade, 1997; Figueiredo Dias, 2001; Lucas Cardoso, 2002; Morais, 2001, Miranda e Medeiros, 2007; Catarino, 2012,a); Fernanda Maçãs, 2013.

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para uma re-regulação administrativa, forte e tipicamente reativa, mas que não pode redundar na patrimonialização dos cargos ou na auto-captura.

O novo direito administrativo da regulação contém peculiaridades que em parte decorrem da adoção por um regime de administração napoleónica, tradicionalmente denso em termos materiais, e do Direito das formas e dos princípios da administrative law norte-americana, assente na criação e regulação do procedimento e das formalidades e em cláusulas materiais abertas. Ao mesmo tempo mimetiza-se a atuação paranormativa e parajurisdicional das independent regulatory agencies, esquecendo que tais funções decorrem das particularidades americanas da tradição constitucional madisoniana e de serem uma “longa manus” do Congresso e não do Presidente. Sofre ainda a infl uência da necessidade de criação de um direito administrativo de natureza global (DAG) que se refl ita em atos transnacionais (DAG ainda desacompanhado de um direito constitucional global), numa estrutura normativa tripartida ou triangular (Administração-Regulados-Investidores ou Clientes).

A sua legitimação nos atuais sistemas democráticos, assenta numa atuação legal e constitucionalmente orientada. O procedimento é essencial dado que elas detêm um elevado grau de discricionariedade de ação e de decisão e consequente falta de controlo (artigo 267º, nº5 CRP). A legitimação assenta sobretudo na Auctoritas dos seus titulares, mais do que na Potestas. O Saber e a Experiência determinam um “Mando” socialmente e profi ssionalmente reconhecido, que legitima a substituição da intervenção de um Governo democrático pela neutralidade de um governo de sábios democraticamente defi citário11. É esta Auctoritas que tem de ser reconhecida por um sector regulado, caracterizado pela porosidade de funções e pela legalidade difusa. Um sector onde, a par da prática dos simples e tradicionais atos administrativos fracos, de aquisição de conhecimento e declaração,

11 Catarino, 2009: 298-359, 390, 420.

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e dos atos de regulação forte (hard regulation que inclui os típicos atos autorizatórios de exercício de atividades, as injunções ou as medidas de polícia), se praticam também atos preceptivos informais (substituição de membros de órgãos sociais mediante propostas regulatórias “irrecusáveis” de renúncia a cargos) ou procedimentos administrativos intrusivos desprocedimentalizados (de fi scalização, de inspeção ou de averiguação para obtenção de informação sobre pessoas concretas).

A Auctoritas é essencial para a efi cácia de uma soft regulation, quer se traduza numa Instrução do regulador (verbal ou escrita), quer num Parecer ou numa Recomendação (genérica ou concreta), quer numa Ordem para execução imediata. Só assim esta especial legitimidade pode ser “fonte de juridicidade” de condutas (hoft regulation12) e colocar “fontes informais” de Direito num patamar superior às fontes jurídicas de legitimação tradicional. A matéria do controlo das idoneidades é um bom exemplo do que há muito denominámos como “Direito conformador” de um sector decorrente do efeito de atos quase-normativos e de técnicas informais que só os profi ssionais conhecem: um vasto sistema autopoiético assente no reconhecimento social que é legitimatório do regulador e dos seus titulares. A perda da Auctoritas pode por isso abalar defi nitivamente a “proposta moral de direção e comando” e esta “mancha” pode-se estender das pessoas individuais à própria instituição reguladora e aos regulados.

I. O controlo administrativo da idoneidade é supervisão prudencial.

No sector bancário são as instituições de crédito que se situam no centro dos respetivos mercados. Tradicionalmente os bancos são intermediários entre o público aforrador e os investidores, prestam serviços e fazem empréstimos aos Estados, às famílias e

12 Catarino, 2012: 145-177.

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às empresas. O risco da sua atividade e os custos suscetíveis de serem externalizados para toda a coletividade aumentaram com o movimento de crescente inovação tecnológica e de complexidade fi nanceira. Os bancos têm uma relação fi duciária com os seus depositantes e mutuários que se encontra on the edge dado que hoje operam simultaneamente como mercados, como emitentes e colocadores de instrumentos fi nanceiros (alguns com natureza bem complexa) também nos seus clientes, como investidores e especuladores e arbitragistas globais. Há que mitigar os riscos decorrentes destas novas atividades e da junção da tradicional banca de retalho com a banca de investimento e criar a Confi ança nos usuários do sistema. A regulação assenta por isso na supervisão enquanto atuação de controlo e de vigilância e fi scalização pela administração nacional (vg pelos bancos centrais) para um Estado de Garantia.

A garantia para o mercado de que os operadores do sector fi nanceiro observam na sua atividade as normas comportamentais e prudenciais legalmente exigíveis, assenta na Potestas., que vai com poderes jurídicos fortes e discricionários. A constituição de uma relação jurídica regulatória assenta no nosso tema, no “controlo de entrada” num sector do regulado e daqueles que nele desempenham funções que são materialmente de risk takers para a instituição e o sector. Este controlo traduz-se na verifi cação de uma prévia condição legal: a autorização administrativa.

O procedimento autorizativo permite à administração ponderar a pretensão do exercício de um direito privado em função de garantia do interesse público.

Como veremos, o levantamento da proibição ou de um obstáculo em que se traduz a técnica autorizativa depende de uma prévia atividade de averiguação e valoração de qualidades e de comportamentos passados do interessado, no campo pessoal e patrimonial, que permita um juízo prospetivo de cobertura ou minimização de risco (princípio da precaução). Por isso este perscrutar de condutas se enquadra numa atividade de

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supervisão prudencial13: o poder-dever da Administração decorre da funcionalização da autorização à fi nalidade de salvaguarda da gestão “sã e prudente” da instituição fi nanceira aquilatando do seu equilíbrio fi nanceiro e métodos de gestão. Num sector económico com impacto na economia total dos Estados (“fi nanciarização da Economia”), as autorizações de entrada são limitadas por forma a garantir igualmente a “salvaguarda do sistema fi nanceiro e dos interesses” de todos os agentes económicos.

O juízo da administração sobre a adequação e em particular sobre a Idoneidade é enquadrado pelos conhecimentos de que dispõe e uma apreciação prévia: i) pelos mecanismos disponíveis no âmbito da organização interna da instituição (para a nomeação e posterior controlo); ii) da soma das qualidades dos membros dos órgãos colegiais (“adequação” coletiva); iii) do funcionamento e atividades da empresa em concreto (projeto de governance); iv) dos instrumentos de controlo, de reporte e de auditoria da atividade (para “segurança dos fundos confi ados à instituição”); v) da capacidade individual para contribuir para a satisfação das regras de conduta ou de mercado.

O óculo de verifi cação da idoneidade é pessoal e profi ssional mas a lente é funcionalizado: na fundamentação de um ato administrativo de recusa ou de indeferimento não basta alegar que A ou B foi condenado ou acusado no procedimento X . Há que estabelecer um juízo de prognose negativo. Este juízo negativo pode reportar-se à adequação da pessoa em concreto - perante a profi ssão, a atividade ou aquele pelouro. Pode reportar-se à adequação coletiva – adequação perante o conjunto das competências reunidas no órgão

13 “A supervisão prudencial abrange os mecanismos ligados à organização interna e ao funcionamento das empresas fi nanceiras que se destinem a evitar todo o tipo de riscos fi nanceiros e patrimoniais para a empresa e para o sistema” e “visem criar as condições para a proteção dos fundos e valores dos clientes confi ados à empresa fi nanceira” e ainda a satisfação das regras de conduta ou de mercado”. Acerca das diferentes noções e valências da supervisão, inicial e a posteriori, comportamental e prudencial - e dentro desta micro e macro-prudencial - Catarino, 2010, a): 464

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plural que pretende integrar, v.g., o conhecimento técnico reunido no órgão de gestão enquanto resultado dos conhecimentos dos seus titulares. E é necessariamente prudencial - a apreciação encontra-se dependente de um juízo de prognose relativo à probabilidade de assegurar uma gestão “sã e prudente” da instituição e de salvaguardar o ecossistema particular em que se integra. Por isso o controlo se encontra cometido ao Banco de Portugal (artigos 16º-33º-A, 65º e 93º e 118º).

No âmbito da supervisão prudencial o foco desloca-se para a salvaguarda da solvabilidade da instituição (risco individual) e da do sistema (risco sistémico) decorrente da capacidade de as pessoas que a gerem e representam darem garantias de uma gestão da empresa sã e prudente (devem ser fi t and proper).

Esta idoneidade é um conceito funcional que tem em vista a salvaguarda da relação de fi dúcia ou de confi ança perante o público em geral que confi a à instituição os seus fundos, embora a instituição seja solidariamente responsável pelos atos dos seus dirigentes, artigo 226º. O regime em questão veio reforçar o regime geral de fi tness and propriety constante do Código das Sociedades Comerciais (CSC) relativo aos deveres dos membros dos órgãos de sociais (artigos 64º e 414º CSC). Tendo embora uma fonte diferente, os deveres constantes das novas tendências de corporate governance, usualmente de génese autorreguladora, são importantes enquanto cruzam e harmonizam interesses dos próprios titulares de órgãos sociais e destes com a empresa, com os stakeholders e com os reguladores.

Na realidade, também servem diferentes fi ns pois esta última visa as relações com os acionistas e a salvaguarda do direito de propriedade acionista (a apreciação do projeto de aquisição de uma participação qualifi cada numa instituição fi nanceira integra a avaliação da idoneidade do proposto adquirente, artigo 103º, e de pessoas que venham a assumir por esse facto um lugar nos órgãos sociais, artigo 23º da Diretiva 2013/36/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2014, denominada usualmente por CRD IV, de Capital Requirements Regulation and Directive),

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bem como as relações com os demais stakeholders (o que implica uma forte componente normativa mas também ética). O primeiro visa as relações com as autoridades reguladoras que aprovaram uma pessoa para poder atuar num ambiente regulado devido ao forte interesse público em causa.

Com o fi m do mito da concorrência perfeita, a Confi ança depende da regulação da atividade não só através da criação de “redes de proteção” como os fundos de garantia, mas da intervenção preventiva no estabelecimento de forte solidez prudencial. Intervenção de quem? De uma entidade pública central que regula e disciplina as atividades (que também detém recursos para eventualidades adversas), e com quem os bancos estabelecem uma especial relação de fi dúcia14. Cria-se um “Regime Especial de Pessoas Autorizadas” para o exercício de atividades profi ssionais no sector fi nanceiro. Este pressupõe o cumprimento de deveres, inter alia de colaboração e de cooperação, a par de uma panóplia de deveres profi ssionais (muitos deles constantes de auto-regulação nos códigos de conduta profi ssional e nos regulamentos internos das empresas) e de uma especial diligência (artigo 75º RGIC),

14 A regulação prudencial inicial versava o controlo dos balanços e a liquidez das instituições, a restrição de atividades por sectores e por áreas territoriais ou nacionais - caso da famosa Glass-Steagall Banking Act nos EUA, mas de que podemos também dar como exemplo em Portugal a distinção entre as atividades dos bancos comerciais e a distinção entre as instituições de crédito, auxiliares de crédito as instituições parabancárias. A internacionalização das atividades e a globalização crescente levaria à regulação por instância informais internacionais, quer o G7, quer o Comité de Basileia por estes criados em 1975 após a falência no anto anterior do Bankherstatt. A tendência acentuou-se na década de 80 devido à desregulação bancária e seu impacto no forte mercado internacional de capitais e de divisas então existente (não esquecendo o importante papel desempenhado pelas bolsas de valores e securities, operações fora do balanço como os derivados, a inovação fi nanceira e a especulação). A declaração de Nixon em 1973 derrubara defi nitivamente os objetivos que tinham levado à criação em Bretton Woods de um sistema que pretendia regular os fl uxos de liquidez entre Estados, os movimentos fi nanceiros entretanto criados e a necessidade de regular a atividade e uniformizar a regulação para lhe dar efi cácia (levaria em 1988 à celebração do Acordo de Basileia - Basileia I).

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com consequente responsabilidade civil (embora a violação destes deveres públicos não crie para os particulares um direito de ação) e responsabilidade pública (vg contraordenacional, que na sua génese era de cariz disciplinar). Em última análise, a violação deste regime legal pode levar a uma sanção de morte profi ssional pelo afastamento pessoal do exercício de atividades fi nanceiras (pelo menos naquelas que requerem prévia autorização ou aprovação)15.

Esta relação fi duciária assenta portanto no pressuposto de que estas pessoas autorizadas agirão no melhor interesse da empresa e dos stakeholders, na preservação da efi ciência e transparência do mercado, e são dotadas de uma especial diligência, honestidade e integridade.

A autorização administrativa não é um privilégio mas um poder-dever de cumprir com as normas legais e éticas que regem a profi ssão e o sector mas também de colaboração com a autoridade na regulação e supervisão (i.e., pretende-se que tais pessoas se envolvam igualmente na preservação da integridade do mercado).

Por esse motivo a aferição da idoneidade inclui a avaliação da personalidade, ética e moral, e da capacidade pessoal e patrimonial, profi ssional e académica, dos membros dos órgãos de administração e de fi scalização das entidades supervisionadas, para o exercício de uma atividade fi nanceira16. A aferição da idoneidade abrange todas as pessoas que pretendam desempenhar cargos sociais , posições profi ssionais ou societárias dominantes ou funções-chave (key persons e key shareholders) - idealmente também nos conglomerados17.

15 Cfr,. artigos 212º, nº1, alínea d) RGIC, e 404º, nº1, alínea c) CodVM.16 O “órgão ou órgãos de uma instituição, designado nos termos do direito

nacional, com poderes para defi nir a estratégia, os objetivos e a direção global da instituição e que fi scaliza e monitoriza o processo de tomada de decisões de gestão e inclui as pessoas que dirigem efetivamente as atividades” das instituições de crédito e empresas de investimento, na aceção das Diretivas 2006/48/CE e 2006/49/CE, e atualmente do artigo 3º, nº1, 1. e 2. da Diretiva 2013/36).

17 Vão neste sentido as recomendações do BIS, o que implica uma cooperação efi caz entre reguladores mas encontra difi culdade nos casos de empresas não reguladas https://www.bis.org/publ/bcbs47c4.pdf (consultado em 5.4.2016).

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Os sujeitos cuja idoneidade se afere devem possuir e demonstrar possuir uma honestidade, integridade e reputação acima da média que garanta uma gestão sã e prudente - regime harmonizado face às liberdades fundamentais da União Europeia.

Estes requisitos aplicam-se a todos os dirigentes: a lei não exige idoneidade coletiva dado ser uma qualidade pessoal, mas uma “adequação” coletiva, baseada em capacidades mas também elevados princípios e valores éticos. A sua falta leva não apenas ao favorecimento pessoal mas também ao esvaziamento da inteligência e do espírito crítico de uma instituição, o que a prazo mina os sistemas onde operam.18

Veremos que a avaliação de fi tness and propriety é, um juízo que deve ser continuamente repetido. E a avaliação e exigência é feita a nível individual ou pessoal mas pressupõe uma adequação a nível coletivo visando num primeiro momento formular um juízo de cognoscibilidade e prognose póstuma sufi ciente (risco permitido), i.e., não absoluto e imutável, e que tem diferentes intensidades consoante a pessoa e o momento em que é exercido. Tal não constitui uma novidade no nosso ordenamento jurídico como passamos a expor (infra).

II. História recente do regime de controlo administrativo da idoneidade.

Até ao início da década de noventa vigorou em Portugal o Decreto-Lei nº 41403, de 27 de novembro de 1957, que continha a regulação do sistema de crédito e da estrutura bancária. Assentava num processo de autorização ministerial para constituição de instituições de crédito, não contendo disposições genéricas sobre a avaliação da idoneidade necessária para ser titular de órgãos sociais de instituições fi nanceiras. Existia neste âmbito um conjunto de normas prescritivas, de disponibilidade de tempo para a função, de

18 Moreira, 1999: 68.

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exclusividade profi ssional, de prevenção de confl itos de interesses e de proibição de exercício de funções de administração aos responsáveis por anterior falência de empresas ou condenados por crimes patrimoniais (“furto, roubo, burla, abuso de confi ança ou falsidade”, artigos 22º-28º). Como sucedia, por exemplo, com o Glass Steagall Act norte-americano19, a regulação distinguia tipos de instituições de crédito: in casu, os institutos de crédito do estado, os bancos emissores, os bancos comerciais e os estabelecimentos especiais de crédito (artigo 3º)20.

19 Uma das muitas intervenções de Franklin Roosevelt na década de trinta para combater a Grande Depressão económica e fi nanceira e regular a economia, fazendo frente ao individualismo e liberalismo dos agentes económicos suportado pelo Supremo Tribunal Federal, o Banking Act de 1933 (na realidade a data relevante é 1932, momento em que se iniciou uma dura batalha para a sua aprovação…) visou restaurar a confi ança na economia (até que o movimento de consolidação e a mergermania levou à sua revogação por Clinton em 12Nov1999 com o Financial Services Modernization Act conhecido como Gramm-Leach-Bliley Act, ou por Citigroup Act). Tal como agora, o propósito foi de superar as perdas incorridas pelos bancos comerciais devido ao seu investimento em mercados bolsistas alavancados e extremamente voláteis (por clara infl uência de Henry Steagall foi igualmente aprovado um sistema de garantia de depósitos visando o pequenos bancos rurais, a Federal Deposits Insurance Corporation). Separou claramente bancos comerciais (receção de depósitos e realização de operações bancárias típicas do fi nanciamento à economia e à indústria) e bancos de investimento (possibilidade de subscrição e investimento em equity e produtos mais complexos), proibindo confl itos de interesses relativamente aos seus acionistas e membros dos órgãos sociais. Ganharia o nome dos autores que tiveram em vista reganhar a confi ança e a segurança no sistema fi nanceiro - Carter Glass e Henry Steagall.

20 Como institutos de crédito do Estado tínhamos a Caixa geral de Depósitos, o Crédito Predial Português, a Sociedade Financeira Portuguesa, e o Banco de Fomento Nacional - posteriormente de Fomento Exterior (entretanto objeto de OPA pela Sociedade Financeira Internacional originaria o atual BPI, SA). Como bancos emissores o Banco de Portugal, o Banco Nacional Ultramarino, o Banco de Angola, incluindo o Instituto Emissor de Macau; a par existiam os bancos comerciais e ainda os estabelecimentos especiais de crédito (Caixas Económicas, Caixas de crédito Agrícola Mútuo). Outros diplomas importantes seriam o Decreto-Lei nº 44652, de 27 de outubro de 1962 e o Decreto-lei nº 45296, de 8 de outubro de 1963 (que regulava o exercício das funções de crédito e a prática de atos inerentes à atividade bancária e sua supervisão e sancionamento nas províncias ultramarinas).

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O regime relativo ao exercício do crédito seria regulamentado (e parcialmente alterado) pelo Decreto-lei nº 42641, de 12 de novembro de 1959 que pouco inovou no regime jurídico de autorização para exercício de funções no sector bancário. Acrescentaria uma proibição de concessão de crédito pela instituição aos titulares dos órgãos sociais, e a proibição do exercício de funções quando existissem relações de parentesco ou de afi nidade com outros membros do órgão (parentes consanguíneos ou afi ns “até, respetivamente, o 3º e o 2º grau, inclusive” - artigo 28º). Em 27 de abril de 1965 o Decreto-Lei nº 46302, criou as instituições parabancárias e as instituições que exerciam funções auxiliares de crédito (previstas no artigo 4º do Decreto-Lei nº 41403), mas não inovou neste âmbito21.

No sistema fi nanceiro em sentido lato existia um normativo especial para os mercados fi nanceiros de valores mobiliários - “bolsas de valores” ou “centros de transação de valores” mobiliários – extremamente lacunar e que vinha já do século anterior. O Decreto-Lei nº 8/74, de 14 de Janeiro, pretendeu suprir as lacunas decorrentes da regulamentação constante do Código Comercial de Veiga Beirão de 1888, e da legislação de 1901 e do “Regulamento do Serviço e Operações das Bolsas de Fundos e o Regimento do Ofício de Corretor”, que continham o respetivo

21 A maioria das instituições qualifi cadas como parabancárias eram sociedades que não podendo receber depósitos prosseguiam, nos termos do respetivo estatuto legal, atividades de locação fi nanceira, de factoring, de administração de compras em grupo ou para aquisições a crédito (que tiveram um “boom” após a proibição de concessão de crédito individual para aquisição de bens de consumo na denominada “era Cadilhe”, de reestruturação da dívida pública). Também se incluíam algumas das atuais sociedades fi nanceiras, como as sociedades gestoras de patrimónios e de fundos de investimento mobiliários e imobiliários. Instituições auxiliares seriam apenas as bolsas, os corretores de fundos e de Câmbios e as casas de câmbios – cfr. enunciação em Athayde, 1990, vol I. Mais especifi camente sobre a atividade de intermediação fi nanceira em valores mobiliários (bolsas de valores, corretores, propostos, auxiliares e sociedades corretoras, e o “movimento Cadilhe”) e “nascimento” da CMVM no âmbito regulatório europeu, Catarino, 2010: 65 ss.

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regimento. Embora se encontrasse dependente das grandes linhas traçadas pelos citados Decretos-Lei nºs 41403 ou 45296, a nova legislação (e a posterior criação de um Auditor-Geral do Mercado de Títulos e a dinamização de um Conselho Nacional das Bolsas de Valores) visou dinamizar os mercados de bolsa, assegurar uma correta formação de preços através da transparência, incentivar à abertura do capital das sociedades nacionais (caracterizadas nos anos setenta ainda por uma grande concentração e domínio familiar e pouco tecnocrático), e abrir a profi ssão a sociedades corretoras.

As bolsas de valores mantinham a sua natureza de instituições auxiliares de crédito, pelo que os titulares dos seus órgãos sociais deveriam cumprir os requisitos e as exigências pessoais e profi ssionais constantes do normativo da década de sessenta supra referido. A sua constituição e extinção encontravam-se dependentes de autorização ministerial, mediante prévio parecer do Conselho Nacional das Bolsas de Valores, e a supervisão - “orientação, coordenação e fi scalização” - estava igualmente cometida ao Governo (artigo 4º).

O exercício da atividade de corretor (em nome individual ou através de sociedades corretoras) encontrava-se dependente de requerimento dirigido aos conselhos diretivos das bolsas e a nomeação ministerial (que poderia optar por procedimentos concursais). Os corretores respondiam ilimitadamente pelas dívidas decorrentes da sua atividade e deviam obrigatoriamente associar-se em câmaras corporativas – a Câmara dos Corretores22. A proibição

22 Tal atividade estava anteriormente reservada aos corretores e seus propostos (e auxiliares), mas passava a ser possível ao corretor associar-se a terceiros ou “interessar” a sociedade, que revestiria obrigatoriamente a forma de sociedades em nome coletivo ou em comandita simples, sendo sempre ilimitada a responsabilidade do corretor que era obrigatoriamente o gerente (no caso de serem autorizados “gerentes”, todos responderiam de forma solidária e ilimitada), artigo 92º. O corretor tinha de prestar caução e respondia ainda pelos atos dos seus propostos e dos seus auxiliares (artigo 98º ss) – para uma visão da regulação conexa, acedida em 04/08/2014, http://dre.tretas.org/dre/29119/. Acerca da natureza pública do ofício e dos mercados de valores mobiliários, e

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do exercício da atividade deixava de depender de requisitos arcaicos de fi tness and propriety como a falta de “robustez e a virilidade”, para ser aplicada a funcionários públicos e a todos

(…) b) Os que tiverem sido demitidos do cargo de corretor ou de proposto;

c) Os que tiverem faltado ao cumprimento de obrigações contraídas em negociações de bolsa;

d) Os indivíduos condenados defi nitivamente por furto, roubo, burla, abuso de confi ança, usura, emissão de cheques sem cobertura, falência ou insolvência fraudulentas, simulação, falsifi cação de escritos ou qualquer crime contra a segurança nacional;

e) Os que tiverem sido condenados pelo exe rcício ilegítimo do ofício de corretor ou de proposto de corretor(…)”, artigo 96º23.

No âmbito da refl exão nacional sobre o sistema fi nanceiro iniciado em meados dos anos 80 surgiriam reformas normativas parcelares e em 1991 e 1992 seria publicado em vários volumes o denominado “Livro Branco sobre o Sector Financeiro” tendo em vista uma reforma profunda que adaptasse o sistema nacional ao espaço da Comunidade e às orientações do Comité de Basileia24. O Decreto-lei nº 23/86, de 18 de fevereiro, começou por atualizar e adaptar o regime legal português de licenciamento de instituições de crédito nacionais e a abertura em Portugal de fi liais e de sucursais estrangeiras. Em parte tal deveu-se ao necessário cumprimento do acquis communautaire na matéria, vg aos requisitos mínimos constantes da Diretiva n.º 77/780/CEE, de 12 de dezembro de 1977, e ao denominado “passaporte

da sua evolução, para o âmbito nacional Teixeira dos Santos, 2001, documento electrónico. Conjugando tal evolução nacional com o movimento internacional e evolução no início do século XX, Catarino, 2010, Capítulo I e bibliografi a aí citada.

23 Elaborados pelo Conselho para o Sistema Financeiro, i. a. o Livro Branco sobre o Sistema Financeiro:1992. As Instituições de Crédito, 2 vols., Lisboa.

24 A Lei nº 46/77, de 8 de julho, viria a consagrar a proibição de acesso a alguns sectores importantes, tendo sido objeto de sucessiva revogações (parciais) até 2013.

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comunitário” (fi lho do princípio do reconhecimento mútuo), para cumprimento dos princípios da liberdade de circulação de capitais e de estabelecimento. A constituição das instituições nacionais dependia ainda de autorização ministerial, casuística, mas já não sob forma de decreto. A Portaria conjunta do Primeiro-Ministro e do Ministro das Finanças era precedida de parecer do Banco de Portugal (tratando-se de instituição com sede em Região Autónoma, também de parecer do respetivo Governo Regional).

No domínio das qualidades dos titulares de órgãos sociais os artigos 4º, nº1, al. c) e 10º do Decreto-lei nº 23/86 estatuíam, sob pena de recusa da autorização, (…) c) Que o conselho de administração da sociedade seja constituído por um mínimo de 5 membros, com idoneidade e experiência adequadas ao exercício de funções (…). Estatuía também que:

2 - São ainda inibidos de fazer parte dos órgãos de administração de bancos comerciais ou de investimento os que, por outras razões, devidamente fundamentadas pelo Banco de Portugal, nomeadamente por falta de experiência adequada ou por motivo de excessiva acumulação de funções, sejam por este consideradas como não satisfazendo os requisitos necessários para o efeito (na redação do Decreto-Lei 318/89, de 23 de setembro).

O Decreto-lei nº 24/86, de 18 de fevereiro, completava o regime de constituição e condições de funcionamento para os demais bancos comerciais ou de investimento, complementando os requisitos aplicáveis aos membros de órgãos sociais: (…) são inibidos de fazer parte de órgãos sociais de bancos comerciais ou de investimento:

a) os que tenham sido declarados, por sentença transitada em julgado, falidos ou insolventes ou julgados responsáveis por falência ou insolvência de empresa cujo domínio haja assegurado ou de que tenham sido administradores, directores ou gerentes;

b) Os que tenham desempenhado as funções referidas na alínea anterior em empresas cuja falência ou insolvência tenha sido prevenida, suspensa ou evitada por intervenção do Estado, concordata ou meio equivalente;

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c) As pessoas condenadas por crimes de falsifi cação, furto, roubo, frustração de créditos, extorsão, abuso de confi ança, infi delidade ou usura;

d) Aqueles a quem não tenha sido reconhecida idoneidade, nos termos do artigo 4º, nº2, al. b) do Decreto-lei nº 23/86.

2. São ainda inibidos de fazer parte dos órgãos de administração de bancos comerciais ou de investimento os que, por outras razões, devidamente fundamentadas pelo Banco de Portugal, nomeadamente por falta de experiência adequada ou por motivo de excessiva acumulação de funções, sejam por este consideradas como não satisfazendo os requisitos necessários para o efeito.

É importante salientar que tais diplomas surgem num momento de abertura do sistema fi nanceiro à iniciativa privada e o aumento das exigências nos requisitos de capacidade e honorabilidade pessoal foram em grande parte motivados pelo afastamento entre a banca e o sector público (empresarial). As revisões constitucionais operadas em 1982 e em 1989 permitiriam i. a. a privatização do sector bancário, fi nanceiro e segurador, acabando com o duplo vício estrutural do sistema económico de 1976: (i) irreversibilidade das nacionalizações e (ii) proibição da iniciativa privada em sectores chave da economia portuguesa. Findara o tempo do monopólio estatal constituído por via das nacionalizações (e a submissão das instituições de crédito ao regime tutelar do governo, vertido no Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de abril), e a proibição de constituição pelos particulares de instituições de crédito. A reprivatização total seria permitida após 1990, com a Lei nº 11/90, de 5 de abril a regular especifi camente as reprivatizações25. Em 31 de dezembro de 1992 os diplomas que regiam a atividade bancária desde o início do século XX seriam revogados pelo artigo 5º do Decreto-lei nº 298/92, de 31 de Dezembro, que aprovou o RGIC26. Fora precedido

25 Em rigor, tal diploma seria publicado apenas em meados de Janeiro de 1993, em Suplemento ao Diário da República do dia 31 de dezembro de 1992, por forma a cumprir exigências jurídicas, vg comunitárias.

26 Catarino, e Peixe, 2014 a). Conforme já referimos, Bill Clinton revogaria em 1999 esta lei que fora criada em 1933 para evitar novo colapso fi nanceiro

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de um vasto movimento regulatório fi nanceiro de revisão dos mercados de valores mobiliários com a publicação do Decreto-Lei n.º 142-A/91, de 14 de abril que aprovaria o Código dos Mercados de Valores Mobiliários (CodMVM, usualmente designado de “Lei Sapateiro”, do nome de um dos seus autores, José Luís Sapateiro).

Porquê este movimento? Porque não se poderia regressar ao panorama de 1957, em que era competência de “superintendência, coordenação e fi scalização das instituições de crédito (…) do Ministro das Finanças“ (artigo 13º do citadoDecreto-lei nº 41403). A época era de opting out da economia pelos governos ante a enorme pujança das teorias monetaristas; conforme escrevemos anteriormente, ”se o prémio Nobel da economia atribuído em meados de setenta a von Hayeck e posteriormente, ainda na mesma década, a Milton Friedman, poucas dúvidas deixava quanto à nova ortodoxia pós-Keynesiana, a revogação em 1999 por um democrata, Bill Clinton, do U.S. Banking Act de 1933 – conhecido por Glass Steagall Act, nome dos seus Autores -, seria a marca maior de tal movimento27. Tais doutrinas seriam preponderantes na Europa a partir da década de oitenta (vd as soluções aplicadas pelos “Chicago boys” no Chile, as correntes denominadas de “Reaganomics” ou “Thatcherismo”, ou o recente Tratado Orçamental), a par das correntes de privatização, desregulação e de liberalização da economia (“Consenso de Washington”). Após as soluções adotadas em Maastricht, e que dariam origem ao movimento de centralização

semelhante ao que ocorrera em 1929, moderando a cartelização e o excesso de liquidez, separando as instituições que poderiam desenvolver a banca dita de retalho ou comercial da dita banca de investimento. Apesar das duras lutas contra o sistema fi nanceiro e os bancos em especial, Franklin Roosevelt não só aprovaria em 1933 este Act mas entre 1932 e 1935 assinou igualmente leis reguladoras dos mercados bancário, dos valores mobiliários (Securities and Exchange Act) e um novo regulador (a Securities and Exchange Commission), a que se seguiriam outras independent regulatory agencies.

27 Catarino, 2010; 82 ss e 308 ss acerca da adaptação à Administração das noções judiciais de “independência” e de “imparcialidade”, objetiva, subjetiva e resolutória.

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europeia, à independência do sistema monetário, ao Eurosistema e à União Bancária, toma forma defi nitiva o movimento de minimal State e do denominado Estado Regulador ou de Garantia.

Integradas numa era de globalização e num mimetismo europeu das correntes anglo-americanas da regulação económica e fi nanceira, as funções de regulamentação, supervisão e sanção de áreas públicas fundamentais passaram da esfera ministerial para novas pessoas coletivas de direito público com autonomia administrativa e fi nanceira, como as agencies norte-americanas ou os QUANGOS ingleses, foram dotadas de características de imparcialidade e de independência – entre muitas outras autoridades administrativas independentes interessam-nos o reforço de independência do Banco de Portugal mas também da CMVM28.

Com efeito, o CodMVM de 1991 desempenhou um importante papel nesta matéria. Tendo vigorado antes da publicação do RGIC, regulou inovadora e profusamente o âmbito dos mercados e atividades bolsistas, e criou um duplo regime de “autorização-programa” e de registo para todos os intermediários fi nanceiros: no BdP e na CMVM (artigo 632º).

Com efeito, o exercício de atividades de intermediação fi nanceira por sociedades – necessariamente instituições de crédito ou sociedades fi nanceiras, pois cessara a possibilidade do exercício da função de corretor em nome individual (artigo 613º) -, passou a depender de prévia autorização ministerial constitutiva, sob a forma de “Portaria do Ministro das Finanças” (vd artigos 607º-18º, e 625º-28º daquele Código para o regime de caducidade e de revogação da autorização). Esta autorização era exigida para a constituição das sociedades mas também para o exercício de atividades de intermediação (artigo 615º). Findo o procedimento administrativo geral de constituição das sociedades comerciais (artigos 620º-28º), existia um posterior procedimento de registo junto do regulador (artigos 629º-32º).

28 Defendendo a natureza não sancionatória da revogação devida a atos ilícitos, Veloso, 2000; 66.

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Este “duplo regime de autorização-programa”, que se manteve até 1999, foi importante em dois sentidos.

Por um lado, a autorização de constituição das sociedades e o posterior registo para exercer atividades dependiam, inter alia, de os titulares dos órgãos sociais demonstrarem requisitos de idoneidade perante um novo regulador (CMVM). A sua falta acarretava a recusa de autorização ou de registo (artigos 618º, nº1, b), 619º, 631º, nº1), ou a sua revogação. Nalguns casos estávamos perante uma verdadeira “revogação-sanção” sem o due process of law, quando tinha como causa ilegalidades cometidas no exercício dos respetivos cargos (artigos 626º, nº1, e), e nº2, 627º e 631º)29.

Por outro lado, foi importante porque existia um novo poder de apreciação discricionária dos requisitos contidos numa norma aberta (vd artigo 619º CodMVM). Em rigor, tal efeito acabava mitigado porque excetuando um novo tipo legal de crime (crime de burla), os novos requisitos enquadravam e densifi cavam os contidos na legislação bancária de 1986, a saber:

i) incompatibilidades profi ssionais e patrimoniais (alínea b); ii) incapacidades decorrentes de lei especial (alínea c), e 618º,

nº1, b);iii) incapacidades decorrentes de falta de disponibilidade ou de

experiência (alínea c), e artigos 618º, nº1, b) e 224º, b)); iv) inibições decorrentes de decisões judiciais, ora transitadas em

julgado (alínea a), e artigo 224º, alínea a)), ora condenatórias (alínea a) e artigo 224º, alínea c)).

A revogação do Código pelo Decreto-Lei nº 486/99, de 13 de novembro, fez cessar este regime de “dupla autorização e duplo registo” e a matéria, atenta a sua natureza prudencial, passou a ser regulada pelo RGIC sendo primacialmente competência do Banco de Portugal. Primacialmente porque não existe exclusividade; o regime legal estatutário das key persons aplica-se

29 Defendendo a natureza não sancionatória da revogação devida a atos ilícitos, Veloso, 2000; 66.

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aos titulares dos órgãos de outras empresas, como das sociedades de consultoria para investimento, das sociedades gestoras de mercados regulamentados, de sistemas de negociação multilateral, de câmaras de compensação, de sistemas centralizados de valores mobiliários, de instituições de investimento coletivo, de gestão de fundos de garantia e de sistemas de indemnização dos investidores, de prestação de serviços de auditoria, além das empresas do sistema de crédito agrícola mútuo (infra).

O regime geral da adequação e idoneidade é em grande parte fruto da harmonização comunitária e do regime de autorização única para toda a Comunidade Europeia, vertendo nele os requisitos da já referida Diretiva 77/780/CEE, quanto à disponibilidade pessoal, à honorabilidade necessária e à experiência adequada para exercer funções nas instituições de crédito. Esta Diretiva seria posterior e profundamente alterada, sobretudo devido à necessidade de reforço e consolidação prudencial, de que é prototípica a “Directiva post-BCCI”, a Diretiva n.º 95/26/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de junho de 1995, mas os requisitos de adequação e idoneidade foram mantidos – cfr a Diretiva 2000/12/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de março de 2000, relativa ao acesso à atividade das instituições de crédito e ao seu exercício30.

30 A Diretiva 89/646/CEE do Conselho, de 15 de dezembro de 1989 (2ª Diretiva Bancária), aprofundaria o mercado de capitais da União acrescentando à liberdade de circulação a liberdade de estabelecimento e de prestação de serviços das instituições de crédito e o princípio da reciprocidade. O princípio do reconhecimento mútuo das autorizações-programa e da supervisão prudencial (que na década seguinte seria aplicado também nos mercados de valores mobiliários) traria consigo o princípio da competência de supervisão de uma instituição de crédito (ou das suas sucursais na União) pela autoridade reguladora do Estado-membro de origem, i.e., onde se situe a sede estatutária (home country control). Como sucederia com as supra referidas Diretivas 2006/48 e 2006/49, a Diretiva preocupou-se sobremaneira em verter os princípios acordados em 1988 em Basileia sobre fundos próprios, solvabilidade, limitação de grandes riscos e liquidez, e controlo interno (as posteriores Diretivas de 2006 completariam tais preocupações de solidez fi nanceira vertidas em Basileia II).

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A interpretação e aplicação do normativo contido no RGIC é feita em concatenação com estes normativos, pareceres, trabalhos preparatórios e outras fontes de soft law bancária internacional, dada alguma indeterminação normativa decorrente deste conceito vago de idoneidade. A Diretiva 2006/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2006, relativa à regulação do acesso à atividade bancária e fi nanceira manteve a indeterminação de conceitos ao estatuir no seu artigo 11º que a autorização profi ssional dependia de os dirigentes e sócios terem a experiência necessária ou “idoneidade” para as funções (cfr. artigo 135º). No seu artigo 22º estatuía igualmente que as instituições de crédito deveriam dispor de dispositivos sólidos em matéria de “governo da sociedade”, incluindo “uma estrutura organizativa clara, com linhas de responsabilidade bem defi nidas, transparentes e coerentes, processos efi cazes de identifi cação, gestão, controlo e comunicação dos riscos a que está ou possa vir a estar exposta, e mecanismos adequados de controlo interno, incluindo procedimentos administrativos e contabilísticos sólidos”. Decorria assim deste regime:

i) a existência de um sistema de vasos comunicantes de responsabilidade por facto de outrem inerente à imposição legal de forte controlo na organização interna (artigos 17º, nº2 e 115º-A ss);

ii) o dever empresarial de due diligence prévio à indicação ou nomeação de titulares de órgãos sociais - que s3mpre considerámos decorrer dos artigos 17º, nºs 1 e 2 e 69º-70º;

iii) a necessidade de consideração das modernas tendências e exigências de corporate governance, i.a. na matéria de aferição e monitorização da idoneidade, arts 70º;

iv) a distinção entre requisitos de idoneidade, e requisitos de disponibilidade, independência e experiência e qualifi cação profi ssional (embora todos eles assentem em conceitos abertos e indeterminados - cfr. artigos 30º-D, 31º, 31º-A e 33º).

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O Action Plan aprovado em Washington em 15 de novembro de 2008, pelo G20, um ano após o início do crash fi nanceiro do subprime, apontaria para medidas de maior transparência e de controlo de risco interno e de melhores práticas de governação31. Este Plano seria reforçado na reunião que se realizaria em Londres no ano seguinte, em que um renascido Finantial Stability Board ou Comité de Estabilidade Financeira (ex-Finantial Stability Forum) foi mandatado para trabalhar com o Grupo Banco Mundial (e cooperar com a IOSCO, OCDE, Comité de Basileia de Supervisão Bancária ou CBSB - vd as fortes expressões utilizadas na declaração de 2 de maio de 200932).

As normas prudenciais criadas pelo CBSB em 2010 para reforço de fundos próprios, denominado “Basileia III”, e a Diretiva que o adotou para a União Europeia (Directiva 2013/36/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2014 - CRD IV33) apontam agora de forma clara, como requisitos mínimos da autorização (artigos 8º e 11º), para uma idoneidade

31 “Declaration Summit on Financial Markets and the World Economy” https://www.g20.org/about_g20/past_summits/2008_washington (consultado em 5.4.2016).

32 “(…) we agree that the heads and senior leadership of the international fi nancial institutions should be appointed through an open, transparent, and merit-based selection process; and building on the current reviews of the IMF and World Bank we asked the Chairman, working with the G20 Finance Ministers, to consult widely in an inclusive process and report back to the next meeting with proposals for further reforms to improve the responsiveness and adaptability of the IFIs (…)” - https://www.g20.org/about_g20/past_summits (consultado em 5.4.2016)..

33 A Diretiva 2013/36/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de junho de 2013, relativa ao acesso à atividade das instituições de crédito e à supervisão prudencial das instituições de crédito e empresas de investimento, altera a Diretiva 2002/87/CE e revoga as Diretivas 2006/48/CE e 2006/49/CE. Completada pelo Regulamento (UE) nº 575/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho da mesma data relativo aos requisitos prudenciais para as instituições de crédito e para as empresas de investimento (e altera o Regulamento 648/2012), encontra-se disponível in http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2013:176:0001:0337:PT:PDF (consultado em 5.4.2016).

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individual e uma adequação coletiva: “O órgão de administração deve dispor, em termos coletivos, de conhecimentos, competências e experiência adequados para compreender as atividades da instituição, nomeadamente os principais riscos”, artigo 91º, nº8. Reafi rma a necessidade de independência, de disponibilidade, de experiência e de conhecimentos individuais (cumulativos com requisitos de honestidade e de integridade) também para titulares da “direção de topo”34. Os titulares de altos cargos dirigentes devem “ter idoneidade necessária e possuir conhecimentos, competências e experiência sufi cientes para as funções”, artigos 13º e 91º, nº1. A Diretiva englobou a necessidade de uma governance robusta dadas as implicações no tema: a governance e a estrutura interna das instituições de crédito devem ter instrumentos sólidos que permitam a todo o tempo a auto-averiguação, a monitorização, a responsabilização e o controlo internos da existência das condições legais (artigos 88º, 91, nº8).

Também a Diretiva 2014/65/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, embora relativa aos mercados de instrumentos fi nanceiros (denominada de MiFID II ou DMIF II35), reforçou os deveres e requisitos que impendem sobre os titulares dos órgãos de administração de empresas de investimento e gestoras de plataformas de negociação (sujeitas à supervisão da CMVM). A Diretiva pugna por uma gestão efi caz, sã e prudente, e por uma avaliação prévia e contínua feita pela empresa aos requisitos necessários à autorização-programa vg quanto à qualidade patrimonial e pessoal dos titulares de órgãos sociais à luz das disposições da Diretiva 2013/36 (CRD IV). Num aparente

34 São “as pessoas singulares que exercem funções executivas numa instituição e que são responsáveis perante o órgão de administração pela gestão corrente da instituição”, artigo 3º, nº1, 9. da Diretiva 2013/36).

35 Diretiva 2014/65/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de maio de 2014, relativa aos mercados de instrumentos fi nanceiros e que altera a Diretiva 2002/92/CE e a Diretiva 2011/61/EU disponível in http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2013:176:0338:0436:PT:PDF (consultado em 5.4.2016).

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retorno a um sistema de “duplo controlo”, prevê-se expressamente a recusa de autorização caso a empresa ou a autoridade “ (…) não esteja convicta de que os membros do órgão de administração da empresa de investimento têm sufi ciente idoneidade, possuem sufi cientes conhecimentos, competência e experiência (…)”, convicção resultante da informação que as empresas são obrigadas a obter, controlar e comunicar (cfr. artigos 8º, 9º, nºs 1 a 4, 45º ou 62º-63º, da DMIF/MiFID II36).

A alteração do RGIC decorrente da transposição da CRD IV (Decreto-Lei nº 157/2014, de 24 de outubro), é explícita na exigência de um controlo apriorístico da idoneidade (requisito da “adequação”) mas também na monitorização contínua que permita detetar factos que afetem ou possam afetar os requisitos de idoneidade previamente verifi cados (infra). Embora não constitua o objeto do presente artigo, refi ra-se que estes requisitos passam a aplicar-se também aos “titulares de funções essenciais” (artigo 33º-A) e de “direção de topo” (artigo 3º, nº1/7 da CRD IV). O que se deve entender por tal? A alteração do Regime Geral ocorrida em outubro de 2014 veio especifi car que por tal se deve entender ”as pessoas singulares que exercem funções executivas numa instituição de crédito ou empresa de investimento e que são diretamente responsáveis perante o conselho de administração pela gestão corrente da mesma” (artigo 2º-A, alínea j) – inter alia, de compliance, de auditoria interna, de controlo e de gestão de riscos (artigo 33º-A, RGIC).

36 Para uma visão mais aprofundada do regime constante da denominada MiFID II e do Regulamento (UE) n.º 600/2014 Thomas GINSBURG, “The Regulation of Regulation: Judicialization, Convergence and Divergence in Administrative Law”, in HOPT et al., 2005, 328do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, relativo aos mercados de instrumentos fi nanceiros (denominado MIFIR) e que altera o Regulamento (UE) nº 648/2012 (denominado de EMIR, http://www.cmvm.pt/pt/Legislacao/DirectivasComunitarias/Todasasdirectivas/Pages/Todas-as-Directivas.aspx?pg (consultado em 5.4.2016) – Catarino e Manuela Peixe, II, 2014.

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Com igual relevância para o tema são as alterações decorrentes da transposição das Diretivas 2014/49/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril relativa aos sistemas de garantia de depósito e da Diretiva 2014/59/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2015 que estabelece um enquadramento para o regime jurídico da recuperação e resolução de instituições de crédito e de empresas de investimento (BRRD). A Lei nº 23-A/2015, de 26 de março alterou (também) o RGIC em aspetos importantes do enquadramento legal do controlo a posteriori do exercício de atividade profi ssional por titulares de órgãos sociais e de cargos de direção de topo ou de funções essenciais (“funções que confi ram infl uência signifi cativa na gestão da instituição de crédito”, artigo 33º-A RGIC).

É importante salientar que os citados instrumentos legais, comunitários e nacionais, devem ser lidos em conjunção com as Recomendações e Orientações que contêm as melhores práticas determinadas por organismos internacionais que regulam o sector fi nanceiro.

A International Organization of Securities Commissions (IOSCO) criou um conjunto mínimo de requisitos (os membros poderão exigir requisitos para além dos standards mínimos criados), que constam de um teste (Fit and Proper Assessment – Best practice) baseado no Relatório de dezembro de 200937. Também a Autoridade Bancária Europeia (EBA) desenvolveu estas exigências regulatórias, ao abrigo das competências vertidas nos artigo 16º do seu Estatuto, aprovado pelo Regulamento EU nº 1093/2010, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de

37 As Recomendações (ou melhores práticas) basearam-se no Report on Consultation and Exchange of Information under Fit and Proper Assessments preparado pelo Emerging Markets Committee da International Organization of Securities Commissions (IOSCO), na sequência do mandato do Working Group on Enforcement and the Exchange of Information (WG4), e pode ser lido em http://www.iosco.org/library/pubdocs/pdf/IOSCOPD312.pdf (consultado em 5.4.2016).

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novembro de 2010, e no artigo 91º da Diretiva 2013/36/EU38. A criação de um level playing fi eld permite alguma fl exibilidade dos Estados-membros dentro de um princípio de proporcionalidade, mas a par dos instrumentos legislativos comunitários secundários temos orientações genéricas que os reguladores nacionais da União devem seguir numa base coercitiva-sancionatória (“comply or explain”), como as “Orientações sobre a avaliação da aptidão dos membros do órgão de administração e fi scalização e de quem desempenha funções essenciais” (EBA/GL/2012/06, de 22nov2013, adotadas após um Consultation Paper de 18 de abril a 18 de julho de 2012 e audição pública).

Finalmente, permite-se também a densifi cação pelos reguladores nacionais ou outras autoridades nacionais competentes dos conceitos de idoneidade sendo que as próprias empresas devem ter normas internas que conduzam e balizem a sua avaliação prévia de fi tness and propriety dos seus titulares ou nomeados (cfr. artigo 30º, nºs 6 e 8 RGIC).

A Certeza e Segurança dos operadores, impõe alguma cautela e controlo na densifi cação regulamentar destes conceitos pois em matéria tão sensível de direitos, liberdades e garantias e direitos análogos não se pode assistir a uma deslegalização ou a uma regulamentação administrativa praeter legem do âmbito material (“leis administrativas”) que viole o princípio da legalidade e o bloco de constitucionalidade protegido pela “restrição das restrições” do artigo 18º da Constituição (infra).

III. O ato administrativo de autorização: um (velho) meio de controlo regulatório perante angústias constitucionais.

O controlo do exercício da atividade profi ssional em órgãos sociais de instituições de crédito, sociedades fi nanceiras e empresas

38 Cfr, Regulamentos EU nºs 1093/2010 e 1095/2010 do Parlamento Europeu e do Conselho, ambos de 24 de novembro de 2010, a as orientações EBA/GL/2012/06, de 22nov2013. Acerca da mudança de arquitetura institucional e interregulação administrativa até e após os Relatórios Lamfalussy e de Larosière, CATARINO, 2010: 405 ss. Idem, 2012, a):150 ss; MAÇÃS, 1998: 185.

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de investimento foi objeto de harmonização Comunitária mediante criação de um regime de autorização administrativa prévia.

Ao contrário do que sucede numa licença ou concessão, não estamos aqui perante uma proibição absoluta ou uma reserva de atividade pública; estamos perante o levantamento da proibição relativa ao exercício de um direito ou de atividades. Um ato que ponderaa necessidade de proteção do interesse público face ao exercício de direitos privados. Estaponderação pela autoridade competente depende da obtenção de informação pelo que foi criado um regime de cooperação administrativa e de comunicação inter-regulatória, vg entre a administração nacional e comunitária (cfr. atuais artigos 14º a 33º-A e 65º a 72º do RGIC).

As implicações constitucionais do exercício da autorização administrativa como técnica regulatória (tal como os atos de aprovação, de notifi cação prévia, de mera comunicação, de decisão cautelar, e sancionatórios) são importantes.

As autorizações são “actos administrativos permissivos do exercício por outrem de um direito, ou constitutivos de direitos subjectivos, ou criadores de um status”39. Atos típicos do Estado (e Administração) de Polícia, eles exercem “uma função preventiva típica, porque a atividade prosseguida pelo particular está potencialmente em rota de colisão com um interesse público ou porque oferece perigo ou um risco (…)40. No âmbito

39 Catarino, 2010:387. Vd a completa classifi cação de Giannini, 1978: 103-119. 40 Idem, ibidem, pp. 404 ss. A aprovação é um ato administrativo autónomo que

exprime um juízo de conformidade relativamente à legalidade de um ato jurídico praticado por outrem (ente público ou particular), dando-lhe usualmente efi cácia. Nesta classifi cação de atos de intervenção prévia da autoridade administrativa como condição de exercício de direitos, Vieira de Andrade distingue entre atos de autorização permissivos (autorização), atos de autorização constitutivos (licenças), e comunicações prévias dos atos de exercício de direitos (como no caso das manifestações populares) – cfr. 2001a, 343, em sentido diverso da doutrina de base germânica, Sérvulo Correia, 1982: 461. Para outras classifi cações, Marcello Caetano, 1980, I: 453-57; Rogério Soares, 1981: 179-83; Esteves de Oliveira, 1984: 397; Fracchia, 1996: 73; Fernanda Maçãs, 1998: 187; e García de Enterría e Ramon Fernandez, 2000, II: 135-7.

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da Administração de controlo sectorial, os procedimentos administrativos de autorização são relevantes pelo seu fi m de protecção e de prossecução de bens e interesses públicos mas também pelos efeitos sobre os direitos e interesses dos particulares. Na prática destes atos e perante os interesses em confronto impõe-se uma atividade que “administra a norma” ou lhe dá efi cácia, transformando o acesso livre ao mercado, a livre iniciativa” e organização empresarial (na vertente da organização interna, de gestão e de exercício de atividade pelas empresas, artigo 61º CRP), a liberdade de profi ssão enquanto componente do direito ao trabalho (artigo 47º e 58º CRP), e a empresariariedade (também na vertente dos direitos dos acionistas, artigo 15º da Carta dos Direitos Fundamentais da EU) num acesso de algum modo condicionado/regulado para proteção de bens da comunidade”.

A proibição (relativa) de atividade deve ser criteriosamente ponderada perante valores constitucionais pois nos encontramos perante a pretensão de exercício de outros direitos ou liberdades fundamentais o direito ao desenvolvimento da personalidade, à liberdade económica, à liberdade de iniciativa, à liberdade de empresa e de profi ssão, à liberdade de contratação (i.a. laboral), o princípio de reconhecimento e de integração nacional da economia na União, o tratamento igualitário e não discriminatório face às liberdades económicas fundamentais. E tais valores têm assento na generalidade das constituições económicas nacionais e na comunitária (artigos 61º, 47º, 80º, c), 86º, nºs 1 e 2 CRP, 14º CEDH, artigos 1º, 2º parágrafo, e 19º., 4º parágrafo, da Carta Social Europeia de 18Out1961, 26º e 45º ss do TFUE, 5º e 6º TUE, e 15º, 16º, 45º e 52º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia).

Existem também direitos de personalidade a salvaguardar: o direito ao bom nome, à reputação e imagem que podem ser indelével e defi nitivamente afetados conforme publicidade da suspensão e revogação administrativa de autorizações de profi ssão (artigos 26º, nº1 e 32º, nº2 CRP).

É certo que os direitos dos particulares devem ser “funcionalizados” pelo interesse coletivo, seja do funcionamento

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efi ciente dos mercados (artigo 81º, f) CRP) ou da defesa dos consumidores/investidores (artigo 81º, i) CRP). Mas a “densifi cação” legislativa deve ser conforme à constituição material e as limitações ou restrições a tais direitos e liberdades fundamentais não se podem traduzir na “nulifi cação” do seu núcleo essencial. A prática de atos administrativos que traduzem a atividade de supervisão prévia e contínua, pela sua natureza proibitiva, restritiva ou ablativa do exercício de tais direitos e liberdades ou de situações jurídicas e relações privadas, obedece a princípios de concordância prática, de necessidade e de proporcionalidade que devem ser concretamente alegados e fundamentados para que não anulem o âmbito da vinculatividade constitucional (artigo 18º da CRP). Ainda, e porque o sistema administrativo de autorização traduz uma forte compressão de direitos e liberdades eventualmente acompanhada de uma atividade intrusiva de verifi cação inspetiva (vg para obtenção de informação), a Administração deve fazer uma leitura e aplicação restritiva das restrições seguindo o princípio in dubbio pro libertate.

A par de uma necessária ponderação de restrições constitucionalmente fundadas e necessariamente adequadas de direitos e liberdades fundamentais por bens com relevância constitucional como a integridade do sistema fi nanceiro (artigos 18º, nº2 e101º CRP), o procedimento autorizatório traduz uma relação entre interesses públicos e privados que é duradoura. Constitui-se uma relação contínua que se traduz:

(i) Na constituição de uma relação jurídica administrativa de verifi cação de requisitos legais, como a capacidade profi ssional e a idoneidade pessoal - adequação;

(ii) Na posterior constituição de especiais relações jurídicas regulatórias entre o interessado e a Administração que permite a esta ulterior conformação de condutas individuais e profi ssionais do interessado- manutenção da adequação; e

(iii) Na capacidade de este assumir especiais obrigações jurídicas de cumprimento contínuo dos requisitos e de informação ao regulador ou de sujeição à “devassa” da sua privacidade em casos de inspeção ou investigação – aferição da adequação.

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“Neste sentido se pode afi rmar que o procedimento de autorização é constitutivo nominado, e um adequado meio de controlo perante atividades que, em princípio, se encontram condicionadas e cuja disponibilidade depende de um ato (público) que prossiga o interesse público41”.

1. A autorização é um meio de controlo prévio e contínuo. O ato de autorização é um importante instrumento de exequibilidade do princípio da precaução perante atividades de risco42: risco para o interesse próprio (risco individual) e para o interesse coletivo (risco sistémico). Para além de um efeito do controlo imediato da verifi cação de condições legais, a autorização administrativa tem um efeito diferido no tempo: permite levantar uma proibição relativa a uma atividade e ao exercício de um direito preexistente.Pode ter igualmente como efeito constituir uma relação jurídica regulatória que previna e controle no tempo o exercício de atividades perigosas, suscetíveis de gerar graves externalidades negativas para um conjunto indeterminado de usuários.

O legislador estatuiu fortes condições e poderes legais de verifi cação ou controlo público pelo regulador logo na fase inicial de atividade, sendo um importante momento de supervisão. Porquê?

Porque se é verdade que no momento “de entrada” num sector ou atividade o regulado detém mais informação que o regulador, é igualmente verdade que este detém uma grande discricionariedade de ação (na fase instrutória pode pedir informações e até realizar entrevistas ou audiências com o interessado) e de decisão (pode recusar a autorização ou impor condições).

A autorização prévia contém importantes externalidades positivas para a generalidade do público (para o usuário, o sector bancário e fi nanceiro). Porque não tem de suportar qualquer custo como contrapartida (os cidadãos retiram destes atos vantagens

41 Assim, Rogério Soares, 1978.42 Loureiro, 2001: 790.

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sem quaisquer custos), e porque tais atos têm um impacto e um custo que incide sobre um número reduzido de destinatários (os regulados), que têm maior poder económico e meios de infl uência e de defesa (vg no contencioso administrativo de legalidade).

Enquanto ato típico da administração de polícia, a autorização assume hoje efeitos mais complexos. Com efeito,

- a perfeição do ato de autorização (ou de proibição) necessita uma série de atos jurídicos e materiais intercalares ou interlocutórios da iniciativa dos particulares e da Administração (e mesmo de outras entidades públicas nacionais e/ou supranacionais);

- o ato prolonga os seus efeitos no tempo através de um feixe de poderes de controlo e vigilância (pedidos de informação ou esclarecimento, de documentos legais e complementares ao autorizado);

- o ato implica com interesses de terceiros pois é muitas vezes acompanhado de uma atividade administrativa de avaliação coletiva (por exemplo a adequação plural ou de todo o órgão social) ou de obtenção de informação “in situ” (exercício do poder de inspeção ou de chamamento ao regulador); e

- pressupõe uma Administração de cooperação, dada a relação regulatória constituída, e não de ataque ou autoritária”43.

As características complexas do procedimento e do ato decorrem da função de controlo de requisitos legais para o exercício da atividade - função típica da simples autorização que tem por objeto a prática de um ato ou de uma operação44 -, mas também da função de conformação de condutas45. Esta última função, dita operativa,

43 Acerca da simplifi cação administração e da substituição dos controlos prévios por controlos a posteriori ou meras comunicações de início de atividade, e o defi cit de supervisão daí decorrente (porque a autorização é o primeiro momento da supervisão), Catarino, 2010: 287 e 382 ss.

44 As denominadas autorizações por operação na classifi cação de Garcia de Enterría, 2000, I: 138 ss,

45 É Giannini quem distingue dentro da classifi cação ampla de procedimenti autorizzatori, os que têm funzione di controllo e os que têm funzione di programmazione, pp.136. Para uma visão completa sobre o procedimento autorizatório e a “reinvenção da autorização administrativa”, José Figueiredo Dias, 2014.

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é produto da evolução da função administrativa de polícia e é mais óbvia nas autorizações para funcionamento ou para atividades como as que têm por objeto o exercício da atividade bancária. Para a prática pela Administração destes “atos-programa” a lei exige prototipicamente uma programação pelos interessados que vai ser acompanhada no tempo pelo regulador. É exemplo o pedido de autorização de constituição e de funcionamento de instituições de crédito ao Banco de Portugal: na instrução deve o requerente apresentar, entre outros requisitos, «o programa, atividades, implantação geográfi ca, estrutura orgânica, meios humanos e técnicos (…)» da instituição, a par de muitos outros requisitos como a “identifi cação dos membros dos órgãos de administração e fi scalização com justifi cação dos proponentes quanto à adequação dos mesmos (…)” (artigos 14º, 16.º e 17.º, n.º 1, al. a) e g) RGIC).

Esta função operativa ou de conformação de condutas tornou o ato de autorização mais complexo. No caso da nomeação de novos titulares do órgão social numa instituição fi nanceira, na sua renovação ou alteração da composição do órgão (artigo 30º-B, nºs 2 e 7), a função controlo faria com que esta autorização simples esgotasse o seu efeito após a sua prática. Mas a duração prolongada, defi nida ou indefi nida, do exercício do cargo, constitui uma relação administrativa regulatória necessária que vai para além da mera permissão de exercício de um direito.

O ato administrativo de aferição da adequação e da idoneidade pessoal para o exercício de um cargo social tem por isso uma efi cácia duradoura que não esgota os seus efeitos no momento da sua prática. A sua execução postula uma constante exigência de manutenção dos requisitos iniciais e tal implica a possibilidade de o regulador conformar e determinar a conduta cujo exercício foi autorizado, vg através de ordens ou instruções (artigos 17º, nº2, c), 22º, nºs1, alíneas c), h), j) e nº 2, 30º-A, nºs 4, 6 e 9, 32º e 32º-A). A par dos atos secundários de anulação da autorização perante vícios invalidantes o RGIC prevê por isso a possibilidade de suspensão e de revogação destes atos favoráveis (artigos 14º, 22º, nº1, alínea j) e 2, 30º-C, 32º, 32º-A e 70º, nº 4, c) - infra).

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Existem outros atos administrativos necessários relativos aos membros do órgão de administração, i) quando a instituição nacional pretenda exercer atividades na União Europeia ou em países terceiros através de sucursais ou de fi liais (artigos 36º, nº2, 42º-42º-A), ou ii) quando uma empresa sedeada fora da União pretenda estabelecer sucursal em Portugal (artigos 44º, 45º e 57º ss). Neste sentido se pode dizer que as autorizações são multilaterais porque produzem efeitos para além das pessoas interessados e da instituição (e do sector económico-fi nanceiro nacional em que operam).

Nos casos de recondução dos titulares e de estabelecimento (ou reforço em Portugal de sucursal de empresa com sede efetiva no território de um Estado-membro da União) “parece” bastar uma mera comunicação e deferimento tácito (artigos 69º, nº4 e 36º, nºs 2 e 3, 40º). Na prática, não existe a possibilidade de produção deste efeito de deferimento tácito (nº 8 do artigo 30º-B): após a mera comunicação ao Banco de Portugal (nº 7 do artigo 30º-B) exige-se o registo comercial prévio ao registo no Banco de Portugal sendo certo que nenhum conservador procederá a este registo sem um comprovativo escrito de autorização.

Os atos de autorização podem igualmente ser praticados sob condição suspensiva ou reserva de revogação se o regulador necessitar obter esclarecimentos do visado, por exemplo através de uma entrevista pessoal (artigo 149º do Código do Procedimento Administrativo – CPA - e artigo 30º-B, nº 6).

Este ato de autorização é um ato de controlo nominado, pessoal (o controlo incide sobre as qualidades concretas da pessoa física, constituindo-se uma relação não fungível), com obrigações propter homine (embora o controlo singular da pessoa possa vir depois a ser preterido pelo controlo plural ou em favor da “adequação coletiva” - infra). É um ato duradouro (porque se mantém durante o exercício da profi ssão autorizada e pressupõe a manutenção das condições e requisitos iniciais na pendência da relação regulatória), e com um conteúdo discricionário forte (a par das condições constantes de conceitos indeterminados, pressupõe-se a atualização e a adequação

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dos interessados a comandos legais). São estas características (e não a constituição de qualquer relação jurídica de supremacia) que permitem a aplicação pelo regulador de atos administrativos de segundo grau como a suspensão, a revogação, o “cancelamento” ou a anulação e sanções administrativas de revogação, suspensão ou proibição da atividade46.

2. Controlo jurídico prévio e controlo a posteriori :

importância da distinção. Entre o dever de precaução e o dever de prevenção. Na pendência da relação jurídica constituída assistimos a um acompanhamento administrativo de vigilância e controlo (“supervisão contínua”), assente num feixe de direitos e obrigações recíprocos que ultrapassam o juízo de prognose inicial de idoneidade “como garantia de uma gestão sã e prudente”. As alterações ao RGIC ocorridas em 24 de outubro de 2014 relativas à matéria das capacidades e incapacidades (na “adequação” e na idoneidade, artigos 30º a 33º-A) assumiram de forma mais nítida a distinção entre a supervisão a priori” (autorização ou recusa do exercício de uma atividade), a supervisão contínua (suspensão, substituição ou revogação da autorização) e a atividade reativa (as medidas de polícia administrativa, as medidas provisórias ou cautelares preventivas ou conservatórias e as medidas sancionatórias).

Porque a dinâmica da vida económica tornou um poder de autorização num poder programador de atividades e conformador de condutas – numa espécie de regresso ao Estado de Polícia total ou sem lacunas -, o aplicador do Direito deve compreender que também a sistemática da atividade de supervisão conjuga momentos estáticos iniciais (caso dos atos prévios ao exercício de uma atividade ou de uma operação), e momentos dinâmicos

46 Para uma visão administrativa das técnicas de intervenção, intromissão e controlo sobre atividades privadas no mercado fi nanceiro como as supervisões, inspeções, investigação ou processos sancionatórios, suas características e distinção, Catarino, 2010: 463 ss.

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posteriores decorrentes do controlo ou supervisão contínua (i.a. artigos 32º-32ºA, e aprovação de renovação de mandatos, de suspensão ou de revogação administrativa dos mesmos).

Assim também a intensidade dos atos administrativos de supervisão varia consoante o momento do exercício: quando estamos a preencher e aplicar requisitos “de entrada” de uma instituição ou de uma pessoa singular numa atividade regulada, ou quando estamos a aferir dos requisitos no âmbito de uma relação jurídica regulatória já constituída (cfr. artigo 30º-D, nº 9).

A. Controlo prévio: a supervisão e o princípio da precaução. O Estado de Direito Democrático tem de gerir riscos e assegurar expectativas, presentes e futuras, dos cidadãos e dos sistemas. Por isso foram criadas “barreiras regulatórias”. Os atos de controlo a priori traduzem um primeiro e importante momento de precaução na salvaguarda de bens fundamentais face à incerteza de atividades potencialmente produtoras de danos. Na supervisão inicial formula-se um juízo que leva à aplicação de medidas antecipatórias - tipicamente os atos administrativos de autorização (ou recusa) em análise têm esta função de garantia. Sendo real o gap entre a informação detida pelo supervisionado e a informação detida pelo regulador, é natural que a intensidade do controlo público inicial seja superior (artigos 30º e 30º-D). Aliás, se os supervisionados não antevissem a possibilidade de prosseguir atividades ilícitas ou não autorizadas, o risco na autorização ou licenciamento (e supervisão prévia) seria tão diminuto que o procedimento poderia ser muito simplifi cado. Esta assimetria de informação e o princípio da precaução levaram o legislador a obrigar a uma forte cooperação e coordenação entre as empresas reguladas e o regulador, e deste com outros reguladores sectoriais e internacionais, com uma intensa atividade de comunicação e obtenção de informação inicial (vd artigo 17º, nº6).

O ato administrativo de recusa de autorização é um ato de controlo pela verifi cação de incumprimento dos requisitos legais, e de garantia porque se baseia na antecipação do risco e não numa mera prevenção de risco.

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Deve por isso basear-se em elementos objetivos (factos e indícios fortes e presunções fundamentadas) que fundam a incapacidade, a plausibilidade do risco (ultrapassando o “risco permitido”) ou a probabilidade de dano futuro a bens essenciais e coletivos. Não se pode basear numa mera incerteza dado existir um risco permitido, pois nesse caso deve vigorar o princípio in dubbio pro libertate. Como em todos os atos administrativos mas sobremaneira nos atos típicos de polícia, assume um especial relevo garantístico o princípio da proporcionalidade entre o bem jurídico a proteger e os direitos fundamentais a limitar, pois a necessidade de uma medida concreta e a sua adequação face ao custo de um provável e futuro dano, ou à necessidade de medidas de intervenção, deve sempre redundar na adoção da medida menos lesiva do direito do administrado.

B. Controlo a posteriori: a supervisão e o princípio da prevenção. Diversamente, os atos de controlo reativo e de controlo a posteriori decorrem do exercício efetivo e continuado de poderes funcionais de conformação, de vigilância e de fi scalização, e podem ter uma função preventiva ou conservatória. Na relação jurídica regulatória, o regulador detém fortes poderes-deveres de intervenção sobre o regulado e a sua atividade: i) de direção e conformação de condutas; ii) de controlo e vigilância, estática (receção de informação, ou supervisão “on desk”) ou dinâmica (de inspeção e investigação, ou “on site”); iii) de colaboração necessária na prestação de todos os esclarecimentos ou para obtenção de informação necessária.

A informação obtida através de poderes formais e informais que a lei e a praxis atribuíram ao regulador é funcionalizada: são poderes ao serviço das atribuições de defesa do mercado, das instituições e dos cidadãos e devem determinar sempre que necessário, e perante a plausibilidade de riscos graves ou a certeza de um perigo, a atempada prática de atos de Polícia administrativa, de medidas temporárias ou cautelares para prevenir ou descontinuar condutas lesivas do mercado e dos seus agentes. A ultima ratio será a prática

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de atos administrativos secundários de suspensão ou revogação de autorização. E quanto mais fortes e intrusivos são os poderes públicos, maior é a possibilidade de obtenção de informação e perante os documentos detidos e disponíveis maior é o dever de agir preventivamente.

A ação não exige uma certeza absoluta - que usualmente só advém da concretização do perigo - mas uma probabilidade forte e objetivamente fundada de um grave risco ou de um perigo, real e atual e danoso: a obrigação de o evitar é tão certa e real como o perigo de lesão pelo que o regulador deve atuar preventivamente cerceando o nexo causal. Como veremos, existem há muito medidas administrativas de polícia para atuação extraordinária e interrupção do nexo causal, afastando assim a responsabilidade pela omissão ou errado exercício de competências.

No caso concreto da idoneidade (ou adequação), a natureza da relação jurídica em causa, o feixe de deveres que se constituem nesta relação contínua, e a diferença entre o risco e o perigo sempre impediram uma interpretação jurídica que tornasse os requisitos de verifi cação prévia da idoneidade (na redação do artigo 30º do RGIC que vigorou até outubro de 2014) referência absoluta e exclusiva na supervisão a posteriori – e menos ainda que fossem critérios únicos para perda da idoneidade (cfr. artigos 32º, 70º, 118º, 143º). Os requisitos de idoneidade vertidos no atual artigo 30º-Dº tornam mais clara a dinâmica da regulação e da interpretação jurídica. É certo que o autorizado tem o dever de manter os requisitos que levaram à outorga da autorização; mas tem também o dever de se manter em constante conformidade com as ordens e os requisitos da regulação que vigoram no sector. Pela outra parte, o regulador tem o dever de vigilância e controlo da manutenção dos requisitos iniciais para exercício da atividade mas também do cumprimento das demais condições legais e determinações jurídicas que acompanham no tempo o exercício da atividade.

Em suma, a falta superveniente de idoneidade não depende exclusivamente da perda dos requisitos legais iniciais, nem a violação das condições legais iniciais são exclusivas e necessárias

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para a fundamentação de um ato administrativo de suspensão ou revogação da autorização (ou de adoção de outra medida provisória considerada proporcional e adequada – infra). Mesmo um caso de verifi cação superveniente de um facto que poderia obstar à autorização inicial - uma decisão judicial condenatória, por factos ilícitos de natureza criminal, contraordenacional ou outra – não pode traduzir numa declaração automática de inidoneidade exigindo-se uma fundamentação baseada na ponderação da gravidade ou reiteração dessa violação (cfr. o nº6 do artigo 30º-D).

Se no ato inicial temos sobremaneira a necessidade de obviar a um risco através de juízos de presunção e de prognose fundamentais à formulação de uma medida de precaução, nas medidas a posteriori temos a mais das vezes uma convicção de perigo, uma presunção de que um dano ocorrerá se não houver a tomada de uma medida preventiva que interrompa o devir ou processo causal entre um facto e um dano. E a não intervenção, na supervisão a posteriori, perante uma forte probabilidade de produção de um dano que ultrapassa o prejuízo geral e normal da vida em sociedade ou numa atividade (especialidade e anormalidade do dano47), pode tornar o não exercício de competências públicas em causa (e não mera condição) de dano. E ao Estado incumbe então o ónus da prova excludente da responsabilidade civil extracontratual48.

IV. Atos administrativo-regulatórios negativos e medidas de

urgência.

A autorização do Banco de Portugal (artigos 20º, nº1, alínea h), 30º-B e C, 66º, alínea h), 69º) é um ato administrativo primário, constitutivo, que visa remover um limite legal ao exercício de uma profi ssão e investir uma pessoa num estatuto especial. Usualmente

47 Cfr. o artigo 2º da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprovou o regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas.

48 Acerca da responsabilidade dos reguladores, Catarino, 2014:171-238.

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o procedimento de autorização fi nda com um ato positivo de autorização e um ato meramente declarativo de posterior registo no BdP (após o registo comercial), embora tal ato positivo possa ser sujeito a uma condição suspensiva, vg necessária ao cumprimento de uma determinação (artigos 19º e 69º RGIC e 149º do CPA).

Contribui para evitar um desfecho negativo (indeferimento do pedido) a relação de proximidade, de cooperação e de lealdade entre os reguladores e os regulados (responsive regulation). Em caso de dúvidas, fundadas, será usual o regulador requerer mais informação ou determinar a não indicação da pessoa em causa ou a sua substituição, a mais das vezes informalmente e “a instâncias” dos interessados (artigo 125º e 131º CPA). Claro que neste último caso de atuação através de um direito “conformador de condutas” informal e desprocedimentalizado, as garantias dos interessados vêem-se diminuídas face aos remédios à sua disposição (garantias) se se traduzir, p.e., num ato administrativo de indeferimento. No entanto, tem a vantagem de evitar refl exos negativos para o futuro do visado e para a sua reputação e da própria empresa e o mesmo deverá suceder se a decisão de inidoneidade for posterior ao início de atividades.

1. Os atos administrativos de autorização, de recusa, de registo, e revogação. O procedimento autorizatório pode culminar com um ato administrativo negativo (artigo 20º, nº1,alínea j) RGIC, 299º CodVM e 152º CPA). A autoridade administrativa deve recusar a autorização e consequente registo de pessoas que não preencham os requisitos legais de idoneidade (adequação) (artigos 30º-B, C e D, 69º, nº1 e 4 e 72º, alínea e)) - infra. Quando autorizado, a efi cácia duradoura do ato permissivo permite a prática de atos administrativos secundários, suspensivos ou resolutivos, ofi ciosamente (por exemplo no âmbito de relações de supervisão ou de sanção, artigos 30º-C, nº4, 32º, nº4, 70º, nº4, 141º, nº1, alínea c), 216º-A, nº1 alínea b), 227º-A, nº2 ou 212º, nº1, alínea d)) ou a pedido do próprio ou da instituição (casos de renúncia ou de conhecimento pela instituição de factos com relevância para a idoneidade, artigo 32º, nºs 1-3).

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Mas um ato administrativo primário positivo, ao afastar a proibição de exercício de um direito investindo uma pessoa num estatuto jurídico, limita a liberdade da Administração para a prática de atos secundários ablativos, como a sua anulação ou a revogação. Para além das regras gerais que permitem a revogação da autorização (vg por assentimento dos interessados ou na parte do ato que lhes é desfavorável, artigo 167º CPA), a revogação é possível nos casos de aposição de uma cláusula de reserva de revogação ou de expressa previsão legal. Os atos de revogação ou de anulação dependem então da observância dos princípios legais e procedimentais fundamentais que regem uma intervenção pública ablativa sobre a esfera privada (casos de reserva de lei ou negocial), conforme previsão legal dos artigos 22º e 30º-A, nºs 4 a 7:

i) Pelo erro em que a Administração se encontrava quanto à verifi cação das condições legais necessárias à prática do ato de autorização (a denominada “revogação-anulação”, artigo 22º, nº1, alíneas a) e j), hoje denominada anulação com um regime-regra previsto no artigo 136º do CPA);

ii) Pela ocorrência de um facto objetivo superveniente que determina uma alteração das condições legais operativas que permitiam a manutenção desta relação regulatória de trato sucessivo (“revogação-cancelamento”, artigos 14º e 22º, nº1, alínea b);

iii) Pelo não exercício, prolongado, da profi ssão, ou por decurso de um prazo ou circunstâncias que extinguem os efeitos do ato (“revogação-caducidade”, artigo 22º, nº1, alínea d));

iv) Pela verifi cação de graves irregularidades ou ilícitos (“revogação-sanção”, artigo 22º, nº1, alíneas e), h), j), k), m) - vd artigo 18º, alínea f) da CRD IV).

O ato administrativo de revogação, seja por facto próprio ou por facto da empresa, distingue-se dos atos administrativos sancionatórios vertidos no regime especial do direito de mera ordenação social (artigos 200º segs). Tratámos em escritos anteriores do problema da necessidade de distinção entre aqueles atos administrativos desfavoráveis e os atos administrativos

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sancionatórios, e da necessidade de aplicação do procedimento legalmente devido a estes últimos (due process of law), em termos de garantias dos arguidos. Se o ato tem uma fi nalidade punitiva, tem como fundamento principal e direto a ilicitude, depende de um juízo discricionário de graduação (gravidade do ilícito, e de valoração da conduta ilícita), estamos perante uma punição e vigoram de pleno os princípios ou “bloco de constitucionalidade” do jus puniendi49.

Neste caso, a conformidade constitucional do ato administrativo secundário denominado de “revogação-sanção” dependerá da prévia existência de uma decisão sancionatória condenatória. Sendo proferida também uma sanção acessória (melhor se diria “complementar”) de inibição do exercício da profi ssão, o ato de autorização deve ser revogado se o prazo da inibição exceder o tempo de duração para o exercício do cargo. Se a inibição for por tempo inferior ao tempo do exercício do cargo a autorização deve ser objeto de reavaliação necessária pelo seu efeito na idoneidade. O cancelamento ou a revogação implicam o cancelamento ipso jure do registo.

No caso dos demais atos desfavoráveis, a prática do ato administrativo de revogação ou de anulação está sujeita ao regime dos atos administrativos secundários e aos princípios da competência e do paralelismo da forma e do procedimento. Sem necessidade de prática de atos e formalidades que sejam inúteis ou dispensáveis por natureza – fora dos casos de iniciativa ofi ciosa a audiência prévia poderá ser dispensada relativamente ao requerente já ouvido ou quando estejam em causa meramente questões de direito (artigos 121º-5º, 170º-1º CPA) – a fundamentação e a notifi cação são essenciais (artigo 152º-3º, todos CPA), sendo o ato suscetível de impugnação mediante os meios jurisdicionais gerais e os urgentes e cautelares (artigos 46º, 97º, 112º ss CPTA, e 12º RGIC).

49 Catarino, 2010: 331 e 650, 757.

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2. Os atos restritivos urgentes: as medidas provisórias, as medidas de polícia e as medidas cautelares. No âmbito da atividade administrativa de supervisão contínua o regulador pode tomar medidas desfavoráveis excecionais que se revelem temporal e estruturalmente adequadas à imediata proteção da ordem pública do sector regulado. Encontramos por isso as designadas medidas de constrangimento como as medidas de vis fi sica que permitem no âmbito de uma ação de supervisão que os inspetores recorram, se necessário, à força policial, para que os visados conformem de imediato o seu comportamento com a norma, com uma decisão ou ordem concreta ou com um contrato, para restaurar a ordem pública (artigos 41º-2º e 54º RGCORD)50.

Estas medidas de excecionalidade traduzem-se (1) numa ameaça ou no uso da força, (2) não procedimentalizada, (3) vinculada à legalidade e demais princípios que regem a atividade pública (como da imparcialidade, da boa-fé e da proporcionalidade), (4) fundada na urgência ou necessidade resultantes de factos que, atentas as regras da experiência e da técnica, traduzam um perigo concreto, real e atual para o interesse público.

É sobremaneira importante enfatizar esta vertente de perigo real dada a dinâmica social dos grupos. Num determinado contexto global ou em que o medo é polarizado por grupo ou lançado para a sociedade em cascata (inter alia pelos media), um meio, um sistema ou um grupo, podem assumir como real e muito sério um risco baseados no contágio por mero medo 51. Social infl uences, including cascades effects and group polarizations, both heighten and diminish fear. The result is a situation in which people often

50 Aprovado pelo Decreto-lei 433/82, de 27 de outubro. Acerca do especial estatuto de independência funcional dos inspetores e do especial regime jurídico da atividade de inspeção levada a cabo pelos colaboradores dos reguladores (atividade atualmente desprocedimentalizada e não expressamente regulada), com propostas para a sua procedimentalização e normativização, Catarino, 2010: 467 ss.

51 Um clássico essencial sobre a questão do contágio e do pânico e seus efeitos é o livro de Charles Kindleberger e Robert Alber, 5ª ed., 2005, Manias, Panics, and Crashes: A History of Financial Crises, N. Jersey, Wiley Investment Classics.

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show baseless fear and confi dence about situations that pose genuine danger, o que pode determinar, sobretudo em ecossistemas profi ssionais e sociais fechados como o bancário, fenómenos nocivos de excesso ou de falta de atuação52.

Existem várias medidas temporárias ou provisórias que visam proteger direta e imediatamente o mercado, permitindo uma atuação preventiva de cariz negativo ou ablativo que obste à prática de um ato ilícito ou a um perigo ou dano para o interesse público, grave e eminente. Apesar de as alterações legislativas ocorridas em 2014 e 2015 no RGIC terem consagrado expressamente alguns meios de intervenção urgente no domínio da adequação e idoneidade, existiam já medidas de polícia, medidas provisórias e cautelares, que permitiam aos reguladores intervir em caso de urgência para salvaguarda do interesse público e do mercado. Assim, temos:

A. As medidas de polícia que decorrem da função de vigilância e fi scalização conatural à atividade da Administração de Polícia e se destinam a fazer cumprir no imediato a legalidade perante atos de violação, de forma a garantir a ordem pública geral ou sectorial, e prevenir a ocorrência de danos. São particularmente importantes no âmbito fi nanceiro pois pressupõem uma grande fl exibilidade de atuação, desformalização e desprocedimentalização, e a uma ampla discricionariedade de ação e de decisão que se conjuga perfeitamente com um espaço onde existe um “tempo económico”. Corresponde a um espaço temporal de especiais necessidades de urgência balizado pela utilidade e efi cácia do efeito das medidas - sobretudo das que transferem o risco decorrente de práticas que possam afetar o mercado na forma e tempestividade requeridas53.

A maioria destas medidas de polícia traduz-se em ordens, proibitivas ou prescritivas, e são muito utilizadas no âmbito

52 Sunstein, 2005: 98.53 Acerca das medidas de polícia sectorial da CMVM e do BdP e os problemas

que levantam no âmbito do due process of law ou processo devido em Direito para medidas com fi nalidade preventiva face à punitiva, Sérvulo Correia, 1993: 393; Catarino, 2010: 592 e 595 ss.

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da regulação de intervenção económica onde cresceram e se desenvolveram. A sua competência foi cometida ao Banco de Portugal, facto decorrente de caber a esta instituição a supervisão prudencial, desde autorizar a constituição e funcionamento das instituições de crédito e empresas de investimento, aferir da adequação e idoneidade dos titulares de órgãos sociais ou de participações qualifi cadas, monitorizar todo o seu percurso e vicissitudes (alterações de pactos sociais, da composição dos órgãos, da detenção de participações qualifi cadas) até à extinção. Para que não existam regulatory failures e para uma maior celeridade e efi cácia no caso de exercício de competências comuns ou concorrentes, deverá haver uma necessária concertação administrativa entre reguladores através de reuniões ou conferências a realizar pela autoridade que inicie o procedimento para aplicação da medida (artigos 77º ss CPA).

Entre as medidas corretivas ou de polícia temos a possibilidade de proferir determinações ou injunções concretas, a pessoas ou instituições (artigo 116º, nº1, c)), determinar a adoção de medidas corretivas previstas no artigo 116º-C, de suspensão provisória de funções de qualquer membro dos órgãos sociais “em situações de justifi cada urgência e para prevenir o risco de grave dano para a gestão sã e prudente” (medidas aplicáveis também aos titulares de funções essenciais, artigos 32º-A e 33º-A). No caso de irregularidades praticadas em território nacional por sucursais ou escritórios de representação de empresas estrangeiras, o Banco de Portugal pode tomar as providências que entenda convenientes para prevenir ou reprimir novas irregularidades, e em caso de urgência pode adotar as medidas necessárias para prevenir a instabilidade fi nanceira mesmo antes de fazer a comunicação à autoridade congénere competente (artigos 30º-C, nº7, e 53º).

O regulador tem o poder-dever de interferir na gestão da empresa quando a não considere “sã e prudente” ou quando a instituição realize ou pretenda realizar operações que a coloquem (ou ao mercado onde operem) em perigo (artigo 118º). Tal sucederá, por exemplo, nos casos de insolvência ou desequilíbrio

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fi nanceiro de instituições fi nanceiras de importância sistémica. Atos de intervenção na gestão e tomada imediata de medidas extraordinárias sobre instituições, mercados ou operações, podem ser aplicadas pelo governo quando as irregularidades coloquem em risco a economia nacional (“grave perigo”, explicita o artigo 91º).

No caso de se verifi car a prática de atos que coloquem em “sério risco” o “equilíbrio fi nanceiro ou a solvabilidade de uma instituição ou possam constituir uma ameaça para a estabilidade do sistema fi nanceiro” (artigo 145º, nº1, “in fi ne”), pode o Banco de Portugal proceder à suspensão de órgãos sociais, designar um ou mais administradores provisórios, vetar ou anular deliberações da assembleia geral (medidas englobadas nas anteriormente existentes “providências de saneamento” do artigo 116º, nº1, alínea d)), e ainda toda uma panóplia de medidas de polícia previstas nos artigos 145º e 145º-A. Estas medidas de polícia podem ser aplicadas simultaneamente com medidas provisórias especiais que se enquadram no âmbito de procedimentos administrativos de intervenção corretiva, de administração provisória ou de resolução, previstas no Título VIII do RGIC (infra).

No âmbito comportamental, o Regulamento (UE) n.º 1095/2010 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2010, que criou a Autoridade Europeia de Supervisão dos Valores Mobiliários e dos Mercados (ou ESMA), atribuiu competências a esta “agência” comunitária para suspender ou proibir serviços ou atividades de intermediação fi nanceira ou a venda de produtos fi nanceiros num ou mais mercados de Estados-membros, a um ou mais intervenientes, que constituam uma séria ameaça às atribuições de defesa do mercado para que foi criada (artigo 8º, nº2, alíneas e) e f), 9º, nºs 3 e 5, 22º).

Estas medidas de Polícia estão ainda previstas para outras autoridades nacionais como o regulador dos mercados de valores mobiliários na já referida MiFID II - para entrar em vigor em 3 de janeiro de 2017 (aagora com adiamento de um ano). Inter alia, prevê-se a possibilidade de imposição de medidas corretivas necessárias, como de “exigir uma interdição temporária do exercício

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de uma atividade profi ssional” de intermediação ou de “exigir a suspensão da negociação de um instrumento fi nanceiro”, mas também de “exigir a saída de uma pessoa singular do conselho de administração de uma empresa de investimento ou de um operador de mercado” (artigo 66º, nº2, alíneas f), m) s).

As medidas de polícia têm um escopo de garantia imediata da legalidade em geral e da ordem pública geral ou especial, devendo obedecer ao princípio constitucional da tipicidade e da intervenção mínima. As medidas de polícia são as previstas na lei, e embora a fronteira possa ser por vezes difícil de traçar, estas medidas temporárias não são incluídas em procedimento sancionatório (cfr. o Acórdão do TC nº 336/91, de 3 de julho de 1991). Não devem ultrapassar a medida necessária (artigos 61º, 18º, 272º, nº2 CRP), o que implica uma rigorosa aplicação e controlo dos princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade.

B. Na pendência ou por causa de um procedimento administrativo não sancionatório em curso, podem ser tomadas medidas provisórias que se revelem necessárias e adequadas para prevenir uma lesão grave ou de difícil reparação de interesses coletivos ou públicos normativamente protegidos (periculum in mora) ou para que os atos que venham a ser praticados pelo regulador no fi m do procedimento administrativo mantenham a sua efi cácia – cfr a previsão genérica no artigo 89º (ex-artigo 84º) do Código do Procedimento Administrativo, “Admissibilidade de medidas provisórias”.

Estas medidas são por natureza temporárias, autónomas da decisão fi nal, e independentes da fase do procedimento de que dependem, não se confundindo com atos preparatórios (que se destinam a preparar o ato fi nal) nem com atos provisórios (que pretendem regular provisoriamente uma situação jurídica). Podem ser decretadas pelo regulador ofi ciosamente ou a pedido para verifi cação de requisitos ou de sanação da sua falta. Por exemplo a suspensão de um administrador no âmbito de um procedimento de verifi cação superveniente de falta de idoneidade; a suspensão do exercício de funções para realização de uma reavaliação da

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idoneidade e de sanação ou de completude de requisitos considerados insufi cientes (inclui os casos de administradores designados mas também aqueles em que é possível o início de atividade antes da designação); a alteração da composição da administração ou não recondução se deixarem de se verifi car os requisitos de adequação do órgão. Em todos estes casos o regulador necessitará tomar medidas provisórias enquanto averigua da veracidade ou completude dos requisitos legalmente exigidos e da sua manutenção, fi xando prazo para suprir insufi ciências ou suspendendo um titular ou todo o órgão para redistribuição de pelouros ou de pessoas ou prestação das informações consideradas necessárias (artigos 30º-B, nºs 2, 3 e 7, 30º-A, nºs 6 a 9, 32º, nº4, 69º-70º e 72º).

A suspensão de funções pode ser voluntária ou depender de deliberação do regulador mas também pode ser automática e operar ope legis como sucedia nos casos em que fossem adotadas as denominadas “medidas de resolução” – em março de 2015 o legislador optou por uma solução normativa e funcionalmente questionável, de substituir a suspensão de funções nos órgãos pela sua cessação automática (artigos 145º-E e F).

Entre as medidas provisórias são importantes as medidas a tomar ofi ciosamente, como a suspensão ou substituição de um ou mais administradores no âmbito do procedimento de adoção das medidas de intervenção corretiva previstas no Título VIII do RGIC, medidas que se destinam a salvaguardar a solidez fi nanceira individual ou sistémica ou os interesses do público depositante (cfr. artigos 139º, 142º, nº3, e 145º, nº1, primeira parte).

C. Colocamos à parte, pela sua importância e gravidade, as medidas provisórias especiais de salvaguarda do interesse público e conservatórias da ordem pública fi nanceira. Estas medidas, nominadas, são competência-regra do Banco de Portugal dado visarem prevenir um efeito prudencial, individual ou sistémico, mas também de outros reguladores como a CMVM (cfr. artigos 139º ss do RGIC e 412º CodVM). Tal como sucede no âmbito das medidas de polícia, é essencial que os reguladores se articulem previamente à adoção de medidas administrativas que tenham

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potencial impacto na atividade seguradora ou da intermediação fi nanceira, sem prejuízo da intervenção do Governo no âmbito dos poderes-deveres de organização da administração pública e de superintendência (e tutela) da administração indireta (artigo 199º CRP).

Por medidas provisórias especiais referimo-nos à adoção de medidas no âmbito de providências extraordinárias de saneamento de instituições de crédito em caso de insolvência ou desequilíbrio fi nanceiro ou que se destinem à salvaguarda da “solidez fi nanceira da instituição de crédito, dos interesses dos depositantes ou da estabilidade do sistema fi nanceiro” (artigo 139º, nº1). Estas medidas de intervenção supervisora, corretiva, de administração provisória ou de resolução (a que poderíamos acrescentar o procedimento de insolvência) têm uma diferente graduação decorrente da diferente gravidade da situação factual que as funda e dos seus pressupostos legais, numa apreciação prospetiva de risco e de consequência. Há por isso uma ordem legal de precedência nesta intervenção preventiva - o que é diferente de existir uma relação de precedência, i.e., de uma medida só poder ser aplicada após aplicação de outra (artigo 140º). Esta ordem legal de precedência resulta clara do articulado legal (cfr. artigos 141º, nº1, 144º, 145º, nº1, 145º-E, nº2 e 145º-H) e da aplicação dos princípios constitucionais de intervenção mínima, da adequação e da proporcionalidade. Pelo seu impacto sobre a instituição fi nanceira e demais usuários do sistema e dos cidadãos, todas as medidas provisórias especiais de intervenção devem preceder, por ordem de gravidade e de necessidade, as medidas de resolução ou de insolvência (artigos 116º e ss. e 139º ss54).

54 A estatuição de que o “Banco de Portugal não se encontra vinculado a observar qualquer ordem de precedência” na escolha das medidas de intervenção (artigo 140º) deve ser interpretada conforme a Constituição e os princípios gerais da atividade administrativa que o regem (artigos 18º, 266º-268º), vedando uma aplicação automática e impondo a graduação que cumpra a proporcionalidade e igualdade e a proibição do excesso.

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A maioria das medidas provisórias especiais previstas dispõem também sobre a possibilidade de suspensão, substituição de um ou de todos os titulares dos órgãos de administração (e de titulares de funções de direção de topo, artigos 141º, nº3, 145º-F, nº3), a sua destituição, ou designação de um ou mais administradores provisórios. O articulado legal atual é de difícil interpretação pelo aplicador do direito:

i) É confuso na ordem de precedência da aplicação de medidas (cfr. a conjugação dos artigos 141º, nº1, alínea s), 142º, nº3, 144º, a) e 145º, nº1, primeira parte, 145º-A);

ii) A natureza de algumas medidas provisórias especiais aproxima-as das verdadeiras medidas de polícia (cfr. artigos 145º, nº1, “in fi ne” e 145º-A, nº1);

iii) Nalguns casos podemos estar perante medidas cautelares típicas de procedimentos sancionatórios ou mesmo de sanções automáticas55 não incluídas em procedimento sancionatório (cfr. artigos 145º, nº1, in fi ne e alínea a), 145º-F, nº1);

iv) Finalmente, porque parece pretender que uma comunicação à instituição para substituição ou destituição de um membro do órgão de administração pela verifi cação superveniente da falta de idoneidade é uma medida corretiva (cfr. artigos 141º, nº1, alínea s) e 32º).

Estas medidas administrativas especiais têm de original o facto de se poderem traduzir em atos híbridos, administrativos e normativos, como é o caso das Medidas de Resolução. Consubstanciam um procedimento de recuperação de empresas e/ou insolvência especial não judicial (artigo 152º), no qual o Banco de Portugal pode proceder a atos administrativos de dispensa de deveres legais (vd. artigo 145), intervindo na titularidade, na estrutura e na gestão de empresas privadas (artigo 86º, nº2 CRP). A par da aplicação

55 Acerca do problema da conformidade constitucional das sanções administrativas (contraordenações), vg das “automáticas”, o nosso trabalho anterior – Catarino, 2010:692 ss.

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dos princípios gerais que regem toda a administração, tem cariz excecional porque potencialmente colidente com direitos, liberdades e garantias fundamentais, da economia de mercado (de iniciativa e propriedade privada) e do Estado de Direito Democrático (regra da justa indemnização no caso de intervenção defi nitiva em empresas privadas ou de prévia decisão judicial na intervenção provisória), e implica uma especial fundamentação de facto e de direito. Com cumprimento dos deveres de necessidade e adequação o regulador deve também ter em mente que tais atos têm de obedecer ao princípio da restrição das restrições e a uma concordância prática que não esvazie de conteúdo os direitos fundamentais com que colide (artigo 18º da Constituição).

D. Podem ser igualmente tomadas medidas administrativas provisórias no âmbito sancionatório. As medidas cautelares, que se distinguem das “sanções acessórias” pela natureza instrumental, também têm carácter provisório ou temporalmente limitado, são excecionais (atento o princípio da presunção de inocência) e instrumentais a um caso concreto ou a um procedimento. Têm como fi nalidade pôr termo imediato aos efeitos prejudiciais de uma conduta ilícita ou prevenir o efeito útil de uma investigação ou decisão sancionatória (cfr. artigos 216º-A, nº1, alínea b) RGIC e artigo 412º, nº1, alíneas a) e b) CodVM).

Quais as condições da sua aplicação? A existência de indícios sufi cientes (fumus boni iuris) que permitam concluir numa summa cognitio pela verosimilhança e plausibilidade da prática de um facto ilícito lesivo do interesse geral, e sejam necessárias face à urgência em evitar prejuízos graves ou irreparáveis antes de uma decisão defi nitiva (periculum in mora) ou a evitar que as medidas que venham a ser tomadas percam efi cácia. A sua discricionariedade e consequente legalidade encontra-se balizada pela razoabilidade perante a fi nalidade que prosseguem, a proporcionalidade perante os efeitos do ilícito e os interesses a defender, e pela fi nalidade (não punitiva) e necessidade de garantir a efi cácia de uma eventual resolução fi nal.

Quais as medidas cautelares sectoriais previstas? Estas medidas consistem tipicamente: (i) na possibilidade da suspensão

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“preventiva” de alguma(s) atividade(s) ou funções exercidas pelo “arguido” (o que pressupõe a constituição do sujeito como arguido) ou (ii) na sujeição de tais atividades a condições “determinadas”, consideradas “necessárias”, nomeadamente o cumprimento de deveres de informação.

Estas medidas são imediatamente exequíveis e podem ser aplicadas sem audição prévia dos visados ou interessados (o recurso da medida tem efeito meramente devolutivo, artigo 216º-A, nºs 2 e 5), vigoram sem limite temporal até à sua revogação por decisão fi nal (administrativa ou judicial), à caducidade ou início de cumprimento de sanção acessória homogénea. Devem ser igualmente revogadas quando durante o processo deixem de se verifi car os pressupostos ou circunstâncias que levaram à sua aplicação (extinguindo-se em caso de prescrição do procedimento). A lei aceita a fungibilidade das medidas cautelares com posteriores sanções acessórias; impõe-se por isso a homogeneidade para se proceder ao desconto no tempo das sanções acessórias do tempo que durou a medida cautelar com os mesmos efeitos (artigos 216º-A, nº4 RGIC e 412º, nº4 CodVM).

A homogeneidade deve igualmente impor a caducidade de uma medida cautelar, p.e. de suspensão de um administrador, quando se cumpra o tempo máximo fi xado para a correspondente sanção acessória (suspensão da atividade do administrador por X meses). De outro modo permitir-se-ia, com base num mero juízo perfunctório, a imposição material de uma sanção atípica, sem o processo devido em Direito, indeterminada (pela falta de quantum temporal), e que coloca em causa o núcleo essencial do direito fundamental (no caso, à profi ssão e ao trabalho). Exige-se por isso uma especial diligência processual ou procedimental sob pena de violação, também, do direito fundamental a uma decisão num prazo razoável (refração de um due process of law vertido no artigo 20º, nºs 4 e 5 CRP, e no artigo 6º CEDH)56.

56 O facto de um arguido ser objeto de medidas cautelares implica que o dominus do processo tenha um dever de diligência acrescido na sua célere

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Resta-nos uma última questão: estando perante um atividade materialmente de supervisão e não sancionatória, quando se inicia materialmente um procedimento sancionatório e fi nda o procedimento de supervisão? A importância da distinção não necessita demonstração: pela aplicação de um regime jurídico mais garantista mas também face aos problemas, reais, de validade da prova recolhida e de aplicação e segregação de atividades administrativas. Depende formalmente de uma deliberação de abertura do processo sancionatório pelo órgão competente (artigo 213º)57. Questão diversa e sobre a qual tivemos oportunidade de nos debruçar anteriormente, é quando deve a Administração declarar o início de um processo de contraordenação, pela verifi cação de forte indícios de práticas ilícitas, no âmbito de ação de supervisão em curso…

Estas medidas de constrangimento podem por isso ser aplicáveis de forma célere e com efeito útil, devendo ser posteriormente analisadas e alteradas ou revogadas consoante se verifi quem alterações nos factos que lhe deram origem ou cessem as circunstâncias (causa) que as fundamentaram, cumprindo-se assim os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade (artigo 216º-A RGIC).

resolução, e o princípio da necessidade e da proporcionalidade deverão levar a que as difi culdades de obtenção de prova ou de fundamentação afastem o sacrifício assim imposto. Tivemos oportunidade de afi rmar, a propósito da análise da Jurisprudência do TEDH na sua aplicação do artigo 6º da CEDH ao direito de mera ordenação social, que o dever de decisão num prazo razoável e a responsabilidade pela sua violação se encontram estritamente ligadas ao processo, ao seu conteúdo e atividade das partes e não só à apreciação temporalmente quantitativa – Catarino, 2010: 748 ss. Idem, 1999: 3.

57 Nesta matéria mantém-se uma porosidade regulatória com uma clara deferência judicial e doutrinária face aos poderes de investigação e sanção pela Administração independente que contrastam vivamente com o escrutínio a que têm estado sujeitos os órgãos de investigação criminal e o próprio Poder Judicial no âmbito do processo criminal – Fernanda Maçãs, 2006; 31. A propósito do aprofundamento do estatuto do arguido e da aplicação dos princípios fundamentais dos processos sancionatórios a este ramo de Direito, Catarino, 2010: 343 e 441; Idem, 2014:174 ss e 197 ss.

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3. Âmbito subjetivo da autorização administrativa: os titulares, os trabalhadores em funções essenciais e a funcionalização do órgão.

O ato de autorização depende do preenchimento de condições legais, e estão subjacentes à questão da idoneidade características pessoais. Veremos que os proponentes (sociedade, interessados e seus representantes) assumem conjuntamente com a “proposta de atividade” a fundamentação legal de fi tness and propriety de tais indivíduos (artigo 17º, nº1, alínea b). É neste momento inicial que se coloca com maior acuidade a necessidade de eles fundamentarem e de justifi carem os requisitos de idoneidade (e de adequação), dada a falta de informação detida pelo regulador.

As pessoas singulares objeto destes atos administrativos de autorização ou key persons58 são pessoas que têm ou terão funções de responsabilidade na gestão, na superintendência e na administração de uma instituição ou empresa licenciada ou autorizada para atuar num sector económico fortemente regulado. Abrange os membros dos órgãos de administração e de fi scalização das instituições de crédito e de sociedades fi nanceiras além de outras funções que o legislador venha a prescrever no respeito pelo regime constitucional de restrição às restrições profi ssionais. As exigências de fi t and proper têm, dissemo-lo já, um forte cunho prudencial pelo que a vontade administrativa se encontra balizada e funcionalizada: a deliberação de recusa de autorização só se pode fundar em factos objetivos de que decorra a existência de fortes indícios (probable cause) de uma falta de idoneidade, que trará uma probabilidade real de não assegurar no futuro e em permanência (juízo de

58 A IOSCO considera aplicáveis as melhores práticas de avaliação de fi tness and propriety a outros agentes do Mercado e stakeholders para além das Key Persons - any person responsible for managing or overseeing, either alone or together with another responsible person, the activities of a licensed provider relating to the rendering of fi nancial services, http://www.iosco.org/library/pubdocs/pdf/IOSCOPD312.pdf (consultado em 5.4.2016).

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prognose) as garantias de gestão sã e prudente das instituições de crédito (adequação), ou, de modo particular, de não ser apta a salvaguardar o sistema fi nanceiro e os interesses dos respetivos clientes, depositantes, investidores e demais credores” (artigo 30º, nº2). Porque as qualidades se devem manter durante todo o mandato, a instituição fi nanceira e o interessado assumem deveres de verifi cação periódica da manutenção das qualidades legais exigidas, de comunicação e mesmo de denúncia e participação ao regulador de “indícios sérios de infrações a deveres” constantes do Regulamento 575/2013 (artigo 32º).

A conjunção do fenómeno da globalização fi nanceira e da concentração empresarial (horizontal ou vertical, ou por conglomerado) implicaram alargar o âmbito das pessoas coletivas cujos titulares de órgãos sociais são objeto de controlo: não necessita demonstração, por exemplo, que a insolvência de empresas que atuem como contrapartes centrais ou que giram sistemas de liquidação e compensação de operações de mercado, se traduzirá na criação de um “buraco negro” no sistema fi nanceiro. A concentração económica postula uma necessidade (real) de desconcentração de competências, pela delegação de fortes responsabilidades de governance e de direção em níveis pessoais funcionais mais baixos da pirâmide hierárquica. A efi cácia da desconcentração e a ética da responsabilidade individual implicam avaliar outras pessoas chamadas a “funções que lhe confi ram infl uência signifi cativa na gestão da instituição de crédito”. São as funções relevantes ou essenciais (artigo 33º-A) ou de “direção de topo” (artigo 3º, nº1/7 da CRD IV).

Comparando o atual regime jurídico da adequação com o normativo vigente no início do séc. XX, as exigências legais de fi tness and propriety tendem a alargar-se a outras pessoas. A Diretiva CRD IV assumiu um forte intervencionismo na gestão das instituições de crédito tornou as funções de direção superior administrativamente controladas ou supervisionadas (artigos 33º-A, nºs 4 a 5 e 32º, nº4). Esta “chamada” à direção da instituição de outras pessoas para além das titulares de órgãos de administração

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e de fi scalização tem o seu expoente máximo num regime de corresponsabilização sancionatória, aparentemente objetiva (artigos 204º e 226º59). O legislador enumera como detendo funções essenciais para a salvaguarda do sistema e como tal sujeitos a avaliação e autorização, os responsáveis pelas áreas de compliance, de auditoria interna, de controlo e de gestão de riscos. Mas não só. Por um lado, através de norma legislada expressa, conforme aos princípios constitucionais e direitos fundamentais, o legislador ou o regulador legalmente habilitado podem alargar esta restrição a outros cargos cujos titulares “exerçam funções que lhes confi ram infl uência signifi cativa na gestão da instituição de crédito” (artigo 33º-A, nºs2, “in fi ne” e 6). A extensão do âmbito material (condições essenciais), e/ou o seu âmbito subjetivo (pessoas ou funções) poderá também decorrer de regulamentação interna da empresa, no âmbito da liberdade contratual, negocial e de organização interna (artigo 33º-A, nº2, primeira parte).

A regulação do exercício da atividade profi ssional não se fi ca por aqui. Deve haver uma verifi cação pelos proponentes e pela administração reguladora de que da soma das competências individuais dos titulares de órgãos plurais resulta uma unidade, um colégio que no conjunto também garante uma gestão sã e prudente para todas as atividades e funções concretas da instituição (artigo 30º, nºs 4 e 5). A avaliação da capacidade, aptidão ou conveniência é aferida perante a pessoa singular (é pessoal) mas também perante o órgão que vai integrar (é funcionalizada), i.e., a aferição da

59 Não cumpre desenvolver aqui esta vertente. Estes requisitos também se aplicam à própria entidade que desenvolve atividades reguladas. A sua condenação em processos-crime (de mercado, fi scal, patrimonial), em processos de contra-ordenação de que resulte a aplicação das denominadas sanções acessórias (publicidade, suspensão temporária de atividades), também poderão redundar a fi nal no cancelamento da autorização - artigos 70º, nº3 e 30º, nº3 e CRD IV. Estaremos perante aquilo que se denomina de “revogação-sanção” (infra). Sobre a matéria administrativa sancionatória (contraordenações), os seus limites constitucionais, tipos de sanções e seus efeitos (incluindo a fi gura da revogação-sanção), Catarino, 2010: 557 ss e 610 ss, e vasta bib. aí citada.

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idoneidade é pessoal, necessária mas não sufi ciente pois a fi nal a adequação é individual e coletiva. A lei estatui que esta “deve ser acompanhada de uma apreciação coletiva do órgão, tendo em vista verifi car se o próprio órgão, considerada a sua composição, reúne qualifi cação profi ssional e disponibilidades sufi cientes para cumprir as respetivas funções legais ou estatutárias em todas as áreas relevantes de atuação” - artigos 30º, nº4 e 22º, nºs1, alínea j) e 2. O fenómeno de cross fertilization implica diversidade e criticidade dentro dos órgãos, e daí que deve ser objeto de análise a “idade, género, origem geográfi ca, habilitações e antecedentes profi ssionais (…) por forma a assegurar uma diversidade de opiniões e experiências” (vd Considerando nº 60 da Diretiva 2013/36/EU).

Do atual normativo resulta que um sujeito pode ser individualmente apto e idóneo para desempenhar funções numa instituição de crédito, mas o Banco de Portugal não o autorizar a desempenhar a profi ssão em função da qualifi cação ou competência especifi ca necessária ao colégio. A estes critérios técnicos e de policy devemos ainda acrescentar outros critérios de inclusão: i) políticos, como o que resulta da descriminação em favor de um género (“quotas” para “géneros sub-representados”, artigo 30º, nº6); sociais e laborais, e seguindo o paradigma alemão, da “representação dos trabalhadores no órgão de administração (…) uma vez que introduz uma perspetiva fundamental e um conhecimento autêntico do funcionamento interno da instituição” - considerando nº 60 supra referido, artigo 91º, nº13 da mesma Diretiva)60.

Concluímos que as exigências legais de idoneidade “lato sensu” incidem sobre as pessoas singulares que têm funções de responsabilidade na gestão, na superintendência e na administração

60 Também a Diretiva 2014/59 pugna pela informação e intervenção dos trabalhadores no âmbito da aplicação e tomada de medidas de resolução (artigo 10º, nº7, m), 34º, nº5, 84º, nº4, b), normas que se enquadram no âmbito dos poderes-deveres da União de prossecução de políticas económicas e sociais de integração (artigos 7º s TFUE e 27º e 27º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia).

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da empresa, e refl examente sobre a própria instituição. São consideradas key persons: i) as pessoas titulares dos órgãos de administração e de fi scalização e de gerência de algumas sucursais (supra); ii) as pessoas que sejam “titulares de funções essenciais” ou de “direção de topo”; iii) o órgão colegial da instituição de crédito, enquanto conjunto de qualifi cações e competências necessárias e adequadas às atividades a prosseguir; iv) a instituição de crédito autorizada ou licenciada para atuar num sector regulado.

Parecerá estranho incluirmos na aferição da idoneidade de uma pessoa singular factos relacionados com a conduta das próprias instituições de crédito. É que a conduta desta última tem refl exos reais na apreciação da idoneidade das pessoas singulares: a prática de irregularidades graves ou a violação de leis e regulamentos pela instituição implica para os titulares dos seus órgãos a possibilidade da declaração de inidoneidade superveniente na instituição, ou a falta de idoneidade para futuras nomeações (artigos 22º, nº1, alíneas e), h) j) e m) e), 30º-A, nºs 6 e 8, 30º-D, nº 6 e 30º-C).

Assim, a “funcionalização” do instituto, i.e., de a capacidade do sujeito individual estar dependente da aferição da idoneidade do coletivo (órgão), para fi ns comportamentais mas também para fi ns prudenciais, a lei assumiu a total “refl exividade” do sistema ao estatuir que a conduta da instituição, por exemplo se foi objeto de uma ou mais sanções, também infl ui sobre a aptidão e idoneidade individual, atual e futura, dos próprios titulares dos órgãos.

VI: Procedimento de avaliação: da autoavaliação à heteroavaliação.

Os atos de autorização administrativa fazem fé pública perante os demais reguladores: as pessoas a designar provaram possuir e manter os requisitos legais e demais códigos de conduta externos e internos (artigos 17º, nº2, 22º, nº2, e 30º-A, nºs 1 a 4). Mas o controlo da idoneidade, de experiência pessoal e profi ssional, tal como o de disponibilidade e de prevenção de confl ito de interesses, deve ser efetuado num primeiro nível pelas próprias empresas interessadas de acordo com normas de política interna e com base

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na informação recebida e solicitada à pessoa a propor ao regulador (artigos 17º, nº1, alínea g), 30º, nº6 e 30º-A, nº3).

Desta forma reforçam-se os mecanismos de prevenção de risco nacional mas também a nível da União – o atual regime legal é direito comunitário harmonizado – pois o sistema de passaporte das empresas impõe que exista apenas “uma porta” para a entrada em todo o espaço da União (single entry point). O reforço do papel das instituições fi nanceiras como gatekeepers do sistema bancário (e consequente responsabilidade pela nomeação e pela vigilância) reside num primeiro momento nas assembleias gerais e nos demais órgãos internos de nomeação (comités de nomeação, artigo 115º-B), ou de vigilância (órgãos de fi scalização ou de compliance) e de controlo interno (de auditoria e/ou de risco), das instituições (artigos 30º, nº1, 30º-A nº5). É apenas neste sentido de gatekeeper que falamos em autoavaliação distinguindo a avaliação pela autoridade pública.

1. O procedimento de autoavaliação. A expressão de gatekeeper foi utilizada para os profi ssionais ou agentes privados que têm a possibilidade de impedir ou interromper uma conduta irregular mediante um diálogo com os agentes, uma noção que abrange auditores, consultores, advogados especializados no mercado de valores mobiliários, intermediários que prestam serviços a emitentes, analistas fi nanceiros, agências ou sociedades de notação de risco (rating). Tradicionalmente, a expressão é utilizada latamente para abranger pessoas ou entidades com elevada reputação profi ssional adquirida no mercado ao longo de um espaço de tempo pelos serviços prestados a muitos clientes, que asseguram ou garantem a objetividade de dados ou relatos por ele realizados, verifi cados ou certifi cados – fenómeno de auctoritas revertido em imperium” ou de partilha de autoridade e de responsabilidade entre a administração e sujeitos com um saber publicamente reconhecido e aceite61.

61 Catarino, 2010: 269. O termo gatekeeper implica um fenómeno da partilha de responsabilidades do regulador com entidades privadas ou com profi ssionais

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O legislador comunitário obrigou os Estados-membros a conferir tais competências de controlo às próprias instituições fi nanceiras (artigo 30º-A, nº1). O regulador espera que as instituições tenham políticas internas de defi nição de aptidão, seleção e avaliação, e que no processo de candidatura de Key Persons a empresa proponente tenha aferido uma série de requisitos profi ssionais e de idoneidade: i) face às informações e às declarações do próprio (artigo 30º-A, nºs 3 e 4); e, ii) face aos requisitos da sua política interna, vg no que respeita aos procedimentos internos de avaliação da adequação (artigos 30º-A, nº2 e 30º, nº6); iii) que o/s responsável/eis pela avaliação interna tenha/m atuado diligentemente certifi cando-se através de diplomas, entrevistas, obtenção de referências (artigo 30º-A, nº2 e 115º-B para o comité de nomeações); e iv) que tais informações constem do relatório fi nal de avaliação a ser disponibilizado aos órgãos sociais e/ou apresentado à assembleia geral em caso de eleição, e ao Banco de Portugal para instrução do pedido de autorização (artigos 30º-A, nºs 5).

Não esquecemos que esta avaliação prévia (due and diligent enquiries) pode ser custosa para o regulado (no sentido de time consuming) mas compete-lhe fazer prova dos requisitos que fundamentem a idoneidade dos candidatos devendo os interessados fornecer e manter-se disponíveis para as informações complementares necessárias à avaliação (artigos 30º-A, nºs 4, 7 e 9 e 30º-B, nºs 1 a 6)62.

do sector (muito mais poderíamos citar, desde sociedades gestoras de mercados, ou de sistemas de liquidação e de compensação), cuja reputação confere uma especial credibilidade a atos ou factos (auditores, contabilistas, empresas de notação de risco, advogados especializados em corporate governance) – neste sentido, Kraakman, 1984: 857. Também é vulgarmente utilizado para designar uma qualquer pessoa ou entidade que presta uma atividade ou serviço ou certifi cação necessários para que uma empresa proceda a uma operação ou transação – Coffee, in Hopt et al. 2006: 605 -, que demonstra como, perante o sucedido no mercado norte-americano após 2000 (escândalos iniciados com o caso ENRON) ou 2007 (crise do subprime no mercado hipotecário), o capital em que se traduz tal reputação tem sido vendido a um preço baixo…

62 Neste sentido temos as orientações do Banco de Portugal relativamente ao controlo de idoneidade dos membros dor órgãos de administração e fi scalização (“Adequação dos membros dos órgãos de administração e fi scalização e dos

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A autoavaliação faz-se através da verifi cação, pela instituição, da existência de capacidade e experiência sufi cientes para o candidato desempenhar um determinado cargo, atendendo à sua complexidade perante as atividades desenvolvidas pela instituição e meio em que as desenvolverá. Perante a insufi ciência de requisitos de adequação a resposta não é necessariamente a não nomeação ou afastamento do candidato, pois existem opções legais: pode por exemplo a empresa dispor de um espaço de tempo adequado para que o nomeado venha suprir um defi cit de experiência em concreto; ou, pode proceder o regulador a uma audição ou outro meio de prova direta com o interessado (cfr. artigos 20º, nº 2, 30º-A, nº6, e 117º ss CPA - vd o caso particular do registo de analistas fi nanceiros e consultores para investimento contantes da regulação CMVM)63.

A empresa deve manter atualizada esta sua política interna e proceder a reavaliações periódicas dos seus membros e do coletivo (órgão) face aos requisitos legais (artigo 30º, nº2, 30º-A, nº7-8). A verifi cação de factos novos (por recentes ou anteriormente desconhecidos) que possam colocar em causa o juízo inicial, deve ser feita perante as concretas orientações internas das empresas, de entre as quais deve existir a necessidade de comunicação pelo interessado de factos relevantes (artigo 30º-A, nº4), ou pelos responsáveis pela vigilância (artigo 115º-B), e sua comunicação às autoridades de supervisão (artigo 30º-A, nº 9).

titulares de funções essenciais”), in https://www.bportugal.pt/pt-PT/Supervisao/SupervisaoPrudencial/Paginas/Controlo-de-idoneidade.aspx (consultado em 5.4.2016).

63 O Regulamento CMVM nº 2/2007 foi alterado em 2010, passando a exigir-se forte requisitos académicos (CFA, certifi cado de curso reconhecido pela EFFA – cfr. artigo 10º). Atentos os princípios jurídicos de proteção da confi ança, o regulador estatuiu então um prazo para que os candidatos que desempenhassem o cargo À época da entrada em vigor mantivessem, mas para aqueles que iniciassem durante o vasto período de vacatio legis criado, deveriam possuir as habilitações académicas necessárias num prazo máximo de 4 anos).

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2. O procedimento de heteroavaliação. A autoavaliação pela instituição não afasta a heteroavaliação pela qual apenas o regulador é responsável. Uma prova positiva da verifi cação das condições legais decorrente da autoavaliação não afasta nem diminui a necessidade de o regulador proceder de uma forma diligente à sua própria avaliação no momento da autorização e/ou do registo (artigos 14º, 20º 30º, 30º-A, nº3). É verdade que as normas jurídicas externas e apriorísticas traduzidas em regras e princípios jurídicos, tal como as recomendações e orientações (soft law), são previamente conhecidas dos agentes que operam no mercado e do público interessado. O full disclosure dos requisitos e das informações necessárias e relevantes é essencial à boa administração, à proteção da confi ança dos interessados e à celeridade dos procedimentos (artigos 17º, nº1 e nº6, 20º, nº1, alínea h) e nº2). Mas esta heteroavaliação é um momento único de controlo, desde logo pela independência, isenção e imparcialidade que deve acompanhar a análise do relatório de avaliação da instituição, os documentos ofi ciais e informais juntos ao processo, as eventuais entrevistas pessoais. Existe uma tool box de competências muito forte, meios para coordenação e troca de informação com outros reguladores, nacionais ou internacionais, através dos quais o regulador deve obter a informação relativa ao desempenho pelo interessado, vg em cargos em empresas não fi nanceiras que tenham infl uência signifi cativa em empresas reguladas.

O legislador conferiu também ao regulador uma “válvula de escape” procedimental que permite o pedido fundamentado de quaisquer outras informações pessoais ou profi ssionais que entenda relevantes para formular o juízo de probidade e adequação (cfr. artigo 17º, nº 6 RGIC e 299º, alínea d) do CodVM, e consequente aplicação dos artigos 89º ou 104º CPA).

É sumamente importante a coordenação administrativa no exercício da atividade reguladora pelas diversas entidades nacionais (cfr. artigos 29º-A e B, 30º-B, nºs 10 e 11, 30º-D, nº7, 37º, nº3, 81º), com os reguladores sedeados em Estados-membros diferentes (artigos 18º, 22º, nº3, 23º, 82º, 118º), e com as autoridades da União Europeia que concentram informação relevante sobre as empresas

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e os titulares de órgãos sociais (artigos 16º, 22º, nº3, 23º, nº2, 30º, nº 7, 30º-D, nº8, 81º, nºs 2-4).

A cooperação e troca de informação é necessária à supervisão contínua (artigo 93º), embora no caso dos conglomerados exista uma difi culdade real em fi scalizar a adequação de quem desempenha em empresas não reguladas cargos funcionalmente importantes para as instituições de crédito, sobretudo se se tratar de empresas estrangeiras e de Estados pouco cooperantes. Tal não exime o regulador de procurar obter informação junto do regulador que possa ter tido previamente uma relação ou avaliação da pessoa em causa, sendo certo que as relações de supervisão constituídas no âmbito de nova regulação sobre empresas não fi nanceiras favorecem a obtenção e troca de informação. Pensamos na denominada regulamentação EMIR, de European Market Infrastructure Regulation que traduz a regulação e supervisão da negociação de contratos de derivados em mercado de balcão ou OTC por contrapartes fi nanceiras e não fi nanceiras 64.

Assiste-se a um movimento em que as autoridades comunitárias de regulação como a EBA e a ESMA centralizam, tratam e disponibilizam informação sobre a vida - e até sobre as sanções - de cada pessoa ou instituição (artigos 16º, 20º, 69º da Diretiva 2013/36/EU), bastando ao regulador a prova das diligências encetadas para afastar uma eventual responsabilidade por omissão.

O momento de heteroavaliação é também importante pela fé e força pública de que a Administração independente se encontra dotada: as pessoas já autorizadas por idóneas por outros reguladores do sector fi nanceiro dispensa, por regra, nova apreciação (artigo 30º-D, nº9).

64 A European Market Infrastructure Regulation reporta-se à regulação do mercado de contratos de derivados negociados em mercado de balcão mas também às contrapartes centrais e aos repositórios de dados sobre transações, vertida no Regulamento (UE) n.º 648/1012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012. Alterado entretanto, a legislação atualizada e respetivas normas técnicas encontra-se disponível em http://ec.europa.eu/fi nance/fi nancial-markets/derivatives/index_en.htm (consultado em 5.4.2016).

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Estes procedimentos de avaliação são diversos, e mesmo que a instituição conclua num relatório de reavaliação que uma pessoa deixou de ter idoneidade para o cargo tal não determina a sua suspensão ou substituição pela sociedade enquanto o Banco de Portugal mantiver a autorização – embora tenha o dever de o informar de imediato (artigo 30º-A, nºs6 e 9). Do mesmo modo, a demonstração positiva de factos que qualifi quem como idóneo e adequado um interessado não impede o regulador de rejeitar a nomeação – embora tal implique uma fundamentação particularmente exaustiva quanto às circunstâncias factuais e jurídicas que determinam este ato negativo face à informação e relatório apresentado pela empresa, com a prévia audição dos interessados e respetivo contraditório (e o mesmo sucederá nos casos em que entenda verifi car-se falta ou perda de idoneidade superveniente, artigos 114º, 121º-125º, 152º-153º CPA e 268º CRP).

VII. O conceito jurídico indeterminado “idoneidade”. A essencialidade da “norma-padrão” de comportamento perante as “normas-travão” dos “índices exemplifi cativos” (o undue process of law)

Mas em que se traduz esta idoneidade? Materialmente, uma

fi t and proper person é alguém que detém reconhecidamente experiência profi ssional, competência e disponibilidade para o cargo em causa, uma situação fi nanceira estável, e uma superior reputação, honestidade e comportamento ético pessoal reconhecido “inter pares”.

Estamos perante um conceito jurídico indeterminado (“idoneidade, que dê garantias de gestão sã e prudente” - artigo 30º do RGICSF), que tem de ter no seu preenchimento factual todas as variáveis referidas infra. Inexiste jurisprudência que permita densifi car o conceito, e a “praxis” administrativa dos casos concretos encontra-se encoberta pelo dever de sigilo profi ssional e de segredo bancário. A matéria de facto é essencial à formulação de um juízo (e à tutela judicial efetiva) quanto à pessoa, quanto à

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empresa e quanto ao cargo a exercer em concreto Como preencher em concreto o conceito indeterminado perante o vasto normativo legal?

Até à alteração do artigo 30º do RGIC (“Idoneidade dos membros dos órgãos de administração e fi scalização”) pelo Decreto-lei nº 157/2014, de 24 de outubro de 2014, a aferição da idoneidade era feita com base num padrão de comportamento descrito no nº2 (vertidas no nº1 do atual artigo 30º-D). Na apreciação de uma idoneidade que dá garantias de uma gestão sã ou prudente devia ter-se em conta “o modo como a pessoa gere habitualmente os negócios ou exerce a profi ssão em especial nos aspetos que revelem incapacidade para decidir de forma ponderada e criteriosa, ou tendência para não cumprir pontualmente as suas obrigações ou para ter comportamentos incompatíveis com a preservação da confi ança no mercado”.

Este padrão de comportamento habilitava o aplicador a preencher um conceito jurídico indeterminado. O legislador enumerou circunstâncias exemplifi cativas que podemos designar por “índices de inidoneidade de comportamento”, que se encontravam contidos numa tipicidade enunciativa de factos que permitiam ao aplicador formular mais facilmente um juízo prospetivo (nº3). O juízo de inidoneidade traduzia a aplicação do princípio da precaução supra referido: face a uma conduta pessoal e profi ssional anterior que por habitual ou reiterada, denotava características que formavam um padrão (“tendências”, “circunstâncias” ou “incapacidades”), pontuado por um usual incumprimento “pontual” de obrigações ou decisões imponderadas ou não criteriosas (“indícios”), o regulador inferia uma forte probabilidade de gestão imprudente ou malsã (“presunção de falta de “garantia”), que contrariava a necessária Confi ança.

Mas o padrão sobrepõe-se sempre aos “indícios” de presumida falta de idoneidade decorrente de factos objetivos vertidos no n.º 3 (vg. condenações por crimes comuns ou económicos); apesar dos mesmos poderia a autoridade entender que a pessoa cumpria com o padrão necessário ao preenchimento da cláusula geral (“gestão sã e prudente”). Isto é: o padrão de boa conduta não era

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afastado pela aplicação, ou mera enunciação, dos factos objetivos enumerados como “circunstâncias atendíveis” para indiciar falta de idoneidade65”.

Permitia-se ponderar o preenchimento e a fundamentação (necessária) do conceito jurídico indeterminado de idoneidade, no confronto entre bens constitucionalmente protegidos, dando ao aplicador e ao julgador uma enumeração enunciativa de índices. Estes índices legais baseavam-se em decisões judiciais desfavoráveis ao interessado mas a sua existência não determinava automaticamente a falta de idoneidade. A necessidade de os conjugar com as fi nalidades de prevenção no âmbito da supervisão prudencial afastando a automaticidade da consequência seria vertida no nº 6 do atual artigo 30º-D, para a avaliação inicial e para a avaliação subsequente66.

A jurisprudência entendia ser de exigir uma condenação judicial, por regra transitada em julgado, para a declaração de inidoneidade não violar os princípios da presunção de inocência, in dubio pro reo e proporcionalidade (artigos 32º, nº2, 18º e 266º, nº2 CRP e 7º-8º CPA) 67.

Porque a enumeração não era esgotante ou taxativa (estatuía a norma “entre outras circunstâncias atendíveis”,), a jurisprudência aceitava outros índices ou circunstâncias desde que pudessem “revestir uma gravidade análoga”. A ênfase era dada à existência de outras situações de condenação em processos judiciais68, porque

65 Catarino, 2010, 630.66 No sentido da automaticidade, o Tribunal Administrativo de Círculo de

Lisboa decidiu no Processo nº 197/02 que “verifi cada uma condenação por tais crimes, terá o Banco de Portugal de considerar imediatamente prejudicadas as condições de gestão sã e prudente da instituição em causa, com base num critério negativo de idoneidade diretamente estabelecido pelo legislador e, portanto, sem margem para outras apreciações.”

67 “O princípio de prevenção de riscos ou preservação da confi ança do mercado não é um princípio fundamental, enquanto o princípio da presunção de inocência constitui uma garantia constitucional do Estado Social e Democrático de Direito, inserindo-se na categoria dos Direitos, Liberdades e Garantias”, Acórdão do STA de 3 de Maio de 2005, processo 010009/04.

68 Segundo o STA, as situações análogas serão necessariamente factos, circunstâncias ou índices que possam fi rmar um juízo de inidoneidade por razões

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as circunstâncias ou índices elencados pelo legislador enunciavam situações que pressupunham um grau de certeza que se não compagina com meras dúvidas, suspeitas ou “dúvidas razoáveis”. Mas a condenação judicial necessária podia não ser sufi ciente: o Banco de Portugal está vinculado ao padrão e não aos índices. Na realidade, uma condenação não pode acarretar como consequência ou sanção automática uma capitis deminutio ou uma espécie de morte profi ssional num determinado sector de atividade (artigos 34º e 47º da Constituição). E perante o ex-artigo 30º também as decisões administrativas condenatórias de pessoas singulares pela violação de regras que regem o sector económico-fi nanceiro ou as leges artis não eram equiparadas às decisões judiciais exigindo-se uma decisão transitada - por maioria de razão, podemos dizer o mesmo de uma condenação administrativa sancionatória.

A aferição da idoneidade deve ser feita numa base casuística, atenta a gravidade do ilícito o comportamento posterior, a reiteração, a reabilitação e o tempo já decorrido69. O nº 6 do artigo 30º-D vem manter em letra de lei esta orientação.

Na autorização do exercício de profi ssão de uma pessoa em concreto também “não está (nem pode estar) em questão um interesse próprio do regulador que confl itue e se sobreponha ao do interessado. Não podem estes procedimentos prévios vir a ser utilizados de forma deturpada como pretensão informalmente sancionatória (defi nitiva ou “cautelar”), proibindo ou banindo do

essencialmente semelhantes às escolhidas pelo legislador. E o indicador comum seria a existência de decisões judiciais condenatórias transitadas em julgado, embora no artigo 30º as decisões administrativas ou judiciais condenatórias pela violação de regras que regem o sector económico-fi nanceiro em causa ou as leges artis não fossem pelo legislador equiparadas às demais decisões judiciais. No mesmo sentido o Acórdão do TCAS de 26 de Abril de 2012, 2º Juízo, Proc. 03836/08.

69 Neste sentido, vd The Fit and Proper test for Approved Persons (FIT) da FCA, relativo aos requisitos de fi tness e propriety, disponível in http://www.fca.org.uk/fi rms/being-regulated/approved/approved-persons/fi tness (consultado em 5.4.2016),

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meio profi ssional uma pessoa singular (sanção “encapotada” na recusa de autorização). Também não podem ser utilizados como um sucedâneo da condenação judicial, à míngua da possibilidade de um resultado condenatório (porque se encontra pendente uma investigação) ou de uma decisão fi nal (porque uma decisão administrativa condenatória se encontra em recurso, ou porque a AAI não conseguiu prova ou decisão em anterior processo de investigação ou sancionatório, ou mesmo para suprir a prescrição da responsabilidade). Não é igualmente aceitável que se afi rme que “a recusa ou cancelamento do registo não se baseia numa afi rmação negativa da idoneidade de certa pessoa, que a lei não exige, mas sim na falta de garantias positivas sufi cientes da idoneidade por ela oferecidas. Tal signifi caria que uma simples dúvida fundada constitui motivo legal de recusa ou cancelamento”70.

O atual regime manteve o caminho hermenêutico anterior mas é legalmente muito mais poroso e difuso (fuzzy legality), e não deve ser visto como uma “extensão” de um anterior estatuto de “indiciado”, arguido ou condenado imprescritível71. “Há que ver em cada momento o enquadramento da providência da Administração em termos normativos (…) ontológico e teleológico (…) assim se aferindo da sua verdadeira natureza. (…); é perigosa a utilização

70 Afastando qualquer consideração sobre a diferença entre risco e perigo, e avaliação a priori e a investigação a posteriori, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, em 9 de junho de 2009, no Proc. 197/02, perante uma investigação em curso pela CMVM por alegada participação num crime de abuso de informação, também decidiu ser aceitável e “normal” uma dupla relevância dos mesmos factos no plano criminal e no plano administrativo. Para além de se levantarem os cada vez mais relevantes problemas de bis in idem (Catarino, 2010: 732 ss), a ordem jurídica não pode ter duas decisões judiciais defi nitivas opostas sobre os mesmos factos e realidades.

71 “Uma doutrina da neo-retribuição que tenha como eixo central a memória, como elemento de reencontro necessário do “eu” (que é “nós”) consigo – e por isso a pena não é a pura manifestação de um mal, mas um bem porque necessária (enquanto pedaço de memória, enquanto chamamento e olhar para factos passados) ao livre desenvolvimento da personalidade – (…) pode e deve, perfeitamente, aceitar o esquecimento como uma outra dimensão inescapável das nossas relações com o passado” – Faria Costa, 2003: 1159.

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frequente deste mecanismo prévio de recusa de autorização simplesmente por virtude da prática de um ilícito anterior num juízo de censura que liberta a Administração da aplicação de princípios e garantias do procedimento sancionatório, o mesmo pode suceder em casos de cancelamento e revogação. O grau de Certeza e Segurança conferido por uma decisão judicial de condenação para interditar ou inibir a entrada na profi ssão (e a enumeração do artigo 30º RGIC assenta neste grau de certeza) não pode ser substituído na interdição ou inibição a posteriori pela mera convicção da Administração ou uma sua suspeita ou dúvida da prática de atos ilícitos ou irregulares (que sempre tem de provar (…)”72.

E na realidade a atuação administrativa a priori (aquando da autorização) ou a posteriori (cancelamento de autorizações e necessariamente dos respetivos registos, por factos supervenientes) não podem funcionar materialmente como uma nova sanção ou um forma de sanção perpétua, nem como “mera execução de decisões penais73”, nem sequer ser uma espécie de segunda via (ou second best) da ação sancionatória perante a falta de prova para acusação ou condenação. O atual articulado legal (art 30º-D, nºs 3, 5 e 6) criou um “lençol” normativo desordenado e difuso, em parte decorrente da Diretiva CRD IV mas em grande parte devido às Orientações vindas da EBA74, e às Instruções e Circulares do

72 Catarino, 2010; 630 ss e 719 ss.73 Nas palavras do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, de 9 de

junho de 2009, Proc. 197/02.74 As orientações versam verdadeiramente sobre a apreciação das qualidades

éticas, morais, cívicas da pessoa avaliada, numa análise profi ssional mas também pessoal. Na realidade as Orientações da EBA vão bem mais longe, e para além de estas Orientações elencarem atos e factos que o legislador nacional verteu em letra de lei, “são particularmente tidos em conta” como sendo “suscetíveis de levantar dúvidas sobre a idoneidade de um membro”, incluem-se as meras “investigações relevantes, presentes ou passadas, e/ou medidas coercivas” no âmbito das disposições que regem a matéria bancária, seguradora e de intermediação de valores mobiliários ou “quaisquer outras entidades reguladoras ou profi ssionais” (Ponto 13.5 das Orientações). Não entramos aqui na questão da força quase-normativa de tais Orientações criadas pela Autoridade ao abrigo do artigo 16º do Regulamento (EU) nº 1093/2010 supra citado.

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Banco de Portugal75. O aplicador do direito deverá tomar em conta não apenas decisões condenatórias, administrativas ou judiciais, transitadas em julgado ou não (nºs 3, 5 e 6), mas também a existência de uma mera acusação ou de uma pronúncia (nº5, alíneas b), c) e nº4, g). Num grau de legalidade ainda mais difusa temos de atender também aos meros “indícios” de possíveis ilícitos ou de falta de diligência na relação com o regulador, ou de “atos”, “factos” ou “razões” que tenham relação de pessoalidade ou de causalidade com outras decisões judiciais (artigo 30º-D, nº3, alíneas a), c), e), h) nº5, alíneas d), e) e f).

As Orientações da EBA no quadro do Sistema Europeu de Supervisão Financeira, atualmente em fase de revisão, foram bem mais longe do que as normas nacionais e comunitárias. A sua origem é claramente a prática anglo-americana e designadamente o “Fit and Proper test for Approved Persons” constante do Handbook aprovado pela FSA em janeiro de 2004. Incluia a ponderação dos factos subjacentes a investigações sancionatórias “relevantes”, “passadas” ou em curso … mas não explica se se distinguem os factos apurados e ainda em sede de supervisão! Claro que perante um indivíduo acusado ou sob investigação, se tal estatuto for público - sem violação pelo regulador do segredo de Justiça -, deverá o próprio ou a empresa inibir-se da nomeação sob pena de sanções jurídicas e sociais (naming and shaming). Mas estas normas (e por

75 A Instrução do BdP sobre registo de membros dos órgãos de administração e de fi scalização, (Instrução nº 30/2010 e a atual Instrução 12/2015, bem como a Carta Circular nº 2/2015/DSP sobre política interna de seleção e de avaliação dos membros dos órgãos sociais e titulares de funções essenciais – para além das regras e orientações relativas a governance) tem anexo um questionário em que as questões de idoneidade são colocadas sobremaneira em processos em que o interessado foi condenado (cíveis, criminais, contraordenacionais, disciplinares), ou procedimentos em que foi arguido ou que se encontrem em curso (incluindo processos por alegada violação de normas relativas ao exercício da profi ssão, da atividade comercial ou de atividades sujeitas à supervisão do Banco de Portugal da CMVM ou da ASFP) https://www.bportugal.pt/pt-PT/Supervisao/SupervisaoPrudencial/Paginas/Controlo-de-idoneidade.aspx (consultado em 5.4.2016).

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maioria de razão os instrumentos de soft law76) nunca poderão ser utilizadas como um undue processo of law que permite punir atos ou sancionar culpas individuais ou perpetuar sanções temporárias. De outra forma estaríamos a substituir o grau de Certeza na ordem jurídica decorrente “de uma decisão judicial de condenação, por uma mera convicção, suspeita ou dúvida razoável de um órgão administrativo, sob pena de violação do princípio da separação de poderes ínsito no artigo 2º da Constituição”77.

A interpretação errada deste normativo levará à criação de uma relação de supremacia ou de sujeição especial dos indivíduos face à administração, relação de sujeição a que é tradicionalmente associada como natural a compressão ou supressão de direitos, liberdades e garantias fundamentais78. A assunção de um padrão de conduta negativo decorrente de meros indícios ou suspeitas sobre uma pessoa traduziria uma espécie de “pecado original” da pessoa que Hobbes não desdenharia na sua conceção social e organizativa do Leviatã., Ademais, converteria a autorização, enquanto remoção de limites ao exercício de direitos pré-existens, em verdadeira licença enquanto pura atribuição de direitos. Finalmente, assim se reforçaria o poder público de supervisão pois tais poderes discricionários difi cilmente seriam sindicáveis.

É compreensível esta desconfi ança no “Homo oeconomicus” e a pretensa assunção ou reonhecimento legal de uma sociedade pós-Humanista, individualista e utilitarista, que promoveu um Homo

76 Acerca da transformação desta soft law da “autoridades” europeias em hoft law, normas com efeitos externos e hard pela sanção pelo não cumprimento, Catarino, 2012: 169.

77 Nas palavras do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa de 9 de Junho de 2009, Proc. 197/02, “Ainda que se aproximasse o princípio da preservação da confi ança do mercado do interesse público, aquele princípio não pode justifi car o sacrifício ou compressão de direitos do cidadão tão fundamentais quanto o princípio da presunção de inocência”.

78 No sentido de que estamos perante poderes vinculados os já referidos Acórdãos do STA de 3 de Maio de 2005, Proc. 010009/04, e do TCAS de 26 de abril de 2012, 2º Juízo, Proc. 03836/08.

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homini lupus que na luta e competição pelo dever ter esquece o dever ser recorrendo a práticas desonestas. As normas jurídicas seriam a mera proteção de um ecossistema. Mas ao assumir esta fi nalidade a regulamentação pública tornar-se-ia perversa pois protegeria a alcateia e os interesses já estabelecidos em detrimento da sã concorrência, da liberdade de iniciativa e de empresa, da atomicidade e da renovação.

Para evitar esta armadilha e possíveis inconstitucionalidades, o legislador guiou-se pelos princípios da necessidade, da proporcionalidade e da adequação e criou um sistema de “pesos e de contra-pesos”. Como? Criou “normas-travão” nos nºs 2, 4 e 6 do artigo 30º-D. Tendo em conta os inumeráveis atos, factos, indícios e circunstâncias enunciados na lei e desenvolvidos em soft law, estas normas-travão são um segundo estádio de valoração e de afastamento de qualquer “juízo automático” do intérprete, que levará igualmente a comple(men)tar o “critério-padrão de idoneidade” vertido no nº1 do artigo 30º-D. Assim, há que verifi car o impacto do tempo decorrido desde as circunstâncias ou atos em causa, a sua gravidade e também a eventual repercussão sobre a reputação de uma empresa, a conduta posterior da pessoa e, inter alia, se houve práticas que demonstrem reabilitação - nos casos de condenação - ou de explicação de circunstâncias explicativas nos casos de investigação. Sempre com o necessário contraditório, vg audição e apreciação das explicações da pessoa em questão.

Neste percurso hermenêutico tortuoso, o intérprete/aplicador deve guiar-se pelos princípios constitucionais da proporcionalidade e da restrição das restrições, e ainda pelos princípios da igualdade e da não discriminação de tratamento (imparcialidade, razoabilidade, Justiça e isenção), para que a valoração e consequente juízo de prognose póstuma da norma-padrão não redunde num desvio de poder. Se os próprios índices legais de ponderação da falta de idoneidade visam apenas formar uma convicção sem afastar “ab initio” o “comportamento padrão” que completa o conceito indeterminado (idoneidade, para uma boa e sã gestão), muito menos se poderá basear uma recusa numa mera subjetividades. Pensamos

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nos casos em que esta se baseie na mera existência de “indícios” ou em que, “no fi nal do processo de avaliação e considerando todos os elementos recolhidos, subsista uma dúvida, objetivamente fundada, sobre essa mesma idoneidade”79. Conforme referido supra, não se pode exigir uma prova que afaste todo o risco mas uma prova que o diminua para o risco aceitável, de uma forma discricionária e não arbitrária, juridicamente sindicável junto dos Tribunais das liberdades e garantias.

O reforço dos poderes intrusivos, ablatórios e de restrição do Banco de Portugal tem como contrapartida o ónus da prova. Aos interessados não cabe a diabólica prova positiva de que são idóneos, mas a junção de todas as informações e documentos necessários para uma decisão administrativa justa, imparcial e de boa-fé. Como sucede sempre que se atua sob o manto diáfano do princípio da precaução , fundando-se o ato num juízo de prognose potencialmente confl ituante com direitos fundamentais, a sua fundamentação tem de assentar em critérios de natureza objetiva (prognose póstuma objetiva). A gravidade, reiteração ou habitualidade de atos, razões ou indícios fundarão uma forte probabilidade de inidoneidade (i.e., uma falta objetiva de garantia de gestão sã e prudente segundo as melhores práticas). Só assim a garantia da gestão sã e prudente pode ser ponderada sob as vestes da imparcialidade pública:

i) Imparcialidade subjetiva, enquanto “ poder-dever de não prejudicar ou privilegiar um administrado e de atuar através de uma justa, ponderada e proporcionada ponderação dos interesses em presença. Uma decisão não é meramente um ato de conhecimento (fact-fi nding), mas também um processo de personalidade e formação de vontade (sobre factos ou sobre aplicação de norma) pelo que, tal como no âmbito jurisdicional, deve estar o mais possível afastado

79 Neste sentido vai o Livro Branco do Banco de Portugal sobre a regulação e supervisão do setor fi nanceiro, publicitado em maio de 2016, e disponível in http://www.bportugal.pt/pt-PT/PublicacoeseIntervencoes/Banco/OutrasPublicacoes/Documents/LivroBranco2016.pdf (consultado em 5.4.2016).

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o erro sobre a realidade ou qualquer interferência de circunstâncias exteriores”, e

ii) Imparcialidade material, pois “num sentido material a imparcialidade decorre da independência objetiva de atuação do regulador enquanto ”parte imparcial”. Faz-se apelo às suas funções e organização específi cas, e ao sistema de garantias criado para garantir o afastamento de toda a dúvida legítima sobre a imparcialidade através da função e procedimento. Já não se tem em vista afastar um “pré-juízo” mas um “pré-julgamento” dos reguladores independentes”80.

Finalmente, não esqueçamos que a Certeza e a Segurança continuam a ser princípios fundamentais do Direito, com especial enfoque nos fi ns de controlo e garantia nas relações da Administração com os administrados. Sendo essencial o cumprimento do bloco de constitucionalidade perante a porosidade normativa e os conceitos difusos, a aplicação nacional do normativo e sua importância no âmbito da União (pelo single entry point autorizatório e pela procura de um level playing fi eld) determinam que a par das orientações que densifi cam os conceitos e uniformizam os critérios de decisão, seja publicitada pelo regulador a policy regulatória.

A proteção da Confi ança dos regulados também serão reforçadas se se proceder com transparência e tal implica full disclosure das decisões administrativas concretas sobre idoneidade - salvaguardando os direitos ao bom nome e à privacidade dos visados quando não estejamos perante atos sancionatórios complementares ou acessórios e sujeitos à sanção de publicitação necessária. Esta política de transparência constitui também um meio de afi rmar a independência e a imparcialidade e de afastar quaisquer alegações futuras de discriminação, de falta de imparcialidade ou de independência dos reguladores na comparação da aplicação de medidas diversas a pessoas com idênticas funções numa mesma empresa ou grupo, reforçando a Auctoritas necessária ao regulador.

80 Catarino, 2009: 308 ss (para “independência” administrativa) e 318 s (para uma análise dos conceitos de imparcialidade resolutória, imparcialidade subjetiva e imparcialidade material).

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Conclusão. A necessária idoneidade ou probidade pessoal para o exercício de uma profi ssão não é um requisito pós-moderno, sendo de há muito conhecido do nosso direito societário. Ter “a idoneidade necessária” é possuir conhecimento, competência e experiência sufi cientes para as funções a desempenhar em concreto, fazendo simultaneamente apelo a uma conduta moralmente acertada de adesão continuada ao respeito pelos compromissos assumidos, seja por contrato, seja por regras de conduta ou por códigos éticos internos de uma instituição. Paredes meias com a integridade, a probidade pressupõe também uma conduta conforme os padrões de cooperação e informação com quem se estabelece uma relação jurídica de subordinação ou de supervisão, superiores hierárquicos ou reguladores públicos.

As sucessivas alterações ao regime das idoneidades efetuadas no Regime Geral não simplifi caram o quadro em que se move o regulador bancário. A reação epidérmica em que se traduziu o Decreto-Lei nº 157/2014, de 24 de outubro (infl uenciado pelo princípio de que “onde não há ética todos falam de ética) ”, criou um regime de forte controlo administrativo da “adequação” pessoal. Existe no entanto uma forte desproporção entre as normas que regulam as questões de “idoneidade”, e as normas sobre “qualifi cação profi ssional”, ”independência”, “disponibilidade” e muito em particular sobre “confl ito de interesses”. A falta de proporcionalidade do regime talvez decorra do facto de o problema essencial da independência pessoal, profi ssional e de espírito tentar ser prosseguido e solucionado por poderes hard baseados uma norma etérea, vaga e indeterminada (“idoneidade”) que parece convocar a Ética, a Moral e a Conduta Social (“habitualidade”).

À falta de defi nições o legislador optou por recorrer a uma norma-padrão que constitui uma cláusula aberta para cuja aplicação utiliza uma enumeração de índices, factos, atos e circunstâncias que possibilitem fundar juízos de probabilidade ou de prognose sobre comportamentos individuais que garantam uma gestão sã e prudente de empresas. Existem requisitos objetivos que se prendem com a natureza e complexidade do cargo a exercer, com o tipo de

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entidade em causa e com as atividades para as quais a pessoa é nomeada. Os requisitos subjetivos respeitam à experiência própria, aos conhecimentos, à integridade e honestidade do próprio na sua conduta própria e com os outros (e, sendo o caso, com os reguladores). Não é um apelo à averiguação das convicções internas da pessoa ou à sua formação mas à forma como se conduz e comporta, à sua prática ou habitualidade – à exteriorização da Ética individual perante a observância das regras da Moral. O primeiro controlo de tais requisitos deve ser feito pela empresa face à sua cultura interna, aos seus objetivos e à função a desempenhar, às competências inerentes ao posto ou estatuto na empresa e na hierarquia. São de há muito elementos essenciais a que todo o ser humano se enquadre num espaço que será a maior parte da sua vida, aí se realize pessoal e profi ssionalmente e possa prosseguir o interesse da empresa. O cumprimento de tais requisitos pressupõe a existência de órgãos, internos e externos, com competência para a sua orientação e controlo, a defi nição de regras internas de conteúdos claros e de linhas de reporte e cooperação e cadeias de controlo interno. Estas regras devem estar vertidas em procedimentos e políticas internas de defi nição de funções e de avaliação de perfi s, bem como de regras de corporate governance81. É sabido que um importante fator preventivo da prática de atos irregulares ou ilegais decorre da possibilidade de responsabilização direta de senior managers, e tal pode ser facilitado pela defi nição de relações funcionais na estrutura interna.

Tais políticas internas, que deverão ser alargadas a requisitos de governance e que poderão ser completadas através de elementos relativos a confl itos de interesses, deverão abranger também cargos

81 Neste sentido, vd as Orientações da Autoridade Bancária Europeia sobre a governação interna das instituições, de 27 de setembro de 2011, que trata expressamente das qualifi cações do órgão de administração e de fi scalização, bem como do controlo organizacional interno, avaliação e sistemas de alerta, disponível em https://www.eba.europa.eu/documents/10180/103861/EBA_2012_00210000_PT_COR.pdf (consultado em 5.4.2016).

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de senioridade e funções essenciais ou críticas objeto de explicitação e de revisão contínua (responsáveis pelo controlo de risco, pelo compliance, pelo controlo e auditoria interna, pelo controlo fi nanceiro, pela prevenção e luta contra atos de branqueamento de capitais).

Entramos num registo em que a vertente objetiva se soma à subjetiva, pois são igualmente importantes as competências e as capacidades concretas ou pessoais (perante as exigências para uma dada atividade), vertidas na experiência académica, na experiência profi ssional (nível de estudos, anos de experiência profi ssional, cargos de direção anteriores ou similares), no conhecimento de áreas específi cas da atividade em que a empresa atua (mercados fi nanceiros lato sensu, governance, controlo de risco, contabilidade bancária, produtos fi nanceiros). O perscrutar do interior da pessoa tem necessariamente de ser feito mediante recurso a índices externos e objetivos que possam fundamentar juridicamente o ato da Administração. A honestidade e a integridade podem até um ponto ser objeto de escrutínio pelo passado, pela conduta conhecida e pela diligência encetada em cargos anteriores porque nada substitui esta solidez pessoal e fi nanceira e reputação sobretudo se adquiridas no próprio meio em que se vai inserir.

Mas se tal é necessário também não é decisivo. Nenhuma forma de controlo público ou privado substitui a falta de ética no quotidiano de qualquer profi ssão. Se a ética está hoje na moda tal deve-se precisamente à sua crescente falta em múltiplos domínios da sociedade. A ética refere-se ao interior das pessoas, ao seu carácter, princípios, valores intrínsecos (êthos). Mas para além deste modo de ser e sua refração externa, também indica o modo de agir habitual ou Moral, que com os Costumes se traduz em ações e normações concretas. São estas vertentes da conduta pretérita e não qualquer perscrutar da interioridade ou subjetividade Moral ou dos Valores de um indivíduo em concreto que deverão ser apreciadas, descritas e fundamentadas aquando da formulação de um juízo positivo ou negativo de idoneidade. É verdade que a atual Era é de Sacralização do individualismo. O Homo oeconomicus

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individualista e solitário diverge claramente do Homos juridicus da tradição grega e da escolástica: as teorias do mercado e da economia e a procura a satisfação do self interest invadem toda a realidade – pública, privada, social, familiar, política. Baseada numa (nova) Religião pessoal de sucesso fi nanceiro e de “fundamentalização” dos Mercados, é natural a subalternização do interesse público e da Justiça social e a tendência para a Captura do Estado regulador por ecossistemas pessoais e por ecologias profi ssionais que se auto-perpetuam (políticas, fi nanceiras e administrativas a cujo círculo pertencia “Bernie” Madoff). Nesta senda, nada mais natural que bramar pela entrega dos Mercados a personalidades Imaculadas (com passados “in albis”), à regressão do Self e integração num grupo (regresso ao contrato da sociedade), à expiação pública das condutas incorridas em pecado fi nanceiro (se possível, com irradiação ou danação eterna).

Não se pode pretender substituir o Direito e a autoridade pública por um chamamento de outras pretensas formas de legitimação e normação de condutas, como a Ética (os escândalos fi nanceiros sucessivos ocorridos desde a década de 90 demonstram-no à saciedade). A regulação de condutas profi ssionais e o controlo comportamental não repousam já em “guildas” ou “associações profi ssionais” ou em “clubes de gentlemen” – e tão pouco em Tribunais excluídos do diálogo técnico-regulatório. A regulação repousa no poder público administrativo, certamente técnico mas dotado de Potestas.

Com uma regulação inicialmente dominada pelo paradigma da autorregulação, as sucessivas regulatory failures têm-nas feito caminhar para a heteroregulação. O direito administrativo da regulação contém peculiaridades liberalizantes como a substituição do Estado administrativo “licenciador” pelo estado administrativo “supervisor”, movimento de libertação da sociedade civil da intervenção pública. Paradoxalmente, os procedimentos administrativos de autorização e verifi cação prévia transformaram-se em práticas de supervisão essenciais após o movimento de privatização da atividade fi nanceira e implica novas formas de

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intervenção pública. A libertação da sociedade civil demonstrou uma vez mais a necessidade de maior vigilância e fi scalização, pelo que o legislador e a administração reguladora municiam-se de novos meios que permitem escrutinar exaustivamente a vida pessoal dos profi ssionais que operam em instituições reguladas.

A regulação administrativa tradicional foi sendo substituída por uma atividade administrativa informal que neste tema se revela não menos intrusiva e hard, de troca de impressões ou de informações vg com outros reguladores, com os supervisionados e os sancionados e demais interessados. A natureza independente e imparcial da nova administração reguladora impõem que no perscrutar de condutas pessoais a Auctoritas do regulador se sobreponha à sua Potestas – com as vantagens e os riscos inerentes. Esta opção impõe simultaneamente que os órgãos que prosseguem e defendem o interesse geral sejam proactivos e não repousem meramente nas informações que lhe sejam enviadas, sendo a possibilidade de responsabilidade por omissão ou erro na tomada de medidas, com a culpa in vigilando a pedra de toque da atividade. Os agentes de mercado têm de assumir um papel de autocontrolo e de autovigilância e denúncia que é reforçado por uma forte responsabilização pública e privada, in eligendo e in vigilando.

O tema das idoneidades entronca com o tema da governance das instituições de crédito que foi objeto de “ossifi cação” regulatória (longe vão os tempos em que os seus princípios decorriam de meras Recomendações e que eram anualmente premiadas as instituições que demonstrassem as best practices). Um dos elementos essenciais para a autorização das instituições é estas contarem com estruturas de governo e de organização claras e adequadas, orientadas a criar uma cultura geral de controlo de risco sólida, com linhas de responsabilidade bem defi nidas. Se existir uma cultura de honestidade, cooperação e competência top-down, mesmo que existam indivíduos desonestos a interiorização coletiva de valores éticos, morais e sociais cria uma tendência comportamental nas organizações e nas pessoas que é deontologicamente correta. É essencial que se criem políticas internas (padronização), vertida em

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letra de lei interna (regimentos), de onde constem orientações que permitam de forma clara decidir e controlar a admissão a aptidão de uma pessoa singular para o exercício de um determinado cargo ou função.

Não decorre desta responsabilidade das empresas e das pessoas uma desresponsabilização pública. A criação dos reguladores independentes teve como fi to evitar a politização e a captura pela partidocracia da Administração económica e fi nanceira - embora acabem a mais das vezes por servir de álibi ao poder político nos maus momentos da economia ou da regulação. Confi ar o controlo e vigilância do sistema fi nanceiro a vários gatekeepers não exime a Administração, do Governo aos reguladores independentes, da responsabilidade pelo cumprimento dos seus deveres funcionais dando a sua actividade corpo à máxima “diz-me que Administração tens e dir-te-ei em que Estado de Direito vives”.

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A NOVA REGULAMENTAÇÃO DOS MERCADOS FINANCEIROS

- UM TSUNAMI REGULATÓRIO? ( PARTE I).

Sumário: O Action Plan aprovado pelo G 20 em Washington em 14-15 de Novembro de 2008, posteriormente concretizado pelo Financial Stability Board (FSB), pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Comité de Basileia (CSBC), iniciou um ciclo de forte regulação reactiva à Grande Crise iniciada em 2007. Pretendemos dar informação sobre alguns dos (muitos) desafi os que nos esperam nos próximos anos, e este primeiro artigo debruça-se sobre parte da nova regulamentação e seu impacto económico sobre as instituições. Assim, é essencial uma palavra sobre a nova União Bancária e os desafi os que colocará uma supervisão “federal” e uma regulação administrativa escassa de accountability; a criação de um sistema de identifi cação global de transacções fi nanceiras obrigatório para todas as empresas, fi nanceiras e não fi nanceiras (sistema LEI); a regulação da negociação de contratos de derivados em mercado de balcão ou OTC, e as novas obrigações criadas para uma efectiva supervisão (regulação EMIR); ou a revisão da legislação fundamental sobre mercados de instrumentos fi nanceiros para acomodar as novas realidades, vg electrónicas (MiFID II/MiFIR). A unifi cação regulatória é um processo longo e moroso perante espaços económicos concorrentes, e as eleições europeias, a divisão entre estados intra e fora Zona Euro, e o referendo na Escócia (e repercussões secessionistas) e o referendo no Reino Unido em Junho de 2016 sobre a saída da União Europpeia não ajudarão. A par da descrição das novas medidas e seu impacto, levantaremos, como é mister num ambiente também académico, algumas questões que deverão ser ponderadas para que este “tsunami” regulatório avassalador não potencie market ou regulatory failures.

Luís Guilherme CatarinoManuela Peixe1

1 Director-Adjunto na CMVM a desempenhar funções de Assessor Jurídico da Sua Excelência a Presidente da Assembleia da República) e Professor Auxiliar

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I. Introdução – a crise global enquanto detonador da re-regulação.

No dia 9 de Agosto de 2007 o BNP Paribas comunicou ao mercado a suspensão dos resgates de unidades de participação de alguns fundos que tinham investido fortemente no mercado norte-americano de subprime dada a declarada incapacidade de avaliação de alguns destes activos. Perante a Grande Crise então iniciada e que se desenrolaria em 2008-2010 com tonalidades dramáticas, o G20 assumiria em Pittsburgh, em Setembro de 2009 um compromisso perante o Mercado: o incremento da transparência, da regulação e da integridade dos mercados fi nanceiros, de que é o melhor exemplo a afi rmação de que “All standardized OTC derivatives should be traded on exchanges […] cleared through central counterparties […] OTC derivatives contracts should be reported to trade repositories”.

Durante a década de oitenta assistimos a um Mundo que foi perdendo as suas referências nacionais, sejam sociais e culturais, sejam morais e políticas. A globalização, desintervenção pública e desregulação da economia tornou-a instável e sistemicamente perigosa, numa instabilidade em que a progressiva perda do poder económico e seu controlo pelos Estados nacionais foi de par com a perda da sua soberania. O crash da bolsa norte-americana em 1987 (caiu 22,5% no dia 19 de Outubro desse ano), seguira a recessão Volcker (de Julho de 1981 a Novembro de 1982) e entre 1989 e 1991 assistimos à falência de instituições norte-americanas especializadas em créditos hipotecários denominadas de savings and

da Faculdade de Economia da U.A.de Lisboa. Técnica-Superior na CMVM, em exercício de funções em Paris, na European Securities and Markets Authority. O presente texto não obedece à nova ortografi a aprovada por Resolução de Conselho de Ministros, e corresponde à versão actualizada e prestimosamente complementado pela Sra. Dra Manuela Peixe, dos Seminários leccionados no Instituto de Valores Mobiliários em 2013 e fi nal de 2014 relativos às novidades decorrentes dos novos regimes comunitários MiFID II/MiFIR/EMIR. As opiniões expendidas são naturalmente pessoais.

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loans (S&L). A crise de câmbios (e do Sistema Monetário Europeu) ocorrida desde 1992, o excesso de petrodólares e dinheiro barato que levara já nas décadas de oitenta e noventa a graves e sucessivos problemas de criação e pagamento de dívidas públicas (nos Estados da América do Sul, na Ásia, incluindo a Rússia, e na Argentina em 2002), levou alguns Autores a alertar para a similitude com o sucedido nas décadas de recessão que se seguiram ao “Grande Pânico” de 1873. Também então a segunda fase da Revolução Industrial levara a um crescimento de situações de monopólio, a uma actividade fi nanceira especulativa com recurso ao dinheiro do público (vg para fi nanciar a “railwaymania” e mais tarde o esforço da I Guerra Mundial) e ao aumento do crédito imobiliário decorrente do sucessivo aumento de preços. A súbita insolvência de algumas instituições na Europa geraria um medo irracional e generalizado por parte das fortes instituições fi nanceiras britânicas que determinou a cessação do crédito e consequente default de entidades públicas e privadas, com um efeito sistémico na Europa mas sobretudo nos EUA2.

Tal como então o medo levou à paralisia bancária e gerou a primeira grande Recessão do novel regime capitalista global, os avisos de fi re alarm com que entrámos no séc. XXI foram acompanhados de um medo paralisante, ante a comparação com o passado e com os seus efeitos. Mas num momento de bull market e de euforia fi nanceira perante dinheiro barato quais os políticos que ousariam contrariar a aparente prosperidade dos Povos que sempre acompanha a criação das “bolhas” especulativas - no crédito, no imobiliário, nas bolsas de valores com a criação de produtos complexos com promessa de taxas de rendimento elevadas? O aumento (permanente) do desemprego (com a nova era tecnológica), o crescimento inusitado das dívidas, pública e privada (com grande culpa dos credores bancários que perante dinheiro “fácil”

2 Eric HOBSBAWM, 1987, A Era dos Impérios 1875-1914, Paz e Terra, RJ, p. 43 ss.

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e barato o “ofereceram” sem proceder à due diligence sobre os mutuários – pessoas singulares ou colectivas, incluindo Estados), o aparecimento da miséria, típica de países subdesenvolvidos, nas economias mais desenvolvidas (visível nas ruas dos EUA ou da União Europeia, com centenas de milhares de pobres e sem-abrigo), apareceram com o paradoxo da crescente desigualdade económica e social nacional. O estabelecimento estrutural de fenómenos de desemprego e sub-emprego dos factores de produção (mesmo de de miséria) nos Estados ocidentais de tal forma que a actual distribuição do rendimento em crescentes partes do Globo apenas tem paralelo em sociedades pós-medievais), desembocariam na assunção de uma Grande Crise que afastou pruridos (porventura já esquecidos) de comparação com os mal-afamados anos 30.

No âmbito empresarial e fi nanceiro o fi m do século passado fora marcado por más experiências. O primeiro sinal fora dado nos fi ns dos anos 80 pela falência do mega-fundo Long Term Capital Management onde capitalizavam como gestores alguns dos mais recentes prémios Nobel de Economia. A intervenção rápida dos poderes públicos não deixou que o sinal fosse muito atendido. Seguiram-se as falências decorrentes de “criatividade contabilística” e do desvio de actividade para actividades especulativas sobre derivados, de algumas das maiores empresas do mundo (Enron, Worldcom). Os escândalos corporativos decorrentes da prevalência dos interesses dos administradores sobre o dos accionistas e stakeholders, com a obtenção de prémios ou bónus de desempenho milionários e outras benesses como empréstimos pessoais pelas próprias empresas que violavam regras elementares de corporate governance chegaram a atingir o ex-Presidente dos EUA, George W. Bush. O posterior “rebentar de bolhas” fortemente especulativas que retiraram riqueza aos investidores - primeiro das empresas “dotcom” ou de forte inovação tecnológica, depois na especulação imobiliária, fi nalmente nos produtos fi nanceiros complexos construídos sobre títulos hipotecários e outros valores mobiliários típicos. Mesmo os sinais decorrentes das dramáticas situações de insolvência ou de pré-insolvência de instituições

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de crédito de elevada reputação mundial, decorrentes de falta de controlo interno face ao Admirável Mundo Novo da negociação de contratos de derivados – são típicos os “casos” Barings ou Société Générale – foram desprezados. O explodir das “bombas de destruição em massa“ (como lhes chamou Warren Buffet) em que se traduziu o mundo dos derivados OTC e dos produtos fi nanceiros complexos devidamente “embalados” e superiormente rotulados por pressurosas empresas de rating (empresa recém-cotadas em bolsas de valores em que os dividendos dos seus accionistas falavam mais alto que os interesses dos credores e do público investidor em produtos dos seus clientes) enredou não só empresas fi nanceiras (são exemplos a GE, a GM e a ENRON) mas também algumas das maiores fi nanceiras (mais cedo o Barings, mais tarde uma sucessão horribilis de empresas de dimensão mundial como a seguradora AIG ou o Lehman Brothers).

Ganharam relevo as queixas pela alegada omissão de regulação e de supervisão pelos poderes públicos decorrentes do “transvase” e da cultura de “clube” dos gestores fi nanceiros. Este transvase de gestores baseava-se, de forma pouco transparente mas hoje mais clara, na actividade política, e indistintamente no desempenho de funções no sector privado e no sector público. Muitos dos que passam para o board dos reguladores vão regular os seus ex-empregadores. Os fi lmes e documentários feitos a propósito da grande Crise iniciada em 2008 focaram desabridamente este tema das ecologias profi ssionais e do denominado “Washington corridor” (exemplo típico da circulação entre corredores e cargos políticos, de regulação e de gestão de empregados da Goldman Sachs, denunciado para espanto geral), a “fi nanciarização” sucessiva da denominada “economia real” (Bernanke put) e “casos como o de Bernard Madoff, deixaram uma mancha indelével sobre os melhores reguladores mundiais.

A par da perda de riqueza e de valor que atingiu grande parte dos clientes e dos investidores nos mercados, a existência de economias transnacionais para empresas internacionais trouxe consigo as instituições fi nanceiras globais que pela sua dimensão

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e interconexão com as demais e os mercados, assumiram já um cariz de “bem público global”. Tal natureza implicou inicialmente difi culdades graves na supervisão, sobretudo pela existência de holdings de instituições de crédito em Estados que praticam uma política regulatória de race to the bottom (caso do Luxemburgo), de instalação de sucursais e fi liais em “países-paraíso” (porque tax heaven ou porque não cooperantes na rede regulatória internacional), de participações cruzadas que permitiam aproveitar os gaps regulatórios decorrente da aplicação de várias regulações nacionais. São já esquecidos os escândalos fi nanceiros ocorridos nos anos 80 com o Bank of Credit and Commerce International (BCCI3) e descoberta de fortes ligações e negócios com o Cartel de Medellin, com Manuel Noriega, Ferdinand Marcos, Saddam Husseim ou Abu Nidal, ou casos como o Banco Ambrosiano e suas ligações à loja maçónica P2 (e alegadamente ao Banco do Vaticano). A globalização e a (velha) política de campeões nacionais tornou-as de tal forma essenciais para a economia global que em caso de difi culdades fi nanceiras a sua sobrevivência tem de ser assegurada. Caso contrário seria enorme o efeito negativo decorrente do contágio a outras empresas e mercados fi nanceiros, e daí às economias que se encontram sujeitas a uma rede de “fi nanciarização”. As principais instituições com risco sistémico são denominadas de global systemically important fi nancial institutions ou G-SIFIs e de global systemically important banks ou G-SIBs. O problema crismado de too big to fail, resulta de estas

3 Fundado inicialmente por um paquistanês no início dos anos setenta (a ideia era criar um maior banco muçulmano do Mundo), registado no Luxemburgo e com sede em Londres e em Karachi, nos anos oitenta era considerado um dos maiores do Mundo com centenas de fi liais e sucursais operando em 73 Estados (foi encerrado em 1991 por reguladores de 63 Estados). Tornou-se suspeito i.a. pela aquisição de uma instituição de crédito norte-americana mas na realidade os inúmeros crimes de que se alimentava, desde lavagem de dinheiro a tráfi co de armas e de pessoas (incluindo rapto, extorsão e assassínio), fi nanciamento de terroristas, corrupção a funcionários públicos e a enormidade de outros crimes levou a apelidá-lo de Bank of Crooks ans Criminals International.

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sociedades agirem internacionalmente mas morrerem localmente; tal implica a necessidade de intervenção das autoridades nacionais (e a mais das vezes das fi nanças públicas, mesmo quando se propaguei-a a virtude dos “bail in”), em caso de difi culdades ou insolvência fi nanceira.

Face aos resultados nefastos de décadas de desregulação e mundialização de políticas económicas liberais, assistiríamos ao paradoxo da necessidade da intervenção e direcção do poder público sobre a economia e o sistema fi nanceiro. Por vezes autorizando e suportando intervenções de grandes instituições sobre pequenas instituições insolventes (caso do Bear Sterns adquirido pela J.P. Morgan ou da Merril Lynch pelo Bank of America, respectivamente em Março e Setembro de 2008); à opção pela pura e simples declaração de falência ou insolvência de instituições que nalguns casos trouxe efeitos traumáticos (caso do Lehman Brothers em 15 de Setembro de 2008); à intervenção para cisão de actividades ou de activos dos bancos “bons” (good bank) e criação de bancos que fi cassem com os produtos “tóxicos” (bad bank); as nacionalizações (casos do Northern Rock em 17 de Fevereiro de 2007, após uma corrida aos levantamentos que não tinha paralelo desde 1930, ou das especialistas hipotecárias Fannie Mae e Freddie Mac em Março de 2008). Assistiu-se também à intervenção pública na gestão de empresas privadas através da injecção de importantes dinheiros públicos em sociedades fi nanceiras com mais um paradoxo: da socialização do risco e das perdas através de um transvase de riqueza das Nações para os grandes credores e stakeholders privados - usualmente estrangeiros. O bailout da AIG, que anunciou a sua insolvência no dia 16 de Setembro de 2008, implicou um dispêndio superior ao valor despendido com o apoio social público norte-americano entre 1990 e 2006 – US$180 biliões4). E podemos continuar, com a injecção de liquidez no sistema fi nanceiro - em

4 Joseph SITGLITZ, 2012, The Price of Inequality, Penguin Books, NY, p.391 ss.

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2008 a Federal Reserve anunciava programas de Quantitative Easing e a disponibilização imediata de US$600 biliões…e era apenas o começo de um programa posteriormente adoptado na União Europeia pelo Banco Central Europeu (programas sempre acolhidos ”em alta” pelos mercados bolsistas).

O Mundo também mudou nos anos 90. A par dos riscos sobre a estabilidade dos mercados e das externalidades negativas decorrentes da concentração de empresas fi nanceiras e do alargamento em larga escala da sua base de actividade, a globalização da economia foi acelerada por novos meios tecnológicos. A entrada de novos Estados nos diversos sectores de mercado e do comércio mundial, muitos dos quais tinham vivido da agricultura e da venda de matéria-prima aos Estados desenvolvidos, trouxe novos problemas de concorrência e de translação da pobreza para os países ricos. Face ao dinheiro barato que os bancos centrais colocaram nos mercados, assistiu-se a uma baixa taxa de juro e o dinheiro barato levou à natural propensão para o consumo - natural porque os consumidores não são tão desinformados nem negligentes como mais tarde os credores (negligentes) quiseram fi zeram crer!. As baixas taxas de juro também levaram à procura de taxas de rentabilidades mais atractivas, o que levou ao Admirável Mundo Novo dos derivados e de produtos fi nanceiros complexos. Tal movimento especulativo teve pouca expressão na economia real, i.e., na criação estrutural de emprego e na compra de bens de capital. Pelo contrário, teve forte expressão na realidade fi nanceira, nos mercados “bolsistas” e nos mercados bancários com a criação e investimento em produtos fi nanceiros muito complexos (“estruturados” de tal forma que a sua análise e investigação pelos próprios reguladores os demonstraria indecifráveis), de alto risco (teorizava-se que o alargamento da base do risco pela criação de inúmeros produtos e sua disseminação diminuía o risco global). A sua produção e venda em larga escala alargou o risco porque as próprias instituições fi nanceiras que os criaram neles investiram, e vendê-los-iam a outros intermediários e aos clientes numa cadeia que geraria insolvência. O transbordar dos Estados soberanos pela economia e pelo mercado criou novos

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Actores no plano internacional, entidades que defenderam este movimento de fi nanciarização worldwide. Os poderes soberanos passaram para o Comité de Basileia, para o G7, G8, G10 alargado a G20, para o Bank of International Settlement (BIS) para o Grupo Banco Mundial, para o BCE (e dentro dele órgãos que deveriam ser de mera supervisão, como o Mecanismo Único de Supervisão ou MUS), para a Comissão Europeia (e dentro dela instituições inorgânicas como o Eurogrupo), ou o FED (sistema de instituições que constituem a Federal Reserve norte-americana). Mas todos assentaram, após 2007, em que era premente uma regulamentação dos mercados que “ordenasse e quando possível controlasse” a liberalização e o fenómeno da globalização.

Solicitou-se a associações internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial ou o Financial Stability Board (FSB) o empenho em novas medidas de estabilização dos mercados e de contenção de risco. Verifi caram-se mudanças institucionais, pois a crise levaria, a partir de 2009, a uma maior preponderância do G20 mas também à transformação do Financial Stability Fórum criado em 1999 após a crise asiática, num Financial Stability Board – FSB - globalmente inclusivo. O FSB composto por representantes dos executivos na área fi nanceira, dos reguladores fi nanceiros e dos bancos centrais dos países do G-7, e também representantes de organizações e de associações internacionais como o FMI, o grupo Banco Mundial, a OCDE, o Comité de Basileia, a International Organization of Secusities Commissions (IOSCO) ou a International Assurance of Insurance Supervisors (IAIS). O FSB estabeleceu protocolos, com fortes poderes de cooperação e entreajuda, com o Fundo Monetário Internacional e demais membros, e com organizações internacionais informais como o Comité de Basileia. Ao mesmo tempo que lideravam o novo programa de re-regulação e monitorizavam a sua aplicação, não esqueceram a necessidade de cooperação e entreajuda com (e entre) os reguladores dos diferentes Estados-membros (e os reguladores sectoriais). Acompanhar de perto as actividades de empresas transnacionais não se basta com

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meras trocas de informação casuística (on demand), assumindo formas de contratualização administrativa transnacionais (caso dos Memorando de Entendimento ou Memourandum of Understanding, ou MoU’s) sob a égide de organizações de cariz internacional e mesmo de uniformização regulatória global5.

O FSB assumiu a qualidade de fórum de harmonização e acompanhamento das medidas supra referenciadas a implementar em todo o Mundo. Para além da sua intervenção em todas as questões de harmonização mundial referidas infra – por exemplo, a criação de um “identifi cador” global para todas as partes intervenientes em transacções fi nanceiras no Mundo, denominado de Legal Entity Identifi er (ou LEI), - é importante a regulação de actividades ditas de “sistema bancário paralelo” ou shadow banking (embora estas actividades, a desenvolver em futuro texto, não sejam verdadeiramente nem banking nem shadow)6. A IOSCO e o Committee on Payment and Settlement Systems (CPSS) do BIS assumiram um importante papel regulatório, i.a. no âmbito das infra-estruturas dos mercados com importância global. Na União Europeia, a European Market Infrastructure Regulation - EMIR - relativo à regulação do mercado de contratos de derivados negociados em mercado de balcão, mas também às contrapartes centrais e aos repositórios de dados sobre transacções - “All standardized OTC derivatives should be traded on exchanges […] cleared through central counterparties […] OTC derivatives

5 Luís CATARINO, 2009, Regulação e Supervisão dos Mercados de Instrumentos Financeiros – Fundamento e Limites do Governo e Jurisdição das Autoridades Independentes, Almedina, Coimbra, pp. 157 ss.

6 Cfr The shadow banking system can broadly be described as “credit intermediation involving entities and activities (fully or partially) outside the regular banking system” or non-bank credit intermediation in short (…), in Global Shadow Banking Monitoring Report 2013 do FSB, de 14 de Novembro de 2013, disponível em http://www.fi nancialstabilityboard.org/publications/r_131114.htm. A questão é igualmente objecto de análise e estudo pela IOSCO (http://www.iosco.org/library/pubdocs/pdf/IOSCOPD392.pdf), e pelo Comité de Basileia ( http://www.bis.org/publ/bcbs246.pdf , e http://www.bis.org/publ/bcbs257.pdf ).

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contracts should be reported to trade repositories”7). À IOSCO coube igualmente preparar metodologias de verifi cação (assessment) e de supervisão sobre entidades não fi nanceiras com importância sistémica; a negociação relativa a transacções sobre derivados de mercadorias, dada a sua importância num futuro (muito) próximo, permitindo aos reguladores intervir ex-ante na negociação (fi xando limites de exposição ao risco) ou a posteriori (vg perante excessivas posições num determinado período sobre uma dada mercadoria). É importante criar metodologias de avaliação entre a negociação de credit default swaps (CDS) e o subjacente, ou regular os meios electrónicos de negociação nos mercados como o high frequency trading (HFT). A IOSCO preparou um plano estratégico para 2015-2020 que os incluiu.

À International Association of Insurance Supervisors (IAIS) incumbiria igualmente criar um quadro comum para supervisão das instituições seguradoras pertencentes a grupos com forte actividade internacional e importância sistémica global (noção extensível a todas as instituições fi nanceiras, de global systematically important institutions ou G-SIIs) e harmonizar-se com os standards da USA FASB.

O Comité de Basileia for Banking Supervision (BCBS) criou novos requisitos prudenciais com Basileia III, a implementar até 2018 (que na União Europeia se espera totalmente executada através da Capital Requirements Directive para os bancos - CRD IV). Estes requisitos terão um paralelo nas exigências decorrentes da regulação seguradora denominada de Solvência II o que, para grupos cuja interpenetração entre o sector segurador e o bancário seja forte, trará pelo menos momentaneamente uma contracção na concessão de crédito pelas fortes exigências de recapitalização e constituição de reservas de liquidez (a par, como veremos, da necessidade de contribuição para o Single Resolution Fund da

7 Cfr. o Regulamento EU nº 648/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 04Jul2012, relativo aos derivados do mercado de balcão, às contrapartes centrais e aos repositórios de transacções.

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Eurozona). Optou-se claramente por prevenir e controlar o efeito desestabilizador sistémico da insolvência dos intermediários fi nanceiros, de alguns operadores de mercados e de contrapartes centrais. Criaram-se maiores requisitos prudenciais, e também de entrada nos mercados, para diminuir o impacto de falhas e desta forma proteger, indirectamente, os investidores de externalidades negativas. Este foi o campo onde ocorreram maiores modifi cações com medidas mais fortes.

Este processo teve também repercussões na estrutura organizatória interna da União Europeia, com a criação e a “centralização” da regulação administrativa em corpos administrativos intracomunitários. Ao mesmo tempo que os seus Estados-membros afastavam, após 2007, a corrente de regulação integrada denominada de Twin-Peaks, a União Europeia assistira à criação de um processo comitológico de harmonização regulatória proposto pelo Final Report of the Committee of Wise Men on the Regulation of European Securities Markets8. Este Relatório foi elaborado por um Comité de Sábios presidido pelo economista húngaro Lamfalussy, que vindo de director-geral do BIS assumiria o papel de direcção do Instituto Monetário Europeu (IME) no caminho para a criação do Banco Central Europeu9. O processo de criação de um level playing fi eld através de comités sectoriais e de implementação de soft regulation para todo o espaço da União seria substituído, após o Relatório de Larosière10, por um processo de

8 http://ec.europa.eu/internal_market/securities/lamfalussy/index_en.htm . 9 Este Comité de Sábios foi constituído pelo Barão Alexandre Lamfalussy,

seu presidente, e por Cornelius Herkstroter, Luis Angel Rojo, Bengt Ryden, Luigi Spaventa, Norbert Walter, Nigel Wicks e tendo como porta-voz David Wright e secretário Pierre Delsaux. Sobre a sua constituição e funcionamento, Eva HÜPKES et al., 2005, “The Accountability of Financial Sector Supervisors: Principles and Practice”, IMF Working Paper 05/51 , https://www.imf.org/external/pubs/cat/longres.aspx?sk=18018.0

10 O Relatório do High Level Group, encontra-se disponível em http://ec.europa.eu/internal_market/fi nances/docs/de_larosiere_report_en.pdf. Para uma visão global da reforma, http://ec.europa.eu/internal_market/fi nances/committees/index_en.htm .

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“agencifi cação” funcionalmente tripartido. Para o sector bancário foi criada a European Banking Authority (EBA); para o segurador a European Insurance and Occupational Pensions Authority (EIOPA); para o sector dos mercados de capitais, das actividades de notação de risco (rating) e dos denominados Trade Repositories (infra) a European Securities and Markets Authority (ESMA). A base da nova regulação jurídica comunitária decorre, i.a. dos arts. 53º, 114º, nº1, 290º e 291º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), e arts. 10-14º e 15º do Regulamento EU nº1095/2010, de 15 de Dezembro11.

A nível internacional existiam de há muito instâncias formais e informais de regulação global (alguma referidas supra), mas as teorias de desregulação e o domínio do Mercado e da Política pelas denominadas “ecologias profi ssionais” não permitiram uma intervenção preventiva. Mesmo quando o enorme risco de actividades fi nanceiras complexas temerárias e das bolhas especulativas eram há muito capa de revistas da especialidade, num bull market de (aparente) crescimento e expansão nenhum político quis ter o ónus de intervir destruindo a (ilusória) Felicidade percepcionada pelos eleitores12.

Hoje estas associações encontram-se a trabalhar afi ncadamente numa intrincada regulação global dos mercados bancário, segurador e fi nanceiro decorrente das decisões do G20 tomadas

11 O problema da coordenação da constelação regulatória e da possibilidade de competição e arbitragem vêm sendo estudados há muito (acerca dos fenómeno de fórum shifting, do fórum shopping, e de possibilidade de race to he bottom, a bibliografi a sugerida no nosso trabalho, cit. supra nota 3, pp. 39 ss). Também acompanhámos estas dinâmicas regulatórias, vg as decorrentes dos Relatórios Lamfalussy e posteriormente de Larosière. Este último permitiu ultrapassar a velha querela institucional regulatória “twin peaks”, assegurando que, apesar da interpenetração dos sectores bancário, segurador e fi nanceiro, cada sector específi co seria dotado de um regulador dotado de competências e um espaço regulatório específi co (vd o nosso trabalho sobre “A reforma da Regulação Financeira na União Europeia: refracção do movimento do Direito Administrativo Global)”, in http://www.institutovaloresmobiliarios.pt/estudos/pdfs/1360862121a_reforma_da_regulacao_fi nanceira_lc_formatado.pdf

12 A captura destes reguladores globais pelas ecologias de profi ssionais fi nanceiros em momentos bulish, e a sua substituição pelas ecologias políticas

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desde a Cimeira de Cannes de 2011, e a necessidade implicou que os políticos tirassem o lugar do leme aos reguladores.

2. Os novos desafi os regulatórios da União Europeia – da União Bancária à União Financeira.

A Cimeira de Cannes realizou-se em 4 de Novembro de 2011, tendo em vista uma nova regulação para produtos fi nanceiros como os CDS, para novos mercados e para transparência e regulação do mercado de derivados OTC e uma nova ordem fi nanceira. Foi acolhida pelo então Presidente Sarkozy que afi rmara em 25 de Setembro de 2008 em Toulon, no rescaldo do crash fi nanceiro mundial, que l’autorégulation pour régler tous les problèmes, c’est fi ni. Le laissez-faire, c’est fi ni. Le marché qui a toujours raison, c’est fi ni !

No âmbito da União Europeia a Comissão defi niu em 22 de Outubro de 2013 que o ano de 2014 seria o ano de “entrega” e implementação de uma série de iniciativas tendentes a restabelecer a integridade, a efi ciência e o relançamento do mercado interno único, seguindo as orientações do G20 formuladas para todo o Mundo. Teve-se em vista acompanhar o movimento global liderado pelo FSB, mas também ultrapassar a fragmentação e o proteccionismo que se instalara após a Grande Crise nos diversos mercados nacionais, desde logo a nível da supervisão bancária. A profundidade e gravidade da crise perante as fi nanças públicas dos Estados determinou reacções imediatas por parte de muitos Estados, vg dentro da União Europeia, onde a par da tendência de “cerrar fronteiras” aos movimentos de capitais, se criou um

em momentos bearish (em parte devido à necessidade de intervenção/injecção de dinheiro público), tem sido muito discutida desde as Escolas da Public Choice e à Escola de Chicago. Hoje as teorias da captura desenvolveram-se para feições mais sociológicas e políticas, existindo inúmera literatura sobre os perigos para a democracia e para a sociedade e diferentes grupos sociais, decorrentes da morte da meritocracia às mãos de classes profi ssionais e políticas que se auto-perpetuam.

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mosaico legislativo e uma fragmentação que eleva o actual esforço de harmonização comunitária. Faremos por isso uma fotografi a do panorama regulatório criado a nível bancário com os mecanismos de supervisão única e os novos mecanismos de intervenção nas instituições de crédito.

Do vasto Work Programme salientamos de seguida medidas regulatórias tomadas no âmbito dos mercados fi nanceiros, sem preocupação de exaustão, e explanando as que terão já impacto a partir do ano de 2014. Todas estas iniciativas visam uma harmonização que enfrente a crise em curso, regulando de forma preventiva actividades de risco como a emissão e comercialização de produtos fi nanceiros muito complexos, a existência de verdadeiros mercados electrónicos desregulados e sem-fronteiras, a inovação tecnológica que “cria” verdadeiros mercados não ofi ciais, e a concentração de negócio (e de risco) nas Contrapartes Centrais. No entanto, deparam-se com naturais resistências e obstáculos, desde logo nos mercados e nos seus agentes profi ssionais pelos custos que comportam. A maioria da legislação comunitária que referiremos (Directivas e Regulamentos) depende de regulamentação de segundo grau, vg de actos delegados (art. 291º TFUE), e de “normas técnicas de regulação ou de implementação” (denominadas de Regulatory Technical Standards – RTS - e de Implementing Technical Standard – ITS). Em grande parte devido à premência da sua implementação em todos os Estados-membros, a regulamentação com cobertura constitucional nos Tratados tem-se caracterizado por ser remissiva, lacunar ou incompleta, e necessitada de posterior fi ne tuning, vg através de instrumentos quase-normativos (Orientações e Recomendações).

Esta legislação de segundo grau ou administrativa não deve ser elaborada de forma demasiado expedita, sob pena de deixar em aberto demasiadas questões de aplicação e de execução que terão de ser resolvidas através da elaboração de padrões (standards), de orientações (guidelines) ou de meios mais informais como a edição de perguntas e respostas (Q&A). Um case study a ter presente é a actual regulação dos mercados de derivados OTC (EMIR), por

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muitos considerada demasiado porosa para ser exequiível (mesmo com a avalanche das normas técnicas de implementação). No seu âmbito e desde a aprovação dos repositórios de informação (Trade Repositories ou TRs), temos já hoje milhões de reportes diários aos seis TR’s autorizados pela ESMA (infra)13, mas a que falta qualidade (nem todas as menções são comunicadas por ambas as partes nos contratos visados), coerência (nem todas as contrapartes num negócio fazem o reporte, vg as que estão fora da União), enforcement (os reguladores ainda não defi niram um meio de supervisão da aplicação normativa, nem os meios de acesso a todo o manancial de informação existente, porque fragmentado por vários TRs).

A par destas difi culdades inatas ao processo legislativo da UE, por natureza mais político e compromissório e muito mais lento que o existente em outros espaços fi nanceiros do G7 como os EUA, Japão, ou Canadá, temos de ter em atenção que a fragmentação ocorre igualmente a nível mundial, pois os EUA, os países asiáticos como Singapura ou Japão e China, a Austrália, o Canadá, têm ritmos diferentes de implementação dos princípios fi xados pelo G20 e desenvolvidos e monitorizados pelo FSB. Ademais, eles não são totalmente compatíveis entre si o que pode ocasionar um fórum shopping e, de forma mais dramática, uma race to the bottom na compita entre Estados pela atractividade regulatória.

Uma outra difi culdade decorre do facto de a diferente regulamentação de que iremos dar conta entrar em vigor em datas e momentos diferentes, e encontrar-se interdependente, podendo criar dessintonias internas ou mesmo internacionais. Por exemplo, prevê-se na nova regulação sobre mercados de instrumentos fi nanceiros (MIFID II) a possibilidade da obrigação de negociação em plataformas de negociação ou trading venues (Mercados Regulamentados – MR –, em Sistemas de Negociação Multilateral – SNM ou MTF –, ou em Sistemas de Negociação Organizados

13 http://www.esma.europa.eu/content/List-registered-Trade-Repositories

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– SNO ou OTF), determinadas classes de contratos de derivados. Mas a própria regulação (EMIR) está, como veremos, dividida em diversas fases: i) em 2013 foi o início do processo de autorização das CCPs e dos acordos de interoperabilidade entre CCPs no âmbito do EMIR; ii) em 2014 o reporte de informação, dependente ainda de “afi namentos” regulatórios; iii) em 2015 será a fase do clearing obrigatório1415; iv) em 2016 poderá ser a negociação obrigatória em plataformas, por via da legislação de segundo nível do pacote MIFID II/MIFIR (na realidade, esta data foi fi cando cada vez mais longe tendo aplicação directa e imediata em 2017… dez anos após a crise, quando nos EUA a CFTC já cumpriu em 2013 os comandos do G20 nesta matéria, regulando os três estádios).

O mesmo poderemos dizer da entrada em vigor da regulação das Centrais de Valores Mobiliários ou Central Securities Depositories (CSD’s) e da posterior entrada em vigor, faseada, do T2S – ambas objecto de estudo próximo. O regulamento das CSDs foi publicado em 28 de Agosto de 2014. O Regulamento (EU) n.º 909/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Julho de 2014, relativo à melhoria da liquidação de valores mobiliários na União Europeia, e às Centrais de Valores Mobiliários que altera as Directivas 98/26/CE e 2014/65/EU e o Regulamento (EU) n.º 263/2012, entrou em vigor no vigésimo dia seguinte à sua publicação no Jornal Ofi cial da União Europeia, ou seja, 17 de Setembro de 2014. No entanto, nem todas as disposições entram em vigor ao mesmo tempo, até porque muitas normas carecem de publicação de Regulatory Technical Standards.

14 O procedimento de defi nição de classes de derivados obrigatoriamente sujeitos a clearing já foi iniciado pela ESMA, nomeadamente através de consultas públicas aos participantes do mercado - http://www.cmvm.pt/CMVM/Consultas%20Publicas/ESMA/Documents/Consultation%20paper%202014-800.pdf .

15 N de actualização: O primeiro RTS 2015/2205 da Comissão de 6 de Agosto de 2015 referente aos contratos de derivados de taxas de juro do mercado de balcão (OTC) foi publicado em 1 de Dezembro de 2015, com a primeira fase de obrigação de compensãção em 21 de Junho de 2016.

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Ainda quanto às Centrais de Valores Mobiliários, é de referir pela sua essencialidade o projecto em curso denominado de Target 2 Securities (T2S), um sistema único de liquidação física de instrumentos fi nanceiros ao nível da EU, desenvolvido pelo Eurosistema. Assentará numa plataforma electrónica única, em que os agentes fi nanceiros podem aceder directamente (Directly Connected Participants - DCP) ou através de uma CSD nacional (Indirect Connected Participants - ICP), e terá uma entrada em vigor de forma faseada, conforme referido infra.

2.1. A regulação administrativa sancionatória e criminal do abuso de mercado (MAD/MAR). Em 14 de Novembro de 2013 a ESMA publicou um discussion paper com algumas novas orientações relativas a medidas a tomar no âmbito da regulação do abuso de mercado, tendo procedido a uma audição pública em Paris, em 27 de Janeiro de 2014. Relativamente ao abuso de informação privilegiada e à manipulação de mercado (Market Abuse Directive ou MAD), a Directiva nº 2014/57/UE do Parlamento Europeu e do Conselho contém as sanções administrativas e/ou criminais aplicáveis ao abuso de informação privilegiada e à manipulação de mercado (abuso de mercado).

A revisão da Directiva relativa ao abuso de mercado (Market Abuse ou MAD) foi objecto de acordo político entre o Parlamento Europeu e o Conselho, para ser feita através de um Regulamento (MAR). O Regulamento (UE) nº 596/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativo ao abuso de mercado (“regulamento abuso de mercado”) revoga a Directiva 2003/6/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e as Directivas 2003/124/CE, 2003/125/CE e 2004/72/CE, da Comissão. Esta regulamentação do Market Abuse ainda não se encontra totalmente fechada dada a regulação ainda dependente de actos delegados e actos técnicos, mas também está em linha com algumas das novidades decorrentes da regulação MiFID II: (i) alargamento do seu âmbito aos Sistemas de Negociação Multilateral e aos futuros OTF’; (ii) especifi cação da aplicação a derivados como CDS’s e derivados sobre commodities; (iii) previsão de

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manipulação decorrente da utilização de negociação algorítmica ou de instrumentos como hedge funds; (iv) regime de favorecimento dos denunciadores de infracções legais aos reguladores (regime dos denominados whistleblowers institucionalizado com o Dodd-Franck Act de 2010, cuja efi cácia depende de ser construída com medidas de incentivo mas também de medidas anti-retaliação contra os colaboradores-denunciantes16).

A par da moderna corrente de administrativização da administração da Justiça (substituição dos Tribunais por autoridades administrativas) e das sanções aplicáveis (através de contra-ordenações ou direito administrativo sancionatório), existe hoje na União uma forte tendência sancionatória criminalizadora. Visando-se a harmonização das sanções penais nos diversos Estados-membros o futuro deparar-se-á com a problemática inerente à uniformização de princípios constitucionais nacionais em matéria criminal e com a reserva constitucional de competências dos Estados-membros, que aí mantiveram a sua esfera de soberania (domínio reservado)17.

16 A fi gura cresceu com a regulação norte-americana de reacção à Grande crise iniciada em 2008 - o Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Act (Dodd-Frank Act). Será uma valiosa arma na detecção e investigação de infracções, desde que sejam cumpridos dois requisitos: (i) medidas de incentivo (a SEC premeia o denunciante com uma percentagem de 25% a 30% da sanção pecuniária aplicada, que atingiu em 2013 um valor individual de 14 milhões de dólares, valor já ultrapassado em 2014 por um whistleblower que recebeu 30 milhões), e (ii) medidas anti-retaliação (de protecção ao denunciante cooperador na investigação). No caso contrário pode suceder que a fi gura não tenha os resultado desejados - vd http://www.institutovaloresmobiliarios.pt/estudos/pdfs/1390490035governar_com_a_administração_independente.pdf

17 As questões colocam-se igualmente na regulação denominada MiFID II e MiFIR, onde a par da uniformização de sanções se pretende uma centralização, tratamento e guarda de tal informação na ESMA, através de uma base central de dados que pode ser utilizada para intercâmbio entre autoridades de supervisão (art. 71º MiFID II). Também a obrigatoriedade de difusão pública de sanções administrativas e sua publicação no website da autoridade (durante pelo menos cinco anos), mesmo que objecto de recurso, levanta incertezas nalguns Estados, vg face ao princípio da presunção da inocência (acerca desta problemática das sanções administrativas regulatórias, sua natureza e princípios fundamentais, o nosso trabalho de 2010, cit. nota 3 supra, Cap.IV).

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A proposta de Directiva tinha a particularidade de a matéria sancionatória poder ser um benchmark para a regulamentação CSDs e T2S (o discussion paper da ESMA cobria uma panóplia de questões conexas, como os programas de recompra ou buy back, as operações de estabilização, as práticas de mercado aceites como lícitas, os indicadores de operações de manipulação, as listas de insiders, o disclosure de informação privilegiada, as transacções de dirigentes, as recomendações de investimento, etc.). Encontrou-se em consulta pública até meados de Outubro de 2014 um Discussion Paper sobre projectos de normas técnicas sobre o Regulamento18, e um Consultation Paper sobre projectos de normas técnicas e projecto de Parecer técnico sobre delegação de competências importantes para o seu estudo19.

A sua entrada em vigor e aplicabilidade directa, com poucas excepções, ocorrerá em 3 de Julho de 2016 – vd actualização20.

2.2. A alteração da regulação relativa aos mercados de instrumentos fi nanceiros (MiFID II/MiFIR). Umas das peças regulatórias centrais nos mercados fi nanceiros é a Directiva relativa aos mercados de instrumentos fi nanceiros (mais conhecida

18 Draft technical standards on the Market Abuse Regulation da ESMA, http://www.cmvm.pt/CMVM/Consultas%20Publicas/ESMA/Documents/esma_2014-809_consultation_paper_on_mar_draft_technical_standards.pdf

19 ESMA’s draft technical advice on possible delegated acts concerning the Market Abuse Regulation in http://www.cmvm.pt/CMVM/Consultas%20Publicas/ESMA/Documents/esma_2014-808_consultation_paper__on_mar_draft_technical_advice_0.pdf

20 NOTA de actualização: Em 25 de Maio de 2016 a Esma comunicou que algumas disposições do MAR seriam objecto de votação no Parlamento Europeu para adiamento da entrada em vigor até 3 de Janeiro de 2018, em linha com o adiamento previsto para a aplicação e entrada em vigor nos Estados membros da MiFIR II e MiFIR sobretudo pelas difi culdades de implementação até nas próprias ANC de sistemas de informação (IT systems), colecta de dados e novas formas de mercado - http://www.cmvm.pt/pt/Cooperacao/esma/DocumentosESMACESR/Documents/ESMA%20Communication_Article%204%20MAR_25052016.pdf

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por MiFID, de Markets in Financial Instrument Directive21). Foi objecto de uma reforma iniciada em 2011 para a aprovação de uma Directiva que a revogará após a sua entrada em vigor em 3 de Janeiro de 2017 (MiFID II), data da entrada em vigor também de um Regulamento - Regulation on Market Financial Instruments ou MiFIR22. Existem matérias comuns aos instrumentos legislativos mas a pretensão de uniformização regulatória pela Comissão (single rule book) levou a que o Regulamento comunitário incidisse particularmente sobre a transparência (divulgação) e o reporte de transacções efectuadas, bem como sobre a negociação de acções e derivados em plataformas, e a possibilidade de acesso não discriminatório a mercados organizados e a CCPs. Esta é uma matéria que entronca com a actual regulação EMIR (daí que a sua entrada em vigor deva estar interdependente) e a futura regulação do denominado Shadow Banking. Para não se verifi car arbitragem regulatória também é num Regulamento que são vertidos os novos poderes de intervenção pública da ESMA (e das autoridades nacionais competentes ou ACN) sobre posições negociais e sobre actividades de investimento e de negociação de alguns produtos fi nanceiros (cfr. arts 9º e 18º do Regulamento (EU) 1095/2010, de 15 de Dezembro).

Ambos foram aprovados pelo Parlamento Europeu em 15 de Abril 2014 e objecto de publicação durante o mês de Junho de 2014 (a sua entrada em vigor ocorreu vinte dias após a publicação). Caberá à “legislação” de segundo nível a sua implementação num prazo entre 12 e 18 meses após a entrada em vigor. Além dos actos delegados aí previstos (art. 291º TFUE), incluímos nesta

21 Directiva 2004/39/CE, do PE e do Conselho, de 21Abr2004, implementada e regulamentada pela Directiva 2006/73/CE da Comissão, de 10Ago2006 e pelo Regulamento CE 1287/2006 da Comissão, de 10Ago2006 e Regulamento EU 648/2012

22 Directiva 2014/65/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Maio de 2914, e Regulamento nº 600/2014 do PE e do Conselho, de 15 de Maio de 2014, ambos JOUE L 173/349 de 12.06.2014.

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“legislação” as “normas técnicas de regulamentação” ou RTS e “normas técnicas de implementação” ou ITS. Este processo de regulação administrativa ou de 2º Nível iniciou-se com a publicação de um Consultation Paper (com projectos de Technical Advice) a ser presente à CE em Dezembro de 2014 e um Discussion Paper (que fundará a próxima consulta ou Consultation Paper a ser lançado ainda em 2014).

Esta fase é sumamente importante porque no seu conjunto existem cerca de 80 normas de habilitação… O normativo e as consultas públicas demonstram que muitas das actuais normas alicerçam o seu conteúdo nas anteriores Recomendações e Orientações do CeSAR, embora esta soft law se tenha tornado hard pela aplicação de medidas compulsórias - originando o que denominámos por hoft law23.

A sua execução será faseada a partir de meados de 2015, dependerá da vasta regulação comunitária secundária, e a execução na União ocorrerá em 2017 – vd actualização24.

É um instrumento fundamental para a efi ciência, a concorrência e a harmonização dos diversos mercados e infra-estruturas existentes (em parte, traduz-se numa regulamentação complementar e “em linha” com a regulamentação EMIR, CSDs ou T2S - infra). Existem algumas inovações fundamentais de que salientaremos a regulação dos instrumentos negociados em mercados de balcão ou OTC (o

23 Acerca desta nova “legislação” comunitária atípica, Luís CATARINO, “A Nova Regulação Europeia dos Mercados: a Hoft Law no Balancing Powers da União.”, AAVV, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor J.J. Gomes Canotilho, vol. IV, SJ, Coimbra Ed., 2012, pp. 145-177.

24 NOTA de actualização: A sua entrada em vigor irá ser adiada para 3 de Janeiro de 2018. Existe acordo no trílogo legislativo e a votação em Junho pelo Parlamento Europeu ocorrerá em 2016. Também aqui os Estados, a indústria e as ANC demonstraram as difi culdades de aplicação não da parte comportamental mas das novas regras sobre sistemas de informação (IT systems), colecta de dados e disponibilidade de dados, limites e controlo de negociação e novas formas de mercado - http://www.cmvm.pt/pt/Cooperacao/esma/DocumentosESMACESR/Documents/ESMA%20Communication_Article%204%20MAR_25052016.pdf

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impacto no mercado Over The Counter será a nível de formação e descoberta de preços, reporte de transacções, transparência de preços e das quantidades, obrigação de negociação em mercados organizados); a possibilidade de reconhecimento de sucursais de empresas de países terceiros à UE que pretendam prestar serviços a contrapartes elegíveis a clientes profi ssionais (dependendo esta possibilidade de Livre Prestação de Serviços na União do entry point através de um Estado-membro); o reconhecimento de novas formas de mercados secundários organizados (os denominado OTF’s de organized trading facilities, a par dos Mercados Regulamentados e dos Sistemas de Negociação Multilateral); a obrigação de negociação nestas plataformas electrónicas ou trading venues, de derivados e algumas acções, usualmente negociados em OTC; a regulação da negociação de derivados sobre mercadorias e de produtos fi nanceiros complexos – com imposição de regras sobre a denominada product governance dos mesmos, demonstrando o público destinatário; as novas obrigações de transparência pré e pós negociação (incluindo nalguns casos a negociação nas designadas plataformas electrónicas, dado o alargamento do regime da actual Internalização Sistemática - IS); a regulamentação das novas formas de negociação automática (high frequency trading) e algorítmica (algo trading).

No que respeita a matéria comportamental relativa à consultoria e à negociação e informação sobre produtos fi nanceiros complexos prevê-se uma harmonização com os denominados depósitos estruturados, matéria que sendo em Portugal supervisionada pelo Banco central deverá por motivos de uniformização e para evitar dessintonias regulatórias ser objecto de um único diploma e de supervisão por um único regulador.

2.3. A protecção dos Investidores - a Packaged Retail Investment Protection (PRIP) faz parte das iniciativas em curso para unifi car iniciativas legislativas nacionais de transparência no âmbito das vendas de instrumentos fi nanceiros aos investidores, por forma a tornar os mercados fi nanceiros mais consumer-

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friendly. Parte do princípio de que o não investimento nos mercados fi nanceiros pelo cidadão não pode ser uma opção do legislador dada a sua necessidade para a economia global, e tem em vista a sua protecção fi nanceira e patrimonial individual. Por isso, o acréscimo de informação e transparência decorrente da regulamentação de 26 de Novembro de 2014, o Regulamento (EU) nº 1286/2014, do Parlamento Europeu e do Conselho, denominada de PRIP (packaged retail and insurance-based investment products) tem o propósito declarado de protecção do investidor (retail investor). Porquê? Porque numa época de taxas de juros muito baixas ou negativas, os investidores tendem a investir em produtos alavancados, de maior risco, para poder obter maior retorno.

Tal como sucede com as exigências da MiFID II que tem em vista secundar e harmonizar a paisagem regulatória da negociação de instrumentos fi nanceiros (que abrangerá no seu âmbito os depósitos estruturados), é essencial a prestação de informação previamente à contratação. Inter alia, abrange-se a informação sobre os produtos, a sua natureza, emitente, comissões, cenários, sistemas de garantia dos investidores, cenários possíveis, casos de default e consequências para o investidor, riscos associados aos produtos e aos subjacentes quando tratemos de produtos derivados, informação acerca dos custos (da aquisição e serviços conexos). O princípio de protecção dos investidores não passa necessariamente por proibi-los de assumir risco: mas dadas as experiências recentes, em que algumas instituições tendem a criar produtos fi nanceiros de estrutura ininteligível e de forte risco de crédito, este risco deve ser gerido e publicitado de forma clara e inteligível num documento sintético e claro (máximo de três páginas), denominado de KID (de Key Investment Documents)25.

Algumas das exigências que serão vertidas na vigência da regulação comunitária encontram-se já vertidas em Portugal no

25 Para uma leitura de todo o “pacote” informativo e legislativo sobre a matéria, http://ec.europa.eu/fi nance/fi nservices-retail/investment_products/index_en.htm

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Decreto-Lei nº 211-A/2008, de 3 de Novembro e no Regulamento CMVM nº 2/2012 (para os denominados “produtos fi nanceiros complexos” que abrange também a a comercialização de alguns produtos seguradores). A legislação portuguesa foi uma das primeiras (e poucas) regulações hard neste âmbito no conjunto de Estados da União Europeia. Exige-se a prévia notifi cação do KID a um regulador, a sua publicação via website (do comercializador ou do regulador) também prévia à comercialização, a indicação sumária das suas principais características e do product governance (infra MiFID II).

Complementando as regulações sobre mercado e intrumentos fi nanceiros, confere-se às autoridades de regulação comunitárias e às autoridades nacionais competentes (os poderes do regulador dos seguros é objecto de legislação diversa), o poder de limitar ou mesmo proibir a comercialização de determinados produtos fi nanceiros que se revelem totalmente unfair, injust ou malicious – numa breve alusão à merit regulation que existia nos EUA até à adopção da fi losofi a federal de regulação pela informação em meados dos anos 30 26.

2.4. A regulação de protecção às Pequenas e Médias Empresas comunitárias (SME). O apoio às denominadas Pequenas e Médias Empresas europeias - Small and Medium-Sized Entreprises (SME) - particularmente as não fi nanceiras, tornou-se um objectivo político claro na União Europeia27. Defi nidas como as empresas que têm até 250 trabalhadores e uma capitalização até 50 milhões de Euros,

26 Acerca da história das Blues Sky Laws adoptados nos diversos estados federados dos EUA para fazer face a actividades fraudulentas nos mercados no início do séc. XX, a merit regulation que permitia aos Estados federados recusar uma emissão considerada pelo respectivo Comissário como unfair, unjust, inequitable ou oppressive, CATARINO, 2009; 80-87.

27 As difi culdades das SME’s na obtenção de crédito, de acordo com as estatísticas e estudos do BCE e da Comissão Europeia, a situação é particularmente preocupante desde 2009 na Eslovénia, na Irlanda, em Portugal e na Grécia -http://ec.europa.eu/europe2020/pdf/themes/09_sme_access_to_fi nance.pdf

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o seu fi nanciamento depende sobretudo de empréstimos bancários. Por regra, estes são mais caros que para as grandes empresas mas a Grande rise actual, a aplicação das regras de Basileia III, os atrasos nos pagamentos por entidades públicas e a falta de liquidez bancária, tornaram um crédito caro num crédito (praticamente) inexistente28. Este fenómeno é mitigado nos EUA, dada o importante papel de intermediação directa feito por investidores institucionais não bancários e empresas de capital de risco (para além da intervenção das Government Sponsored Enterprises – GSE -, que adquirindo créditos dos bancos de retalho libertam capital para o sistema bancário).

A criação de mercados especialmente dedicados à negociação de valores mobiliários destas empresas SME assenta na consideração de que os mercados organizados são essenciais à sua visibilidade, crescimento e fi nanciamento – algo que já existe actualmente na generalidade dos Estados29. A MiFID II cria um label para as

28 A rejeição à concessão de crédito ou os obstáculos levantados têm vindo a alastrar, dos Estados como Portugal, Grécia ou Espanha, até Itália ou França – cfr o Relatório do Institute of International Finance de 2013, Restoring fi nancing and growth to Europe’s SMEs

29 A Euronext Lisbon tem vindo a tentar dinamizar os mercados por si geridos, no sentido de atrair empresas para a Euronext Lisbon para se fi nanciarem no mercado, em alternativa ao crédito bancário, mais difícil e mais caro para as pequenas e médias empresas. Além dos road shows para “chamar” novas entidades emitentes para o mercado, a Euronext criou, à semelhança de outros mercados Euronext da União, um Sistema de Negociação Alternativo vocacionado para a negociação de acções de pequenas e médias empresas, denominado de Alternext. Este mercado (sistema de negociação alternativo) caracteriza-se por ser menos exigente para as empresas que pretendem ter o seu capital admitido à negociação neste Sistema, nomeadamente no que se refere a custos de manutenção cobrados pela própria Euronext ou ao grau de exigência de divulgação de informação pelas emitentes. No entanto, apesar dos esforços envidados pela Euronext, apenas estão admitidas à negociação acções de 2 empresas, a Intelligent Sensing Anywhere e a Nexponor-SICAFI. Em 26 de Setembro de 2014 verifi cámos que o último dia em que ocorreu negociação sobre as acções da ISA e da NEXPONOR, fora em 3/12/2013 e 6/8/2014, respectivamente, demonstrando que efectivamente este mercado não é muito líquido.

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plataformas SNM ou MTF (Sistemas de Negociação Multilateral) que tenham como objectivo este tipo de empresas (“Mercados de PME em crescimento”, art. 33º ss MiFID II). No entanto, para esta Directiva, as Pequenas e Médias Empresas são defi nidas não em termos de estrutura mas em termos da sua capitalização, e os valores para que aponta (200.000.000 Euros) seriam de molde a considerar a maioria das nossas maiores empresas como PME’s – cfr. art. 4º, nº13.º MiFID II. Esta legislação será acompanhada pelo aprofundamento da regulação da actividade de notação de risco. Aliás, embora a regulação das Credit Rating Agencies Regulation – CRA’s - seja no momento uniforme30 com base na centralização pela União e pela autoridade do mercado ESMA, a Comissão Europeia pretende também fomentar a existência de CRA’s de pequena e média dimensão para incrementar a concorrência. Continua o trabalho de reconhecimento mútuo pela ESMA de CRA’s estrangeiras31.

30 Cfr. a legislação desde 2009 in http://ec.europa.eu/internal_market/rating-agencies/index_en.htm

31 Registo disponível em http://www.esma.europa.eu/page/List-registered-and-certifi ed-CRAs

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Fig. 1. Acesso das PME’s a empréstimos bancários, segundo dados da Comissão Europeia.

2.5. A regulação do denominado sector de banca paralela ou shadow banking. Tratando-se de uma actividade de crédito e de fi nanciamento da economia e das empresas paralela à actividade bancária, necessita de uma forte regulação e vigilância32. O volume de instrumentos fi nanceiros, o crédito e os fundos afectos a tais actividades são de enorme magnitude. O risco sistémico decorre da falta de transparência, e se pensarmos que o terceiro maior sector de shadow banking, após os EUA e o Reino Unido é a China, que fi nancia quase 80% da economia privada, onde existe uma social e economicamente perigosa “bolha” imobiliária e de dívida, o risco sistémico é real e de enorme dimensão.

É um verdadeiro caso de “dilema regulatório” porquanto as operações em que se traduz são de enorme risco, no entanto são igualmente importantes fontes de fi nanciamento não bancário à economia (hegde funds, fundos do mercado monetário, securitização, empréstimo de valores mobiliários, acordos de recompra ou “repos”33). Esta matéria encontra-se actualmente

32 Para termos uma ideia do volume de fundos em questão e do seu impacto, o FSB estimou no seu relatório de 14 de Outubro de 2014 que, (…) By absolute size, advanced economies remain the ones with the largest non-bank fi nancial systems. Globally OFI (‘Other Financial Intermediaries) assets represent on average about 24% of total fi nancial assets, about half of banking system assets and 117% of GDP. These patterns have been relatively stable since the crisis (…) – e a estimativa é conservadora, pois não inclui jurisdições não-FSB. Acerca das Policy Recommendations do FSB, o Relatório Strengthening Oversight and Regulation of Shadow Banking, de 29 de Agosto de 2013, http://www.fi nancialstabilityboard.org/publications/r_130829a.pdf .

33 O FSB emitiu igualmente um Relatório designado de Policy Framework for Addressing Shadow Banking Risks in Securities Lending and Repos, in http://www.fi nancialstabilityboard.org/publications/r_130829b.pdf. No âmbito da União Europeia, vd Comunicação da Comissão (“Green Paper”) de 19 de Março de 2012 (disponível em http://ec.europa.eu/internal_market/bank/docs/shadow/green-paper_en.pdf)

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na agenda da Comissão, o fi nanciamento não bancário à economia através de utilização destes meios de risco (mitigado por padronização), e será uma matéria de non bank banking que desenvolveremos especifi camente em próximo artigo.

2.6. A criação de um Mercado Financeiro Global (as infra-estruturas de mercado) e a criação de uma União de Mercado de Capitais.

A regulamentação das CSD’s (Central Securities Depository Regulation) foi publicada em 28 de Agosto de 2014, apesar das muitas vozes que defendiam que a sua entrada em vigor deveria ocorrer com a implementação do T2S. Também foi defendido pela indústria que este projecto deveria ser feito de uma só vez e não em quatro fases, a primeira já em 22 de Junho de 2015 com a participação de quatro centrais de valores mobiliários (Grécia, Malta, Roménia e Suíça). A CSD portuguesa, a Interbolsa, entrará neste projecto na segunda fase, em 28 de Março de 201634. Na mesma data teremos a adesão da Euroclear, CSD que presta os mesmos serviços que a Interbolsa às outras estruturas de mercado do Grupo Euronext: Paris, Bruxelas e Amesterdão35.

Neste âmbito merece também destaque a criação de uma identifi cação única para as empresas que participam (worldwide) na negociação de contratos de derivados. É feita através da denominada regulamentação LEI (Legal Entity Identifi er) conforme defi nido na Cimeira de Cannes36.

34 NOTA de actualização: A terceira fase está prevista para o dia 12 de Setembro de 2016, a quarta fase para 6 de Fevereiro de 2017 e a fase fi nal está prevista para 18 de Setembro de 2017. Em 28 de agosto de 2015 a central de valores mobiliários italiana juntou-se as quatro CSD -https://www.ecb.europa.eu/paym/t2s/about/spotlight/html/index.en.html .

35 NOTA de actualização: A Euroclear adeaou a sua entrada neste projecto para a terceira fase que ocorreu no dia 12 de Setembro de 2016.

36 A agenda do G20 tem vindo a tornar-se cada vez mais ambiciosa, como resulta da declaração resultante da Cimeira de Cannes ocorrida em 4 de Novembro de 2011. Aí se incluem preocupações como o desemprego e protecção

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Esta medida de identifi cação está em linha com a nova obrigatoriedade de comunicação das operações sobre contratos de derivados negociados OTC aos denominados Repositórios de Transacções ou Trade Repositories (TR), nascida em Fevereiro de 2014. Os Repositórios de transacções têm como função principal a recolha, manutenção e agregação de dados sobre transacções sobre derivados, reforçando a transparência nos mercados e reduzindo os riscos para a estabilidade fi nanceira.

Para além da identifi cação das partes nestes negócios, da sua divulgação pública, prevê-se para 2015 a possibilidade de liquidação dos contratos de derivados (entretanto padronizados), através de uma contraparte central (CCP) - o que implicará mais regulamentação sobre quais os contratos a padronizar, a aprovação de sistemas, criação de interoperatividade (infra). A ESMA encontra-se em fase de conclusão dos Relatórios técnicos sobre o reporte e guarda de informação sobre derivados OTC - a defi nição de derivado relevante é a que resulta da classifi cação MIFID37 -,

social, a produção alimentar global e mercados de commodities (pela assunção da necessidade de evitar a futura escassez de alimentos e volatilidade e abuso dos respectivos mercados de derivados – cfr. o recém criado Agricultural Market Information System); o problema da evasão fi scal, da harmonização fi scal e dos paraísos fi scais (atento o facto de as nações não cooperantes serem uma das preocupações da FATF e do Global Fórum); a regulação dos mercados de energia, físicos e fi nanceiros (o preço da energia, a volatilidade dos mercados, as energias renováveis e a sustentabilidade); o desenvolvimento de energias renováveis (“limpas”) e de um Desenvolvimento sustentável (cfr a iniciativa da ONU Sustainable Energy for All), protecção do meio marinho, medidas contra o aquecimento global (implementação do Green Climate Fund), são apenas uma parte da Agenda - http://www.g20.utoronto.ca/2011/2011-cannes-declaration-111104-en.html

37 Em 29 de Setembro de 2014, a ESMA colocou à consulta pública “Guidelines on the application of C6 and C7 of Annex I of MIFID”. Annex 1, Section C of MiFID provides the following defi nitions for points (6) and (7) („C6‟ and „C7‟): (6) Options, futures, swaps and any other derivative contract relating to commodities that can be physically settled provided that they are traded on a regulated market and/or an MTF e (7) Options, futures, swaps, forwards and any other derivative contract relating to commodities that can be physically settled

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seu clearing, trading e técnicas de mitigação de risco. Com Estados como a Austrália, Canadá, Hong Kong, Suíça, e nalguns aspectos parcelares, Singapura, Coreia do Sul, Índia, tem havido reuniões na ESMA entre representantes das autoridades de regulação tendo em vista o tratamento regulatório de fi liais e sucursais no estrangeiro, formas de coordenação na fi xação de padrões, e de cooperação na supervisão.

2.7. A par da União Bancária Única a Comissão Europeia Juncker lançou um Green Paper em 18 de Fevereiro de 2015, tendo em vista mimeticamente a criação de uma União de Mercado de Capitais. Embora revista a natureza de um call for papers, a Capital Markets Union questiona o excessivo papel dos bancos no desenvolvimento económico e do mercado de capitais, bem como a extrema dependência da economia do desempenho dos mercados fi nanceiros.

A preocupação actual da UE é com crescimento económico e robustecimento das empresas através de formas que vão para além das tradicionais formas de fi nanciamento bancário (titularização; crowdfunding, LTIF38). Mas será que se o voltar a antigas formas de isenção de registo de ofertas (crescimento das ofertas privadas), ou a formas de titularização e de secutiritização (mesmo que padronizadas) são a via para um melhor mercado para as PME e um maior mercado que sirva o crescimento económico?

3. A criação de uma União Bancária Única.

Em termos de novo ambiente regulatório, dada a sua importância não poderíamos deixar de descrever a criação de uma nova União

not otherwise mentioned in C.6 and not being for commercial purposes, which have the characteristics of other derivative fi nancial instruments, having regard to whether, inter alia, they are cleared and settled through recognised clearing houses or are subject to regular margin calls.

38 Sobre esta matéria o Green Paper da Comissão disponível em http://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=COM:2015:0063:FIN

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de cariz bancário. Em Junho de 2012 os Chefes de Estado e de Governo da União acordaram no aprofundamento da União Económica e Monetária39 aprofundando uma Zona Bancária única (expressão mais rigorosa que União Bancária). Como? Mediante a criação e aplicação de algumas regras comuns (single rule book) aos bancos sedeados na zona Euro da União e àqueles que a elas pretendam aderir voluntariamente (o Reino Unido, a Suécia e a República Checa declararam já que não exercerão a opção de opt in). A par da regulação única tem-se em vista uma supervisão única (art. 127º TFUE) que segundo as conclusões do Conselho Europeu de Dezembro de 2012 deveria ser apresentada pela Comissão em 2013: o Mecanismo Único de Supervisão (MUS ou SSM); um mecanismo único de intervenção nas instituições de crédito com importância sistémica (Mecanismo Único de Resolução, MUR ou SRM); e um Sistema Comum de Garantia de Depósitos.

O Conselho recomendara vivamente em 2009 que se procedesse à uniformização regulatória que visava atingir cerca de 8.300 bancos da União. Visa-se evitar a fragmentação normativa decorrente da existência de 28 autoridades centrais e as lacunas e loopholes que daí poderiam advir na supervisão de grupos transnacionais. Para além de se pretender impedir os riscos sistémicos também se visava acabar com as medidas individuais de salvaguarda “ad-hoc” que os Estados adoptaram após 2008 e que atentavam contra a liberdade de circulação. A criação de mecanismos nacionais preventivos e de ring-fencing era tão pouco aceitável numa economia global quanto o desvio de dinheiro público da economia real para a salvaguarda do sistema fi nanceiro ou para constituição de garantias pelos Estados a favor dos bancos nacionais (no fi nal de 2012 já somava 4,5 triliões de Euros).

39 É importante o Relatório de Outubro de 2012 elaborado a pedido da Comissão Europeia por um Grupo de Peritos liderados pelo Governador do Banco de Finlândia, Erkki Liikanen, relativo a medidas de robustecimento do sistema bancário e da sua efi ciência, protecção dos consumidores/investidores - http://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/ALL/?uri=CELEX:52014PC0043

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Pugnava ainda o Conselho pelo exercício centralizado na União da própria supervisão bancária no quadro do Sistema Europeu de Supervisão Financeira e das normas da Comissão e da EBA (no âmbito da qual funcionará o SSM ou MUS), da centralização das decisões e meios de recapitalização e intervenção pública na gestão dos bancos (SRM ou MUR), e na criação de um Fundo Comum de garantia de depósitos (Single Resolution Fund a par dos sistemas de garantia nacionais - Single Deposit Guarantee System).

Estes seriam considerados os “três Pilares” da futura “União” Bancária na Eurozona40.

A realidade tornaria o âmbito subjectivo regulatório pretendido um pouco menor (abrangerá cerca de 130 instituições de crédito), incidindo sobre os bancos essenciais para manutenção da estabilidade fi nanceira na União (ou, pela vertente negativa, aqueles que oferecem um claro risco sistémico).

O sistema europeu de supervisão única assenta em meios legislativos de que se destacam o Regulamento nº 575/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2013, relativo aos requisitos prudenciais para as instituições de crédito e para as empresas de investimento, e a Directiva 2013/36/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2013 relativa ao acesso à actividade das instituições de crédito e à supervisão prudencial das instituições de crédito e empresas de investimento. Este pacote decorrente é denominado vulgarmente de CRD IV

40 O aprofundamento e centralização da supervisão prudencial bancária prevista no tratado de Funcionamento da União Europeia (art. 127º TFUE) deveu-se em grande parte aos acontecimentos iniciados em 2007 e que levariam à Grande Crise de 2008. O resultado imediato foi um contágio entre as diversas instituições bancárias e os Estados, um enorme custo decorrente da necessidade de bailouts nacionais a cargo dos cidadãos contribuintes, uma fragmentação da União decorrente da adopção de medidas nacionalistas, um elevado preço com a adopção de medidas de ring-fencing funding para alguns bancos dentro das fronteiras nacionais … enfi m, um verdadeiro atentado ao mercado interno de serviços bancários e ao level playing fi eld.

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ou Capital Requirements Directive 41 e o BCE deveria proceder à elaboração de Regulamentos de acordo com as normas jurídicas e as normas técnicas e orientações e orientações sobre supervisão existentes (art. 132º TFUE) – Regulamento (UE) nº 468/2014 do Banco Central Europeu, de 16 de abril de 2014 42.

Transpondo o Acordo de Basileia III e as orientações do G2043, a legislação contém maiores obrigações e consequente custo regulatório para as instituições de crédito e sociedades fi nanceiras nacionais, não só a nível das reservas e de liquidez, mas também a nível de estrutura interna, de corporate governance e controlo interno.

Sendo aplicável a partir de 1 de Janeiro de 2015, começou a ser transposta para o ordenamento nacional em 24 de Outubro de 2014 pelo Decreto-Lei nº 157/2014 (habilitado pela Lei nº 46/2014, de 28 de Julho), embora o Programa de Assistência Económica e Financeira a que Portugal teve que recorrer levasse a uma alteração do regime geral do sistema bancário através do Decreto-Lei n.º 31-A/2012, de 10 de Fevereiro. Embora já houvesse poderes de intervenção na actividade das instituições de créditos, o diploma veio alterar o Título VII do RGIC (redenominando-o de

41 http://ec.europa.eu/internal_market/bank/regcapital/legislation-in-force/index_en.htm . Existem muitos outras fontes vg Regulamentos do BCE disponíveis na respectiva webpage, https://www.ecb.europa.eu/home/html/search.en.html?q=ssm

42 Disponível in https://www.ecb.europa.eu/ecb/legal/pdf/celex_32014r0468_pt_txt.pdf

43 O chamado Comité de Basileia nasceu das crises dos sistemas proteccionistas criados após Bretton Woods, particularmente devido à liquidação forçada do Banco Herstatt em 26 de Junho de 1974 e atentas as suas repercussões internacionais em termos de pagamentos. Visava a criação, implementação e monitorização de princípios prudenciais que prevenissem o risco da insolvabilidade de empresas bancárias e a possibilidade do seu contágio transfronteiras (CATARINO, 2010 pp. 56 e 159). O sucesso da aplicação do Acordo de Basileia de 1988 (Basileia I), assinado por mais de 100 Estados (International Convergence of Capital Measurement and Capital Standards) seria seguido de acordos denominados de Basileia II (2004) e Basileia III (2010), este último transposto para a União Europeia através do “pacote” denominado de CRD IV (supra).

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“Intervenção correctiva, administração provisória e resolução”), e aditou um Título VIII-A, com epígrafe de “Fundo de Resolução”. Devido ao Memorandum of Understanding on Specifi c Economic Policy Conditionality assinado por Portugal e o BCE, a CE e o FMI, este diploma antecipou, tal como os diplomas de 2014, as medidas comunitárias, numa sucessão de alterações normativas eventualmente ditadas pela aplicação a um caso concreto de um grupo fi nanceiro (e não fi nanceiro) nacional que irá tornar a resolução do mesmo extremamente controvertida.

Normativamente o Single Supervisory Mechanism é completado por outros Pilares regulatórios transpostos para o ordenamento jurídico nacional através da Lei nº 23-A/2015, de 26 de Março. Referimo-nos à Directiva sobre a recuperação e medidas de resolução aplicáveis a instituições de crédito e de empresas de investimento aprovada pelo Conselho em 31 de Março de 2014 e adoptada pelo Parlamento Europeu em 15 de Abril de 2014. Esta Directiva 2014/59/EU do Parlamento e do Conselho, de 15 de Maio, é também conhecida como BRRD de Bank Recovery and Resolution Directive44. Este Single Resolution Mechanism (SRM) visa completar o regime comunitário uniformizador de legislação (single rule book) e de supervisão (arts. 114º e 127º TFUE), prevendo-se a implementação de todo o mecanismo a partir de 2016. A Lei transpôs igualmente a Directiva 2014/49/EU do PE e do Conselho, de 16 de Aaril, relativa aos sistemas de garantia de depósitos.

A partir de 1 de Janeiro de 2016 entram em vigor as normas do MUR, e até lá já vigorará o sistema de cooperação entre a nova entidade reguladora do BCE (o Supervisory Board), a Autoridade Bancária Europeia (EBA) e as autoridades nacionais (infra), vg para preparação das medidas que determinem a intervenção do mecanismo de resolução.

Com efeito, a par de regras comuns ou rule book (desde logo quanto à supervisão prévia decorrente de actos como as

44 http://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX:32014L0059

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autorizações administrativas de funcionamento ou “autorizações-programa” - actos administrativos de constituição de empresas), ou os requisitos prudenciais (de rácios de capital, de reservas, de liquidez, de controlo de riscos), existirá uma supervisão micro-prudencial directa pelo Banco Central Europeu, com meios próprios de intervenção. Por esse motivo foi criado um organismo especializado do BCE denominado de Supervisory Board que se caracteriza pela sua autonomia e por deter meios independentes do BCE e das suas funções monetárias45.

A transferência para o BCE de poderes de supervisão sobre instituições denominadas de “signifi cativas” (bancos e outras instituições fi nanceiras) só ocorreu em 4 de Novembro de 2014 após uma avaliação dos seus riscos, liquidez, fi nanciamento, avaliação de activos, sua valorização, e de um stress test fi nal. Esta avaliação ou assessment visou obter uma visão completa sobre as instituições visadas eventualmente excluindo as instituições com risco e que não cumpriam as condições legais.

O mau resultado dos testes de resiliência (stress tests) efectuados na União Europeia em 2009 e de 2011, e ao contrário do que sucedeu nos EUA, não restauraram a confi ança no sistema bancário e determinaram uma especial assertividade nesta intervenção/avaliação que teve lugar até Novembro de 2014. O comprehensive

45 A entrada em vigor da nova supervisão centralizada de bancos europeus da Euro-área ou de outros que optem por um opt in (instituições com actividade transfronteiriça e com dimensão signifi cativa – mais de Euros 30bi.), depende de uma prévia avaliação de instituições de crédito da Euro-área até Novembro de 2014, da recapitalização, da desalavancagem, e da realização de stress tests. Ao contrário do que sucedeu nos EUA em 2009, os stress tests de risco e de resiliência empreendidos na Europa pela EBA não tiveram bons resultados, o que implicará também a coordenação pelo BCE dos bancos centrais responsáveis pela supervisão das demais instituições. O Sistema será dirigido por alguém com experiência adquirida no Banque de France com de Larosière e na Autorité de Contrôle Prudentiel et de Résolution - Mme. Danièle Nouy, como Chair do Single Supervisory Mechanism Board -, encontrando-se durante o ano de 2014 em fase de forte procura de colaboradores qualifi cados (cerca de 800 especialistas - http://ec.europa.eu/internal_market/fi nances/banking-union/index_en.html ).

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assessment de preparação (e cariz preventivo) poderia desencadear a necessidade de alterações a nível das “instituições signifi cativas”, como a constituição de provisões, a consolidação de grupos muito dispersos, a aprovação de meios reforçados de controlo interno, a existência de planos internos de contingência, e alterações ou intervenção na estrutura organizativa de alguns.

O mecanismo agora criado imporá um difícil equilíbrio com os mecanismos comunitários de regulação já existentes, quer os sectoriais como a Autoridade Bancária Europeia (European Banking Authority ou EBA), quer os macroprudenciais como o Comité Europeu de Risco Sistémico (European Systemic Risc Board). Estes organismos manterão a sua jurisdição sobre os Estados-membros da Eurozona, conjuntamente com os poderes detidos pelos bancos ou autoridades centrais nacionais. Serão criadas equipas mistas de supervisão para as instituições que forem qualifi cadas como Signifi cant Institutions. As autoridades nacionais perderão muitas das suas competências de regulação e de controlo home e host relativamente aos bancos que operem transnacionalmente, dentro e fora da União, e que fi quem sujeitos à supervisão do BCE.

3.1. A intervenção a posteriori. O novo enquadramento para a recuperação de instituições de crédito e de empresas de investimento (Recovery and Resolution Plans - a Directive on Bank Recovery and Resolution ou BRRD). O novo sistema de supervisão e regularização conterá também regras de intervenção a posteriori. Como? Perante a sinalização pelo BCE à Comissão (CE), às autoridades nacionais competentes (ANC) e ao Single Supervisory Board (Board), de bancos da Euro-área (ou aqueles que a ela tenham aderido) que enfrentem difi culdades de liquidez ou de solvabilidade. Poderá ser formulada uma resolução fundamentada pelo Board (onde terão assento representantes da CE, do BCE, e das autoridades nacionais), quanto aos meios adequados e necessários a utilizar. O BCE, mediante comunicação prévia à Comissão, decidirá das soluções e alternativas possíveis, vg a intervenção imediata.

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As decisões de intervenção e de aplicação de (fortes) meios de intervenção na gestão da instituição, ou alocação de recursos (ou mesmo de utilização do Fundo), dependerão de propostas do Board tomadas de forma uniforme e centralizada dentro do Euro-sistema. O Board actua em cooperação com o BCE e a Comissão Europeia. Alguns Autores discutem a legitimidade desta nova entidade para decidir e intervir na gestão de entidades privadas de forma independente, pelo que a regulação comunitária atribuiu a tomada da decisão fi nal às instâncias “constitucionais”. O Board actua também em cooperação com a EBA e as autoridades locais nacionais. Verifi cada que seja:

i) uma situação de potencial insolvência, ii) a inexistência ou insufi ciência dos mecanismos de auto-

protecção interna e de resolução que os bancos deverão deter e manter actualizadas em conjugação com os reguladores nacionais (recovery and resolution plans46), ou de outras soluções privadas, e

iii) a detecção de um risco sistémico e o interesse público na intervenção, despoletar-se-á uma resolução com as medidas necessárias para os Estados-membros e o eventual uso de fundos comuns.

Esta proposta será enviada à Comissão e a actuação dependerá de verifi cação e não objecção desta e do Conselho (conforme

46 As medidas de resolução devem passar pelos planos de contingência previamente preparados pelo próprio banco, como aumentos de capital a prosseguir pelos accionistas, pela venda de partes de negócio ou cessação de algumas actividades, pela cisão de activos e passivos (por exemplo retirando da instituição os activos tóxicos e colocando-os num bad bank – solução muito utilizada nos EUA), apoio pelos demais players bancários que pode passar pela aquisição do banco), criação de uma estrutura temporária que permita manter os serviços não afectados (bridge bank)… O Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras aprovado pelo DL nº 298/92, de 31 de Dezembro, contém já algumas medidas de intervenção reforçada, vertidas nos arts. 139.º e seguintes, e reforçadas por sucessivas alterações legislativas no corrente ano de 2014 (vd versão consolidada no Decreto-lei nº 157/2014, de 24 de Outubro).

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referimos, a estes cabe conferir previamente a conformidade da actuação proposta com as regras nacionais, o interesse público em causa e os efeitos). Ademais, a Comissão pode entender que a instituição deve ser objecto de imediato processo de insolvência47.

A acção do SRM baseia-se num mecanismo comum de intervenção na gestão das instituições em caso de crise ou de difi culdades individuais, na manutenção da continuidade da prestação de serviços pelos bancos à economia, e na prevenção de riscos sistémicos. As regras/meios constam da BRRD, que assenta na existência de uma rede de reguladores centrais e de meios e fundos de intervenção nacionais48. Mas também aqui há que criar um level playing fi eld; que proteja os depositantes e evite a moral hazard de quem exceda os limites normais da prudência na busca de lucro, por saber ter um efeito sistémico. Existe um sistema de garantia aos titulares de depósitos bancários, inicialmente fi xando uma quantia máxima de 20.000 Euros posteriormente aumentada para 100.00049. No entanto, é de relembrar que na fase de pânico perante a Grande Crise de 2008 houve Estados que declararam publicamente que garantiam ilimitadamente os depósitos de particulares (Alemanha) ou todos os depósitos (Irlanda) – o

47 Na realidade, os poderes de iniciativa do BCE, mesmo que a pedido do Board, estão limitados a uma aceitação expressa, prévia, pela Comissão, que pode objectar à Resolução ou a parte dela, ou propor ao Conselho que aprove a sua alteração (ou a não objecção). Porquê este poder da Comissão? Desde logo porque a proposta do Board pode colidir com as regras de intervenção dos Estados-membros; depois, porque na sua avaliação deverá ponderar a fundamentação, os objectivos com a relação entre os montantes a disponibilizar pelo Fundo e o interesse público em causa (vg se deverá a instituição ser objecto do processo normal de insolvência no território nacional), e os efeitos das medidas constantes da proposta/esquema de Resolução. No caso de não aprovação das medidas propostas deverá o Board adequar as suas propostas de Resolução que serão depois aplicadas e implementadas pelas autoridades nacionais competentes de acordo com as leis nacionais e as normas e princípios constantes da Directiva.

48 http://ec.europa.eu/internal_market/bank/crisis_management/index_en.htm 49 Inicialmente a quantia era de 20.000 euros, segundo a Directiva 94/19/

CE, depois alterada pela Directiva 2009/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de Março.

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que iniciou as medidas “ad-hoc” de distorção da concorrência e limitação da liberdade de circulação de capitais, de prestação de serviços e de estabelecimento.

A Directiva prevê regras também para os casos em que a actuação preventiva não é já possível, passados os estádios (i) de preparação e prevenção, e de (ii) intervenção antecipatória de crises. As soluções de bank recovery and resolution pretendem prevenir a moral hazard de quem sabe ser too-big-to-fail, através da internalização dos danos resultantes da necessidade de intervenção em caso de default ou de insolvência (uma das soluções aposta em que o custo de uma má gestão deve ser suportado pelos accionistas). Optou-se pela criação de mecanismos mutualistas: um Single Bank Resolution Fund (SRF) será constituído por contribuições dos bancos do Sistema e gerido pelo Board, fundo a realizar no espaço de 8 a 10 anos50. A dotação europeia prevista é de cerca de 1% dos depósitos cobertos (o Fundo é dinâmico). O mecanismo pretende manter a actividade de instituições com dimensão signifi cativa ou com risco sistémico que se encontrem em difi culdades, afastando quer o bail-out quer a possibilidade de contágio com crises de fi nanças públicas51.

Existem obrigações dos investidores, quer de suportar perdas, quer de recapitalizar os bancos. Um dos mecanismos possíveis de intervenção para recapitalização é a transformação de créditos

50 Durante o período de constituição o Fundo será constituído por national compartments que serão posteriormente integrados e mutualizados, o que dependerá da assinatura de um Acordo Intergovernamental entre os Estados-membros participantes. As autoridades nacionais serão chamadas não só a participar na resolução de intervenção do Board, mas a cumprir as resoluções adoptadas de acordo com a lei e os processos nacionais. O Board deterá a possibilidade de dar ordens directamente aos bancos em causa quando as autoridades nacionais não estejam a cumprir as suas determinações.

51 “Recovery and Resolution Planning for Systemically Important Financial Institutions: Guidance on Identifi cation of Critical Functions and Critical Shared Services’. Financial Stability Board, Julho 2013. http://www.fi nancialstabilityboard.org/publications/r_130716a.pdf

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em equity segundo uma hierarquia pré-determinada. Após um determinado limiar de perda de activos (threshold de 8% do total de responsabilidades) suportado por bail-in’s a autoridade pode permitir o acesso ao fundo único de resolução (infra) que cobrirá até um máximo 5% do total de activos em perda, seguindo-se uma hierarquia de pagamentos entre os stakeholders (como em todas as insolvências). A obrigação de suportar as perdas recai inicialmente sobre os shareholders e credores (p.e. titulares de obrigações convertíveis), numa hierarquia de graduação de créditos à frente dos quais estarão preferencialmente clientes singulares e PME’s com depósitos superiores a 100.000 Euros, até que possam intervir fundos públicos52.

A total entrada em vigor do SSM será 1 de Janeiro de 2016, mantendo-se após essa data a aplicação das normas e soluções nacionais no caso de crises bancárias que entretanto venham a ocorrer, bem como as competências das autoridades que tenham intervindo. Foi assumido politicamente em Dezembro de 2013 que os Estados-membros convergiriam entretanto, no que respeita à internalização dos prejuízos e dos custos (bail-in) antes de qualquer intervenção pública, pelo menos a partir de 1 de Janeiro de 2016.

No entanto, o Fundo estará constituído até 10 anos após o início das contribuições – a BRRD entrará em vigor em 1 de Janeiro de 2015 -, o que mantém até lá eventuais necessidades de intervenção pública nacional. As autoridades nacionais deverão utilizar o mais cedo possível os fortes meios de intervenção de que já dispõem sob sua competência e responsabilidade, existindo em última análise, discricionariedade na utilização dos meios conforme os casos concretos.

Em 21 de Maio de 2014 os representantes de 26 Estados-membros (o Reino Unido e a Suécia fi caram fora) assinaram um Acordo Intergovernamental (IGA) destinado a iniciar a transferência

52 Neste sentido vd as orientações do Financial Stability Board. ‘Key Attributes of Effective Resolution Regimes for Financial Institutions’ Out.2011, http://www.fi nancialstabilityboard.org/publications/r_111104cc.pdf

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e mutualização das respectivas contribuições, ao mesmo tempo que a ESMA publicava um novo Multilateral Memorandum of Understanding (MMoU)53.

3.2. Harmonização dos Sistemas de Garantia dos Depósitos (Deposit Guarantee Schemes - DGS). Mantém-se desde 1994 um sistema de garantia dos depósitos, que em Portugal é assegurado através do Fundo de Garantia de Depósitos junto do Banco de Portugal. Traduzia-se inicialmente no pagamento (imediato) de até 25.000 Euros relativamente aos depósitos dos clientes de bancos em caso de insolvência. Sucessivamente revista até aos actuais 100.0000 Euros, a Directiva 94/19/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 30 de Maio que criou estes sistemas nacionais54 foi este ano objecto de nova revisão pela Directiva nº 2014/49/UE do Parlamento Europeu e do Conselho no JOUE de 12/06/2014 (L173)55.

Também nesta matéria existiu um acordo político para a harmonização através de uma nova Directiva que alterará o regime dos actuais Fundos de Garantia de Depósito (Directive on Deposit Guarantee Schemes)56. A alteração mantém o mecanismo individual actual (não se prevê, por exemplo, a fusão futura destes fundos nacionais), e assegura que os depositantes continuarão a

53 O Acordo Intergovernamental relativo ao Fundo Europeu de Resolução Bancária foi assinado pelos 28 Estados-membros da União mais a Noruega e entrou em vigor em 29 de Maio de 2014, pretendendo conseguir uma maior cooperação e harmonização nos mercados de valores mobiliários entre as autoridades nacionais e estas e a ESMA – substituindo o MoU do CESaR de 26 de Janeiro de 1999.

54 Cfr. http://www.fgd.pt/pt-PT/Legislacao/Paginas/default.aspx 55 Cfr. http://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX:31994L001956 As preocupações europeias e o actual sistema de mutualização e de

socialização do risco através de fundos de garantia (sociais, laborais) estendem-se ao sector bancário, mas também dos serviços de investimento, e do sector segurador – vd http://ec.europa.eu/internal_market/securities/isd/investor_en.htm, ou http://ec.europa.eu/internal_market/bank/guarantee/index_en.htm, e também http://ec.europa.eu/internal_market/insurance/guarantee_en.htm

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benefi ciar de uma garantia até €100.000,00 por depositante e por banco (sendo considerados como um só depósito todos os que se encontrarem em bancos em relação de domínio ou de grupo). Também não afasta a intervenção do sistema de Indemnização aos Investidores (criado em Portugal pelo Decreto-Lei nº 229/99, de 22 de Junho57), que abrange “o dinheiro depositado, pelos clientes, junto do intermediário fi nanceiro e destinado expressamente a ser investido em instrumentos fi nanceiros”58 – cfr [email protected], “Apoio ao Investidor”, FAQ’s.

Actuando no caso de insolvência, encontra-se prevista a possibilidade de os Fundos poderem fazer empréstimos entre si em caso de necessidade. As regras segundo as quais tais fundos serão constituídos (por contribuições dos bancos) mantêm-se idênticas, excluindo, pela sua expertise, as instituições fi nanceiras e as autoridades públicas (excepto os entes locais). São no entanto fi xados os requisitos de fi nanciamento do Fundo que deverá abranger 0.8% dos depósitos objecto de garantia.

Os depositantes deverão ter informação prévia acerca destes mecanismos e respectiva cobertura no contrato com o banco, e o acesso aos fundos deverá ser mais simples e célere, à semelhança do que já sucede hoje nos EUA. Prevê-se que os 20 dias úteis possam vir a ser reduzidos a partir de 2019 (até 7 em 2024). Tais depósitos não serão afectados pelas novas regras de bail-in. Este sistema de garantia foi criado tendo em vista evitar a corrida ao levantamento de depósitos (antecâmara da morte de qualquer banco), e deveria ser substituído no futuro por um sistema pan-europeu que permitisse uma espécie de “direitos de saque” de um fundo nacional sobre outros fundos quando existam difi culdades próprias - mas por ora mantém-se nos mesmos termos nacionais com as alterações supra referidas.

57 Transpõe a Directiva n.º 97/9/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Março

58 Cfr Apoio ao Investidor”, FAQ’s in [email protected]

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3.3. Desafi os e difi culdades que se colocarão à União Bancária. Uma das questões relevantes do novo sistema jurídico que têm sido levantadas por alguns Autores é que se aprofunda a independência do Banco Central e os seus fortes poderes administrativos intrusivos no âmbito da gestão das empresas, perante os poderes legítimos e democráticos dos Estados-membros. A sua actividade mantém-se afastada de qualquer dependência e responsabilização pelo Poder Político e representantes democráticos apesar de ser o sistema nacional a poder ter de responder, perante a possibilidade de regulatory failures, em medidas interventivas com forte impacto num Estado-membro. Também é cada vez mais referida a falta de mecanismos de accountability como uma característica da nova regulação bancária, no espírito de independência dos bancos centrais face aos Políticos.

A solução assenta no dogma da independência das políticas monetárias que permite contrabalançar políticas nacionais fi scais e ter fi nanciar a criação de defi cits orçamentais tão caros aos políticos em tempo de eleições - sobretudo se está em causa diminuir o desemprego à custa de alguma infl ação. Também assim se afasta a tentação de recair nas opções Keynesianas de coordenação e manipulação de ambas as políticas macroeconómicas em prol de objectivos políticos mais vastos. Decerto começará a ser discutida tal solução quando, na prática, se verterem tais soluções em detrimento de uma função de supervisão e interesse nacional.

Com efeito, se é por muitos discutida esta supressão sobre o Poder Político de mecanismos de intervenção macro-económica, não podemos esquecer que a supervisão a nível nacional era ainda um dos meios de que os Estados-membros detinham de intervir localmente. Se olharmos a História, a independência dos Bancos Centrais foi um fenómeno criado em meados do séc. XX. Teve como precursor o Banco de Pagamentos Internacionais constituído para gerir as indemnizações de guerra devidas pela Alemanha após a I Grande Guerra (Bank of International Settlements - BIS)O estatuto do BIS foi aprovado em 1930 na conferência intergovernamental de Haia, que o tratou como se fosse uma Organização Internacional,

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independente de todo o Poder nacional e escrutínio e accountability democrática. O BCE seguiria o seu exemplo na natureza jurídica e na característica da independência, características em parte disseminadas na Europa pelo banco central alemão devidas à sua História e ao fenómeno de hiperinfl ação coevo do Reichsbank (e dos seus sucessores - o Bank Deutscher Länder e o Bundesbank), e ao excesso de massa monetária após as Grandes Guerras.

A solução adoptada em Maastricht e no Conselho Europeu em 1991, de criação de um BCE independente cujo objectivo central era a manutenção da estabilidade de preços, caracterizou o projecto de Sistema Monetário Europeu-União Económica e Monetária. Foi enquadrada num movimento de desregulação, privatização e liberalização que vinha dos anos oitenta (Consenso de Washington). Se o prémio Nobel da economia atribuído em meados de setenta a von Hayeck e posteriormente, ainda na mesma década, a Milton Friedman, poucas dúvidas deixava quanto à nova ortodoxia pós-Keynesiana, a revogação em 1999 por um democrata, Bill Clinton, do U.S. Banking Act de 1933 – conhecido por Stegall-Glass Act, nome dos seus Autores -, seria a marca maior de tal movimento59. Tal solução, como o actual Pacto Orçamental, resultou de uma clara opção infl uenciada pela doutrina monetarista aplicada pelos

59 Bill Clinton revogaria em 1999 esta lei criada para evitar novo colapso fi nanceiro e consequente risco sistémico como o que levara a América ao desequilíbrio fi nanceiro no fi nal de década de vinte, prevenindo a alavancagem, moderando a cartelização e o excesso de liquidez, separando as instituições que poderiam desenvolver a banca dita de retalho ou comercial da dita banca de investimento (com investimento em produtos fi nanceiros complexos). Apesar das duras lutas contra o sistema fi nanceiro e os bancos em especial, Franklin Roosevelt não só aprovaria em 1933 este Act mas entre 1932 e 1935 assinou igualmente entre leis reguladoras dos mercados bancário, dos valores mobiliários (Securities and Exchange Act) e um novo regulador (a Securities and Exchange Commission, a que se seguiriam outras autoridades administrativas independentes). A legislação restritiva e os próprios reguladores foram sendo objecto de ataques e da diminuição de poder, e o Steagall Glass Act seria revogado através do denominado “Citigroup Act” - a Gramm-Leach-Bliley Act Financial Services Modernization Act., de 12 de Novembro de 1999.

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“Chicago boys” no Chile e posteriormente pela “Reaganomics” e pelo “Thatcherismo” corroborada pelo exemplo do Bundesbank60.

A experiência europeia de criação do BCE juntou à independência de metas - estabilidade de preços e baixa infl ação – a independência de meios e de instrumentos. Também aqui foi clara a opção entre as várias soluções adoptadas no Mundo na relação entre os bancos centrais e os Estados, e que vão da estrita dependência (subordinação) à independência (goal independence), passando por formas de cooperação para convergência ante metas politicamente fi xadas (superintendência). Nas sociedades democráticas as autoridades e o poder público prestam contas ao Povo: face a objectivos previamente fi xados o governador de um banco central deve ser chamado a uma assembleia representativa a prestar contas (muitos Autores norte-americanos ainda hoje criticam a política da Federal Reserve da primeira década do século como co-causadora da crise - em parte decorrente do aumento de 100% do crédito concedido entre 2000 e 2008).

Ora, a nova União Bancária, a supervisão centralizada e as medidas de intervenção vêm, segundo alguns Autores, acentuar a desapropriação do poder público democrático não só dos meios e instrumentos, mas também das próprias metas, no âmbito da vigilância de proximidade dos bancos e da intervenção nacional. Assumiu-se o modelo mais forte de independência e de unifi cação, o que pode reforçar as críticas de quem afi rma que os bancos centrais e os mercados descolaram da sociedade política. Também desapropria o Poder Judicial da intervenção na gestão de empresas como as instituições de crédito, e permite a nacionalização indirecta

60 A disputa entre Ronald Reagan e Volcker em meados dos anos 80, ou o confl ito na mesma época entre o Bundesbank (política de restrição monetária contra a infl ação) e Helmut Schmidt (pretensão de fazer face ao desemprego adoptando medidas fi scais anti-recessivas para diminuir o desemprego), deveriam demonstrar como a coordenação é necessária (vd os artigos compilados em G. TONIOLO, ed., 1988, Central Bank´s Independence in Historical Perspective, Berlim, Walter de GRUTER; e Jean-Claude WERREBROUCK, Banques Centrales, indépendance ou soumission, ed. Yves Michel).

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de empresas fi nanceiras e a sua posterior reprivatização fora dos princípios fundamentais constantes dos textos constitucionais e legais nacionais que limitam juridicamente actos políticos dos Governos democraticamente eleitos (cfr. arts. 61º-62º, e 82º e 86º CRP).

Num movimento de auto-expropriação assumido nos anos 90, e decerto assumindo a má ideia que deles se propala, os Políticos continuam a libertar os bancos centrais e agora a supervisão bancária da relação principal-agent e das peias da responsabilidade e legitimidade democrática. As cada vez mais frequentes crises fi nanceiras, o papel das ecologias profi ssionais (pessoas que gravitam entre as diversas formas de poder político, social, fi nanceiro) sem preocupação com os seus confl itos de interesses, levam cada vez mais Autores a questionar-se sobre a essencialidade do modelo agora adoptado e sobretudo da legitimidade da subordinação do Poder Político e das decisões políticas de um Povo às decisões do poder fi nanceiro e económico de um grupo informal.

Também na nova União Bancária o problema da accountability nas suas diversas vertentes e plúrimas noções tornou-se essencial61. As soluções regulatórias referidas decorrem da percepção de que não basta à estabilidade do sistema fi nanceiro uma política monetária de estabilização de preços e de infl ação baixa. São necessárias medidas que previnam os riscos e que minimizem os efeitos dos choques fi nanceiros sobre a comunidade. Mas as novas medidas não afastam o risco de uma regulatory ou governmental failure que acarrete efeitos sistémicos, por exemplo esquecendo que alguns grupos ou instituições não podem simplesmente falir. Manter-se-á sempre o princípio de too-big-to-fail. Apesar das possíveis afi rmações político-populistas, se alguma lição se retirou

61 Acerca da necessidade de responsabilidade as diversas noções de accountability, vd o nosso trabalho 2014, “O Novo Regime da Administração Independente: Quis custodiet ipsos custodes?”, working paper, Instituto dos Valores Mobiliários da FDUL, p. 60, in http://www.institutovaloresmobiliarios.pt/estudos/pdfs/1390490035governar_com_a_administração_independente.pdf

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da crise iniciada em 2007 e da resposta negativa de ajuda dos maiores bancos dos EUA ao pedido de ajuda do Lehman Brothers, essa lição é de que, enquanto houver globalização, há bancos e grupos económicos cuja simples falência teria uma repercussão negativa, mesmo demolidora (sistémica). O seu efeito sobre mercados (nacionais e internacionais), sobre empresas (fi nanceiras e não fi nanceiras), sobre a economia e demais agentes económicos (Estados e famílias), mas sobretudo sobre os Mercados e os seus agentes (afastando-os do Mercado) parecem no entanto não ter afastado as crescentes políticas de criação de campeões nacionais e a regulação europeia que favorece as maiores empresas (seja de notação de risco sejam instituições de crédito, sejam gestoras de mercados ou de sistemas de compensação e de liquidação).

Como solução “mágica” para os erros cometidos após a Grande Crise em que, perante instituições em difi culdades, credores nacionais mas sobretudo estrangeiros receberam dos contribuintes dinheiro público para cumprir dívidas de instituições perante as quais os mutuantes foram muito pouco diligentes a avaliar (e negociar!), o novo Mecanismo de Resolução aposta na internalização de custos para os stakeholders. Partindo de um princípio justo esquece que existem empresas não fi nanceiras que têm uma actividade paralela à bancária igualmente signifi cativa para todo o mercado (as propostas EMIR e de regulação efectiva do fenómeno de Shadow Banking estão aí para o confi rmar). E se se pretende com esta solução libertar o público contribuinte do custo de tais intervenções (bailout), não temos como certo que assim se evite a total socialização do risco e do dano. Tal foi aliás demonstrado nas conferências promovidas em Junho de 2014 em Lisboa pelo Banco de Portugal, onde se salientou, a par da necessidade de uma accountability dos reguladores reforçada, que havia vantagens e desvantagens na moderna solução. A vantagem do sistema de bail-in na atenuação da moral hazard, a maior justeza distributiva daí decorrente e o incremento da transparência não podem fazer esquecer desvantagens como a maior morosidade do processo e sobretudo que a aplicação de tal mecanismo será algo

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de forte impacto político e particularmente litigioso - factores que temos visto levarem à perda de valor das instituições a recuperar…com consequente custo público.

Ademais, tal Mecanismo poderá também acarretar o contágio a outras instituições, tanto mais que estas medidas são, por natureza, pró-cíclicas. Com efeito, quer a universalização e transnacionalização da actividade dos bancos ou grandes empresas fi nanceiras (que englobam a actividade bancária, fi nanceira, seguradora), quer as suas relações com a economia real (através de empréstimos às empresas e aos Estados e demais administração pública, de prestação de garantias, de colateralização), com as empresas em relações de domínio ou de grupo (a quem contagiarão e não só em termos reputacionais), e com os indivíduos e famílias (que serão atingidos por via dos fundos de investimento, dos fundos ou planos ou seguros de pensões, planos de reforma, planos de saúde, carteiras de investimento das poupanças), tornam muito pouco credível que o dinheiro dos contribuintes não seja utilizado com Medidas de Resolução… Se não o for numa primeira fase, sê-lo-á pelo menos numa segunda fase.

O novo Modelo de Resolução deverá também ser prévia e amplamente publicitado (tanto quanto a existência de Fundos de Garantia), pois assim se evita que os investidores sejam surpreendidos pela concretização de um risco que desconheciam, impedindo que se gerem crises de Confi ança relativamente aos mercados de instrumentos fi nanceiros e consequências negativas para os demais bancos. Porquê? Porque serão aqueles que contratualizaram posições de investimento accionista ou obrigacionista que verão as suas justas expectativas económicas e contratuais alteradas – excepto em caso de insolvência, depósito de milhões podem fi car acautelados, mas carteiras de acções de milhares desaparecerem. Os aforristas chamados a investir no Mercado de Capitais terão uma tutela diminuída e para quem mantém relações contratuais aquando da entrada em vigor das novas soluções poderá pretender alegar uma violação do Princípio da Protecção da Confi ança.

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Outra questão preocupante é que as autoridades nacionais de regulação se mantêm responsáveis pela supervisão da maioria dos bancos da Eurozona que não serão abrangidos por este movimento de “marshallização” de réditos da União, quando necessários à manutenção da sua estabilidade. Não andaremos longe da verdade se pensarmos que a necessidade de uma intervenção musculada do SSM se deparará com uma clara acrimónia de alguns Estados em aceitar a intervenção externa sobre o seu sistema fi nanceiro (pelo menos os mais fortes economicamente). As alegações de confl itos de competências com as autoridades nacionais, os princípios constitucionais nacionais e o princípio da subsidiariedade da intervenção da União serão poderosas armas de defesa. Pragmaticamente há que aceitar que os Estados têm uma percepção dos seus mercados que falta às autoridades da União, pela relação de fi dúcia, de proximidade e pela inexistência de regras comuns e universais para todos os serviços (single rule book). As reacções nacionais perante uma intervenção da EBA ou do Board do BCE nos seus bancos (e por essa via na economia nacional) trarão ao de cima os egoísmos nacionais (que se refl ectirão nas deliberações do Conselho), pois com a supervisão única os Estados perdem um forte mecanismo que lhes permite deter algum poder interno sobre o seu mercado. E uma Medida de Resolução tomada por um organismo que não conhece as especifi cidades de um mercado ou das instituições de um dado Estado pode bem vir a ser uma regulatory failure com repercussões sistémicas graves (de onde ressurge a necessidade de accountability).

Finalmente, existe ainda a questão “Tempo”. Previsto para entrar em vigor em 2016 (!), existe ainda um período (previsível) de 10 anos até que o Fundo de Resolução seja plenamente efi caz. Como sucede com os Ciclos de Kondratiev, a observação empírica demonstra que tal como o Sol nasce todos os dias também as crises fi nanceiras estão para fi car. O fenómeno da globalização demonstra desde há três séculos que as crises são tão certas como a morte e os impostos… O novo instrumento bancário chegará a tempo de prevenir a próxima crise?

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A mais recente crise bancária ocorreu em 2014 na Bulgária, e a Comissão Europeia teve de aprovar no dia 30 de Junho de 2014 uma linha de crédito de 1,7 mil M.Euros para conter a corrida aos levantamentos bancários gerada por uma onda de especulação. Esta especulação, deliberada, aproveitara da crise política que então se vivia e teve uma consequência inusitada que se deveria repetir em outros Estados: várias pessoas foram então detidas por atentar publicamente contra a economia nacional e contra a estabilidade públicas. Se é verdade que se manterá o princípio de too-big-to-fail, não é verdade que não existam pessoas too-big-to-jail.

(Cont.)

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A NOVA REGULAMENTAÇÃO DOS MERCADOS FINANCEIROS

- UM TSUNAMI REGULATÓRIO? (PARTE II).

Sumário: O Action Plan aprovado pelo G 20 em Washington em 14-15 de Novembro de 2008, posteriormente concretizado pelo Financial Stability Board (FSB), pelo Fundo Monetário Internacional (FMI)epelo Comité de Basileia (CSBC), iniciou um ciclo de forte regulação reactiva à Grande Crise iniciada em 2007. Pretendemos dar informação sobre alguns dos (muitos) desafi os que nos esperam nos próximos anos, e este primeiro artigo debruça-se sobre parte da nova regulamentação e seu impacto económico sobre as instituições. Assim, é essencial uma palavra sobre a nova União Bancária e os desafi os que colocará uma supervisão “federal” e uma regulação administrativa escassa de accountability; a criação de um sistema de identifi cação global de transacções fi nanceiras obrigatório para todas as empresas, fi nanceiras e não fi nanceiras (sistema LEI); a regulação da negociação de contratos de derivados em mercado de balcão ou OTC, e as novas obrigações criadas para uma efectiva supervisão (regulação EMIR); ou a revisão da legislação fundamental sobre mercados de instrumentos fi nanceiros para acomodar as novas realidades, vg electrónicas (MiFID II/MiFIR). A unifi cação regulatória é um processo longo e moroso perante espaços económicos concorrentes, e as últimaseleições europeias, a divisão entre estados intra e fora Zona Euro, e o referendo na Escócia (e repercussões secessionistas) assim como o referendo no Reino Unido a realizar-se em Junho de 2016 sobre a possivel saida da Uniao Europeia não ajudarão. A par da descrição das novas medidas e seu impacto, levantaremos, como é mister num ambiente

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também académico, algumas questões que deverão ser ponderadas para que este “tsunami” regulatório avassalador não potencie market ou regulatory failures.

Luís Guilherme CatarinoManuela Peixe1

I. Introdução – a crise global enquanto detonador da re-regulação.

Perante os os novos desafi os regulatórios que se colocaram a todo o Mundo fi nanceiro, e em . concreto a União Europeia foi submergida por um manancial de regulação jurídica e económica muito pouco consentâneo com o paradigma da desregulação e de liberdade de empresa, de iniciativa ou de circulação de capitais. Os exemplos vão da União Bancária à União Financeira e no essencial caracterizam-se pelo reforço da matéria prudencial. Na falta de uma intervenção e regulação inical proibitiva e mais conformadora dos agentes e das suas actividades, sem ser dirigista) reforcam-se os requisitos prudenciais que permitam suportar futuros market failures. Vimos como os riscos se têm vindo a agravar desde a última década do séc. XX e alguns AA mantêm uma posição claramente pessimista face ao predomínio de Estados emergentes como o BRICS (cujas economias estarão alegadamente assentes em pés de barro) ou as armas de destruição assiça em que se transofrmaram os

1 Director-Adjunto na CMVM a desempenhar funções de Assessor Jurídico da Sua Excelência a Presidente da Assembleia da República) e Professor Auxiliar da Faculdade de Economia da U.A.de Lisboa. Técnica-Superior na CMVM, em exercício de funções em Paris, na European Securities and Markets Authority. O presente texto não obedece à nova ortografi a aprovada por Resolução de Conselho de Ministros, e corresponde à versão actualizada e prestimosamente complementado pela Sra. Dra Manuela Peixe, dos Seminários leccionados no Instituto de Valores Mobiliários em 2013 e fi nal de 2014 relativos às novidades decorrentes dos novos regimes comunitários. As opiniões expendidas são naturalmente pessoais.

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fundos sobreanos e os campeões nacionais (instalados por todos os Estados com as suas fi liais e empresas que após adquiridas contêm carteiras de investimentos em mercados bolsistas, alguns com bolhas especulativas bem visíveis).

Conforme referimos, no âmbito da União Europeia a Comissão defi niu em 22 de Outubro de 2013 que o ano de 2014 seria o ano de “entrega” e implementação de uma série de iniciativas tendentes a restabelecer a integridade, a efi ciência e o relançamento do mercado interno único, seguindo as orientações do G20 formuladas para todo o Mundo. Teve-se em vista acompanhar o movimento global liderado pelo FSB, mas também ultrapassar a fragmentação e o proteccionismo que se instalara após a Grande Crise nos diversos mercados nacionais, desde logo a nível da supervisão bancária. A profundidade e gravidade da crise perante as fi nanças públicas dos Estados determinou reacções imediatas por parte de muitos Estados, vg dentro da União Europeia, onde a par da tendência de “cerrar fronteiras” aos movimentos de capitais, se criou um mosaico legislativo e uma fragmentação que eleva o actual esforço de harmonização comunitária. Faremos por isso uma fotografi a do panorama regulatório criado a nível bancário com os mecanismos de supervisão única e os novos mecanismos de intervenção nas instituições de crédito.

Do vasto Work Programme salientámos já na Parte I algumas medidas regulatórias tomadas no âmbito dos mercados fi nanceiros, sem preocupação de exaustão, e explanando as que teriam já impacto a partir do corrente ano de 2014, como a regulação administrativa sancionatória e criminal do abuso de mercado (MAD/MAR), a alteração da regulação relativa aos mercados de instrumentos fi nanceiros (MiFID II/MiFIR), as medidas especiais de protecção dos Investidores contidas na Packaged Retail Investment Protection (PRIP), a regulação de protecção às Pequenas e Médias Empresas comunitárias (SME), a regulação do denominado sector de banca paralela ou shadow banking e a criação de um Mercado Financeiro Global (as infra-estruturas de mercado) e a criação de uma União de Mercado de Capitais.

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A par da União Bancária Única a Comissão Europeia lançou um Green Paper em 18 de Fevereiro de 2015, tendo em vista mimeticamente a criação de uma União de Mercado de Capitais (Capital MArkets Union).Mas a própria criação de uma União Bancária com um single rule book e uma supervisão Única não está isenta de escolhos e de críticas por exemplo quanto ao novo enquadramento para a recuperação de instituições de crédito e de empresas de investimento. Não podemos pretender que não causa estranheza o tunnel vision que as criou, nomeadamente (i) quanto ao seu âmbito de aplicação, que leva a um favorecimento dos clientes bancários face aos investidores em valores mobiliários e instrumentos fi nanceiros; (ii) quanto à sua natureza, pois implica a tomada de medidas políticas por autoridades administrativas (materialmente nacionalizações, cisões, reprivatizações); (iii) quanto às competências e atribuições conferidas aos bancos centrais que permitem uma intervenção na gestão de empresas e assunção de posição de agente de mercado (proprietários de instituições de crédito), numa confusão legal que retira a Auctoritas às autoridades Indendentes e imparciais(e claramente desconforme com as regras de uma justa e sã concorrência); (iv) ou pelas efectivas repercussões e externalidades negativas das novas medidas de intervenção, quer sobre os demais agentes, quer sobre o mercado e a economia do Estado onde é aplicado (referimo-nos concretamente aos Recovery and Resolution Plans – e à Directive on Bank Recovery and Resolution ou BRRD).

Retomemos a descrição de algumas das medidas aprovadas no âmbito da União Europeia.

(continuação da Parte I)

4. A criação de um Mercado Financeiro Global: as infra-estruturas de mercado.

A recente entrada em vigor da regulação das Centrais de Valores Mobiliários ou Central Securities Depositories (CSD’s) e a

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posterior entrada em vigor, faseada, do T2S pretenderam inter alia a melhoria da liquidação de valores mobiliários na União Europeia, o reforço de segurança das Centrais de Valores Mobiliários e um sistema único de liquidação física de instrumentos fi nanceiros ao nível da EU, desenvolvido pelo Eurosistema (T2S). A regulação dos mercados de derivados que assenta em relações bilaterais e na assunção do risco pelas partes poderia ter assentado na sua centralização obrigatória num mercado regulamentado, num MTF ou num dos futuros OTF’s, necessariamente ligados a uma CCP. Mas o legislador comunitário optou, por hora, pela obrigatoriedade de interposição de uma contraparte central entre as partes no contrato, por forma a mitigar o risco de contraparte.

4.1. A efectiva supervisão da negociação dos contratos de derivados fora de mercados. A European Market Infrastructure Regulation (EMIR2).

De acordo com a informação prestada pela Comissão Europeia, em meados de 2008 o valor do mercado de derivados negociados em OTC ascendia a cerca de 700 Biliões de Euros, demonstrando a falência do Lehman Brothers ou a operação de resgate à maior seguradora mundial (AIG) as graves lacunas que acompanharam o crescimento do mercado OTC (aí se negoceiam cerca de 80% do total de derivados3)

A dimensão do mercado e o risco decorrente da falta de transparência e de segurança (risco operacional e de crédito), determinara a intervenção do G20 em 2009, apelando a uma maior solidez dos mercados perante esta realidade e à sua salvaguarda

2 Pela sua natureza, o Regulamento comunitário é de aplicação directa e obrigatória nos Estados Membros. A sua execução depende da publicação de normas técnicas de regulamentação e de implementação que têm vindo a ser aprovadas pela ESMA e pela Comissão Europeia. O EMIR entrou em vigor dia 16 de Agosto de 2012. As normas técnicas de regulamentação necessária à sua efi cácia e execução entraram em vigor no dia 15 de Março de 2013.

3 Vd http://europa.eu/rapid/press-release_IP-10-1125_pt.htm?locale=FR

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mediante uma adequada regulação das suas infraestruturas, cujos princípios fundamentais foram crismados pelo CPSS e pela IOSCO em Abril de 2012. Os membros destas associações comprometeram-se com 24 Princípios (Principles for fi nancial market infrastructures - PFMIs) e 5 Compromissos (Responsabilities) – cfr. http://www.bis.org/publ/cpss111.htm. A verifi cação ou assessment da sua adopção para a consequente regulação iniciou-se em 2013.A União Europeia veio regular e supervisionar ex novo a negociação dos contratos de derivados fora de mercados legalmente organizados (mercado de balcão ou over-the-counter – OTC). Como? Através da European Market Infrastructure Regulation (EMIR4) vertida no Regulamento (UE) n.º 648/1012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012, relativo aos derivados do mercado de balcão, às contrapartes centrais e aos repositórios de transacções, e regulamentado por várias normas “técnicas”5.

Em termos gerais, este Regulamento veio introduzir requisitos no sentido de aumentar a transparência nos Mercados de derivados OTC e reduzir os riscos associados a estes mercados. Além da transparência decorrente de deveres de comunicação de todas as transacções efectuadas, de informação e armazenamento e disponibilização de dados sobre todos os negócios reportados a

4 Alterado pelo Regulamento (UE) n.º 575/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho 26 de Junho de 2013, relativo aos requisitos prudenciais para as instituições de crédito e para as empresas de investimento e que altera o Regulamento (UE) n.º 648/2012 e pelo Regulamento (EU) nº 600/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 Maio de 2014, relativo aos mercados de instrumentos fi nanceiros e que altera o Regulamento (UE) n.º 648/2012.

5 A legislação actual encontra-se disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.douri=OJ:L:2012:201:0001:0059:PT:PDF Acerca da verdadeira natureza jurídica das designadas normas técnicas de regulamentação como as regulatory technical standards (RTS) e normas “técnicas” de implementação ou execução, designadas implementing technical standards (ITS) e o procedimento de criação normativa, Luís CATARINO, “A Regulação Financeira da UE: refracção da disputa entre o Estado de Direito e o Direito Administrativo Global?”, AAVV, Direito dos Valores Mobiliários, vol. XII, 2011, - http://www.institutovaloresmobiliarios.pt/estudos/pdfs/1360862121.

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entidade criadas no âmbito deste regulamento - denominadas Trade Repositories -, prevê-se um dever de compensação centralizada através de Centrais de Compensação (CCP’s – infra) previamente autorizadas ao nível europeu. A segurança obtida pela interposição de uma contraparte central abrangerá algumas classes de contratos derivados (os mais frequentes e já padronizados entre as contrapartes)6, impendendo sobre os demais contratos a necessidade de se adoptarem técnicas que reduzam (mitiguem) o potencial risco sistémico deles decorrente. Esta obrigação incumbe às partes no contrato, sejam contrapartes fi nanceiras (CF ou FC) ou contrapartes não fi nanceiras (CNF ou NFC). Em complemento, a obrigação de transacção em plataformas de negociação organizada tenderá a ser uma realidade após a entrada em vigor das alterações em curso da MiFiD II/MiFIR (infra)7.Ainda, são criados novos requisitos em matéria de compensação e gestão de risco bilateral para os contratos de derivados padronizados, a obrigatoriedade de clearing de determinadas classes de derivados, os deveres de comunicação da informação relativa a todas as transacções sobre contratos, novas exigências para o exercício das actividades das contrapartes centrais (CCP’s) e a criação de requisitos para os denominados Repositórios de Transacções (TR’s, entidades que recepcionam e centralizam a informação sobre todas estas transacções).

De forma similar os EUA visam reduzir o risco sistémico e promover a integridade dos mercados swaps/derivados OTC através do Capítulo VII do Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act (DFA ou Capítulo VII). Ambas as regulações

6 A fi m de defi nir quais as classes de derivados sujeitas a compensação obrigatória, a ESMA redige RTS que especifi cam (i) aclasse de derivados OTC que deverá ser sujeita à obrigação de compensação, (ii) a data ou as datas a partir das quais a obrigação de compensação produz efeitos, incluindo uma eventual aplicação faseada, e (iii) as categorias de contrapartes a que a obrigação se aplica assim como (i) a maturidade residual mínima dos contratos de derivados OTC (artigo 5 do EMIR).

7 Cfr. http://www.esma.europa.eu/page/European-Market-Infrastructure-Regulation-EMIR

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prevêem deveres de reporte e de compensação obrigatória, e ambas pretendem a sua aplicação extraterritorial. Esta “extensão da jurisdição” depende de uma das partes ter sede num Estado-membro da EU ou ser U.S. legal Person (EMIR e DFA), ou os contratos celebrados por terceiros à EU terem um efeito directo, substancial e previsível no território da União (EMIR) ou alguma das non-US Persons em causa terem uma relação comercial directa ou relevante com actividades ou com efeitos nos EUA (regulamentação da CFTC ao abrigo da DFA).

Ambas prevêem a possibilidade de reconhecimento destes Trade Repositories com sede em Estados terceiros e a sua concretização através de orientações da ESMA e da CFTC ou da SEC8.

4.1.2. Entrada em vigor e efi cácia. Entrado em vigor em 16 de Agosto de 2012, a sua efi cácia fi cou dependente de posterior regulamentação (15 de Março de 2013), da criação de normas técnicas e da autorização e registo das novas entidades como Repositórios de informação sobre tais transacções (o início do dever de reporte iniciou-se 90 dias após registo na ESMA do primeiro Repositório – 12 de Fevereiro de 2014). A criação do desejado level playing fi eld assentará por isso num processo continuado de criação de linhas de orientação pela Comissão e pela Autoridade Europeia de Valores Mobiliários (ESMA), seja através de Orientações (Guidelines), de Perguntas e Respostas (Q&A), ou mesmo de posteriores normas de regulamentação e de implementação9.

8 Existem no entanto diferenças objectivas, desde o seu âmbito de aplicação subjectivo (o DFA não prevê a distinção entre contrapartes fi nanceiras e não fi nanceiras como o EMIR, baseando-se na noção ampla de Swap Dealer mas sobretudo de Major Swap Participants), material (a defi nição de derivado – swap e security based swap - é mais lata que a noção MIFID de derivado - a revisão da MIFID tenderá a concretizar alguns instrumentos, o que terá implicações à aplicação do EMIR, vg a alguns forwards),

9 Regulamentação e últimas Q&A – vd o website da CMVM para uma explicação completa da regulação, http://www.cmvm.pt/CMVM/Legislacao_Regulamentos/Regulamentos/Pages/EMIR.aspx.

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Os contratos de derivados a reportar serão os celebrados (i) antes de 16 de Agosto de 2012 e ainda em vigor nessa data, e (ii) em 16 de Agosto ou após essa data. Os contratos de derivados em vigor em 16 de Agosto de 2012 e ainda em vigor à data de início da obrigação de comunicação, devem ser comunicados no prazo de 90 dias a contar da data de início da obrigação de comunicação, ou seja 12 de Fevereiro de 2014, uma vez que o primeiro Repositório de Transacções foi registado junto da ESMA em 14 de Novembro de 2013, pelo que a obrigação de reporte teve início em 12 de Fevereiro de 2014 (90 dias após o registo). Os contratos de derivados celebrados antes de 16 de Agosto de 2012 e os celebrados em tal data ou posteriormente, e que não estejam em vigor à data de início da obrigação de informação, devem ser comunicados no prazo de 3 anos a contar da data de início da obrigação de comunicação (12 de Fevereiro de 2014).

Os estados membros devem designar as autoridades competentes no sentido de procederem à supervisão das CCP´s e das contrapartes fi nanceiras e não fi nanceiras tendo em conta as obrigações atribuídas por este Regulamento. O regime jurídico necessário à verifi cação e execução na ordem jurídica interna das obrigações decorrentes do EMIR (enforcement) foi aprovado pela Lei n.º 6/2014, de 12 de Fevereiro, que autorizou o Governo a regular por Decreto-lei as competências das autoridades públicas que supervisionarão o cumprimento das obrigações decorrentes da regulamentação EMIR e aplicarão as respectivas sanções.

Nos termos do Decreto-Lei n.º 40/2014, de 18 de Março (execução na ordem jurídica interna do Regulamento (UE) n.º 648/2012), a CMVM foi designada a autoridade competente para a supervisão do cumprimento de parte dos deveres impostos pelo EMIR10. Compete-lhe supervisionar, averiguar as respectivas

10 Nacionalmente, foi cometida a supervisão deste normativo comunitário ao Banco de Portugal relativamente a entidades que estejam sujeitas à sua supervisão, designadamente instituições de crédito e sociedades fi nanceiras, e ao Instituto de Seguros de Portugal para as transacções em que sejam parte empresas

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infracções, instruindo os processos e aplicando as coimas e as sanções acessórias relativamente a organismos de investimento colectivo e empresas de investimento sujeitos à sua exclusiva supervisão e às contrapartes não fi nanceiras.

4.1.3. A obrigação de compensação centralizada. O âmbito subjectivo e material de aplicação e o efeito extraterritorial. Um dos mecanismos adoptados para diminuir o risco sistémico é a obrigação de sujeitar os contratos de derivados OTC padronizados a compensação, i.e., ao apuramento de posições calculando as obrigações ou responsabilidades líquidas daí decorrentes, e garantindo o cumprimento por terceiro das obrigações assumidas, quer de disponibilização de instrumentos fi nanceiros quer de numerário (o denominado clearing). A centralização destas operações será feita através de uma Contraparte Central, i.e. uma entidade (pessoa colectiva) que se interpõe entre as partes nos contratos (contrapartes), comprando todos os contratos aos vendedores ou vendendo todos os contratos aos compradores - CCP11.

A resposta internacional à crise determinou que, de entre vários possíveis, este fosse um dos mecanismos que mitigariam o risco de crédito da contraparte. Mas a obrigatoriedade de compensação não tem em vista meramente reduzir o risco de crédito da contraparte - tal poderia ser atingido pela adopção obrigatória de medidas de cobertura pelas próprias empresas. Permite obter informação e supervisionar os participantes no mercado e saber as posições que se encontram abertas nos contratos mais comummente utilizados.

de seguros e de resseguros, fundos de pensões e respectivas entidades gestoras sujeitos à sua supervisão (art. 2.º).

11 Acerca das noções inerentes ao Regulamento EU 648/2012, com um “quadro-resumo das principais obrigações daí decorrentes e os actos normativos delegados e técnicos de regulamentação e de implementação do Regulamento, vd Nota de Esclarecimento do Conselho Nacional de Supervisões Financeiros http://www.cmvm.pt/CMVM/Cooperação%20Nacional/Conselho%20Nacional%20de%20Supervisores%20Financeiros/Documents/CNSF_NotaEsclarecimentoEMIR.pdf

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Permite o conhecimento das contrapartes (identifi cando-as, sabendo os produtos e a cadeia de relações jurídicas); aumenta a transparência (através das obrigações de informação sobre os contratos); centraliza a compensação numa contraparte central (que deve obedecer a fortes requisitos de solvabilidade sob pena de criar um gravíssimo risco sistémico); reforça os requisitos de margem e de capital de algumas entidades para prevenir o risco de default.

Na sequência desta regulação, como veremos, a proposta de revisão da Directiva relativa aos mercados fi nanceiros ou DMIF (já publicada) prevê a possibilidade de a ESMA determinar que alguns destes contratos sejam obrigatoriamente transaccionados numa plataforma de negociação (Mercado Regulamentado, Sistema de Negociação Multilateral ou OTF - trading venues), à semelhança do que sucede nos EUA sob o Título VII do Dodd-Frank Act (exchange ou swap execution facility, cfr. http://www.law.cornell.edu/wex/dodd-frank_title_VII ).

A obrigação incide sobre os contratos de derivados mais comuns e fortemente negociados fora de mercados regulados, que por isso já se encontram padronizados pela indústria e pelas associações nos seus elementos essenciais. Os critérios para a determinação da compensação obrigatória de derivados OTC serão fi xados pela CE e pela ESMA e assentam na estatuição de:

(i) “classes” de contratos derivados (dependendo do activo subjacente, da divisa, da maturidade), e

(ii) volumes de transacções, liquidez, informação eventualmente existente sobre os seus preços (art. 5º e Regulamento delegado nº 149/2013 EU, 15 de Dezembro de 2012)12.

12 A determinação dos contratos derivados sujeitos a clearing com base na sua liquidez, estandardização ou padronização, ou transparência da formação do preço, é feita pela ESMA, mas pode seguir um procedimento bottom up: as autoridades nacionais competentes poderão comunicar-lhe os contratos a compensar no respectivo Estado-membro, podendo a ESMA estender tal obrigação a toda a EU (processo similar ao previsto para a SEC ou CFTC no Titulo VII do Dodd-Frank Act).

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Tal como sucede nos deveres de reporte, a obrigação de compensação abrange as partes independentemente da sua natureza, fi nanceira ou não fi nanceira. Se no primeiro caso temos instituições de crédito, sociedades fi nanceiras, as partes não fi nanceiras são defi nidas por exclusão: todas as pessoas que não sejam empresas fi nanceiras (art. 9º). Assim, são consideradas como contrapartes fi nanceiras para efeitos desta regulamentação (art. 2º, ponto 8º do EMIR), as instituições de crédito, as empresas de investimento, as empresas de seguros, as empresas de seguros de vida, as empresas de resseguros, os OICVM (e, se necessário, a respectiva sociedade gestora), as instituições de realização de planos de pensões profi ssionais, e os fundos de investimento alternativo geridos por um GFIA – desde que abrangidos no âmbito das suas autorizações ou registos pela legislação comunitária.

No caso de empresas ou contrapartes não fi nanceiras, a obrigatoriedade de compensação depende do valor por elas assumido numa determinada classe de contrato, futuramente defi nida (clearing threshold). Estes limiares serão defi nidos por cinco classes de derivados: para os derivados de crédito, tal como para derivados de acções um limiar de 1.000 milhões de Euros; de taxa de juros, de taxa de câmbio ou de mercadorias e outros, 3.000 milhões de Euros - dependente dos valores (nocionais brutos) dos derivados e excluindo posições de cobertura de risco. 13

No caso em que a parte tenha, numa classe de contrato, num período de trinta dias, uma posição média superior aos limiares ou valores pré-defi nidos, existe a obrigatoriedade de compensação de todos os contratos de derivados (independentemente da classe

13 Cfr. art. 11.º do Regulamento n.º 149/2013, de 19 de Dezembro de 2012, que completa o EMIR no que respeita às normas técnicas de regulamentação sobre os acordos de compensação indirecta, a obrigação de compensação, o registo público, o acesso a um espaço ou organização de negociação, as contrapartes não fi nanceiras e as técnicas de atenuação dos riscos para os contratos de derivados OTC não compensados através de uma CCP (remissão da alínea b) do n.º 4 do artigo 10.º do EMIR).

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a que pertençam)14. A par desta obrigação existe o dever da sua notifi cação às autoridades nacionais competentes e à ESMA devendo compensar todos os contratos durante um período de 4 (quatro) meses após tal sujeição (alínea c) do n.º 1 do artigo 10º do EMIR).

Procede-se assim a uma sub-categorização das empresas ou contrapartes não fi nanceiras (NFC) distinguindo aquelas que estão obrigadas a compensar (designada na gírica por NFC+), Tal obrigação também despende de poderem estar em causa relações contratuais intra-grupo ou operações de mera cobertura de risco ou hedging por entidades não fi nanceiras15.

Subjectivamente, obtemos que a regulamentação se aplica a contratos celebrados: (i) entre contrapartes fi nanceiras16; (ii) entre uma contraparte fi nanceira e uma contraparte não fi nanceira (NFC+ - infra); (iii) entre duas contrapartes não fi nanceiras obrigadas a compensação; (iv) entre uma contraparte fi nanceira ou não fi nanceira sujeitas a compensação e uma contraparte com sede em país terceiro à União Europeia que estaria submetida a este mecanismo se fosse sedeada na União; (v) entre contrapartes terceiras à União desde que tal contrato fosse sujeito a compensação se as mesmas fossem aqui residentes quando tenham um efeito directo, substancial e previsível no espaço da EU (art. 4.º do EMIR). Tal como sucede no âmbito do Direito Comunitário da Concorrência optou-se por seguir a produção dos efeitos dos contratos de derivados na União e não o local ou nacionalidade ou sede das entidades que os celebrara.

14 Foi efectivamente criada uma sub-categorização destas contrapartes, distinguindo das demais as denominadas “Non-Financial Counterparty above the threshold” ou NFC+.

15 Cfr. arts. 3º, 4º, 89º Regulamento. A CFTC elaborou diversas propostas de regulamentação do Título VII, entre as quais a possibilidade de isenção de empresas afi liadas.

16 São contrapartes fi nanceiras as empresas de investimento, instituições de crédito, empresas de seguros e de resseguros, instituições de realização de planos de pensões profi ssionais, fundos de investimento – mas a enunciação não é completamente certa, havendo necessidade de interpretação vg no que respeita à qualidade de algumas entidades públicas (cfr. ponto 8) do artigo 2.º do EMIR)

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Existem várias questões muito relevantes e pendentes não podendo ser todas aqui elencadas. Desde logo os derivados relevantes para efeitos da regulamentação EMIR estão dependentes da classifi cação da DMIF, o que tem acarretado algumas dúvidas de categorização: como a Directiva contém uma obrigação de resultado e se baseou num mecanismo de regulação baseado em princípios, cada Estado-Membro fez a interpretação de tais contratos, que se verifi ca agora não ser totalmente coincidente.

Por outro lado, podendo as CCP’s candidatar-se a compensar uma ou mais classes de derivados, o processo de autorização é complexo e moroso. Estas empresas têm de se candidatar a uma nova autorização cumprindo os novos e exigentes critérios normativos e técnicos que compõem o EMIR. Encontram-se diversos procedimentos de reautorização ainda em curso (arts. 14º e 15º), prevendo-se que durante 2015 seja possível a execução de todas estas obrigações de clearing, sendo a CCP nacional OMIClear objecto de autorização no fi nal de Outubro de 2014.

4.1.4. Requisitos relativos à autorização e ao exercício da actividade de contrapartes centrais. O EMIR, enquanto instrumento comunitário criado para reduzir o risco sistémico decorrente da realização fora de mercado de milhões de contratos de derivados, implicou para as autoridades comunitárias e nacionais uma forte actividade normativa de concretização regulamentar e uma forte actividade administrativa nacional de supervisão, desde logo pela necessidade de reregular os requisitos de autorização, supervisão e funcionamento das contrapartes centrais (CCP´s)17. Implicou para estas um forte investimento na adaptação dos seus

17 Nos termos do art. 14.º deste regulamento “caso uma pessoa colectiva estabelecida na União pretenda prestar serviços de compensação enquanto CCP, deve requerer autorização à autoridade competente do Estado-Membro em que esteja estabelecida (a autoridade competente da CCP)”, sendo que para as CCPs já existentes, estas deveriam apresentar o seu pedido até ao dia 15 de Setembro de 2013.

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procedimentos e normas internas, para cumprir com os requisitos de organização, gestão de risco, deveres de reporte e os requisitos necessários a que o forte risco que nelas se concentrará seja prevenido. Implicou nomeadamente requisitos de capital muito exigentes e alterações vertidas na vasta plêiade de Regulamentos e RTS supra descritos, numa vasta regulamentação de que iremos dar, sem preocupação de exaustão, uma breve panorama.

O risco de contraparte assumido pelas CCP’s foi também reduzido através da tradicional adopção de sistemas de margens, de exigentes requisitos de capital “mark to market”, de requisitos de capital (que implicou para as CCP’s mais pequenas um grande esforço de adaptação), mas também prudenciais, comportamentais e de governance muito similares aos exigidos pela Directiva CRD IV para instituições de crédito e pela MiFID II (incluindo o reforço da idoneidade dos titulares dos seus órgãos sociais e accionistas, que se encontram submetidas a prévia apreciação de fi tness e propriety). Numa breve panorâmica, temos:

a) Requisitos organizacionais. Em termos de requisitos organizacionais as exigências são muito abrangentes, pretendendo-se que a CCP tenha políticas e procedimentos muito bem defi nidos no que se refere à sua actividade. Nesse sentido as CCP’s devem ter governance arrangements com uma clara defi nição em termos de linhas de reporte, processos efi cazes de gestão do risco, e uma defi nição clara da assunção de responsabilidades pelos órgãos de gestão, sendo exigido que as pessoas que assumem funções no conselho de administração ou no denominado senior managment tenham experiência comprovada, assim como boa reputação (existe pronúncia da autoridade nacional quanto a accionistas qualifi cados - suitability18).

18 Também nos termos do artigo 5.º do Decreto-lei n.º 40/2014 “os atos mediante os quais seja concretizada a aquisição, o aumento, a alienação ou a diminuição de participação qualifi cada sujeitos à comunicação prévia prevista no n.º 2 do artigo 31.º do Regulamento, são comunicados à CMVM e à contraparte central pelos participantes, no prazo de 15 dias”.

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As CCP’s devem assegurar que na composição do board existem membros independentes que por sua vez assumirão a presidência de um comité de risco (primeiro nível de assessment, que será interno, da actividade da CCP), econstituirão um comité de risco com representantes dos seus clearing members e clientes, que se pronuncia sobre matérias que possam ter impacto na gestão de riscos da CCP (alterações signifi cativas dos seus modelos de risco, procedimentos em caso de incumprimento pelos seus clearing members, critérios para a admissão de membros compensadores, possibilidade de compensação de novas categorias de instrumentos ou subcontratação de funções).

A par de regras para cumprimento de requisitos em termos de conservação de dados - em período de tempo e forma defi nirão planos de continuidade de negócio (business continuity plan) para que todos os registos da CCP sejam assegurados, permitindo a continuidade da sua actividade, mesmo aquando da ocorrência de desastres que impossibilitem o aceso às instalações ou registos (implica também instalações alternativas para continuidade na ocorrência de desastres, meios de recuperação da actividade).

b) Requisitos sobre normas de conduta. No que se refere às normas de conduta prestarão aos seus clearing members e demais clientes, nomeadamente trade venues, o acesso aos seus serviços de forma transparente e justa, desenvolvendo uma gestão de risco efi caz. A CCP deve estabelecer um conjunto de regras relativamente a várias matérias no sentido de assegurar o aceso transparente e equitativo dos seus clientes, nomeadamente defi ninco requisitos de acesso aos seus serviços de forma transparente e não discriminatória, assegurando-se que estes têm recursos fi nanceiros e capacidade operacional para fazer face às suas obrigações (assegurar a sua própria solidez).

Defi nirão as condições das contas abertas pelos clientes da CCP no que se refere à segregação de posições e activos entre os da CCP, dos clearing members e dos clientes dos clearing members (deve assegurar-se ainda que os seus clearing members oferecem as mesmas condições de segregação das posições e activos aos seus

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próprios clientes), e 0ferecem a possibilidade de portabilidade de posições e activos dos clearing members e seus clientes para outros clearing members, divulgando de forma clara as condições que devem ser cumpridas para que essa portabilidade possa ser exercida.

c) Requisitos de capital. No sentido de tornar estas instituições robustas em termos fi nanceiros foi defi nido que o capital inicial das CCP’s previamente à sua autorização tem que ser no mínimo de 7,5 milhões de euros. É pretendido que o capital das CCP’s, incluindo os lucros não distribuídos e as reservas, seja proporcional ao risco decorrente das suas actividades, pelo que devem dispor de capital que lhes permita a todo o momento proceder à liquidação ou reestruturação ordenadas das actividades da própria CCP ao longo de um período apropriado. A obrigação vem ao encontro de um dos objectivos principais do EMIR que é precisamente evitar o risco sistémico dispondo de capitais sufi cientes que lhe permita lidar com o default de clearing members com posições signifi cativas ou a sua própria reestruturação.

d) Requisitos prudenciais. Pelo mesmo motivo, e a fi m de evitar um Armagadeão, introduzem-se requisitos prudenciais muito exigentes, nomeadamente no que se refere à (i) gestão do risco dos clearing members, no cálculo de margens que permita limitar a exposição a CCP ao risco dos seus clearing members, (ii) o cálculo do fundo de compensação, (iii) ou a defi nição da política de investimento dos activos próprios da CCP ou os activos recebidos dos seus clearing members a título de colateral. A CCP deve ainda defi nir procedimentos claros quanto aos mecanismos a desencadear em caso de incumprimento por parte dos seus clearing members.

No que respeita ao modelo de cálculo de margens são defi nidas directrizes muito exigentes por forma a que o valor solicitado pela CCP aos seus clearing members em função das posições abertas esteja a todo o momento coberta pelos valores exigidos a título de margens. Desta forma, o modelo defi nido pela CCP deve ter em conta a oscilação do mercado para instrumento fi nanceiro que compensa, pressupondo um horizonte temporal para liquidação da posição em caso de default. Além do cálculo da margem inicial, a

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CCP no âmbito do acompanhamento da sua exposição aos clearing members pode solicitar margens adicionais caso, face às condições de mercado, a exposição ao clearing member aumente.

e) Requisitos quanto à gestão da exposição da CCP aos seus participantes. A CCP deve colateralizar a sua exposição aos clearing members diariamente, devendo manter um default fund com os fundos necessários para fazer face à exposição assumida assim como estabelecer recursos próprios com o intuito de permitir à CCP ter recursos sufi cientes para gerir o default dos dois (2) clearings members aos quais tem maior exposição em caso de cenários extremos mas plausíveis. Para este efeito a CCP deve estabelecer um “modelo de risco” que lhe permita efectuar o cálculo das margens, do default fund, de outros recursos fi nanceiros e riscos de liquidez sempre no sentido de estar preparada em termos de recursos para fazer face ao default dos seus clearing members.

A fi m de estabelecer um modelo de risco robusto, é exigido à CCP que defi na regras e procedimentos perfeitamente claros em determinadas matérias:

(i) Default waterfall, Em caso de default de um clearing member e com o intuito de cobrir as perdas a que a CCP seja sujeita, esta deve usar os seus recursos fi nanceiros numa ordem determinada: margens entregues pelo clearing member que entrou em default; as contribuições para o default fund entregues por esse clearing member em default; recursos próprios da CCP determinados para esse fi m e só depois as contribuições para o default fund entregues pelos clearing members que não entraram em default-.

(ii) Requisitos em termos de colaterais. De acordo com este regulamento os activos aceites pela CCP a título de colateral devem ser muito líquidos, para que seja fácil mobilizá-los caso seja necessário fazer face ao incumprimento por parte do clearing member, e devem ainda apresentar baixo riscos de crédito e de mercado.

(iii) Política de Investimento. O investimento dos recursos próprios da CCP e dos activos recebidos como colateral dos seus clearing members devem obedecer a critérios

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exigentes no que se refere ao risco de investimento. Desta forma, o investimento deve ser feito em numerário (cash), ou instrumentos fi nanceiros muito líquidos e que tenham subjacente riscos de crédito e de mercado muito baixos e que possam ser liquidados de forma rápida com um mínimo de efeito negativo em relação à volatilidade dos preços.

(iv) Procedimentos em caso de default. Para que a CCP esteja devidamente preparada para accionar os meios em seu poder em caso de default de um seu membro, os procedimentos a seguir nesse caso devem estar estabelecidos para permitir executar de forma pronta. Ao mesmo tempo devem conter as perdas e pressões de liquidez provenientes do default e garantir que o fecho de posições do clearing member em default não tem efeitos negativos na continuidade das actividades da CCP e garantir que os clearing members que não entraram em default não são expostos a esse default.

(v) Defi nição de modelos de risco e sujeição dos mesmos a stress test e back tests. Oe Regulamento exige que a CCP reveja de forma regular os seus modelos de risco e parâmetros usados para cálculo de margens, contribuições para o default fund, os requisitos dos colaterais e de outros mecanismos de controlo de riscos. Os modelos devem ser sujeitos a stress tests a fi m de verifi car a sua resiliência em condições de mercado extremas mas plausíveis, e a back tests para verifi car se a metodologia adoptada é confi ável.

(vi) Procedimentos referentes à liquidação das operações. No que se refere à liquidação das operações as CCPs devem tentar utilizar dentro do possível a moeda do banco central, ou seja o euro, evitando o risco a que os bancos comerciais estão sujeitos.

f) Procedimento de reautorização das CCP’s nos termos EMIR. A entrada em vigor da nova regulamentação obrigou a uma reautorização das CCP’s para operarem e serem objecto de reconhecimento mútuo em toda a União. Para tal as autoridades competentes nacionais devem constituir um colégio para

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apreciação do cumprimentos dos exigentes requisitos parcialmente descrito supra, e que terá a par da função inicial de participação no procedimento de autorização, a função de monitorizar a supervisão e posteriormente participar em possíveis alterações (p.e. de modelos de risco).

Deste Colégio fazem parte a ESMA (garantindo critérios de uniformidade no cumprimento legal); a autoridade nacional competente de supervisão da CCP (aliás, preside a esse colégio); as autoridades responsáveis pela supervisão dos clearing members da CCP estabelecidos nos três Estados-Membros com as maiores contribuições (em valor agregado ao longo do período de um ano), para o default fund da CCP; as autoridades responsáveis pela supervisão das plataformas de negociação servidas pela CCP; as autoridades que supervisionam as CCP´s com as quais tenham sido celebrados acordos de interoperabilidade; as autoridades competentes para a supervisão das centrais de valores mobiliários a que a CCP está ligada; os membros do SEBC responsáveis pela fi scalização da CCP; os membros do SEBC competentes para fi scalizar as CCP´s com as quais tenham sido celebrados acordos de interoperabilidade; os bancos centrais emissores das moedas da União mais relevantes relativamente aos instrumentos fi nanceiros compensados.

4.1.5. Contratos de Derivados não compensáveis: como mitigar o risco? Nos contratos de derivados OTC não tipifi cados e elegíveis obrigatoriamente para compensação através de contraparte central (CCP), existe uma obrigação legal de implementação de procedimentos de mitigação de risco. Esta obrigação de mecanismos para medir e atenuar os riscos aplica-se a contrapartes fi nanceiras mas também a contrapartes não fi nanceiras dado comportarem igualmente riscos operacionais e risco de crédito da contraparte19.

19 Acerca da consulta pública o documento sobre Normas Técnicas de Regulamentação relativas a Técnicas de Mitigação de Risco para Derivados OTC (RTS Risk Mitigation Techniques for OTC Derivatives) no âmbito do EMIR, vd http://www.cmvm.pt/CMVM/Consultas%20Publicas/ESMA/Pages/20150502b.aspx

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Estas entidades, nos termos do artigo 11.º do EMIR, devem efectuar as devidas diligências para assegurar que estão estabelecidos procedimentos e mecanismos apropriados para medir, acompanhar e atenuar os riscos operacionais e o risco de crédito da contraparte, incluindo, pelo menos: (i) confi rmar atempadamente os termos dos contratos de derivados OTC; e (ii) assegurar que os processos formalizados sejam sólidos, resistentes e auditáveis para a reconciliação das carteiras, para a gestão dos riscos associados e para a identifi cação precoce e resolução de litígios entre as partes, bem como para o acompanhamento do saldo dos contratos vigentes.

Neste sentido, as contrapartes fi nanceiras e não fi nanceiras devem (i) acompanhar diariamente as suas carteiras, avaliando-as a preços de mercado, ou através de uma avaliação fi ável e prudente por recurso a modelos, e (ii) devem estabelecer procedimentos de gestão de risco que exijam trocas de garantias atempadas20.

4.1.6. Criação e registo de bases de dados de informação (Trade Repositories ou TR). Os repositórios são bases de dados sobre contratos de derivados que são recolhidos por empresas comerciais, podendo ter como fi nalidade o registo de informação sobre todas as categorias de derivados ou apenas algumas classes. A informação centralizada é obrigatoriamente disponibilizada às autoridades de supervisão regionais (ESMA e Comité Europeu de Risco Sistémico21), locais (autoridades nacionalmente defi nidas como competentes em cada Estado membro22), aos bancos

20 As contrapartes fi nanceiras devem estabelecer procedimentos de gestão de risco que exijam trocas de garantias atempadas, precisas e devidamente segregadas relativamente aos contratos de derivados OTC celebrados a partir de 16 de Agosto de 2012 e as contrapartes não fi nanceiras devem estabelecer procedimentos de gestão de risco que exijam trocas de garantias atempadas, precisas e devidamente segregadas relativamente aos contratos de derivados OTC celebrados a partir da data em que o limiar de compensação seja excedido.

21 Cfr. alínea a) e b) do n.º 3 do artigo 81.º do EMIR.22 Em Portugal, com base no seu âmbito subjectivo de supervisão, o Banco

de Portugal, o ISP e a CMVM respectivamente quanto a instituições de crédito

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centrais nacionais que integram o SEBC. O EMIR preve ainda a disponibilizacao da informacao recolhida pelos TR as autoridades de paises terceiros que tenham assinado um acordo de cooperacao internacional nos termos do artigo 75 do EMIR. Neste sentido forma assinados Memoradum of Understanding (MoU) com as autoridades australianas Australian Securities and Investments Commission(ASIC) e Reserve Bank of Australia (RBA).

A responsabilidade de registo e de supervisão destas entidades compete à ESMA, conforme artigos 55.º e seguintes do EMIR. Os requisitos que estas entidades devem cumprir a fi m de obterem o registo junto da ESMA estão previstos nos artigos 78.º e seguintes do EMIR, assim como no RTS n.º 150/201323 da Comissão de 19 de Dezembro de 2012. Estes requisitos abrangem desde questões referentes à sua estrutura orgânica, ao governo da sociedade, defi nição de políticas e procedimentos e mecanismos de controlo interno. Além destas matérias, existem ainda requisitos quanto aos recursos fi nanceiros para o exercício da actividade de repositório de transacções, prevenção de confl itos de interesses, regras de acesso, fi abilidade de dados, manutenção e disponibilidade dos dados.

e sociedades fi nanceiras, o ISP (empresas de seguros e de resseguros, fundos de pensões e respectivas entidades gestoras), e a CMVM (quanto às contrapartes não fi nanceiras, aos organismos de investimento colectivo, às empresas de investimento sobre as quais tem supervisão exclusiva e (Lei nº 6/2014, de 12 de Fevereiro, e Decreto-Lei nº40/2014, de 18 de Março). A CMVM será igualmente a autoridade competente para a autorização e supervisão de contrapartes centrais e pela verifi cação da autenticidade das decisões da ESMA que aplicam coimas e sanções pecuniárias compulsórias a repositórios de transacções (artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 40/2014).

23 RTS n.º 150/2013 da Comissão de 19 de Dezembro de 2012, que completa o Regulamento (EU) n.º 648/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 4 de Julho de 2012 relativo aos derivados do mercado de balcão, às contrapartes centrais e aos repositórios de transacções, no que diz respeito às normas técnicas de regulamentação que especifi cam os pormenores dos pedidos de registo como repositórios de transacções.

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Na sequência do registo dos primeiros repositórios de transacções, em Novembro de 201324, o dever de comunicação de informação teve início no passado dia 12 de Fevereiro de 2014. Na data da entrada em vigor da obrigação de reporte o afl uxo aos Repositórios então existente foi de tal ordem que dele decorreram algumas difi culdades.

4.1.7. Obrigação de informação e reporte de transacções. O EMIR, dissemo-lo já, prevê a obrigação de reporte de informação sobre transacções relativa a todos os contratos de derivados abrangidos pela regulamentação comunitária (os instrumentos visados dependem da lista de contratos derivados consagrada na DMIF e na DMIF II), aos designados Repositórios de Transações (Trade Repositories ou TRs). Esta obrigação abrange os derivados negociados em mercado regulamentado ou negociados em mercado de balcão (OTC), independentemente do local onde terão lugar os seus efeitos (art. 10º EMIR).

Não obstante, a obrigação de reporte poderá ser delegada, e, para o efeito, existe um código universal, denominado de código LEI (infra) que deverá ser transmitido à entidade que procederá ao reporte. Nos casos de substituição, atraves dos denominados Third Party Provider a responsabilidade pelo reporte prevista no EMIR mantém-se na contraparte sujeita ao dever de reporte.

O seu âmbito subjectivo de aplicação abrange as contrapartes fi nanceiras e não fi nanceiras, bem como as CCP, quando tenham a sua sede na União Europeia – um contrato celebrado entre uma destas contrapartes e uma entidade terceira à União deve ser igualmente objecto de reporte pela primeira. Esta obrigação pode

24 À data existem 6 (seis) empresas já registadas desde 14 de Novembro de 2013, tendo-se iniciado o dever de reporte a 12 de Fevereiro de 2013, 90 dias após o registo do primeiro TR (as actuais empresas cobrem todo o leque de contratos de derivados, commodities, credit, foregin Exchange, equity, interest rates, quer as transacções tenham lugar em ou fora de mercado regulamentado e com contrapartes fi nanceiras enão fi nanceiras).

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gerar informação incompleta pois ao contrário do que sucede com os deveres de compensação, uma contraparte num negócio que seja terceira à UE poderá não ter o dever de reporte, e os contratos que sejam celebrados entre entidades terceiras mas que não tenham aplicação no território da União também não estão sujeitos aos deveres de informação.

4.1.8. Desafi os e difi culdades que se colocarão aos participantes nos mercados. Com esta regulamentação “transferiu-se a responsabilidade de prevenir o risco sistémico do sistema fi nanceiro” para as CCP’s, uma vez que se criou a obrigação de clearing em CCP’s previamente autorizadas nos termos do EMIR, obrigando estas entidades a posicionar-se em termos de organização e cumprimento de requisitos no sentido de gerir o risco destas transacções.

Apesar do mérito desta regulamentação não podemos deixar de referir o desequilíbrio entre as diferentes CCP’s, uma vez que os mesmos requisitos se aplicam a todas as entidades independentemente da dimensão das mesmas. De facto as CCP de pequena dimensão, da qual não faça parte da sua estratégia de negócio a expansão para diferentes mercados e diferentes instrumentos fi nanceiros tiveram que proceder a alterações profundas na sua estrutura no sentido de se adaptar a uma regulamentação exigente, sem que esse esforço de adaptação, tanto em termos de organização, como reforço de capitais, venha a trazer previsivelmente no aumento de negócio num curto espaço de tempo.

No que respeita ao clearing obrigatório, esta obrigação torna o “negócio” mais caro para os seus intervenientes, uma vez que além do “pagamento” inerente à transacção, existe ainda a obrigação de entrega de colateral tendo em conta a posição aberta pelo clearing members (que por sua vez irá repercutir essas obrigações, nomeadamente em termos de colateral, nos seus clientes) que implicará a disponibilização de cash ou instrumentos fi nanceiros.

Ainda quanto aos instrumentos fi nanceiros aceites como colateral, deve referir-se que estes sofreram algumas alterações face

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às crises da dívida soberana. De facto, os países que apresentaram maiores difi culdades em termos de solvabilidade nos mercados, como Portugal, viram a sua dívida soberana sujeita a aplicação de haircuts25 muito elevados, tornando a sua utilização muito cara, tendo mesmo sido “desencorajada” a sua utilização por algumas CCP’s. Desta forma, para os clearing members que tinham obrigações de dívida pública entregues como colateral viram-se na necessidade de reforçar os colaterais ou substituir os valores que detinham junto da CCP a título de colateral.

Outra das difi culdades para os participantes no mercado será a implementação de medidas de gestão de risco pelas contrapartes fi nanceiras e não fi nanceiras que não estejam na situação de compensar numa CCP as transacções em derivados. Esta obrigação, apesar de tornar as transacções de derivados, mesmo sem recurso a contraparte central, mais caras devido à troca de colateral, é uma medida importante das entidades gerirem o risco de default da contraparte do negócio.

Um dos grandes desafi os que se colocam ainda será o de processar toda a informação recebida nos Trade Repositories e fazer bom uso dessa informação para efeitos de supervisão. A obrigação de prestação de informação pode gerar informação incompleta pois ao contrário do que sucede com os deveres de compensação, a contraparte terceira à UE não tem o dever de reporte, e os contratos que sejam celebrados entre entidades terceiras mas que tenham aplicação no território da União também não estão sujeitos aos deveres de informação.

Mas antes do processamento da informação coloca-se o desafi o de validar toda a informação recebida, tendo em conta o universo de entidades que devem reportar essa informação e os campos usados para identifi cação dos negócios reportados – o que deverá implicar num curto prazo uniformização de procedimentos e de

25 Traduz um valor de “desconto” a aplicar ao instrumento fi nanceiro entregue como colateral ao seu valor de mercado ou emissão (20%, 40%), obrigando a um reforço ou substituição.

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formulários, e estabelecimento de procedimentos de supervisão assentes na obrigatoriedade sobre empresas de comunicação, de fi scalização da sua contabilidade.

A denominada “Data Quality” tem sido um dos grandes desafi os do processamento de toda a informacao recolhida pelos Trade Repositories. Neste sentido a ESMA tem trabalhado directamente com os Trade Repositories no sentido de defi nir regras de validacao da informacao recebida das contrapartes por forma a que a informacao que nao segue determinados niveis minimos de qualidade seja de imediato rejeitada pelos trade repositories e devidamente corrigida pelas contrapartes sujeitas a obrigacao de reporte. Nesse sentido foi publicada uma tabela com regras de validacao para cada um dos campos obrigatorios do reporte que deve ser efectuado pelas contrapartes26.

4.2. Uma Identifi cação Global para actuar nos Mercados Financeiros: o LEI.

Um dos mandatos saídos em 2011 da Cimeira de Cannes do G20 para o Financial Stability Board (FSB), fora de constituir um código de identifi cação de cariz global para todas e cada uma das empresas contraparte em operações fi nanceiras (“the creation of a global legal entity identifi er” ou LEI). Este “identifi cador” tem em vista permitir um maior controlo por parte dos reguladores do volume das transacções sobre derivados efectuadas por contrapartes fi nanceiras e contrapartes não fi nanceiras, reduzindo o risco sistémico, evitando abusos de mercado e uma maior transparência e fi abilidade da informação disponível. As recomendações necessárias à sua implementação deveriam ser apresentadas por um Grupo de Peritos do FSB (Expert Group, EG) até Junho de 2012. Este Grupo englobava representantes do regulador norte-americano CFTC, da ESMA, de Associações de empresas e seria posteriormente substituído por um Comité de Execução da FSB, o

26 https://www.esma.europa.eu/policy-rules/post-trading/trade-reporting

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LEI Implementation Group, que apresentaria uma Carta regendo toda a estrutura do novo sistema27.

O sistema teria de ser imposto num calendário pré-defi nido (31 de Maio de 2013), contando com o empenho e autoridade das entidades públicas dada a forte resistência que as empresas privadas e respectivas associações foram colocando, ao longo do tempo, à sua criação e adopção. Para evitar a possibilidade de exploração abusiva da informação assim recolhida, ou a exploração nos preços de acesso à mesma (o preço deve estar associado aos custos e não revestir o carácter de renda de monopólio), prevenir a possível falta de qualidade ou o abuso da utilização da informação pelos detentores (violando a privacidade e confi dencialidade dos dados, ou procedendo à sua venda), o sistema assumiu o cariz de bem público. Dotado de características que permitissem no futuro a sua adaptabilidade a novos objectivos e cumprindo elevados padrões de qualidade e fácil acesso a todas as empresas, o LEI

27 A Cimeira de Cannes realizou-se em 4 de Novembro de 2011, acolhida pelo Presidente Sarkozy que afi rmara em 25 de Setembro em Toulon, no rescaldo do crash fi nanceiro mundial, que l’autorégulation pour régler tous les problèmes, c’est fi ni. Le laissez-faire, c’est fi ni. Le marché qui a toujours raison, c’est fi ni. Os resultados desta Cimeira, como a Cimeira de 2009 em Pittsburgh, enquadram-se nas reuniões iniciadas em 2008 tendo em vista a recuperação da economia global e a criação de uma rede regulatória global (global networking). Na Declaração Final da Reunião de Cannes, “Building our Common Future; Renewed Collective Action for the Benefi t of All”, foi determinado i.a. que(…) We must ensure that markets serve effi cient allocation of investments and savings in our economies and do not pose risks to fi nancial stability. To this end, we commit to implement initial recommendations by IOSCO on market integrity and effi ciency, including measures to address the risks posed by high frequency trading and dark liquidity, and call for further work by mid-2012. We also call on IOSCO to assess the functioning of credit default swap (CDS) markets and the role of those markets in price formation of underlying assets by our next Summit. We support the creation of a global legal entity identifi er (LEI) which uniquely identifi es parties to fi nancial transactions. We call on the FSB to take the lead in helping coordinate work among the regulatory community to prepare recommendations for the appropriate governance framework, representing the public interest, for such a global LEI by our next Summit (…) - https://www.g20.org/sites/default/fi les/g20_resources/library/Declaration_eng_Cannes_0.pdf

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e a informação dele decorrente não serão objecto de direitos de propriedade intelectual, industrial ou outra que impeçam o acesso e redistribuição28.

O projecto é global (GLEIS), e apresenta uma estrutura institucional de atribuição de LEI’s que segue um modelo federal: assenta em unidades locais que serão o interface com os clientes na obtenção, conservação e validação da informação relativa ao código que as unidades atribuirão. Preservando a sua língua e ordenamento jurídico local (estas unidades podem ser públicas ou privadas) tais estruturas designam-se por Local Operating Units ou LOU’s, podendo existir várias num Estado (ou nenhuma, como sucede actualmente em Portugal), assegurando-se a livre e gratuita transferência do código LEI atribuído por uma LOU, para outra das diversas LOU’s autorizadas (transmissão designada por “portabilidade”).

A relação jurídica e económica ou de cooperação entre tais “unidades locais” será preferencialmente realizada através de protocolos, e os padrões por que se regem, a verifi cação, criação e sua aplicação uniforme por uma será feita por entidade superior de acordo com princípios “constitucionais”. Estes princípios fundamentais decorrem de uma Carta de princípios designada por Global Regulatory Oversight Committee Charter.

O funcionamento operacional do sistema e a participação da indústria e dos peritos, é assegurada por uma entidade legal superior às LOU’s, e que se designa por Central Operating Unit (COU).

Esta entidade (COU) seria criada por um Implementation Group (IG) especialmente criado para o efeito, com contributos

28 O Relatório inicial e as respectivas 35 Recomendações do FSB (Recommendations for the Development and Implementation of the Global LEI System) bem como os princípios que as guiaram (Global LEI System High Level Principles aprovados pelo G20 em 2012 em Los Cabos) e a Global Regulatory Oversight Committee Charter aprovada pelo FSB e G20 como topo da pirâmide do Sistema, podem ser consultadas em http://www.fi nancialstabilityboard.org/publications/r_121105c.pdf

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de reguladores e da indústria (fi nanceira e não fi nanceira). No topo da pirâmide, e a supervisionar a Central Operating Unit estará o Regulatory Oversight Committee (ROC). Em rigor, o IG supra referido foi igualmente incumbido de lavrar a “Carta constitucional” do sistema acima referido, que após aprovação do FSB e do G 20 regerá todo sistema Global.

O ROC, cuja instalação estava inicialmente prevista entre Outubro e Novembro de 2012 (foi-o em Janeiro de 2013, reunindo-se pela primeira vez em Toronto, nos dias 24/25 daquele mês), designa os membros do Board of Directors do Central Operating Unit (COU). Comanda e rege todo o sistema global que funciona em rede e que se encontra subordinado às regras e princípios constantes da Global Regulatory Oversight Committee Charter – cfr Anexo I. No LEI Regulatory Oversight Committee (LEI ROC) terão assento as autoridades nacionais que aderirem aos princípios magnos de governação, na qualidade de membros (caso do Banco de Portugal) ou de observadores (como a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários) – actualmente o Plenário tem mais de 70.

A estrutura institucional piramidal do GLEIS será composta por todas estas entidades, enquadradas pelo ROC numa fundação sem fi ns lucrativos denominada de Global Legal Entity Identifi er Foundation ou GLEIF. Fundada pelo FSB, esta fundação foi criada em 26 de Junho de 2014 e os estatutos aprovados em 24 de Agosto de 2014. Tem sede também em Basileia, vigorando sob o regime jurídico suíço.

A crise fi nanceira iniciada em 2007/8 foi a janela de oportunidade para relançar o projecto global, que foi prontamente aceite pela IOSCO e pelo CPSS. Lançariam em Janeiro de 2012 um Relatório sobre as transacções de derivados em OTC e a possibilidade de agregar a informação sobre as mesmas através de um “identifi cador” universal. Assim aumentava a transparência, o controlo prudencial, a supervisão comportamental (o problema da criação artifi cial de mercado poderia igualmente ser mitigado). A vantagem do sistema reside na sua disseminação worldwide – pese embora daí possam decorrer problemas de certeza e completude de

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informação sobre aquelas contrapartes que não aceitam afastar o anonimato necessário aos negócios ou o sigilo decorrente das suas ligações a associações públicas ou mesmo soberanas.

Também nos EUA a Commodity Futures Ttrading Commission (CFTC) seguiu este caminho de aceitação das Recomendações do Finantial Stability Board e criação das LOU’s, para reporte de dados relativos a contratos de swap (identifi cação de swap counterparties, swaps recordkeeping e swaps data reporting), e Relatórios sucessivos e orientações e padrões a serem adoptados a nível global29. As entidades que proveriam à CFTC Interim Compliance Identifi ers (CICI’s) foram lançadas logo em 201230.

Como se operacionaliza este Sistema? As contrapartes nos contratos de derivados passarão a ser identifi cadas por um código legal alfanumérico denominado de Legal Identity Identifi er (LEI), de cariz global e considerado como um bem público (supra)31. Este identifi cador é aprovado pelas já referidas entidades ou unidades locais previamente autorizadas e denominadas de LOU’s. Estas distinguem-se pelos quatro primeiros dígitos dos LEI’s que atribuem, sendo este código conferido a entidades jurídicas (públicas ou privadas mas excluindo as pessoas singulares ou naturais), com

29 Os diversos Relatórios de progresso nesta matéria, bem como a Carta e as orientações defi nidas pelo FSB podem ser vistas em https://www.fi nancialstabilityboard.org/list/fsb_publications/tid_156/index.htm. Este Relatório elaborado em 17 de Janeiro de 2012, denominado Report on OTC derivatives data reporting and aggregation requirements (http://felugyelet.mnb.hu/data/cms2332273/IOSCOPD366.pdf) seguiu a Recomendação 19 do 2º Relatório de progresso do FSB (Second progress report on OTC derivatives market reforms implementation), e pode ser visto no website do BIS e da IOSCO. Seria depois complementado por um Relatório conjunto, com o Committee on Payment and Settlement Systems do BIS, Bank for International Settlements, denominado por Principles for fi nancial market infrastructure, de Abril de 2012 (disponível in http://www.bis.org/publ/cpss101a.pdf)

30 Acerca dos requisitos normativos da CFTC para tais funções, lançados desde 13 de Janeiro de 2012, http://www.cftc.gov/ucm/groups/public/@lrfederalregister/documents/fi le/2014-17643a.pdf

31 Cfr. http://www.leiroc.org/list/leiroc_gls/tid_162/index.htm

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características de exclusividade, verdade, reconhecimento mútuo e portabilidade gratuita entre LOU’s (cfr. a Recomendação nº 9, e o esquema de atribuição fi xado em 12 de Março de 201432).

O código LEI deve obedecer ao standard fi xado pela International Organizations for Standardisation (ISO 17442:2012), e até o procedimento estar completo as entidades locais que podem registar os LEIs serão designadas por pré-LOU’s33. O número de identifi cação é atribuído mediante o pagamento de um preço inicial e uma taxa anual que não devem ter em vista o lucro ou impedir o acesso ou a concorrência, por excessiva34.

Os códigos LEI utilizados na fase inicial são designados de “pré-LEI” e as instituições que já atribuem códigos considerados compatíveis com o sistema LEI são como tal reconhecidas pelo LEI ROC (as designadas pré-LOU’s35). A Central Operating Unit

32 Cfr. http://www.leiroc.org/publications/gls/lou_20130318.pdf33 As pré-LOU’s que pretendam integrar o sistema global terão de observar

princípios e orientações (guidelines) uniformes e compatíveis com a transição futura para o sistema defi nitivo, e que foram fi xados em 27 de Julho de 2013 - Principles to be observed by Pre-LOUs that wish to integrate into the Interim Global Legal Entity Identifi er System (GLEIS), in http://www.leiroc.org/publications/gls/lou_20130727.pdf

34 Este código é composto de 20 dígitos, destinando-se a cumprir o desiderato do G20 e do FSB de existir um código de identifi cação mundial para todas as partes que intervenham em negócio. A regulação deste número de identifi cação pode ser encontrada no Regulamento EU. Actualmente não existem entidades nacionais que aprovem tais “identifi cadores” pessoais, podendo as contrapartes recorrer a qualquer entidade no espaço da União Europeia. http://www.drsllp.com/blog/lous-theyve-got-number/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=lous-theyve-got-number

35 O Legal Entity Identifi er Regulatory Oversight Committee (LEI ROC) coordenará as candidaturas a Local Operating Unit (LOU)- http://www.leiroc.org/publications/gls/lou_20130318.pdf . As instituições que já atribuem códigos considerados compatíveis com o regime LEI e como tal reconhecidas pelo LEI ROC são designadas como pre-LOU’s e pre-LEI’s – cfr. http://www.leiroc.org/list/leiroc_gls/tid_162/index.htm. A EBA publicou em 29 de Janeiro de 2014 uma Recomendação EBA/REC/2014/01 sobre a utilização do código LEI para efeitos de supervisão das entidades da área bancária que estejam abrangidas pelo dever de comunicação ou reporte. A Recomendação dirige-se ao Banco de Portugal

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sedeada em Basileia (COU) verifi cará no futuro o momento em que os designados “pré-LOU’s” e os pré-LEI passarão a ser LEI’s Globais (as entidades nacionais que apoiaram a criação das pré-LOU’s são fortemente incentivadas à verifi cação do cumprimento dos requisitos e padrões fi xados, para posterior adesão total ao sistema36).

Existem inúmeras vantagens na utilização deste código em termos de supervisão. A identifi cação única das contrapartes dos negócios sobre derivados OTC permitirá às autoridades de supervisão obter a informação completa sobre os negócios realizados e as contrapartes intervenientes, facilitando o cruzamento de informação sobre esses negócios efectuados por toda a Europa e reportados aos diferentes centros de armazenamento e tratamento de dados existentes (os Trade Repositories ou TR’s), permitindo ter uma ideia mais global em termos de risco total assumido pelas contrapartes.

Por ora, existem algumas difi culdades na implementação do sistema decorrentes do acesso por empresas nacionais a tais repositórios, a supervisão das LOU’s e o enforcement. Foi sentida alguma difi culdade no cumprimento deste normativo pelas empresas nacionais não fi nanceiras que utilizavam naturalmente contratos de derivados com outras empresas no âmbito da sua actividade, e que o desconheciam. Dado o desconhecimento destas últimas sobre o novo normativo comunitário, também as empresas fi nanceiras que deveriam obter os códigos junto das suas contrapartes não fi nanceiras sentiram difi culdades. Este foi um fenómeno que ocorreu em todos os Estados, e as mesmas foram agravadas nos Estados onde não existia uma LOU nacional.

Também a existência de estudos prévios de impacto no âmbito da EU demonstrar-se-iam essenciais, quer para analisar o impacto

para que verifi que que as instituições de crédito e as sociedades fi nanceiras, sob a sua supervisão, detenham os códigos emitidos pelas pre-LOU autorizadas (pre-LEI) http://www.eba.europa.eu/documents/10180/561173/EBA-REC-2014-01+%28Recommendation+on+the+use+of+the+Legal+Entity+Identifi er%29.pdf

36 A lista das pré-LOUs existentes pode ser vista em http://openleis.com/lous .

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regulatório quer para fazer uma análise custo-benefício. Neste último caso tem valido o argumento de que a prevenção de um risco sistémico vale o custo da regulação universal.

Ao mesmo tempo corre-se o risco de o pulular destes organismos levar a uma dispersão de informação em razão da nacionalidade das partes, do território da celebração ou do cumprimento dos contratos, do local da sede das contrapartes na União ou extra-União… Tal pode tornar difícil o acesso imediato por parte de qualquer regulador à informação ou a obtenção de uma informação completa e actualizada. Trabalha-se actualmente numa futura regulação que centralizará no futuro toda a informação ou pelo menos o canal da sua obtenção.

5. Sistemas de liquidação e Centrais de Valores Mobiliários (a regulação das CSD) e T2S.

Apesar de ser uma regulamentação ainda recentemente entrada em vigor que será por nós objecto de uma descrição mais detalhada em posterior escrito, não poderíamos deixar de dar nota sobre a regulação das CSD’s e do T2S que completarão parte do Sistema de reforço e de controlo dos mercados, e que de certo modo se conjugam com o EMIR, o LEI, a MiFID II/MIFIR.

A regulamentação das Central Securities Depositories, foi publicada em 28 de Agosto de 2014. O Regulamento (EU) n.º 909/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Julho de 2014, relativo à melhoria da liquidação de valores mobiliários na União Europeia e às Centrais de Valores Mobiliários (CSD’s) que altera as Directivas 98/26/CE e 2014/65/EU, e o Regulamento (EU) n.º 263/2012, entrou em vigor no vigésimo dia seguinte à sua publicação no Jornal Ofi cial da União europeia, ou seja, 17 de Setembro de 2014. Em rigor, nem todas as disposições entram em vigor ao mesmo tempo, até porque muitas normas carecem de publicação de posterior regulamentação por normas técnicas (as Regulatory Technical Standards - RTS).

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Este Regulamento estabelece requisitos uniformes relativamente à liquidação de instrumentos fi nanceiros na União Europeia, assim como regras de organização e conduta relativamente às Centrais de Valores Mobiliários que veremos em próximo texto.

A sua aplicação integral depende da publicação de RTS, estando previsto que a ESMA apresente à Comissão Europeia os projectos de normas técnicas de regulamentação até ao dia 18 de Junho de 2015. Estas normas técnicas abarcam variadas matérias, nomeadamente no que se refere a medidas destinadas a prevenir a ocorrência de falhas de liquidação (art.6.º), a resolver as falhas de liquidação (art.º7), ou requisitos de ordem organizativa e prudencial (art.º 26 e 42.º respectivamente).

Desta regulamentação resultarão algumas alterações ao regime actual, nomeadamente:

(i) A alteração do ciclo de liquidação. Para transacções sobre valores mobiliários, instrumentos do mercado monetário, unidades de participação em organismos de investimento colectivo e licenças de emissão, executadas em plataformas de negociação. A data de liquidação prevista não pode ser posterior ao segundo dia útil a contar da data em que é efectuada a negociação37;

(ii) Novos requisitos em matéria de organização, de exercício da actividade e prudenciais que as CSD’s devem cumprir de forma permanente. Sendo as CSD’s responsáveis pela gestão dos sistemas de liquidação de valores mobiliários, assim como pela aplicação de medidas destinadas a promover a liquidação atempada na União Europeia,

37 Actualmente o ciclo de liquidação é em T+3. Desta forma, no que se refere à passagem do ciclo de liquidação de T+3 para T+2, o grupo Euronext decidiu proceder a esta alteração no primeiro fi m-de-semana de Outubro de 2014 (4 e 5 de Outubro) simultaneamente nos cinco mercados a contado geridos pela Euronext (Portugal, Bélgica, França, Holanda e Londres). Refi ra-se ainda, que estava prevista a passagem do ciclo de liquidação de T+3 para T+2 no primeiro fi m-de-semana de Outubro na maior parte das jurisdições envolvidas na implementação do projecto T2S – Target 2 Securities.

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é essencial garantir a segurança e a fi abilidade de todas as CSD’s de forma uniforme. É obrigatória a existência de um plano de continuidade de negócio, assim como a implementação de regras de governação societária transparentes, que assegurem os interesses tanto dos accionistas como dos participantes nas CSD’s. As normas de conduta devem determinar e publicitar critérios objectivos e não discriminatórios para a participação nos sistemas, promovendo a transparência das relações entre as CSD e os seus utilizadores;

(iii) Normas relativas à disciplina de liquidação no sentido de prevenir as falhas de liquidação, assim como um regime sancionatório que penalize a sua ocorrência;

(iv) A possibilidade de prestação de serviços noutro Estado-Membro, num regime de liberdade de prestação de serviços ou através da constituição de uma sucursal, dada a sujeição a requisitos comuns. Este regime estava apenas previsto para o exercício de actividades de intermediação fi nanceira por instituições de crédito e empresas de investimento: alarga-se a fi gura do passaporte comunitário para os serviços de registo inicial de valores mobiliários num sistema de registo centralizado (serviço de registo em conta) e o serviço de estruturação e administração de sistema centralizado de valores mobiliários (1.º nível de registo) a fi m de eliminar os actuais obstáculos à liquidação transfronteiriça;

(v) Os Estados-membros devem designar legislativamente as autoridades nacionais envolvidas especifi camente na supervisão destas entidades e na aplicação (enforcement) deste Regulamento comunitário;

(vi) Todas as instituições que procedam a liquidação fora de sistemas de liquidação devem reportar esses valores às autoridades designadas como competentes. Pretende-se que as autoridades competentes tenham informação quanto à dimensão da liquidação existente fora dos sistemas de

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liquidação, e assegurar que os riscos provenientes dessa liquidação são monitorizados e controlados;

(vii) As CSD’s devem solicitar autorização similar à exigida pelo EMIR (autorização operativa), e nova autorização para subcontratar a um terceiro o exercício de um serviço principal;

(viii) As CSD’s devem defi nir o momento a partir do qual as ordens de transferência são introduzidas nos seus sistemas e se tornam irrevogáveis nos termos da Directiva 98/26/CE;

(ix) Sempre que possível, e a fi m de evitar riscos de liquidação face à insolvência de um agente de liquidação, é fomentada a liquidação através dos bancos centrais e não de bancos comerciais;

(x) As CSD’s que operem simultaneamente como instituições de crédito fi cam sujeitas aos requisitos de fundos próprios e de reporte aplicáveis às instituições de crédito estabelecidos no Regulamento (EU) n.º 575/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho e na Directiva 2013/36/EU (CRD IV), dado acarretarem um risco sistémico;

(xi) Também para evitar o risco sistémico e falhas regulatórias, a supervisão das instituições de crédito designadas ou das CSD’s autorizadas a prestar serviços bancários auxiliares da liquidação, perante os requisitos prudenciais do Regulamento (UE) n 575/2013 e da Directiva 2013/36/UE, e os requisitos prudenciais do Regulamento nº909/2014, deverá ser confi ada às autoridades designadas competentes perante o Regulamento (UE) nº 575/2013. A fi m de garantir uma aplicação coerente das normas de supervisão, foi considerado conveniente que os serviços bancários das CSD’s cuja escala e natureza possam representar um risco signifi cativo para a estabilidade fi nanceira da União sejam directamente supervisionados pelo BCE;

(xii) a fi m de exercer um efeito dissuasivo e de assegurar a aplicação uniforme das sanções em todos os Estados-

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Membros, o Regulamento prevê uma lista das principais sanções e outras medidas administrativas que devem estar à disposição das autoridades competentes, como meio dissuasivo e uniformizador de jurisdições (artigo 63.º deste Regulamento);

(xiii) a ESMA desempenhará um papel central, garantindo a aplicação uniforme das regras da União pelas autoridades nacionais competentes e a resolução de diferendos entre elas;

O Regulamento contém em Anexo uma lista para os serviços das CSDs a solicitar autorização:

- serviços principais, como o registo inicial de valores mobiliários num sistema de registo centralizado, serviço de estruturação e administração de sistema centralizado de valores mobiliários e gestão de sistemas de liquidação de valores mobiliários;

- serviços auxiliares de tipo não bancário que não impliquem riscos de crédito ou de liquidez, nomeadamente serviços relacionados com o serviço de liquidação; e

- serviços bancários auxiliares, nomeadamente serviços de pagamento que envolvam o tratamento de operações em fundos e de operações cambiais.

6. Um Sistema único de liquidação. O projecto T2S – Target to Securities.

O Target 2 Securities (T2S) traduz-se num sistema único de liquidação física de instrumentos fi nanceiros ao nível da EU, desenvolvido pelo Eurosistema, e que assentará numa plataforma electrónica única a que os agentes fi nanceiros podem aceder directamente (Directly Connected Participant - DCP) ou através de uma CSD nacional (Indirectly Connected Participants - ICP).

Esta plataforma engloba duas vertentes distintas: a vertente de instrumentos fi nanceiros que implica a adesão das CSD’s; a vertente monetária ou cash, área da responsabilidade dos Bancos

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Centrais cujo sistema actual target238 terá algumas alterações para se adaptarem a esta nova plataforma.

O projecto de harmonização da área do post trading faz parte do processo europeu de integração do sistema fi nanceiro a que nos temos vindo a referir (e que será objecto de estudo detalhado, com a regulação CSD e MAD/MAR em próximo texto). No âmbito da implementação deste projecto foram criados grupos que acompanhamos desenvolvimentos que cada CSD terá que implementar a fi m de cumprir com todos os requisitos legais pré-defi nidos, elaborando relatórios semestrais onde são apresentados os resultados do cumprimento destas entidades com as exigências do projecto.

Neste sentido foi criado o T2S Advisory Group39 (AG), apoiado pelo Harmonization Steering Group40 (HSG) que elabora relatórios de progresso, semestral e anual, para análise e discussão no AG. Fde um conjunto de matérias previamente identifi cadas

Os participantes do mercado (intermediários fi nanceiros e emitentes) podem escolher qual a CSD, das que tenham aderido a esta plataforma de liquidação, através da qual pretendem aceder ao mercado. Escolhendo a CSD que apresente uma melhor relação

38 O TARGET2 é o Sistema de Liquidação por Bruto em Tempo Real do Eurosistema, que funciona sob a responsabilidade do Banco Central Europeu. Este sistema assenta numa plataforma única partilhada, designada por Single Shared Platform, desenvolvida pelo Eurosistema para a liquidação em tempo real de pagamentos em Euros.

39 O T2S Advisory Group (AG) tem também por missão assessorar o Eurosistema no que respeita a material relacionada com o projecto T2S, assegurando que o mesmo corresponde na sua implementação e desenvolvimento às necessidades de mercado. Para tal, o AG é composto de representantes de todos os stakeholders, i.a. CSDs, instituições de crédito e bancos centrais nacionais. O AG tem como especial fi nalidade as matérias do T2S relacionadas com a policy, a governance, e a harmonização no âmbito do settlement de instrumentos fi nanceiros

40 Este Grupo é composto pelo Board do T2S, do AG, e a sua actividade é alicerçada pelo T2S Team e pelos T2S National User Groups ou NUGs, tendo em vista fi xar uma exigente agenda de harmonização do pós-trading acompanhando a implementação dos padrões de harmonização.

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qualidade de serviços /custos. Para as CSD’s este projecto exige um grande esforço de meios técnicos e humanos, em especial as de menor dimensão. Sendo um procedimento on going, será objecto de futuro texto mais aprofundado.

7. A revisão da regulação sobre mercados de instrumentos fi nanceiros (MiFID).

A MiFID (Directive on Market Financial Instruments) constitui a base da regulação dos mercados fi nanceiros na União Europeia, preenchendo espaços regulatórios que vão da autorização e supervisão de empresas de investimento ou intermediários fi nanceiros (empresas que pratiquem a título profi ssional serviços de investimento), comercialização e negociação de instrumentos fi nanceiros e formas organizadas de negociação multilateral e bilateral (actualmente os mercados regulamentados, os sistemas de negociação multilateral e a internalização sistemática).

Foram publicadas em Junho de 2014 alterações à regulação sobre mercados de instrumentos fi nanceiros contida na vulgarmente conhecida MiFID (aprovada pela Directiva 2004/39/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de de 21 de Abril de 2004). A Directiva está particularmente focada em alguns aspectos de intermediação fi nanceira pura: regras de conduta e sanções, formas técnicas de negociação, autorização de empresas de investimento estrangeiras, desenvolvimento de novas actividades comerciais relativas à colecta, transmissão de centralização de informação sobre a negociação nas diversas plataformas de negociação (trading venues), e algumas alterações aos actuais modelos de mercado organizado – vg sobre o âmbito de deveres dos denominados internalizadores sistemáticos.

A par da nova Directiva existe um Regulamento (EU) nº 600/2014, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15Mai2014, “relativo aos mercados de instrumentos fi nanceiros e que altera o Regulamento (EU) nº 648/2012 (novo Regulamento ou MiFIR) especialmente dedicado à negociação (deveres de transparência

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pré e pós-negocial, concentração, tratamento e disseminação de informação sobre negociação) tentando contribuir para um level playing fi eld quanto à transparência (informação pré e pós-negocial), às diversas estruturas de negociação. Inclui o complemento necessário às exigência do G20 no que respeita à negociação de derivados OTC em plataformas de negociação ou trading venues e concretiza numa fonte jurídica de aplicação directa e imediata e dotada de primazia sobre a legislação ordinária nacional, como o Regulamento (i.a. o Regulamento 1095/2010), os poderes de injunção (permissão e/ou proibição) da ESMA sobre os reguladores estaduais e /ou as empresas nacionais.

Afastada a principle based regulation anglo-saxónica (Directiva 93/22/CEE, do Conselho, de 10 de Maio de 1993, relativa aos serviços de investimento no domínio dos valores mobiliários, comummente conhecida por DSI), a rule based regulation extrema o princípio do level playnig fi eld através da aprovação de Regulamentos comunitários e da prática da regulamentação por actos delegados e por normas técnicas da ESMA, que fi xarão os critérios e requisitos de informação para questões tão díspares quanto autorizações de funcionamento das empresas de investimento, ou a informação para aferição da idoneidade de detentores de participações qualifi cadas, ou obrigações de transparência pré e pós negociação. Continua a vigorar a regra de proibição do gold platting (ia, arts. 16º, nº11, 24º, nº12 MiFID II).

7.1. A vertente de supervisão comportamental e protecção do investidor. Existirão algumas mudanças no âmbito comportamental da actividade fi nanceira, pois os intermediários fi nanceiros e as entidades gestoras de trading venues assumirão um mais forte papel como gatekeepers dos investidores. Os intermediários fi nanceiros devem ter uma forte cultura interna de linhas de reporte, de divisão de serviços e de responsabilidade, tal como vem vertido para as instituições de crédito, sociedades fi nanceiras e empresas de investimento na alteração do RGICSF pelo novo Decreto-Lei nº 157/2014, de 24 de Outubro. Para além da

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responsabilidade dos responsáveis pela função compliance, assume-se a responsabilização de todos os supervisores pela actividade dos seus colaboradores, obrigando-se assim a uma cultura interna em que estes devem colocar àqueles todas as dúvidas que tenham. A existência de manuais internos exigidos actualmente e reforçados pelo diploma supra referido, não deve ser um pró-forma, devendo todos os colaboradores saber da sua existência e cumprirem-nos de forma efectiva.

Aperta-se a malha dos requisitos e dos deveres que impendem sobre os profi ssionais que prestem aos clientes o novo serviço de consultoria, independente ou não independente, ou comercializam produtos estruturados ou complexos, e sobre as estruturas de governo das empresas de investimento obrigando-se a uma actividade prévia de due diligence. Também são fortemente reguladas matérias como:

(i) a execução de ordens nas condições mais favoráveis para os clientes denominada de princípio da best execution. Constitui obrigação dos Intermediários Financeiros divulgarem anualmente, por classe de instrumentos, os 5 (cinco) melhores locais (trading venues e IS, bem como plataformas de negociação de países terceiros) em termos de volume anual global, onde executaram ordens de clientes, e prestarem informação sobre a qualidade dessa execução vg em termos de preço (art. 27º MiFID II). Não esquecendo a fragmentação dos mercados que foi decorrente da MiFID, e do custo inerente à procura de preços por diversas plataformas de negociação pelas empresas, a MiFID II interveio estabelecendo repositórios de informação (dados) sobre transacções, com volumes de negociação e de preços disponibilizados em tempo real a um preço comercial razoável ou, de forma pública num tempo diferido (após 15 minutos – infra);

(ii) os confl itos de interesses com full disclosure são particularmente regulados (art. 23º MiFID II), por exemplo decorrentes de retrocessões (os inducements

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são restringidos - art. 24º, nº9 MiFID II - e nalguns casos banidos como é a regra na consultoria independente ou nos casos de gestão de carteiras41);

(iii) o comissionamento deverá ser abrangido por políticas de remuneração que evitem confl itos de interesses entre empresas e seus clientes, como nos casos de prémios de desempenho dos funcionários com base em objectivos de vendas, ou de quantidades mínimas de venda de um produto (Orientações ESMA/2013/60, 3 de Junho 2013, e cit. art. 24º, nº10);

(iv) acentuam as obrigações de registo e guarda de informações vg de ordens por via telefónica e comunicações electrónicas mediante prévio aviso dos seus clientes que podem solicitar aos intermediários tais gravações (rekord keeping pela qual Portugal lutou bastante para que se tornasse uma obrigatoriedade legal, art. 16º, nº7 MiFID II).

O exercício da actividade de consultoria para investimento deverá ser precedido de informação ao público sobre a sua natureza - independente ou não independente -, i.e., previamente à contratação do aconselhamento, o consultor deve prestar ao cliente informação sobre a qualidade em que actua e as particularidades da sua actividade (art. 24º, nº4, a) MiFID II). Não interferindo com os deveres de informação (sobre o cliente - Know Your Customer ou KYC - e situação pessoal e fi nanceira e objectivos - suitability assessment, art. 25º MiFID II), a independência decorre inter alia da base alargada sobre a qual é necessariamente formulado um dado aconselhamento. Há que fazer o disclosure da base de aconselhamento, da inexistência de retrocessões e redução a escrito

41 Nos casos em que são permitidos, se o serviço de investimento for efectuado a favor de um investidor tais comissões devem-lhe ser dirigidas (consultoria ou gestão de patrimónios), e nos demais serviços minor benefícios serão aceites quando permitam desenvolver o serviço e a sua qualidade e seja transparente, i.e., sejam previamente comunicados aos clientes (art.s art. 24º, nºs 7, b) e 8 MiFID II).

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da relação de consulta (cit. art. 24º, nº7), quando no presente não existia regra legal com a obrigação de demonstrar perante o cliente a análise prévia base do aconselhamento vg perante os produtos disponíveis no mercado, ou outra base para o conselho formulado (no entanto, vd Orientações ESMA/2012/387, 25 Junho 2012).

Tal passa a ser essencial, por caracterizador e legitimador da consultoria independente: saber se os instrumentos fi nanceiros sob aconselhamento foram emitidos por uma entidade que faz parte do mesmo grupo a que pertence o consultor; se a análise e a amostra prévia ao aconselhamento concreto foi alargada a diversos produtos adequados, emitentes e mercados para melhor satisfazer os objectivos do cliente; se foram previamente indicados os produtos intra-grupo, i.e., que os produtos apresentados são os fornecidos por entidades que têm relações estreitas, jurídicas, económicas, contratuais, que podem fazer perigar a independência da consultoria – cfr. diversas disposições contidas na alínea c) do nº 4 do citado art. 24º.

Tal como a Directiva 2003/36/EU (DSI) já tinha fi rmado com a análise fi nanceira (research), as mensagens, informações ou comunicações meramente comerciais devem ser claramente identifi cadas como tal (art. 24º nº3 MiFID II). No âmbito da Directiva 2004/39/CE, os estudos de investimento deveriam ser claramente distintos das comunicações comerciais, exigindo-se aos Estados-membros que regulassem tais comunicações através de uma “declaração clara e proeminente (…) de que não foi elaborada de acordo com os requisitos legais concebidos para promover a independência dos estudos de investimento (…)” – cfr. art. 24º da Directiva 2006/73/CE da Comissão, de 10 de Agosto de 2006.

Para além de os produtos deverem corresponder aos objectivos do cliente (arts. 1.º, nº4 e 91.º MiFID II), e ao target do produto, proíbe-se que produtos que sejam complexos pela sua estrutura ou face ao seu entendimento por um cliente médio, por incorporarem derivados, por serem produtos sobre produtos ou por incorporarem um risco difi cilmente perceptível ao investidor, possam ser comercializados numa base execution-only (art. 25.º, nº 4 MiFID

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II), devendo o consultor acompanhar os investimentos fazendo uma avaliação periódica desta correspondência (periodic assessment of the suitability).

Aliás, o designado product governance, i.e., o processo de concepção e de comercialização de produtos fi nanceiros, passa a ser supinamente importante para efeitos de adequação e de supervisão, sendo mister que a comercialização seja não só adequada ao cliente mas igualmente que este corresponde ao cliente alvo ou target market do produto (princípio da dupla vinculação). A sua natureza, o alvo (target market) e os riscos inerentes são previamente identifi cados, compreendidos e assumidos pelo emitente e pelo comercializador (arts. 16.º, nº3 e 24.º, nº2 MiFID II). Em última análise os reguladores (nacionais e/ou a ESMA) disporão de poderes para suspender a comercialização de produtos fi nanceiros complexos, ou limitá-la a determinados tipos de investidores, ou utilizar a bomba atómica da proibição para os produtos que não sejam do interesse do investidor, que atenda a uma “preocupação relevante” na sua protecção ou na integridade do mercado (arts. 40.º-2.º MiFIR e art. 9º do cit. Regulamento EU constitutivo da ESMA, nº 1095/2010). A proibição ou a restrição temporária podem ter lugar num Estado-membro ou em toda a União, e pode incidir sobre um produto mas igualmente sobre uma actividade ou prática fi nanceira, verifi cados que sejam factos subsumíveis aos fundamentos elencados nos artigos 40º e 42º da MiFIR.

A globalização pugna pelo reconhecimento de sucursais estrangeiras que pretendem operar em Estados-membros da EU (art. 46.º-9.º MiFIR). No entanto a regulação europeia não foi tão longe quanto as propostas iniciais, proibindo-se as suas actividades quando se pretendam dirigir aos clientes de retalho ou a investidores não qualifi cados. Obrigando a um registo centralizado e público na ESMA (art. 48º), os Estados-membros não poderão recusar a prestação de serviços no seu território nem adicionar requisitos regulatórios (excepto a divulgação da sua limitação relativamente aos clientes-alvo, pois existe a obrigação pré-negocial de informar que só podem prestar serviços a contrapartes elegíveis e clientes

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profi ssionais). Tal reconhecimento implicará, nos termos gerais do Direito Internacional Público, uma avaliação prévia pela Comissão Europeia atentos os princípios da reciprocidade e da equivalência (art. 47º), onde decerto será ponderada a resolução de problemas como da lei aplicável à sua actividade e do foro aplicável – matérias que não foram ainda objecto de abordagem expressa e defi nitiva (o artigo 46º, nº6, estatui que tais empresas proporão, nos respectivos contractos, a submissão de eventuais confl itos a um tribunal judicial ou à arbitragem).

7.2. Regulação das Estruturas de Mercado – Num sector em que a técnica ultrapassa rapidamente a regulação jurídica, a Directiva acolhe e regula alguns das novas formas de negociação organizada, à semelhança do que fi zera anteriormente a DMIF: (i) os Mercados Regulamentados (MR, arts. 4º, nº1, 21 e 44º ss MiFID II); (ii) os Sistemas de Negociação Multilateral (SNM ou MTF de Multilateral Trading Facilities, art. 4º, nº1, 22 MiFID II), ou a (iii) Internalização Sistemática ou IS, art. 4º, nº1, 20 MiFID II). Teremos uma nova categoria de mercados organizados ou plataformas de negociação (trading venues) no artigo 4º, nº1, parág. 23 da MiFID II, denominados de Sistemas de Negociação Organizados (SNO ou OTF´s, de Organized Trading Facilities). A negociação OTC electrónica efectuada através de plataformas geridas por empresas de investimento onde se realizam encontros de ordens, de forma atípica e fora da regulação legal, sobretudo de instrumentos non-equity, constituiu uma consequência da regulação MiFID e do fi m do princípio da concentração. Embora fosse uma consequência previsível face à realidade tecnológica que já então proliferava, as realidades latamente englobadas na fi gura de broker crossing networks trouxeram a distorção dos mercados e a opacidade, numa concorrência desleal com as plataformas de negociação reguladas que levou a uma race to the bottom.

A nova fi gura de OTF, tal como o recentrar da fi gura da internalização sistemática (em que as ordens são executadas contra carteira própria e não cruzam ordens multilaterais),

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decorrem da necessidade de enquadrar regulatoriamente sistemas de negociação electrónica regular (tal como sucedera anos atrás com a consagração legal dos SNM), organizados, mas não autorizados nem regulados pelas entidades de supervisão, e não obrigados a deveres de funcionamento, de acesso ao mercado de disponibilização de informação pré e pós-negociação (dark pools) 42. A nova fi gura está vertida numa catch-all provision, e visa abarcar qualquer sistema multilateral organizado, presente ou futuro, que não seja MR ou SNM, onde se encontram interesses contrapostos (ordens de compra e de venda de terceiros), sobre obrigações, produtos fi nanceiros estruturados, licenças de emissão e derivados. Na realidade, os derivados sobre commodities eram já instrumentos fi nanceiros previstos na DMIF e negociados em MR ou em SNM, mas o alargamento aos OTF’s não permite negociar equity. Negociando contra carteira própria, os gestores destes mercados autorizados são sujeitos a regras de transparência e de conduta similares às aplicáveis aos mercados regulamentados e sistemas de negociação multilateral, criando um level playing fi eld para negociação de produtos non-equity. As acções admitidas a mercados regulamentados, apenas poderão ser negociadas por empresas de investimento, fora de casos ocasionais e de forma não sistemática, em MR, SNM, OTF, ou IS ou plataformas de negociação estrangeiras devidamente reconhecidas – arts. 23º MiFIR.

A Directiva tenta recentrar a fi gura de Internalizador Sistemático (IS) do art. 21º do Regulamento 1287/200643.

42 Actualmente a Euronext detém uma dark pool, denominada SmartPool, que “is an exchange led trading platform matching buyers and sellers in a non-displayed environment. It operates a dark order book dedicated to the execution of institutional order fl ow, offering minimal market impact at improved prices.”

43 Empresas de investimento “que, de forma organizada, frequente, sistemática e substancial, negoceiam por conta própria executando ordens de clientes fora de uma plataforma de negociação” (cfr art. 4º, nº1, 20 MiFID II e Considerando 19 MiFIR), que serão previamente comunicados à autoridade competente e à ESMA (art. 18º, nº4 MiFIR). Uma vez mais, deverá ser previamente fi xado o que se entende por “forma frequente, sistemática e substancial”, tal como o supra referido “mercado líquido” que imporá deveres de transparência sobre preços e transacções.

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Inclui toda a empresa de investimento que de forma organizada, frequente, sistemática, substancial, negoceia por conta própria, executando ordens de clientes (negociação bilateral), fora de uma plataforma de negociação. Excluem-se os casos de negociação OTC “ad-hoc” ou ocasional, ou multilateral, i.e., que conjugue múltiplos interesses de compra e de venda (por regra, o broker tem aqui uma intervenção não neutral, negociando contra carteira própria e assumindo riscos). Os Internalizados Sistemáticos (IS) continuarão a ter de ser registados junto das autoridades reguladoras (até à data foram poucos, inexistindo qualquer IS em Portugal) 44. O seu âmbito é alargado, dado que actualmente apenas abarca, como regra, a negociação contra carteira própria de acções negociadas em mercado regulamentado (art. 201º CódVM). Serão abrangidos todos os intermediários que negoceiem contra carteira própria as ordens transmitidas pelos clientes, em OTC, de uma forma sistemática, e frequente, dependendo do volume de trading que fazem em OTC, em relação ao instrumento ou `negociação na União num determinado instrumento (art. 4º, nº1, 20 MiFID II).

A efi ciência dos mercados e da formação de preços determinam que os requisitos de informação pré-negociação (por exemplo ofertas de preços fi rmes) sejam igualmente aplicáveis a IS relativamente a acções, certifi cados de depósitos estruturados, negociados em trading venues, para os quais exista um “mercado líquido” (conceito indeterminado a preencher pela ESMA em RTS) bem como para obrigações, produtos fi nanceiros estruturados, licenças de emissão e derivados negociados numa plataforma de negociação, desde que exista igualmente um mercado líquido – embora aqui a pedido (arts. 2º, nº 17 e 14º-8º MiFIR). Dependendo da redacção fi nal, muitas das designadas plataformas electrónica hoje existentes passarão a ser incluídas no seu âmbito regulatório, e dos inúmeros deveres de transparência pré e pós-negocial - por

44 Actualmente esta forma organizada de negociação está prevista no Código dos Valores Mobiliários (art. 201) apenas para “acções admitidas à negociação em mercado regulamentado”.

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exemplo comunicação de volume, preço e hora das transacções de valores mobiliários negociados numa trading venue a uma APA (art. 20º-22º MiFIR).

A transparência, a não fragmentação e a efi ciência dos mercados fi nanceiros exigem, perante a existência de diversas plataformas de negociação, a comunicação e consolidação da informação sobre todas as transacções (arts. 20º-1º MiFIR), e a sua disponibilização em tempo real, tendo sido adoptada a possibilidade de prestação de tais serviços pela própria indústria, de forma comercial, concorrencial, remunerada, tal como na regulamentação sobre negociação de contratos de derivados sobre mercadorias (Trade Repositories).

Salienta-se o completar do “ciclo EMIR” decorrente da cimeira do G20 de Pittsburgh, ao estatuir-se que deverão ser objecto de negociação em plataformas de negociação (MR, SNM, OTF) os contractos de derivados OTC normalizados ou padronizados, entre contrapartes fi nanceiras e/ou contrapartes não fi nanceiras, anteriormente elegíveis para compensação “e que sejam sufi cientemente líquidos” (noção a completar por legislação de segundo grau da ESMA – arts. 28º e 32º MiFIR e Regulamento (EU) 648/2012. Como consequência “natural” da harmonização das transacções, pese embora possa haver relações estreitas entre alguma plataforma de negociação e CCP, o acesso às CCP’s será livre para qualquer das plataformas (cumpridos os respectivos requisitos), não podendo existir discriminação entre plataformas em termos de exigências para compensação dos contractos de derivados aí negociados, ou diferentes requisitos de garantia e de compensação, de recurso a margens e de comissões (arts. 29º, 35º-6º MiFIR).

A desregulação e fi m da concentração operada pela MiFID não produziu modos de auto-organização pela própria indústria pelo que a Comissão sentiu necessidade de regular a prestação de informação pública e consolidada sobre os preços, volumes de negócios e instrumentos negociados. A plena execução do princípio da execução nas melhores condições (best execution) perante a fragmentação

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do mercado, a existência de diversos mercados não ofi ciais e não sujeitos a deveres públicos de efi ciência e transparência, e o enorme custo para as empresas de investimento decorrentes da procura de preços post trade determinou a necessidade da sua concentração. Prevê-se agora a necessidade de constituição de sociedades que gerem “Sistemas de Publicação Autorizados” de transacções, em nome de empresas de investimento (as APA ou Approved publication arrangements, arts. 20º-1º MiFIR), ou um “Sistema de Reporte Autorizado” de informação sobre transacções aos reguladores nacionais ou à ESMA (ARM, de Approved Reporting Mechanism), que se encontra dependente de supervisão pública (prévia, decorrente da autorização, e contínua, durante a colecta e transmissão de dados, art. 59º-62º e Secção D do Anexo I MiFID II). O mesmo sucede com as entidades que sejam autorizadas a prestar um serviço que se traduz na recolha e no tratamento electrónico de dados relativos a instrumentos fi nanceiros que sejam negociados em trading venues por forma a poder prestar informação em tempo real sobre as transacções (mediante pagamento de um fee), em termos de preços e volumes (os Prestadores de Informação Consolidada ou CTP, de Consolidated Tape Provider, arts. 65º MiFID II e 6º e 20º MiFIR).

Estes serviços objecto de supervisão podem ser prestados por empresas especializadas, empresas de investimento ou entidades gestoras de plataformas, obedecendo a exigentes requisitos humanos, técnicos, materiais e de idoneidade e inexistência de confl itos de interesses, arts. 64º-6º MiFID II). Sendo reguladas pelo Regulamento (EU) nº 600/2014, a actividade das APA e CTP deverá ser prestada tanto quanto possível de forma a fornecer informação em tempo real “numa base comercial razoável”, tornando-se pública (acessível gratuitamente) 15 minutos após publicação (as APA estão igualmente obrigadas a prestar informação às CTP). O reporte de informação às autoridades competentes implica para empresas de investimento e gestoras de plataformas, o dever de guarda de documentos num prazo mínimo de cinco anos (arts. 25º-6º MiFIR)

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É importante salientar que a Directiva inclui no âmbito dos instrumentos fi nanceiros os contratos de derivados de energia com liquidação física (i.e., mediante entrega física) também negociados em OTF, mas também as Licenças de Emissão de gases com efeitos de estufa. Um dos motivos para incluir estes últimos instrumentos (os contratos de derivados sobre os mesmos já se encontravam abrangidos pela DSI), decorreu da insufi ciência do regime de registo e de comercialização destas licenças criado pela Directiva 2003/87/CE do PE e do Conselho. Tal sistema potenciara fortes e públicas burlas informáticas que determinaram o desaparecimento de direitos no valor de milhões de Euros, o que deveria acabar. Por outro lado, a falta de procura de tais licenças perante a oferta existente determinara um preço que levaria em Dezembro de 2013 o Parlamento Europeu a suspender os leilões de emissão de licenças45.

A solução encontrada decorreu também da percepção pelo G20 do futuro problema da escassez de determinadas commodities a par da opacidade da sua negociação e da formação de preço (é público no que respeita ao sector da energia), sendo aplicável a todos os contratos negociados na União. A Directiva e o Regulamento contemplam a possibilidade de fi xação de restrições na sua negociação, e de limitar ou restringir as posições detidas num determinado período por traders em derivados de (sobre)

45 Para além das insufi ciências deste mercado na correcta formação de preços e transparência, a plataforma de negociação e registo eram claramente fracas e vulneráveis. Todos nos lembramos de como a Comissão Europeia, após a suspensão da negociação pela Bluenext, suspendeu em Janeiro de 2011 o comércio destas licenças devido às burlas e ataques informáticos e ao desaparecimento do sistema europeu de comércio de emissões, de direitos no valor de milhões de Euros. Comunicado o desaparecimento do equivalente a licenças de 475.000 toneladas de CO2 pela Blackstone Global Ventures (tal já sucedera em outros Estados), o comércio fora suspendido sucessivamente pela República Checa, Polónica, Grécia, Áustria (http://www.publico.pt/economia/noticia/bruxelas-podera-suspender-comercio-de-emissoes-de-co2-devido-a-roubo-informatico-de-licencas_1476081, consultado em 22 Maio de 2014).

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mercadorias (commodities). Esta procura de efi ciência pode ser feita de forma preventiva (estabelecendo limites à dimensão das posições líquidas de uma pessoa num dado momento numa plataforma de negociação - incluindo nos open interests os contractos de derivados OTC “economicamente equivalentes”), ou de um determinado contrato de derivados de mercadorias (arts.57º-8º MiFID II). Este controlo é feito pelo regulador competente numa base de supervisão contínua ou ongoing mas também pela empresa de investimento e pela entidade gestora do mercado onde se negoceia, em face de uma alteração do fornecimento dessa mercadoria ao mercado ou da posição de um membro, podendo determinar o encerramento ou diminuição, temporária ou defi nitiva, de posições em tais contractos. Os agentes do mercado que negoceiem tais derivados e licenças de emissão, estão também obrigados a deveres de informação diários às gestoras das plataformas, (incluindo sobre a negociação e as posições em OTC, “incluindo as posições dos seus clientes, dos clientes desses clientes até se chegar ao cliente fi nal”, nº3 do artigo 58º) e de informação pública semanal com posições agregadas (para além dos pedidos “ad-hoc” da autoridade competente).

Estes deveres de reporte são extensivos à negociação de licenças de emissão e derivados negociados em trading venues, sendo um dos meios utilizados para prevenir posições meramente especulativas e/ou excessivas (possibilita-se a isenção de tais deveres, vg perante contratos de cobertura ou hedging, e de empresas não fi nanceiras), e a correcta formação dos preços. Num fenómeno de globalização, a regulação em rede na EU tem no topo a coordenação e gestão de posições e seus limites pela ESMA, culminando esta network regulation com a consulta da Agência de Cooperação dos Reguladores da Energia (ACER) para produtos energéticos grossistas, e outros organismos de regulação de mercados agrícolas físicos no que respeita a medidas sobre derivados de mercadorias agrícolas (arts. 44º-5º MiFIR).

Pelo mesmo motivo, de prevenção de abusos de mercado, de tornar o mercado efi ciente e controlar a correcta formação dos

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preços, evitando, por exemplo, a possibilidade de transmitir e cancelar múltiplas ordens num sector em que a técnica ultrapassa rapidamente a regulação, a nova Directiva teve de acolher e regular não só novos mercados organizados mas também alguns meios electrónicos para negociação automática.

7.3. Negociação automática ou Automated trading. Uma discussão ainda em aberto respeita aos agentes profi ssionais que através de técnicas de negociação algorítmica desenvolvem estratégias de criação de mercado. Nas palavras da Comissão, Algorithmic trading is trading done using computer programmes applying algorithms, which determine various aspects including price and quantity of orders, and most of the time placing them without human intervention”. Traduz-se na utilização na negociação em plataformas de negociação de meios electrónicos, pré-programados para transmitir ordens ao mercado, com base em instruções decorrentes de meros programas de computador elaborados por especialistas matemáticos. Estes programas informáticos assentam em parâmetros desenhados com base nas variações de quantidade, de preço, de volatilidade, de tempo, e assumem a transmissão de uma instrução de compra ou de venda nessa base. Tais programas têm a clara vantagem de aumentar a liquidez de um mercado e diminuir o preço das operações realizadas por pessoas físicas.

Uma subdistinção é usualmente feita dentro do automated trading, para o que é conhecido como high frequency trading (HFT). O HFT não é uma estratégia de negociação mas a utilização de tecnologia extremamente sofi sticada e que é utilizada para implementar estratégias tradicionais (art. 2º, nº 40 MiFID II). Normalmente caracteriza-se pelo facto de se deterem posições, compradoras ou vendedoras, durante um curtíssimo espaço de tempo, para tirar vantagem das oportunidades de arbitragem entre a subida ou a queda de preços, intervindo em milissegundos – para além de uma latência mínima, pode decorrer de uma partilha de instalações no (co-location), ou a maior proximidade do, ou um

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acesso de alta velocidade na geração, no encaminhamento ou execução de ordens ou transacções sem qualquer interferência humana).

Os intermediários fi nanceiros que são membros de um mercado (MR ou SNM) permitem que os seus clientes usem os seus códigos de acesso (trading ID). No direct market access (DMA) o fl uxo de ordens dos clientes passa pelas infra-estruturas tecnológicas do intermediário fi nanceiro. No sponsored access (SA ou DA) há uma ligação informática directa entre o cliente do intermediário e o mercado. Este é um aspecto que necessita forte regulação, pois ao celebrarem este tipo de contratos com os seus clientes os intermediários estão a criar membros de mercado de 2ª linha, tendo estes um dever reforçado de supervisão sobre tais clientes, quer aferindo da sua idoneidade, das suas características (evitando estar perante empresas que apenas existem para dar a clientes acesso ao mercado46), ou volume de negócios perante a capacidade fi nanceira da instituição.

A futura regulação impõe deveres sobre os detentores destas tecnologias mas também sobre as sociedades gestoras de mercados onde as mesmas serão utilizadas, numa forma de prevenção e de co-responsabilização por eventuais crashes bolsistas que tais tecnologias podem gerar e/ou potenciar, como o famoso fl ash crash da “terça-feira negra” (6Mai2010)47.

46 Recentemente a SEC acusou um dos maiores traders , a Wedbush Securities Inc., pela violação de deveres de defesa do mercado ao dar acesso ao mercado a clientes domiciliados por todo o mundo, sem um prévio controlo ou aprovação ou existência de meios de monitorização e cessação de tal acesso e actividade - http://www.sec.gov/News/PressRelease/Detail/PressRelease/1370542011614#.VGwGPFIpXoY

47 O primeiro crash decorrentes da utilização destes meios ocorreu em 6 de Maio de 2010, tendo sido exaustivamente estudado pelos reguladores norte-americanos CFTC e pela SEC – cfr o respectivo Relatório em http://www.sec.gov/news/studies/2010/marketevents-report.pdf . O crash iniciou-se às 14.32m quando um broker iniciou um programa algorítmico de grande venda de contractos de futuros (75.000 E-mini S&P 500), numa estratégia que a WDR utilizara anteriormente, mas entre os prováveis compradores existiam brokers baseados em programas

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Fig. 2. Fonte: New York Times, 2 de Outubro de 2010.

A abordagem regulatória tem sido a de aceitar estas novas realidades de base tecnológica (incluindo o DMA e o DA), submetendo-as a restrições e controlos de modo a minorar os riscos que criam ao mercado, a salvaguardar a concorrência, e a proteger os investidores e a integridade do mercado48. As orientações

algorítmicos, que após as primeiras compras iniciaram reactivamente programas de venda dado que a WDR continuava a vender os contractos que ainda detinha como reacção. Dado que a WDR mantinha ordens de venda no mercado gerou-se um fenómeno entre os membros que o artigo do Wall Street Journal supra referido designou de “batatas quentes” (hot potato): cada adquirente pretendia livrar-se das posições assumidas em tais contratos. Entretanto, os potenciais compradores saíam do mercado (chegaram-se a efectuar 27.000 contratos em 14 segundos…). O fenómeno foi interrompido pelas 14H45m, impedindo o contágio na abertura das bolsas asiáticas e tornou-se famoso pois demonstrou a possibilidade de um simples programa informático provocar a derrocada de um mercado - http://www.economist.com/blogs/newsbook/2010/10/what_caused_fl ash_crash.

48 As regas constantes destas novas fontes de direito derivado consomem na maioria dos casos as orientações e guidelines criadas para regular estas novas realidades – cfr. Orientações ESMA/2012/122, de 24 de Fevereiro

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gerais da ESMA sobre a matéria (Orientações ESMA/2012/122, 24 de Fevereiro) foram transformadas em regras e vertidas na Directiva, e as preocupações do Parlamento Europeu durante a sua aprovação levaram-no a propor que estes intermediários fi nanceiros estivessem obrigados a uma presença quase permanente no mercado (funcionando como criadores de mercado). Deveriam manter as suas ordens durante um período mínimo de 500 milissegundos, cabendo à ESMA a defi nição da proporção da sessão de negociação em que os intermediários fi nanceiros podiam não estar presentes e das circunstâncias excepcionais que permitissem a ausência do mercado.

As medidas adoptadas incorporam as Guidelines da ESMA sobre esta matéria para as empresas de investimento (art. 17.º MiFID II). A futura regulação traduz um reforço dos deveres dos operadores de plataformas de negociação, designadamente para assegurar robustez dos sistemas e fazer face aos riscos de negociação electrónica (existe também obrigatoriedade de celebração de um contrato escrito). Impõe a verifi cação prévia da resiliência dos sistemas prévia à aceitação de tais mecanismos (os sistemas têm de garantir uma negociação ordenada “em condições de forte tensão”), bem como a possibilidade de interromper ordens (circuit breakers) ou de aplicar um garrote (throttling) a um fl uxo de ordens excessivo porque ultrapasse determinados limites (thresholds). São meios de mitigação de risco obrigatórios para ambas as partes (um erro no software, na sua actualização, ou a inexistência de controlos igualmente automáticos, podem originar uma vertigem de problemas sem controlo), devendo estas últimas possibilitar ambientes de teste às empresas de investimento (artigo 48º MiFID II).

A utilização destes meios serão objecto de comunicação tal como os “algos” utilizados são alvo de disclosure pelas entidades autorizadas às autoridades reguladoras, periódica ou pontualmente, permitindo verifi car se os mesmos se encontram correctamente desenhados (embora seja certo que os algoritmos podem ser redesenhados a todo o momento, esta é a forma encontrada para prevenir e punir tal abuso – cfr. citado art. 17º, nº2). Para

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salvaguardar o sistema e não permitir prosseguir estratégias de abuso de mercado, os operadores de mercado devem dispor de mecanismos, e impor às empresas de investimento que deles sejam membros ou participantes, que disponham de sistemas que “limitem o rácio de ordens não executadas face às transacções que podem ser introduzidas num sistema por um membro” (art. 48º, nº6). Pode igualmente ser questionada a conduta da empresa cujas ordens ultrapassem os limites de crédito previamente conferido aos seus clientes ou que ultrapassem determinados limites - de endividamento ou os capitais próprios da empresa.

Além de testar tais sistemas de preferência em ambiente segregado (e as sociedades gestoras têm obrigação de propiciar estes meios), os agentes devem monitorizar o seu desempenho por forma a controlar o risco de súbitas inversões de tendências ou de afl uxo de ordens (a existência de fi ltros de pré-negociação é essencial, seguindo critérios de preço e quantidade que detectem padrões de negociação suspeitos – art. 48º, nºs 4 e 5). Tal como a SEC fi zera nos EUA, o naked access é proibido pelo citado artigo 17º, nº5, que obriga o broker a fazer uma análise de risco e de controlo de aptidão dos clientes a quem pretende franquear o acesso electrónico directo.

7.5. Desafi os e difi culdades que se colocarão aos participantes nos mercados. As alterações supra referidas implicarão algum custo e esforço de adaptação nas empresas de investimento e nas sociedades que gerem plataformas, que não deverão ser subestimados. Até 2017 muitos intermediários terão a difícil opção da transformação ou não dos seus sistemas electrónicos de negociação em OTF’s com os deveres legais inerentes: regras sobre funcionamento, confl itos de interesses, prestação de informação pré e pós negociação; adopção de medidas de prevenção e de mitigação de risco na utilização de meios de negociação electrónica que utilizem; investimento na organização interna por forma a cumprir as mais exigentes regras sobre confl itos de interesses, disclosure de product governance, cumprimento da best execution; cumprimento de deveres inerentes

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a uma consultoria para investimento independente, ao reporte de transacções aos mercados e aos reguladores (directamente ou através da contratação de uma APA), seja em trading venues seja em mercado de balcão ou OTC; etc.

Uma das críticas mais ouvidas à indústria, para além do custo a suportar pela adaptação pelos players de mercado ao novo normativo, reporta-se ao excessivo controlo do mercado total pelos reguladores nacionais e pela ESMA. A obrigação de cooperação, de reporte e de acatamento de decisões por parte das autoridades nacionais impôs-se com a publicação do Regulamento 1095/2010, num fenómeno de substituição administrativa e de delegação administrativa de competências cuja problemática tivemos já ocasião de analisar49.

A pretendida criação de um level playing fi eld de todas as transacções implicará um trabalho público e uma coordenação entre autoridades essenciais aos objectivos e à inexistência de riscos agravados por regulatory failures transnacionais. É muitas vezes esquecido que nascem reforçados deveres de coordenação e cooperação entre os reguladores nacionais e a ESMA, vg no que respeita à informação sobre negociação em plataformas e OTC, sua agregação e fi abilidade, necessidade de reporte de informação e sua consolidação. Por exemplo, no que se refere a “limites de posições líquidas” em contractos de derivados sobre commodities negociados em mercados regulamentados e em OTC desde que “economicamente equivalentes”, a Directiva estatui que se tal derivado for negociado “em volumes signifi cativos” em trading venues de vários Estados, o limite é fi xado pela autoridade do mercado onde se registou “o maior volume de negociação” (art. 57º, nº6 MiFID II). Para além de não se esclarecer se se incluem os contractos OTC aí negociados, a exequibilidade da norma implica a sua concretização e uma cooperação diária entre reguladores e a vontade de sujeição de uns (mercados e reguladores nacionais) a

49 Vd o nosso trabalho “A “agencifi cação” administrativa na regulação fi nanceira da UE: Novo meio de regulação?”, Revista de Concorrência e Regulação, Ano III, nº9, Jan/Mar, 2012, pp. 147-203

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outros (mercados e reguladores – claro que se previu a possibilidade de a ESMA arbitrar litígios ou recusa de submissão de um regulador). Também o dever de reporte de transacções à autoridade nacional competente implica para esta o dever de reporte à autoridade competente “do mercado mais relevante em termos de liquidez”, o que pressupõe tal conhecimento e um sistema de reporte AM e CTP muito bem coordenado (art. 26º MiFIR) – e, uma vez mais, a sua densifi cação (a noção de “mercado líquido” aparece nos textos de Nível 1 mais de 50 vezes...).

Existe, a par de múltiplos casos de concretização normativa, muitos outros exemplos de conceitos indeterminados de difícil preenchimento e actualização, atentas as diferentes realidades nacionais. É importante para defi nir requisitos de transparência decidir o que são derivados com Sufi ciente Liquidez; ou Mercados Relevantes? Ou quando se devem considerar os contratos de derivados OTC “economicamente equivalentes” aos negociados em mercados regulamentados para cômputo das posições líquidas (num Estado ou em vários Estados)?

Ficou claro desde a entrada em vigor da DMIF que o mercado se não interessou pela existência de uma consolidação da informação para a efi ciência e rápida descoberta de preços, preferindo exercer o princípio da best execution segundo critérios próprios. O custo da procura de preços para execução nas melhores condições (Best execution) é hoje o dobro do que sucede nos EUA, pelo que é essencial a rápida execução da consolidação e da prestação de informação pós negociação. As obrigações de transmissão e reporte de informação criadas pela MiFIR foram no sentido há muito adoptado nos EUA: um repositório que consolidasse toda a informação sobre negociação, gerido e supervisionado pela Consolidated Tape Authority (CTA). Desde 2005 que existe um sistema electrónico de alta velocidade que disponibiliza informação a todo o tempo, e todas as bolsas de valores, associações onde existam transacções de instrumentos cotados devem disponibilizar dados a um sistema centralizado para tratamento e disseminação (Securities Information Processor – SIP), supervisionado pela CTA e regulamentado pela SEC.

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O custo inerente a tal consolidação (em termos de tratamento fi ável de dados, estandardização da recolha e disponibilização, padronização de meios técnicos), realçou a natureza da informação como um public good e sua prossecução através de criação regulatória. No entanto, existem obstáculos importantes, como o quase monopólio de informação detido por algumas bolsas de valores transnacionais ou por empresas como a Bloomberg ou a Thomson Reuters.

Também no que respeita ao tratamento da prestação de serviços por sucursais terceiras, não é claro o motivo pelo qual a Directiva enveredou por uma matéria que não se encontra harmonizada nem é objecto de medidas de reciprocidades por alguns Estados concorrentes da União (referimo-nos à autorização do estabelecimento num Estado-membro de empresas fi nanceiras de Estados terceiros, art. 39º-41º MiFID II). Para além de acarretar problemas de defi nição de jurisdição competente, da legislação aplicável, e dos tribunais nacionais competentes, cria mais um problema de race to the bottom. Um single entry point na União poderá levar alguns Estados-membros à tentação de “facilitar a instalação e controlo” de entidades terceiras no seu território por motivos de concorrência (dentro das listas de Estados terceiros aprovadas, após um assessment, pela Comissão).

Finalmente, numa era em que a generalidade da Europa continua empenhada em prosseguir a “política de campeões nacionais”, com os incentivos internos e as difi culdades ao exterior que tal implica, é duvidoso que a pretensão de apoio às Pequenas e Médias Empresas ou o retorno à política “small is beautiful” sejam efi caz para além de mero desejo político.

A nova regulação trocou os papéis aos agentes de mercado. Algumas funções como a defi nição ou o policiamento da actividade de criação de mercado, tradicionalmente desempenhada pelos mercados, são devolvidas aos poderes públicos, existindo uma grande discussão acerca da aceitação de instrumentos electrónicos de negociação face à necessidade da sua transparência, e à sua licitude: é alegada a criação artifi cial de mercado; a não protecção

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da sua estabilidade; a falta de verdadeira transparência; a descriminação e iniquidade na política comercial (devido ao preço dos equipamentos, à tarifação, às condições de acesso, aos critérios de atribuição de licenças ou de colocação dos trading engines dos intermediários perto das plataformas de negociação - colocation) 50.

O mesmo sucede quanto à verifi cação em concreto das posições de mercado detidas por um agente num determinado momento; intervêm os reguladores em vez das sociedades gestoras de mercados p.e. face a uma posição excessiva num mercado de derivados (o normativo tem no entanto um perigo de race to the bottom pois compete aos Estados fi xar os seus limites em termos de posições, dimensão e abertura).

Por sua vez, há já algum tempo que os mercados assumem funções típicas de intermediários, como na gestão de ordens dos clientes destes (p.e. as ordens Iceberg também chamadas hidden quantity), na derrogacão dos deveres de transparência pré negocial (waivers). Um outro aspecto em que as funções entre mercados e intermediários fi nanceiros se esbatem é na consagração dos OTF’s (organized OTC). Como vimos, esta categoria residual surgiu para sujeitar a um regime próximo dos mercados algumas realidades que antes eram consideradas como de pura intermediação fi nanceira OTC.

O novo regime aplicável à negociação de contratos de derivados OTC, o sistema da sua negociação e de compensação obrigatórias, tem como objectivo a salvaguarda da integridade do mercado e maior transparência. Mas ao mesmo tempo tal implicará menor uso de derivados (rectius, a criação de derivados atípicos não abarcáveis

50 Este tipo de serviço prestado pelas entidades gestoras de mercados é uma modalidade de “alojamento web” que permite um acesso mais rápido à estrutura de mercado, por forma a que as ofertas colocadas pelo participante na estrutura de mercado ganhem prioridade no order book. De acordo com o website da Euronext, o serviço de co-location prestado, é defi nido como “colocation in Mahwah offers participants the most direct route to NYSE market data and trading venues. Customers who colocate in Basildon are afforded the most direct route to ICE and Euronext exchanges housed at that location”- http://www.nyxdata.com/Docs/Colocation

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pelas classes a defi nir pela ESMA), dado o custo que acarreta e necessariamente as menores margens de ganho daí decorrentes. Não despiciendo, como se referiu supra, é que se mitiga ou reduz o risco individual mas agiganta-se o risco sistémico assente nas câmaras de compensação: a falta de controlo e de um eventual fundo de intervenção perante uma impossibilidade de cumprimento por uma CCP possibilitará o Amargadeão decorrente da concretização de tal risco global.

Para além de neste período de tempo os Estados-membros deverem desarmar as medidas de protecção individual das suas economias que adoptaram desde 2007/2008, será essencial que se não verifi que uma crise como a de há 10 anos, ou com efeitos no novo normativo. A situação é real. Pensemos no Timetable destes diplomas: 20 dias após a data de publicação (14Jun2014), entra em vigor (3Jul2014); dependerá então de drafts de actos delegados e de normas técnicas de regulamentação e de implementação (em 1 de Agosto a ESMA entregou o resultado do Dicussion Paper sobre RTS e ITS; a ESMA entregará o seu Technical Advice sobre tais actos à CE (em Dezembro de 2014); em Julho de 2015 (um ano após entrada em vigor) submete à CE os projectos de RTS; em Janeiro de 2016 (18 meses após entrada em vigor) segue-se a submissão dos drafts de ITS, e a Comissão Europeia publica os Actos Delegados); a data limite para a transposição para as legislações nacionais será Junho de 2016; a entrada em vigor nos Estados-membros da União das legislações nacionais ocorrerá em Janeiro de 2017 (excepto no que respeita aos CTP, que terá lugar em Setembro de 2018). Como nota de actualização supra, a entrada em vigor será diferida para 3 de Janeiro de 2018.

8. Considerações Finais (rectius, intercalares).

Num trabalho que agora se inicia, não será curial fi ndar com pretensas conclusões. Apesar do mérito de toda a regulação de áreas que funcionavam essencialmente em função das práticas de mercado e que não evitaram a crise do sistema fi nanceiro, estamos perante

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um verdadeiro tsunami regulatório que acarretará maior esforço às autoridades públicas (sobretudo às Administrações Públicas que se vêm confrontadas com uma actividade transnacional que contraria a sua natureza). Na sua função de supervisão os quatro Pilares da supervisão terão um efeito essencial: (i) promover o cumprimento de todas as novas regras pela indústria, através de acções pedagógicas, quer de promoção, quer de alerta para as novas obrigações, com eventual participação ou criação de acções de formação; (ii) identifi car e prevenir os principais riscos decorrentes da não compliance com a regulação; (iii) defi nir internamente (e difundir) a sua policy de exercício de acções de fi scalização; (iv) prevenir a prática de ilícitos (sejam dolosos ou por mera negligência).

Mas também acarreta um custo aos demais agentes de mercado dada a necessidade de se adaptarem a novas regras e imposições regulatórias e assumirem um verdadeiro papel de primeira linha de gatekeepers do mercado. A presente regulação assenta num fenómeno de desintermediação fi nanceira em favor das infra-estruturas de mercado (actividades de custódia, de clearing), deslocando assim a fonte do risco sistémico; assenta também na substituição parcial das entidades públicas pelas sociedades gestoras dos mercados (por exemplo, intervindo aquando de posições em mercado de derivados ou transformando a identifi cação de players num public good com o LEI), e na substituição destas a papéis típicos dos intermediários fi nanceiros (por exemplo no que respeita à responsabilidade pelas actividades destes últimos nos mercados de que são participantes ou membros).

A realidade tem vindo a dar razão a Steven Vogel e às suas refl exões de 1996 sobre a liberalização: Freer Markets, More Rules (Cornell University Press). No entanto, deverá calibrar-se a regulamentação e sua aplicação evitando a todo o custo o too much. Apesar da morte pré-anunciada dos Estados modernos que tantos Autores “pós-modernos” se comprazem em teorizar (esquecendo o papel fundamental que desempenharam na Civilização após a Era dos Impérios), ainda é cedo para o “responso”: as Nações parecem querer enfrentar a pulverização decorrente da Globalização

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(enfrentar de forma determinada e nalguns casos mesmo de forma armada, como se vê nalgumas partes do Globo).

A criação de uma avalancha de regras, só por si, não permite ao Homo Economicus criar uma pirâmide regulatória que alcance a perfeição ou a unicidade de espaços económicos “apesar” das diferenças de tradições nacionais ou éticas. Está demonstrado à saciedade que os economistas e juristas deverão fazer um esforço de aproximação a outras línguas das ciências sociais - históricas, sociológicas, psicológicas, antropológicas, fi losófi cas.

Tanto quanto a construção da Torre de Babel não permitiu aos descendentes de Noé, como queriam, chegar-se à perfeição e emular-se aos Deuses, arriscamos, como descrito no Livro do Génesis, que Deus nos mande um novo Lavé para travar a soberba da construção de uma pirâmide até aos Céus: (“ (…) quando Deus viu a sua obra, confundiu-lhes o discurso e deu-lhes uma multidão de línguas. Os construtores deixaram de se entender. Os trabalhos de construção pararam, eles foram dispersados e a sua torre desvaneceu-se na História”51.

Este não poderá ser o resultado perverso de querer criar um level playing fi eld num espaço multifacetado e que seja excessivo por too much too soon.

(Cont.)

51 Adam LEBOR, 2014, A Torre de Basileia, Lisboa, Bertrand Ed., pp. 340.

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N : R .º 909/2014

U E C V M

[O presente texto constitui uma versão preliminar de texto a ser publicado na Revisa de Direito das Sociedades no segundo semestre de 2015. Eventuais comentários ou sugestões podem ser enviados para andré.fi [email protected]]

* * *

Novidades da infraestrutura do mercado de capitais: o Regulamento n.º 909/2014 relativo à melhoria da liquidação de valores mobiliários na União Europeia e às Centrais de Valores Mobiliários

A F *

Sumário: 1. Introdução: o Regulamento n.º 909/2014 de 21 de Julho 2014 no quadro da reforma europeia do direito bancário e dos mercados de capitais; 2. A defi nição legal de CSD e os serviços prestados por CSDs; 3. O registo escritural numa CSD e a disciplina da liquidação: a) As obrigações de inscrição escritural de valores mobiliários e de registo em CSD; b) O prazo de liquidação e a disciplina da liquidação; 4. Autorização e supervisão de CSD: a) O processo e os efeitos da autorização; b) Requisitos organizacionais, regras de conduta e requisitos prudenciais: panorama geral; c) Em especial, os deveres de segregação; 5. Notas fi nais

* Doutor em direito, advogado.

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1. Introdução: o Regulamento n.º 909/2014 de 21 de Julho 2014 no quadro da reforma europeia do direito bancário e dos mercados de capitais

I. Na resposta à crise fi nanceira de 2007-2008, o robustecimento da infraestrutura dos mercados de capitais não constituiu prioridade imediata1. Outros temas mais prementes, desde a solvência das instituições fi nanceiras à transparência do mercado de derivados, exigiram medidas imediatas para salvaguardar a integridade dos mercados e mitigar o impacto na economia real2. A primeira vaga de reformas destinadas a reforçar o quadro de direito europeu concentrou-se, por isso, no aprofundamento da harmonização do regime das instituições de crédito e na centralização da sua supervisão, através do chamado pacote CRD IV / CRR3, bem como na extensão do ambiente regulatório a outros focos de ameaça ao regular funcionamento dos mercados, antes dispensados de intervenção normativa, como a atividade das agências de rating4

1 Para um panorama geral da crise fi nanceira de 2007/2008 como “detonador da re-regulação”, cf. L G C / M P , 2014, “A nova regulamentação dos mercados fi nanceiros – um tsunami regulatório (I)”, Estudos IVM, disponível em em www.institutovaloresmobiliarios.pt. Na literature estrangeira, L E , “Regulators’s Response to the Current Crisis and the Upcoming Reregulation of Financial Markets”, University of Pennsylvania Journal of International Law, 29, 2009, pp 1147 ss.

2 Cf. J P / E H , “The creation of a european capital market”, Research Handbook on the Law of the EU’s Internal Market (P. K / J. S ), 2015, disponível em SSRN: http://ssrn.com/abstract=2575717.

3 Cf. Diretiva 2013/36/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa ao acesso à atividade das instituições de crédito e à supervisão prudencial das instituições de crédito e empresas de investimento (“CRD IV”), e Regulamento (UE) 575/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativo aos requisitos prudenciais para as instituições de crédito e para as empresas de investimento (“CRR”).

4 Cf. Regulamento (CE) n.o 1060/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativo às agências de notação de risco.

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ou a negociação de instrumentos derivados de balcão5. Esta evolução profunda do quadro normativo europeu, marcada por uma progressiva substituição da diretiva pelo regulamento enquanto instrumento de harmonização, assim aprofundada em busca do chamado European Rulebook, alargou-se também a outros domínios já objeto de intervenção, em especial com alterações ao regime dos prospetos6, da transparência de sociedades cotadas7, da intermediação fi nanceira8 e do abuso de mercado9.

5 Cf. Regulamento (UE) n.º 648/1012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativo aos derivados do mercado de balcão, às contrapartes centrais e aos repositórios de transações (“EMIR”). Sobre este normativo europeu, cf., entre outros, L G C / M P , “A nova regulamentação dos mercados fi nanceiros – um tsunami regulatório (II)”, Estudos IVM, disponível em www.institutovaloresmobiliarios.pt.

6 Cf. Directiva 2010/73/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2010, que altera a Directiva 2003/71/CE, relativa ao prospeto a publicar em caso de oferta pública de valores mobiliários ou da sua admissão à negociação, e a Directiva 2004/109/CE, relativa à harmonização dos requisitos de transparência no que se refere às informações respeitantes aos emitentes cujos valores mobiliários estão admitidos à negociação num mercado regulamentado.

7 Cf. Diretiva 2013/50/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2013, que altera a Diretiva 2004/109/CE do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à harmonização dos requisitos de transparência no que se refere às informações respeitantes aos emitentes cujos valores mobiliários estão admitidos à negociação num mercado regulamentado, a Diretiva 2003/71/CE do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao prospeto a publicar em caso de oferta pública de valores mobiliários ou da sua admissão à negociação e a Diretiva 2007/14/CE da Comissão que estabelece as normas de execução de determinadas disposições da Diretiva 2004/109/CE.

8 Através do pacote legislativo DMIF II / RMIF, composto pela Diretiva 2014/65/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, relativa aos mercados de instrumentos fi nanceiros e que altera a Diretiva 2002/92/CE e a Diretiva 2011/61/EU (“DMIF II”), e pelo Regulamento (UE) 600/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de maio de 2014 relativo aos mercados de instrumentos fi nanceiros e que altera o Regulamento (UE) 648/2012 (“RMIF”).

9 A revisão da Directiva relativa ao abuso de mercado deu-se, na verdade, através de Regulamento (Regulamento (UE) 596/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativo ao abuso de mercado (“RAM”) que revoga a Directiva 2003/6/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e as Directivas 2003/124/CE, 2003/125/CE e 2004/72/CE, da Comissão, tendo permanecido na nova Directiva

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O processo de integração dos mercados de capitais, enquanto instrumento de realização do mercado interno, tornou porém incontornável o aprofundamento da harmonização do quadro normativo aplicável às infraestruturas do mercado, por natureza um domínio marcado por tradições e práticas muito diversas e objeto de regulamentação muito fragmentada, e em que a realidade económica, operacional sempre andou muito à frente do quadro jurídico. Isso mesmo impunha a pretendida segurança jurídica na conclusão de operações transfronteiriças sobre valores mobiliários, mas também no reconhecimento e atribuição dos direitos inerentes a valores mobiliários, em particular em cenários de insolvência de emitentes, intermediários fi nanceiros e outros agentes do mercado. É justamente nesse âmbito que se integra a iniciativa de harmonização europeia dos direitos inerentes à titularidade de contas de valores mobiliários, conhecida por Securities Law Legislation, que no entanto – e provavelmente por pretender a quadratura do círculo - se encontra por ora num impasse10; e é também nesse âmbito que, com o anunciado objetivo de facilitar a liquidação de operações transfronteiriças de valores mobiliários e reforçar a segurança das centrais de custódia e registo de valores mobiliários, surge o Regulamento n.º 909/2014 relativo à melhoria da liquidação de valores mobiliários na União Europeia e às Centrais de Valores Mobiliários, publicado em 28 de agosto de 2014 e em vigor desde 17 de setembro do mesmo ano (“Regulamento CSD”)11.

II. O quadro normativo trazido pelo Regulamento CSD assenta em três pilares. Em primeiro lugar, procura o robustecimento das

nº 2014/57/UE do Parlamento Europeu e do Conselho (“DAM”) as sanções administrativas e/ou criminais aplicáveis ao abuso de informação privilegiada e à manipulação de mercado.

10 Mais informação disponível em http://ec.europa.eu/fi nance/fi nancial-markets/securities-law/index_en.htm.

11 Cf. art. 76.º/1. No presente texto, todas as disposições citadas sem referência expressa ao diploma legal em que se integrem pertencem ao Regulamento CSD.

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regras aplicáveis às chamadas infraestruturas pós-negociação, através da criação de um regime harmonizado relativo à liquidação de transações sobre valores mobiliários12. Em segundo lugar, consagra um regime jurídico único aplicável às entidades gestoras de sistemas de custódia e liquidação de valores mobiliários (na terminologia do Regulamento CSD, “CVM” ou “CSD”13), assente, designadamente, num regime autorizatório comum e na imposição de uma detalhada malha de regras organizacionais e de conduta, seguindo, de resto, uma lógica muito próxima daquela que, há mais tempo, vem sendo seguida para a regulação de intermediários fi nanceiros e empresas de investimento. Em terceiro, o Regulamento CSD assume o objetivo de reforçar a concorrência no mercado dos serviços de registo e liquidação de valores mobiliários, facilitando a atuação numa base transfronteiriça, racionalizando as regras relativas à participação nos sistemas de liquidação, em especial impedindo práticas discriminatórias e anticoncorrenciais, e, ainda, regulando serviços auxiliares e de serviços de natureza bancária.

Para prosseguir este objetivos, a malha normativa do Regulamento CSD é extensa, detalhada e complexa, e alcança outros participantes no mercado para além das entidades que gerem sistemas de liquidação. Na verdade, não apenas é a gestão de sistemas centralizados também regulamentada – a partir do pressuposto, quase sempre verdadeiro, de que a gestão destes sistemas surge tipicamente associada à gestão de sistemas de liquidação -, como é previsto um conjunto assinalável de regras aplicáveis a entidades gestoras de plataformas de negociação e intermediários fi nanceiros,

12 Para uma descrição funcional da liquidação de operações sobre valores mobiliários, suas modalidades e principais características, cf., entre nós, o texto de S. L B / C. T L , “Liquidação transfronteiriça de valores mobiliários: Desenvolvimentos recentes no espaço europeu”, Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, 25, 2006, pp. 60 ss.

13 Por razões de consistência, opto por seguir no texto a opção (talvez discutível) tomada na versão portuguesa do CSD de utilizar a abreviatura CSD, a partir do inglês Central Securities Depositories, em detrimento da abreviatura CVM (Centrais de Valores Mobiliários).

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em particular na sua qualidade de participantes nos sistemas de centralizados e de liquidação, adensando assim, ainda mais, a teia de deveres e obrigações resultantes da demais regulamentação europeia.

Acresce que, em muitos domínios, o Regulamento CSD não é autosufi ciente, em dois níveis distintos. Por um lado, a sua aplicação terá sempre de ser conjugada com normativos dos direitos nacionais (primários ou secundários) que permanecem em vigor, bem como com as posições que, a esse respeito, serão necessariamente tomadas pelas autoridades nacionais de supervisão. A opção pelo regulamento enquanto instrumento de harmonização visa obviamente reduzir este espaço de relevância do direito e das práticas nacionais, mas ele continua incontornável. Por outro lado, o Regulamento CSD depende amplamente de concretização pela Comissão através das chamadas normas técnicas de regulamentação e normas técnicas de execução - que não podem implicar escolhas de política legislativa, encontrando-se o seu âmbito normativo plenamente delimitado pelo instrumento principal -, e também através de pareceres, orientações e recomendações de natureza não vinculativa a emitir, designadamente, pela ESMA. Por isso mesmo, algumas regras previstas no Regulamento CSD são necessariamente de aplicação faseada no tempo, por dependerem da implantação daquelas normas técnicas, a que acresce, por outro lado, a vacatio legis especifi camente previstas para alguns preceitos.

III. Neste quadro, o principal objetivo do presente texto é então o de oferecer um panorama geral dos principais desenvolvimentos normativos trazidos pelo Regulamento CSD. Para este fi m, depois de numa primeira parte se centrar na noção de CSD em que assenta o âmbito de aplicação da regulamentação europeia (cf. 2), o texto avança para uma descrição geral da chamada disciplina da liquidação (cf. 3) e do novo regime de autorização e supervisão de CSDs (cf. 4). Não será, naturalmente, esmiuçada na totalidade esta nova disciplina, o que de resto – e atenta a já assinalada insufi ciência do quadro normativo - se afi gura por ora impossível, sem prejuízo

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de alguns temas serem objeto de abordagem um pouco mais aprofundada, em particular aqueles que suscitam questões jurídicas mais complexas e de maior interesse.

Por referência ao direito português, e especifi camente às regras relativas à liquidação de valores mobiliários constantes do Código dos Valores Mobiliários (“CdVM”) e outra legislação secundária14 - incluindo as regras operacionais dos sistemas de registo e liquidação de valores mobiliários portugueses15 -, o Regulamento CSD inova de forma signifi cativa: por um lado, aponta para soluções diversas das previstas na lei portuguesa (ainda que, como veremos, não necessariamente diversas das práticas entretanto desenvolvidas no tráfego mobiliário), e que por força do primado do direito europeu deverão ser agora acolhidas; por outro, expande o ambiente regulatório, predispondo um conjunto amplo de regras sobre matérias que antes se encontravam isentas de regulamentação ou sujeitas apenas a regulamentação esparsa e não harmonizada. Assim, sem prejuízo do principal propósito do texto, identifi cado no parágrafo anterior, pretendo também assinalar algum do impacto que o Regulamento CSD terá no nosso ordenamento jurídico, expondo semelhanças e diferenças com o quadro jurídico até agora em vigor.

14 A liquidação de valores mobiliários é objeto de regulamentação específi ca, ainda que de alcance limitado, nos arts. 258.º ss. CdVM, sendo depois concretizada pelo Regulamento CMVM n.º 5/2007. Por seu turno, o regime jurídico das sociedades gestoras de sistemas de liquidação resulta do Decreto-Lei n.º 357-C/2007, de 31 de Outubro (“DL 357-C/2007”).

15 Como é sabido, entre nós, os sistemas centralizados e de liquidação de valores mobiliários que se encontram, designadamente, ligados aos mercados geridos pela Euronext Lisboa são geridos pela Interbolsa — Sociedade Gestora de Sistemas de Liquidação e de Sistemas Centralizados de Valores Mobiliários, S.A. (“Interbolsa”). Nesse âmbito, e tal como imposto por lei (em especial, cf. art. 269.º), a Interbolsa regulamentou a gestão daqueles sistemas, valendo para o sistema centralizado – a Central de Valores Mobiliários – o Regulamento Interbolsa n.º 3/2000, e para o sistema de liquidação que lhe está associado o Regulamento Interbolsa n.º 3/2004.

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2. A defi nição legal de CSD e os serviços prestados por CSDs

I. Interessa começar pela defi nição de CSD constante do Regulamento CSD, decisiva na delimitação do âmbito de aplicação do instrumento. A técnica empregue é algo tortuosa: aquela defi nição (cf. art. 2.º/1/1) remete para um Anexo (secção A, ponto 3), que remete para outra defi nição (a de sistema de liquidação, cf. art. 2.º/1/1016) que, por seu turno, remete para uma outra Diretiva17. A isto acresce o que parece ser uma defi ciência na versão portuguesa do Regulamento CSD, que não se verifi ca noutras versões, e que complica a tarefa interpretativa. Vejamos.

O primeiro traço tipifi cante de uma CSD é então a gestão de um sistema de liquidação de valores mobiliários18, i.e. de um sistema que possibilita ou executa os diversos actos direcionados à entrega e transferência da propriedade dos valores mobiliários (liquidação física) e ao pagamento do respectivo preço (liquidação fi nanceira).

16 I.e. um sistema (na aceção do artigo 2.º/a), primeiro, segundo e terceiro travessões, da Diretiva 98/26/CE – cf. próxima nota) que não é gerido por uma contraparte central e cuja atividade consiste na execução de ordens de transferência.

17 Cf. a Directiva 98/26/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de maio 1998, relativa ao carácter defi nitivo da liquidação nos sistemas de pagamentos e de liquidação de valores mobiliários, que é aqui relevante para a defi nição de sistema enquanto acordo formal: (i) entre três ou mais participantes, excluindo o operador desse sistema, um eventual agente de liquidação, uma eventual contraparte central, uma eventual câmara de compensação ou um eventual participante indirecto, com regras comuns e procedimentos padronizados para a compensação, através de uma contraparte central ou não, ou execução de ordens de transferência entre os participantes; (ii) regulado pela legislação de um Estado-membro escolhida pelos participantes; contudo, os participantes apenas podem escolher a legislação de um Estado-membro em que pelo menos um deles tenha a sua sede; e (iii) designado, sem prejuízo de outras condições mais rigorosas de aplicação geral previstas na legislação nacional, como sistema e notifi cado à Comissão pelo Estado-membro cuja legislação é aplicável, depois de esse Estado-membro se ter certifi cado da adequação das regras do sistema.

18 Sobre a noção de “valores mobiliários”, que remete para a DMIF II, cf. 3.a) infra.

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Ficam de fora da defi nição as contrapartes centrais, objeto de regulamentação específi ca, designadamente no quadro do EMIR, bem como aqueles participantes na infraestrutura do mercado que se limitam a desempenhar funções administrativas relacionadas com o registo de valores mobiliários, mas que não permitem a conclusão de operações (registrars ou transfer agents).

Tal porém não basta para a qualifi cação como CSD; exige-se cumulativamente a prestação de pelo menos um dos seguintes serviços principais enumerados no referido Anexo, a saber: registo inicial de valores mobiliários num sistema de registo centralizado (serviço de registo em conta), estruturação e administração de sistema centralizado de valores mobiliários (serviço de administração de sistema de registo centralizado), ou gestão de sistemas de liquidação de valores mobiliários (serviço de liquidação). E é aqui que a versão portuguesa é susceptível de induzir em erro: ao exigir, literalmente, a prestação de pelo menos um dos seguintes serviços principais enumerados no Anexo, Secção A, e tendo em conta que a gestão de um sistema de liquidação consta já do Anexo como um dos serviços principais, a regra aqui vertida pode ser interpretada no sentido em que a qualifi cação como CSD se bastaria com a prestação de serviços de liquidação. Tal resultado – repita-se, induzido pelo elemento literal da norma em apreço – surge no entanto contrário à intenção normativa, que parece ser a de defi nir as CSD por referência à gestão de um sistema de liquidação e à prestação de um dos outros serviços principais elencados no Anexo. Isso mesmo resulta, de forma inequívoca, dos considerandos do Regulamento CSD, onde se escreve que as CSDs deverão gerir pelo menos um sistema de liquidação de valores mobiliários e prestar um outro serviço principal19, resultado que é igualmente claro quando consultadas outras versões do Regulamento20.

19 Cf. Considerando 26, que refere ainda que tal conjugação é essencial para que as CSDs desempenhem o seu papel na liquidação de valores mobiliários e para assegurar a integridade das emissões de valores mobiliários.

20 Na versão inglesa: CSD means a legal person that operates a securities settlement system referred to in pont (3) of Section A of the Annex and provides at

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Assim, a bem da integridade das emissões de valores mobiliários, exige-se que a gestão de sistemas de liquidação seja necessariamente conjugada com a organização e gestão de um sistema centralizado de valores mobiliários – como sucede com as principais CSD internacionais, o Euroclear e o Clearstream, e também com a CSD portuguesa, a Interbolsa -, ou pelo menos com a intervenção no registo inicial no sistema centralizado de valores mobiliários. Neste quadro, parece ser ainda deixado aos direitos nacionais a conformação e natureza das contas em que assentam os sistemas centralizados e os sistemas de liquidação, sendo por isso possível que aqueles sistemas, uma vez interligados, funcionem a partir de um mesmo conjunto de contas, ou ao invés que – como sucede em Portugal – seja imposta uma distinção entre as contas de valores mobiliários (de titularidade e de controlo) e as contas do sistema de liquidação21.

II. Assim defi nidas as CSD, o Regulamento CSD cria para estas entidades um regime único de autorização e supervisão no espaço europeu. Na verdade, na generalidade dos ordenamentos, a prestação dos serviços principais era já considerada uma atividade regulada, e por isso sujeita a autorização administrativa e a supervisão; era já assim, designadamente, no direito português22. Contudo,

least one other core service listed in Section A of the Annex. Na versão francesa, une personne morale qui exploite un système de règlement de titres visé à la section A, point 3, de l’annexe et fournit au moins un autre service de base fi gurant à la section A de l’annexe (sublinhados meus).

21 Como é sabido, vale no direito português um regime dualista, que distingue sistema centralizado e sistema de liquidação, e por isso distingue entre as contas de controlo do sistema centralizado e as contas de liquidação. Na prática, porém, esta distinção é atenuada pelo Regulamento Interbolsa n.º 3/2004, que no seu art. 14.º /5 dispõe que os intermediários fi nanceiros fi liados no Sistema de Liquidação podem indicar como contas de liquidação, contas que tenham abertas no Sistema Centralizado.

22 Cf. art. 88.º/2 CdVM, para os sistemas centralizados, art. 271.º/1 CdVM, para os sistemas de liquidação, e DL 357-C/2007 e Regulamento CMVM n.º 4/2007 para as entidades gestoras destes sistemas. Na verdade, valia para estas um sistema de registo junto da CMVM, cujo processo vem detalhado nos arts. 27.º a 30.º, que é agora substituído por um verdadeiro processo de autorização.

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avançou-se para um regime uniforme, em que – como fi cará bem patente nas linhas que se seguem – é notável o paralelismo com o padrão relatório a que se encontram sujeitos os intermediários fi nanceiros no quadro da DMIF e DMIF II: em primeiro lugar, a atividade de gestão de sistemas de liquidação é sujeita a prévia autorização administrativa23 e, para o efeito, é consagrado um processo autorizatório uniformizado24, cuja responsabilidade cabe às autoridades nacionais competentes25 - em Portugal, a CMVM26 - e que, uma vez concluído, facilitará a prestação de serviços em base transfronteiriça no espaço europeu; em segundo lugar, é imposta uma apertada malha regulatória, composta por requisitos organizacionais, requisitos prudenciais e normas de conduta aplicáveis, que uniformizam o desenvolvimento da atividade dos CSD e constituem, para os reguladores, verdadeiras pautas de supervisão.

Refi ra-se, ainda, que o Regulamento CSD contém uma norma transitória especifi cando o prazo a partir da qual as entidades que qualifi quem como CSD – incluindo as que atualmente gerem sistemas centralizados de valores mobiliários e de liquidação - deverão apresentar aquele pedido de autorização. Assim, nos termos do art. 69.º, as CSD devem formular tal pedido (e notifi car as ligações entre CSDs) no prazo de seis meses a contar da data de entrada em vigor de um conjunto de normas técnicas de regulamentação que concretizam certos aspetos relacionados quer com o procedimento de autorização, quer com os requisitos operacionais e de conduta que serão depois aplicáveis. De acordo

23 Cf. arts. 16.º/1 e 18.º/2.24 Cf. art. 16.º e ss.25 Cf. art. 10.º, cuja lista deve ser publicada pela ESMA (art. 11.º). Ao lado

das autoridades competentes, é consagrada também a categoria das autoridades relevantes, que incluem designadamente os bancos centrais e o BCE (relevantes para a liquidação de fundos associados a transações de valores mobiliários), e que devem também ser envolvidas nos processos de autorização e na supervisão de CSDs (cf. art. 12.º).

26 Cf. art. 271.º/2 CdVM.

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com a calendarização prevista no Regulamento CSD, tal signifi ca um prazo limite que se situará ou no último trimestre de 2015, ou no primeiro de 2016.

III. Ao lado daqueles serviços principais atrás referidos, o Regulamento CSD lista depois, de forma não exaustiva, os serviços acessórios, de tipo não bancário e de tipo bancário, que podem ser prestados pelas CSD, de acordo com o âmbito e sujeitos às condições da respetiva autorização. Na verdade, muitos destes serviços são já hoje prestados pelas entidades responsáveis pela gestão de sistemas centralizados e de liquidação de valores mobiliários, que aproveitam o acesso a grandes volumes de valores mobiliários e a ligação a inúmeros emitentes, intermediários fi nanceiros e investidores para expandir as suas atividades para áreas conexas, como a gestão de garantias (collateral management), o reporte e armazenamento de informação ou o estabelecimento de contacto com investidores27. A possibilidade de CSD prestarem tais serviços fi ca agora inequivocamente sujeita a autorização pelas autoridades competentes, essencialmente como forma de assegurar que tal expansão das atividades core das CSD não coloca em causa o seu perfi l de risco28.

Pela sua relevância no tráfego mobiliário, merecem destaque os serviços de gestão de garantias prestados pelos principais CSDs internacionais (Euroclear, Clearstream), instrumentais para facilitar a constituição de garantias sobre valores mobiliários em situações transfronteiriças e, em particular, nos casos de titularidade indireta,

27 A título ilustrativo, este serviços de natureza não bancária incluem: serviços conexos com a liquidação de operações, como a organização de mecanismos de empréstimo de valores mobiliários e a gestão de garantias, a comparação e encaminhamento de instruções de liquidação e a confi rmação e verifi cação de transações; serviços conexos com o registo em conta e a gestão de sistemas centralizados, tais como registos de acionistas, a organização de assembleias-gerais e serviços de informação; serviços associados ao lançamento de novas emissões ou ao estabelecimento de ligações entre CSDs.

28 Cf. 4. infra.

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benefi ciando para o efeito de um quadro contratual padronizado e bem conhecido pelos agentes do mercado. Por outro lado, estes serviços servem também para promover a liquidez no mercado, reduzindo custos de transação e, com isso, facilitando operações de curto prazo (empréstimos, repos) envolvendo valores mobiliários custodiados junto de CSDs ou dos seus participantes. Tipicamente, a prestação deste tipo de serviços pressupõe a abertura de contas de titularidade diretamente junto da CSD, normalmente em nome da parte que presta a garantia, sendo que, depois e de acordo com diferentes níveis de intensidade e ingerência, compete à CSD ou simplesmente monitorizar o cumprimento do arranjo contratual (designadamente num cenário de incumprimento, ou de substituição dos bens originalmente dados em garantia), ou prestar serviços adicionais e mais complexos de avaliação e controlo de margens29.

Outro domínio em que é crescente a relevância de CSDs consiste na prestação de serviços conexos com a identifi cação de acionistas e estabelecimento de vias de comunicação com a sociedade emitente, em particular nos casos, comuns no tráfego, em que os valores mobiliários são detidos através de cadeias transfronteiriças de intermediários. Esta é, de resto, uma reconhecida insufi ciência do quadro normativo do governo de sociedades cotadas e que, ao que tudo indica, será objeto de regulamentação específi ca no âmbito da esperada revisão da Diretiva 2007/36/CE, de 11 de julho de 2007, relativa ao exercício de certos direitos de acionistas, onde se espera justamente que a tarefa de identifi cação dos titulares fi nais de valores mobiliários por parte das CSDs seja facilitada, através da imposição de deveres de informação e cooperação a todos os

29 As limitações no nosso direito à abertura de contas de titularidade diretamente junto do sistema centralizado (que é permitida excecionalmente nos termos do art. 91.º/6 CdVM, mas restrita depois a entidades que prestem serviços de liquidação – cf. art. 35.º/2 Regulamento n.º 14/2000), não permitem replicar, no nosso ordenamento, exatamente o modo como estes serviços de collateral management são prestados por CSDs internacionais, nomeadamente o Clearstream e o Euroclear, onde, ao invés e como explicado no texto, é genericamente permitida abertura de contas de titularidade direta.

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intermediários que participam nas cadeias de titularidade (os quais, no atual quadro legal, muitas vezes se escudam nas obrigações de sigilo bancário)30.

IV. Outro dos instrumentos preconizados no Regulamento CSD para fomentar a concorrência entre prestadores de serviços relacionados com as infraestruturas do mercado de capitais e, especifi camente, com as estruturas de liquidação de operações consiste na possibilidade de as CSDa prestarem, acessoriamente, também certos serviços de natureza bancária, que estariam em princípio reservados para instituições de crédito. Trata-se aqui, essencialmente, da disponibilização de contas e prestação de serviços de depósito de numerário no quadro dos sistemas de liquidação, da concessão de crédito (dinheiro e valores mobiliários) destinados a permitir a liquidação de operações, da prestação de garantias e, genericamente, de serviços de pagamento e tesouraria31. Uma vez mais, também aqui a regulamentação segue a prática, uma vez que algumas das principais CSDs internacionais prestam já alguns destes serviços, recorrendo, para o efeito, a autorizações bancárias obtidas nos seus ordenamentos de origem.

A prestação conjunta pelas CSDs destes serviços bancários fi ca também sujeita a autorização específi ca32, e implica, na verdade, a aquisição da qualidade de instituição de crédito autorizada nos termos do art. 8.º da CRD IV, ainda que com atividades limitadas

30 Cf. Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera a Diretiva 2007/36/CE no que se refere aos incentivos ao envolvimento dos acionistas a longo prazo e a Diretiva 2013/34/UE no que se refere a determinados elementos da declaração sobre o governo das sociedades, COM/2014/0213 fi nal. Sobre este documento, e sobre as regras propostas a respeito do problema de identifi cação e a intervenção, nesse âmbito das CSDs, cf. A. F , “Notas sobre o exercício de direitos de voto nas sociedades cotadas: breve balanço da vigência da Diretiva 2007/36/CE e perspetivas de revisão”, Direito das Sociedades em Revista (Atas to III Congresso), Coimbra, Almedina, 2014, pp. 41 ss.

31 Cf. Anexo, Secção C.32 Cf. art. 54.º/1, sendo o procedimento detalhado no art. 55.º.

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à prestação daqueles serviços auxiliares33. Em resultado, a CSD fi cará sujeita ao quadro normativo europeu aplicável às instituições de crédito34, bem como às regras prudenciais mais apertadas previstas no Regulamento CSD, designadamente a respeito dos mecanismos internos de controlo e gestão de riscos (incluindo, com particular relevância, o risco associado ao crédito concedido no âmbito destas atividades auxiliares35 e o risco de liquidez36). Compreensivelmente, a combinação da licença bancária e da licença CSD requer a coordenação entre diferentes autoridades de supervisão (em situações transfronteiriças, mas mesmo dentro do mesmo ordenamento), seja no processo de autorização seja depois no decurso da supervisão prudencial, o que é também objeto de regulação específi ca no Regulamento CSD37.

3. O registo escritural numa CSD e a disciplina da liquidação

a) As obrigações de inscrição escritural de valores mobiliários e de registo em CSD

I. A primeira coordenada normativa trazida pelo Regulamento CSD é a obrigação, imposta aos emitentes europeus de valores mobiliários admitidos à negociação ou negociados em plataformas de negociação, de assegurar que esses valores mobiliários são representados sob forma escritural, seja mediante a respetiva imobilização, seja mediante a emissão direta sob forma desmaterializada (cf. art. 3.º/1). Em rigor, o alcance desta

33 Cf. 54.º/2/a) e 3. Se se pretender, ao invés, que os serviços sejam prestados por entidade jurídica distinta relacionada, tal entidade deve também estar autorizada como instituição de crédito e cumprir os requisitos adicionais previstos no Regulamento (cf. art. 54.º/2/b) e 4).

34 Cf. art. 59.º/2.35 Cf. art. 59.º/3.36 Cf. art. 59.º/4.37 Cf. arts. 55.º e 60.º.

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disposição extravasa o âmbito da liquidação de valores mobiliários, não se limitando a regular a fase pós-negociação. Sem prejuízo do óbvio intuito de facilitar a conclusão de operações de transferência de valores mobiliários38, estabelece-se um requisito geral de representação de valores mobiliários negociados em mercado – a forma escritural -, sendo deixada aos emitentes a opção de o cumprirem por via ou da imobilização de valores titulados (tipicamente, títulos globais)39, seja por via da emissão direta de valores escriturais40. Compreende-se esta postura agnóstica do Regulamento quanto a determinar se tal representação escritural se deve dar de forma mediata ou imediata, para não colidir com as diferentes tradições dos Estados membros ainda prevalecentes em face da falta de harmonização, evitando dessa forma interferir no tema jurídico complexo dos direitos reconhecidos aos titulares de contas de registo de valores mobiliários41.

Interessa que nos detenhamos na defi nição de valores mobiliários, relevante na determinação do âmbito de aplicação desta obrigação. Por remissão expressa do Regulamento CSD42, vale aqui a defi nição constante da DMIF II43, que se refere genericamente às categorias de valores negociáveis no mercado de capitais44, com exceção

38 O que, de resto, é expressamente reconhecido no considerando 11 do Regulamento.

39 I.e. o ato de depositar os valores mobiliários titulados numa CSD de modo a que as transferências subsequentes possam ser efetuadas por registo em conta em sistema centralizado (cf. art. 2.º/1/3).

40 I.e. o facto de determinados instrumentos fi nanceiros existirem exclusivamente sob forma de registos escriturais (cf. art. 2.º/1/4).

41 Sobre o tema, cf. A. F , O negócio fi duciário perante terceiros. Com aplicação especial na gestão de valores mobiliários, Coimbra, Almedina, 2012, pp. 363 ss.

42 Cf. art. 2.º/1/36. 43 Cf. art. 4.º/1/44 DMIF II.44 De acordo com as indicações dadas pela Comissão (http://ec.europa.eu/

internal_market/securities/docs/isd/questions/questions_en.pdf), esta referência à negociação em mercado de capitais deve ser entendida em termos amplos, de modo a incluir todos os contextos em que se podem encontrar interesses compradores e vendedores em valores mobiliários. De acordo ainda com a

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dos meios de pagamento, aí incluindo, de forma não exaustiva, ações (bem como valores equivalentes relativos a sociedades de responsabilidade ilimitada), certifi cados de depósito de ações45, obrigações (incluindo dívida titularizada e certifi cados de depósito de títulos de divida) e, ainda, outros valores que confi ram o direito à compra ou venda desses valores mobiliários46, ou dêem origem a uma liquidação em dinheiro, determinada por referência a valores mobiliários, divisas, taxas de juro ou de rendimento, mercadorias ou outros índices ou indicadores. Ficam de fora desta defi nição, os instrumentos de mercado monetário, designadamente bilhetes do Tesouro, certifi cados de depósito e papel comercial47, que assim parecem escapar à obrigação de representação escritural prevista no art. 3.º/1.

Por outro lado, a delimitação do âmbito normativo por recurso à noção de plataforma de negociação48 implica um alargamento signifi cativo da projeção desta obrigação, que não se limita assim aos valores mobiliários negociados em mercado regulamentado49, abrangendo igualmente aqueles negociados seja em sistemas de negociação multilateral50, seja em sistemas de negociação

posição transmitida pela Comissão, releva então a idoneidade para os valores em causa serem negociados numa plataforma de negociação – cf., também, art. 1.º/(g) CdVM.

45 O que inclui, portanto, os chamados ADR (american depository receipts)46 O que inclui, designadamente, warrants ou direitos de subscrição (desde

que negociáveis). 47 Cf. art. 4.º/1/17 DMIF, por remissão do art. 2.º/1/37. 48 Cuja defi nição remete para a constante da DMIF II.49 Cf. art. 4.º/1/21 DMIF II: um sistema multilateral, operado e/ou gerido

por um operador de mercado, que permite o encontro ou facilita o encontro de múltiplos interesses de compra e venda de instrumentos fi nanceiros manifestados por terceiros – dentro desse sistema e de acordo com as suas regras não discricionárias – por forma a que tal resulte num contrato relativo a instrumentos fi nanceiros admitidos à negociação de acordo com as suas regras e/ou sistemas e que esteja autorizado e funcione de forma regular e autorizado nos termos da DMIF II.

50 Cf. art. 4.º/1/22 DMIF II: um sistema multilateral, operado por uma empresa de investimento ou um operador de mercado, que permite o confronto de

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organizados51, que são trazidos para o ambiente regulado da liquidação de valores mobiliários e surgem, por isso, cada vez menos como mercados não-regulamentados52.

De qualquer modo, sem prejuízo do pretendido âmbito geral de aplicação, esta norma reveste um alcance prático limitado; na verdade, a generalidade dos valores mobiliários negociados em mercado, e seguramente a totalidade dos negociados em mercado regulamentado, são já, e por razões óbvias de operacionalidade, sujeitos a inscrição escritural (direta ou indireta)53. Por seu turno, releva a indicação clara de que compete ao emitente tomar as medidas necessárias para assegurar tal inscrição escritural, de acordo com a vacatio legis prevista no art. 76.º/2, nos termos da qual a exigência de inscrição escritural se aplica a partir de 1 de

múltiplos interesses de compra e venda de instrumentos fi nanceiros manifestados por terceiros – dentro desse sistema e de acordo com regras não discricionárias – por forma a que tal resulte num contrato nos termos da DMIF II. Cf. também art.º 200 CdVM. Sobre esta categoria de mercados, A. S , “Os Sistemas de Negociação Multilateral: Uma Perspetiva Jurídica Actual, Cadernos CMVM, 42, 2012, pp. 8 ss.

51 Cf. art. 4.º/1/22 DMIF II: um sistema multilateral que não seja um mercado regulamentado nem um MTF dentro do qual múltiplos interesses de compra e venda de obrigações, produtos fi nanceiros estruturados, licenças de emissão ou derivados manifestados por terceiros podem interagir de modo a que tal resulte num contrato nos termos da DMIF II.

52 Seguindo-se, aqui, de resto, uma evolução análoga à registada noutras áreas da regulação dos mercados de capitais, em que se adensam as normas previstas para as estruturas de negociação antes sujeitas a menor ingerência do legislador europeu; veja-se, por exemplo, o alargamento normativo da generalidade dos regimes trazidos pela DAM e pelo RAM a respeito da disciplina da informação privilegiada e do abuso de mercado.

53 No nosso direito, para os valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado a inscrição escritural é uma realidade incontornável, seja diretamente por opção do emitente (cf. art. 46.º/1 CdVM), seja por via de equiparação imposta por lei para os valores titulados que sejam inscritos em sistema centralizado (cf. art. 99.º/2/a) e 5 CdVM), o que é necessariamente o caso daqueles que se encontrem admitidos à negociação em mercado regulamentado (cf. art. 62.º CdVM, para os valores escriturais, e art. 99.º/2/a) para os valores titulados).

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janeiro 2013, para valores mobiliários emitidos a partir desta data, e a partir de 1 de janeiro de 2025 para todos os outros.

II. Depois de, no art. 3.º/1, o Regulamento CSD tratar da forma de representação, o art. 3.º/2 impõe a prévia inscrição numa CSD de valores mobiliários que sejam objeto de transações numa plataforma de negociação. Não se devem confundir as prescrições normativas de um e outro preceito: o n.º 1 lida com uma característica intrínseca dos valores mobiliários - a forma de representação -, impondo a inscrição registral (direta ou indiretamente), enquanto o n.º 2 lida com uma característica extrínseca e apenas eventual - mesmo para os valores escriturais –, impondo para valores mobiliários transacionados em plataformas de negociação a sua integração numa CSD54. O propósito desta regra é também evidente: pretende-se assegurar que a liquidação destas operações, porque concretizadas em mercados organizados (ainda que sujeitos a diferentes intensidades normativas), se opera num ambiente regulado, harmonizado e seguro, dessa forma facilitando a liquidação em contextos transfronteiriços e reduzindo riscos sistémicos.

De novo, o alcance prático desta exigência é limitado para valores mobiliários admitidos à negociação em plataformas de negociação (e, em particular, em mercado regulamentado), que na sua maioria se encontram, por razões tanto jurídicas55 como de

54 Para promover o aludido objetivo de reforço da concorrência no mercado das CSD, o art. 49.º/1 dispõe que um emitente pode integrar a emissão de valores mobiliários numa CSD autorizada em qualquer Estado Membro, sem prejuízo de, independentemente dessa escolha, continuar a ser aplicável o direito ao abrigo do qual foram constituídos os valores mobiliários, designadamente no que diz respeito à relação entre o emitente e os titulares desses valores mobiliários ou terceiros e aos direitos e deveres inerentes aos valores mobiliários (tais como direitos de voto ou dividendos). Os demais números deste preceito regulam depois o procedimento de conducente à integração de uma emissão de valores mobiliários numa CSD.

55 Como foi já notado, vale no direito português a obrigatoriedade de integração em sistema centralizado dos valores mobiliários admitidos à negociação em

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natureza operacional, já integrados em estruturas centralizadas de circulação e liquidação, nacionais ou internacionais. O seu alcance far-se-á sentir essencialmente a respeito de valores negociados em plataformas de negociação mais informais, que agora deverão assegurar ligação a um sistema de registo e de liquidação compatível com as exigências do Regulamento CSD. Por outro lado, poderá ser igualmente aplicável em situações em que a operação é executada numa plataforma de negociação através de um instrumento derivado (repo, opção), mas envolvendo como ativo subjacente valores mobiliários que não se encontrem admitidos à negociação ou ainda não integrados em CSD. De qualquer modo, permanece alguma incerteza sobre quem se encontraria, nesse caso, obrigado a proceder ao registo na CSD, até porque o emitente poderia não ter qualquer intervenção na operação que gera essa obrigação56.

III. Não é também isenta de dúvidas a apreensão do alcance do 2.º parágrafo do art. 3.º/2, nos termos do qual se dispõe que caso os valores mobiliários sejam transferidos na sequência de um acordo de garantia fi nanceira, na aceção do artigo 2.º, n. 1, alínea a), da Diretiva 2002/47/CE57, esses valores mobiliários são registados sob forma escritural numa CSD antes ou na data de liquidação, a não ser que já tenham sido registados sob essa forma. A difi culdade surge por causa da referência genérica a

mercado regulamentado (art. 62.º CdVM), que porém não se aplica a valores negociados nas demais formas organizadas de negociação (cf. art. 198.º CdVM).

56 De notar, ainda, que a vacatio legis prevista no art. 76/2 para o n.º 1 do art. 3.º parece não se aplicar a esta exigência de registo prévio em CSD, que assim se deve ter por aplicável desde a entrada em vigor do Regulamento CSD.

57 Apesar de o texto da norma se referir a uma transmissão de valores mobiliários, esta referência ao art. 2.º/1/1 da Directiva 2002/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de junho de 2002, relativa aos acordos de garantia fi nanceira, torna claro que se pretende aqui abarcar as duas modalidades de acordos de garantia fi nanceira regulados por aquele instrumento de direito europeu, seja assente na transferência de titularidade, seja na constituição de penhor – tal como, de resto, acolhido no nosso direito (cf. art. 2.º do DL 105/2004).

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valores mobiliários constante da previsão da norma, contrastando com a maior precisão quer do primeiro parágrafo do artigo, que expressamente delimita a sua aplicação a transações de valores mobiliários efetuadas em plataforma de negociação, quer do n.º 1 do art. 3.º, que se refere, também de forma expressa, a valores mobiliários admitidos à negociação ou negociados em plataformas de negociação. Pode isto signifi car que o 2.º parágrafo do art. 3.º/2 se aplica genericamente à constituição de acordos de garantia fi nanceira sobre valores mobiliários, sejam ou não estes negociados numa plataforma de negociação?

Sem prejuízo de uma indesejável incerteza, causada porventura por algum descuido na redação desta regra, deve interpretar-se este 2.º parágrafo do art. 3.º/2 em linha com o 1.º parágrafo do mesmo preceito e com o art. 3.º/1, sendo por isso o seu âmbito delimitado à celebração de acordos de garantia fi nanceira sobre valores mobiliários negociados em plataformas de negociação. Para isso relevam argumentos de índole sistemática, designadamente a referência ao tema nos considerandos do Regulamento CSD, onde surge mais evidente a intenção de fazer equivaler o âmbito de aplicação dos dois parágrafos do art. 3.º/258, ou ainda o teor do art. 4.º/3 que, ao defi nir as autoridades nacionais competentes pela aplicação deste regime, parece efetivamente delimitar o âmbito de aplicação do art. 3/2, 2º parágrafo aos valores mobiliários previstos no art. 3.º/1 (i.e. destinados a ser negociados em plataforma de negociação). Por outro lado, não parece também compatível com as fi nalidades do Regulamento CSD e com o seu pretendido alcance normativo uma interpretação daquele preceito de tal forma abrangente e que implicasse uma evolução tão signifi cativa e, na

58 Escreve-se aí que uma vez que as transações desses valores mobiliários são executadas em plataformas de negociação reguladas pela Diretiva 2014/65/UE e pelo Regulamento (UE) n.º 600/2014 ou dadas em garantia nas condições previstas na Diretiva 2002/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, tais valores mobiliários deverão ser registados no sistema centralizado de registo escritural de uma CSD.

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verdade, disruptiva no modo de constituição de acordos de garantia fi nanceira, sem que sejam evidentes – ou mesmo ponderados – os eventuais ganhos com um tal desenvolvimento.

IV. Seja como for, interessa notar que, por força do disposto no art. 8.º/3, o desrespeito pelas exigências acima descritas não tem como efeito a invalidade dos negócios jurídicos de direito privado que envolvam os valores mobiliários em causa, nem impede a devida execução das cláusulas contratuais acordadas. As partes fi carão sujeitas a eventual sanção administrativa a aplicar pela autoridade competente – em particular o emitente, quando lhe compita assegurar a inscrição registral dos valores mobiliários numa CSD -, mas não é afetada a existência e validade jurídica dos contratos, designadamente os conducentes a uma transmissão de valores mobiliários ou à constituição de garantia fi nanceira.

b) O prazo de liquidação e a disciplina da liquidação

I. A falta de harmonização das regras relativas aos períodos de liquidação de operações realizadas em mercado, bem como a manutenção, nalguns ordenamentos, de períodos excessivamente longos eram há muito apontadas como causa de insegurança e riscos operacionais acrescidos para investidores, intermediários fi nanceiros e demais participantes no mercado; em particular, num cenário em que volumes substanciais de valores mobiliários são detidos através de complexas cadeias transfronteiriças, que requerem a intervenção de CSD domésticas e internacionais e de múltiplos intermediários. Nesse quadro, um dos temas em que o Regulamento CSD inovou for justamente o do prazo da liquidação, i.e. o período entre a conclusão da negociação em mercado e a efetiva entrega dos valores mobiliários subjacentes, que é agora objeto de harmonização no âmbito do art. 5.º.

Para o efeito, o n.º 1 do preceito estabelece uma obrigação genérica aplicável aos participantes nos sistemas de liquidação, que

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é a de liquidar na data de liquidação prevista59 as operações sobre valores mobiliários, instrumentos do mercado monetário, unidades de participação em organismos de investimento coletivo e licenças de emissão. Não sendo estabelecido, aqui, um prazo mínimo de liquidação, mas apenas o reforço da obrigação de os participantes respeitarem os prazos previstos no sistema de liquidação em causa, consoante a modalidade de liquidação aplicável, interessa notar que o âmbito de aplicação desta regra é, na verdade, mais amplo do que aquelas até aqui analisadas, uma vez que abrange outros tipos de instrumentos fi nanceiros e não apenas valores mobiliários.

O n.º 2, por seu turno, aplica-se exclusivamente a transações sobre valores mobiliários que sejam executadas numa plataforma de negociação, impondo para estas que a data de liquidação prevista não pode ser posterior ao segundo dia útil a contar da data em que é efetuada a negociação60. Este requisito, que reforça a aproximação da disciplina da liquidação para as diversas categorias de plataforma de negociação e que é aplicável já desde 1 de Janeiro de 201561, é compreensivelmente execionado para transações que, embora executadas em plataformas de negociação, sejam negociadas de

59 I.e. a data que é introduzida no sistema de liquidação de valores mobiliários como data de liquidação, acordada entre as partes de uma transação de valores mobiliários – cf. art. 2.º/1/12)

60 Fica assim ultrapassado o disposto no art. 12.º/1 do Regulamento CMVM n.º 5/2007, que estabelece para operações realizadas em mercado regulamentado ou em sistema de negociação multilateral um prazo máximo de liquidação de três dias úteis. Refi ra-se, de qualquer modo, que nos termos do art. art. 17.º do Regulamento Interbolsa n.º 3/2004, e no que diz respeito a operações garantidas (pela LCH Clearnet como contraparte central), se prevê já a liquidação no segundo dia útil seguinte ao da realização das operações.

61 Cf. art. 76.º/3. Na verdade, a Interbolsa adotou a alteração do ciclo de liquidação de T+3 para T+2 em 6 de Outubro de 2014, em conjunto com grande parte dos mercados europeus (a saber: Áustria, Bélgica, Croácia, Chipre, República Checa, Dinamarca, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Islândia, Itália, Irlanda, Holanda, Letónia, Liechtenstein, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Noruega, Polónia, Roménia, Eslováquia, Espanha (para obrigações), Suécia, Suíça, e Reino Unido. Bulgária, Alemanha e Eslovénia já liquidavam em T+2.

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forma privada, para transações que, embora reportadas a uma plataforma de negociação, sejam executadas bilateralmente62, e para a primeira transação de valores mobiliários que estejam sujeitos a um registo inicial sob forma escritural por força do artigo 3.º/2.

A este respeito, interessa notar que esta regra terá aplicação naquelas operações complexas sobre valores mobiliários, constituídas por uma sucessão de transações (v.g. acordos de recompra, empréstimos de valores mobiliários), mesmo que tais operações não qualifi quem, elas próprias, enquanto valores mobiliários. Signifi ca isto que a obrigação de liquidação T+2 será, nesses casos, aplicável à primeira transação que envolva a transferência de valores mobiliários, mas naturalmente apenas se os valores mobiliários que constituem o seu ativo subjacente se encontrem, eles sim, admitidos à negociação numa plataforma de negociação.

II. A fi m de defi nir os princípios defi nidores do que o diploma chama de disciplina da liquidação, os artigos 6.º e 7.º servem depois para, num estilo nem sempre facilmente compreensível, estabelecer uma detalhada malha de deveres e requisitos prudenciais e comportamentais, aplicáveis a um conjunto amplo de sujeitos que intervêm no processo de liquidação. Pretende-se assegurar a integralidade dos processos de liquidação, seja prevenindo situações em que possam ocorrer as chamadas falhas de liquidação, seja prevendo mecanismos aptos a mitigar as consequências de eventuais falhas que venham mesmo a ocorrer. Este é, justamente, um dos domínios em que o campo subjetivo de aplicação do Regulamento CSD se alarga, através de um conjunto de regras importantes a que, para além das já previstas na DMIF

62 Em linha com esta regra dispunha já o art. 12.º/2 do Regulamento CMVM n.º 5/2007 que a liquidação de operações realizadas fora de mercado regulamentado ou de sistema de negociação multilateral tem lugar: a) em momento acordado entre os participantes; ou b) na falta de acordo, em prazo fi xado nas regras do sistema.

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II, fi cam sujeitos os intermediários fi nanceiros participantes nesses sistemas e os gestores de plataformas de negociação.

As regras previstas no art. 6.º, de teor algo programático e, por isso, amplamente dependentes de concretização por via de normas técnicas de regulamentação a preparar pela ESMA e adotar pela Comissão63, visam então prevenir a ocorrência de falhas de liquidação (i.e, situações em que os intermediários fi nanceiros envolvidos no processo de liquidação não dispõem ou simplesmente não entregam os valores mobiliários objeto da transação), estabelecendo, para esse fi m, obrigações genéricas de as CSDs implementarem procedimentos aptos a facilitar e incentivar a liquidação de transações nas datas previstas64. Além disso, tais regras procuram, de um lado, mitigar riscos de contraparte e de liquidez65, bem como impor deveres de informação e comunicação entre agentes66; e, de outro, mitigar os riscos de natureza eminentemente operacional suscitados pelo incontornável recurso a sistemas e mecanismos automatizados.

III. O regime previsto no art. 7.º, por seu turno, destina-se à resolução de falhas de liquidação que venham efetivamente a ocorrer. Exige-se, em primeiro lugar, que as CSD implementem sistemas de controlo que permitam identifi car a frequência, causas e características de tais falhas, informação esta que, por um lado, deve ser publicamente divulgada e, por outro, deve ser transmitida

63 Cf. art. 6.º/5.64 Cf. art. 6.º/3 e 4.65 Cf. art. 6.º/3. 66 Cf. art. 6.º/1, que impõe às entidades gestoras de plataformas de negociação

a obrigação de confi rmação pronta da informação relativa a transações concluídas; e art. 6.º/2, que exige às empresas de investimento a implementação de mecanismos que garantam a comunicação imediata de uma atribuição de valores mobiliários à transação, a confi rmação dessa atribuição e a confi rmação da aceitação ou rejeição dos termos em tempo útil antes da data de liquidação prevista.

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às autoridades de supervisão (e, por estas, à ESMA)67. Procura-se, com este regime, maior transparência a respeito do funcionamento dos sistemas de liquidação, permitindo aos participantes no mercado avaliar a respetiva performance e integridade, mas também assegurar, da parte das autoridades de supervisão, a monitorização de eventuais riscos sistémicos resultantes de um número elevado de falhas de liquidação. Um segundo vetor, que assume um intuito dissuasor de situações patológicas, consiste na obrigatoriedade de as CSDs criarem um regime sancionatório para os participantes responsáveis pelas falhas de liquidação, assente em sanções pecuniárias calculadas durante o período em que dure o incumprimento68. Acresce, ainda, a obrigação de as CSDs (mas também contrapartes centrais e entidades gestoras de plataformas de negociação) implementarem procedimentos de suspensão de participantes que, de forma sistemática, incumprem as suas obrigações relacionadas com a liquidação de transações69.

Central neste campo da resolução de falhas de liquidação é, depois, a consagração, por um lado, de um direito de anulação da transacção sempre que a falha persista além do chamado prazo de prorrogação e, por outro, de um procedimento imperativo de recompra de valores mobiliários, destinado a remediar situações de incumprimento e mediante o qual esses instrumentos são disponibilizados para liquidação, sendo entregues ao participante destinatário dentro de um prazo adequado e permitindo, com

67 Cf. art. 7.º/1.68 Cf. art. 7.º/2. Este regime sancionatório foi, na sequência de solicitação

da Comissão Europeia, objeto de um draft Technical Advice produzido pela ESMA no fi nal de 2014, esperando-se até ao fi nal de 2015 a publicação da versão defi nitiva do documento. No documento, a ESMA detalha os parâmetros a ter em conta na determinação destas sanções pecuniárias, considerando o tipo de valores mobiliários envolvidos, a natureza e valores das transações em causa, entre outros, sendo aí reafi rmado o intuito dissuasor de situações patológicas deste mecanismo, que assim não constitui o instrumento de compensação de perdas sofridas por outro participante no sistema.

69 Cf. art. 7.º/9.

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isso, a efetiva conclusão da negociação de valores mobiliários70. Dependendo do tipo de transação (e, portanto, da modalidade de liquidação aplicável), a entidade responsável pela recompra pode ser uma contraparte central, quando se trate de operação em que esta intervenha71, um participante numa plataforma de negociação, nos termos do respectivo regulamento interno72, ou um participante no sistema de liquidação73. Para preservar o seu perfi l de risco, as CSDs parecem isentas deste dever de substituição de participantes faltosos, apesar, de juntamente com as entidades gestoras do mercado (e as contrapartes centrais, quando aplicável), serem ativamente envolvidas no processo de aquisição em mercado dos valores mobiliários em falta e subsequente entrega ao participante não faltoso. Por outro lado, e a fi m de evitar um impacto negativo na liquidez e efi ciência do mercado, as regras a que fi ca sujeito tal procedimento de recompra são adaptadas às especifi cidades dos diferentes mercados de valores mobiliários e plataformas de negociação, bem como às características de operações complexas tais como acordos de recompra ou empréstimos de valores mobiliários de muito curto prazo.

A ideia subjacente a este mecanismo, que não será aplicável caso seja aberto um processo de insolvência contra o participante em situação de incumprimento74, é então a disseminação pelos demais participantes no sistema do risco de ocorrência de falhas de liquidação, sem prejuízo da penalização e responsabilização do participante em situação de incumprimento75, a quem caberá sempre

70 Cf. art. 7.º/3. Na verdade, o direito português impunha já que os sistemas de liquidação acomodassem um tal procedimento de substituição para casos de incumprimento das obrigações relacionadas com a liquidação. Vem previsto no art. 280.º CdVM, sendo detalhado no art. 13.º do regulamento CMVM n.º 5/2007.

71 Cf. art. 7.º/10/a).72 Cf. art. 7.º/10/b).73 Cf. art. 7.º/10/c).74 Cf. art. 7.º/12).75 Por exemplo, dispõe o n.º 6 do preceito que, sem prejuízo do aludido regime

sancionatório, se o preço das ações acordado à data da negociação for superior

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suportar os custos incorridos no processo de recompra76. De referir, porém, que este regime se encontra sujeito a concretização adicional através de normas técnicas de regulamentação, no âmbito das quais serão defi nidos aspetos decisivos deste regime, designadamente a determinação da ou das entidades efetivamente obrigadas a substituir o participante faltoso, adquirindo os valores mobiliários em falta 77. Outra preocupação neste âmbito diz respeito à aplicação destas obrigações de buy-in (e também do regime sancionatório atrás referido) nos casos em que os valores mobiliários sejam detidos através de cadeias de intermediação, caso em que deverá naturalmente ser evitada a multiplicação de remédios e medidas sancionatórias.

IV. Uma nota fi nal a respeito das exigências de transparência impostas aos chamados internalizadores de liquidação, i.e. aqueles intermediários e empresas de investimento que executem ordens de transferência em nome dos clientes ou por conta própria através de meios distintos de um sistema de liquidação de valores mobiliários78. Exige-se então a estes internalizadores de liquidação que comuniquem periodicamente às respetivas autoridades de supervisão o volume de operações liquidadas fora de sistemas de liquidação, cabendo depois a estas transmitir a informações à

ao preço pago pela execução da recompra, a diferença correspondente é paga ao participante destinatário pelo participante em situação de incumprimento o mais tardar no segundo dia útil após a entrega dos instrumentos fi nanceiros, na sequência da recompra. Além disso, nos termos do n.º 7, se não tiver sido efetuada ou não for possível efetuar a recompra, o participante destinatário pode optar por receber uma indemnização pecuniária ou por diferir a execução da recompra para uma data posterior adequada. Se os instrumentos fi nanceiros em causa não forem entregues ao participante destinatário até ao termo do período de diferimento, é efetuado o pagamento da indemnização pecuniária

76 Cf. art. 7.º/8.77 Cf. art. 7.º/15.78 No nosso direito, cf. arts. 252.º ss. CdVM. Veja-se C. D P ,

“Internalização Sistemática – Subsídios para o estudo de uma nova forma organizada de Negociação”, Cadernos CMVM, 2007, pp. 150 ss.

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ESMA e identifi car potenciais riscos decorrentes destas operações de liquidação fora de sistema79. Seguindo um padrão de regulação paralelo ao que foi seguido noutros domínios (por exemplo, com as operações de derivados OTC), procura-se com este regime tornar mais transparente o funcionamento das práticas e estruturas pós-negociação desenvolvidas pelo mercado, procurando por essa via mitigar o inevitável risco sistémico associado a volumes signifi cativos de liquidação de operações ocorrido fora dos sistemas não sujeitos ao quadro normativo trazido pelo Regulamento CSD.

4. Autorização e supervisão de CSD

a) O processo e os efeitos da autorização

I. Como foi assinalado atrás, uma das mais salientes novidades trazidas pelo Regulamento CSD foi a criação para o espaço europeu de um regime único de autorização e supervisão de CSDs, que adapta para estes agentes - no conteúdo e no método - o quadro regulatório entretanto consolidado para as empresas de investimento. A atividade das CSDs fi ca assim genericamente sujeita a autorização administrativa prévia, que consoante o tipo de serviços a prestar e o respetivo âmbito territorial pode envolver diferentes autoridades (num mesmo Estado membro, ou em mais do que um), bem como a uma pauta de supervisão comum e harmonizada, assente em requisitos organizacionais, requisitos prudenciais e normas de conduta aplicáveis80.

Para este fi m, o Regulamento CSD detalha os termos em que se deve desenrolar o processo de autorização – ainda que o regime

79 Cf. art. 9.º/1.80 Acrescem ainda, no nosso ordenamento, as regras de conduta previstas no

nos arts. 32.º a 39.º e as regras prudenciais previstas nos arts. 40.º e 41.º, todos do DL 357-C/2007, que na medida em que não seja incompatíveis com o quadro de direito europeu, permanecem também aplicáveis.

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permaneça sujeito a posteriores desenvolvimentos pela ESMA81 -, impondo deveres de informação aos requerentes, prevendo procedimentos de cooperação entre as autoridades competentes, autoridades relevantes e autoridades competentes noutros Estados Membros, e estabelecendo um prazo máximo de seis meses para a tomada de decisão relativa à concessão ou recusa da autorização.

Concluído o processo, a autorização deve identifi car quais de entre os serviços principais (a gestão de um sistema de liquidação, a prestação de serviços de registo em conta ou a prestação de serviços de administração de sistema de registo centralizado) e os serviços acessórios a CSD fi ca habilitada a prestar82. A fi m de preservar o perfi l de risco das CSDs, a sua atividade deve ser tendencialmente exclusiva e delimitada à prestação daqueles serviços, sendo por exemplo vedada a detenção de participações sociais em entidades que desenvolvam atividade diversa83. Também o estabelecimento de ligações interoperáveis84 entre CSDs fi ca sujeito a autorização pelas autoridades competentes, que em caso de divergência quanto ao pedido fi cam sujeitas a mediação da ESMA, sendo tais pedidos recusados apenas quando a ligação pretendida entre CSDs ameaçar o funcionamento correto e ordenado do mercado ou originar um

81 Cf. art. 17.º/9 e 10.º.82 Cf. art. 16.º/2. Em termos análogos ao regime previsto para as empresas de

investimento, fi ca igualmente sujeito a autorização o eventual recurso a terceiros para a prestação de um dos serviços principais, ou a intenção de expandir as atividades da CSD além dos serviços inicialmente autorizados (cf. art. 19.º/1)

83 Cf. art. 18.º/3.84 Uma ligação entre CSDs é defi nida como um acordo entre CSDs, mediante

o qual uma CSD adquire a qualidade de participante no sistema de liquidação de valores mobiliários de outra CSD a fi m de facilitar a transferência de valores mobiliários dos participantes desta última CSD para os participantes da primeira CSD ou um acordo mediante o qual uma CSD acede indiretamente a outra CSD através de um intermediário (art. 2.º/1/29). Por seu turno, uma ligação interoperável consiste numa ligação entre CSDs mediante a qual estas acordam no estabelecimento recíproco de soluções técnicas em matéria de liquidação nos sistemas de liquidação de valores mobiliários por elas geridos (art. 2.º/1/33).

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risco sistémico85. Os fundamentos de revogação (total ou apenas parcial) da autorização vêm depois previstos no art. 20.º. Uma vez autorizada, a CSD deve igualmente ser inscrita num registo a manter pela ESMA86.

II. Aspeto inovador do regime trazido pelo Regulamento é a criação de um verdadeiro passaporte europeu para a atividade das CSDs, seguindo, também aqui, um modelo semelhante ao previsto para as atividades de intermediação fi nanceira e, em certa medida, para as atividades bancárias. Assim, nos termos do art. 23.º, uma CSD autorizada num Estado Membro pode livremente prestar serviços noutro Estado Membro, incluindo através de sucursal. Esta liberdade de prestação transfronteiriça de serviços, que se encontra naturalmente limitada aos serviços autorizados no Estado de origem (i.e. aquele em que a CSD está estabelecida), fi ca dependente de um processo simplifi cado assente numa notifi cação à autoridade competente do Estado de origem87 e subsequente troca de informações entre esta e a autoridade competente do Estado de acolhimento. A CSD fi cará habilitada a prestar os serviços pretendidos quando receba comunicação de aprovação pela autoridade competente do Estado de acolhimento, ou no prazo de 3 meses contados a partir do envio do processo pela autoridade competente do Estado de origem88. Para os casos em que a prestação transfronteiriça de serviços se dê por via da constituição de sucursal, a supervisão é repartida entre as autoridades competentes do Estado membro de origem e do Estado membro de acolhimento, nos termos das regras previstas no art. 24.º89

Já para CSD de países terceiros, a prestação de serviços fi ca sujeita a autorização a conceder pela ESMA, com base num juízo

85 Cf. art. 19.º/3 e 4. É também regulado no art. 19.º/6 o estabelecimento de ligações com CSDs de paises terceiros.

86 Cf. art. 21.º.87 Cf. art. 23.º/3.88 Cf. art. 23.º/6.89 Cf. art. 24.º.

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de equivalência destinado a avaliar se tal CSD constituído fora da UE se encontra sujeito a um regime regulatório e de supervisão que ofereça garantias de integridade e segurança90.

b) Requisitos organizacionais, regras de conduta e requisitos prudenciais: panorama geral.

I. Em linha com o cariz da regulação das atividades de intermediação fi nanceira, as atividades das CSDs são objeto de uma detalhada malha normativa, pela primeira vez harmonizada a nível europeu, que assenta na conjugação de requisitos organizativos, regras de conduta e requisitos prudenciais. A prossecução dos objetivos deste instrumento de direito europeu faz-se assim, refl examente, através da estatuição de um acervo detalhado de padrões de controlo, cujo cumprimento pelas CSDs deve ser acompanhado e escrutinado pelas autoridades de supervisão. Não cabe neste estudo mais do que uma perspetiva geral destes regimes, que, por isso, não serão aqui analisados de forma detalhada, com exceção das regras dedicadas aos deveres de segregação e previstas no art. 38.º, onde me pretendo deter um pouco mais adiante.

II. Os requisitos organizativos partem de uma norma de cariz programático, que estabelece que as CSDs devem dispor de mecanismos de governo sólidos, incluindo uma estrutura organizativa clara, com linhas de responsabilidade bem defi nidas, transparentes e coerentes, processos efi cazes de identifi cação, gestão, controlo e comunicação dos riscos a que estejam ou possam vir a estar expostas, políticas adequadas de remuneração e mecanismos adequados de controlo interno, nomeadamente procedimentos administrativos e contabilísticos sólidos91. Estes

90 Cf. art. 25.º/4. Na literatura especializada, K L / D V , “Prospects and Challenges of a Pan-European Post-Trade Infrastructure”, ECMI Policy Brief, 2012, disponível em http://ssrn.com/abstract=2174367.

91 Cf. art. 26.º.

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princípios genéricos são contudo objeto de limitada concretização no próprio Regulamento CSD, que em grande medida remete, para esse efeito, para as normas técnicas de regulamentação a preparar pela ESMA e a adotar pela Comissão, limitando-se a estabelecer obrigações genéricas relacionadas com a implementação de políticas e regulamentos internos, incluindo a respeito da prevenção e gestão de situações de confl itos de interesses92, exigências de transparência a respeito da estrutura de governo e mecanismos de controlo interno93, a existência de instrumentos de comunicação de irregularidades94 e a realização e comunicação de auditorias internas95. São igualmente detalhados deveres respeitantes à guarda e manutenção de registos96 e à subcontratação de prestadores de serviços97.

Objeto de maior concretização são as regras relativas ao governo societário de CSDs. Em linha com a intervenção comunitária neste domínio, é adotada uma abordagem funcional, que não preconiza estruturas de governo específi cas, permanecendo por isso viáveis as opções proporcionadas pelos direitos nacionais. Ainda assim, são estabelecidos requisitos de idoneidade, diversidade e competência para os quadros superiores e os membros do órgão de administração da CSD, sendo estes últimos também sujeitos a requisitos mínimos de independência98. Por seu turno, os acionistas com capacidade para exercer controlo (direto ou indireto) sobre a atividade da CSD são igualmente sujeitos a requisitos de idoneidade e de

92 Cf. art. 26.º/2 e 3.93 Cf. art. 26.º/4.94 Cf. art. 26.º/595 Cf. art. 26.º/6.96 Cf. art. 29.º. 97 Cf. art. 30.º e art. 31.º, este último respeitante à prestação de serviços de

registo de valores mobiliários. 98 Cf. art. 27.º/1, 2 e 4. O n.º 3 do preceito, por seu turno, impede qualquer

ligação entre a remuneração dos membros não executivos e independentes do órgão de administração e os resultados da atividade da CSD.

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transparência, a escrutinar pelas autoridades de supervisão99. Ainda a respeito do governo das CSDs, e como instrumento de

governo que procura acomodar os interesses de um stakeholder particular deste tipo de entidades, é interessante notar a obrigatoriedade de criação de um comité de utilizadores, a ser composto por representantes dos emitentes e dos participantes naqueles sistemas e que devem atuar com independência face à CSD100. Trata-se de uma inovação enquadrada no objetivo de promover a concorrência no mercado das CSDs, procurando que as diferentes entidades que recorrem aos serviços por estas prestados e que participam nos sistemas de liquidação possam monitorizar de perto a atuação das entidades gestoras, em especial com o intuito de aconselhar a respetiva gestão e de identifi car eventuais condutas discriminatórias.

III. A respeito das normas gerais de conduta, merece também referência breve o regime destinado a racionalizar os requisitos impostos pelas CSDs para a participação nos sistemas por si geridos. Com vista, uma vez mais, a evitar comportamentos anticoncorrenciais e discriminatórios, tais critérios devem garantir um acesso aberto e equitativo, a partir de critérios transparentes, objetivos e não discriminatórios, que deverão ser divulgados publicamente101. Eventuais critérios restritivos do acesso às plataformas

99 Cf. art. 27.º/6 e 7. Trata-se de um procedimento em linha com aquele que, de resto, vigorava já no direito português, previsto nos arts. 9.º a 15.º do DL 357-C/2007 (por remissão do art. 46.º do mesmo diploma), que porém impõe o controlo administrativo de titulares de participações qualifi cadas quando seja ultrapassada a fasquia dos 10% do capital social ou direitos de voto da sociedade gestora, e não apenas quando exista controlo ou infl uência signifi cativa. São aí igualmente detalhadas as consequências da violação deste dever de comunicação prévia da aquisição ou reforço de participações qualifi cadas, assente no instituto da inibição dos direitos de voto, que não tem paralelo no Regulamento CSD e que, por isso, se deve entender ainda aplicável.

100 Cf. art. 28.º/1 e 2.101 Cf. art. 37.º/1.

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geridas por CSDs deverão ser justifi cados a partir de riscos específi cos, e a recusa de admissão pela CSD de uma entidade enquanto participante num sistema por si gerido deve ser objeto de fundamentação102, passível de reclamação junto da autoridade de supervisão competente. Na mesma linha, as CSDs devem divulgar os preços e comissões cobrados pelos serviços prestados103.

Quanto às regras respeitantes aos serviços principais prestados pelas CSDs, é imposto um dever de reconciliação diária entre os valores mobiliários respeitantes a uma emissão integrada na CSDs e os valores correspondentes inscritos em cada uma das contas abertas pelos participantes (ou, se aplicável, nas próprias contas de titularidade mantidas pela CSD)104, sendo proibidos os descobertos ou saldos devedores105. A respeito do carácter defi nitivo da liquidação, impõe o art. 39.º/1 que as CSDs defi nam o momento da introdução das ordens de transferência e o momento em que as mesmas se tornam irrevogáveis106, devendo estas regras ser publicamente divulgadas. É igualmente imposto, nos termos do n.º 7 do mesmo preceito, que as transações de valores mobiliários entre participantes diretos num mesmo sistema de liquidação sejam, como regra, liquidadas numa base de entrega contra pagamento107.

Na mesma linha, o Regulamento CSD contém regras prudenciais que obrigam à adoção de políticas e mecanismos de controlo

102 Cf. art. 37.º/3.103 Cf. art. 34.º/1.104 Cf. art. 37.º/1, impondo depois o n.º 2, para os casos em que a operação

de reconciliação envolva entidades diversas (por exemplo, emitente, agentes de registo, agentes de emissão, agentes de transferência, depositários comuns ou outras CSD), a cooperação entre estas.

105 Cf. art. 37.º/3.106 Para os efeitos dos artigos 3.º e 5.º da Diretiva 98/26/CE. Nos termos

do n.º 3 do mesmo preceito, as CSDs devem tomar as medidas razoáveis para assegurar que o caráter defi nitivo das transferências de valores mobiliários e de fundos seja atingido em tempo real ou numa base intradiária, e em todo o caso o mais tardar até ao fi nal do dia útil na data de liquidação efetiva.

107 I.e. a transferência de valores mobiliários fi ca necessariamente associada a uma transferência de fundos, de forma a que a entrega dos valores mobiliários

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interno adequados para salvaguardar os diversos riscos (jurídicos, de negócio, operacionais e outros) a que as atividades das CSDs se encontram expostas, considerando não apenas o tipo e extensão dos serviços prestados, também o respetivo âmbito territorial108. Ao nível do perfi l de solvência, o Regulamento CSD impõe restrições à política de investimento dos ativos da CSD109, bem como à exposição a uma mesma instituição de crédito110. Por seu turno, também o capital das CSDs é sujeito a regulamentação específi ca: mesmo não sendo quantifi cado em termos absolutos, exige-se que o capital social (acrescido dos resultados retidos e reservas) seja proporcional aos riscos decorrentes das atividades da CSD, sendo sufi ciente, a todo o momento, para: de um lado, garantir que a CSD dispõe de proteç ã o adequada contra riscos operacionais, jurídicos, de custódia, de investimento e comerciais, permitindo que a CSD continue a prestar serviços em condiç õ es normais de atividade; e, por outro, permitir a liquidação ordenada ou a reestruturação das atividades da CSD ao longo de um período de tempo adequado de pelo menos seis meses, num leque de cenários de esforço111.

c) Em especial, os deveres de segregação

só se verifi que se e quando ocorrer a correspondente transferência de fundos (e vice-versa). O art. 40.º regula depois especifi camente a liquidação fi nanceira das operações, estabelecendo como modalidade preferível a liquidação através de conta aberta junto de banco central (n.º 1) ou, quando tal não seja possível, através de contas abertas em instituições de crédito ou através de contas das próprias CSDs (n.º 2).

108 Cf. art. 43.º ss. De salientar, pela sua relevância, a obrigação de manutenção de políticas de continuidade de negócio e de planos de recuperação na sequência de catástrofes a fi m de garantir a manutenção dos seus serviços, a recuperação atempada das operações e o cumprimento das obrigações da CSD em situações que apresentem um risco signifi cativo de perturbação das operações (cf. art. 45.º/3 e 4).

109 Que devem ser guardados em bancos centrais, instituições de crédito autorizadas ou CSDs autorizadas (cf. art. 46.º/1) e apenas investidos em fundos ou em instrumentos fi nanceiros de elevada liquidez, com riscos de mercado e de crédito mínimos (cf. art. 46.º/3).

110 Cf. art. 46.º/5.111 Cf. art. 47.º/1. O n.º 2 do mesmo preceito obriga ainda as CSD a manterem

planos de contingência para situações de insufi ciência de fundos próprios.

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I. Bastante detalhado, e com um alcance que ultrapassa o âmbito da estrita liquidação de valores mobiliários, é o regime respeitante aos deveres de segregação e proteção de ativos de clientes, um dos focos típicos de potencial confl ito de interesses entre CSDs, participantes e investidores. Trata-se de um regime que procura proteger a posição patrimonial dos participantes e investidores de eventuais riscos infraestruturais relacionados com o funcionamento dos sistemas de liquidação de valores mobiliários e a prestação de serviços conexos, através de medidas destinadas a assegurar a identifi cabilidade e um adequado nível de separação dos valores mobiliários inscritos nos sistemas. É aqui também evidente o paralelo com a disciplina da salvaguarda dos bens de clientes prevista na DMIF (e entretanto desenvolvida na DMIF II) para os intermediários fi nanceiros112.

Como coordenada fundamental, é imposta às CSDs a obrigação de manter contas e registos que permitam, a qualquer momento e com a maior brevidade, segregar os valores mobiliários de um participante dos de qualquer outro participante (segregação horizontal) e, se aplicável, dos próprios ativos da CSD (segregação vertical)113. Avançando um patamar, exige-se depois que as contas e registos da CSD permitam que os participantes segreguem os seus valores mobiliários dos valores mobiliários dos seus clientes114, e que o façam ou mantendo numa mesma conta valores mobiliários pertencentes a diferentes clientes (segregação total de clientes ou segregação omnibus) 115 ou numa conta individual de cliente (segregação de cliente individual)116. Acrescem, ainda, exigências de transparência associadas à opção por uma destas modalidades de segregação: não apenas devem os participantes dar aos seus

112 Cf. arts. 13.º/7 DMIF (e art. 13.º/8 DMIF II), transposto para o nosso direito nos arts. 306.º CdVM; sobre este regime, cf. A. F , O negócio fi duciário perante terceiros, pp. 473 ss.

113 Cf. art. 38.º/1.114 Cf. art. 38.º/2.115 Cf. art. 38.º/3.116 Cf. art. 38.º/4.

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clientes a possibilidade de optarem entre a segregação omnibus ou em base individual, sendo os clientes informados dos custos e riscos associados a cada opção (incluindo a respeito do impacto de uma eventual insolvência)117, como compete à CSD e aos participantes divulgar publicamente os níveis de proteção e os custos associados aos diferentes níveis de segregação por si fornecidos, devendo oferecer esses serviços em condições comerciais razoáveis118.

A circunstância de não se encontrarem ainda harmonizadas as regras europeias relativas à circulação mobiliária e, especifi camente, as relativas aos direitos decorrentes da titularidade de contas de valores mobiliários difi culta a apreensão imediata do alcance deste regime da segregação. Até porque, em resultado da aludida fragmentação normativa, é muito diversa a anatomia dos sistemas de circulação e liquidação de valores mobiliários, sendo que, em particular, varia consoante o ordenamento jurídico em causa a própria natureza das contas abertas junto de CSDs: nalguns (como sucede, por exemplo, em Portugal), a generalidade das contas abertas junto de CSD são por natureza contas de controlo119, que refl etem as posições constantes em contas abertas junto dos participantes, e que, por isso, não são atributivas de direitos de titularidade sobre os valores mobiliários; noutros, é prática ao invés a abertura de contas de titularidade junto das próprias CSD, mesmo que em nome de intermediários fi nanceiros que, por seu turno, detêm os valores por conta de clientes. De resto, num mesmo ordenamento jurídico podem ser conjugadas as duas situações. Signifi ca isto, então, que a extensão e verdadeiro signifi cado do regime previsto no art. 38.º terá sempre de ser reconciliado com a morfologia e natureza do sistema de contas operado pela CSD, e com os direitos nacionais que regulam os modos de circulação mobiliária.

117 Cf. art. 38.º/5.118 Cf. art. 38.º/6.119 Isto é, contas internas dos sistemas centralizados de valores mobiliários e

dos sistemas de liquidação, que servem exclusivamente funções de controlo da quantidade de valores em circulação e de reconciliação.

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II. De qualquer modo, é pelo menos segura a constatação de que os âmbitos objetivo e subjetivo deste regime da segregação extravasam a estrita regulação da liquidação de valores mobiliários e das atividades de CSDs. Em primeiro lugar, parece evidente que os deveres de segregação impostos às CSDs não se referem apenas a contas de liquidação de valores mobiliários, mas também e mais amplamente a contas de valores mobiliários que sejam parte integrante de um sistema centralizado gerido por uma CSD. Assim – de forma coerente com a defi nição de CSD proposta pelo Regulamento CSD, que pressupõe justamente a combinação de serviços de gestão de sistema de liquidação com ou serviços de gestão de sistema centralizado ou, pelo menos, de registo inicial de valores mobiliários – este regime de segregação não se aplica apenas a contas de liquidação stricto sensu, mas mais genericamente às contas de titularidade (abertas em nome dos investidores fi nais, ou de outro intermediário), que assim devem poder seguir um daqueles modelos de segregação: omnibus ou individual.

Tal signifi ca, por outro lado, que se encontram sujeitos a estes deveres de segregação as CSDs, na medida em que – de acordo com o direito aplicável – tenham abertas junto de si verdadeiras contas de titularidade de valores mobiliários, mas também os intermediários fi nanceiros participantes nos sistemas geridos pelas CSDs, que, para além de deverem segregar os valores detidos por conta de clientes dos que compõem a sua carteira própria, fi cam obrigados a oferecer aos seus clientes aquelas duas modalidades de segregação. Esta extensão do âmbito subjetivo do regime trazido pelo Regulamento é depois também evidente quando se atentam os já referidos deveres de informação dos custos e riscos subjacentes à opção ou pela segregação omnibus ou pela segregação individual120.

120 Este acervo de deveres relacionados com a segregação de patrimónios pertencentes a CSDs, participantes e clientes constitui, de resto, outro eloquente exemplo de um fenómeno comum no moderno direito regulatório, que é o da sua irradiação para o direito privado e, especifi camente, para o âmbito dos contratos de direito privado que vinculam CSDs e participantes, e estes e os seus clientes.

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III. Isto dito, deve fi car claro que estas regras de segregação patrimonial se situam, claramente, num plano puramente procedimental ou comportamental (i.e. na imposição de determinadas condutas a CSDs e intermediários fi nanceiros, destinadas a assegurar, de facto, a separação de certos ativos), não indo porém no sentido de determinar um efeito de segregação patrimonial dos valores mobiliários integrados nos sistemas centralizados e de liquidação geridos por CSDs, designadamente num cenário de insolvência da CSD ou de um seu participante. Esta matéria sensível permanece, por enquanto, na esfera dos direitos nacionais.

Naturalmente, os dois planos surgem interligados e, em particular, o respeito pela segregação patrimonial enquanto procedimento pode facilitar – ou mesmo ser condição necessária para - o reconhecimento de um efeito de separação patrimonial, em especial num cenário patológico ou de insolvência. Mas é claro que o Regulamento CSD – em linha, uma vez mais, com a disciplina da intermediação fi nanceira, que também não uniformiza o tema da oponibilidade a terceiros dos direitos de clientes de intermediários fi nanceiros – limita o seu âmbito àquela primeira dimensão procedimental, não se imiscuindo diretamente em matérias como a natureza e oponibilidade externa dos direitos de participantes e dos seus clientes num cenário de insolvência seja da CSD, seja de um dos seus participantes.

Foi tema que tratei em maior profundidade noutro local (Cf. A. F , O negócio fi duciário perante terceiros, pp. 491 ss., incluindo referências bibliográfi cas) e que não interessa aqui desenvolver. Assinalo apenas como tais deveres de segregação previstos no art. 38.º, e aqueloutros de transparência e informação a respeito dos custos e riscos associados às diversas modalidades de segregação, se projetam diretamente no quadro contratual estabelecido entre aquelas entidades (provavelmente enquanto deveres acessórios), reduzindo-se o espaço de autonomia privada, e fi cando genericamente sujeitos ao regime geral do incumprimento (sem prejuízo, naturalmente, das sanções administrativas que sejam aplicáveis em caso de violação desta disciplina).

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IV. Ainda a respeito da proteção dos bens dos participantes (ou dos seus clientes), releva o art. 38.º/7, que vem vedar às CSDs a utilização de valores mobiliários que não lhes pertençam, exceto quando tenham obtido o consentimento expresso para o efeito da parte do participante (ou, sendo o caso, do cliente ou clientes deste). Adapta-se, então, para a atividade das CSDs o regime da negociação por conta própria já previsto para a intermediação fi nanceira121, estabelecendo o que, na verdade, não confi gura uma proibição absoluta de utilização dos valores mobiliários dos participantes (ou dos clientes deste), mas antes uma prerrogativa de utilização no interesse da CSD ou de terceiro, desde que obtido o prévio consentimento do titular. Procura-se, com isso, regular práticas que, de resto, são já comuns no tráfego mobiliário (em particular por CSDs internacionais), que procuram aproveitar os grandes volumes de valores mobiliários custodiados junto de si em operações de curto prazo que reforçam a liquidez no mercado (e, claro, aumentam margens comerciais). Naturalmente, esta regra tem aplicação apenas naqueles casos em que as contas abertas junto da CSD sejam verdadeiras contas de titularidade, pois só estas podem (direta ou indiretamente) conferir prerrogativas de disposição, e não meras contas de controlo, de onde não pode resultar a disponibilidade dos valores mobiliários para a utilização pela CSD.

121 Cf. art. 13.º/7 DMIF e art. 16.º/8 DMIF II. Estas regras foram transpostas para o nosso ordenamento nos arts. 306.º/3 e 306.º-B, ambos do CdVM. Sobre este regime, para indicações adicionais que, mutatis mutandis, podem ser transpostas para a regulação da negociação por conta própria por CSD, remeto de novo para A. F , O negócio fi duciário perante terceiros, pp. 473 ss. (em especial, 482 ss.). Para entidades gestoras de sistemas de liquidação, o tema era já, na verdade, objeto de regulamentação no quadro do Decreto-Lei n.º 357-C/2007, dispondo o art. 48.º que as sociedades gestoras de sistema de liquidação apenas podem utilizar os instrumentos fi nanceiros de terceiros nos termos e para os efeitos para os quais estão mandatadas.

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5. Notas fi nais

I. No quadro mais amplo da progressiva integração (jurídica, mas também económica e operacional) dos mercados fi nanceiros europeus, a entrada em vigor do Regulamento CSD é inquestionavelmente um desenvolvimento assinalável, enquanto instrumento de aprofundamento da harmonização do direito europeu em temas relevantes e sensíveis, antes objeto de regulamentação altamente fragmentada e muito dependente ainda de tradições e práticas nacionais. Como espero ter fi cado claro ao longo do texto, foi consagrado um conjunto robusto e uniforme de coordenadas destinadas a regular a fase pós-negociação, em particular (mas não só) os processos de liquidação de valores mobiliários, promovendo a segurança jurídica e a redução de custos de transação, e ao mesmo tempo criado um regime único para CSDs, que habilita a prestação transfronteiriça de serviços no espaço europeu, sujeitos a uma pauta de supervisão comum e em condições mais transparentes e concorrenciais.

Ainda assim, é também segura a afi rmação de que este desenvolvimento normativo é apenas um primeiro passo no processo em curso de harmonização defi nitiva dos regimes aplicáveis às CSDs e às infraestruturas do mercado de capitais. Na verdade, os próximos tempos serão ainda de consolidação e concretização das regras trazidas pelo Regulamento CSD, e serão marcados por uma progressiva adaptação dos agentes a um novo ambiente jurídico e operacional, onde, de resto, se multiplicam iniciativas europeias com impacto na fase pós-negociação. O Regulamento CSD depende em larga medida de concretização através de normas técnicas, encontrando-se muitos dos seus regimes – alguns deles centrais – ainda em suspenso, a aguardar o input técnico por parte da ESMA e EBA, para subsequente adoção formal por parte da Comissão Europeia. Assim sucede, por exemplo, com o conjunto de regras destinadas a prevenir e resolver de falhas de liquidação, que no Regulamento CSD revestem um carácter geral – quase principiológico – e cuja força normativa requer ainda densifi cação em questões sensíveis e com importante alcance prático, como as

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medidas técnicas (de alocação, de confi rmação, etc.) destinadas a limitar e monitorizar a ocorrência de falhas de liquidação ou os procedimentos de remédio de falhas de liquidação (por ex., sanções pecuniárias a aplicar a participantes faltosos e os mecanismos de substituição/buy-in).

A isto acrescem as inevitáveis difi culdades inerentes à opção pelo regulamento enquanto instrumento de harmonização, bem visíveis noutros instrumentos de regulamentação europeia dos mercados fi nanceiros e que a aplicação do Regulamento CSD irá necessariamente suscitar. Na verdade, estão ainda por demonstrar de forma cabal as vantagens desta recente tendência metodológica de harmonização do direito europeu – que, de resto, vem prevalecendo de forma inequívoca no quadro do processo de re-regulação do pós-crise. O recurso ao regulamento, que se pretende de aplicação direta – e por isso tendencialmente autosufi ciente, sob pena de sair frustrada a sua característica essencial – pressupõe a utilização de conceitos conhecidos e testados nos diversos ordenamentos, ou pelo menos passíveis de interpretações consistentes. É duvidoso que tal se verifi que em muitos dos regimes do Regulamento CSD, que revestem uma carácter altamente técnico e granular – acentuado nas regras técnicas de concretização –, e que tocam em matérias onde são muito divergentes as práticas prevalecentes nos mercados de referência e nos diversos ordenamentos europeus. Por outro lado, o incontornável primado do direito europeu não afasta totalmente zonas de incerteza em resultado da possível coexistência, no plano interno, do Regulamento CSD, de um lado, e das regras nacionais sobre CSDs e liquidação de valores mobiliários – como sucede (pelo menos por ora) no ordenamento português. Pode designadamente ser suscitada a manutenção da vigência de regras de direito interno, seja porque se referem a matérias não incluídas (pelo menos, expressamente) no âmbito do regulamento CSD, seja por consagrarem soluções normativas distintas das do instrumento europeu, mas com ele não incompatíveis. Estas incertezas interpretativas provavelmente exigirão a intervenção continuada das autoridades de supervisão nacionais e, no limite, da ESMA.

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II. Outros desenvolvimentos normativos esperados ao nível europeu serão complementares das reformas agora iniciadas pelo Regulamento CSD. Desde logo, o já assinalado projecto de harmonização do direito mobiliário, mais especifi camente dos direitos inerentes à titularidade de contas de valores mobiliários (Securities Law Legislation). Como vimos, o âmbito do Regulamento CSD avança parcelarmente por territórios relacionados com a representação, custódia e circulação de valores mobiliários: a própria defi nição de CSD pressupõe a combinação de serviços de registo centralizado (ou inicial) de valores mobiliários e, por outro lado, o Regulamento CSD introduz novas exigências a respeito da forma de representação de valores mobiliários e da sua integração em CSD, para além de prescrever um conjunto de requisitos relativos à segregação de contas de valores mobiliários, aplicáveis também aos intermediários fi nanceiros. Espera-se agora que o novo instrumento de direito europeu, quando fi nalmente adotado, harmonize os efeitos decorrentes da titularidade daquelas contas (escriturais) de valores mobiliários, em particular nas situações de titularidade indireta com conexão com mais do que um ordenamento jurídico, designadamente regulando o exercício dos direitos (patrimoniais e políticos) inerentes aos valores mobiliários e consagrando uma regra uniforme de resolução de confl itos entre credores, em particular para cenários de insolvência de custodiantes e mesmo de CSDs. Por outro lado, também a já aludida revisão da Diretiva dos Direitos dos Acionistas trará novidades ao quadro regulatório das CSD, acrescentando obrigações de informação e comunicação relevantes para o conhecido problema da identifi cação de acionistas.

III. Merece por fi m referência breve o Target 2 Securities (T2S), projeto ambicioso em desenvolvimento no quadro do Eurosistema que visa a criação de uma plataforma técnica única de liquidação de valores mobiliários (numa base DVP) para o espaço europeu, plenamente integrada no sistema de contas dos bancos centrais

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europeus122, e que encontra no quadro normativo trazido pelo Regulamento CSD um ambiente mais propício à sua defi nitiva implementação. Não qualifi cando o próprio T2S como uma CSD, esta iniciativa reveste ao invés uma natureza eminentemente operacional, oferecendo como solução para a fragmentação prevalecente o acesso pelos agentes dos vários mercados a uma infraestrutura técnica única, podendo os intermediários fi nanceiros participar ou diretamente ou indiretamente através de CSD nacional. Visa-se, desta forma, promover uma maior efi ciência nos serviços associados à fase pós-negociação, devido às esperadas economias de escala e maior fl exibilidade na liquidação fi nanceira das operações com recurso a moeda de banco central, em especial, aproveitando as sinergias com a já existente plataforma TARGET2. Em resultado, e sem prejuízo da segregação jurídica entre mercados nacionais e CSDs, que persiste, a liquidação de valores mobiliários assentará, de um prisma operacional (e económico) numa plataforma única e uniforme, que ligará a generalidade dos CSDs europeus – e, portanto, também os valores mobiliários nelas registados. Por seu turno, serviços acessórios tipicamente prestados por CSD, designadamente, os relacionados com a gestão de colateral, serão também potenciados, em resultado do acesso – que será tecnicamente facilitado – a volumes muito mais signifi cativos de valores mobiliários e potenciais investidores.

* **

122 Sobre o T2S, cf. L. G. C / M. P , 2014, “A nova regulamentação dos mercados fi nanceiros – um tsunami regulatório (I)”.

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CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DO SISTEMA DE CONTROLO E DA FUNÇÃO DE CUMPRIMENTO

(«COMPLIANCE»)

I – INTRODUÇÃO

a) Considerações Preliminares

1. Como abundantemente se revela na comum experiência da vida, o desenvolvimento e crescente complexidade do processo económico, conduzem, por si próprios – mesmo nos regimes liberais mais ostensivos –, à multiplicação de intervenções dos diversos poderes legislativos, que vão fi xando, segundo as perspectivas políticas dominantes, e em vista das necessidades sucessivamente detectadas, requisitos, limites e quadros normativos que balizem a iniciativa e o desenvolvimento empresariais.

Constata-se que a prossecução das actividades económicas convoca a concorrência de plúrimos interesses não justaponíveis, frequentemente confl ituantes e, por vezes, contraditórios, que o simples funcionamento do mercado não consegue – ou, pelo menos, não consegue sempre – harmonizar efi cazmente, segundo padrões desejados.

Ao invés, geram-se, com recorrência, distorções e perversões várias que tendem a favorecer o aproveitamento por quem, por uma razão ou outra, se apresenta em posição de privilégio, quiçá mesmo determinante, em prejuízo de quem mais justifi caria tutela.

Os tempos que temos vivido são especialmente pródigos na ilustração desta realidade. Mas têm ainda a virtualidade de mostrar que o fenómeno da globalização potencia enormemente os riscos

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dos excessos e de desordem, quanto mais não seja pelo fl agrante perigo de contágio.

Há, pois, sem dúvida, razões sérias a suportarem as actuações regulamentares, as quais assumem, desta forma, um carácter verdadeiramente sistémico.

Está, então, em causa, a defi nição de critérios e paradigmas ético-jurídicos que, tendo em conta a natureza, objecto, fi nalidade e impactos das diversas actividades económico-empresariais, as devem orientar e reger, bem como a respectiva tradução nos acervos normativos a que se devem submeter.

Independentemente das diferenças, há, todavia, sempre a pretensão de procurar a melhor hierarquização e a mais equilibrada composição das posições em confronto, o que, aliás, faz com que a temática dos confl itos de interesses se anuncie como uma das matérias matriciais neste domínio1.

Num mundo em mudança, permanente e vertiginosa, intui-se a tentação, muitas vezes sem a apropriada resistência, de também modifi car constantemente as regras, não raro muito para além do desejável e, sobretudo, do necessário.

Em todo o caso, as soluções concretas não escapam ao teste da adequação às realidades a que se dirigem nem, com ele, ao escrutínio, de mérito e de oportunidade, de destinatários, estudiosos e aplicadores.

O resultado de um e outro constituem, por um lado, um referencial incontornável de refl exão; mas é também, por isso mesmo, um catalisador mais da sanha legiferante.

2. Entende-se, decerto sem a reivindicação de outras considerações complementares, que este movimento se expresse com particular acuidade no plano das actividades e entidades que

1 Para uma panorâmica geral da matéria em múltiplas manifestações, pode ver se, por todos, a obra colectiva de Paulo Câmara e Outros, Confl ito de Interesses no Direito Societário e Financeiro – Um Balanço a Partir da Crise Financeira, Almedina, Coimbra, 2010.

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gerem ou utilizam, como bem nuclear, recursos fornecidos pelo público – independentemente do modo como opera a captação e dos instrumentos que a dinamizam – e os colocam ao alcance de quem deles precisa.

À cabeça, surge, naturalmente, o sector fi nanceiro2. A tutela dos aforradores e dos investidores em geral, enquanto fornecedores de meios indispensáveis ao fi nanciamento e ao funcionamento da economia, arvora-se como um factor imprescindível da confi abilidade e estabilidade do próprio sistema e, logo, do seu sucesso. Mas também a protecção dos que recorrem ao crédito tem vindo a ser contínua e cada vez mais profundamente reclamada, visando, sobretudo, a transparência, rigor e completude da informação, em ordem a garantir tomadas de decisão esclarecidas e maduras.

Por isso, a indústria fi nanceira é, consabidamente, a mais regulamentada de todas as que se praticam, mesmo quando, por vezes, possa parecer existirem falhas clamorosas.

Esta sensação de omissão – por vezes de vazio – intensifi ca- se, obviamente, quando eclodem incidências anómalas – mesmo irregularidades ou fraudes – que evidenciam fragilidades sistemáticas, com consequências, amiúde, penosas, as quais, a mais das entidades directamente envolvidas e dos titulares dos interesses que, tendo as como centro e razão de ser, se criam, desenvolvem e agrupam à sua volta, podem afectar relevantemente a comunidade em geral ou franjas signifi cativas dela.

A reacção natural – aliás assumida repetidamente como uma exigência ético-política – é, uma vez mais, a proliferação da regulação aos diferentes níveis em que opera, concretizando-se, nomeadamente, em sucessivos ajustamentos e modifi cações

2 Que aqui referencio em sentido amplo, abrangendo não só as instituições de crédito e sociedades fi nanceiras, mas também as empresas seguradoras com relação ao seu papel na produção e comercialização dos chamados seguros fi nanceiros, em que, realmente, se aproximam da função típica, por excelência, dos bancos.

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das que já existem, mas também da introdução de novas normas, crescentemente mais exigentes e mais complexas.

É, com efeito, a realidade a que quotidianamente assistimos, no plano nacional como no internacional.

3. Mas o objectivo não se alcança, manifestamente, com a mera emanação de regras, por mais virtuosas que sejam. É absolutamente imprescindível que os seus destinatários as acatem e lhes dêem satisfação.

As normas jurídicas contêm, por isso, inerente a si próprias, o risco do incumprimento, como, aliás, é apanágio de todo o dever ser.

O instrumento tradicional típico usado para garantir a coercibilidade é o sancionamento repressivo, nas diversas modalidades que reveste, designadamente de natureza punitiva e compulsória. Ainda assim, revela-se bastas vezes insufi ciente e inefi caz.

São diversas as razões que para isso concorrem. Vale a pena recordar as mais evidentes.

Desde logo, está o facto de, operando a posteriori, a sanção não obstar à ocorrência do incumprimento a que reage, mas intentar, somente, a reparação, ainda que, porventura, da melhor maneira possível.

Doutro passo, as sanções repressivas podem não ser – e muitas vezes não são – adequadas ao dano que reprimem: umas vezes porque a moldura é, por si mesma, insufi ciente; outras porque, sendo normalmente apropriada, circunstâncias da vida que rodeiam o incumprimento a tornam, todavia, desajustada à dimensão do caso concreto; outras ainda porque a natureza, as características, ou mesmo as consequências efectivas do facto ilícito o constituem como realmente irreparável; também porque nem sempre os sancionados estão em condições de suportar, pelo menos integralmente, as sanções, quando estas lhes são aplicadas.

Constata-se, de resto, que, mesmo quando elas são plenamente justifi cadas e ingentes, o desencadeamento ocorre frequentemente

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em momento tardio, seja na decorrência do atraso com que a infracção é detectada, ou pelas vicissitudes do processo que suporta a decisão.

Perspectiva-se, deste modo, a necessidade de complementar o recurso ao sancionamento repressivo – por isso sem abrir mão dele – com outros mecanismos mobilizadores do cumprimento, privilegiando a vertente da prevenção.

4. Conhecido o poder dos meios de comunicação social, nas multifacetadas formas em que se manifesta e exerce, intui-se que a divulgação pública de sanções, factos sancionados ou até, no limite, da abertura ou do decurso de procedimentos sancionatórios contra imputados infractores poderá assumir (assume!) um papel de enorme valia na desmotivação de condutas desconformes com a lei.

Numa palavra, está em causa a reputação dos agentes económicos. E isso, é claro, reveste uma importância crucial, muitas vezes decisiva, no êxito das actividades, com directa projecção sobre os resultados, sobretudo num tempo em que, cada vez mais, tudo se conhece, tudo se comenta, tudo se avalia e todos participam e partilham.

Não cabe aqui apreciar, em detalhe, nem os riscos, nem os benefícios da publicitação – em síntese, o seu mérito –, nem, por conseguinte, ponderar os métodos e parâmetros em que razoavelmente seja admissível.

Sabe-se que ela tem vindo a ser crescentemente acolhida, comummente sob a capa da sanção acessória.

Mas o apelo à reputação, como fenómeno que também se conexiona com o cumprimento das exigências legais relativas à actividade, introduz um factor acrescido de motivação para que se crie, no seio das próprias organizações empresariais, uma cultura de actuação em conformidade com o Direito e se desenvolvam nelas estruturas que, de um modo particular, a estimulem, a promovam, e catalisem e controlem as políticas, procedimentos e práticas com vista a consecução desse desiderato.

Servem-se, assim, interesses vários, mas confl uentes.

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Sem dúvida, o interesse público, observado numa óptica dupla: as actividades desenvolvem-se em consonância com os requisitos, padrões e regras estabelecidos, tendo, evidentemente, como pressuposto que isso é o mais apropriado para o bom funcionamento do mercado, pelo menos segundo o que é desejado nos planos político e jurídico; assim sendo, os agentes económicos actuam com rigor e, nessa medida, são confi áveis.

Igualmente o interesse das autoridades a quem esteja cometida competência especial para acompanhar o exercício das actividades em causa, pelo menos em razão de que a existência desses instrumentos potencia que melhor se atinja o objectivo em vista, minimizando a probabilidade da ocorrência de incidências consideráveis.

Mas também, seguramente, o objectivo das entidades empresariais a quem cabe cumprir, porque, assim, fi cam em melhores condições para prevenir, controlar e mitigar os riscos de sanções de qualquer tipo, com o correspondente impacto na situação económica e na reputação.

Neste contexto, e em suma, do que se trata é, pois, de defi nir e inserir no seio das próprias empresas uma arquitectura de recursos, meios e tarefas que corporize a preocupação de exercício da actividade de acordo com a disciplina jurídica global aplicável, exponencie as possibilidades efectivas de o conseguir e acompanhe as incidências que possam verifi car-se, em ordem à diminuição e superação dos seus efeitos, com especial incidência nas situações em que, pela natureza ou características do objecto empresarial, tipo de interesses servidos, forma de organização adoptada ou outra razão relevante, se colocam especiais exigências neste domínio.

5. Justifi ca-se aqui uma nota de carácter semântico.Na designação de origem em língua inglesa, esta realidade é

genericamente designada por compliance ou função de compliance (compliance function). E, como acontece com muitos outros termos que reportam fenómenos do mundo da economia, a expressão tem sido assim universalmente aceite e utilizada.

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A verdade é que, no nosso caso, a língua portuguesa não dispõe de vocábulo capaz de abarcar, na plenitude, todo o âmbito abrangido.

Com efeito, as alternativas que se têm apresentado são as de recorrer às palavras conformidade ou cumprimento.

A primeira corresponde a uma tradução literal, dando expressão, fundamentalmente, ao resultado que é visado. Por contrapartida, não se ajusta a refl ectir adequadamente a realidade que o precede, que é construída para o atingir e que, em bom rigor, constitui, em si, a resposta à preocupação e ao objectivo determinantes.

A segunda é mais apropriada a consegui-lo sem, a meu ver, chegar a padecer do vício de induzir a subalternização do resultado. Sem embargo, tem o inconveniente de se afastar mais do signifi cado vernáculo.

Havendo que optar entre o que melhor corresponde ao sentido verbal e o que melhor manifesta o ideográfi co, parece-me preferível esta última solução, que será privilegiadamente usada nas páginas seguintes3.

b) Fundamentos e caracterização geral

6. A partir das considerações expostas, não é difícil sumariar os fundamentos de um sistema de cumprimento e da função que o concretiza, nem avançar o que genericamente os caracteriza.

Está em causa proporcionar que as empresas se comprometam activamente no acolhimento e prática da disciplina que rege as respectivas actividades, através de iniciativas próprias que devem

3 A difi culdade tem sido também sentida pelo próprio legislador, como se deduz do mero cotejo entre o artº 305º. A do Código dos Valores Mobiliários e o artº 17º do Aviso do Banco de Portugal nº 5/2008, de 1 de Julho. Mais explicitamente em consonância com a opção acolhida no texto, vd. o artº 11ºA, nº 2, do Regulamento da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários nº 2/2007, de 5 de Novembro, na redacção do Regulamento, da mesma entidade, nº 3/2008, de 3 de Julho.

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auto-promover para esse efeito, quer no plano de adequação das políticas, procedimentos e práticas aos requisitos e exigências normativas, tomando as decisões e adoptando e implementando as medidas que se mostrem necessárias, quer no plano do seguimento, para assegurar a contínua regularidade da actividade, identifi car incidências que ocorram e impulsionar a sua superação.

Subjacente está que os mecanismos tradicionais dirigidos a suportar a coercibilidade, conquanto permaneçam, normalmente, imprescindíveis, não são sufi cientemente efi cientes para promover uma cultura de cumprimento nem, de todo o modo, o tutelam pela via mais virtuosa.

Em todo o caso – isto é, independentemente disso, embora também por isso –, importa providenciar que os próprios destinatários das normas se envolvam empenhadamente na sua satisfação, porque essa é a primeira e principal garantia de que ela se verifi cará naturalmente, sem contingências relevantes, e, do mesmo passo, se dinamizam rotinas para responder a estas, quando e se ocorrerem.

O que se requer é, pois, a institucionalização de um paradigma, de carácter prioritário e predominantemente preventivo, dirigido a que a cultura, o ambiente, as orientações, os valores, os princípios e as práticas efectivas das entidades traduzam e materializem a conformidade da actividade com elas, desde o momento em que as normas se tornam aplicáveis.

Será, portanto, imprescindível que, atempadamente, se adoptem e implementem as providências adequadas às novas exigências que vão surgindo; mas é também necessário acompanhar o desenvolvimento da actividade para, quanto possível, detectar anomalias, defi ciências e irregularidades susceptíveis de pôr em causa o cumprimento dos dispositivos relevantes, impulsionando a superação e, quando apropriado, procedendo à reparação que se imponha.

O universo composto pelos modos de organização, recursos, processos e instrumentos utilizados, políticas defi nidas e os programas de actuação é genericamente conhecido por sistema de

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controlo de cumprimento; nele se integra também a denominada função de cumprimento, fórmula que exprime, prevalecentemente, o trabalho desenvolvido e a estrutura montada para atingir os objectivos em vista.

Estas expressões são, no entanto, usadas, também, frequentemente, em sinonímia, privilegiando o sentido mais amplo. E a própria lei o faz, como se pode ver na comparação entre os já citados artºs 305º-A do Código dos Valores Mobiliários4 e o artº 17º do Aviso do Banco de Portugal nº 5/2008, de 1 de Julho5.

A questão não tem, todavia, relevância prática signifi cativa, manifestando, sobretudo, difi culdades semânticas, comuns em áreas do conhecimento e da literatura ainda muito jovens e pouco solidifi cadas. Cumpre, em todo o caso, estar atento, para poder avaliar ajustadamente aquilo de que realmente se fala em cada situação concreta.

De qualquer modo, o sistema de controlo de cumprimento e a função que o exercita referem-se à prevenção, seguimento e mitigação do correspondente risco, traduzido na possibilidade de afectação da situação patrimonial das entidades empresariais, na decorrência de acções ou omissões violadoras de normativos aplicáveis e materializada, designadamente, «em sanções de carácter legal, na limitação de oportunidades de negócio, na redução do potencial de expansão ou na impossibilidade de exigir o cumprimento de obrigações contratuais»6.

c) Tendências

7. Apesar da fortaleza dos fundamentos que o suportam e da natureza dos motivos que o orientam, o sistema de controlo de cumprimento está longe de constituir um imperativo legal

4 Doravante designado no texto por CVM. 5 Doravante designado no texto por Aviso nº 5/2008. 6 Ex vi da defi nição legal de risco de cumprimento acolhida pela al. f) do artº

11º do Aviso nº 5/2008.

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universal. Quer isto dizer que, no estádio actual da evolução, ele não se apresenta como uma exigência dirigida a todas as entidades que actuam no circuito económico, como elemento indispensável do respectivo modelo de governo corporativo.

Pelo contrário, como se constatará na exposição subsequente, é muito limitado o leque de empresas abrangidas, fundamentalmente situadas no quadro do sistema fi nanceiro.

Isto não signifi ca, é claro, que qualquer empresa não sujeita esteja impedida de, motu proprio, criar e desenvolver mecanismos típicos do sistema ou da função de cumprimento. Se o fi zer, age, contudo, no domínio pleno da sua liberdade.

Tem, é certo, a ganhar, e a mais de um título.Desde logo, porque a reivindicação de as empresas agirem em

consonância com o complexo das suas obrigações normativas vai sendo, crescentemente, uma reclamação social, tanto quanto um inexorável requerimento legal.

Daí que a avaliação que o conjunto dos diversos interlocutores das empresas dela faz, com destaque para os seus próprios clientes e fornecedores, não prescinda de levar em conta o mérito que demonstra neste apartado.

Está em causa, sem dúvida, o juízo sobre a honorabilidade no que respeita à satisfação de vínculos contratuais e, logo, saber a probabilidade de êxito nos negócios que se estabelecerem. Mas, não menos do que isso, está, também, v.g., a confi abilidade nos produtos e serviços oferecidos, o rigor das contas, a credibilidade dos processos de preparação e dos conteúdos da informação divulgada, a capacidade de atrair fi nanciamentos e investimentos necessários à prossecução do objecto empresarial...

O cumprimento é, pois, um factor de prestígio e de reputação, de que nenhum agente está, verdadeiramente, em condições de prescindir, independentemente da sua situação concreta face aos mercados e da posição com que neles se apresenta.

A opção pela introdução voluntária de modelos internos de controlo de cumprimento comporta igualmente um outro ganho, muito evidente, consubstanciado na prevenção do sofrimento

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de perdas económico-fi nanceiras, nomeadamente derivadas da aplicação de sanções e de limitações ao desenvolvimento do negócio, o que é, como já dito, em última análise, o objectivo mais directo e imediato que o caracteriza.

Além disso, a criação e promoção de uma cultura dirigida a assegurar a natural satisfação dos requisitos e obrigações estabelecidos pela ordem jurídica tem também a virtude de antecipar a preparação das entidades empresariais para acomodar, de forma efi ciente e efi caz, futuros imperativos que venham a colocar se a este nível, com os benefícios daí decorrentes.

8. Temos, então, em síntese, um panorama que se enuncia nos seguintes termos: há um número restrito de situações em que a disponibilização de um sistema interno de controlo de cumprimento no seio das empresas dá resposta a uma previsão legal nesse sentido; fora desses casos, há uma liberdade absoluta de agir, cabendo às entidades empresariais, sem quaisquer restrições ou limitações, decidir sobre o que pretendem.

No primeiro grupo ainda cabe distinguir segundo a intervenção legal é cominatória – como normalmente sucede – ou reveste carácter recomendatório, mesmo quando em termos de acolher o princípio de cumprir ou explicar (comply or explain), cada vez mais utilizado em sede de recomendações normativas7.

7 Especialmente curiosa, neste domínio, é a situação emergente do Aviso do Banco de Portugal nº 3/2006, de 9 de Maio, entretanto revogado pelo Aviso nº 5/2008.

Dirigido às instituições de crédito e sociedades fi nanceiras, determinou que dispusessem de um sistema de controlo interno em conformidade com os requisitos mínimos fi xados no próprio Aviso (nº 1).

Entre os múltiplos objectivos apontados, incluíu-se o controlo dos riscos «legal e de compliance» (nº 6, 2), sem, contudo, determinar, pelo menos de uma forma directa e impositiva, a institucionalização de uma estrutura ou função de cumprimento.

Sem embargo, requerendo a apresentação de um relatório anual sobre controlo interno a apresentar pela administração das instituições (nº 11), igualmente estatuíu que nele fosse indicada a adesão às recomendações do Comité de Supervisão

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Face a este cenário, justifi car-se-á um par de observações sobre as expectativas de evolução, o que poderá ser também um contributo para uma melhor sindicação da importância que o tema assume.

A robustez dos fundamentos e motivos que ancoram a implantação de sistemas internos de controlo de cumprimento e a multiplicidade de interesses que serve são de molde a excluir a ideia de que se tratará, simplesmente, de uma questão de moda, a qual, como outras, se desvanecerá com o passar do tempo.

No mesmo sentido se orienta a agenda de vários organismos e instâncias – internacionais e nacionais –, espelhada em sucessivas declarações, propostas e documentos que, quando menos fortemente impulsionados pelas circunstâncias contemporâneas, apontam, inequívoca e inexoravelmente, para o reforço e solidifi cação deste instrumento, no quadro mais geral do controlo interno.

A primeira conclusão a extrair, com segurança, é a de que, relativamente ao universo de entidades já actualmente destinatárias dos imperativos legais nesta matéria, a experiência veio para fi car e continuará um trajecto de desenvolvimento e densifi cação.

Mas é, realmente, de crer que o movimento não se bastará por aqui.

O certo é que a natureza de algumas actividades, a relevância pública delas, a sujeição a regulação ou supervisão por autoridades próprias, bem como o facto de haver recurso ao investimento do público, através dos diversos instrumentos disponíveis, e com especial acuidade quando negociáveis em mercados organizados, são, entre outros, factores que impõem redobrados cuidados quanto

Bancária de Basileia (nº 14 6), de acordo com o anexo ao próprio Aviso, e logo, por isso, às relativas a compliance, contidas no documento «Compliance and the compliance function in banks», emitido em Abril de 2006 (nº 1 do Anexo).

Finalmente, defi nidos os mapas de risco a preencher e agregar ao relatório anual, o nº 2 do mesmo Anexo especifi camente previa que «em caso de não adesão, total ou parcial, a algumas das recomendações, devem ser explicitados os respectivos motivos».

Adiante, no texto, vai feita uma referência contextualizada ao diploma.

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ao regular funcionamento das entidades empresariais envolvidas e induzem a vantagem de as submeter a um regime agravado de controlo de cumprimento.

Sem especifi camente o referirem, há já sinais evidentes na lei positiva de que para aí se caminha.

Sem cuidar de ser exaustivo, vale a pena citar, por serem sintomáticos, o actual artº 70º, nº 2, do Código das Sociedades Comerciais, conjugado com o artº 420º, nº 5, do mesmo diploma8, e o Regulamento da CMVM nº 1/2010, de 1 de Fevereiro.

O citado artº 70º, nº 2, consagrou o dever, extensivo a todas as sociedades comerciais9, de relatarem a estrutura e as práticas de governo que adoptam, sobrevindo o encargo, para as que sejam emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado, de o relatório incluir os elementos referidos no artº 254º-A do CVM, segundo o que se extrai do indicado artº 420º, nº 5.

Ora, precisamente entre as especifi cações deste último preceito, estão os sistemas de controlo interno e de risco de gestão implementados na sociedade [nº 1, al. m)].

Em plena consonância, neste ponto, está o Regulamento nº 1/2010 da CMVM que, conquanto exclusivamente dirigido às sociedades emitentes de acções admitidas à negociação em mercado regulamentado, lhes impõe a adopção de um código de governo e determina que o respectivo relatório sobre a estrutura e práticas de governo inclua os elementos e obedeça ao modelo constante do Anexo I (ex vi dos artºs 1º e 2º, nº 1), no qual, por sua vez, se estatui a descrição dos sistemas de controlo interno e de gestão de risco implementados na sociedade (ex vi do Capítulo II, Secção I, ponto III 5).

É verdade que em nenhum destes dispositivos se contém uma cominação directa para que as sociedades destinatárias estabeleçam

8 Na redacção do Dec.-Lei nº 185/2009, de 12 de Agosto. 9 E civis sob forma comercial, atento o artº 1º, nº 4, do mesmo Código.

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e estruturem uma função de cumprimento. Mas sendo ela uma das componentes típicas do sistema geral de controlo interno, não é difícil vislumbrar aqui um convite implícito a que tal aconteça.

Ora, se levarmos em conta todo o caminho percorrido neste âmbito, natural é que, aquilo que agora é somente um estímulo a que suceda, venha a transformar-se, a um prazo não muito longo, numa verdadeira imposição vinculante.

Porque as razões são substancialmente idênticas, não parece excessivamente ousado antecipar que esta tendência virá, por igual, a atingir todas as entidades qualifi cadas como de interesse público pelo Dec.-Lei nº 225/2008, de 20 de Novembro (cfr. artº 2º), sendo, aliás, certo que a justifi cação para as submeter a um regime qualifi cado de fi scalização facilmente suportará também a obrigatoriedade de institucionalização de uma função de cumprimento10.

E o mesmo se poderá dizer quanto a todas as entidades que, podendo embora não cumprir algum dos critérios invocados, estejam, todavia, sujeitas a supervisão de algum organismo público, precisamente em razão da importância e das implicações públicas da actividade prosseguida.

A mais disso, e apesar de já em situação distinta, uma vez que a efectiva adopção de um sistema de controlo de cumprimento por parte das entidades empresariais tende a ser um factor de prestígio e de reputação, não custa admitir que, sobretudo as mais expostas ao escrutínio social venham, progressivamente, a enveredar voluntariamente por essa via, à semelhança, de resto, com o que tem sido visto suceder em outros domínios com semelhantes tipos de impactos, como será, v.g., o caso da responsabilidade social.

A questão do controlo de cumprimento e dos meios que o materializam não está, pois, somente, na ordem do dia; pode, verdadeiramente, considerar-se em expansão.

10 Vd. tb. Lei nº 28/2009, de 19 de Junho.

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d) Indicação de sequência

9. Sem embargo, o desenvolvimento subsequente não pode deixar de confi nar-se ao arquétipo construído pela lei vigente.

Por um lado, é exclusivamente segundo ele que têm de proceder as entidades a quem se dirige.

Cumpre, assim, conhecê-lo e analisá-lo, procurando surpreender os problemas mais delicados que suscite e, quanto possível, sindicar as soluções que oferece.

Mas, além disso, é claro, quando a institucionalização de mecanismos internos de controlo de cumprimento traduz, simplesmente, uma decisão livremente tomada nesse sentido, cada empresa que assim procede é também completamente livre de arquitecturar e executar o modelo que entenda, segundo o que julgue apropriado às suas necessidades, sem qualquer limitação ou condicionante, o que, por regra, também não importa quaisquer efeitos que se projectem na relação com nenhum terceiro.

Compreende-se, assim, que a primeira prioridade seja observar o enquadramento normativo, tal como existe.

Uma vez que, seja qual for a perspectiva com que se encare o tema, está sempre em causa o risco de incumprimento, justifi ca se, por isso, dedicar-lhe um espaço próprio, após o que a atenção se concentrará no sistema de controlo e função de cumprimento e respectiva orgânica, nos seus aspectos mais relevantes.

Far-se-á ainda uma abordagem geral ao regime sancionatório, para concluir com uma síntese fi nal.

II – ENQUADRAMENTO NORMATIVO

a) Fontes

10. No Direito positivo português actual, o sistema de controlo do cumprimento é previsto e disciplinado essencialmente em três diplomas a saber: o Código de Valores Mobiliários, o Aviso do Banco de Portugal (BP) nº 5/2008, de 1 de Julho, e a Norma

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Regulamentar do Instituto de Seguros de Portugal (ISP) nº 8/2009 R, de 2 de Julho.

Quanto ao primeiro, o seu artº 305º-A, precisamente sob a epígrafe sistema de controlo de cumprimento, comina aos intermediários fi nanceiros a adopção de «politicas e procedimentos adequados e detectar qualquer risco de incumprimento dos deveres a que se encontra sujeito» (nº 1), para o que devem montar um sistema que, no mínimo, satisfaça as fi nalidades expostas no seu nº 211.

Entretanto, a delimitação do universo de intermediários fi nanceiros é feita, prioritariamente, à custa da enumeração das categorias de entidades a quem é conferida essa qualifi cação, o que, não sendo um expediente raro na lei, tem a vantagem de permitir uma maior segurança, especialmente recomendável quando, como aqui sucede, está em causa a atribuição de um estatuto particularmente complexo.

Mas não se excluíu totalmente a utilização de um critério residual que atende à actividade exercida12.

O Aviso do Banco de Portugal, por sua vez, tem por destinatárias as instituições de crédito, as sociedades fi nanceiras e as sucursais,

11 Complementarmente, há ainda que ter presente o Regulamento da CMVM nº 2/2007, de 5 de Novembro, cujo artº 6º, na redacção que lhe foi dada pelo Regulamento nº 3/2008, de 3 de Julho, estabelece requisitos de exequibilidade do nº 4 do citado artº 305º-A e permite a possibilidade de estabelecimento de serviços comuns para o exercício da função de cumprimento em intermediários fi nanceiros pertencentes a um mesmo grupo.Teve-se também em vista, segundo o que expressamente se afi rma no preâmbulo do Regulamento nº 3/2008, estabelecer uma convergência entre a CMVM e o Banco de Portugal em matérias relativas ao controlo interno dos intermediários fi nanceiros, o que substancialmente explica a alteração do texto do artº 11º e a introdução dos artºs 11ºA a 11ºC, exactamente dedicados ao relatório que àqueles é exigível em base anual, relativo à avaliação da efi cácia do sistema de controlo de cumprimento, serviço de gestão de riscos e de auditoria interna. Estes preceitos já não respeitam, contudo, à regulação, em sentido próprio, do sistema de controlo de cumprimento, e sim à sua sindicação.

12 Vd. artº 293º do CVM. Especifi camente quanto a este último ponto releva o seu nº 2, al. g).

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situadas em Portugal, de uma e outras sediadas em países terceiros (ex vi do artº 1, nº 1), a todas impondo o estabelecimento e manutenção de uma função de «compliance» para controlar o cumprimento das obrigações legais e dos deveres a que se encontram sujeitas (artº 17º, nº 1).

Aqui, embora com o apoio de enumeração enunciativa adiantada pela lei, a delimitação das fi guras das instituições de crédito e das sociedades fi nanceiras é feita privilegiadamente com recurso a um conceito geral que, em ambos os casos, atende à actividade desenvolvida13.

Finalmente, a Norma Regulamentar do ISP, dirigida às entidades gestoras de fundos de pensões, como tal autorizadas (artº 2º, nº 1), estatui- -lhes o dever de estabelecer e manter na sua estrutura organizacional uma função de «compliance» adequada à dimensão, natureza e complexidade dos riscos inerentes à respectiva actividade (artº 20º, nº 1).

De acordo com o artº 32º, nº 1, do Dec.-Lei nº 12/2006, de 20 de Janeiro, as entidades gestoras de fundos de pensões podem ser sociedades constituídas exclusivamente para esse fi m – designadas pelo próprio preceito legal como sociedades gestoras – e sociedades seguradoras que explorem o ramo «Vida» e tenham estabelecimento em Portugal. Umas e outras estão, portanto, abrangidas, embora a aplicação da Norma a estas últimas se faça com a ressalva do nº 2 do artº 1º14.

13 Cfr. os artºs 2º, 3º, 5º e 6º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras – doravante designado por RGICSF –, originariamente aprovado pelo Dec.-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro, mas já, entretanto, sucessivamente alterado, por mais vezes do que os anos que tem de vida!À data em que escrevo estas linhas a última republicação consta do anexo I do Dec.-Lei nº 31-A/2012, de 10 de Fevereiro.

14 Mas a questão não releva visto que, estranhamente embora, não há, na regulamentação específi ca das seguradoras nenhuma previsão quanto a sistemas de controlo de cumprimento, apesar de estarem defi nidos requisitos de governação que contemplam a instituição de um sistema de controlo interno (cfr. Norma Regulamentar nº 14/2005-R, de 29 de Novembro, complementada em uma Carta Circular do ISP, nº 7/2009, emitida em 23 de Abril daquele ano).

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11. Conquanto distintos em pontos de detalhe, os três diplomas comungam, todavia, substancialmente, no que é fundamental.

A benefício do que melhor se revelará na análise posterior, pode, no entanto, desde já, assinalar-se os seguintes aspectos estruturais.

Em todos os casos o sistema de controlo de cumprimento e a função que o concretiza são perspectivados como um instrumento essencial de prevenção, controlo e mitigação do risco que emerge da desconformidade de actuação das entidades abrangidas com normativos de qualquer tipologia, prescrições de autoridades, regras de conduta e outros vínculos que elas estejam obrigadas a satisfazer.

De mesmo modo, são também idênticos os requisitos gerais fi xados para a estruturação e funcionamento do sistema dirigido à consecução do desiderato que o fundamenta. Neste sentido, a concepção e arquitectura legais do modelo têm, por assim dizer, uma base uniforme.

Sem embargo, acolhidas as exigências legais nucleares, é sempre deixado à disponibilidade de cada entidade sujeita a faculdade de livremente se organizar, do modo que melhor entender adequado à sua natureza, dimensão, objectivos e complexidade das respectivas actividades, afectando e dispondo os meios para o efeito; da mesma sorte que remanesce um largo espectro de autonomia no que respeita ao desempenho concreto e efectivo da função.

Ainda assim, o sistema e a função de cumprimento constituem se como imperativos de organização e governo internos das entidades, o que se justifi ca pelo facto de serem considerados como parte integrante e indispensável do sistema matricial geral de controlo interno que se lhes reivindica.

12. Este estado de coisas replica a perspectiva mais moderna do controlo de cumprimento, traçado e assumido nas fontes internacionais que inspiram o normativo pátrio.

Um documento nuclear neste domínio é o relatório do Comité de Supervisão Bancária de Basileia15, de Abril de 2005, sob o título

15 Doravante designado por Comité de Basileia ou simplesmente pelas iniciais CEBS.

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Compliance and The Compliance function in banks16. Recolhendo embora contributos e refl exões plasmadas em distintos outros textos anteriores que, aliás, referencia no seu próprio17, o Comité procede ali, pela primeira vez, de forma sistemática, ao delineamento da função de cumprimento como um instrumento enquadrado no sistema geral de gestão de riscos, dirigido, precisamente, a precaver e, sendo o caso, temperar e superar as consequências de condutas – activas ou omissivas – não consonantes com a ordem jurídica, normas de conduta ou padrões de procedimento ético a que as instituições devem obediência.

Assumindo um carácter marcadamente explicativo e didáctico, a curta introdução do relatório fi xa, contudo, as bases da dogmática e da sistemática do controlo de cumprimento tal como é modelado pelo Comité, as quais se desenvolvem depois na enunciação de dez princípios fundamentais, com abundantes justifi cações e concretizações.

Em síntese, assume-se que a cultura de cumprimento e a preocupação por o assegurar devem ser transversais a toda a instituição e envolver activamente todo o universo de colaboradores. Sem embargo, reconhece-se o papel determinante dos titulares dos órgãos de administração e dos responsáveis máximos das cadeias hierárquicas das empresas neste domínio, dando confessado acolhimento à ideia de que o exemplo vem de cima, especialmente sentido nas organizações empresariais, segundo revela a comum experiência da vida.

Neste contexto, comete-se à administração a incumbência de defi nir e formalizar uma política de cumprimento, de revisão periódica – para garantir a permanente adequação às necessidades existentes em cada momento e objectivos visados –, que comporte a criação e institucionalização de uma função interna especialmente encarregada de a promover, incentivar, acompanhar e controlar.

16 Pode ser encontrado no seguinte endereço electrónico: http://www.bis.org 17 Nº 12 da Introdução.

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Paralelamente, compromete-se toda a equipa de direcção na comunicação da política, verifi cação de que é praticada, gestão do risco e reporte de incidências.

Quanto à função, requer-se a sua independência, com referência aos parâmetros matriciais em que deve materializar-se, e aponta-se as linhas mestras do seu estatuto, competências e informação de ocorrências.

Não obstante, tendo presentes as diferenças entre as instituições bancárias – de dimensão, natureza, objectivos … –18 e o direito de cada uma a organizar-se segundo os seus próprios critérios e opções, expressamente se consigna que a disciplina concreta da função de cumprimento, respeitados os requisitos mínimos a que deve obedecer em consonância com os postulados enunciados, permaneça na livre discricionariedade das entidades.

13. Também em Abril de 2005 o OICV – IOSCO19 lançou um processo de consulta pública sobre a função de cumprimento nos intermediários fi nanceiros, na sequência do qual, em Março de 2006, veio igualmente a emitir um relatório fi nal sobre a matéria 20.

Sem prejuízo de uma ou outra particularidade, o relatório conclui em sentido substancialmente idêntico ao do Comité de Basileia, acolhendo sete tópicos desdobrados em onze princípios, que em larga medida se justapõem ou replicam os que naquele se enunciam.

A diferença mais signifi cativa reside na acentuação do papel das autoridades regulatórias nacionais, tanto no plano da motivação para que os intermediários fi nanceiros implementem efectivamente um sistema de controlo de cumprimento, como no da tomada de medidas compulsórias para que isso suceda e o sistema funcione adequadamente21.

18 Recorde-se que é a elas que o documento prioritariamente se dirige.19 Comité Técnico de Apoio à Comissão Europeia em matéria de mercados

de capitais. 20 «Compliance Function at Market Intermediaries – Final Report», disponível

em www.iosco.org21 Tópico 6.

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Ora, conquanto assistidas de carácter meramente recomendatório, atenta a natureza dos emitentes, o certo é que as orientações emergentes dos documentos citados foram prontamente acolhidas pela Directiva Europeia, 2006/73/CE, de 10 de Agosto de 2006, da Comissão22, relativa aos mercados de instrumentos fi nanceiros e organização das empresas de investimento.

No seu artº 6º, nº 2, cominou-se aos Estados Membros a obrigação de legislar em termos de impor às empresas de investimentos a criação e manutenção de uma função de cumprimento permanente, cuja tecitura se ajusta ao modelo traçado em ambos os relatórios.

Este facto é, de resto, particularmente sintomático. Com efeito, sendo a Directiva em causa um diploma de

aplicação23 24, o certo é que, no ponto aqui em causa, a especifi cação dos requisitos de organização das empresas de investimento, cujo quadro geral fora estabelecido pela Directiva principal25, envolveu a consagração de um instrumento que esta não contemplava especifi camente26, seguramente em razão dos progressos entretanto verifi cados quanto à concepção e caracterização típicas do sistema

22 Publicado no Jornal Ofi cial da União Europeia, de 2 de Setembro do mesmo ano.

23 Como se vê do seu próprio sumário e logo dos primeiros considerandos. 24 Uma Directiva de 2º nível, na terminologia e metodologia do denominado

sistema «Lamfalussy».Sobre ele, veja-se Paulo Câmara, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, Almedina, 2009, págs. 45 e segs..

25 Directiva 2004/39/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de Abril de 2004, publicada no Jornal Ofi cial do seguinte dia 30.

26 Só de forma fragmentária e parcelar é que a Directiva 2004/39/CE aludia à necessidade de mecanismos e procedimentos para o auto-controlo regular do cumprimento, sem, todavia, mesmo aí, fi xar quaisquer regras, princípios ou orientações – cfr., v.g., artº 26º, nº 1.Previa-se, isso sim, que «as empresas de investimento devem dispor de uma boa organização administrativa e contabilística, mecanismos de controlo interno, procedimentos efi cazes para a avaliação de riscos, bem como de um controlo efi caz e medidas de segurança a nível dos seus sistemas de processamento de informações» ex vi do artº 13º, nº 5, 2º § – fundamento, todavia, bastante, de legitimação do artº 6º, nº 2, da Directiva 2006/73/CE.

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de controlo de cumprimento, precisamente documentadas nos relatórios do Comité de Basileia e do IOSCO.

Os diplomas europeus citados vieram a ser transpostos para o Direito interno através do Dec.-Lei nº 357-A/2007, de 31 de Outubro, que procedeu a modifi cação substancial do Código de Valores Mobiliários, introduzindo nele, naquilo que aqui interessa, o novo artº 305º-A, que segue, de muito perto, a Directiva 2006/73/CE.

14. Entretanto, logo em 15 de Junho de 2005, o Banco de Portugal, através da sua Instrução nº 20/2005, transmitiu um fortíssimo sinal do seu empenho em que as instituições de crédito e sociedades fi nanceiras se acomodassem aos princípios enunciados pelo Comité de Basileia.

Com efeito, depois de, no preâmbulo, ter ponderado que os sistemas e procedimentos de controlo interno deverão contemplar uma adequada gestão dos riscos de ordem reputacional, legal e, ainda do denominado risco de «compliance», e de considerar que o relatório de controlo interno já previsto na Instrução nº 72/96 deve conter informação sufi ciente para a avaliação da efi cácia dos sistemas de gestão de riscos das instituições, incluindo os riscos de taxa de juro, «compliance» e reputacional, o Banco de Portugal procedeu à alteração do nº 6 da dita Instrução nº 72/96, no sentido de o controlo desses mencionados riscos ser assumido expressamente como um dos objectivos fundamentais do sistema global de controlo interno.

Complementarmente, densifi cou essa preocupação, cominando especifi camente às instituições o dever de indicar a sua aderência às recomendações do Comité de Supervisão Bancária de Basileia relativas ao risco de «compliance», vertidas no Relatório de Abril de 2005 (ex vi do nº 2 da Instrução nº 20/2005, na parte em que alterou o ponto 6 do nº 10 da Instrução nº 72/96).

A expressão prática desta aderência consubstanciava-se no preenchimento do mapa relativo ao referido risco de «compliance», em conformidade com a estatuição do nº 1 da primeira folha do Anexo à Instrução nº 72/96, cuja redacção a Instrução nº 20/2005 igualmente ajustou nos termos do seu nº 3.

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Esta orientação do Regulador bancário foi consolidada menos de um ano depois com a publicação do Aviso nº 3/2006, de 9 de Maio.

O móbil, inequivocamente anunciado na exposição de motivos, foi o de proceder, de imediato, à integração, num único instrumento regulamentar das actuais disposições de Instrução nº 72/96, bem como dos procedimentos de controlo interno aplicáveis às actividades e funções centralizadas nos grupos ou desenvolvidas por fi liais no estrangeiro.

Naturalmente, em corolário da compilação e aprofundamento realizados, a Instrução foi revogada. Porém, naquilo que directamente respeitou à temática do sistema de controlo de cumprimento, as coisas mantiveram se inalteradas.

Por um lado, continuou a afi rmar-se como objectivo específi co de «todo o sistema de controlo interno» o controlo, entre outros, dos riscos legal e de compliance [nº 6 – a. 2)]. Por outro lado, ao defi nir o conteúdo mínimo do relatório anual de controlo interno a cargo do órgão de administração, incluiu-se a informação sobre os procedimentos relativos ao controlo do risco de compliance, relativamente ao qual igualmente permaneceu a exigência de as instituições indicarem a adesão às recomendações do Comité de Basileia, escrutinada pela resposta ao mesmo questionário repescado da Instrução nº 72/96 (ex vi do nº 6 da Secção I do nº 14 do Aviso).

Mas logo no preâmbulo se expressava a intenção de uma futura revisão mais profunda e abrangente da regulamentação sobre sistemas de controlo interno, que veio efectivamente a concretizar se com o Aviso nº 5/2008.

Estabelecendo, ele próprio, um cotejo com o diploma precedente, assume que é agora adoptada uma abordagem mais prescritiva – parágrafo 4º do preâmbulo –, conquanto as instituições se encontrassem já sujeitas à generalidade dos requisitos estabelecidos, uma vez que estes correspondem a recomendações do Comité de Supervisão Bancária de Basileia que integravam o Aviso nº 3/2006 e sobre as quais recaía uma obrigação de «comply

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or explain» – parágrafo 7º. Certo é que o novo regulamento promoveu uma sistematização dos princípios básicos que devem nortear a implementação de um sistema de controlo interno, seguindo os conceitos, reconhecidos e aceites a nível internacional, defi nidos no «Internal Control – Integrated Framework» publicado pelo Committee of Sponsoring Organizations of the Treadway Commission (COSO), as recomendações emitidas pelo Comité de Supervisão Bancária de Basileia através do «Framework for Internal Control Systems in Banking Organizations» e as orientações em matéria de «Internal Governance» divulgadas pelo Comité das Autoridades Europeias de Supervisão Bancária (CEBS) – parágrafo 3º.

Esta nova perspectiva conduziu a que se passasse a estatuir, directa e formalmente, com carácter defi nitivo e declaradamente impositivo, o dever de as instituições estabelecerem e manterem uma função de compliance, parte específi ca do seu sistema geral de controlo interno, realmente construído, nos seus pilares fundamentais, sobre os princípios do relatório do Comité de Basileia.

De resto, embora sob uma formulação distinta da precedente, o Aviso não deixou de apelar directamente às recomendações do Comité, inscrevendo as expressamente no âmbito dos chamados objectivos de «compliance», como se pode ver do artº 2º, al. c). Aí, precisamente, se conserva, entre os propósitos do sistema de controlo interno, garantir o respeito pelas disposições legais e regulamentares aplicáveis – qualifi cado como os ditos objectivos de «compliance» –, mas incluindo também as recomendações do Comité de Supervisão Bancária de Basileia.

Praticamente em simultâneo com o Aviso nº 5/2008 – 3 de Julho – a CMVM fez publicar o já atrás indicado Regulamento nº 3/2008, que ajustou o Regulamento nº 2/2007, precisamente em ordem a lograr uma convergência entre a Comissão e o Banco de Portugal em matérias de controlo interno – que constituíu um compromisso

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assumido pelo Conselho Nacional de Supervisores Financeiros27 –, considerada particularmente notória no que toca aos princípios de organização e ao modelo de controlo interno que as instituições devem adoptar pelo facto de o Aviso confl uir sobre o controlo interno para o sistema de organização interno gizado no artº 305º e seguintes do Código dos Valores Mobiliários procedente da Directiva dos Mercados de Instrumentos Financeiros28.

15. Todo o trajecto percorrido permite formar duas conclusões bastante sólidas. Uma é a de a abordagem do sistema de cumprimento, tal como se revela actualmente no Direito positivo, não só poder, como, realmente, dever ser feita de uma forma global. A outra é a de os relatórios do Comité de Basileia e do IOSCO, respectivamente de Abril de 2005 e Março de 2006, constituírem, sem dúvida, importantes instrumentos de apoio para a compreensão do regime nacional, arvorando-se mesmo como relevantes auxiliares interpretativos a que é legítimo recorrer para melhor encontrar o apropriado sentido dos nossos normativos, dentro dos comuns cânones da hermenêutica29.

Pode, aliás, acrescentar-se que, após 2006, as instâncias internacionais, cujo labor se projecta – pelo menos potencialmente – na nossa ordem interna, mantiveram incólumes as recomendações quanto à organização, por parte das instituições fi nanceiras, de sistemas internos de controlo de cumprimento e de uma função que os concretize.

Assim sucedeu, nomeadamente, com o documento emitido pela Autoridade Bancária Europeia (EBA), denominado «EBA Guidelines on Internal Governance» (GL44), datado de 27 de

27 Cfr. parágrafo primeiro do preâmbulo do Regulamento. 28 Ibidem. 29 Lembra-se que, além dos Princípios, os relatórios contêm signifi cativas

indicações quanto às razões que os suportam, as fi nalidades que prosseguem e a mecanismos em que devem ou podem materializar-se.

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Setembro de 201130; e com o Relatório da Autoridade Europeia de Mercados (ESMA), sob a epígrafe «Guidelines on Certain Aspects of the Mifi d Compliance Function Requirements – Final Report»31, de 6 de Julho de 2012.

Mas, sem prejuízo de evoluções que se manifestam sobretudo em aspectos de detalhe, a verdade é que se mantém íntegro o fi gurino emergente dos textos do Comité de Basileia e do IOSCO32.

Trata-se, de resto, de uma situação idêntica à que também se verifi ca em relação à produção nacional, onde, a mais da já indicada Norma do ISP nº 8/2009-R – que, fundamentalmente, apropriou para o âmbito das sociedades gestoras de fundos de pensões o modelo de sistema de controlo de cumprimento já defi nido para a generalidade das entidades fi nanceiras –, somente tiveram lugar intervenções que, de algum modo, sublinham ou reforçam as suas características, sem, todavia, abalarem ou, sequer, beliscarem a estrutura e a visão em que assenta33.

b) Âmbito de Aplicação

16. Temos então delimitado o âmbito de aplicação dos normativos internos que reivindicam a criação e manutenção de

30 Disponível no respectivo site, www.eba.europa.eu31 Disponível em www.esma.eu32 Cfr., v.g., o ponto 28.

Porventura o aspecto onde se detecta uma nova precisão é o que respeita ao dever de a função de cumprimento verifi car que os novos produtos e os novos procedimentos da instituição se ajustam ao enquadramento normativo vigente, legal e regulatório, bem como às exigências estabelecidas pelas autoridades de supervisão, como se alcança do nº 6 do citado ponto 28 (neste sentido vai também a opinion emitida pela ESMA já em 7 de Fevereiro de 2014, sob a epígrafe Mifi d pratices for fi rms selling complex products).

33 A este nível, vale a pena referenciar o Aviso do BP nº 10/2011, publicado em 9 de Janeiro de 2012, cujo artº 13º, dando expressão à preocupação de que a remuneração do responsável da função de cumprimento – a par dos das restantes funções de controlo, auditoria e riscos – não afecte a sua independência estabelece limites quanto aos critérios a adoptar na respectiva fi xação.

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sistemas de controlo de cumprimento. São, por agora, abrangidas as instituições de crédito, as sociedades fi nanceiras, os outros intermediários fi nanceiros que não revestem nenhuma daquelas duas qualidades34 e as sociedades que gerem fundos de pensões.

Mas justifi ca se um par de breves considerações complementares para melhor compreensão do alcance do que, realmente, está em causa.

Com efeito, sendo as suas destinatárias, é às entidades identifi cadas – a todas e a cada uma delas – que incumbe a obrigação de acatar a injunção legal, o que se perfaz com a institucionalização e manutenção, em permanência, da função de cumprimento, obedecidos que sejam os requisitos mínimos fi xados.

Resultam daqui três corolários fundamentais, a reter.Um é o de que a função de cumprimento é uma função interna de

cada sociedade, que integra o seu quadro próprio e geral de controlo.Por assim ser, cada entidade é livre de dispor e disciplinar a

função segundo o que estime mais ajustado aos seus objectivos, conquanto o resultado dê cabal satisfação às pretensões legais.

Um terceiro corolário, alinhado com os precedentes, é o de, salvo quando sobrevenha algum imperativo específi co a consagrar solução pontualmente diferente, o responsável da função e os seus colaboradores desempenham uma missão que compete institucionalmente à entidade que integram e respondem exclusivamente na esfera interna perante os órgãos competentes da sociedade. Não estão, por conseguinte, directamente vinculados a quaisquer entidades externas, mesmo aquelas a quem incumba fi scalizar a implementação do sistema de controlo de cumprimento e o seu correcto funcionamento35.

34 Do cotejo do artº 293º do CVM com os artºs 3º e 6º do RGICSF resulta que, em largo espectro, a categoria de intermediário corresponde ou coincide com a de instituição de crédito ou sociedade fi nanceira. Mas não é necessariamente assim, como logo o comprova a al. g) do nº 2 do dito artº 293º.Cfr. tb. os artºs 199º-A a 199º-C do RGICSF.

35 O que não exclui, é claro, que o responsável seja o interlocutor privilegiado das autoridades no seu relacionamento com as entidades e destas com aquela em matéria de cumprimento.Esta matéria será, contudo, objecto de maior desenvolvimento adiante.

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III – O RISCO DE INCUMPRIMENTO

a) Caracterização

17. Em todos os textos pertinentes sobre a matéria, é inequivocamente assumido que o sistema de controlo de cumprimento e a função que, de uma forma mais sensível e metódica, o exprime e materializa, enquanto parte integrante do sistema geral de controlo interno, tem por fi nalidade específi ca a prevenção e gestão do risco de incumprimento dos deveres que, com diversas origens, impendem sobre as instituições.

A este propósito, podemos ter como particularmente sugestiva e sintética a estatuição do nº 6 do artº 11º do Aviso 5/2008, segundo a qual o sistema de gestão de riscos deve basear-se em processos de identifi cação, avaliação, acompanhamento e controlo de riscos36. E é neste contexto que a função de cumprimento tem por missão geral controlar o cumprimento das obrigações legais e dos deveres a que as entidades estão sujeitas – artº 17º, nº 1, proémio, do Aviso nº 5/2008 – promovendo o acompanhamento e avaliação regular da adequação e efi cácia das medidas e procedimentos adoptados para detectar qualquer risco de incumprimento – artº 17º, nº 1, al. a), do Aviso, artº 290º, nº 5, al. a), da Norma Regulamentar do ISP nº 8/2009-R, e artº 305º-A, nº 2, al. a), do CVM –, aplicando medidas para o minimizar ou corrigir, evitando ocorrências futuras – artº 305º A, nº 1, do CVM.

O risco de incumprimento é, pois, um vector nuclear e matricial a que importa atender.

A primeira tarefa passa por procurar caracterizá-lo. Não temos, hoje, especiais difi culdades no tema, uma vez que se pode contar com o apoio expresso da ordem jurídica positiva.

36 A Norma Regulamentar do ISP nº 8/2009-R vai no mesmo sentido, sendo até um pouco mais abrangente na descrição do objectivo da gestão global de riscos, que, para ela, consiste na identifi cação, avaliação, mitigação, monitorização e controlo de todos os riscos materiais a que a entidade gestora e os fundos de pensões por si geridos se encontram expostos, tanto a nível interno como externo – ex vi do artº 8º, nº 2.

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Com efeito, nos termos expressos do artº 11º, nº 4 do Aviso nº 5/2008, entende-se por risco de «compliance» a probabilidade de ocorrência de impactos negativos nos resultados ou no capital, decorrentes de violação ou da não conformidade relativamente a leis, regulamentos, determinações específi cas, contratos, regras de conduta e de relacionamento com os clientes, práticas instituídas ou princípios éticos, que se materializem em sanções de carácter legal, na limitação das oportunidades de negócio, na redução do potencial de expansão ou na impossibilidade de exigir o cumprimento de obrigações contratuais.

Esta defi nição não é replicada, nem tem paralelo, no CVM nem na Norma Regulamentar do ISP, que se limitam a referenciar o risco de incumprimento como objecto da acção da função de cumprimento, sem, contudo, avançarem, concretamente, na caracterização do respectivo conteúdo. Mas é de crer que ela deva ter se como implicitamente aceite por aqueles diplomas, até porque, como atrás se viu, existe uma convergência em matérias relativas ao controlo interno que traduz um compromisso assumido no quadro do Conselho Nacional de Supervisores Financeiros37 e que é particularmente notória no que toca aos princípios de organização e ao modelo de controlo interno que as instituições devem adoptar38.

De todo o modo, embora substancialmente em linha com o signifi cado atribuído à expressão pelo Comité de Basileia39, não coincide, no entanto, com ele em pontos que merecem destaque.

Com efeito, para o Comité o risco de «compliance» comporta, em si mesmo, o perigo de sanções legais ou regulatórias, ao lado de perdas fi nanceiras com impacto material – «material fi nancial loss» – ou perdas de reputação.

Distintamente, como se vê, a perda de reputação não é relevada na noção do Aviso nº 5/2008, que igualmente considera as sanções sofridas não propriamente como a materialização do risco mas, fundamentalmente, como a causa dele.

37 Que inclui o Banco de Portugal, a CMVM e o ISP. 38 Preâmbulo do Regulamento da CMVM nº 3/2008, cit. 39 Compliance and compliance function in Banks, cit., nº 3 da Introdução.

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O primeiro ponto é facilmente explicável pelo facto de o risco reputacional – e bem! – ter sido autonomizado do risco de incumprimento, mesmo se, como realmente é razoável que seja, a função de cumprimento deva ter quanto a ele um papel signifi cativo.

O segundo ponto justifi ca alguma maior atenção, visto que a defi nição legal é algo traiçoeira.

Na verdade, à primeira vista, e entendida à letra, pareceria que o risco de incumprimento se reconduz e restringe à probabilidade de eclosão de impactos negativos nos resultados ou no capital das instituições, o que envolveria excluir o risco quando haja violação de obrigações a que elas estão sujeitas sem, contudo, terem dado origem a quaisquer sancionamentos ou, pelo menos, a sancionamentos sem projecções relevantes sobre a situação económico fi nanceira da entidade infractora.

Mas há boas razões para não pensar assim.Já se viu que entre os objectivos do controlo interno se conta a

respeito pelas disposições legais e regulamentares aplicáveis, com a extensão acolhida no artº 2, al. c), do Aviso – e que aí se designa por objectivos de «compliance» – o que, sem necessidade de outros desenvolvimentos, explica que a função de cumprimento seja especialmente incumbida da tarefa de controlar o cumprimento das obrigações legais e dos deveres a que as instituições se encontram sujeitas – artº 17º, nº 1, proémio –, de modo a proteger a reputação da instituição e a evitar que esta seja alvo de sanções – de novo artº 2º, al. c), in fi ne.

Com esta abrangência, o procedimento das entidades em conformidade com as obrigações a que se encontram vinculadas no exercício da respectiva actividade, constituindo um bem em si mesmo – na medida em que realiza, na plenitude, as aspirações e a vontade da ordem jurídica – é igualmente um factor basilar do regular, razoável e honesto funcionamento do mercado – logo também mais confi ável – e da protecção dos investidores40.

Neste sentido, agir em consonância com o Direito não é sequer somente penhor da prossecução de interesses individuais de cada

40 Para usar as expressões e refl exões do Relatório do IOSCO – 2º § da Introdução.

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entidade, mas envolve a tutela de terceiros – clientes, accionistas, investidores, colaboradores … – e a satisfação do próprio interesse público.

Daí que, a vários títulos, se imponha providenciar para que o bem do cumprimento se possa atingir e concretizar na pluralidade das circunstâncias em que a actividade se desenvolve. Realmente, de cada vez que há uma fractura neste propósito, nasce necessariamente o perigo de se produzirem consequências desfavoráveis para a instituição infractora.

Sucede, é claro, que a tipologia, a dimensão, a natureza delas são susceptíveis de variar muitíssimo; como bastante diferentes podem ser também os modos e os processos por que se produzem, e até o tempo em que se produzem. Por isso, é apodíctico que os impactos dos incumprimentos na instituição incumpridora estão longe de ser sempre os mesmos, como distintas são ainda as possibilidades de os mitigar e superar.

Ora, o que se passa é que o Banco de Portugal, preocupado em que as instituições sejam capazes de um desempenho efi ciente e rentável da actividade no médio e longo prazos, que assegure a utilização efi caz dos activos e recursos, a continuidade do negócio e a própria sobrevivência – artº 2º, al. a), do Aviso – acabou por, em sede de esclarecimento do que é o risco de cumprimento, acentuar sobremaneira as consequências da desconformidade quando elas se projectam sobre os resultados ou capital, sendo, obviamente, nesse plano que mais se densifi ca o imperativo da respectiva gestão41 42.

Na formulação do Aviso, a conformação do risco de «compliance» envolve três momentos ou vertentes distintas e

41 Em qualquer das suas manifestações principais: prevenção, seguimento, mitigação e superação.

42 Repare-se que o Aviso procedeu da mesma forma com relação a todos e cada um dos riscos que considerou e caracterizou nas dez alíneas do nº 4 do artº 11º: a pedra de toque é sempre – e, aparentemente, só! – a probabilidade de ocorrência de impactos negativos nos resultados ou no capital por motivo da verifi cação, em cada caso, do facto realmente caracterizador!

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complementares: a causa ou origem, que se reconduz sempre ao desajustamento da realidade da instituição face aos deveres que a oneram; a materialização do perigo de desconformidade operada pela produção das consequências desfavoráveis, de diverso tipo, que suporta em razão dela; a determinação e avaliação dos impactos que elas acarretam no plano da situação económico-fi nanceira.

Por assim ser, reconhecendo que a corporização da desconformidade se exprime, afi nal de contas, em sanções de carácter legal, na limitação das oportunidades de negócio, na redução do potencial de expansão ou na impossibilidade de exigir o cumprimento de obrigações contratuais – ou noutras consequências ainda, poder-se-á, seguramente, acrescentar43 –, o Aviso acaba por assumir, explicitamente, que é a probabilidade de isso acontecer que, realmente, caracteriza o risco de incumprimento, revestindo embora, sem dúvida, particular gravidade, os casos em que tal pode prejudicar os resultados ou, o que é pior, o capital.

É, aliás, tendo em conta este sentido mais abrangente que se entende a cominação às instituições da obrigação de adoptarem medidas e procedimentos apropriados para a detecção de qualquer risco de incumprimento e a incumbência, à respectiva função, para avaliar regularmente a adequação das providências tomadas [artº 17º, nº 1, al. a), do Aviso, artº 305º-A, nº 2, al. a), do CVM, e artº 20º, nº 5, al. a), da Norma Regulamentar nº 8/2009-R].

É este também o sentido que melhor se ajusta aos documentos que mais directa e imediatamente inspiraram os normativos lusos e que, demonstradamente, constituem um sólido suporte à sua interpretação.

b) Impactos

18. Temos, pois, que as situações de desconformidade com a ordem normativa – considerada no conjunto dos vínculos que

43 Como v.g. será o caso da afectação ou destruição de negócios realizados.

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oneram as entidades sujeitas –, quer resultem de comportamentos activos ou omissivos, são susceptíveis de desencadear uma panóplia vasta de consequências, que podem ou não ter uma projecção imediata e contável no plano económico-fi nanceiro.

Mesmo circunscrevendo-nos estritamente ao nível do sancionamento legal ou regulatório desencadeado em processo próprio, não pode, desde logo, deixar de se ter presente o facto de, umas vezes – a maioria, porventura –, ele se traduzir na aplicação efectiva de medidas, mas, noutras, esta poder fi car suspensa em atenção a circunstâncias específi cas, nomeadamente atinentes ao grau de culpa do agente ou, até, aos efeitos reais que o incumprimento implicou.

Mas, além disso, certo é também que as próprias sanções têm natureza e podem revestir formas muito distintas, como sucede, v.g., com as multas, por um lado, ou as simples cominações à sanação da irregularidade, ainda que assistidas de providências acessórias de carácter compulsório.

E quando comportam, necessariamente, a produção de resultados económico-fi nanceiros, sucede que, nem sempre, eles são directa e claramente mensuráveis, com refl exo correspondente nas contas; do mesmo modo, de resto, podem variar na sua natureza44.

Assim acontece igualmente, é claro, quando os incumprimentos se apuram ou se revelam à margem de procedimentos sancionatórios a eles especifi camente dirigidos, com o benefício de que aí não se produzem sequer os efeitos que àqueles andam normalmente ligados.

Doutra parte, a dimensão quantitativa, real ou estimável, dos impactos é, obviamente, muito variável em razão de diversos factores, à cabeça dos quais está o tipo de desconformidade que os gera.

44 Bastará, por exemplo, pensar no caso de se envolver a nulidade de operações já concretizadas, como consequente imperativo de as desfazer, por contraposição com a proibição de comercialização de um determinado produto, a qual, todavia, ainda não se iniciara.

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E pode o incumprimento contar-se, por assim dizer, no quadro do risco típico que ele próprio suscita, ou envolver a incursão da entidade faltosa em contingências de outra natureza, nomeadamente de carácter operacional ou reputacional.

Em linha com o que se induz das refl exões deixadas no número precedente, nada disto determina que o sistema de controlo de cumprimento – e a função que, de uma forma mais executiva e concreta o exprime – se possa ou deva circunscrever à prevenção e acompanhamento das desconformidades que potenciam consequências mais pesadas45.

Sem embargo, não deixa de se refl ectir na conformação do exercício concreto da monitorização, seguimento e controlo do risco alvo que, naturalmente, como toda a actividade de gestão, supõe a hierarquização de prioridades.

Precisamente a este propósito, o sinal que emana do Aviso nº 5/2008 é o de que a preocupação máxima tem de residir onde as contingências do incumprimento possam afectar negativamente os resultados ou o capital46 47.

45 É este, aliás, o sentido que, inequivocamente, se colhe do artº 305º-A do CVM e do artº 20º da NR nº 8/2009-R – cfr., especialmente, quanto ao primeiro, o respectivo nº 2, al. a) e, quanto à segunda, o nº 5, al. a).

46 No plano substantivo, em rigor, toda a contingência que atinge negativamente o capital de uma sociedade refl ecte-se necessariamente nos seus resultados. Creio, no entanto, que a dicotomia do texto legal terá a justifi cá-la a prevenção da existência de circunstâncias em que, em razão de regras contabilísticas aplicáveis, certos impactos possam ser relevados directamente contra capital.

47 Como também resulta do já exposto, a panóplia de vicissitudes que podem materializar o incumprimento – ou dele resultar! –, com real ou potencial impacto sobre a situação económico-fi nanceira das entidades infractoras, não se esgota na enumeração da parte fi nal do artº 11º, nº 4, al. f), do Aviso.Para o comprovar, e sem qualquer outra pretensão, será sufi ciente ter presente a hipótese, já referida, de a desconformidade implicar a necessidade de destruição

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c) Risco de Incumprimento, Risco Reputacional e Risco Operacional

19. Traduzindo quase literalmente a noção de risco de «compliance» acolhida na Introdução do Relatório do Comité de Basileia, o Aviso do BP nº 3/2006 defi nia-o como o risco de a instituição incorrer em sanções de carácter legal ou regulamentar e prejuízos fi nanceiros ou de ordem reputacional – nº 6, 2) –, em resultado da não conformação com normas vinculantes.

Em ambos os textos, os impactos reputacionais surgem, pois, referenciados como um dos elementos típicos inerentes ao risco de compliance, embora este esteja autonomizado do risco reputacional no mesmo dispositivo regulamentar.

Esta aproximação não tem já paralelo no CVM nem na NR nº 8/2009-R, mas vislumbra-se ainda alguma reminiscência dela no Aviso nº 5/2008 – concretamente no seu artº 2º, al. c) –, ao considerar que os denominados objectivos de compliance se dirigem (também) a proteger a reputação da instituição.

Em todo o caso, o risco de «compliance» e o risco reputacional são mantidos autónomos no âmbito do denominado sistema de gestão de riscos e caracterizados em termos que não os inter relacionam – artº 11º, nºs 3 e 4, als. f) e j), do Aviso.

de negócios já celebrados, com reposição de situação, quanto possível, equivalente à que se verifi caria se não se tivessem realizado e eventuais restituições do que, por via delas, as entidades tenham recebido das suas contrapartes.Não pode, porém, razoavelmente deixar de se atribuir à dita enumeração um carácter meramente enunciativo, visto o objectivo que preside à noção regulatória do risco de «compliance». O que efectivamente interessa é a probabilidade de ocorrência de impactos negativos nos resultados ou no capital, emergentes da desconformidade com imposições vinculativas.Cabe, aliás, notar que – porventura, até paradoxalmente – não se estabelece qualquer graduação para a valoração dos impactos. Neste plano, o Aviso não coincide com a sua fonte, visto que, no Relatório do Comité de Basileia, há um apelo à materialidade das perdas fi nanceiras como requisito da respectiva relevância em sede de caracterização do risco de «compliance» (cfr. Introdução, nº 3).

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Ora, esta é, sem dúvida, a perspectiva adequada.É certo que a desconformidade com os normativos aplicáveis

constitui uma fonte potencial de risco reputacional, na medida em que dá fundamento ou, pelo menos, susceptibiliza uma percepção negativa externa da imagem da instituição por parte de múltiplos grupos relevantes com quem ela contactou, e isso pode, até, atingir uma intensidade tal que se projecte no exercício da actividade, com consequências no plano económico fi nanceiro.

Por isso, é bem compreensível que o cumprimento se dirige (também) à tutela da reputação e, realmente, se arvore frequentemente como um factor de discriminação positiva e de prestígio que os interlocutores valorizam.

Ainda assim, estamos sempre e só perante uma eventualidade, cuja materialização, aliás, nas mais das vezes, não desdenhará do tipo concreto de incumprimento que se verifi que, na sua natureza, na sua dimensão, nas suas circunstâncias.

Por outro lado, está bem de ver que a imagem externa de uma entidade se constrói e desenvolve com referência a uma vasta panóplia de factores, que estão muito para lá do procedimento em consonância com as normas e da satisfação das obrigações que oneram a instituição. Entre estes, e a título meramente exemplifi cativo, podem indicar-se: a qualidade dos produtos e serviços oferecidos e a respectiva aptidão para a satisfação dos interesses da clientela; a relação que a instituição regularmente mantém com esta, nas suas distintas manifestações, designadamente em quanto respeita ao modo como confere tratamento às reclamações; a maneira como se organizam e desenvolvem as relações laborais; a ocorrência e gestão de fraudes internas e externas; o relacionamento com a comunicação social e outros «opinion makers»; as políticas internas com projecção directa nas relações com terceiros …

Quer tudo isto dizer que, sendo, seguramente, uma fonte potencial de risco reputacional, a desconformidade com as exigências normativas deve também ser vista e acautelada nessa óptica, uma vez que a sobreveniência dele exponencia os impactos do próprio incumprimento. Sem embargo, o risco reputacional convoca realidades bem mais vastas.

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Sem embargo, podendo, nos termos expostos, estabelecer-se este nexo entre um e outro riscos, isso explica que, no âmbito da liberdade conferida a cada instituição de organizar o seu sistema de controlo de cumprimento – e a função que mais especifi camente o executa – segundo entenda que melhor se ajusta às suas necessidades e pretensões, a gestão de ambos possa compreensivelmente ser confi ada a uma mesma estrutura.

20. Algo de similar ocorre com o risco operacional.Defi nido, nos termos e para os efeitos do Aviso nº 5/2008, como a

probabilidade de ocorrência de impactos negativos nos resultados ou no capital, decorrentes de falhas na análise, processamento ou liquidação das operações, de fraudes internas e externas, da utilização de recursos em regime de subcontratação de processos de decisão internos inefi cazes, de recursos humanos insufi cientes ou inadequados ou da inoperacionalidade das infra-estruturas48, é claro que o podem gerar múltiplas causas que nada têm a ver com o normal e adequado cumprimento dos normativos a que as instituições estão vinculadas e que, por conseguinte, se verifi cam independentemente disso.

Mas também é intuitivo, desde logo, que defi ciências nas políticas, instrumentos ou procedimentos criados e vocacionados para o cumprimento são, igualmente, geradoras de risco operacional; da mesma sorte que, mau-grado a irrepreensibilidade de todos aqueles, a sua imperfeita aplicação casuística é, seguramente, fonte potencial de risco operacional, nos diversos planos em que este se materializa.

Não é, por isso, de estranhar que em algumas organizações a gestão do risco operacional e do risco de compliance sejam cometidas a uma única estrutura executiva, mesmo que, porventura, depois especializada no seu próprio seio.

Em todo o caso, independentemente desta possível cumulação, no quadro da liberdade de organização deixada ao arbítrio de

48 Ex vi do artº 11º, nº 4, al. g).

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cada entidade, sobra do exposto a inestimável vantagem de se estabelecerem internamente programas de articulação entre as áreas responsáveis pelo seguimento destes riscos – incluindo, é claro, o reputacional –, o que certamente exponenciará as possibilidades de, nas diferentes circunstâncias em que se intersectem, encontrar as soluções mais adequadas de prevenção e superação.

Ainda assim, não pode fi car sem sublinhado o facto de, no actual modelo, só a função de cumprimento ser considerada, a par das de auditoria e global de riscos, uma função de controlo, a que está normativamente associado um estatuto particular.

d) Prevenção e Gestão do Risco

21. Como já dito, todo o sistema de controlo de cumprimento e especifi camente a correspondente função são dirigidos à prevenção e gestão do risco de não acatamento dos normativos, de distintas naturezas, que oneram e vinculam as instituições.

Antes de mais e prioritariamente a prevenção, o que signifi ca a necessidade de desenvolver mecanismos dirigidos a evitar que se incumpra.

Podem identifi car se as etapas fundamentais para a concretização desse objectivo.

Desde logo, a divulgação atempada e assertiva dos normativos que, aos diversos níveis, surjam, quer com carácter totalmente inovatório ou simplesmente modifi cativo do status quo ante, em ordem a que todos os que os devem aplicar tenham deles o necessário conhecimento.

Para esse desiderato ser devidamente alcançado, e sem prejuízo da consideração casuística de cada situação, será frequentemente necessário providenciar o destaque e, porventura, a explicação dos pontos cruciais, tendo, sobretudo, em consideração que a generalidade dos destinatários e agentes não terá sufi ciente formação jurídica e pode até não ser especialista nas matérias em causa, como comummente sucederá.

Além disso, impõe-se que se identifi quem as consequências que as novas injunções importam para a instituição e se verifi que em

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que medida ela está preparada para lhes responder, o que signifi ca estabelecer uma matriz de deve e haver, confrontando o que é preciso com aquilo de que se dispõe.

Na medida em que resulte um défi ce, é então necessário estabelecer a panóplia de providências a adoptar para garantir uma resposta apropriada por parte da entidade onerada, o que frequentemente imporá uma articulação de esforços entre a função de cumprimento e áreas diferenciadas da instituição – segundo o que realmente estiver em questão mas com habitual impacto e saliência nas áreas operacionais e tecnológicas.

Importará então atribuir tarefas e defi nir calendários de execução, estabelecendo-se os mecanismos de seguimento que se justifi quem para garantir que o programa se realize e, fi nalmente, se reúnem as condições para que oportunamente se possam satisfazer os vínculos.

Conforme as circunstâncias e vicissitudes de cada caso, poderá, enfi m, haver lugar à divulgação de procedimentos.

A mais deste trabalho preventivo fundamental, está a gestão global do risco que se pode desdobrar num plano geral e no plano concreto.

Quanto ao primeiro, trata-se da defi nição e implementação de políticas, mecanismos, processos e procedimentos vocacionados para que a actuação das instituições se oriente efectivamente para o cumprimento, a todos os níveis da hierarquia empresarial, com destaque para os que nela assumem as maiores responsabilidades, fomentando uma cultura corporativa e um ambiente de trabalho apropriados ao escopo a atingir.

Está aqui, naturalmente, implícita, a necessidade de um constante acompanhamento da evolução das estruturas da instituição e do seu modelo de governo, essencial para a detecção da carência de modifi cações ou de ajustamento do que está estabelecido e respectiva promoção, em ordem a manter a adequação dos instrumentos à realidade concreta e funcional das instituições.

Relativamente ao segundo plano, importa realmente desenvolver mecanismos que sejam capazes de, continuadamente, impulsionar o cumprimento segundo os parâmetros que se encontrem defi nidos

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mas, além disso, exponenciar as hipóteses de detectar contingências, para que possam ser mitigadas e superadas com os menores custos possíveis, tanto internamente, quanto no quadro das plúrimas relações mantidas com agentes exteriores.

É neste contexto que se exprime, se entende e se concretiza o imperativo de identifi cação, avaliação, acompanhamento e controlo do risco, a que se reporta o já citado nº 6 do artº 11º do Aviso nº 5/2008, depois desenvolvido nos artigos que imediatamente se lhe seguem.

Os juízos de adequabilidade, de efi ciência e de efi cácia sobre o sistema de controlo de cumprimento e a correspondente função decorrerão da ponderação desta panóplia de aspectos, sem prescindir da consideração e valoração da materialidade efectiva do risco – ou dos riscos! –, como, aliás, os preceitos referidos em último lugar deixam inequivocamente perceber.

e) Criação de Valor

22. Postas assim as coisas, a imposição de um sistema de controlo de cumprimento, com as características que emergem da lei vigente, consubstancia, sem dúvida, um ónus para as instituições, com projecção directa em custos da própria estrutura e de funcionamento que não são despiciendos49.

Bastarmo-nos com esta constatação seria, todavia, distorcer de forma grosseira as suas virtualidades.

Com efeito, um sistema de controlo de cumprimento afi nado e efi ciente constitui um importante factor de criação de valor para as empresas que os adoptam – seja por dever ou por mera opção –, com múltiplas manifestações em diferentes patamares.

49 Em todo o caso, cabe dizer que o maior peso emergente dos requisitos regulatórios advém da proliferação de exigências que implica constantes adaptações e ajustamentos das entidades – organizacionais, operativas, tecnológicas, contabilísticas, de exercício de actividade, com frequentemente maior afectação de recursos para a realização de tarefas em si mesmas produtivas – e não, verdadeiramente, dos meios dispostos para garantir que se satisfazem.

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À cabeça, é claro, está evitar a panóplia de consequências que o incumprimento é susceptível de gerar, com particular sensibilidade para as sanções pecuniárias – que podem ser signifi cativas e pesadas –, mas incluindo, com não menor importância e impacto, as potenciais perdas de autorizações, a afectação de operações realizadas, as limitações ou condicionamentos ao exercício da actividade, as imanentes do risco reputacional inerente, e quaisquer outras que, de alguma forma, se traduzam no aumento de custos ou na diminuição de receitas.

Para lá disso, e muito mais do que poderia parecer a uma observação liminar pouco cuidada, o sistema de controlo de cumprimento é um poderoso e virtuoso aliado do negócio. Porque é penhor da sua regularidade, catalisador da confi abilidade dos produtos e serviços oferecidos, suporte do prestígio da empresa, dignifi cador da actividade. E é também, certamente, um contributo, do maior signifi cado, para a solidez dos resultados alcançados.

Doutro passo, privilegiando, como tem de ser, a promoção de uma cultura de rigor e transparência, é habilitante das mais adequadas respostas aos modernos e impetrantes requisitos que se colocam hoje às empresas, nesse domínio, sobretudo num cenário concorrencial.

Neste sentido, o sistema de controlo de cumprimento é um instrumento apto à satisfação dos múltiplos interesses que se desenvolvem e agrupam tendo como elemento referencial a instituição; os dos seus clientes, dos titulares de capital, dos trabalhadores, dos fornecedores e outros interlocutores recorrentes, das autoridades de supervisão; enfi m, os corporativos da própria empresa enquanto entidade autónoma.

IV – SISTEMA DE CONTROLO DE CUMPRIMENTO E FUNÇÃO DE CUMPRIMENTO

a) Noção

23. A partir de quanto já fi cou exposto, pode caracterizar-se o sistema de controlo de cumprimento como o conjunto de meios

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organizados e dirigidos à prevenção, gestão e controlo do risco de incumprimento, aí incluindo, designadamente, as estratégias, políticas, processos, procedimentos, estruturas e recursos vocacionados para o efeito.

Realmente, constituindo, como se viu, o controlo de cumprimento uma das vertentes matriciais e específi cas do controlo interno, considerado na sua globalidade, naturalmente não pode deixar de comungar dos elementos típicos que o defi nem, segundo o que se acolhe no artº 2º do Aviso nº 5/2008, ajustados embora à respectiva fi nalidade distintiva.

Por sua vez, a função de cumprimento convoca a ideia da actividade desenvolvida por uma estrutura própria, cuja razão de ser é, exactamente, promover que a instituição em que se insere actue em consonância com os normativos aplicáveis, reportando se, ora aquela, ora a esta, ou, frequentemente, a ambas como um todo.

Desta sorte, a função de cumprimento representa uma das componentes do conteúdo cujo continente é o sistema de controlo. Materializa-o no quotidiano da vida da empresa, tornando-o, por assim dizer, sensível aos olhos da corporação e dos seus colaboradores.

Neste sentido, reveste um papel preponderante na prevenção e gestão do risco, como seu agente privilegiado, zelando para que, por um lado, a instituição efectivamente disponha dos outros meios basilares ou adjuvantes do sistema de controlo e, por outro, os utilize e pratique com amplitude e efi cácia.

Percebe-se, pois, a imperatividade da constituição da função, que emerge dos diplomas relevantes, do mesmo modo que se compreende o estabelecimento de requisitos particulares que lhe conferem uma feição única no quadro do sistema de controlo de cumprimento.

Por outras palavras, conquanto a panóplia de meios típicos a transcenda inequivocamente, a função de cumprimento, no seu sentido mais abrangente, confi gura-se como o instrumento executivo por excelência do sistema de controlo, o seu propulsor,

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cujo desempenho é determinante na consecução dos desideratos a atingir.

Realmente, de pouco serve que uma instituição disponha de um conjunto de estratégias, de políticas e de processos criteriosamente elaborados, de documentos exemplarmente aprovados, de um acervo de procedimentos exaustivamente defi nidos, mesmo de um leque de recursos afectos, se inexiste – ou é insufi ciente – um núcleo de intervenção mobilizado para a execução, penhor de que efectivamente se age segundo as intenções.

Sem embargo, não podem deixar de ser as estratégias, as políticas e os processos a moldar e enquadrar a sua actuação, em ordem a prevenir a arbitrariedade e garantir que ela se desenvolve em consonância com a vontade corporativa devidamente manifestada nos órgãos próprios de cúpula, correspondentemente responsabilizados e responsabilizáveis.

b) Natureza

24. O modelo desenhado pelos documentos internacionais de referência aponta para que todo o aparelho relativo ao cumprimento – o sistema no seu conjunto e a correspondente função – seja construído e opere prevalentemente na ordem interna de cada entidade a que respeita.

Esta ideia, que se manifesta em múltiplos aspectos e considerações, repousa, em defi nitivo, sobre a convicção, expressamente afi rmada no décimo princípio do texto do CEBS, de que compliance deve ser encarado como um instrumento (actividade) nuclear de gestão de risco, a levar a cabo no seio da instituição.

Daí que, por regra, se exclua a possibilidade de externalização da função, ancorada num qualquer regime de prestação de serviços. E onde se admita que tarefas específi cas possam ser abrangidas nesse expediente, devem elas fi car sempre sujeitas à supervisão do responsável de cumprimento que, consequentemente, não pode deixar de integrar a estrutura interna da empresa.

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É, assim, aliás, que se justifi ca a submissão da função de cumprimento à revisão de auditoria interna, acolhida no princípio nove.

Completamente alinhado está também o documento do OICV IOSCO, destacando-se, a propósito destes pontos, o que se contém nos tópicos seis e oito e seus princípios.

Por quanto já antes fi cou exposto, compreende-se que, tanto o Código de Valores Mobiliários, como o Aviso nº 5/2008, repliquem a arquitectura das fontes que, directa ou indirectamente, os inspiraram50.

Multiplicam-se, com efeito, a diferentes níveis, as razões que aconselham e ancoram a internalidade do sistema.

Desde logo, o controlo de cumprimento, tanto no conceito como nas suas distintas e concretas manifestações, integra o sistema geral de controlo interno, o que supõe que se organize, estabeleça e desenvolva no quadro estrutural, hierárquico e funcional de cada entidade.

Este modo de ser é catalisado pelo facto de as preocupações com o cumprimento deverem abranger todo o quadro de colaboradores, com saliência para os colocados nos patamares mais elevados, e convocarem o decisivo envolvimento e responsabilização dos titulares do órgão de administração.

Certo é também que a identifi cação, monitorização, controlo e gestão, regulares e permanentes, do risco de incumprimento, reivindicados pelos normativos vigentes, difi cilmente se compatibilizaria com um exercício funcional a partir de fora, sem a vantagem e a experiência do pulsar quotidiano da empresa, potencialmente agravado com os muitos prováveis maiores obstáculos e embaraços no acesso aos seus dirigentes.

Maximizar-se-ia, de resto, a tentação da diluição de responsabilidades, quer pela ocorrência, quer pela superação das contingências, que é tudo o que, sem dúvida, menos se deseja.

50 Figurando também nesse plano a Directiva da Comissão 2006/73 CE.

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Não há, sequer, nenhuma incongruência no facto de se reclamar a independência da função de cumprimento, visto que estão normativamente identifi cados os critérios que a qualifi cam e nenhum deles supõe a intervenção de terceiros à instituição.

Não admira, pois, que não exista, nos diplomas citados, nenhuma norma que contemple o recurso a meios externos para assegurar a satisfação das obrigações inerentes ao sistema de controlo de cumprimento, embora também seja verdade que nenhuma peremptoriamente o exclui.

Neste contexto, à pergunta sobre a faculdade de contratação do controlo de cumprimento com terceiros deve responder-se de uma forma muito prudente e minimalista, com o apoio que emana das fontes de origem: só será admissível a atribuição de tarefas específi cas51, sempre sob a supervisão do responsável de cumprimento e sem prescindir dos encargos que onerem a estrutura interna da entidade.

25. Merece uma referência autónoma o que ocorre em sede da Norma Regulamentar que regula as sociedades gestoras de fundos de pensões.

Também aí, é certo, a arquitectura matricial do modelo induz a opção pela internalização do sistema de cumprimento.

Com efeito, não pode deixar de se reparar na determinação do nº 1 do artº 20º, para que a função de compliance se estabeleça na estrutura organizacional da própria sociedade gestora, podendo embora a tipologia estrutural utilizada não verifi car completamente o requisito da independência no caso de entidades com amplitude restrita de negócio e reduzida dimensão dos riscos associados à respectiva actividade ou à dos fundos de pensões geridos – ex vi do nº 3 –, do mesmo modo que são signifi cativas as referências ao

51 Poderá ser, por exemplo, o caso de se atribuir a um consultor a tarefa de identifi car as providências a adoptar e coordenar a respectiva execução em termos de a entidade poder vir a satisfazer atempadamente novos requisitos de exercício da actividade que se lhe imponham.

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pessoal afecto, às suas qualifi cações e atribuições, que se acolhem com especial ênfase e densidade nos nºs 2 e 4.

A verdade é que, apesar disso, o nº 2 do artº 21º consagra que, sem prejuízo da manutenção da respectiva responsabilidade, as entidades gestoras podem subcontratar o desempenho de funções chave, devendo, no entanto, reavaliar periodicamente a qualidade da execução das funções subcontratadas. Ora, a denominada função de compliance é, seguramente, uma das ditas funções chave, como resulta inequivocamente da sua inserção na Secção IV, do Capítulo II, da Norma, exactamente sob essa epígrafe.

26. Impõe-se, todavia um apontamento sobre a situação das sociedades que se encontrem em relação de domínio.

Está em causa saber a possibilidade de organização de serviços partilhados entre as entidades relacionadas para a satisfação das exigências que se reportam ao controlo de cumprimento e desempenho da correspondente função.

A resposta, em sentido afi rmativo, está expressa e unanimemente acolhida em todos os diplomas pertinentes, designadamente no artº 24º, nº 6, do Aviso nº 5/2008, no artº 21º, nº 3, da NR nº 8/2009-R e no artº 6º, nº 4, do Regulamento CMVM nº 2/2007, na redacção que lhe foi conferida pela Regulamento nº 3/2008.

É claro que esta solução não contende com a questão da internalidade do sistema de controlo e da função de cumprimento, nos termos expostos no número precedente. Simplesmente o referencial relevante para a aferir deixa se ser cada entidade de per si para passar a ser o conjunto de sociedade em que se integra e o tipo de relação que entre eles se estabelece.

27. Sobra um ponto mais a ter em conta nesta sede. Se bem que complementar e, em parte, tributário do que fi ca dito, reveste, no entanto, autonomia, permanecendo mesmo quando se admita a organização e funcionamento do controlo de cumprimento com recurso à prestação de serviços de entidades terceiras.

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Trata-se do modo como se coloca e convive com os interlocutores da instituição a que respeita, no quadro dos relacionamentos múltiplos por ela estabelecidos no exercício da sua actividade ou por causa dela.

A este propósito, há um par de notas a reter.Destinando-se a providenciar para que a instituição aja de acordo

com os normativos a que está submetida e responda apropriadamente às suas obrigações, os vínculos por ela estabelecidos, tanto na sua tipologia, como na sua materialidade, não podem, naturalmente, deixar de constituir um ponto nuclear de observação e sindicação.

Mas o que quer que seja que resulte dessa função, mesmo quando se trate de introduzir medidas de superação ou reparação de incidências, opera exclusivamente na ordem interna, embora possa projectar-se mediatamente no plano das relações estabelecidas, exactamente por via da concretização das acções que se justifi quem.

Não há, na verdade, o mínimo sinal em que pudesse sustentar se a possibilidade de uma qualquer confrontação directa do sistema de controlo ou dos seus agentes por iniciativa de quem, em alguma circunstância, é contraparte da instituição.

E assim é também no caso de omissões ou defi ciências do sistema que afectem a sua fi abilidade, quando se evidenciem responsabilidades concretamente imputáveis.

Não está excluído, é claro, o escrutínio das autoridades de supervisão no âmbito das suas competências. Mas, mesmo aí, a sujeição a censura individual dos colaboradores da entidade supervisionada só pode ter lugar no estrito quadro em que o permita o regime legal específi co aplicável.

É este, pois, um aspecto acrescido da internalidade que matiza o modelo actual de controlo de cumprimento.

c) Âmbito e Conteúdo

28. Nas suas arquitectura e formulação, o sistema e a função de cumprimento são universais com relação às actividades desenvolvidas pelas entidades abrangidas e gerais no que respeita

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à vinculação dos respectivos colaboradores, independentemente da posição que nelas ocupam e sem prejuízo de diversos graus de responsabilidade no exercício.

Justifi cam-se algumas palavras para elucidar e tornar mais compreensível esta asserção basilar.

Uma vez que as exigências a propósito contidas no CVM e sua regulamentação se dirigem aos intermediários fi nanceiros – surgindo, aliás, no panorama dos deveres de organização e exercício que lhes são impostos – é claro que estão sempre e só em causa as actividades de intermediação.

Mas neste universo cabem diversas realidades – não só uma –, aliás heterogéneas, como se alcança da concatenação dos já citados artºs 289º, 290º e 291º do CVM.

E apesar de, por vezes, haver impedimentos à cumulação, restrições quanto ao objecto ou imperativos relativamente à qualidade do agente, não raro é dada à mesma entidade a possibilidade de desenvolver simultaneamente mais do que uma de entre as actividades elegíveis.

Já quanto aos fundos de pensões, de acordo com o respectivo regime jurídico constante do Dec.-Lei nº 12/2006, de 20 de Janeiro, a gestão pode ser levada a cabo, alternativamente, por sociedades criadas exclusivamente para esse efeito ou por empresas seguradoras do ramo vida devidamente constituídas em consonância com as condições de acesso e exercício da actividade de seguros, actualmente consagradas no Dec.-Lei nº 94-B/98, de 17 de Abril – diversas vezes alterado, embora, desde o início da sua vigência –, como se vê do artº 32º, nºs 1 e 2, daquele diploma legal.

Qualquer que seja, contudo, a natureza da entidade gestora, ela pode exercer de forma autónoma, actividades necessárias ou complementares da gestão de fundos de pensões – artº 32º, nº 3 – e, independentemente disso, pode gerir um ou mais fundos.

Por seu turno, no que respeita às instituições de crédito e sociedades fi nanceiras, sujeitas à disciplina do Aviso nº 5/2008, vê se dos artºs 4º, 5º e 7º do respectivo regime geral que, consoante os casos e circunstâncias, podem elas também estar limitadas ao

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exercício de uma única actividade ou ser-lhes, pelo contrário, facultado o desempenho simultâneo de várias.

Ora, o que emerge do acervo de dispositivos aplicável, nas distintas situações, ao sistema de controlo e função de cumprimento é a sua extensão, sem reservas, restrições ou ajustamentos a todo o conjunto de actividades que as entidades destinatárias efectivamente levam a cabo.

Por outras palavras, o sistema de controlo e a função de cumprimento, nos termos e segundo o modelo por que estão concebidos, comportam um imperativo de organização e funcionamento das sociedades a que se dirigem, que abrange e envolve toda a sua actuação onde ela se materializa e independentemente das formas que revista.

Em boa verdade, só assim se pode alcançar a multiplicidade de objectivos que se viu consubstanciarem os fundamentos e a razão de ser da opção assumida, da mesma sorte que só assim o controlo de cumprimento pode responder à vocação, a que é chamado, de integrar o sistema global de controlo interno de risco.

É, pois, característica a marca de universalidade que o perpassa.Corolário é o de todos os meios que corporizam o sistema

de controlo e a função de cumprimento – estratégias, políticas, procedimentos, instrumentos, recursos – terem de ser montados e operacionalizados em ordem a poderem corresponder às normais exigências de gestão do risco correspondente relativamente à globalidade das actividades prosseguidas, sem prejuízo das especifi cidades de cada uma e da liberdade de organização que procede.

29. Por ser assim, e em paralelo, a efi cácia do sistema não pode prescindir da ideia de que ele se arvora como uma missão colectiva de toda a corporação, mau-grado o agravado encargo que deve impender sobre quem tem o poder de dirigir, a repartição, em graus diferentes da responsabilidade, pela implementação e prática em razão da colocação nos diferentes níveis de hierarquia e a disponibilização de uma equipa afecta ao exercício recorrente da função, para tanto, dotada de especiais habilidades.

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Nos já conhecidos textos matriciais internacionais são muito evidentes as expressões desta transversalidade, como é, v.g., o caso do que se expõe na introdução e nos quatro primeiros princípios do documento do Comité de Basileia e na introdução e nos princípios que integram os dois primeiros tópicos do documento do IOCV IOSCO.

Pelo papel que desempenharam na génese do nosso regime vigente, são, como já fi cou exposto, um auxiliar precioso na fi xação e alcance com que ele deve ser entendido. Mas, a mais disso, os normativos nacionais são, eles próprios, pródigos na manifestação de que o controlo de cumprimento é algo que a todos respeita e que com todos tem de contar, cada qual embora em função da posição que ocupa na organização e das competências com que nela está investido52.

Segue-se, pois, que toda a estrutura, aos diferentes níveis, é chamada à construção, prática e partilha de um ambiente e de uma cultura vocacionados para o cumprimento e, mais concretamente, a adequar activamente todas as condutas às estratégias, políticas e processos defi nidos neste domínio.

Daqui resultam óbvias consequências práticas, designadamente no plano da responsabilização individual dos diversos agentes, tanto, como é intuitivo, no plano interno, como, chegando a existir infracção pessoal, como tal qualifi cável pelas leis quadro aplicáveis, em sede do procedimento sancionatório que a contemple.

30. Questão diversa, mas igualmente da maior importância, é a da delimitação do objecto do sistema e função de cumprimento, com inerente projecção na delimitação do seu conteúdo.

Sabemos, é certo, que se trata de prevenir e gerir o risco de incumprimento, já globalmente caracterizado nas páginas

52 Cfr., designadamente, o disposto nos artºs 4º a 7º, 9º e 21º do Aviso nº 5/2008 e artºs 4º, 6º e 7º da Norma Regulamentar nº 8/2009-R.Formulados numa óptica de abrangência de todo o controlo interno, incluem, por isso mesmo e nos exactos termos, a vertente que respeita ao sistema e função de cumprimento.

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precedentes. Mas importa ponderar algo mais para esclarecer o universo dos riscos envolvidos.

O problema suscita se a partir, essencialmente, da consideração concertada de quatro referências fundamentais, aliás, de distinto cariz: a construção conceptual do modelo; a criação de condições práticas para a exponenciação das suas efi ciência e efi cácia; a identifi cação de relevantes domínios de actuação e relacionamento das empresas que transcendem a prossecução das suas actividades; a existência de outros mecanismos vocacionados para assegurar a conformidade dos procedimentos.

Uma leitura singela dos dispositivos do Direito interno pode induzir, liminarmente, a ideia de que o sistema e a função de cumprimento respeitam a toda a vida das empresas abrangidas, independentemente dos sectores em que se consubstancia e das concretas manifestações que a corporizam.

Com maior intensidade, abonariam em favor de uma tal asserção o facto de, por um lado, o denominado risco de compliance surgir defi nido com carácter extremamente amplo sem, por outro, essa perspectiva ser contrabalançada pela evidência de sinais limitadores sufi cientemente claros e fortes, no plano dos meios que, precisamente, são construídos e vocacionados para o prevenir e gerir.

Todavia, a circunstância de um e outra se enquadrarem e serem vistos como vertentes do sistema geral de controlo interno sugere que aquilo que, nuclear e realmente, está em causa é o desempenho efi ciente e rentável da actividade – ou actividades – das entidades vinculadas, levado a cabo em conformidade com a disciplina normativa que a governa, nos distintos patamares em que se expressa, em ordem a que se viabilize a utilização efi caz dos activos e recursos, a continuidade do negócio e a sobrevivência da instituição, suportadas em processos de decisão adequada, fi ável e tempestivamente informados53.

53 Cfr. artº 2º do Aviso nº 5/2008.

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Ora, é este, também, o entendimento que inequivocamente se recolhe dos textos internacionais relevantes nesta matéria. Aí o acento tónico da recomendação de introdução de uma função de cumprimento é, claramente, colocado na necessidade de as instituições fi carem, assim, melhor apetrechadas a providenciar e assegurar que as actividades que realizam o respectivo objecto social são conduzidas em consonância com os imperativos jurídicos pertinentes, seja qual for a sua fonte, e preferencialmente segundo os melhores padrões de ética comercial e corporativa, evitando, designadamente, as consequências desfavoráveis potencialmente emergentes de comportamentos hostis a tais princípios, quer no plano patrimonial, como no da reputação.

Em boa verdade, é esta também a perspectiva que preside à moldura e disciplina da função de cumprimento, segundo o que se extrai dos preceitos que, directa e especifi camente, se lhe referem.

No caso do artº 305º-A do CVM, para além de ele se inserir no Título que o Código dedica à actividade de intermediação e, mais concretamente, na secção respeitante à sua organização e exercício, é particularmente sintomática e reveladora a disposição do nº 4, a qual, por sua vez, é replicada no nº 3 do artº 17º do Aviso nº 5/2008. Já quanto à Norma Regulamentar do ISP, tenha-se presente o que consta dos nºs 1 e 3 do artº 20º54.

Postas assim as coisas, emergem dois corolários fundamentais que, apesar de colocados em patamares diferenciados, são, de algum modo, complementares, arvorando se e afl orando como faces de uma só moeda.

54 No sentido de que, em sede de regulamentação da actividade de intermediação fi nanceira, a prevenção e gestão do risco de incumprimento estão sempre relacionadas com a actividade (principal!) da organização, pode ver-se Almudena de la Mata Muñoz, La Función de Cumplimiento Normativo en el Ámbito de las Entidades de Crédito y las Empresas de Servicios de Inversion: de Basileia II a MIFID y su Transposición en España. El Reconocimiento Legislativo de una Realidad Pratica, in Revista de Derecho Bancario y Bursátil, ano XXVIII, Janeiro Março 2009, ed. Lex Nova, Valladolid, 2009, pág. 153.

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Desde logo, há áreas de actuação das empresas que transcendem o campo típico de intervenção do sistema de controlo e, sobretudo, da função de cumprimento, não lhes sendo, portanto, nucleares55 56; porém, como está bem de ver, essa circunstância é tendencialmente favorável à efi ciência e efi cácia desta função, potenciando os resultados do respectivo exercício.

Com efeito, na medida em que obvia à necessidade de avocação e gestão de conhecimentos e recursos demasiado dispersos e difusos, exponencia a coesão interna da equipa e permite que se concentre, em permanência, em focos precisos que se atêm à razão de ser e teleologia próprias da empresa.

Sem embargo, não fi ca excluída a possibilidade de a lei atribuir especifi camente à função de cumprimento competências que, não fora essa imputação e no quadro do entendimento perfi lhado, lhe não caberiam.

Valha a verdade, uma tal intervenção normativa – que, aliás, tem vindo a multiplicar-se –, é, por si só, demonstrativa de que as exigências requeridas à função de cumprimento não assumem a vastidão que aprioristicamente pareceria dever considerar-se.

31. A partir deste pensamento, tem-se, por vezes, procurado caracterizar o âmbito material da função de cumprimento identifi cando as áreas que o integram57.

Não se trata de um esforço em vão. Tem, quando menos, a virtualidade de destacar matérias que a função não pode, por regra, descurar, ainda quando sobre alguma delas sempre se possa suscitar dúvidas acerca da bondade da selecção.

O maior risco parece, então, ser o de, à vista da variedade de actividades elegíveis e na falta de uma enumeração legal de suporte, poderem fi car de fora aspectos que, designadamente,

55 Sem prejuízo, é claro, de cada entidade se poder organizar – mas sem obrigação de o fazer – em ordem a contemplar esses domínios no seu modelo.

56 Assim, também, Almudena de la Mata Muñoz, est. e loc. cits.. 57 Vd. Almudena de la Mata Muñoz, est. cit., págs. 154 e 155.

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segundo as circunstâncias concretas da entidade em causa, não devem considerar-se alheios ou marginais à prossecução estrita do seu objecto e, logo, subtraídas ao normal escrutínio do sistema de cumprimento.

Doutro passo, crê-se possível, em linha com o critério defi nido e também sem qualquer preocupação de exaustão apontar áreas fora do âmbito material da função.

Será, v.g., o caso do universo das relações laborais, e consequente gestão do pessoal, como o será também todo o campo relativo à negociação e relacionamento com fornecedores externos, salvo no que possa respeitar a subcontratações legítimas das próprias actividades desenvolvidas ou de parte delas.

Do mesmo modo, estarão também excluídas do âmbito da função de cumprimento as temáticas relativas ao parque imobiliário das instituições e à organização e execução contabilística, ainda que não possa perder-se de vista o que constitua requisitos específi cos da actividade, como é o caso da exigência de segregação patrimonial na intermediação fi nanceira, prevista no artº 306º do CVM.

Não signifi ca isto que, nestes nichos, se permita às entidades viver ou agir à margem da legalidade. Contarão, todavia, com o apoio jurídico dos serviços a que recorrem.

Em síntese, no entendimento tido por mais apropriado – pelo menos no estádio actual da evolução e face às motivações que, realmente, o ditaram –, o sistema de controlo de cumprimento, nas suas distintas componentes tem por objecto a identifi cação, seguimento e controlo do risco de incumprimento inerente à organização e prossecução das actividades desenvolvidas pela empresa em que se insere.

Neste domínio, a benefício do que já está dito e ainda mais decorrerá da exposição subsequente, o conteúdo funcional é muito amplo: contempla tudo o que respeita ao estabelecimento de estratégias, políticas, sistemas, procedimentos e práticas que intentam promover a adequação da actividade à globalidade dos normativos aplicáveis, introduzir os ajustamentos necessários em razão das alterações que tenham lugar, verifi car que a actuação

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concreta é efectivamente conforme, sobretudo por via da monitorização dos principais riscos e incidências e, sendo o caso, providenciar para que se superem as irregularidades que ocorram e se mitiguem as consequências e impactos que podem produzir.

d) Princípios

32. Aqui chegados, é tempo de procurar surpreender o conjunto de princípios basilares que presidem à organização e funcionamento do sistema de controlo e função de cumprimento, alicerçando o correspondente edifício.

Será, para tanto, indispensável ter presente os documentos normativos pertinentes, já conhecidos, com a advertência, feita a seu tempo e agora recordada, de que aqui só pode cuidar-se do arquétipo legal58.

33. Justifi car-se-á, em primeiro lugar, invocar o princípio da legalidade.

À semelhança do que ocorre em todos os demais domínios em que prevalece, ele signifi ca, literal e liminarmente, que o sistema de controlo e a função de cumprimento estão sujeitos à lei e devem obedecer-lhe.

Convoca, sem embargo, aspectos diferenciados que importa assinalar.Um deles sublinha a imperatividade da respectiva implementação

em todo o universo de entidades sujeitas.Com efeito, mesmo sobrando, como já se deu conta e

melhor se refl ectirá de seguida, uma margem signifi cativa de discricionariedade na confi guração concreta do modelo, todas elas estão estritamente vinculadas à obrigação de dispor de um sistema – materializado numa panóplia de políticas, estratégias, processos, procedimentos e recursos – vocacionado para a prevenção e gestão do risco de incumprimento.

58 Vd. o que, a propósito, fi cou precedentemente escrito em I, al.d).

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E se é certo que se privilegia prioritariamente o resultado, verdade é também que nem sequer se prescinde, em absoluto, da consideração dos meios, o que é sobretudo notório na exigência da criação de uma estrutura que assegure, com regularidade, o exercício da função.

Cabe sublinhar a imprescindibilidade de satisfação, pelo mínimo, de todos os requisitos legais, o que comporta dois importantes corolários. Por um lado, o sistema deve contemplar as diferentes etapas identifi cáveis na gestão do risco de incumprimento: a prevenção, o seguimento e o controlo, avultando neste a detecção e superação de incidências. Por outro lado, nada do que se promova ou pratique no seio de cada instituição, no âmbito da liberdade que lhe é confi ada, pode, todavia, ter por efeito a não conformação com os requisitos estabelecidos, a frustração ou limitação dos objectivos em causa ou a consecução de fi ns não permitidos.

34. Ainda assim, a concretização do sistema de controlo e mesmo da função de cumprimento em cada entidade vinculada está longe de signifi car a necessidade de adopção de um modelo estereotipado, uniforme, normativamente imposto.

Pelo contrário, é deixado aos destinatários a faculdade de se organizarem e agirem segundo os seus próprios critérios, ponto que as opções tomadas sejam apropriadas a preencher os requisitos mínimos legais e a propiciar a satisfação do escopo a atingir.

Interceptam-se, assim, neste domínio, dois princípios complementares a observar concretamente: o da liberdade ou versatilidade organizativa e o da proporcionalidade.

Com efeito, a moldura legal prescinde, em absoluto, do recurso a fórmulas sacramentais de disciplina interna preferindo confi ar na idoneidade de todas as entidades subordinadas para, com grande margem de autonomia, defi nirem, corporizarem e vocacionarem os instrumentos segundo a geometria que entendam mais ajustada ao seu paradigma de governo.

Semelhante solução, há que sublinhá-lo, sem tergiversar no móbil determinante da exigência do sistema de controlo de cumprimento,

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é, todavia, sem dúvida, a que melhor se ajusta à diversidade das instituições abrangidas nos múltiplos aspectos relevantes.

Mas, também por isso, fundamental é que, em cada caso, o resultado seja satisfatório, com tal signifi cando a aptidão do modelo para providenciar, com solicitude, a gestão do risco incorrido, segundo as características particulares da entidade que se considere.

Tal qual já sucedia com os documentos que os inspiraram, estes princípios estão abundantemente suportados, conquanto sob formulações distintas, em todos os textos normativos nacionais.

É assim que o sistema de controlo interno – e designadamente a vertente que respeita ao cumprimento – «deve ser adequado à dimensão, natureza e complexidade da actividade, à natureza e magnitude dos riscos assumidos ou a assumir, bem como ao grau de centralização e delegação de autoridade estabelecido na instituição» – artº 3º, nº 3, do Aviso nº 5/2008 –, da mesma sorte que a «estrutura organizacional deve ser adequada à dimensão, natureza e complexidade da actividade desenvolvida pela instituição» – artº 6º, nº 3, do diploma citado.

Especifi camente no plano da função de cumprimento, comina- -se o dever de a estabelecer e manter em termos que assegurem a respectiva adequação – artº 17º, nºs 1 e 2, proémios, do Aviso, artº 20º, nº 1, da Norma Regulamentar nº 8/2009-R e artº 305º, nº 3, do CVM –, limitando-se, contudo, a lei, a enumerar alguns poucos – se bem que importantes – aspectos vinculativos a observar.

Mas ainda quanto a estes prevalece alguma tolerância, como, de modo inequívoco, resulta, respectivamente, dos artºs 17º, nº 3, 20º, nº 3, e 305º, nº 4, de cada um dos diplomas e pela ordem com que fi caram referidos59.

Doutra parte, e como já atrás houve ensejo de referir, está admitido que, nos grupos empresariais, a função seja organizada e funcione com carácter global.

Naturalmente, este estado de coisas – quer dizer, a ausência de um estereótipo de organização e acção e a correspondente liberdade

59 Vd. também o artº 6º do Regulamento da CMVM nº 2/2007.

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concedida às entidades – comporta uma maior probabilidade de se gerarem disfunções dos modelos concretamente construídos, mas esse é um problema que se mitiga e a que se dá resposta pela sujeição ao escrutínio e sindicabilidade das autoridades de supervisão e ao regime sancionatório aplicável.

35. Já houve oportunidade de sinalizar o facto de o sistema de controlo de cumprimento se dirigir e abarcar a globalidade das actividades que constituem objecto de cada entidade abrangida, e que por ela sejam efectivamente prosseguidas, contemplando a multiplicidade de vertentes e aspectos característicos, em vista do que deve ser casuisticamente concebido, moldado e praticado.

Nisto se corporiza nuclearmente o que pode designar-se pelo princípio da universalidade.

Justifi cam-se ponderações adicionais.Sem dúvida que em razão da diversidade de natureza,

fi nalidades, meios utilizados, circunstâncias …, os correspondentes riscos típicos de incumprimento podem assumir – e frequentemente assumirão – variadas conformações e intensidade, da mesma forma que a sua eventual ocorrência convocará também, comummente, distintas consequências e impactos60. Até com relação a uma só actividade, de per si considerada, não será, muitas vezes, difícil identifi car riscos de incumprimento de diferentes matizes.

Intui-se, assim, a razoabilidade de, segundo as especifi cidades de cada situação, se poder lançar mão de meios díspares, tanto no plano das políticas, estratégias ou metodologias, como no dos instrumentos e recursos afectos e utilizados.

Sucede que este ponto, particularmente ilustrativo da liberdade da organização aludida no número precedente, em nada contende, porém, com o princípio da universalidade que, pelo contrário, é com ele plenamente compatível.

60 Bastará, aliás, ter em conta a concorrência de requisitos ou exigências normativos heterogéneos, quando não mesmo regimes globalmente não justaponíveis.

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O que verdadeiramente importa é que toda e qualquer actividade, independentemente das suas particularidades, deve ser integrada no sistema geral de controlo de cumprimento e como tal monitorizada e acompanhada, segundo os padrões que a instituição houver defi nido.

Doutra parte, em linha com o critério da proporcionalidade, determinante é que o conjunto de providências disponibilizado seja adequado ao risco sob sindicação e, logo, susceptível de prover a respectiva gestão nas distintas fases e etapas em que se concretiza e desdobra.

Impende, de resto, sobre as instituições o dever de organizar e manter processos sistematizados de acompanhamento dos múltiplos riscos elegíveis, o que, no caso do de incumprimento, explica, por um lado, o requerimento de uma estrutura encarregada da correspondente função, sob responsabilidade máxima, unicéfala, de um para o efeito e, por outro, em larga medida – se bem que não exclusivamente – se materializa nela61 62.

36. Em paralelo com o da universalidade, assim entendido, e caminhando, paredes meias, com ele, pode facilmente identifi car-se o princípio da transversalidade, com o sentido de que o sistema de controlo de cumprimento respeita a toda a organização empresarial e, concretamente, a todas as pessoas que nela se inserem, independentemente da posição que aí assumem e das competências que exercem.

Por outras palavras, a preocupação com a detecção e gestão do risco de incumprimento, se bem que estas estejam especialmente confi adas a uma estrutura própria que, por assim dizer, faz o seu acompanhamento executivo, constitui, todavia, um apanágio de todo o corpo pessoal que sustenta a empresa e exprime-se de diferentes modos e em distintos patamares.

61 Cfr., v.g., os artºs 14º e 17º do Aviso. 62 Um modo particular de exprimir a universalidade do sistema de controlo

interno – e logo também no que respeita ao risco de incumprimento que ele integra – pode ver-se no nº 2 do artº 3º do Aviso.

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Assim, é essencial, desde logo, que o órgão de administração se comprometa efectiva e activamente com o risco de compliance, o que se materializa em múltiplos estádios e manifestações.

Sem dúvida, há o dever fundamental de prover à criação da estrutura direccionada ao exercício da função de cumprimento. Isso envolve necessariamente a dotação de meios técnicos e humanos apropriados; mas também a correspondente dignifi cação na hierarquia da empresa, que é condição privilegiada para que ela possa realizar adequadamente a sua missão.

Contudo, a mais disto, na prática quotidiana, o órgão de administração só satisfaz, na plenitude, a obrigação que o onera se apoiar e acarinhar a actividade da função de cumprimento, respeitando a sua independência.

Isto signifi ca, designadamente, que deve ser assegurado o acesso irrestrito à informação pertinente, facilitados os contactos com todas as áreas relevantes, dinamizados, quando justifi cado, eventuais esquemas de reporte, analisadas e ponderadas as sugestões ou recomendações recebidas e providenciada a implementação das providências que se mostrem necessárias ao cumprimento e requeiram, segundo o modelo de organização e funcionamento da empresa, a intervenção do próprio órgão de administração.

Para que tal seja possível, o órgão de administração deve favorecer e incentivar a criação de um ambiente e de uma cultura de cumprimento que, precisamente, se dirijam a solidifi car, nos diferentes planos e níveis da organização, a convicção fi rme do empenho, da conveniência e da vantagem de agir sempre segundo o que é exigível, privilegiando as melhores práticas, suportadas em estimáveis padrões de ética.

Em contrapartida, como se fora o outro prato da balança, há que reivindicar, de todos os colaboradores uma actuação consentânea com as políticas e procedimentos defi nidos, em ordem a que o resultado se ajuste, sistemática e regularmente, aos objectivos.

Naturalmente é ainda papel determinante do órgão de administração a aprovação da documentação de suporte, ou, segundo as opções que adopte, disponha, a defi nição de órgãos intermédios, de competência delegada, que o possam fazer.

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Neste domínio, merece um destaque particular a formulação de regras de conduta que, acolhendo os princípios fundadores do sistema de controlo, se conformem como paradigmas ancoradores do procedimento corrente de quantos dão corpo ao pulsar da instituição.

É, enfi m, imprescindível assegurar, com sufi ciência e clareza, a divulgação da informação relevante, estabelecendo, paralelamente, canais que facilitem o esclarecimento de dúvidas, quando surjam, sobre o modo de agir.

A partir daqui, estende-se a todo o colectivo empresarial, sem menosprezar as diferentes responsabilidades individuais de cada um, emergentes das diversas posições na estrutura e na hierarquia – com óbvia densifi cação no caso dos dirigentes de topo –, o dever de cultivar o espírito de comprometimento e sã atitude capaz de conduzir a instituição, no seu conjunto, a elevados patamares de conformidade.

Em síntese, a regra da transversalidade impõe e supõe que cada pessoa, dentro da empresa, na sua justa medida, se arvore em guardião e comporte como agente de prevenção, gestão e controlo do risco de incumprimento.

Nas matrizes internacionais, esta regra está explícita e amplamente afi rmada. Basta ter presente o que releva, respectivamente, dos quatro primeiros princípios do documento do Comité de Basileia e do tópico dois do relatório do OICV-IOSCO.

Mas está também fortemente respaldada na regulamentação nacional, segundo o que, nomeadamente, se consagra e resulta dos artºs 5º a 9º do Aviso, artºs 10º e 11º da NR nº 8/2009-R e, ainda que de uma maneira claramente menos ostensiva, no artº 305º-A do CVM, maxime nos nºs 1, 2, als. a) e d), e 3, al. b).

37. Adrede vem o que creio poder apropriadamente designar-se por princípio da cognoscibilidade ou da transparência.

Tem ele, exactamente, a ver com o facto de a temática relativa ao risco de incumprimento a todos pertencer e a todos vincular. Porque assim é, então impõe-se que os instrumentos que a corporizam no seio da instituição estejam sufi ciente e adequadamente acessíveis para que, correspondentemente, possam ser conhecidos e praticados.

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Com efeito, só é exigível que se cumpra e se realize aquilo que é razoavelmente susceptível de ser conhecido e compreendido.

A cabal consecução deste desiderato alcança-se na intersecção e conjugação de três pilares: a documentação dos instrumentos; a sua disponibilização a todos o colectivo; e a operacionalização de canais que permitam dar respostas pontuais a situações concretas, no plano das dúvidas que se coloquem quanto à compreensão do signifi cado e alcance dos textos e à aplicação efectiva dos procedimentos e ditames que acolhem.

Desde logo, os instrumentos adoptados, aprovados em sede própria, segundo o modelo de governo de cada entidade, devem estar suportados em documentos consultáveis. É esse o penhor primeiro da certeza quanto ao que são as suas opções, aos seus objectivos e metas, aos meios e mecanismos de actuação nos diversos estádios, à orgânica da decisão e seguimento.

É, de resto, ainda a documentação dos distintos instrumentos que, por um lado, viabiliza o escrutínio da respectiva adequação às exigências normativas e, por outro, o aferimento da bondade e do rigor dos comportamentos organizacionais, colectivos e individuais.

Mas é, por igual, imprescindível que o material de trabalho que o suporte documental corporiza esteja divulgado por toda a comunidade de colaboradores, exactamente em ordem a que, na posse do seu conhecimento, estejam em condições de, em cada momento e circunstância, procederem como se lhes requer.

Por isso, muito mais do que notícias ou informações sobre a existência dos documentos, é determinante garantir a sua acessibilidade constante, o que signifi ca que cada colaborador deve, a todo o tempo, sem sequer precisar de endereçar alguma solicitação específi ca para o efeito, poder confrontar os documentos, quer porque efectivamente os tem, quer porque, como será mais natural no actual momento do desenvolvimento comunicacional, elas estão disponíveis em sítio de alcance directo.

Ainda assim, é de admitir que nem tudo será absolutamente claro e inequívoco para todos, independentemente do que esteja em causa e para lá das circunstâncias. É por isso que as instituições

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devem providenciar circuitos de interacção, através dos quais, quem disso necessite possa obter esclarecimentos ou, mesmo, orientações quanto ao modo de agir, potenciando-se comportamentos de conformidade, do que só podem resultar benefícios.

Nestas matérias, na esteira das suas fontes, a regulamentação interna é também pródiga em ancorar o princípio que fi ca enunciado.

Sem preocupação de ser exaustivo a propósito, tenha-se, no entanto, presente, designadamente, o que se estipula nos artºs 3º, nº 4, 4º, nºs 2 e 3, 6º, nºs 3 e 6, 8º, nº 2, 9º, nºs 2 e 3, 16º, nºs 6 e 7, e 18º, nºs 2 e 3, do Aviso, e artºs 5º, nº 4, 6º, nºs 2 e 3, 7º, nºs 2 e 3, 10º, nºs 2 e 3, 11º, nºs 2 e 3, e 22º, nº 1, da NR nº 8/2009-R.

38. É intuitiva a ideia de que o sistema de controlo de cumprimento obedece a um princípio de continuidade, que é fruto de o risco objecto ser, ele próprio, permanente.

É, sem dúvida, possível referenciar e monitorizar, de um modo particular, factos e situações que, pelas suas características ou contexto, intensifi cam a probabilidade de eclosão de desconformidades, mesmo quando se tenha em vista somente as de mais signifi cativa projecção na empresa. E assim deve, realmente, ser, quanto possível, porque essa é uma via que potencia as hipóteses de prevenção e controlo.

Mas a verdade é que a eventualidade do incumprimento é inerente à própria dinâmica das instituições, quanto mais não seja porque se envolvem comportamentos humanos na multiplicidade das suas vicissitudes.

Daí que se requeira e imponha a constância da disponibilidade e intervenção dos meios organizados, com particular destaque para a função de cumprimento, em razão da dimensão eminentemente executiva que a caracteriza.

Sem embargo, a substância do princípio da continuidade, conquanto tenha aí uma manifestação privilegiada, não se esgota nessa vertente.

Implica, também, por um lado, uma atenção sistemática à capacidade de as entidades se acomodarem às inovações e às mudanças, quer sejam ditadas por opções de carácter interno, quer impostas por ditames

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exteriores, neste caso com especial saliência das alterações normativas que ocorrem, com o corolário do dever de providenciação e acompanhamento das medidas apropriadas para responder aos novos requisitos, preservando a habilitação para o cumprimento.

Apela, por outro lado, à avaliação e revisão regulares do conjunto de instrumentos vigentes, em ordem a garantir que se mantém actualizados e aptos, em correspondência com as necessidades da empresa testadas nas experiências vividas, potenciando a efi ciência e a efi cácia do sistema de controlo no seu conjunto.

Com tal conteúdo, o princípio da continuidade comporta um desafi o deveras exigente que, sobretudo em tempos de mudanças aceleradas e dispersas, reivindica uma sólida confl uência de esforços para ser satisfatoriamente enfrentado.

Porém, não pode esquecer-se que, nesta sede, o sucesso é, simplesmente, sinónimo de dever cumprido!

39. O arquétipo legal está construído em termos que manifestam o acolhimento, quando menos implícito, do que pode designar se por princípio da internalidade, observado, aliás, numa dupla acepção: a montagem e a operacionalização do sistema de controlo e da função de cumprimento e a gestão do correspondente risco constituem atribuições das entidades abrangidas e devem, pelo menos prevalentemente, ser assegurados no seu próprio seio; em regra, a responsabilidade funcional dos diversos agentes opera e exerce se exclusivamente no interior de cada empresa.

Retomam-se aqui as observações já antes expostas63, a que há que juntar um par de considerações adicionais.

40. A ideia da internalidade, no primeiro dos sentidos indicados, perpassa transversalmente os documentos – fonte e atinge uma expressão ostensiva no princípio 10 do relatório do Comité de Basileia e no tópico 8 do IOSCO, respectivamente.

63 Cfr. o que fi cou dito em IV, b).

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Como aí se vê, sem excluir a possibilidade de recurso a serviços de terceiros para a realização de tarefas específi cas que enquadram a gestão do risco de incumprimento, assume-se, todavia, que esta se insere no âmago da actividade das instituições e deve, correspondente e correntemente, ser garantida desde o seu interior.

Ainda quando há lugar a algum tipo de contratação externa, remanescem o dever de fi scalização e a responsabilidade internas.

Esta concepção, bem vistas as coisas, acomoda se bem e vai ao encontro da convicção de que a relação de proximidade – decerto favorecida e potenciada pela utilização de recursos internos – é muito relevante para o conhecimento aprofundado das actividades sob seguimento e controlo e normalmente decisiva para o exercício da infl uência que, frequentemente, é determinante na prevenção do risco e para a tomada pronta de providências de superação, quando ele se materializa.

Quanto aos diplomas nacionais, em linha com o que já foi avançado, importa, no entanto, distinguir, conforme se trate do Aviso e do CVM, por um lado, ou da Norma Regulamentar, por outro.

Relativamente aqueles dois, sinalizam-se os seguintes aspectos fulcrais: i) as atribuições conferidas ao órgão de administração e aos dirigentes de topo, na estruturação e implementação do sistema de controlo não são, pela sua própria natureza, externalizáveis, sem prejuízo de um e outros poderem fazer se assistir de consultores que os aconselhem nas decisões a tomar e nos procedimentos a adoptar; ii) a modelação da função de cumprimento está tipologicamente assente sobre a perspectiva de que ela é exercida internamente, o que, de uma parte, explica o conteúdo de, pelo menos, algumas das competências atribuídas e, de outra, os requisitos dirigidos a garantir a adequação e independência da própria função; iii) não está prevista a contratação externa, ainda que pontual, de quaisquer tarefas próprias do sistema de controlo, correspondentes ou não a competências próprias, exclusivas ou partilhadas, da função de cumprimento, contemplando-se apenas a existência de serviços

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comuns – naturalmente suportados em estruturas compartidas – a instituições diferentes que integrem o mesmo grupo fi nanceiro64 65.

A situação é, contudo, diferente no que respeita à Norma Regulamentar aplicável às entidades gestoras de fundos de pensões.

Há pontos comuns: não se vislumbra, também aqui, a possibilidade de as competências dos órgãos de administração e dirigentes das empresas serem exercidos por contratação externa; por sua vez, face à similitude do artº 20º com os correspondentes artº 17º do Aviso e artº 305º-A do CVM, parece óbvio que o desenho da função de cumprimento, com a estrutura que a serve, privilegia o desempenho por recursos internos.

Mas, surpreendentemente, o nº 2 do artº 21º permite às entidades gestoras que, sem prejuízo da manutenção da respectiva responsabilidade, subcontratem o desempenho das funções chave – entre as quais, está, precisamente, a de compliance – conquanto devam reavaliar periodicamente a qualidade da execução das funções subcontratadas.

A verdade é que esta faculdade surge enunciada sem restrições de qualquer espécie, tanto objectivas, com relação a tarefas ou áreas idóneas para o recurso a serviços de terceiros, como subjectivas, atinentes a atributos, circunstâncias ou singularidades das entidades gestoras. E não se desvenda, na letra da lei, o mínimo sinal capaz de suportar um entendimento limitador.

Neste cenário, creio justifi car se a aplicação do velho brocardo ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus, confi rmando se, neste domínio, uma excepção ao princípio geral – a qual,

64 Cfr. artº 24º, nº 6, do Aviso e artº 6º, nº 4, do Regulamento CMVM nº 2/2007.

65 Por contraposição com o que sucede com a função de auditoria segundo o que resulta do artº 22º, nº 6, do Aviso.Perante tal estado de coisas, a dúvida consistirá mesmo em saber se é ou não legítima a subcontratação de tarefas específi cas.O recurso aos critérios gerais da hermenêutica interpretativa induz uma resposta positiva, mas com a salvaguarda de se manter no seio da empresa o dever de supervisão sobre a tarefa contratada e a responsabilidade pela sua apropriada realização.

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exactamente por esse carácter, não é repercutível para fora do estrito âmbito em que está prevista e procede.

Terá o regulador confi ado no juízo prudente das entidades destinatárias quanto ao uso da faculdade conferida, sendo certo que tem sempre à mão o poder de intervir, modifi cando o regime estabelecido, quando entenda que a generosidade primitiva foi levada longe de mais!

41. Sucede que a gestão do risco de incumprimento, com os contornos da lei, arvora se como uma obrigação de cada uma das entidades sujeitas.

Para a satisfazer, como já visto, cabe uma enorme plêiade de diligências: defi nição de estratégias e políticas; estabelecimento de procedimentos e regras de conduta, identifi cação, monitorização e acompanhamento de factores de geração ou potenciação, criação de estruturas especifi camente vocacionadas para a prevenção, seguimento, controlo, mitigação e superação do risco …

O resultado é a institucionalização de uma teia de vínculos pessoais e funcionais que, arrancando embora de um dever geral imposto de fora, todavia se estabelecem, em vista a satisfazê-lo cabalmente, na ordem interna de cada entidade, entre ela e os seus colaboradores e órgãos de governo, segundo o modelo próprio de cada uma.

Daqui emanam obrigações comportamentais dos múltiplos envolvidos, de acordo com o estatuto próprio que lhes caiba.

Porque assim é, a responsabilidade correspondente apura se e exerce-se, por regra, no estrito quadro da própria entidade, o que exclui o poder de intervenção directa de terceiros, mesmo com competência de supervisão, salvo onde possa existir norma para tanto especifi camente habilitante.

Sem dúvida que o sistema de controlo de cumprimento está sujeito a sindicação, a qual, aliás, opera a diversos níveis. A benefício do que melhor se dirá abaixo, ela comporta, seguramente, a possibilidade e o dever – por isso o poder funcional – de verifi car e avaliar a consonância com os requisitos legais, quer no plano da tecitura, quer no do desempenho efectivo.

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Isto, por sua vez, pode envolver o contacto imediato entre sindicantes e colaboradores da sindicanda – com destaque para os que integram a função de cumprimento, maxime o respectivo responsável, em razão das atribuições executivas que lhes cabem –, visando a obtenção de informações, esclarecimentos, documentos ou elementos de outro tipo, de que necessitem para o conveniente escrutínio.

E é também normal e estimável um relacionamento de iniciativa contrária, designadamente quando esteja em causa melhor apurar o sentido com que deve ser entendida alguma norma, ou o conteúdo ou alcance de certos compromissos, para melhor prover à sua satisfação, bem como obter autorizações que são imprescindíveis à prática de actos pretendidos.

Nada disto, porém, é incompatível nem subverte a natureza intrínseca das funções e das responsabilidades, que se processam na órbita das entidades.

É, pois, também com este signifi cado que, com propriedade, se pode afi rmar o princípio da internalidade66.

42. Não obstante, o edifício assenta igualmente sobre um outro pilar nuclear, a independência, especialmente conexionada com a função de cumprimento.

É este, aliás, um dos aspectos a cujo respeito o teor literal dos textos normativos é mais explícito, apesar das suas diferenciadas expressões.

Assim, o artº 17º, nº 1, do Aviso comina às instituições o dever de estabelecer e manter uma função de «compliance» independente, formulação que é integralmente replicada na Norma Regulamentar, segundo o que decorre da conjugação dos nºs 1 e 3 do seu artº 20º, ao estatuírem que a entidade gestora deve estabelecer e manter na sua estrutura organizacional uma função de compliance, a qual, por

66 Nas fontes internacionais ele está particularmente presente na articulação da função de cumprimento (cf. v.g. o princípio 7 do documento do Comité de Basileia e o tópico 5 do documento do IOSCO, com as respectivas explicitações), cujos traços matriciais foram integralmente acolhidas nos normativos nacionais.

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sua vez, deve desempenhar as suas competências objectivamente e de forma independente.

Substantiva e inequivocamente com o mesmo sentido, conquanto dito de maneira diferente – e mais abrangente – estatui o artº 305º A, do CVM: o intermediário fi nanceiro deve estabelecer e manter um sistema de controlo de cumprimento independente (corpo do nº 2), para cuja garantia deve nomear um responsável … e conferir lhe os poderes necessários ao desempenho das suas funções de modo independente [nº 3, al. a)], dotando o para o efeito, de meios e capacidade técnica adequados [nº 3, al. b)]67.

Pressente se alguma difi culdade na articulação entre os princípios da internalidade e da independência. Mas a lei antecipa a chave do problema, enunciando os critérios qualifi cadores da independência, à luz dos quais ela deve ser avaliada, desconsiderando, para o efeito, a integração do sistema e, sobretudo, da função de cumprimento no quadro interno da própria empresa.

São eles: i) segregação funcional entre a área encarregada do controlo de cumprimento e as áreas de negócio, o que implica que o pessoal afecto à função de cumprimento, com o respectivo responsável à cabeça, não pode, por regra, ter intervenção no desempenho das actividades que materializam o objecto social, em qualquer das manifestações concretas que assumam68; ii) atribuição de capacidade de iniciativa própria à função de cumprimento; iii) livre e irrestrito acesso à informação relevante e às diversas instâncias da entidade, incluindo o órgão de administração; iv) adopção de métodos de remuneração que excluam confl itos de interesses.

67 Mais uma vez os textos portugueses estão em plena consonância com as fontes internacionais – cfr., v.g., o princípio 5 do documento do Comité de Basileia e o tópico 3 do relatório do OICV IOSCO. Cf. Tb. o artº 6º, nº 2, da Directiva 2006/73/CE.

68 Acolhe se a regra básica segundo a qual o vigiado não pode ser o vigilante.Porém, admite-se que em casos excepcionais possa ser dispensada esta segregação (vd. artº 17º, nº 3, do Aviso, artº 20º, nº 3, da Norma Regulamentar, e artº 305º -A, nº 4, do CVM).

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No capítulo seguinte, na análise da orgânica e dinâmica da função de cumprimento, será mister considerar com maior detalhe estes critérios, motivo pelo qual se dispensam agora maiores desenvolvimentos.

43. Cabe ainda um breve par de notas sobre a sindicabilidade do sistema que constitui outro dos seus princípios inspiradores e orientadores.

Tem, aliás, de peculiar o facto de contemplando a globalidade dos aspectos que o caracterizam e em que se corporiza, operar em distintos níveis.

Trata-se, é claro, de o sistema de controlo fi car submetido, no seu conjunto, a escrutínio, que se destina a verifi car se satisfaz as exigências normativas, tanto no plano da concepção e institucionalização, como no do funcionamento, e está, por isso, em condições de oferecer uma resposta adequada, potenciando a consecução dos objectivos em vista, se bem que tendo em conta as particularidades da empresa em que é escrutinado.

Este ponto é de maior importância!Viu-se, com efeito, que o sistema é caracterizado pela

versatilidade, que confere a cada entidade liberdade para o organizar segundo as suas próprias opções, circunstâncias e necessidades, sem obediência vinculada a estereótipos previamente delineados.

Tal signifi ca que, em matéria do sistema de controlo de cumprimento, as entidades sujeitas estão essencialmente adstritas a obrigações de resultado. E mesmo na área em que se consagra uma obrigação de meio, traduzida na criação de uma estrutura especifi camente vocacionada para o exercício executivo da função de cumprimento, ainda assim estamos perante um vínculo de carácter essencialmente instrumental, para cuja satisfação é igualmente deixada às instituições uma ampla margem de discricionariedade.

Ora, a sindicabilidade do sistema não prescinde nem afasta esta realidade e, antes, intersecta-se com ela, o que implica que, nas avaliações a que houver lugar, tem de ser convenientemente atendida, inspirando os correspondentes processos.

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Isto esclarecido, são, realmente, múltiplos, os mecanismos de acção, impulsionáveis a partir de dentro e de fora da entidade, consubstanciando, consequentemente, conforme os casos, meios de auto-sindicação e de hetero-sindicação.

Assim, cabe, desde logo, ao próprio órgão de administração acompanhar e proceder à revisão do sistema de controlo, o que mais não é do que escrutinar se ele se mantém actualizado e operante, introduzindo, se necessário, os ajustamentos ou mudanças para o efeito69.

Por outro lado, é inerente à função de cumprimento – e, por isso, aos seus agentes, com saliência para o máximo responsável – o acompanhamento e a avaliação regular da adequação e da efi cácia das medidas e procedimentos adoptados para detectar qualquer risco de incumprimento … bem como das medidas tomadas para corrigir eventuais defi ciências no respectivo cumprimento70.

De igual sorte, compete à função geral de riscos e à auditoria interna, no quadro das suas atribuições correntes, assegurar a efectiva aplicação do sistema de gestão de riscos e de controlo interno, através do seu acompanhamento contínuo, emitindo as recomendações que forem ajustadas, o que, naturalmente inclui o sistema de controlo e a função de cumprimento como uma das suas vertentes basilares. Devem, aliás, elaborar relatórios, de periodicidade pelos menos anual, dirigidos aos órgãos de administração e fi scalização, sobre a actividade desenvolvida e os respectivos resultados71.

Acresce que, num afl oramento e concretização específi cos do dever geral de seguimento e avaliação a cargo da administração, há lugar à apresentação, às autoridades de supervisão, de um relatório anual de controlo interno, o qual, naquilo que aqui importa, toma

69 Cfr. v.g. os artºs 18º e 23º do Aviso, o artº 305º-D, nº 2, do CVM, e os artºs 10º e 14º da Norma Regulamentar.

70 Ex vi dos artºs 17º, nº 1, al. a), do Aviso, 305º-A, nº 2, al. a), do CVM, e 21º, nº 5, al. a), da Norma Regulamentar.

71 Vd. artºs 16º, nº 1, als. a) e b), e 22º, nº 1, do Aviso, artºs 305º-B, nºs 2 e 3, e 305º-C, nº 1, do CVM, e artºs 17º, nº 7, e 19º, nºs 6 e 7, da Norma Regulamentar.

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em conta o relatório do responsável da função de cumprimento e aprecia o estado do sistema de controlo do risco72.

E, no caso das instituições de crédito e sociedades fi nanceiras, esse relatório é objecto de parecer do órgão interno de fi scalização, o que necessariamente apela ao seu próprio e autónomo escrutínio, pelo qual, de resto, é responsável nos termos gerais aplicáveis ao exercício da fi scalização.

Com base nos relatórios que recebam, ou, independentemente deles, por iniciativa autónoma, no estrito exercício das faculdades de que estão investidas, as respectivas autoridades podem sempre, quando o entendam, promover e praticar as diligências de supervisão que houverem por bem, em vista à certifi cação da existência e adequação do sistema de controlo de cumprimento nas entidades supervisionadas73.

V – ORGÂNICA E DINÂMICA DA FUNÇÃO DE CUMPRIMENTO

a) Sequência

44. O caminho até aqui percorrido evidencia que o desempenho da função de cumprimento, correspondendo embora a uma missão que é comum e transversal a toda a corporação, assenta, todavia, primordialmente, numa estrutura organizada e vocacionada para o seu exercício executivo.

Trata-se, agora, de detalhar algo mais o respectivo enquadramento, com específi ca referência às atribuições, deveres e responsabilidades.

Prevalecem, a propósito, as já sobejamente citadas disposições

72 Cfr. artºs 25º do Aviso, 11º do Regulamento CMVM nº 2/2007, e 23º da Norma Regulamentar.

73 Tudo isto está em consonância com as orientações internacionais (vd., nomeadamente princípios 1, 5, 7 e 8 do documento do Comité de Basileia e tópicos 2, 5 e 6 do relatório do IOSCO).

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dos artºs 305º-A do CVM, 17º do Aviso nº 5/2008, e 20º da NR nº 8/2009-R.

Conquanto não absolutamente justaponíveis, coincidem genericamente e no fundamental, sobrando, simplesmente, diferenças de pormenor e sem particular relevo74.

Consentem, pois, uma abordagem global e unitária, que se ensaiará de imediato.

b) Estrutura

45. Acolhendo plenamente as orientações dos instrumentos internacionais que os inspiram, os distintos diplomas pátrios modelam a organização da função de cumprimento na confl uência das seguintes coordenadas: injuntividade quanto à criação; fi xação de alguns imperativos de estrutura que confi guram um conteúdo mínimo vinculativo; e liberdade de organização.

Dito de outra maneira: cabe a cada instituição defi nir e concretizar os parâmetros organizativos e de funcionamento da estrutura dedicada à função de cumprimento, que está obrigada a estabelecer e manter, ajustando-a, segundo o seu melhor arbítrio, ao próprio conceito de governo da empresa, e em razão das suas características e dimensão e da natureza das actividades desenvolvidas, conquanto o que resulta deve acomodar todos os requisitos específi cos que a lei enuncia.

Manifestam se, assim, nesta sede, de um modo particularmente exuberante e sensível, os princípios da legalidade, versatilidade e proporcionalidade, aludidos na alínea fi nal do capítulo precedente.

O dever de institucionalização da função de cumprimento estriba se no texto do corpo do nº 2 do artº 305º-A do CVM e, se é possível dizê lo, de uma forma ainda mais clara e expressiva, no corpo do nº 1 do artº 17º do Aviso nº 5/2008 e nº 1 do artº 20º da NR nº 8/2009-R.

74 As quais, sem embargo, se assinalarão no texto quando se entenda que isso, realmente, se justifi ca.

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A satisfação deste dever pelas entidades sujeitas comporta, para todas elas: i) a formalização da constituição da função em processo apropriadamente documentado [artºs 17º, nº 2, al. a), do Aviso, e 20º, nº 6, da Norma]; ii) a nomeação de um responsável máximo, com a inerente conferência de poderes apropriados ao exercício das respectivas competências, de modo independente [artºs 305º-A, nº 3, al. a), do CVM, 17º, nº 2, al. b), do Aviso, e artº 20º, nºs 2 e 3, da Norma]; iii) a dotação de meios e capacidades técnicas adequadas, o que, designadamente, envolve a afectação de recursos humanos competentes e qualifi cados, com capacidade para a compreensão clara do seu papel e responsabilidades [artºs 305º-A, nº 2, al. b), do CVM, 17º, nº 2, al. c), do Aviso, e 20º, nº 2, da Norma]; iv) a inserção, no quadro da função, dos procedimentos do seguimento e controlo relativos à prevenção do branqueamento de capitais e do fi nanciamento do terrorismo [artºs 305º-A, nº 2, al. c), do CVM, 17º, nº 1, al. c), do Aviso, e 21º, nº 5, al. a), da Norma], o que, apesar de surgir nos normativos aplicáveis enquadrado nas atribuições da função, não deixa de constituir um requisito de carácter organizativo75.

Além disso, para a generalidade das empresas acrescem a necessidade de garantir que as pessoas encarregadas da função não estão envolvidas na prestação de serviços ou exercício de actividades que controlam, bem como a de se adoptar um método de remuneração que não seja objectivamente susceptível de comprometer a independência do desempenho das atribuições requerida ao pessoal afecto [artºs 305º, nº 3, als. c) e d), do CVM, 17º, nº 2, als. d) e f), do Aviso, e 20º, nº 3, da Norma]76.

Para lá deste núcleo de exigências a que é mister dar guarida, sobra, todavia, um amplíssimo espaço de liberdade de opções e de acção, aliás com múltiplas manifestações.

75 Entretanto, cfr. agora também o Aviso do Banco de Portugal nº 5/2013, publicado no Diário da República, 2ª Série, de 18 de Dezembro, artºs 41º e segs., maxime artº 43º.

76 Estes requisitos podem, todavia, ser dispensados em casos muito delimitados, conforme se vê dos artºs 305º-A, nº 4, do CVM, 17º, nºs 3 e 4, do Aviso, e 20º, nº 3, da Norma.

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Bastará ter presente, v.g., que nada está determinado quanto à localização da área encarregada da função na orgânica global da instituição77; não se assume nenhuma restrição quanto à possibilidade de a estrutura criada poder igualmente controlar outros riscos, nomeadamente os que apresentam maior proximidade, afi nidade ou complementaridade com o de cumprimento; não se reclamam habilitações curriculares específi cas para o responsável a nomear nem para nenhuma das demais pessoas afectas; não se estabelecem formas vinculadas de interacção com as demais estruturas ou, sequer, de procedimentos da função de cumprimento na realização das suas competências.

Doutro passo, é a própria lei que, em alguns pontos concretos, abre alternativas que, no entanto, as entidades sujeitas podem ou não aproveitar.

É assim, como já visto, com a possibilidade de, em certos casos – embora muito contidos – se admitir a concomitância da função de cumprimento com o exercício de outras atribuições respeitantes às áreas de negócio, faculdade que, obviamente, as instituições não carecem de exercer. E é assim também com a oportunidade oferecida às entidades integrantes de um mesmo grupo de poderem utilizar serviços comuns para o desenvolvimento das responsabilidades atribuídas à função de cumprimento (vd. artºs 24º, nº 6, do Aviso, 6º, nº 4, do Regulamento CMVM nº 2/2007, e 21º, nº 3, da Norma).

Com tudo isto, resulta, no entanto, seguro e essencial que a função deve corporizar-se numa unidade orgânica, mais ou menos complexa segundo o modelo concretamente adoptado e

77 Note-se, sobremaneira, que, apesar de se cometer à estrutura funcional de cumprimento – como abaixo melhor se elucidará – e, em particular ao seu responsável, a obrigação de prestação de aconselhamento à gestão para garantia de procedimentos de conformidade, bem como a de informação imediata de incidências relevantes, tal não implica que ela se situe, necessariamente, na hierarquia da empresa em ligação directa ao órgão de administração. Nada obstará, nomeadamente, a que se enquadre no âmbito da estrutura que corporize a função geral de riscos.Fundamental é que se conserve autónoma das áreas que controla e possa actuar com a independência que é sua matriz.

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documentado na instituição a que respeita, a qual suporta a gestão quotidiana, executiva, do risco de incumprimento, que se reivindica seja independente.

A este propósito, cabe um par de observações adicionais.

46. Segundo o que já fi cou apurado, o arquétipo legal repousa sobre a ideia da internalidade da função de cumprimento, o que está em consonância com a concepção plasmada nas fontes internacionais78.

Só no caso das entidades gestoras de fundos de pensões surge confi gurada a possibilidade de recurso à subcontratação externa, o que, todavia, reveste um carácter manifestamente excepcional.

Ora, este modelo convoca o estabelecimento de vínculos entre a instituição e as pessoas adstritas ao exercício da função, incluindo o responsável escolhido, que correntemente se situam no âmbito da relação laboral, mesmo que com características peculiares79.

Sucede que, como é sabido, a relação laboral tem com uma das suas matrizes a autoridade do empregador sobre o empregado, com a contrapartida da subordinação deste àquela, o que, v.g., se materializa no poder de dar ordens e instruções – cfr. artº 128º, nº 1, al. e), e nº 2, do Código do Trabalho.

Segue-se daqui, como corolário, a necessidade de compatibilizar o requisito da independência com a natureza do vínculo que liga a instituição às pessoas por ela encarregadas do desempenho da função.

Há, no entanto, na lei diversos sinais e elementos que contribuem para esclarecer o modo como há que encontrar essa harmonização.

A primeira nota a registar é a de o requerimento da independência se dirigir, prioritária e prevalentemente, à empresa sujeita,

78 Esta mesma solução está expressamente acolhida no citado Aviso do BP nº 5/2013, aí especifi camente reportada a quem for o responsável pela actividade de prevenção do branqueamento de capitais e fi nanciamento do terrorismo [cfr. artº 43º, nº 3, al. a)].

79 Será, designadamente, o caso da utilização da fi gura da comissão de serviço, actualmente prevista e regulada nos artºs 161º e segs do Código do Trabalho.

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respeitando à própria organização da função que lhe incumbe instituir, como inequivocamente se expressa nos próprios textos normativos (cfr. artºs 305º-A, nº 2, proémio, do CVM, e artº 17º, nº 1, proémio, do Aviso).

Sem dúvida que o exercício da função deve, ele mesmo, processar-se de forma independente. Mas, realmente, só assim poderá efectivamente suceder se ela se encontrar estruturada e implementada em condições que o permitam.

Para alcançar esse desiderato, a lei avança um conjunto de critérios de observação vinculada, exactamente por se entender que isso é indispensável e determinante na garantia de que se reúnem os ingredientes mínimos para que a função de cumprimento possa realizar a sua missão.

São de diversa índole e já atrás se identifi caram: a autonomização e separação face às áreas funcionalmente ligadas à prossecução do objecto social; o acesso a toda a informação pertinente; a existência de meios técnicos e humanos apropriados; o desligamento da remuneração de factores normalmente susceptíveis de comprometer a objectividade do desempenho.

Sem embargo, a verdade é que a formulação do comando de base, no modo como foi elaborada e se apresenta, tem uma virtuosidade acrescida: não se compadece com a prática pela empresa, seus órgãos e quadros dirigentes competentes de actos que obstaculizem indevidamente a prestação da função.

Por isso, concretizando um aspecto que é de particular sensibilidade, nem devem ser dadas ordens ou instruções que a impeçam ou obstruam na realização da respectiva missão, nem, se acontecerem, são legítimas.

Estão, aliás, preenchidas todas as condições que suportam a aplicação, até por maioria de razão, da estatuição contida no artº 127º, nº 1, al. e), do Código do Trabalho.

Temos, pois, um lastro sufi cientemente sólido para ancorar a independência da função de cumprimento, que não colide com a inserção dos recursos humanos afectos no quadro geral da empresa, ao abrigo de vínculos laborais, com a plêiade de deveres que eles comportam.

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Postas assim as coisas, a equipa, com o respectivo responsável à cabeça, está incumbida de conduzir a gestão do risco de incumprimento com o objectivo nuclear de promover, nos diversos planos em que se concretiza e projecta a sua intervenção, que a empresa aja em conformidade com os normativos que a regem.

Cabe-lhe, no entanto, fazê-lo, sem descurar as fi nalidades, políticas, estratégias e as opções da empresa, defi nidas pelos órgãos competentes, segundo o modelo de governo adoptado.

c) Atribuições e deveres

47. Em razão dos objectivos a atingir, confere-se à função de cumprimento – e, concretamente, à estrutura em que assenta – uma signifi cativa panóplia de atribuições, que lhe incumbe exercer.

Na respectiva arquitectura e segundo claramente se expressa nos conhecidos textos normativos de referência, a lei segue um duplo critério: por um lado, defi ne, em termos gerais, como pedra angular, a gestão do risco de incumprimento, nas diversas etapas e manifestações em que se materializa; sem prejuízo, enumera, por outro lado, um conjunto de competências específi cas que, por assim dizer, se arvoram como o núcleo mínimo da própria matriz, as quais, independentemente da maneira como a função se organiza e desenvolve em cada instituição, cabe, necessariamente, assegurar.

É o que, inequivocamente, decorre do recurso às expressões «pelo menos» e «nomeadamente» usadas na antecâmara da enumeração e que, consequentemente, lhe conferem um carácter enunciativo (cfr. respectivamente, o artº 305º-A, nº 2, proémio, in fi ne, do CVM, e artº 17º, nº 1, proémio, in fi ne, do Aviso).

Mas importa recordar que a identifi cação, seguimento e controlo do risco em causa consubstanciam um imperativo legal dirigido às entidades sujeitas, para cuja satisfação, precisamente, se constitui a função de cumprimento.

Não está, por isso, na disponibilidade dela a opção de actuar ou não em resultado de ponderações de oportunidade ou outras. Pelo contrário, estamos perante um exercício vinculado, de sorte

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que cada atribuição tem sempre por contrapartida o correspondente dever de a realizar. Sobra, sim, por regra, um espaço relevante quanto ao modo de desempenho, que, em boa medida, corporiza e é corolário do princípio da versatilidade, já afl orado.

Ainda assim, a análise das competências que surgem autonomizadas e sucessivamente listadas suscita umas quantas observações.

Com efeito, a primeira delas mais não faz, em rigor, do que replicar a atribuição geral, espelhando-a em alguns dos seus aspectos mais signifi cativos, sem, contudo, nada acrescentar. Trata se, realmente, de fazer o acompanhamento e avaliação regular da efi cácia das medidas e procedimentos adoptados para detectar qualquer risco de incumprimento, bem como do que é feito para ultrapassar defi ciências detectadas80 81.

Mas isto, como está bem de ver, situa se no cerne do sistema de controlo, como abundantemente se colhe da exposição precedente.

De todo o modo, vale a pena destacar que, na falta de outro normativo que concretamente a referencie, é aqui que, fundadamente, se estriba a competência da função para fazer o seguimento das acções das autoridades de supervisão, tanto na avaliação da conformidade dos procedimentos e práticas instituídas no supervisionado, como, sobretudo, quando, em consequência ou independentemente delas surgem intervenções dirigidas à introdução de modifi cações no status quo, por meio de determinações, orientações ou recomendações endereçadas ao visado.

As coisas passam-se, porém, diversamente quanto ao restante da enumeração.

80 Vd. tb. o artº 20º, nº 5, al. a), da Norma Regulamentar. 81 Sendo que um dos pontos que imediatamente concretiza esse exercício é,

sem dúvida, «a avaliação dos possíveis impactos resultantes de alterações ao regime legal aplicável nas operações», que, por isso, não justifi caria a referência peculiar que lhe é feita, no artº 20º, nº 5, al. b), da Norma Regulamentar, aliás diferentemente do que sucede com o artº 305º-A do CVM e com o art 17º do Aviso.

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48. O destaque fundamental vai, aí, para o papel a desempenhar na articulação com os órgãos dirigentes e de fi scalização da entidade, quer no plano da prevenção, quer no da reparação de quaisquer situações de incumprimento, o qual se exprime em diferentes momentos e se corporiza em distintos deveres específi cos: i) aconselhamento para efeitos do cumprimento das obrigações legais; ii) reporte imediato de indícios de violações susceptíveis de constituir um ilícito, para a instituição, seus dirigentes ou colaboradores, fazendo os incorrer em medidas sancionatórias82; iii) elaboração, com periodicidade pelo menos anual, de um relatório do exercício da função, que identifi que os incumprimentos ocorridos e as medidas adoptadas para os corrigir83.

Trata-se, afi nal de contas, de uma solução que é tributária da ideia de que as obrigações relativas ao controlo das instituições e, nele, das que respeitam ao risco de incumprimento têm os órgãos sociais como seus primeiros destinatários. Daí a necessidade de densifi car os mecanismos que lhes possibilitem o conhecimento atempado das incidências e ocorrências relevantes para, sendo o caso, decidirem e determinarem as providências apropriadas.

Por assim ser, e conquanto a formulação dos textos normativos induza a normal iniciativa da estrutura encarregada da função de cumprimento e do seu máximo responsável na satisfação destes desideratos – o que, sobremaneira, se manifesta no imediato reporte de ocorrências e na apresentação dos relatórios com as periodicidades defi nidas – claro é que prevalece o poder de pedir conselhos ou informações por parte de todos os dirigentes e membros do órgãos de fi scalização a quem são devidos.

82 No CVM e no Aviso fala-se expressa e exclusivamente em ilícitos de natureza contra-ordenacional, mas é óbvio que, por maioria de razão, estão incluídos todos os de carácter criminal, que são mais graves. É, por isso, mais correcto o texto da Norma Regulamentar.

83 Cfr., respectivamente, o artº 305º-A, nº 2, als. b), d) e f), do CVM, e o artº 17º, nº 1, als. b), d) e f), do Aviso. Vd., tb. o artº 20º, nº 5, al. d), e nº 7, da Norma Regulamentar.

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De resto, igualmente neste campo, fi xados os parâmetros gerais, a lei deixa à discricionariedade das instituições a maneira de os concretizar, prescindindo de esquemas padronizados de procedimento.

Noutro plano, submete-se também, especialmente, à função de cumprimento a matéria da prevenção do branqueamento de capitais e do fi nanciamento do terrorismo, com projecção no acompanhamento e avaliação dos procedimentos internos estabelecidos, na centralização da informação pertinente, na identifi cação das operações suspeitas e na respectiva comunicação às autoridades competentes – ex vi dos artºs 305º-A, nº 2, al. c), do CVM, 17º, nº 2, al. c), do Aviso, e 20º, nº 5, al. c), da Norma Regulamentar.

Não fi ca afastada, repare-se, a faculdade de as empresas instituírem núcleos ou equipas de trabalho estritamente vocacionadas para a realização das tarefas que competem, o que frequentemente sucederá sobretudo em entidades com recorrente recepção de fundos de terceiros, sob qualquer modalidade precisamente em razão da amplitude e da multiplicidade das obrigações a satisfazer e do correspondente empreendimento a realizar84.

84 Neste domínio, são, realmente, muito vastas e intensas as exigências normativas que sujeitam a generalidade das instituições – aliás predominantemente determinadas por comandos internacionais vinculativos, designada mas não exclusivamente com origem na União Europeia –, o que comummente implica a disponibilização e afectação de meios humanos e técnicos apreciáveis, em ordem a potenciar respostas ajustadas à dimensão e profundidade do que é requerido.Cfr., a propósito, a Lei nº 25/2008, de 5 de Junho e, agora, o Aviso do BP nº 5/2013, já citado.

Precisamente neste Aviso, aliás, no seguimento de uma opção já acolhida em textos regulatórios anteriores – v.g. o Aviso do BP nº 9/2012, publicado no Diário da República, 2ª Série, de 29 de Maio –, assume-se explicitamente a possibilidade de, no quadro da função geral de cumprimento, haver equipas dedicadas à temática da prevenção de branqueamento de capitais e fi nanciamento do terrorismo, incluindo a possibilidade de designação de responsável directo distinto do responsável geral da função de cumprimento, ainda que com reporte a este.

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Mas impõe-se a respectiva inserção no âmbito da estrutura que suporta a função de cumprimento, ainda que sob a confi guração que a empresa houver por mais adequado, segundo o seu próprio modelo geral de governo.

49. Está ainda consignada no CVM [artº 305º-A, nº 2, al. e)], e no Aviso [artº 17º, nº 1, al. e)] a manutenção de um registo dos incumprimentos e das medidas propostas e adoptadas para os superar85.

Impõe-se, porém, a propósito, um conjunto de notas que demarcam muito signifi cativamente o alcance das normas em questão e, consequentemente, reorientam o seu sentido, com um resultado substancialmente diferente do que aprioristicamente pareceria.

Desde logo, do próprio teor literal de ambos os indicados preceitos resulta inequivocamente que o registo só pode dizer respeito às situações de incumprimento que sejam reportadas ao órgão de administração no quadro defi nido na alínea que precede cada um dos respectivos diplomas.

Traçada esta primeira fronteira, cabe, todavia, refl ectir sobre o que deva considerar-se, efectivamente, incumprimento, justifi cativo de ser relevado.

Abrem-se aqui duas possibilidades.Numa perspectiva mais radical, o incumprimento pode

ser visto como qualquer desconformidade com as normas, independentemente de qual seja a sua causa, natureza, tipologia e circunstância, abarcando, tanto os casos de desajuste estrutural ou sistémico, motivados pelo facto de se terem instituído políticas, processos, procedimentos ou práticas contrários ao Direito (violação por acção) ou, ao contrário, não ter sido adoptado o que era devido (violação por omissão), como, igualmente, os de carácter meramente pontual, resultantes de se ter actuado à revelia dos padrões e critérios apropriadamente defi nidos.

85 A estatuição não tem, porém, paralelo na Norma Regulamentar.

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Contudo, se nos ativermos ao que são a razão de ser, os fundamentos e os objectivos do sistema de controlo, estes últimos entendimento e conclusão mostram se manifestamente excessivos e desadequados.

Com efeito, sem prejuízo de uma actuação isolada não ser, em absoluto, despicienda, podendo, inclusivamente, convocar a eventualidade de consequências sancionatórias que penalizam a instituição, o que verdadeiramente determina e ancora a função de cumprimento é a preocupação de dotar cada entidade sujeita de mecanismos especialmente dirigidos à prevenção, seguimento, controlo e superação de situações que reconduzem um desempenho recorrente e institucionalmente irregular da actividade.

Por assim ser, tenho, solidamente, como mais ajustado, restringir os incumprimentos elegíveis às desconformidades que projectam défi ces da empresa.

É, de resto, esta a conclusão que melhor se harmoniza, por um lado, com o sentido do artº 3º, nº 1, al. d), do Aviso e, por outro, se concatena com o requerimento da defi nição de medidas propostas e adoptadas para ultrapassar o incumprimento, naturalmente ligado à ideia de que, na falta delas, expectavelmente se poderá repetir.

Como quer que seja, importa sublinhar que, ainda aqui, não se consagra nenhum estereótipo de registo, pelo que permanece na esfera de cada entidade uma ampla discricionariedade quanto às formas de o concretizar e traduzir.

Mais importante é, todavia, assinalar o seguinte.Em nenhuma circunstância os registos de incumprimento,

independentemente de forma que, concretamente, revistam, podem ser assumidos ou valorados como confi ssão dos factos que exprimem, nomeadamente para efeitos de suporte de processos contra-ordenacionais ou criminais, sob pena de desconformidade com a lei processual penal e a própria Constituição da República (cfr., v.g., os artºs 141º, 344º e 345º, do Código de Processo Penal e artº 32º da Constituição)86.

86 Sobre a aplicação da lei processual penal ao processo de contra-ordenação, vd. o artº 41º do Dec.-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro.

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50. O acesso à informação, revestindo embora um carácter instrumental, constitui-se como um vector crucial para que a função de cumprimento possa corresponder ao que dela é esperado.

Não admira, assim, que mereça um destaque específi co em todos os normativos pertinentes, aliás em plena harmonia com os textos fonte.

Está em causa o conhecimento dos factos que, de alguma maneira e nos distintos momentos e circunstâncias em que ocorram, colidem ou interferem com o risco de incumprimento, exactamente para que, uma vez identifi cados, seja possível fazer as adequadas monitorização e gestão.

Para o exponenciar, é mister que sejam operacionais ambas as vias do circuito. Por um lado, às diferentes áreas da empresa caberá, por seu próprio impulso, veicular, para a função de cumprimento, atempadamente, toda a informação necessária; por outro, sem embargo, a função de cumprimento conserva a faculdade de, por sua iniciativa, a solicitar a qualquer destinatário, quer para detecção de situações que não lhe foram reportadas, quer, simplesmente, para o melhor esclarecimento do que lhe tenha sido comunicado.

Neste quadro, à função e, em particular, ao seu responsável competirá defi nir e organizar canais de interacção e procedimentos a adoptar – consensualizando-os, quanto possível, porque esse método, consabidamente, potencia, nas mais das vezes, a efi cácia das opções.

51. Outra chave do sucesso da função de cumprimento – factor crítico e verdadeiro catalisador da efi ciência e efi cácia da sua acção, com projecção evidente nos planos mais sensíveis da gestão do risco alvo – reside, de igual sorte, na intensidade e na densidade do relacionamento que se estabeleça e pratique – especialmente através do respectivo responsável máximo – com a administração e a alta direcção da empresa.

Com efeito, quer, sem dúvida, a introdução de medidas dirigidas a sanação de desconformidades detectadas, quer a própria implementação do que seja imprescindível para que a entidade se adeqúe a novos imperativos convocam, frequentemente, a

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necessidade de tomada de opções e decisões que transcendem a esfera de competência da função de cumprimento, ainda que, seguramente lhe incumba promovê-las87.

Torna-se apodíctico que a intervenção da administração ou, pelo menos, de áreas ou sectores da alta direcção – segundo o modelo concreto de governo da entidade e as questões que estiverem em causa em cada circunstância – mais do que traduzir o seu desejável envolvimento e empenho nas temáticas do cumprimento, confi gura se como uma real indispensabilidade – conditio sine qua non – para que se lhes possa dar adequado provimento.

É exactamente neste quadro que se intui a importância da proximidade e interacção entre a função de cumprimento e os centros do poder corporativo, para maximizar a oportunidade e tempestividade das decisões e lograr o comprometimento de toda a organização na consecução dos objectivos que, especifi camente, se defi nam.

Trata-se, pois, de algo que é verdadeiramente instrumental do mais cabal exercício da função de cumprimento e que, correspondentemente, a deve mobilizar em permanência.

52. Entretanto, é notória a tendência para densifi car a panóplia de atribuições específi cas cometidas à função de cumprimento por requerimentos avulsos em normativos dispersos, o que, aliás, sucede mesmo em áreas que se podem considerar para além do seu comum campo de intervenção.

É o que se verifi ca em matéria de participação de certas irregularidades graves, em consonância com o que passou a estabelecer-se no artº 116º-G, nº 3, do RGICSF, introduzido pelo Dec.-Lei nº 31-A/2012, de 10 de Fevereiro.

E é também o que ocorre em sede de avaliação das políticas de remuneração praticadas nas entidades sujeitas ao Aviso do Banco

87 Será bastante ter presente que, recorrentemente, se impõem desenvolvimentos ou, mesmo, alterações operacionais e tecnológicas que implicam novos encargos (custos) signifi cativos e requerem mudanças ou rupturas com práticas instituídas.

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de Portugal nº 10/2011, publicado no Diário da República, 2ª Série, de 9 de Janeiro, ao abrigo do artº 6º do Dec.-Lei nº 88/2011, de 20 de Julho (cfr., v.g., o artº 14º, n º 2, deste Aviso).

d) Responsabilidades

53. Apesar de prosseguir e tutelar interesses que não se confi nam na estrita órbita da entidade em que se integra, a função de cumprimento, no arquétipo legal, é, pois, uma função da empresa e um função para a empresa, erigida e vocacionada em ordem à gestão de um risco que o desenvolvimento da respectiva actividade necessariamente convoca.

A estrutura de suporte, por seu turno, arvora-se como o seu instrumento executivo e, mau grado a independência reivindicada quanto à sua construção e funcionamento, assume predominantemente o papel de apoio privilegiado da administração da empresa na satisfação de um dever de que está especifi camente incumbida como sua representante orgânica.

Isto signifi ca que as defi ciências que possam verifi car-se na organização ou no exercício da função se projectam imediatamente sobre a própria entidade, como falhas suas, expondo-a às consequências que legalmente se justifi quem em atenção da natureza e da dimensão do desajuste.

O corolário natural é o da responsabilidade inerente se constituir, expressar e materializar na ordem interna, com subordinação aos canais e vínculos hierárquicos que emergem do modelo de governo acolhido. E assim é, realmente!

Desde logo, é aos órgãos tutelares da entidade em que está inserida, com destaque para a respectiva administração, que a estrutura dedicada à função de cumprimento presta contas da actividade que desenvolve e dos procedimentos que pratica, o que traduz o modo como acompanha e controla o risco, de cuja gestão está especialmente encarregada. Além disso, onde e quando se constatarem comportamentos censuráveis, activos ou omissivos, é ainda na esfera da empresa que pode ter lugar a reparação, pelo recurso aos meios típicos da relação estabelecida.

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Assim, se, como será comum, se tratar de vínculos de trabalho subordinado, é a disciplina da lei laboral que rege. Em outras situações, quando possíveis, prevalece o regime próprio da relação subjacente.

Não se confi gura, pois – pelo menos no actual estado de evolução –, responsabilidade directa dos agentes da função de cumprimento perante terceiros externos à empresa, aqui incluídas as entidades de supervisão.

A mais do que está dito, esta asserção fundamenta-se também, solidamente nas seguintes considerações complementares.

Em primeiro lugar, como é sabido, a regra geral é a de o exercício de qualquer função no âmbito de uma pessoa colectiva apenas suscitar a correspondente responsabilidade individual perante ela, precisamente suportada na relação estabelecida entre uma e outra.

Para que seja de outro modo, constituindo-se o agente na contingência de responder para lá das fronteiras da entidade, é preciso que exista norma habilitante para o efeito88.

Mas a verdade é que, de todo, isso não sucede neste domínio.Muito sintomático é, noutro plano, o facto de certas atribuições

cometidas ao responsável de cumprimento, particularmente propícias à conformidade de uma relação imediata com supervisores, serem, todavia, legalmente estabelecidas em termos de se conterem no estrito circuito interno das instituições.

É o que, concretamente, se verifi ca com o dever de elaboração de relatórios da função e também o que ocorre quanto à obrigação de denúncia de situações graves, segundo o estatuído no já citado artº 116º-G, nº 3, do RGICSF.

Tal não prejudica, porém, a sujeição individual a sancionamento contra-ordenacional quando o comportamento avaliado consubstancie o cometimento de infracções dele justifi cativas.

Mas as coisas passam-se, então, nos termos que são genericamente aplicáveis aos agentes dos factos geradores ou, onde possa ser o caso, aos responsáveis que, conhecendo a prática da

88 É o que, v.g., sucede com os titulares dos órgãos sociais nas sociedades comerciais, segundo o que emerge dos artºs 78º, 79º e 81º do Código das Sociedades Comerciais. Cfr. tb. o artº 82º, nº 2.

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infracção, não ajam oportunamente para prover a sua sanação, sem haver, todavia, aqui, qualquer singularidade própria da função de cumprimento (vd. v.g., artºs 401º do CVM, 204º e 206º do RGICSF e 206º e 207º do Dec.-Lei nº 94-B/98, de 17 de Abril, relativo à actividade seguradora, cujo regime contra-ordenacional é, no entanto, extensivo à actividade de gestão de fundos de pensões, por expressa remissão do artº 96º, nº 2, do Dec.-Lei nº 12/2006, de 20 de Janeiro).

VI – REGIME SANCIONATÓRIO

54. As considerações acabadas de expor abrem espaço ao escrutínio, sumário, do regime sancionatório aplicável às infracções que respeitem ao sistema de controlo de cumprimento, encarado na sua globalidade.

Ora, a propósito, a primeira e basilar constatação é a de em nenhum dos normativos pertinentes se contemplar qualquer peculiaridade a ter em conta, seja quanto à tipologia das infracções ou à eleição das condutas como tal qualifi cáveis, seja quanto à moldura punitiva correspondente ou, sequer, quanto a aspectos de índole processual.

Com efeito, em vão se percorrerá o quadro sancionatório erguido pelo CVM para aí encontrar alguma réplica ou projecção do que concretamente se estatui no seu artº 305º-A.

Assim também é com o Aviso e a Norma Regulamentar, com respeito aos respectivos artºs 17º e 20º. E o mesmo se verifi ca com relação aos outros dispositivos relevantes que modelam ou exprimem o edifício do sistema de controlo de cumprimento89.

O corolário imediato é a aplicação dos regimes gerais, à luz dos quais se devem sindicar, qualifi car e enquadrar as desconformidades

89 O que, note-se, não colide com a disciplina própria de cada uma das múltiplas obrigações que oneram as instituições no desempenho das suas actividades, ainda quando, relativamente a elas, haja atribuições específi cas cometidas ao sistema de controlo ou à função de cumprimento.É o que, v.g., acontece em sede de prevenção de branqueamento de capitais e de fi nanciamento do terrorismo, segundo o que actualmente se consagra na Lei nº 25/2008, de 5 de Junho (cfr. artºs 45º e segs., maxime, 53º e segs.).

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que se revelem no paradigma ou no funcionamento do sistema em cada entidade.

Neste plano, é mister, no entanto, uma advertência liminar.Com efeito, o CVM estabelece, ele próprio, o quadro

sancionatório da disciplina que consagra. Mas não é assim com o Aviso nem com a Norma Regulamentar.

Nestes dois casos, tratando-se de direito derivado, acolhem-se à sombra dos diplomas fundamentantes que os legitimam e que, aliás, expressamente invocam – como é comum – nos respectivos preâmbulos. São, então, o RGICSF e o Dec.-Lei nº 12/2006, já acima invocado, que regula a constituição e funcionamento dos fundos de pensões e das suas entidades gestoras bem como a supervisão de uns e outras.

Entre eles, todavia, há também uma diferença quanto à matéria que aqui interessa. O RGICSF rege-a directamente; o Dec.-Lei nº 12/2006, por expressa determinação do seu já citado artº 96º, manda aplicar genericamente o regime contra-ordenacional fi xado no Dec.-Lei nº 94-B/98, de 17 de Abril, respeitante à actividade seguradora.

Importa, assim, perscrutar cada um dos diplomas matriciais que, pelas razões indicadas, são o CVM, o RGICSF e o Dec.-Lei nº 94-B/98.

Rapidamente se constata, porém, ser idêntica a metodologia seguida por todos eles, nomeadamente no que se refere à tipifi cação e qualifi cação dos ilícitos e ao âmbito subjectivo da responsabilidade por eles.

Assim, quanto a esta, prevalecem os seguintes três princípios nucleares: i) pela prática das infracções podem ser responsabilizadas, conjuntamente ou não, pessoas singulares e colectivas, estas ainda que irregularmente constituídas; ii) a responsabilidade das pessoas colectivas tem índole objectiva, dependendo, simplesmente, de o ilícito ter sido cometido no exercício de funções por quem legitimamente a represente; iii) porém, a responsabilidade do ente colectivo não preclude a dos sujeitos individuais que tenham sido os autores da infracção nem daqueles a quem, independentemente disso, ela seja imputável90.

90 Vd., sobretudo, artºs 401º do CVM, 202º a 204º do RGICSF e 206º do Dec.- Lei nº 94-B/98.

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Quanto aos delitos, estabelece-se uma primeira distinção entre aqueles que se qualifi cam como crimes, e os demais a que se confere carácter contra ordenacional91.

Neste último universo, faz-se, por um lado, uma enumeração extensa de comportamentos típicos relevantes, agrupados segundo a gravidade que lhes é atribuída, para os quais se defi ne o respectivo quadro sancionatório.

Mas, além disso, adopta-se sempre uma norma residual, de aplicação subsidiária, que, mau grado distintos níveis de complexidade e de consequências que convoca, se dirige a abranger todas as demais ilicitudes que, pelas características ou circunstâncias dos factos que as integram, não são subsumíveis a nenhuma das categorias ou modalidades listadas nos demais preceitos, obstando, desta sorte, a que fi quem, necessariamente, impunes.

É o que, concretamente, sucede com os artºs 400º do CVM92, 210º, al. m), do RGICSF, e 212º, al. g), do Dec.-Lei nº 94-B/98.

É a eles que, consoante os casos, há que recorrer quando se esteja perante a violação de imperativos legais e regulatórios que concernem à disciplina da organização e funcionamento do sistema de controlo de cumprimento, não se preenchendo previsão específi ca como nas mais das vezes acontecerá.

Assim, se for aplicável o CVM, a infracção será considerada grave ou menos grave, conforme o responsável seja, ou não, intermediário fi nanceiro ou alguma das entidades gestoras referidas no artº 388º, nº 2, al. b), daquele Código, actuando no exercício das suas funções. Correspondem-lhes as molduras punitivas estabelecidas no nº 1, als. b) e c), do mesmo artº 388º93 94.

91 Cfr. capítulos I e II do Título VIII do CVM, capítulos I e II do Título XI do RGICSF, e capítulos I e II do Título VI do Dec.-Lei nº 94-B/98.

92 Cfr. tb. o artº 388º, nº 2, al. a). 93 Parece, assim, haver lugar a dupla qualifi cação quando, pela mesma

infracção, respondam, todavia, cumulativamente, o intermediário fi nanceiro a quem ela é imputada e a pessoa ou pessoas singulares agentes materiais do facto ilícito.

94 Presentemente – e após a alteração introduzida pela Lei nº 28/2009, de 19 de Junho – coima entre doze mil e quinhentos e dois milhões e quinhentos mil

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Quanto se trate do RGICSF, não há lugar a distinção em sede de qualifi cação da infracção por virtude da qualidade do responsável. Mas os limites da coima aplicável são diferentes, conforme o sancionado seja pessoa colectiva ou singular95.

Solução idêntica ocorre no âmbito do Dec.-Lei nº 94/98, sendo a infracção considerada simples, mas igualmente com limites de pena diversos, conforme a natureza do infractor96.

Em qualquer situação pode também haver lugar ao desencadeamento das denominadas sanções acessórias, nos termos e com o alcance que decorrem de cada um dos diplomas que se aplique97.

Além disso, quando a infracção se traduza na omissão de um dever, o sancionamento que tenha gerado não afasta a manutenção da obrigação de cumprimento efectivo, sempre que ela seja possível98.

A este propósito, aliás, cabe uma advertência suplementar.Com efeito, quando a irregularidade seja de molde a reunir

os pressupostos da actuação compulsória da autoridade de supervisão, pelo exercício dos poderes de intervenção, na entidade supervisionada, que lhe estão legalmente conferidos, também ela não é minimamente prejudicada pela abertura de processos punitivos dirigidos a qualquer infractor, nem pela efectiva aplicação de sanções que aí venha a ter lugar99.

euros e entre dois mil e quinhentos e quinhentos mil euros, consoante a contra ordenação seja considerada grave ou menos grave.

95 Agora, depois da Lei nº 28/2009, os limites mínimo e máximo são, respectivamente, de três mil e de um milhão e meio de euros e de mil e de quinhentos mil euros.

96 Também depois da Lei nº 28/2009, os limites mínimo e máximo passaram a ser, respectivamente, de dois mil e quinhentos e de cem mil euros, para pessoas singulares, e de sete mil e quinhentos e de quinhentos mil euros para pessoas colectivas.

97 Cfr. artºs 404º do CVM, 212º do RGICSF, e 216º do Dec.-Lei nº 94-B/98. 98 Vd. artºs 403º do CVM, 207º do RGICSF, e 209º do Dec.-Lei nº 94-B/98.99 Tenha-se presente que o sistema de controlo de cumprimento constitui uma

vertente axial do sistema global de controlo interno, o que, consoante a natureza

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55. Pelas características e função peculiares dos normativos em questão e natureza e atributos das entidades envolvidas, pode bem suceder que um mesmo e único comportamento convoque a violação simultânea de regras que, sendo formalmente distintas – sedeadas, inclusivamente, em diplomas diferentes – têm, todavia, um conteúdo substancialmente – por vezes até integralmente – idêntico.

Seria o caso, para se dar o exemplo utilizado, de um intermediário fi nanceiro, instituição de crédito, não organizar a função de cumprimento, afrontando, dessa maneira, os artºs 305º-A do CVM, e 17º do Aviso nº 5/2008.

Em tais situações, e na falta de uma disciplina própria, não podem deixar de se considerar os princípios e critérios prevalecentes em matéria de concurso de normas, conquanto advenha uma difi culdade adicional que decorre da pluralidade de entidades com competência processual e sancionatória.

VII – BALANÇO FINAL – O DESAFIO DO CUMPRIMENTO

56. É tempo para um balanço fi nal.A partir de todo o percurso trilhado, surge, liminar, a ideia

angular de o sistema de controlo de cumprimento, na sua vasta complexidade e com sensíveis projecção e ênfase na função arvorada como o seu rosto mais visível, se constituir um repto permanente e determinante, enquanto instrumento dirigido à gestão de um risco fortemente condicionante do sucesso sustentado da actividade das empresas.

E é tanto mais assim quanto maior a frequência e densidade das intervenções normativas aos diversos níveis que, por sua vez, vão

da falta verifi cada, pode, realmente, dar azo ao recurso a medidas correctivas por iniciativa do supervisor (cfr. v.g. os artºs 141º e 116º-C do RGICSF).Pense-se na hipótese de uma instituição de crédito declinar, em absoluto, a constituição da função de cumprimento ou mesmo na de, fazendo-o, todavia, descurar a generalidade dos imperativos a que está sujeita.

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traduzindo uma marca indelével dos nossos dias. Elas reivindicam, com efeito, uma capacidade de adaptação praticamente constante às novas exigências, sucessivamente impostas – o que, aliás, e não é de somenos, carece, amiúde, de ser objectivamente demonstrado –, assegurando-se, do mesmo passo, apropriados padrões de conformidade.

Está, sem dúvida, em causa, prevenir e evitar consequências negativas emergentes de comportamentos hostis à legalidade, obviando a que se produzam, bem como agir diligente e oportunamente na superação das irregularidades que se detectem, para mitigar e minimizar os impactos indesejáveis que possam acarretar. Mas trata-se também de, positivamente, tirar partido da reputação, da credibilidade e do prestígio merecidos e comummente reconhecidos a quem procede segundo os padrões exigíveis.

É, por isso, imprescindível que as instituições se vocacionem e disciplinem para o cumprimento, ainda que de acordo com paradigmas não estereotipados que, por regra, têm liberdade de defi nir, tomando, designadamente, em conta, a natureza, características e dimensão das actividades que prosseguem e o perfi l do modelo geral do governo que adoptam.

Para tanto é, desde logo, fundamental um compromisso verdadeiramente assumido pelos máximos dirigentes, que irradie e envolva a generalidade das estruturas e colaboradores, em ordem à institucionalização e prática quotidiana de uma cultura que privilegie e favoreça a satisfação continuada e recorrente dos deveres estabelecidos.

Mas é também indispensável a implementação de uma organização operante que, muito para além da resposta, no plano formal, ao que, a propósito, se requer, permita utilizar e exponenciar os múltiplos mecanismos de actuação, optimizar os meios existentes e agenciar e federar um programa orientado à gestão global do risco de incumprimento, perspectivado nos seus diferentes estádios e manifestações.

A organização comporta a identifi cação, afectação, disponibilização e utilização de meios e recursos e, o que não é

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menos importante, a articulação entre eles, crucial para a efi ciente e efi caz consecução dos objectivos a atingir.

Envolve, desta sorte, é claro, a criação e institucionalização da estrutura de suporte à função de cumprimento, mas, decerto, transcende-a, contemplando, nomeadamente, aspectos como os relativos aos processos conducentes ao conhecimento e decisão, quando necessário, pelos órgãos de administração e fi scalização, de questões relevantes de cumprimento ou com elas conexionadas, ao estabelecimento e funcionamento de órgãos multi-departamentais e de outros meios de interacção, estrutural ou pontual, destinados a intervir nas diversas fases da gestão do risco ou, independentemente disso, aos modos de participação nela da comunidade dos responsáveis da entidade.

Quanto ao programa de cumprimento, não estando, sequer, sujeito a nenhuma formalidade e não carecendo, portanto, de se corporizar em documento próprio, consubstancia, todavia, o compromisso com o sistema de controlo, melhoria, aprofundamento, correcção, superação, inovação … a levar a cabo, aos diversos níveis, segundo as orientações, opções, prioridades e rumos assumidos.

É por ele, e com ele, que se exprime e concretiza o que, neste domínio, a empresa quer ser, como quer actuar e para onde quer caminhar.

Neste contexto, perante a tipologia e o âmbito do risco alvo, é visto o campo potencial de incidência dos programas de cumprimento, eles mesmo constantemente adaptáveis em função dos patamares de realização dos objectivos a alcançar e, por isso, às necessidades concretas que se vão sucessivamente apresentando.

Sem dúvida, não é difícil sinalizar, ainda que a título meramente enunciativo, múltiplos aspectos que, embora em distintos planos, se confi guram todos inquestionavelmente idóneos para ser contemplados.

Assim, e sem outras considerações, por manifestamente excessivas:

• avaliação e adaptação de estratégias, políticas, sistemas e processos integrantes do sistema de controlo;

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• constituição, preparação e gestão da equipa especialmente afecta à estrutura de suporte à função de cumprimento;

• sindicação e ajustamento da metodologia de exercício da função;

• institucionalização e seguimento de mecanismos de intervenção multidisciplinar na gestão do risco;

• articulação com outras funções de controlo;• caracterização e monitorização de factores geradores ou

potenciadores do risco de incumprimento;• criação, promoção e execução de acções de formação;• elaboração, implementação e gestão de códigos de conduta

e outros instrumentos de cultura organizacional, de carácter geral ou específi co;

• divulgação de normativos vinculantes para a instituição e condução de processos de adaptação para o cumprimento;

• estabelecimento e acompanhamento de políticas de aprovação e comercialização de produtos;

• tratamento de reclamações de clientes;• prevenção de branqueamento de capitais e de fi nanciamento

do terrorismo; • prevenção de abuso de mercado;• tutela de informação privilegiada;• protecção de dados pessoais;• salvaguarda do sigilo profi ssional;• garantia de direitos de propriedade industrial e intelectual;• reporte e superação de incidências;• escrutínio de acções de publicidade;• seguimento e gestão de recomendações de auditorias

(interna e externa);• articulação com autoridades de regulação e supervisão;• satisfação de decisões de tais autoridades;• intervenção em processos legislativos ou regulatórios.Eis, então, delineada uma silhueta do desafi o que, perante os

motivos que o convocam, está para fi car e, aliás, abundantemente se experiencia mais e mais pungente, ao ritmo deste tempo de

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mudança, que parece sempre mais e mais acelerado e reivindica um enorme e permanente esforço de adaptação.

Março de 2014

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A TRIBUTAÇÃO DOSGANHOS OBTIDOS EM PORTUGAL

PELAS SOCIEDADES ATRAVÉS DE INSTRUMENTOS FINANCEIROS DERIVADOS

Í

1 Introdução .............................................................................. 377

2 Os derivados como instrumentos fi nanceiros ........................ 379

3 A tributação em IRC dos rendimentos de sociedades residentes gerados por instrumentos fi nanceiros derivados ...... 380

3.1.1 Os instrumentos fi nanceiros derivados de negociação: o nº 1 do artigo 49º do CIRC ................................ 380

3.1.2 O enquadramento fi scal da cobertura de justo valor: o nº 2 do artigo 49º do CIRC .................................................... 381

3.1.3 O nº 3 do artigo 49º do CIRC: o enquadramento fi scal da cobertura de fl uxos de caixa ....................................... 388

3.1.4 O nº 3 do artigo 49º do CIRC: o enquadramento fi scal da cobertura de um investimento líquido numa unidade operacional estrangeira ................................................395

3.1.5 Os requisitos para a qualifi cação como operação de cobertura defi nidos nos números 4 e 5 do artigo 49º do CIRC ...............................................................................403

3.1.6 O paradoxo decorrente da alínea a) do nº 6 do artigo 49º do CIRC .............................................................................. 405

3.1.7 A desqualifi cação como operação de cobertura e suas consequências: os números 7, 8 e 9 do artigo 49º

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do CIRC .....................................................................................407

3.1.8 A cláusula sectorial anti-abuso do nº 10 do artigo 49º do CIRC .............................................................................. 412

3.1.9 A ausência de referência na lei fi scal à Fair Value Option ......................................................................................413

4 A tributação dos rendimentos de sociedades não-residentes sem estabelecimento estável gerados por instrumentos fi nanceiros derivados ................................................................................... 4144.1 No caso de inexistência de Acordo de Dupla Tributação ....414

4.2 No caso de existência de Acordo de Dupla Tributação ........416

5 Bibliografi a ............................................................................ 417

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1. Introdução

Tal como o título indica, este trabalho incide sobre a tributação de instrumentos fi nanceiros derivados em sede de IRC do ponto de vista de uma entidade que esteja sujeita ao SNC.

Refere-se no preâmbulo do Decreto-Lei nº 159/2009 que o objetivo deste normativo legal consiste na adaptação da estrutura do CIRC às Normas Internacionais de Contabilidade, embora se refi ra a aprovação do Sistema de Normalização Contabilística (doravante SNC) como um dos fatores que levaram à adaptação do CIRC ao novo referencial contabilístico.

O facto de se ter optado pelas Normas Internacionais de Contabilidade como referência cria algumas difi culdades ao intérprete do artigo 49º do CIRC no âmbito do SNC devido à existência de algumas inconsistências entre estes dois normativos. Algumas são diferenças de forma como acontece na designação das modalidades da contabilidade de cobertura. Outras são divergências de substância como acontece em relação à contabilização das variações de justo valor do item coberto numa cobertura de fl uxos de caixa e pelo facto de a tipologia das operações enquadráveis numa lógica de contabilidade serem defi nidas de formas aberta nas NIC, mas constituírem um elenco fechado no SNC.

Por outro lado, a própria IAS 39 tem algumas lacunas, que combinadas com constantes alterações de uma norma, que já é bastante complexa, difi cultam a sua aplicação.

No trabalho dissecarei estas inconsistências e as difi culdades que elas colocam ao intérprete das normas contabilísticas como respaldo para a compreensão das normas fi scais. Simultaneamente, procurarei esclarecer a forma como se devem enquadrar as normas contabilísticas e fi scais.

Resumindo, o intérprete do artigo 49º do CIRC defronta-se com as seguintes difi culdades:

• Insufi ciente densifi cação desta norma face à realidade que se pretende tributar e inconsistências com a NCRF 27;

• Contradição da norma face à possibilidade de utilização de uma das modalidades da contabilidade de cobertura;

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• Insufi ciente detalhe da NCRF 27 – Instrumentos Financeiros o que obriga o intérprete desta norma recorrer à IAS 39 – Instrumentos Financeiros: Reconhecimento e Mensuração, uma das normas mais complexas das NIC;

• Diferenças na forma de registo contabilístico da contabilidade de cobertura entre a IAS 39 e a NCRF 27, quando as adaptações introduzidas no CIRC foram efetuadas com base na lógica e na terminologia das NIC;

• Insufi ciente densidade da própria IAS 39 em relação a alguns aspetos específi cos da contabilidade de cobertura.

No trabalho tentar-se-á, com o recurso à IAS 39 e a alguns exemplos práticos, esclarecer as dúvidas que possam surgir ao intérprete desta norma, cujas importantes alterações1 introduzidas pelo Decreto-Lei nº 159/2009, têm sido, quase totalmente, ignoradas pela doutrina.

Finalmente, abordar-se-á a tributação dos ganhos obtidos em Portugal por sociedades não residentes sem estabelecimento estável2 de acordo com a metodologia habitualmente seguida para a quantifi cação da tributação de não-residentes:

• Verifi car-se-á se o rendimento é obtido em Portugal. Tratando-se de rendimentos de sociedades seguir-se-á o nº 3 do artigo 4º do CIRC;

• Caso não exista Acordo de Dupla Tributação aplicar-se-ão os números 4 e 6 do artigo 87º do CIRC relativamente às taxas aplicáveis e o artigo 94º do mesmo diploma legal em relação à retenção na fonte;

• Se existir Acordo de Dupla Tributação determinar-se-á qual o artigo da Convenção Modelo da OCDE aplicável e como

1 Nas versões do CIRC anteriores ao Decreto-Lei nº 159/2009 correspondia ao artigo 78º.

2 Aos rendimentos imputados a estabelecimentos estáveis de sociedades não-residentes aplicam-se os mesmos princípios que se aplicam a sociedade residentes de acordo com a alínea c) do nº 1 do artigo 15º do CIRC e que são densifi cados na parte 3 deste trabalho.

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esta norma reparte a competência tributária entre Estado da residência e Estado da fonte.

2. Os derivados como instrumentos fi nanceiros

A subsecção VII do CIRC, que contém apenas o artigo 49º, intitula-se instrumentos fi nanceiros derivados. Já era este o título do artigo 78º do CIRC antes da revisão operada pelo Decreto-Lei nº 159/2009, de 13 de Julho. Contudo, até à publicação do Decreto-Lei nº 158/2009, de 13 de Julho, não existia no ordenamento jurídico português uma defi nição de derivado. Atualmente, ela consta do parágrafo 5 da NCRF 27 – Instrumentos Financeiros pelo que o intérprete da lei fi scal já pode aplicar em relação a este instrumento fi nanceiro o nº 2 do artigo 11º3 da Lei Geral Tributária. Assim, de acordo com a referida norma um derivado é instrumento fi nanceiro ou outro contrato com todas as características seguintes:

a) O seu valor altera-se em resposta à alteração numa especifi cada taxa de juro, preço de instrumento fi nanceiro, preço de mercadoria, taxa de câmbio, índice de preços ou de taxas, notação de crédito ou índice de crédito, ou outra variável, desde que, no caso de uma variável não fi nanceira, a variável não seja específi ca de uma parte do contrato (por vezes denominada “subjacente”);

b) Não requer qualquer investimento líquido inicial ou requer um investimento líquido inicial inferior ao que seria exigido para outros tipos de contratos que se esperaria que tivessem uma resposta semelhante às alterações de mercado;

c) É liquidado numa data futura.Em termos de Código de Valores Mobiliários (CVM), após

a leitura do artigo 1º, que estipula de forma nominativa quais os instrumentos fi nanceiros que são valores mobiliários, fi camos a

3 “Sempre que nas normas fi scais, se empreguem termos próprios de outros ramos do direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer da própria lei.”

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saber que os warrants autónomos constituem os únicos derivados que são valores mobiliários.

Por outro lado, o artigo 2º do CVM nomeia os instrumentos fi nanceiros derivados regulados por este diploma legal que não são valores mobiliários:

• Os instrumentos fi nanceiros para transferência de risco de crédito;

• Os contratos diferenciais;• As opções, os futuros, os swaps e quaisquer outros contratos

derivados relativos a:i. Valores mobiliários, divisas, taxas de juro ou de

rendibilidades ou relativos a outros instrumentos fi nanceiros derivados, índices fi nanceiros ou indicadores fi nanceiros, com liquidação física ou fi nanceira;

ii. Mercadorias, variáveis climáticas, tarifas de fretes, licenças de emissão, taxas de infl ação ou quaisquer outras estatísticas económicas ofi ciais, com liquidação fi nanceira ainda que por opção de uma das partes;

• Mercadorias, com liquidação física, desde que sejam transacionados em mercado regulamentado ou em sistema de negociação multilateral ou, não se destinando à fi nalidade comercial, tenham caraterísticas análogas às de outros de instrumentos fi nanceiros derivados nos termos do artigo 38º do Regulamento (CE) nº 1287/2006, da Comissão

• Quaisquer outros contratos derivados.

3. A tributação em IRC dos rendimentos de sociedades residentes gerados por instrumentos fi nanceiros derivados

3.1.1. Os instrumentos fi nanceiros derivados de negociação: o nº 1 do artigo 49º do CIRC

Esta norma refere o seguinte: “Concorrem para a formação do lucro tributável, salvo os previstos no nº 3, os rendimentos ou gastos resultantes da aplicação do justo valor a instrumentos fi nanceiros

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derivados, ou a qualquer outro ativo ou passivo fi nanceiro utilizado como instrumento de cobertura restrito à cobertura do risco cambial”.

3.1.2. O enquadramento fi scal da cobertura de justo valor: o nº 2 do artigo 49º do CIRC

O nº 2 do artigo 49º do CIRC defi ne o enquadramento fi scal da cobertura de justo valor.

A defi nição de cobertura de justo valor está vertida na alínea a) do parágrafo 86 da IAS 39 – Instrumentos Financeiros: Reconhecimento e Mensuração:” uma cobertura da exposição às alterações no justo valor de um ativo ou passivo reconhecido ou de um compromisso fi rme não reconhecido, ou de uma porção identifi cada de tal ativo, passivo ou compromisso fi rme, que seja atribuível a um risco particular e possa afetar os resultados.”

Na transposição para a ordem jurídica interna da IAS 39, que foi concretizada pelo Decreto-Lei nº 158/2009, de 13 de Julho, que promove a criação do SNC e pelo Aviso nº 15 655/2009, de 7 de Setembro de 2009, norma que publica as normas contabilísticas e de relato fi nanceiro (NCRF), o legislador nacional foi mais restritivo do que a norma internacional quanto às possibilidades de aplicação da contabilização de cobertura: um conjunto de derrogações às normas gerais de contabilização aplicáveis quando uma relação de cobertura de risco entre dois itens cumpre os requisitos defi nidos na NCRF 27 – Instrumentos Financeiros, que transpôs para a ordem interna a IAS 39.

Numa aplicação do princípio da tipicidade fechada ao direito contabilístico, o legislador nacional optou por um elenco fechado por oposição às defi nições genéricas adotadas pela IAS 39, onde o intérprete da norma pode enquadrar ou não as coberturas de risco efetuadas pela sua entidade. Assim, a NCRF 27 no seu parágrafo 36 restringe a aplicação da contabilização de cobertura a:

a) Risco de taxa de juro de um instrumento de dívida mensurado ao custo amortizado;

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b) Risco de câmbio num compromisso fi rme ou numa transação de elevada probabilidade futura;

c) Exposição a risco de preço em mercadorias que sejam detidas ou abrangidas por um compromisso fi rme ou por uma elevada probabilidade futura;

d) Exposição a risco de preço em mercadorias que sejam detidas ou abrangidas por um compromisso fi rme ou por uma elevada probabilidade futura de transação de compra ou venda de mercadorias que tenham preços de mercado determináveis; ou

e) Exposição de risco cambial no investimento líquido de uma operação no estrangeiro.

Esta divergência entre a IAS 39 e a NCRF 27 passou a ter implicações fi scais com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 159/2009, de 13 de Julho porque esta norma legal determinou consequências fi scais, em sede de IRC, para os três modelos de contabilidade de cobertura previstos na IAS 39.

Assim, uma entidade portuguesa com valores mobiliários admitidos à cotação, estando sujeita às NIC, pode enquadrar no nº 2 do artigo 49º do CIRC um leque mais alargado de coberturas de risco do que uma entidade que tenha de aplicar o SNC.

Um exemplo permitirá ilustrar o que atrás fi cou expendido. Suponhamos que uma entidade portuguesa vê uma oportunidade de lucro na compra de ações de uma entidade americana representativas de 5% do capital social que não são publicamente negociadas e cujo justo valor não pode ser fi avelmente determinado. De acordo com a alínea c) do parágrafo 12 da NCRF 27 – Instrumentos Financeiros este instrumento fi nanceiro deverá ser mensurado ao custo. Contudo, apesar de a entidade estar confi ante em relação às perspetivas futuras da empresa americana não quer correr risco cambial em relação ao investimento, pelo que contrata um empréstimo em dólares americanos pelo prazo de 5 anos, horizonte temporal durante o qual pretende manter o investimento. De acordo com a alínea a) do parágrafo 14 da NCRF 27, este instrumento deverá ser mensurado ao custo amortizado.

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Caso a entidade esteja sujeita ao SNC não poderá designar esta relação para contabilização de cobertura, dado que não se enquadra em nenhum dos casos previstos no parágrafo 36 da NCRF 27.

Assim, nas datas de relato subsequentes à data de aquisição, o investimento nas ações em dólares americanos, sendo um item não-monetário mensurado ao custo histórico, será transposto à taxa de câmbio à data da transação; enquanto o empréstimo contraído em dólares, sendo um item monetário será transposto pelo uso da taxa de fecho. Esta divergência de métodos de transposição implicará um incremento de volatilidade na conta de exploração da entidade.

Contudo, caso a entidade aplicasse as NIC poderia designar o investimento em ações e a contratação do empréstimo em dólares como uma cobertura de justo valor, dado que se enquadra na defi nição expendida na alínea a) do parágrafo 86 da IAS 39: “ uma cobertura da exposição às alterações no justo valor de um ativo ou passivo reconhecido ou de um compromisso fi rme não reconhecido, ou de uma porção identifi cada de tal ativo, passivo ou compromisso fi rme, que seja atribuível a um risco particular e possa afetar os resultados.”

Uma vez designada como cobertura de justo valor, a transposição para a moeda de apresentação (o euro) do investimento em dólares seria efetuada à taxa de fecho e a variação refl etida nos resultados, tal como a conversão do empréstimo de acordo com o estipulado na alínea b) do parágrafo 89 da IAS 39:” o ganho ou perda resultante do item coberto atribuível ao risco coberto deve ajustar a quantia escriturada do item coberto e ser reconhecida nos resultados”.

Analisemos agora o clausulado do nº 2 do artigo 49º do CIRC que refere:” Relativamente às operações cujo objetivo exclusivo seja o de cobertura de justo valor quando o elemento coberto esteja subordinado a outro modelo de valorização, são aceites fi scalmente os rendimentos ou gastos do elemento coberto reconhecidos em resultados, ainda que não realizados, na exata medida da quantia refl etida em resultados, de sinal contrário, gerada pelo instrumento de cobertura.”

As implicações fi scais desta norma explicam-se melhor com um exemplo.

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Suponhamos que uma empresa portuguesa emitiu um empréstimo obrigacionista a taxa fi xa de 2,25% com data de emissão de 30/06/2009 e data de vencimento de 30/06/2012 no valor de 5.857.000 euros4 com pagamentos de juros semestrais e um incremento semestral na taxa de 0,25% de acordo com o seguinte plano:

Data de Inicio Data de Fim Taxa30-Jun-09 30-Dec-09 2.25%30-Dec-09 30-Jun-10 2.50%30-Jun-10 31-Dec-10 2.75%31-Dec-10 30-Jun-11 3%30-Jun-11 31-Dec-11 3.50%31-Dec-11 30-Jun-12 4%

Atendendo a que a entidade tem uma política de imunização do risco de taxa de juro, contrata um swap de taxa de juro de acordo com o qual recebe taxa de juro fi xa de 2.25% e paga taxa de juro variável de Euribor+0,75% convertendo, em substância, o passivo a taxa fi xa num passivo a taxa variável5.

Esta cobertura enquadra-se na defi nição de cobertura de justo valor da IAS 39 e de acordo com a NCRF 27 consiste numa cobertura de risco de taxa de juro fi xa ou de risco de preços de mercadorias para mercadorias detidas, o equivalente em termos de SNC à cobertura de justo valor.

Assim, de acordo com o parágrafo 89 da IAS 39:• O ganho ou perda resultante da mensuração do instrumento

de cobertura deve ser reconhecido em resultados (alínea a);

4 Note-se que, em relação ao exercício de 2009, a aplicação da NCRF 27 a este empréstimo obrigacionista apenas seria necessária para efeitos de elaboração da informação comparativa, dado que o Decreto-Lei nº 158/2009, de 13 de Julho, que aprova o SNC, entrou em vigor no primeiro exercício que se iniciou em ou após 1 de Janeiro de 2010.

5 Os dados do exemplo são reais assim como as valorizações do item coberto e do item de cobertura que originam os valores contabilísticos que seguidamente serão apresentados.

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• O ganho ou perda resultante do item coberto atribuível ao risco coberto deve ajustar a quantia escriturada do item coberto e ser reconhecida em resultados (alínea b).

No caso vertente, a quantia escriturada do instrumento de cobertura corresponde ao valor resultante do desconto para a data de apresentação de contas dos fl uxos de caixa gerados pelo swap de taxa de juro acima descrito a taxas de juro de mercado para operações comparáveis.

Por outro lado, o ganho ou perda resultante do item coberto atribuível ao risco coberto resultam do desconto para a data de apresentação de conta dos fl uxos de caixa gerados pela obrigação acima descrita a taxas de juro de mercado sem risco de crédito, dado que o risco que se pretende cobrir é apenas o de variações na taxa de juro.

Os valores de balanço do item coberto e de cobertura em cada uma das datas de apresentação de contas afetadas por esta operação serão:

Data Valor de Balanço da Obrigação

Valor da Balanço do Swap

31-12-2009 -6.013.493,54 147.203,2331-12-2010 -6.035.099,27 101.095,9231-12-2011 -5.926.846,43 45.877,9631-12-2012 0,00 0,00

Comparando estes valores, atendendo à sua disparidade, poder-se-á pensar que a cobertura não é efetiva. Contudo, enquanto a obrigação é um passivo de Balanço, o swap de taxa de juro é um ativo/passivo6 extrapatrimonial, pelo que os valores comparáveis são o valor atualizado dos fl uxos de caixa do swap de taxa de juro e

6 Um swap de taxa de juro equivale a uma posição longa numa obrigação a taxa fi xa e uma posição curta numa obrigação a taxa variável ou vice-versa, pelo que a distinção entre ativo e passivo não é clara. Contudo, para a questão que aqui nos ocupa esta distinção não é importante.

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o valor atualizado dos fl uxos de caixa da obrigação deduzida do seu valor nominal (5.857.000 euros) que correspondem a:

Data Valor de Balanço da Obrigação em excesso do Valor Nominal

Valor de Balanço do Swap

31-12-2009 -138.493,54 147.203,2331-12-2010 -160.099,27 101.095,9231-12-2011 -51.846,43 45.877,9631-12-2012 0,00 0,00

Finalmente, o impacto em resultados decorrente da variação destes valores de balanço será para cada uma das datas relevantes de apresentação de contas:

Data Ajustamento ao valor de Balanço da Obrigação (Impac-to resultados)7 (1)

Ajustamento ao valor de Balanço

do Swap (Impacto resultados)7 (2)

Impacto contabilís-tico em resultados do relacionamen-to de cobertura

(3)=(1)+(2)31-12-2009 -138.493,54 147.203,23 8.709,6931-12-2010 -21.605,72 -46.107,31 -67.713,0431-12-2011 108.252,83 -55.217,96 53.034,8731-12-2012 51.846,43 -45.877,96 5.968,47

7

Importa agora saber se haverá lugar a algum ajustamento relativamente a alguma destas duas componentes do resultado contabilístico.

Sobre esta questão dispõe o nº 2 do artigo 49º do CIRC:”…são aceites fi scalmente os rendimentos ou gastos do elemento coberto reconhecido em resultados, ainda que não realizados, na exata medida da quantia igualmente refl etida em resultados, de sinal contrário gerada pelo instrumento de cobertura.”

7 O impacto em resultados corresponde às variações anuais do valor de balanço do instrumento coberto e do instrumento de cobertura.

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Ou seja, em relação às variações da quantia escriturada em balanço da obrigação apenas são fi scalmente aceites as quantias simétricas da variação de valor do swap de cobertura, pelo que deverão ser efetuados os ajustamentos apresentados no quadro seguinte8:

Data

Ajusta-mento ao valor de

Balanço da Obrigação (Impacto

resultados) (1)

Valor de Balanço do Swap (Impacto

resultados) (2)

Simétrico impacto em resultados do ajusta-mento ao valor de

balanço do swap (3)

Impacto em resultados resultante do ajusta-mento do valor de

Balanço da obrigação

aceite fi scal-mente (4)

Ajusta-mento fi scal a efetuar

relativa-mente ao relaciona-mento de cobertura

(5)=(4)-(1)31-12-2010 -21.605,72 -46.107,31 46.107,31 0,00 21.605,7231-12-2011 108.252,83 -55.217,96 55.217,96 55.217,96 -53.034,8731-12-2012 51.846,43 -45.877,96 45.877,96 45.877,96 -5.968,47

Este exemplo revela os custos de cumprimento do nº 2 do artigo 49º do CIRC. O sistema de informação do sujeito passivo terá de preencher os seguintes requisitos para cada um dos seus ativos e passivos que estejam inseridos numa cobertura de justo valor:

• Conseguir associar cada item coberto ao respetivo item de cobertura;

• Para cada par item coberto-item de cobertura poder calcular o ajustamento fi scal descrito na coluna (3) do quadro anterior.

Finalmente, é necessário avaliar o impacto na demonstração de resultados do custo de fi nanciamento antes de determinarmos o respetivo efeito fi scal. Desta forma, o impacto em resultados do custo efetivo de fi nanciamento resultará da soma dos juros pela obrigação especializados por exercício com a soma dos custos e

8 Não se apresenta ajustamento para o ano de 2009 porque o Decreto-Lei nº 159/2009, de 13 de Julho apenas entrou em vigor no dia 01/01/2010.

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proveitos gerados pelo swap de taxa de juro também especializados por exercício e terá o seguinte calendário:

Ano

Obrigação

(1)

Leg fi xa do Swap

(2)

Leg variável do swap

(3)

Impacto total em resultados

(4)=(1)+(2)+(3)

2010 (153,746.25) 153,746.25 (104,726.25) (104,726.25)2011 (190,352.50) 190,352.50 (133,952.84) (133,952.84)2012 (117,140.00) 117,140.00 (70,768.83) (70,768.83)

Atendendo ao disposto no nº 1 do artigo 18º do CIRC, que determina a imputação dos rendimentos e gastos ao lucro tributável do período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu pagamento ou recebimento, os valores da coluna (4) correspondem ao impacto sobre o lucro tributável.

Finalmente, o quadro anterior comprova o que foi referido no início: a contratação do swap de taxa de juro transformou o passivo a taxa fi xa num passivo a taxa variável de Euribor+0,75%.

3.1.3. O nº 3 do artigo 49º do CIRC: o enquadramento fi scal da cobertura de fl uxos de caixa

O nº 3 do artigo 49º do CIRC defi ne o enquadramento fi scal da cobertura de fl uxos de caixa.

A cobertura de fl uxos de caixa está defi nida na alínea b) do parágrafo 86 da IAS 39:” uma cobertura de exposição à variabilidade nos fl uxos de caixa que i) seja atribuível a um a risco particular associado a um ativo ou passivo reconhecido (tal como todos ou alguns dos futuros pagamentos de juros sobre uma dívida de taxa variável) ou a uma transação prevista altamente provável e que ii) possa afetar resultados”.

Em termos da NCRF 27, o tipo de cobertura equivalente corresponde à cobertura do risco de variabilidade da taxa de juro, risco cambial, risco de preço de mercadorias no âmbito de um

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compromisso ou de elevada probabilidade de transação futura cuja forma de contabilização é referida nos parágrafos 41 a 43 da referida norma.

Enquanto numa cobertura de justo valor a entidade procura estabilizar o seu resultado líquido através da minimização das variações de justo valor dos seus ativos e passivos, numa cobertura de fl uxos de caixa a entidade procura estabilizar o seu fl uxo de caixa.

Para exemplifi car o impacto fi scal deste tipo de cobertura utilizar-se-á um exemplo com dados idênticos em valor absoluto (embora com sinais contrários) aos utilizados para ilustrar a cobertura de justo valor, o que permitirá a comparabilidade dos impactos sobre o balanço e a demonstração de resultados de ambas as coberturas.

Assim, suponhamos que uma empresa emitiu uma obrigação indexada à Euribor com um spread de 0,75% de valor nominal de 5.857.000 euros. A expectativa da entidade é que se verifi que uma subida nas taxas de juro, pretendendo limitar o impacto desta subida sobre o seu fl uxo de caixa, pelo que contrata um swap de taxa de juro que converte o referido passivo a taxa variável num passivo a taxa fi xa com incrementos semestrais de 0,25%:

Data de Inicio Data de Fim Taxa30-Jun-09 30-Dec-09 2.25%30-Dec-09 30-Jun-10 2.50%30-Jun-10 31-Dec-10 2.75%31-Dec-10 30-Jun-11 3%30-Jun-11 31-Dec-11 3.50%31-Dec-11 30-Jun-12 4%

Atualmente, estamos em condições de determinar qual teria sido o custo efetivo do passivo para a empresa caso não tivesses contratado o swap de taxa de juro:

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Data de inicio Data de fi m EURIBOR Margem Taxa Final30-Jun-09 30-Dec-09 1.33% 0.75% 2.08%30-Dec-09 30-Jun-10 0.99% 0.75% 1.74%30-Jun-10 30-Dec-10 1.04% 0.75% 1.79%30-Dec-10 30-Jun-11 1.24% 0.75% 1.99%30-Jun-11 30-Dec-11 1.77% 0.75% 2.52%30-Dec-11 29-Jun-12 1.64% 0.75% 2.39%

Verifi camos que teria sido inferior. Contudo, o objetivo da entidade consistia em tornar previsíveis os fl uxos de caixa oriundos desta obrigação, o que foi conseguido.

Vejamos agora o impacto fi scal desta operação de cobertura. Sobre esta questão dispõe o nº 3 do artigo 49º do CIRC:” Relativamente às operações cujo objetivo exclusivo seja o de cobertura de fl uxos de caixa ou de cobertura de investimento líquido numa unidade operacional estrangeira, são diferidos os rendimentos ou gastos gerados pelo instrumento de cobertura, na parte considerada efi caz, até ao momento em que os gastos ou rendimentos do elemento coberto concorram para a formação do lucro tributável”.

Importa, em primeiro lugar, verifi car a forma como é contabilisticamente registada uma cobertura de fl uxos de caixa.

Sobre esta questão dispõem os parágrafos 95 e 96 da IAS 39. O primeiro destes preceitos dispõe:” Se uma cobertura de fl uxos de caixa satisfi zer as condições do parágrafo 889 durante o período, ela deve ser contabilizada como se segue:

a) a porção do ganho ou perda resultante do instrumento de cobertura que seja determinada como uma cobertura efi caz (ver parágrafo 88) deve ser reconhecida diretamente no capital próprio por meio da demonstração de alterações no capital próprio (ver IAS 1); e

9 O parágrafo da IAS 39 que estipula as condições para que um relacionamento de cobertura seja elegível para a contabilidade de cobertura.

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b) a porção inefi caz do ganho ou perda resultante do instrumento de cobertura deve ser reconhecida nos resultados.”

Assim, a leitura conjugada do nº 3 do artigo 49º do CIRC e do parágrafo 95 da IAS 39 mostra-nos que foi intenção do legislador alinhar a legislação fi scal com o normativo contabilístico internacional, dado que a expressão “….são diferidos os rendimentos ou gastos gerados pelo instrumento de cobertura, na parte considerada efi caz, até ao momento em que os gastos ou rendimentos do elemento coberto concorram para a formação do lucro tributável.”, corresponde ao registo em capitais próprios das valias não realizadas do instrumento de cobertura até ao momento em que os rendimentos ou gastos do instrumento coberto afetem o resultado contabilístico.

Para mais detalhe sobre a forma de contabilização deste tipo de cobertura devemos recorrer ao parágrafo 96 da IAS 39: “Mais especifi camente, uma cobertura de fl uxos de caixa é contabilizada como se segue:

a) o componente separado do capital próprio associado ao item coberto é ajustado para o mais baixo do seguinte (em quantias absolutas):

i. o ganho ou perda cumulativo resultante do instrumento de cobertura desde o início da cobertura; e

ii. a alteração cumulativa no justo valor (valor presente) dos fl uxos de caixa futuros desde o início da cobertura.

b) qualquer ganho ou perda remanescente resultante do instrumento de cobertura ou do componente designado do mesmo (que não seja uma cobertura efi caz) é reconhecida nos resultados; e

c) se a estratégia documentada da gestão de risco de uma entidade relativa a um relacionamento de cobertura particular excluir da avaliação da efi cácia da cobertura um elemento específi co do ganho ou perda os respetivos ou os respetivos fl uxos de caixa do instrumento de cobertura (ver parágrafos 74, 75 e 88(a)), esse componente de ganho ou perda excluído é reconhecido de acordo com o parágrafo 55.”

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Finalmente, o parágrafo F.5.2 do Guia de Implementação da IAS 39 refere o seguinte em relação ao desempenho do instrumento de cobertura numa cobertura de fl uxos de caixa:

• Se a variação, em valor absoluto, do instrumento de cobertura for inferior à variação, em valor absoluto, do valor presente dos futuros fl uxos de caixa necessários para compensar a exposição aos fl uxos de caixa de juro variável sobre o passivo; toda a variação de valor do instrumento coberto deverá ser refl etida em Capitais Próprios, não se registando qualquer montante em resultados;

• Se a variação, em valor absoluto, do instrumento de cobertura for superior à variação, em valor absoluto, do valor presente dos futuros fl uxos de caixa necessários para compensar a exposição aos fl uxos de caixa de juro variável sobre o passivo; o montante simétrico da variação de valor do instrumento coberto deverá ser refl etido em Capitais Próprios, sendo o remanescente lançado em resultados do exercício.

A aplicação destes princípios ao exemplo atrás descrito poder-se-á resumir da seguinte forma, considerando que a expressão utilizada na referida norma da IAS 39 “… justo valor (valor presente) dos futuros fl uxos de caixa necessários para compensar a exposição aos fl uxos de caixa de juro variável sobre o passivo…”, não signifi ca mais do que valor presente do swap calculado com base em taxas de juro sem risco de crédito.

• Se a variação do valor do swap de taxa de juro desde a data da sua contratação, em valor absoluto, for superior, em valor absoluto, à variação do valor presente da leg variável do swap desde a data de emissão10, então dever-se-á registar em reservas a totalidade da variação do valor do swap e a diferença entre a variação do valor do swap e a variação

10 A expressão “... variação do valor da obrigação” deverá ser aqui entendida como variação no valor da obrigação devida ao risco coberto que, no caso vertente, corresponde ao risco de taxa de juro.

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do valor presente da leg variável do swap deverá ser contabilizada em resultados11;

• Se a variação do valor do swap de taxa de juro desde a data da sua contratação, em valor absoluto, for inferior ao valor presente da leg variável do swap desde a data de emissão, então dever-se-á registar em reservas a variação do valor do swap, não havendo qualquer impacto em resultados;

• O que atrás fi cou expendido implica que os fl uxos de caixa do swap sejam descontados a taxas de desconto sem risco de crédito e a taxas de desconto incrementadas do risco de crédito da contraparte, dependendo a contabilização do relacionamento de cobertura da comparação dos dois valores obtidos:

1. Caso o risco de crédito da contraparte do swap permaneça estável durante a vida da operação, não haverá qualquer movimentação em resultados, procedendo-se apenas à contabilização em Capitais Próprios das variações no valor presente do swap verifi cadas ao longo da vida da operação;

2. Se o risco de crédito da contraparte do swap aumentar durante a vida da operação, a variação no justo valor do swap será inferior à referida em 1), mas também não haverá qualquer impacto em resultados;

3. Caso o risco de crédito da contraparte do swap decrescer durante a vida da operação, a variação no justo valor do swap será superior à referida em 1). Contudo, o valor registado em Capitais Próprios será o mesmo, sendo a diferença (correspondente à inefi cácia da cobertura) registada em resultados.

Voltando ao exemplo atrás descrito, assumamos que o risco de crédito da contraparte se mantém constante durante os dois

11 Esta diferença entre a variação do valor da obrigação e o variação do valor do swap não é mais do que uma medida da inefi cácia da cobertura, pelo que deverá ser registada em resultados.

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primeiros 2,5 anos da vida da operação aumentando 0,5% em 31/12/2011. Teremos as seguintes variações no justo valor e valor presente do swap de taxa de juro e contabilizações em reservas e resultados daí resultantes:

Data Cash-Flows Descon-tados sem Risco de Crédito (1)

Juros Corridos a Pagar (2)

Juros Corri-dos a Rece-ber (3)

Reavaliação Acumulada (4)=(1)+(2)+(3)

Variação Anual de Reservas (5)

Cash-Flows Desconta-dos com Risco de Crédito (6)

Impacto em Re-sultados (7)=(6)-(4)

31-12-2009

-147.363,32 (406,74) 566,83 -147.203,23 -147.203,23 -147.363,32 0,00

31-12-2010

-101.255,36 (488,08) 647,52 -101.095,92 46.107,31 -101.255,36 0,00

31-12-2011

-46.009,13 -650,78 781,95 -45.877,96 55.217,96 -24.129,08 21.880,05

31-12-2012

0,00 0 0 0,00 45.877,96 -21.880,05

O impacto no lucro tributável desta operação, em termos de valias não realizadas, corresponde aos valores apresentados na coluna (7)12.

Verifi ca-se, assim, que este tipo de cobertura, ao contrário da cobertura de justo valor, não carece de qualquer ajustamento ao resultado contabilístico para a obtenção do respetivo impacto no lucro tributável.

Por outro lado, torna-se ainda necessário quantifi car o impacto nos resultados dos juros especializados da obrigação e dos custos e proveitos gerados pelo swap de taxa de juro:

12 Olhando para a divergências bastantes materiais entre as colunas (1) e (2) poder-se-ia pensar que a cobertura não é efi caz. Contudo, são variações de justo valor, enquanto o objetivo da cobertura é a estabilização do fl uxo de caixa da entidade relativamente a esta operação de fi nanciamento. A volatilidade em termos de justo valor é um efeito colateral da estabilidade dos fl uxos de caixa.

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Ano Obrigação(1)

Leg fi xa do Swap

(2)

Leg variável do swap

(3)

Impacto total em resultados

(4)=(1)+(2)+(3)

2010 (104,726.25) (153,746.25) 104,726.25 (153,746.25)2011 (112,069.62) (168,388.75) 112,069.62 (168,388.75)2012 (70,768.83) (117,140.00) 70,768.83 (117,140.00)

De acordo com o nº 1 do artigo 18º do CIRC, que acolhe o princípio contabilístico da especialização dos exercícios, o impacto no lucro tributável corresponde aos valores apresentados na coluna (4).

3.1.4. O nº 3 do artigo 49º do CIRC: o enquadramento fi scal da cobertura de um investimento líquido numa unidade operacional estrangeira

O nº 3 do artigo 49º do CIRC também estabelece a moldura fi scal da cobertura de fl uxos de caixa e do investimento líquido numa unidade operacional estrangeira. Apesar de serem coberturas de risco com naturezas diferentes, a IAS 39 e a NCRF 27 aplicam-lhe o mesmo tratamento contabilístico, pelo que o legislador fi scal lhes dedica a mesma norma do CIRC.

Várias entidades têm unidades operacionais estrangeiras. A IAS 21 e a NCRF 23 – Efeitos das alterações das taxas de câmbio estabelecem que a entidade deve determinar a moeda funcional de cada uma destas entidades convertendo, no âmbito do processo de consolidação, para a moeda de apresentação as demonstrações fi nanceiras denominadas nas várias moedas funcionais, reconhecendo em Capitais Próprios as diferenças cambiais dai resultantes.

Assim, uma entidade que tenha unidades operacionais estrangeiras cuja moeda funcional seja diferente da sua moeda de apresentação está exposta a risco cambial.

Em conformidade, a IAS 39 – Instrumentos Financeiros: Reconhecimento e Mensuração e a NCRF 27 – Instrumentos

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Financeiros permitem, uma vez cumpridas certas condições, designar um instrumento fi nanceiro como estando integrado numa relação de cobertura com o investimento líquido numa unidade operacional estrangeira e reconhecer as respetivas variações de justo valor em capitais próprios e não em resultados.

Para ilustrar este tipo de cobertura13, suponhamos que uma entidade portuguesa14 investiu 100 milhões de dólares canadianos numa entidade canadiana constituída em 04/01/2010, em que a sua participação no Capital Social corresponde a 100%.

Paralelamente emprestou à sua subsidiária 100 milhões de dólares canadianos a 5 anos a uma taxa de 5%. Atendendo a que se trata de um item monetário, a entidade portuguesa terá de transpor este ativo à taxa de câmbio de fecho em datas de relato subsequentes, o que implica risco cambial de natureza contabilística.

A cobertura mais efetiva deste tipo de risco corresponde à contração de um empréstimo na mesma moeda da participação. Contudo, atendendo à falta de liquidez no mercado obrigacionista em dólares canadianos, a entidade decidiu contrair um empréstimo obrigacionista em dólares americanos no montante nominal de 96,228,18 mil USD, calculado da seguinte forma:

CAD 100,000 mil/1.03919715 = USD 96,228.18 mil

Atendendo à elevada correlação entre o CAD e o USD a entidade portuguesa consegue cumprir os requisitos defi nidos no parágrafo 35 da NCRF 27 – Instrumentos Financeiros para a qualifi cação do empréstimo obrigacionista em USD como item de cobertura do empréstimo à subsidiária em CAD.

13 Ao contrário dos exemplos apresentados para ilustrar as coberturas de fl uxos de caixa e de justo valor este não é um caso real apesar das taxas de câmbio serem reais. Limitações de espaço e tempo obrigam-me a apresentar um exemplo construído.

14 Esta entidade não é emitente de valores mobiliários admitidos à cotação, pelo que não tem de cumprir as NIC, mas sim o SNC.

15 Taxa de câmbio USD/CAD à data de constituição (04/01/2010) da sociedade de direito canadiano.

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O balanço de abertura da empresa-mãe no ano de 2010 será:

Balanço da Empresa-mãe (04/01/2010)Participação Fi-

nanceira96,228.18 Obrigações 96,228.18

Empréstimo sub-sidiária

96,228.18 Capital

Outros Ativos 203,771.82 Capital Social 300,000.00Total 396,228.18 396,228.18

Unidade (Milhares de EUR)

A participação fi nanceira de 100 milhões de dólares canadianos e o passivo obrigacionista de 100 milhões de USD foram convertidos às taxas de câmbios relevantes na data de constituição da subsidiária canadiana:

Ou seja:

CAD 100.000 mil / 1.495316 = EUR 66.876,21 milUSD 96.228,18 mil/1.438917 = EUR 66.876,21 mil

Por outro lado, o balanço da subsidiária canadiana à data de 31/12/2010 era:

Balanço da Subsidiária (31/12/2010)Ativo 210,000.00 Passivo 100,000.00

Capital Social 100,000.00Resultado Líquido 10,000.00

Total 210,000.00 210,000.00Unidade

(Milhares de EUR)

16 Taxa de câmbio EUR/CAD à data do balanço de abertura (04/01/2010).17 Taxa de câmbio EUR/USD à data do balanço de abertura (04/01/2010).

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Seguidamente elaboram-se as demonstrações fi nanceiras individuais da empresa-mãe à data de 31/12/2010. Note-se que, de acordo com o parágrafo 8 da NCRF 15 - Investimentos em subsidiárias e consolidação, a valorização das participações fi nanceiras deverão ser efetuadas de acordo com o método da equivalência patrimonial.

Demonstração de Resultado da Empresa-Mãe (31/12/2010)Custos em EUR 150,000.00 Proveitos em EUR 200,000.00Juros obrigações

em USD 3,643.14 Juros empréstimo em CAD 3,660.28

Resultado Líquido 57,337.69

Imputação de lu-cros da subsidiária canadiana devido à

aplicação do método da equivalência patri-

monial

7,320.55

Total 210,980.83 210,980.83Unidade

(Milhares de EUR)

Embora a NCRF 23 – Os efeitos das alterações das taxas de câmbio preconize no seu parágrafo 21 a utilização da taxa de câmbio à data da transação para as que são realizadas em moeda estrangeira, permite no seu parágrafo 22 a aplicação da taxa de câmbio média do período. Assim, temos:

Juros obrigações USD = 5% X USD 100.000 mil/1.32067518 = EUR 3,643.14

Juros empréstimo CAD = 5% X CAD 100.000 mil/1.36601719 = EUR 3,660.28

Resultados subsidiária canadiana = CAD 10.000 mil/1.36601719= EUR 7,320.55

18 Taxa de câmbio média EUR/USD de 2010 calculada com base nas 12 taxas de câmbio de fecho de mês.

19 Taxa de câmbio média EUR/CAD de 2010 calculada com base nas 12 taxas de câmbio de fecho de mês.

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Podemos agora construir o balanço da empresa-mãe à data de 31/12/2010:

Balanço da Empresa-mãe (31/12/2010)Participação Financeira

74,196.77 Obrigações em USD

72,016.30

Empréstimo em CAD

75,063.80 Capital

Outros Ativos 283,140.92 Capital Social 300,000.00Diferenças de

câmbio3,047.50

Resultado Líquido

57,337.69

Total 432,401.49 432,401.49Unidade

(Milhares de EUR)

A participação fi nanceira em CAD, sendo um item não monetário que d eve ser mantido ao custo histórico, deve ser transposto pelo uso da taxa de câmbio à data da transação tal como determina a alínea b) do parágrafo 23 da NCRF 23 – Os Efeitos das alterações das taxas de câmbio.

Custo Part. CAD = Valor da Part. / Taxa câmbio EUR/CAD à data 04/01/2010

Custo Part. CAD = CAD 100.000 mil / 1.320675Custo Part. CAD = EUR 66,876.21 mil

No entanto, atendendo a que participação fi nanceira deve ser valorizada de acordo com o método de equivalência patrimonial, torna-se necessário acrescentar ao custo a imputação dos lucros da subsidiária canadiana:

Valor Balanço Part. Fin. CAD = Custo histórico + Imputação lucros subsidiária

Valor Balanço Part. Fin. CAD = EUR 66,876.21 mil + EUR 7,320.55 mil

Valor Balanço Part. Fin. CAD = EUR 74,196.77 mil

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Balanço da Empresa-mãe (31/12/2010)Participação Financeira

74,196.77 Obrigações em USD

72,016.30

Empréstimo em CAD

75,063.80 Capital

Outros Ativos 283,140.92 Capital Social 300,000.00Diferenças de

câmbio3,047.50

Resultado Líquido

57,337.69

Total 432,401.49 432,401.49Unidade

(Milhares de EUR)

Em relação às diferenças de câmbio registadas no Capital Próprio, atendendo a que o empréstimo obrigacionista contraído em USD está numa relação de cobertura com a participação fi nanceira em CAD ao abrigo dos parágrafos 34 a 36 da NCRF 27, a entidade pode proceder à reavaliação cambial deste dois itens monetários e reconhecer o ganho ou perda daí resultante no capital próprio, conforme estipula o parágrafo 42 da referida norma.

Assim, a diferença de câmbio incluída no Capital Próprio foi calculada da seguinte forma:

Empréstimo CAD

Obrigações USD Variação de Capitais Próprios

Capital em Moeda

100,000.00 96,228.18

Taxas (4/1/2010)

66,876.21 66,876.21

Taxas (31/12/2010)

75,063.80 72,016.30

Variação cambial 8,187.59 5,140.09 3,047.50Unidade

(Milhares de EUR)

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Consultando o nº 3 do artigo 49º do CIRC verifi camos que permite o diferimento dos rendimentos e gastos gerados pelo instrumento de cobertura (no caso vertente a emissão de obrigações em USD), na parte considerada efi caz, até ao momento em que os ganhos ou rendimentos do elemento coberto concorram para a formação do lucro tributável, o que, no caso da cobertura de investimento líquido numa unidade operacional estrangeira, ocorrerá no momento da alienação.

Esta redação corresponde a uma transferência para a lei fi scal da lógica do parágrafo 102 da IAS 39 que refere :”As coberturas de um investimento líquido numa unidade operacional estrangeira, incluindo uma cobertura de um item monetário que seja contabilizada como parte de um investimento líquido (ver IAS 21), devem ser contabilizadas de forma semelhante às coberturas de fl uxos de caixa:

a) a porção ou ganho perda resultante do instrumento de cobertura que seja determinada como uma cobertura efi caz (parágrafo 88) deve ser reconhecida diretamente no capital próprio por meio da demonstração de alterações no capital próprio; e

b) a porção inefi caz deve ser reconhecida nos resultados.O ganho ou perda resultante do instrumento de cobertura

relacionado com a porção efi caz da cobertura que tenha sido reconhecida diretamente no capital próprio deve ser reconhecida nos resultados aquando da alienação da unidade operacional estrangeira.

Atendendo a que a NCRF 27 – Instrumentos Financeiros não apresenta uma defi nição de efi cácia de cobertura, aplica-se de forma supletiva a IAS 39.

A defi nição de efi cácia da cobertura está expendida no parágrafo AG105 da IAS 39 que determina que uma operação apenas seja considerada efi caz se duas condições forem satisfeitas:

a) No início da cobertura e em períodos posteriores, espera-se que a cobertura seja altamente efi caz em alcançar alterações compensação no justo valor ou atribuíveis ao risco coberto durante o período relativamente ao qual a cobertura foi designada20;

20 No exemplo apresentado esta condição é cumprida atendendo à elevada correlação histórica entre o dólar canadiano e o dólar americano.

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b) Os resultados reais da cobertura estão dentro do intervalo 80-125%.

Verifi cando agora o cumprimento da alínea b) no caso que tem vindo a ser analisado:

Var. Cambial Obrig. USD/Var. Cambial Emprést. CAD=5,140.09/8,187.59=62.8%

Desta forma, verifi ca-se alguma inefi cácia, pelo que terá de haver um ajustamento ao lucro tributável referente a esta cobertura, dado que o nº 3 do artigo 49º do CIRC apenas permite o diferimento dos rendimentos e gastos na parte considerada efi caz.

Assim, será necessário efetuar o seguinte ajustamento positivo ao lucro tributável, correspondente ao montante da inefi cácia:

Var. Cambial Obrig. USD- Var. Cambial Emprést. CAD=8,187.59 -5,140.09=3,047.5

Note-se ainda que, caso a entidade portuguesa aplicasse as NIC, não seria necessário qualquer ajustamento ao resultado líquido contabilístico; porque, em cumprimento do parágrafo 102 da IAS 39 – Instrumentos Financeiros, o valor registado em Capitais Próprios de EUR 3.047,5 teria sido diretamente contabilizada em Proveitos.

Podemos agora proceder ao apuramento do lucro tributável da entidade em 2011:

2011Resultado contabilístico 57.337,69

Anulação da aplicação do método de equivalência patrimonial de acordo com o nº 8 do artigo 18º do CIRC

(7.320,55)

Imputação da inefetividade da co-bertura do empréstimo à subsidiária

canadiana3.047,50

Lucro tributável 53.064,64

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3.1.5 Os requisitos para a qualifi cação como operação de cobertura defi nidos nos números 4 e 5 do artigo 49º do CIRC

O nº 4 do artigo 49º do CIRC refere o seguinte:” Sem prejuízo do disposto no nº 6, e desde que se verifi que uma relação económica incontestável entre o elemento coberto e o elemento de cobertura, por forma a que da operação de cobertura se deva esperar, pela elevada efi cácia da cobertura do risco em causa, a neutralização dos eventuais rendimentos ou gastos no elemento coberto com uma posição simétrica dos gastos ou rendimentos no rendimento de cobertura, são consideradas operações de cobertura as que justifi cadamente contribuam para a eliminação ou redução de um risco real de:

a) Um ativo, passivo compromisso fi rme, transação prevista com uma elevada probabilidade ou investimento líquido numa unidade operacional estrangeira; ou

b) Um grupo de ativos, passivos, compromissos fi rmes, transações previstas com uma elevada probabilidade ou investimentos líquidos numa unidade operacional estrangeira com caraterísticas de risco semelhantes; ou

c) Taxa de juro da totalidade ou parte de uma carteira de ativos ou passivos que partilhem o risco que esteja a ser coberto”.

A primeira parte do artigo refl ete, de uma forma geral, as condições cumulativas para a qualifi cação um relacionamento de cobertura para contabilidade de cobertura defi nidas no parágrafo 88 da IAS 39. Contudo, atendendo a que o normativo contabilístico é mais exaustivo, transcrevem-se aqui as condições da respetiva norma, dado que densifi cam a norma fi scal:

a) No início da cobertura, existe designação e documentação formais do relacionamento de cobertura e do objetivo e estratégia da gestão de risco da entidade para levar efeito a cobertura;

b) Espera-se que a cobertura seja altamente efi caz ao conseguir alterações de compensação no justo valor ou fl uxos de caixa atribuíveis ao item coberto, consistentemente com a estratégia

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de risco de gestão de risco originalmente documentada para esse relacionamento de cobertura em particular;

c) Quanto a coberturas de fl uxos de caixa, uma transação prevista que seja o objeto da cobertura tem de ser altamente provável e tem de apresentar uma exposição a variações nos fl uxos de caixa que poderia em última análise afetar os resultados;

d) A efi cácia da cobertura pode ser fi avelmente mensurada, isto é, o justo valor ou fl uxos de caixa que sejam atribuíveis ao risco coberto e ao justo valor do instrumento de cobertura podem ser fi avelmente mensurados;

e) A cobertura é avaliada numa base contínua e efetivamente determinada como tendo sido altamente efi caz durante todo o período de relato fi nanceiro para o qual a cobertura foi designada.

Por outro lado, a 2ª parte da norma em análise não é mais do que do que a transcrição de um excerto do parágrafo 78 da IAS 39 que designa os itens qualifi cáveis como itens cobertos.

Pela alínea b) da norma em análise fi ca-se a saber que também é possível designar um grupo de ativos ou passivos como item coberto desde que tenham caraterísticas de risco semelhantes e não apenas ativos ou passivos individuais. Contudo, o parágrafo 84 da IAS 39 deixa claro que a posição líquida de ativos e passivos com caraterísticas de risco semelhantes não qualifi ca como item coberto para efeitos de contabilidade de cobertura.

A alínea c) da mesma norma refere-se à cobertura risco de taxa de juro de uma carteira de ativos ou passivos. Este tipo de cobertura tem uma alínea própria porque é o único caso, como refere o parágrafo 81A da IAS 39, onde é possível designar uma quantia de ativos ou passivos, por oposição a ativos ou passivos específi cos, como item coberto de um relacionamento de cobertura.

Esta norma contabilística, que mereceu o acolhimento do legislador fi scal, dirige-se sobretudo às instituições fi nanceiras que gerem o seu risco de taxa de juro de uma forma agregada. Como ilustração, pense-se numa carteira de crédito ao consumo,

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tipicamente um tipo de crédito concedido a taxa fi xa a um prazo entre os 4 e 5 anos. Uma instituição fi nanceira que tenha este tipo de risco no seu ativo irá cobri-lo através de um pequeno número de swaps de taxa de juro que converterão esta taxa fi xa em taxa variável. Caso não existisse esta norma, este relacionamento de cobertura não seria elegível para a aplicação da contabilidade de cobertura.

Contudo, também neste caso, como deixa claro a já referida norma contabilística, não é possível designar como item coberto uma quantia líquida de ativos e passivos.

Finalmente, o nº 5 do artigo 49º do CIRC refere o seguinte:” Para efeitos do disposto no número anterior, só é considerada de cobertura a operação na qual o instrumento de cobertura utilizado seja um derivado ou, no caso de cobertura de risco cambial, um qualquer ativo ou passivo fi nanceiro”.

Esta restrição está expendida no parágrafo 72 da IAS 39. Note-se, no entanto, que o risco de um investimento líquido numa unidade operacional estrangeira corresponde a um caso especial de risco cambial pelo que a entidade pode proceder à designação de um não-derivado como instrumento de cobertura num relacionamento de cobertura deste tipo.

3.1.6 O paradoxo decorrente da alínea a) do nº 6 do artigo 49º do CIRC

Refere a alínea a) do nº 6 do artigo 49º do CIRC: “Não são consideradas como operações de cobertura: as operações efetuadas com vista à cobertura de riscos a incorrer, ou por estabelecimentos a incorrer por outras entidades, ou por estabelecimentos da entidade que realiza as operações cujos rendimentos não sejam tributados pelo regime geral de tributação.”

Pensa-se que esta alínea nega a possibilidade de diferimento dos rendimentos e gastos gerados pelo instrumento de cobertura prevista no nº 3 do artigo 49º do CIRC em relação à cobertura de um investimento líquido numa unidade operacional estrangeira, pelas razões que seguidamente se apresentam.

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Como resulta do que atrás fi ca dito, o instrumento de cobertura terá de ser registado no balanço da empresa-mãe, para compensar o risco do balanço da unidade operacional estrangeira que, necessariamente não estará submetida ao CIRC, sendo, portanto, abrangida pela alínea a) do nº 6 do artigo 49º deste diploma legal.

Uma norma muito similar a esta já existia no CIRC antes das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 159/2009 correspondendo, na altura, à alínea a) do nº 5 do artigo 78º do CIRC.

Pensa-se que o objetivo desta norma era o de impedir a utilização da possibilidade do diferimento de ganhos permitida pelo antigo nº 2 do artigo 78º do CIRC, relativamente a operações efetuadas em bolsas de valores, para cobertura de riscos a incorrer no exercício seguinte, por entidades sujeitas a um regime especial de tributação.

No novo artigo do CIRC (o artigo 49º) dedicado aos instrumentos fi nanceiros derivados o objetivo seria, provavelmente, negar a aplicação dos regimes mais favoráveis defi nidos nos números 2 e 3 do referido artigo a coberturas de risco de operações registadas nos balanços de:

• Entidades ou estabelecimentos sediados fora do território português e aí submetidos a um regime fi scal privilegiado;

• Entidades submetidas a um regime especial ou enquadradas num benefício fi scal como é o caso das sociedades gestoras de participações sociais.

Contudo, o legislador uma vez que na alteração do CIRC passava a permitir a aplicação de um regime especial a um modelo de contabilidade de cobertura que tem como pressuposto básico a realização da operação de cobertura numa entidade residente para cobrir risco incorrido numa entidade não-residente, deveria ter garantido que a norma anti-abuso não excluía a aplicação de um tratamento mais favorável que era permitido noutros números do mesmo artigo, apesar de se cumprirem os requisitos exigidos.

Assim, na alínea a) do nº 6 artigo 49º do CIRC onde se lê “…regime geral de tributação;” dever-se-ia ler “…regime geral de tributação do IRC ou de imposto idêntico ou análogo ao IRC;”.

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Por outro lado, a alínea b) deste nº 6 do artigo 49º determina:” As operações que não sejam devidamente identifi cadas e documentalmente suportadas no processo de documentação fi scal previsto no artigo 130º, no que se refere ao relacionamento de cobertura, ao objetivo e à estratégia da gestão de risco da entidade para levar a efeito a referida cobertura.”

3.1.7 A desqualifi cação como operação de cobertura e suas consequências: os números 7, 8 e 9 do artigo 49º do CIRC

Em relação à desqualifi cação de uma operação como sendo de cobertura começa por referir o nº 7 do artigo 49º do CIRC: “A não verifi cação dos requisitos verifi cados no nº 4 determina, a partir dessa data, a desqualifi cação da operação como operação de cobertura”.Contudo, os requisitos defi nidos no nº 4 do referido artigo são demasiado vagos, para que se possa determinar com precisão a data a partir da qual se deixam de verifi car, pelo que precisamos de recorrer ao normativo contabilístico.

Os parágrafos 91 e 101 da IAS 39 defi nem as condições em que uma operação deixa de poder ser qualifi cada respetivamente como cobertura de justo valor e como cobertura de fl uxos de caixa. As três condições não cumulativas que são comuns aos dois tipos de cobertura correspondem a:

• O instrumento de cobertura expirar for vendido, terminado ou exercido;

• A cobertura deixar de satisfazer os critérios de contabilidade de cobertura defi nidos no parágrafo 88 da IAS 39;

• A entidade revogar a designação.Adicionalmente, uma operação de cobertura de fl uxos de caixa

deixará de ser qualifi cada como tal caso já não se espere que a transação prevista ocorra.

Em relação ao investimento líquido numa unidade operacional estrangeira, a IAS 39 não estipula diretamente os critérios de desqualifi cação da operação de cobertura. Contudo, por analogia poder-se-á concluir que correspondem a:

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• Alienação da unidade operacional estrangeira;• A cobertura deixar de satisfazer os critérios de contabilidade

de cobertura defi nidos no parágrafo 88 da IAS 39;• A entidade revogar a designação.Dos requisitos atrás referidos merece mais detalhe o referente

aos critérios de contabilidade de cobertura defi nidos no parágrafo 88 da IAS 39, com especial realce para as condições necessárias para a qualifi cação de uma cobertura como altamente efi caz (alínea b) da referida norma).

Estas condições, que são cumulativas, estão defi nidas no parágrafo AG105 da IAS 39 e correspondem a:

a) No início da cobertura e em períodos posteriores, espera-se que a cobertura seja altamente efi caz em alcançar alterações de compensação no justo valor ou nos fl uxos de caixa atribuíveis ao risco coberto durante o período relativamente ao qual a cobertura foi designada;

b) Os resultados reais da cobertura estão dentro do intervalo de 80-125%. Por exemplo, se os resultados reais forem tais que a perda no instrumento de cobertura corresponder a 120 UM e o ganho no instrumento de caixa corresponder a 100 UM, a compensação poderá ser mensurada por 120/100, que é 120%, ou por 100/120, que é 83%. Neste exemplo, presumindo que a cobertura satisfaz a condição da alínea a), a entidade concluiria que a cobertura tem sido altamente efi caz.

Densifi cado o clausulado do nº 7 do artigo 49º, debrucemo-nos sobre o nº 8 da mesma norma que refere:” Não sendo efetuada a operação coberta, ao valor do imposto relativo ao período de tributação em que a mesma se efetuaria deve adicionar-se o imposto que deixou de ser liquidado por virtude do disposto nos números 2 e 3, ou, não havendo lugar à liquidação do imposto, deve corrigir-se em conformidade o prejuízo fi scal declarado.”

Pensa-se que este clausulado poderá trazer alguns problemas. Explica-se com um exemplo. Suponhamos que uma entidade assina em Outubro de 2010 um contrato de venda para 04/01/2011 de 1 milhão de unidades de uma mercadoria ao preço unitário de 1 euro.

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Para se cobrir do risco de uma eventual subida de preço a entidade compra a quantidade defi nida no contrato no momento da sua celebração e vende um contrato de futuros cujo ativo subjacente corresponde à quantidade que foi contratualizada e cuja liquidação será efetuada em dinheiro. Atendendo a que o preço no mercado à vista no momento da celebração do contrato é de 1 euro, a entidade regista em Inventários 1 milhão de euros.

Este tipo de cobertura de risco qualifi ca para contabilização de cobertura ao abrigo da alínea c) do parágrafo 36 da NCRF 27 – Instrumentos Financeiros, pelo que, de acordo o parágrafo 42 da referida norma, a entidade deverá reconhecer as alterações de justo valor do instrumento de cobertura (no caso vertente o contrato de futuros vendido) diretamente no capital próprio.

No dia 31/12/2010 o preço da mercadoria diminuiu no mercado à vista para 0,9 euros, o que provocou um ganho na posição curta em contratos de futuros de 85.000 euros21, que deverá ser registado da seguinte forma:

Milhares Euros Milhares EurosContrato Futuros22 85Capitais Próprios 85

22

Note-se, que apesar da descida de preço para 0,9, não é efetuado qualquer ajustamento na conta de inventários relativamente a esta mercadoria. Efetivamente, apesar de o parágrafo 9 da NCRF 18 – Inventários determinar que os inventários devem ser mensurados

21 A inexistência de uma relação de um para um entre o preço do contrato de futuros e o preço da mercadoria deve-se ao facto de os contratos de futuros sobre mercadorias terem como ativo subjacente mercadorias com caraterísticas muito específi cas, que só por acaso coincidirão exatamente com a mercadoria detida pela entidade cujo risco de preço a empresa pretende cobrir. Note-se, contudo, que ao abrigo da já referida alínea b) do parágrafo AG105 da IAS 39, a cobertura revelou-se efi caz, dado que 85.000/100.000 = 85% > 80%.

22 Esta é uma conta de balanço. Nas NIC e no SNC os instrumentos fi nanceiros derivados têm valor de balanço.

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pelo custo ou valor realizável líquido, dos dois o mais baixo; o parágrafo 31 da referida norma estipula que o valor realizável líquido da quantidade de inventário detida para satisfazer contratos de vendas fi rmes ou de prestações de serviços é baseado no preço do contrato.

Suponhamos agora que em 04/01/2011 o contrato de venda não se concretiza. A entidade, atendendo a que cobertura já não tem fundamentação, fecha a posição em futuros por reversão23 ao mesmo preço de fecho de 31/12/2010, pelo não gerou qualquer resultado em futuros em 2011.

No apuramento do lucro tributável de 2010 a entidade não considera o ganho de 85.000 euros obtido na posição em futuros, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 49º:”…são diferidos os rendimentos ou gastos gerados pelo instrumento de cobertura, na parte considerada efi caz, até ao momento em que os gastos ou rendimentos ou rendimentos do elemento coberto concorram para a formação do lucro tributável”.

Por outro lado, de acordo com o nº 8 do artigo 49º do CIRC: “Não sendo efetuada a operação coberta, ao valor do imposto relativo ao período de tributação em que a mesma se efetuaria deve adicionar-se o imposto que deixou de ser liquidado por virtude do disposto nos números 2 e 3…”.

Ou seja, assumindo que a entidade apurou lucro tributável em 2010, o valor de imposto que deixou de ser liquidado neste período de tributação devido à aplicação do nº 3 do artigo 49º correspondeu a:

25% X EUR 85.000 = EUR 21.250

Contudo, a Administração tributária só conseguiria cobrar este imposto em Abril de 2011, apesar de os rendimentos terem sido obtidos em 2010.

É certo, que ao abrigo do nº 9 do artigo 49º do CIRC, a Administração Tributária e Aduaneira cobrará juros compensatórios

23 Ou seja, comprando um contrato de futuros sobre o mesmo ativo subjacente.

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pelo diferimento na cobrança do imposto. Contudo, o legislador deveria criar um mecanismo que lhe permitisse cobrar o imposto mais cedo nestas circunstâncias, sem ter de esperar pela liquidação de IRC referente ao período de tributação em que se deveria ter realizado a operação coberta.

Finalmente, analisando agora o já referido nº 9 do artigo 49º do CIRC, importa questionar o que terá levado o legislador a isentar de juros compensatórios a entidade quando a operação coberta se concretize em pelo menos 80% da sua totalidade e o relacionamento de cobertura se enquadre no nº 3 do artigo 49º do CIRC24.

Pensa-se que se terá tentado salvaguardar o caso em que o facto da operação coberta não se realizar na sua totalidade, não seja da responsabilidade do sujeito passivo. Atendendo à difi culdade que a Administração tributária e aduaneira teria em determinar, com um razoável grau de certeza, se foi isto que efetivamente se verifi cou, ter-se-á estabelecido o limiar mínimo de 80% para o grau de realização da operação coberta, a partir do qual não há lugar à cobrança de juros compensatórios.

Finalmente vale a pena questionarmo-nos sobre o motivo que terá levado o legislador a estabelecer o limiar mínimo de 80% de percentagem de realização da operação coberta, a partir do qual há isenção de cobrança de juros compensatórios. Oitenta por cento é o limite mínimo defi nido no parágrafo AG105 da IAS 39 para que, num teste de efi cácia, uma cobertura seja considerada altamente efi caz. Assim, o legislador terá adaptado analogicamente25 esta norma contabilística à norma fi scal.

24 O nº 3 do artigo 49º do CIRC aborda dois tipos de cobertura: fl uxos de caixa e investimento líquido numa unidade operacional estrangeira. Contudo, claramente, é ao primeiro tipo que se refere o nº 9 do artigo 49º do CIRC, dado que apenas este caso se enquadra a cobertura de risco relacionado com uma transação futura de elevada probabilidade. Num investimento líquido numa unidade operacional estrangeira a transação já está, por defi nição, consumada.

25 Note-se que não se exige que a cobertura se tivesse efetuado, no mínimo, em 80%, mas sim que a operação coberta se concretize, pelo menos, em 80%.

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3.1.8 A cláusula sectorial anti-abuso do nº 10 do artigo 49º do CIRC

O nº 10 do artigo 49º do CIRC consiste numa cláusula sectorial anti-abuso, tipo que é defi nido por Courinha como “cláusulas com um carácter simultaneamente menos amplo do que CGAA, mas menos estático do que as normas especiais, formando um terceiro género autónomo” (2004).

Corresponde ao antigo nº 11 do artigo 78º do CIRC, tendo sido das poucas normas do artigo do CIRC dedicado aos instrumentos fi nanceiros derivados que apenas sofreu alterações de pormenor.

A sua inserção e manutenção no referido artigo deve-se à capacidade que os instrumentos fi nanceiros derivados possuem de requalifi car rendimentos, permitindo, desta forma, ao sujeito passivo optar pela categoria de rendimentos que benefi cia de uma tributação mais favorável26.

Contudo, não será a cláusula geral anti-abuso o instrumento adequado para a Administração Tributária reagir contra este tipo de esquemas, o que tornaria desnecessária uma norma como esta.

A explicação residirá no facto de a aplicação da cláusula geral anti-abuso ser objeto da concessão de garantias especiais ao sujeito passivo e da exigência de deveres de fundamentação mais rigorosos por parte da Administração tributária, que se encontram defi nidos no artigo 63º do CPPT.

Efetivamente, de acordo com Courinha não serão aplicáveis a este artigo o procedimento próprio defi nido no artigo 63º do CPPT, dado que conforme a alínea b) do nº 9 desta norma é necessário para a sua aplicação que a motivação primordial da operação seja fi scal, o que não se verifi ca neste caso (2004).

26 A motivação para concretização deste tipo de operações foi mitigada pela uniformização das taxas entre a categoria E – Rendimentos de Capitais e as mais-valias integradas na categoria G – Incrementos Patrimoniais introduzida pela Lei nº 55-A/2010 de 31/12 (Lei do Orçamento do Estado para 2011), tipicamente, as duas categorias entre as quais havia redistribuição de rendimentos através da utilização de instrumentos fi nanceiros derivados.

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A propósito de uma norma similar, Sanches explica da seguinte forma a existência deste tipo de normas na nossa lei fi scal: ”Corresponde, por isso, à apetência da Administração fi scal por normas anti-abuso em que a sua intervenção seja tão defi nida quanto possível por uma lei prévia, procurando encontrar uma habilitação legal que automatize o seu comportamento e limite o seu dever de fundamentação” (2006).

Seja como for, a Lei nº 64-B/2011, de 30-12 (Lei do Orçamento para 2012) desfez quaisquer dúvidas que ainda pudessem existir relativamente à aplicabilidade do procedimento defi nido no artigo 63º do Código de Procedimento e Processo Trubutário a outras normas antiabuso para além do nº 2 do artigo 38º da Lei Geral Tributária, ao alterar o nº 1 desta norma, que passou a referir expressamente: ”A liquidação de tributos com base na disposição antiabuso constante do nº 2 do artigo 38º da Lei Geral Tributária segue os termos previstos nesta norma”.

3.1.9 A ausência de referência na lei fi scal à Fair Value Option

A Fair Value Option consiste na possibilidade que a IAS 39 proporciona à entidade de designar qualquer Ativo ou Passivo como mensurável ao Justo Valor através de resultados27, desde que não seja um investimento em instrumento de capital próprio que não tenha um preço de mercado cotado num ativo, e cujo justo valor não possa ser fi avelmente mensurado.

Esta opção, prevista na alínea b) da parte do parágrafo 9 da IAS 39 intitulada “Defi nições de quatro categorias de Instrumentos Financeiros”, tem como objetivo permitir às entidades a mitigação de desequilíbrios contabilísticos provocados por items cobertos e items de cobertura sujeitos a modelos de valorização diferentes, sem se envolverem na complexidade intrínseca da contabilidade de cobertura.

27 Note-se que a Fair Value Option apenas pode ser adotada por sociedades emitentes de valores mobiliários, dado que o SNC, ao contrário das NIC’s (IAS 39), não prevê esta possibilidade.

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Contudo, quando implementada do lado do Passivo, pode dar aso a uma inconsistência no plano contabilístico que extravasa depois para o plano fi scal.

Em termos contabilísticos, quando o risco de crédito de uma entidade aumenta, a valorização dos seus passivos designados ao justo valor através de resultados diminuem, pelo que o valor dos seus capitais próprios aumenta. Ou seja, apesar de uma entidade ter aumentado o seu risco de crédito os seus acionistas viram o valor do seu investimento aumentar.

Atendendo a que a variação de valor dos passivos designados ao justo valor através de resultados tem impacto direto nos resultados contabilísticos, afeta também o seu lucro tributável pelo que, ceteris paribus, a entidade pagará mais IRC quando o seu risco de crédito aumentar e vice-versa.

Pensa-se que esta opção contabilística deveria ser objeto da atenção do legislador fi scal, inserindo no artigo 49º do CIRC uma norma que exclua da contribuição para o lucro tributável as variações de valor dos passivos designados ao justo valor através de resultados.

4. A tributação dos rendimentos de sociedades não-residentes sem estabelecimento estável gerados por instrumentos fi nanceiros derivados

4.1 No caso de inexistência de Acordo de Dupla Tributação

A leitura conjugada da alínea c) do nº 1 do artigo 2º e da alínea d) do nº 1 do artigo do CIRC permite-nos saber que as sociedades não-residentes sem estabelecimento estável em Portugal são tributáveis em IRC, pelos rendimentos das diversas categorias consideradas para efeitos de IRS, obtidos em território português.

Por outro lado, consideram-se obtidos em território português os rendimentos imputáveis a estabelecimento estável e bem assim os defi nidos no nº 3 do artigo 4º do CIRC, onde se incluem, expressamente, no nº 8 da alínea c) desta norma, os provenientes de operações relativas a instrumentos fi nanceiros derivados.

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Contudo, quando nos debruçamos sobre o artigo 94º (com a epígrafe retenção na fonte28), não encontramos qualquer referência a instrumentos fi nanceiros derivados.

Assim, os rendimentos provenientes de operações relativas a instrumentos fi nanceiros derivados apenas serão enquadráveis na alínea c) do nº 1 do referido artigo:” Rendimentos de aplicação de capitais não abrangidos nas alíneas anteriores e rendimentos prediais, tal como são defi nidos para efeitos de IRS…”

Será que alguns ganhos obtidos com instrumentos fi nanceiros derivados poderão ser considerados como rendimentos de aplicação de capitais, ao abrigo da lei fi scal?

Sendo o nº 2 do artigo 5º do CIRS uma norma de incidência, impõe-se uma leitura restritiva ao abrigo do nº 4 do artigo 11º da Lei Geral Tributária, a qual parece indicar que não.

Efetivamente, os ganhos com instrumentos fi nanceiros derivados aparecem apenas nas alíneas q) e r) da referida norma, depois da alínea p): “Quaisquer outros rendimentos de aplicação de capitais…”, correspondendo a ganhos obtidos nos seguintes tipos de operações:

• Swaps cambiais;• Swaps de taxa de juro;• Swaps de taxa de juro e divisas;• Operações cambiais a prazo;• Certifi cados que garantam ao titular o direito a receber um

valor mínimo superior ao valor de subscrição.Ou seja, para a lei fi scal portuguesa, alguns ganhos com

instrumentos fi nanceiros derivados seriam rendimentos de capitais, mas não rendimentos de aplicação de capitais, pelo que não haveria lugar a retenção na fonte em IRC, o que inviabilizaria a tributação destes rendimentos auferidos por sociedades não-residentes sem estabelecimento estável em território português.

28 Único mecanismo de tributação praticável, atendendo a que se trata de uma sociedade não-residente sem estabelecimento estável.

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Contudo, não é esta a prática e difi cilmente poderia ser, dado que ao abrigo da alínea b) do nº 4 do artigo 71º do CIRS, dever-se-á proceder à retenção na fonte em relação a este tipo de rendimentos auferidos em Portugal por pessoas singulares não-residentes, o que violaria o princípio da igualdade tributária.

No entanto, o legislador deveria precaver-se em relação a uma eventual invocação de inconstitucionalidade29, alterando o início da alínea c) do nº 1 do artigo 94º do CIRC de “Rendimentos de aplicação de capitais não abrangidos nas alíneas anteriores…” para “Rendimentos de capitais não abrangidos nas alíneas anteriores…”, o que eliminaria as dúvidas sobre a tributação destes rendimentos.

Finalmente, merece referência o facto de o artigo 30º do EBF isentar de IRC os ganhos obtidos por instituições fi nanceiras não residentes sem estabelecimento estável em Portugal em operações de swap30 contratadas com instituições fi nanceiras residentes, pelo que a argumentação atrás expendida apenas se aplica a operações de swap contratadas entre instituições fi nanceiras residentes e entidades não fi nanceiras não residentes sem estabelecimento estável em Portugal.

4.2 No caso de existência de Acordo de Dupla Tributação

No número anterior fi cou estabelecido que os ganhos obtidos em operações com derivados, mesmo os obtidos com os swaps e

29 Refere o nº 3 do artigo 103º da CRP: “Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que não tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei.”

30 Ao contrário do que se verifi ca na norma de incidência (alínea q) do nº 3 do artigo 5º do CIRS), o legislador não especifi ca as operações de swap abrangidas. Apesar de não ser difícil aceitar que são os mesmos da norma de incidência; por respeito ao princípio da segurança jurídica, dever-se-ia manter a prática de delimitar o mais possível a realidade abrangida, tanto mais num domínio tão complexo e onde os novos produtos vão surgindo a um ritmo elevado.

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certifi cados mencionados nas alíneas q) e r) do nº 2 do artigo 5º do CIRS, são considerados rendimentos obtidos em Portugal.

Assim, existindo Acordo de Dupla Tributação, estes rendimentos são enquadrados no artigo 21º (Outros rendimentos) da Convenção Modelo da OCDE, que atribui em exclusivo ao Estado da residência a competência para tributar, pelo que não poderão ser tributados por Portugal (Estado da fonte).

5. Bibliografi a

Correia, M. L. (2000). Instrumentos Financeiros Derivados: Enquadramento Contabilístico e Fiscal. Lisboa: Universidade Católica Editora.

Courinha, G. L. (2004). A Cláusula Geral Anti-Abuso no Direito Tributário:Contributos para a sua compreensão. Lisboa: Almedina.

Sanches, J. L. (2006). Os Limites do Planeamento Fiscal. Coimbra: Coimbra Editora.

Tavares, T. C. (2011). IRC e Contabilidade:Da Realização ao Justo Valor. Coimbra: Almedina.

Rui Jorge Lopes Ribeiro

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ENSAIO SOBRE OS REQUISITOS SUBSTANTIVOS DA OPA CONCORRENTE

Í

1. Nota Prévia .......................................................................... 420

2. Introdução ........................................................................... 420

3. A opa Concorrente .............................................................. 422

4. Os fundamentos do regime substantivo da opa concorrente .............................................................................. 425

5. Requisitos substantivos da opa concorrente ..................... 427

5.1 A Identidade do Oferente Concorrente ............................... 428

5.1.1 O artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários .. 428

5.1.2 A OPA Concorrente à luz do artigo 186.º do Código dos Valores Mobiliários ............................................................ 441

5.2 O Objeto da Oferta .............................................................. 443

5.2.1 Bitola uniforme para todos os oferentes concorrentes .... 443

5.2.2 Os casos em que o oferente concorrente seja acionista da sociedade visada .................................................. 447

5.3 Condições da Oferta ............................................................ 449

5.3.1 As condições de sucesso do artigo 185.º, n.º 6 do Código dos Valores Mobiliários ............................................... 449

5.3.2 As condições previstas no artigo 185.º, n.º 5 do Código dos Valores Mobiliários ............................................... 451

5.4 A Contrapartida ................................................................... 453

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5.4.1 A relevância da contrapartida na OPA Concorrente ....... 453

5.4.2 O regime da contrapartida .............................................. 454

5.4.3 A natureza da contrapartida ............................................ 456

6. Conclusão ............................................................................. 458

7. Bibliografi a ...........................................................................461

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1. Nota Prévia

O presente ensaio foi preparado no âmbito da XVII edição da Pós-Graduação de Valores Mobiliários, organizada pelo Instituto dos Valores Mobiliários, para efeitos de obtenção do certifi cado de “Pós-Graduação”, conforme estabelecido no artigo 6.º, n.º 1 do respetivo Regulamento.

A primeira referência bibliográfi ca será feita com indicação de autor, título, local de publicação, ano e página, sendo que as referências posteriores serão sempre remetidas com o nome do autor e a expressão ob. cit., acompanhada do número da página correspondente.

2. Introdução

O presente ensaio incide sobre a matéria da OPA Concorrente, regulada nos artigos 185.º, 185.º-A e 185.º-B do Código dos Valores Mobiliários, cujo regime legal foi objeto de análise na sessão lecionada pelo Dr. António Soares, subordinada ao tema “OPA Concorrente” no dia 19 de março de 2013.

Apesar de haver já, na doutrina portuguesa, autores que se pronunciaram, uns com maior profundidade, outros com menor, sobre o regime geral da OPA Concorrente em Portugal1, entendi, dado o interesse que esta temática me suscitou, bem como o conjunto de interpretações que o regime tem levantado, debruçar-me sobre ela, em particular, sobre os requisitos de substância da oferta concorrente, almejando assim, de algum modo, contribuir para o debate jurídico nesta matéria.

1 Em particular, in OPA Concorrente, Caderno dos Valores Mobiliários, Volume X, Coimbra Editora, Lisboa, 1999;

in Ofertas Concorrentes, Coimbra Editora, Lisboa, 2008 e , in, Manual da Direito dos Valores Mobiliários, II Edição, Almedina,

Coimbra, 2011.

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Como ponto de partida, e como passo introdutório, cumpre em primeiro lugar recordar os conceitos de Oferta Pública, de Oferta Pública de Aquisição e, fi nalmente, o conceito de OPA Concorrente.

O conceito de oferta pública encontra-se defi nido no artigo 109.º do Código dos Valores Mobiliários, que considera pública a oferta relativa a valores mobiliários dirigida, no todo ou em parte, a destinatários indeterminados, sendo que esta indeterminação de destinatários não é prejudicada pela circunstância de a oferta se verifi car através de múltiplas comunicações padronizadas, ainda que endereçadas a destinatários individualmente identifi cados.

Adicionalmente, considera-se também pública (i) a oferta dirigida à generalidade dos acionistas de sociedade aberta2, ainda que o respetivo capital social esteja representado por ações nominativas; (ii) a oferta que, no todo ou em parte, seja precedida ou acompanhada de prospeção ou de recolha de intenções de investimento junto de destinatários indeterminados ou de promoção publicitária; e (iii) a oferta dirigida a, pelo menos, 150 pessoas que sejam investidores não qualifi cados com residência ou estabelecimento em Portugal.

A oferta pública de aquisição, por sua vez, é a oferta dirigida à aquisição dos valores mobiliários que dela são objeto, nos termos defi nidos no artigo 173.º do Código dos Valores Mobiliários.

2 De acordo com o artigo 13.º do Código dos Valores Mobiliários, considera-se sociedade aberta “(a) a sociedade que se tenha constituído através de oferta pública de subscrição dirigida especifi camente a pessoas com residência ou estabelecimento em Portugal; (b) a sociedade emitente de ações ou de outros valores mobiliários que confi ram o direito à subscrição ou à aquisição de ações que tenham sido objeto de oferta pública de subscrição dirigida especifi camente a pessoas com residência ou estabelecimento em Portugal; (c) a sociedade emitente de ações ou de outros valores mobiliários que confi ram direito à sua subscrição ou aquisição, que estejam ou tenham estado admitidas à negociação em mercado regulamentado situado ou a funcionar em Portugal; (d) a sociedade emitente de ações que tenham sido alienadas em oferta pública de venda ou de troca em quantidade superior a 10% do capital social dirigida especifi camente a pessoas com residência ou estabelecimento em Portugal e (e) a sociedade resultante de cisão de uma sociedade aberta ou que incorpore, por fusão, a totalidade ou parte do seu património.”

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Finalmente, a defi nição de OPA Concorrente é dada pelo artigo 185.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários, quando prescreve que “a partir da publicação do anúncio preliminar de oferta pública de aquisição de valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado, qualquer outra oferta pública de aquisição de valores mobiliários da mesma categoria só pode ser lançada através de oferta concorrente”, conforme regulada pelos artigos 185.º, 185.º-A e 185.º-B do Código dos Valores Mobiliários.

3. A opa concorrente

Conforme se pode constatar pela defi nição constante do artigo 185.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários, a OPA Concorrente corresponde à oferta lançada sobre (i) valores mobiliários de uma sociedade aberta; (ii) admitidos à negociação em mercado regulamentado3; (iii) quando tenha sido publicado anteriormente o anúncio preliminar de oferta por parte de um outro oferente; (iv) que incida sobre valores mobiliários do mesmo emitente; e (v) com a especifi cidade de serem da mesma categoria dos valores mobiliários referido em (i).

É relativamente unânime a razão pela qual o momento a partir do qual uma oferta pública de aquisição se submete ao regime da Oferta Concorrente é o da publicação do anúncio preliminar da oferta previsto no artigo 175.º do Código dos Valores Mobiliários.

3 Não se compreende a opção do legislador em limitar a aplicação do regime da OPA Concorrente às ofertas sobre valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado quando o regime das OPAs se aplica a qualquer sociedade aberta. Sem nos querermos alongar sobre este tema, o qual foge ao objeto específi co do presente Ensaio, aproveitamos para remeter para a posição sufragada por , ob. cit. pp 75-76, em particular quando sustenta que “(...) não parece existir qualquer razão para que os titulares de valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado sejam, no que a este aspeto respeita, mais e melhor tutelados do que os titulares da outros valores mobiliários”.

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De acordo com o citado preceito, “logo que o oferente tome a decisão de lançamento de oferta pública de aquisição, deve enviar anúncio preliminar à CMVM, à sociedade visada e às entidades gestoras dos mercados regulamentados em que os valores mobiliários que são objeto da oferta ou que integrem a contrapartida a propor estejam admitidos à negociação, procedendo de imediato à respetiva publicação”.

O publicação do anúncio preliminar, por sua vez, obriga o oferente a (i) lançar a oferta em termos não menos favoráveis para os destinatários do que as constantes do anúncio; (ii) requerer o registo da oferta no prazo de 20 dias, prorrogável pela CMVM até 60 dias nas oferta públicas de troca e (c) informar os representantes dos trabalhadores ou, na sua falta, os trabalhadores sobre o conteúdo dos documentos em falta, assim que estes sejam tornados públicos.

Ora, uma vez que a publicação do anúncio preliminar de oferta pública de aquisição implica, para o oferente, a obrigação de lançar efetivamente a oferta em termos não menos favoráveis do que os constantes do anúncio preliminar, facilmente se compreende que qualquer oferta subsequente a esta que incida sobre a mesma categoria de valores mobiliários da sociedade visada seja submetida ao regime da OPA Concorrente, tendo o legislador, e bem, defi nido como momento de desencadeamento do regime da OPA Concorrente o da publicação do anúncio preliminar e não, por exemplo, o do anúncio de lançamento, previsto no artigo 183.º do Código dos Valores Mobiliários, momento a partir do qual a oferta fi ca efetivamente cristalizada4.

4 Com efeito, é com a publicação do anúncio de lançamento que a oferta é efetivamente lançada, passando o oferente a encontrar-se numa situação de sujeição (ao invés da situação de obrigação de lançamento da oferta em que se encontra desde a publicação do anúncio preliminar e até à publicação do anúncio de lançamento, fruto da promessa pública de que procederia ao lançamento de uma OPA em termos não menos favoráveis do que os vertidos no anúncio preliminar), apenas lhe sendo possível revogar a oferta nos casos restritos previstos no artigo 128.º do Código dos Valores Mobiliários. No entanto, dado o grau de vinculação que o oferente desde logo assume com o anúncio preliminar, é este o momento escolhido para o desencadeamento do regime da Oferta Concorrente.

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Com efeito, defender-se-á que, caso outra tivesse sido a solução do legislador, se cairia no risco de, após a publicação do anúncio preliminar de oferta a lançar pelo oferente A, o oferente B procedesse imediatamente à publicação também do seu anúncio preliminar, benefi ciando seguidamente de condições mais favoráveis para obtenção do registo da oferta - inter alia, da não sujeição a autorizações regulatórias - para, obtendo o registo da oferta mais rapidamente do que A, adiantar-se a este no anúncio de lançamento da oferta, assim transferindo para A a sujeição ao regime da Oferta Concorrente (fi gurando assim B como oferente inicial).

Esta situação poderia dar-se caso, por exemplo, B estivesse sujeito a um menor número, ou a um conjunto menos complexo de autorizações regulatórias - maxime, caso não estivesse sujeito à emissão de decisão de não oposição por parte da Autoridade da Concorrência - que lhe permitissem um procedimento mais célere para o registo da oferta, assim prejudicando o oferente A, que se veria, a meio do jogo, deparado com um regime mais restrito para o lançamento da sua oferta, com o qual teria necessariamente de se conformar5.

O limite temporal até ao qual será aplicável a uma oferta subsequente o regime da OPA Concorrente está, por sua vez, estabelecido no artigo 185.º-A, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários, que estipula que “a oferta concorrente deve ser lançada até ao 5.º dia anterior àquele em que termine o prazo da oferta inicial”, prescrevendo, por sua vez, o n.º 2 do mesmo artigo que “É proibida a publicação de anúncio preliminar em momento que não permita o cumprimento do prazo referido no número anterior”.

Verifi ca-se assim que o anúncio de lançamento da OPA Concorrente deve ser publicado no prazo acima referido, o que

5 Sem prejuízo, naturalmente, da aplicabilidade ao caso do artigo 128.º, ex vi artigo 185.º-B, n.º 4 do Código dos Valores Mobiliários.

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obrigará assim a que todos os passos anteriores a este - publicação de anúncio preliminar, entrega de pedido de registo e registo da OPA Concorrente - terão de ser obtidos em momento tal que assegure o cumprimento deste prazo por parte do oferente concorrente.

Feita esta exposição inicial acerca da opção do legislador quanto às circunstâncias em que uma oferta pública de aquisição fi cará sujeita ao regime da OPA Concorrente, cumprirá agora avançar para a análise detalhada de cada um dos requisitos substantivos da Oferta Concorrente, bem como tecer conclusões acerca da viabilidade dos mesmos para a maximização do bem-estar dos sujeitos envolvidos, designadamente, os acionistas da sociedade visada, a própria sociedade visada e o mercado em geral.

Para este efeito, distinguimos os requisitos da OPA Concorrente de acordo com a seguinte dicotomia: por um lado, os requisitos “processuais” - relativos ao conjunto de passos que terão de ser percorridos desde o momento do anúncio preliminar de OPA Concorrente até à conclusão do processo das ofertas, e que se encontra previsto nos artigos 185.ºA e 185.º-B do Código dos Valores Mobiliários -, que não serão tratados no presente ensaio; e os requisitos substantivos da oferta - que respeitam aos elementos “materiais” da OPA Concorrente, previstos no artigo 185.º, n.ºs 2 a 6 do Código dos Valores Mobiliários, e a cuja análise procederemos em 5 infra.

4. Os fundamentos do regime substantivo da opa concorrente

Antes de passarmos à parte nuclear do ensaio, importa previamente refl etir sobre os fundamentos que estão na base da defi nição de um regime jurídico específi co para a OPA Concorrente.

Muitos autores portugueses já se debruçaram sobre esta temática, inspirados em parte pela análise económica do direito e por opiniões de autores estrangeiros, por forma a determinarem quais os vetores principais que devem presidir à arquitetura de um regime de OPA Concorrente, e àquele que terá - ou deveria ter - sido o pensamento do legislador português na defi nição do regime aplicável.

A este respeito, o primeiro vetor a considerar concerne a valores constitucionais como a liberdade de iniciativa privada, a livre

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concorrência e a igualdade, princípios basilares do capitalismo, nos quais se alicerçam as raízes do Estado de Direito.

À luz destes princípios, tende-se a defender uma regulamentação mínima da OPA Concorrente ao nível da substância, defendendo-se assim que a mesma tenha o conteúdo que o oferente concorrente lhe queira atribuir, por sua conta e risco6, sem qualquer tipo de imposição legal em matéria de objeto da oferta, condições de efi cácia ou sucesso ou contrapartida.

Por outra banda, argumentos existem a favor da defi nição de um regime legal que promova o caráter mais favorável de qualquer OPA Concorrente em relação à oferta inicial, não só com fundamento na promoção do valor para os acionistas da sociedade visada, mas também com o fundamento de que os menores custos que os oferentes concorrentes têm no lançamento da OPA Concorrente, por a oportunidade ter sido descoberta às custas oferente inicial - com os custos de monitorização e auditoria que lhe terão estado associados -, e que justifi cam que qualquer oferente concorrente tenha o ónus de, em compensação pelos menores custos com o lançamento da oferta, lançar uma OPA Concorrente que importe uma melhoria objetiva das condições da oferta inicial, desde logo ao nível da contrapartida oferecida, assim restabelecendo o equilíbrio entre as posições do oferente inicial e do oferente concorrente.

Ambas as doutrinas terão razão de ser, a primeira, por se basear no princípio da livre concorrência, tem sido recebida com maior apreço. Porém, é inegável que tal liberdade de estipulação dos termos da OPA Concorrente poderá enfraquecer a posição do oferente inicial e consequentemente servir de desincentivo ao lançamento de OPAs, com o correspondente prejuízo para os acionistas da sociedade visada, para a própria sociedade visada e para o mercado em geral7.

6 Pois, caso a sua oferta for menos favorável que a antecedente, as hipóteses de sucesso serão objetivamente inferiores.

7 Com efeito, a não se potenciar o lançamento de OPAs, está automaticamente a restringir-se a existência de OPAs Concorrentes que, estando dependentes das primeiras, benefi ciarão com um regime favorável ao lançamento de OPAs.

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Com efeito, se o oferente inicial souber, no momento em que vai lançar a oferta inicial, que se encontra sujeito ao lançamento de uma OPA Concorrente sem qualquer limite quanto ao objeto, condições e contrapartida, terá com certeza menos incentivos a avançar com a oferta, face à maior probabilidade de esta vir a ser “desafi ada”.

Em oposição, a estipulação de regimes muito restritos para o caso de lançamento de OPAs Concorrentes, com a fi xação de restrições ao nível do objeto da oferta, das condições da oferta e da contrapartida oferecida, poderão, por seu turno, desincentivar os potenciais oferentes concorrentes, que poderão, em função da exigência do regime que lhes é imposto, optar por não lançar uma OPA Concorrente, a qual seria certamente lançada se tal regime restritivo não se aplicasse.

5. Requisitos substantivos da opa concorrente

Conforme já enunciado em 3 supra, a defi nição de OPA Concorrente que nos é dada pelo artigo 185.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários tem um caráter formal/procedimental, determinando um momento a partir do qual o lançamento de uma oferta pública de aquisição está sujeito a um conjunto adicional de regras que visam acomodar a situação de concorrência que se criou.

Podemos identifi car quatro requisitos substanciais da OPA Concorrente, quanto a (i) identidade do oferente; (ii) objeto da oferta; (iii) condições da oferta e (iv) contrapartida.

No que concerne à (i) identidade do oferente, preceitua o artigo 185.º, n.º 3 do Código dos Valores Mobiliários que “não podem lançar OPA Concorrente as pessoas que estejam com o oferente inicial ou com o oferente concorrente anterior em alguma das situações previstas no artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários, salvo autorização da CMVM a conceder caso a situação que determina a imputação dos direitos de voto cesse antes do registo da oferta”.

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No que tange a (ii) objeto da oferta, determina o artigo 185.º, n.º 4 do Código dos Valores Mobiliários que “as ofertas concorrentes não podem incidir sobre quantidade de valores mobiliários inferior àquela que é objeto da oferta inicial”.

No que respeita, por sua vez, a (iii) condições da oferta, o artigo 185.º, n.º 6 do Código dos Valores Mobiliários estipula que “a oferta concorrente não pode fazer depender a sua efi cácia de uma percentagem de aceitações por titulares de valores mobiliários ou de direitos de voto em quantidade superior à constante da oferta inicial ou de oferta concorrente anterior, salvo se essa percentagem se justifi car em função dos direitos de voto na sociedade visada já detidos pelo oferente e por pessoas que com este estejam em alguma das situações previstas no artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários”. Adicionalmente, o artigo 185.º, n.º 5 determina que a OPA Concorrente não pode conter condições que a tornem menos favorável do que a oferta antecedente, seja ela a oferta inicial ou uma OPA Concorrente anterior.

Finalmente, e talvez o mais importante dos requisitos, pelo menos pela visibilidade que tem e pela importância que lhe é dada pelos destinatários da oferta, em particular dos investidores não qualifi cados8, temos a (iv) contrapartida, em relação à qual o artigo 185.º, n.º 5 do Código dos Valores Mobiliários estipula que a mesma deverá ser superior à da oferta antecedente em pelo menos 2% do respetivo valor.

5.1 A Identidade do Oferente Concorrente

5.1.1 O artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários

O regime da OPA Concorrente fi xa uma importante limitação subjetiva quanto à habilitação para o lançamento de OPA

8 Conceito de “investidor não qualifi cado” resulta da interpretação a contrario do artigo 30.º do Código dos Valores Mobiliários.

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Concorrente, ao determinar que fi cam impedidos de lançar OPA Concorrente as pessoas que estejam com o oferente inicial ou com o oferente concorrente em alguma das situações previstas no artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários, salvo autorização da CMVM a conceder caso a situação que determina a imputação de direitos de voto cesse antes do registo da oferta.

O artigo 20.º, n.º 1, conforme descrito infra, tem o propósito de “imputar ao participante os direitos de voto cujo exercício se considere ser por ele infl uenciado ou infl uenciável, já no uso de alguma faculdade jurídica, já num plano puramente fático”9.

Cumpre, no entanto, suscitar se a opção do legislador nesta matéria faz sentido, ou se a mera remissão para as causas de imputação do artigo 20.º, n.º 1 dos Valores Mobiliários correspondam uma excessivo zelo do legislador no estabelecimento de restrições relativas à identidade do oferente concorrente.

De acordo com o citado artigo, no cômputo das participações qualifi cadas consideram-se, além das inerentes às ações de que o participante tenha a titularidade ou o usufruto, os direitos de voto:

a) Detidos por terceiros em nome próprio, mas por conta do participante;

b) Detidos por sociedade que com o participante se encontre em relação de domínio ou de grupo;

c) Detidos por titulares do direito de voto, com os quais o participante tenha celebrado acordo para o seu exercício, salvo se, pelo mesmo acordo, estiver vinculado a seguir instruções de terceiro;

d) Detidos, se o participante for uma sociedade, pelos membros dos seus órgãos de administração e de fi scalização;

e) Que o participante possa adquirir em virtude de acordo celebrado com os respetivos titulares;

9 C O C , Imputação de Direitos de Voto no Código dos Valores Mobiliários, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 7, Lisboa, abril de 2000.

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f) Inerentes a ações detidas em garantia pelo participante ou por este administradas ou depositadas junto dele, se os direitos de voto lhe tiverem sido atribuídos;

g) Detidos por titulares do direito de voto que tenham conferido ao participante poderes discricionários para o seu exercício;

h) Detidos por pessoas que tenham celebrado algum acordo com o participante que vise adquirir o domínio da sociedade ou frustrar a alteração de domínio ou que, de outro modo, constitua um instrumento de exercício concertado de infl uência sobre a sociedade participada;

i) Imputáveis a qualquer das pessoas referidas numa das alíneas anteriores por aplicação, com as devidas adaptações, de critério constante de alguma das outras alíneas.

Antes de nos debruçarmos sobre esta temática, cumpre referir que a interpretação que a doutrina portuguesa tem feito deste artigo tem sido tendencialmente restritiva10, havendo uma efetiva tendência para limitar a aplicação dos fatores de imputação do referido preceito àquelas em que a imputação se dê a título subjetivo, e, dentro desta área, às causas de imputação constantes dos pares de alíneas c), h) e b), d).

Esta questão acaba por ser tanto mais importante se verifi carmos que a autorização da CMVM para o lançamento de OPA Concorrente, nos casos em que o oferente concorrente esteja com o oferente inicial em algum dos casos previsto no artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários, apenas pode ser conferida caso “a situação que determina a imputação de direitos de voto cesse antes do registo da oferta” 11.

10 , ob. cit, pp 231 e ss.; , Algumas Observações em Torno da Tripla Funcionalidade da Técnica de Imputação de Votos no código dos Valores Mobiliários, in Caderno dos Valores Mobiliários, n.º 7, abril de 2007, pp. 55-57.

11 Parece-nos altamente discutível o mérito de se retirar à CMVM o poder de determinar se, no caso concreto, se justifi ca a aplicação da presente limitação. Com efeito, ao conferir à CMVM esta possibilidade de escrutínio, o legislador teria conferido à norma uma plasticidade que lhe permitiria adaptar-se mais

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Esta solução legal, da qual discordamos, está aliás em contraposição com o seu antecedente artigo 561.º, n.º 3 do saudoso Código do Mercado dos Valores Mobiliários, o qual atribuía à CMVM a faculdade de fazer, in casu, um juízo de razoabilidade da inibição de lançamento de OPA Concorrente por serem imputados ao oferente concorrente os votos do oferente inicial na sociedade visada12.

(A) Razão de Ordem

Permitimo-nos, relativamente à limitação subjetiva constante do artigo 185.º, n.º 3 do Código dos Valores Mobiliários, chamar ao presente ensaio as palavras de , quando refere que “O telos do actual artigo 185.º, n.º 3, funda-se não só na necessidade de evitar uma revisão encapotada da oferta, tal como postulavam e

à luz do Cód.MVM, mas também no intuito de assegurar a transparência e bom funcionamento do processo de OPA, uma vez que, para os acionistas, em particular para os pequenos investidores da sociedade visada, seria confuso, pouco claro e destituído de sentido que a mesma pessoa, singular ou colectiva, estivesse, de forma directa ou indirecta, a avaliar a empresa por valores díspares.13”

O objetivo que subjaz à norma é assim o de evitar que o oferente inicial procure, ardilosamente, chamar a si o regime jurídico da

facilmente a cada caso concreto, sendo o oferente subsequente admitido a lançar OPA Concorrente quando a CMVM concluísse não estar verifi cada qualquer circunstância que o devesse impedir, com todos os benefícios daí resultantes para acionistas da sociedade visada, própria sociedade visada e mercado em geral.

12 De acordo com o artigo 561.º, n.º 3 do Código do Mercado de Valores Mobiliários “salvo autorização devidamente fundamentada da CMVM, que só concederá em casos excepcionais em que o considere justifi cado, não podem lançar uma oferta concorrente as pessoas que actuem em concertação com o oferente, ou como mandatários do oferente, da oferta inicial ou de uma oferta concorrente anterior”..

13 , ob. cit. pp. 231.

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OPA Concorrente, ao invés de se sujeitar às regras que regulam a OPA em termos estritos14.

Para este efeito, o legislador, à cautela, recorreu à cláusula que lhe dava maiores garantias quanto a este aspeto - o artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários, aqui, na sua terceira funcionalidade técnica15 - sem ter cuidado de verifi car se cada uma das alíneas aí previstas justifi cava a sua aplicação na presente matéria.

(B) A lógica de as causas de imputação do artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários constituírem restrição subjetiva ao lançamento de OPA Concorrente

Como nota preliminar, podemos desde já afi ançar que, em nossa opinião, não se justifi ca que todas as cláusulas de imputação de direitos de voto vertidas no artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários sirvam de restrição ao lançamento de uma OPA Concorrente, ainda para mais nos termos absolutos em que tal inibição é defi nida, sem que a CMVM possa fazer, in casu, um juízo quanto à suscetibilidade de a OPA Concorrente constituir uma manobra engenhosa do oferente inicial para recorrer, por intermédio de um terceiro, ao regime legal previsto no artigo 185.º, 185.º-A e 185.º-B do Código dos Valores Mobiliários.

Com efeito, os prejuízos que o legislador visou evitar com a consagração desta restrição: (i) a tentativa de manipulação, pelo oferente inicial, das regras da revisão da oferta, através da utilização de entidade com quem está conluiada, para o lançamento de OPA Concorrente e (ii) a eventual confusão criada nos destinatários da oferta, que se veriam perante a circunstância de terem uma oferta inicial e uma OPA Concorrente lançadas por duas entidades que

14 Analisaremos mais adiante que motivações (se algumas) poderão existir para que um oferente inicial procure recorrer ao regime da OPA Concorrente ao invés de atuar de acordo com as regras aplicáveis à oferta inicial (sobretudo, em matéria de revisão da oferta).

15 A este respeito, ver , ob. cit., pp. 55-57.

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estão concertadas; não se fazem sentir na esmagadora maioria dos casos previstos nas alíneas do artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários.

Este excessivo número de fatores de restrição subjetiva do lançamento de OPAs Concorrentes é tanto mais nefasto se se atender a que os benefícios para os acionistas da sociedade, para a própria sociedade visada e para o mercado em geral do lançamento de OPAs Concorrentes em muito ultrapassam os prejuízos resultantes da eventual manipulação de regime e da confusão criada nos destinatários da OPA Concorrente relativamente à identidade dos oferentes.

Relativamente à questão da manipulação do regime legal, não vemos qual possa ser o interesse objetivo do oferente inicial em lançar uma OPA Concorrente através do participante em nome do qual detém as ações, para fugir ao regime “geral” da OPA, em particular ao regime de revisão da oferta previsto no artigo 184.º.

Com efeito, atendendo ao regime de revisão da oferta estabelecido nos artigos 184.º e 185.º, n.º 1-B - este último aplicável apenas quando haja ofertas em concorrência - conclui-se que o lançamento de uma OPA Concorrente implicará até um conjunto de ónus adicionais em relação à revisão da oferta inicial, como sejam o da elaboração e publicação de um prospeto adicional e da ultrapassagem de uma nova fase de registo da oferta, o que torna a OPA Concorrente num procedimento que não se coaduna com tentativas de manipulação do regime da oferta inicial (designadamente, da sua revisão), a qual benefi cia de regras menos rígidas do que a OPA Concorrente, inutilizando assim, em termos lógicos, a proibição de lançamento da OPA Concorrente àqueles que estejam com o oferente inicial em qualquer das situações de imputação de direitos de voto previstas no artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários.

Pelo exposto, não se descortina qual poderá ser o incentivo de um oferente inicial em recorrer a uma entidade com ele concertada para os efeitos previstos no artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários para, através desta, lançar uma OPA Concorrente, ao invés de simplesmente rever a sua oferta inicial.

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Cumpre referir, no entanto, que o presente entendimento assenta no facto de, em nossa opinião, o artigo 184.º n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários não estabelecer limites ao número de vezes que a oferta inicial pode ser revista16. Caso o entendimento fosse o de que o artigo 184.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários apenas permite uma revisão, a utilização pelo oferente inicial de um terceiro para, através dele, recorrer ao regime de OPA Concorrente permitiria “ultrapassar” a limitação ao número de revisões da oferta estabelecida no artigo 184.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários, havendo assim uma razão lógica para se promover uma manipulação do regime da OPA Concorrente. Sem prejuízo do exposto, entendemos que esta interpretação não encontra, hoje em dia, qualquer apoio na letra da lei.

Tendo em consideração o sobredito, e fazendo a análise autónoma de cada uma das alíneas do artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários como fatores de inibição subjetiva do lançamento de OPAs Concorrentes, extraímos as seguintes conclusões:

a) Direitos de voto detidos por terceiros em nome próprio, mas por conta do participante

A presente causa de imputação dirige-se, primacialmente, aos casos em que uma pessoa jurídica detenha ações em nome de outra, sempre com o propósito de conceder primazia à titularidade fático-económica e de frustrar a manobra consistente na dispersão das ações por vários sujeitos17.

Será este o caso, por exemplo, de alguém assumir a qualidade de sócio de uma sociedade votando em assembleia-geral e recebendo os dividendos por conta e no interesse de outrem, verdadeiro benefi ciário económico da participação18.

Não vemos que a presente causa de imputação justifi que, à luz do artigo 185.º, n.º 3 do Código dos Valores Mobiliários,

16 Neste sentido, ob. cit. pp. 397 e ss. 17 , ob. cit. pp 188-190.18 , A Imputação de Direitos de Voto no Mercado

de Capitais, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 7, Lisboa, abril de 2006.

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que o benefi ciário económico das ações da sociedade visada seja impedido de lançar uma OPA Concorrente caso o oferente inicial seja o detentor das referidas ações, reproduzindo-se para este efeito o nosso entendimento expresso em 5.1.1 (B).

b) Direitos de voto detidos por sociedade que com o participante se encontre em relação de domínio ou de grupo

A presente causa de imputação será aquela que, a nosso ver, mais facilmente será aceite como causa de inibição de um participante de lançamento de uma OPA Concorrente.

De acordo com o artigo 21.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários “(...) considera-se relação de domínio a relação existente entre uma pessoa singular ou coletiva e uma sociedade quando, independentemente de o domicílio ou a sede se situar em Portugal ou no estrangeiro, aquela possa exercer sobre esta, direta ou indiretamente, uma infl uência dominante”. De acordo com o n.º 2 do mesmo artigo “Existe, em qualquer caso, relação de domínio quando uma pessoa singular ou colectiva (a) disponha da maioria dos direitos de voto; (b) possa exercer a maioria dos direitos de voto, nos termos de acordo parassocial; (c) possa nomear ou destituir a maioria dos titulares dos órgãos de administração ou de fi scalização”. Finalmente, o n.º 3 do mesmo artigo determina que “(...) consideram-se em relação de grupo as sociedades como tal qualifi cadas pelo Código das Sociedades Comerciais, independentemente de as respetivas sedes se situarem em Portugal ou no estrangeiro”.

Caso o oferente concorrente seja uma sociedade que se encontra em relação de domínio ou grupo com o oferente inicial, existe, com efeito, uma relação de identidade entre ambas as entidades, a qual pode assim ser entendida como um método de subversão das regras relativas à revisão da oferta inicial, com a consequência adicional de poder confundir os destinatários da oferta, os quais se verão perante duas ofertas distintas apresentadas, em termos substanciais, pela mesma entidade jurídica19.

19 Em certos casos essa confusão poderá existirá inclusivamente ao nível da fi rma.

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Consideramos assim ser justifi cável, à luz da presente alínea, a inibição, por parte do participante, da faculdade de lançamento de OPA Concorrente, devendo neste caso, em contrário, ser promovida a revisão da oferta por parte do oferente inicial, nos termos do artigo 184.º do Código dos Valores Mobiliários, sem prejuízo do que já referimos a respeito da (i)lógica de se preferir o regime da OPA Concorrente ao regime da oferta inicial.

c) Direitos de voto detidos por titulares do direito de voto com os quais o participante tenha celebrado acordo para o seu exercício, salvo se, pelo mesmo acordo, estiver vinculado a seguir instruções de terceiros

Quanto a esta causa de imputação, que parte da doutrina tem considerado que não deverá constituir fator de inibição do lançamento, pelo participante, de uma OPA Concorrente20, a nossa posição vai também no sentido da sua irrelevância para efeitos do artigo 185.º, n.º 3 do Código dos Valores Mobiliários.

Com efeito, não vemos de que modo é que um acordo de voto celebrado entre oferente inicial e oferente concorrente relativamente ao exercício de direitos de voto em assembleias gerais da sociedade visada deverá constituir fator de inibição de lançamento, por este último, de OPA Concorrente.

Atente-se no seguinte exemplo: os direitos de voto de A na sociedade B estão imputados a C por força de um acordo de voto para designação dos administradores. fará sentido que C seja impossibilitado, pela existência desse acordo, de lançar uma OPA Concorrente sobre a sociedade B quando esteja pendente uma oferta de A?

Não se vê qual o prejuízo que daí poderia resultar para os acionistas da sociedade visada. Bem pelo contrário, o estabelecimento desta restrição impossibilitaria os acionistas da sociedade visada de obterem uma contrapartida superior pelas suas ações, e de a própria sociedade visada vir a ser controlada por um

20 , ob. cit pp 232.

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acionista que, atribuindo à sociedade um valor superior, teria a expetativa de, obtido o controlo, alcançar uma produtividade, ou sinergias, superiores às que o oferente inicial poderia obter.

Note-se que, a não se interpretar o artigo 185.º, n.º 3, no sentido de excluir a alínea c) do artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários, um acordo de voto entre o oferente inicial e um acionista da sociedade visada que disponham, por absurdo que possa ser, de 0,01% dos direitos de voto cada, serão sufi cientes para inibir o referido acionista de lançar uma OPA Concorrente21.

A conclusão a que se chega nesta ponto é assim a mesma a que se chegou quanto à alínea (a) supra, a de que não se justifi ca que a presente causa de imputação desencadeie a inibição de lançamento, pelo participante, de OPA Concorrente, quando lhe sejam imputados os votos do oferente inicial.

d) Direitos de voto detidos, se o participante for uma sociedade, pelos membros dos seus órgãos de administração e de fi scalização

Relativamente à presente causa de imputação, consideramos, uma vez mais, que não se justifi ca que a mesma implique a impossibilidade de lançamento, por um administrador ou membro do conselho de fi scalização do oferente inicial, de uma OPA Concorrente.

Com efeito, uma vez mais deverão ser feitos valer os argumentos expostos em 5.1.1 (B), bem como a posição vertida supra relativamente à causa de imputação (c).

Admitimos contudo, neste ponto, que a identidade do oferente possa, neste caso, gerar confusão nos destinatários da oferta, que se veriam perante (i) uma oferta inicial lançada pela sociedade e (ii) uma OPA Concorrente lançada pelo seu administrador ou membro do órgão de fi scalização, o que seria objetivamente apto a gerar confusão22.

21 Este argumento é meramente acessório, pois que a nossa conclusão é a de que independentemente da percentagem de direitos de voto objeto de imputação, as mesmas não deverão servir de entrave ao lançamento de uma OPA Concorrente.

22 Sobretudo pela falta de nexo que representará um membro de um órgão de administração ou fi scalização da sociedade estar a concorrer com esta no processo de oferta para aquisição da sociedade visada, sem prejuízo da violação dos deveres fundamentais de administradores e membro do órgão de fi scalização que muito provavelmente resultaria dessa conduta.

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Ainda assim, com base nos argumentos expostos em 5.1.1 (B), somos levados a concluir no sentido da aceitação da OPA Concorrente que seja lançada por quem esteja com o oferente inicial em relação de imputação ao abrigo da alínea d) do artigo 20.º, n.º 1, sem prejuízo das cautelas levantadas supra quanto à confusão que tal situação poderá criar nos destinatários da oferta.

e) Direitos de voto que o participante possa adquirir em virtude de acordo celebrado com os respetivos titulares

Relativamente à presente alínea, não nos parece razoável que o facto de um participante ter celebrado com o oferente inicial, por exemplo, um contrato de opção de compra de ações da sociedade visada - ou um contrato-promessa de compra e venda23 -, possa servir de inibição do lançamento, por este último, de uma OPA Concorrente, cujos benefícios foram já elucidados em 4 supra.

A existência, por exemplo, de uma opção de compra, não obstante gerar a imputação de direitos de voto, por se assumir que o titular de opção poderá infl uenciar, de algum modo, o exercício dos direitos de voto da contraparte, não parece justifi car a inibição do optante de lançar uma OPA Concorrente.

No nosso entendimento, não há qualquer razão de regime que justifi que que se iniba um optante, promitente-comprador ou comprador com reserva de propriedade de lançar uma OPA Concorrente quando a sua contraparte tenha lançado a oferta inicial.

f) Direitos de voto inerentes a ações detidas em garantia pelo participante ou por este administradas ou depositadas junto dele, se os direitos de voto lhe tiverem sido atribuídos

No presente caso, não vemos por que razão a causa de imputação deverá constituir fator de inibição, por parte do participante, do lançamento de OPA Concorrente.

Atente-se no presente exemplo: A, sociedade produtora de energia elétrica, com uma participação numa sociedade de telecomunicações com ações admitidas à negociação em mercado

23 , ob. cit, pp. 188-190.

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regulamentado, contrai um fi nanciamento junto do banco B, em garantia do qual constitui penhor sobre ações correspondentes a 1%24 do capital social da sociedade de telecomunicações, sendo o direito de voto sobre essas ações atribuído ao banco B.

Caso A lance uma OPA sobre a sociedade de telecomunicações, B deverá fi car impedido de lançar OPA Concorrente? De acordo com a interpretação declarativa do artigo 185.º, n.º 3 do Código dos Valores Mobiliários, B estaria, à luz do artigo 185.º, n.º 3 do Código dos Valores Mobiliários, efetivamente inibido de lançar OPA Concorrente.

Ora estamos em crer que, nesta circunstância, como nas circunstâncias tratadas em (a), (c), (d) e (e), a aplicação tout court da restrição subjetiva constante do artigo 185.º, n.º 3 do Código dos Valores Mobiliários tem como consequência o prejuízo (i) para os acionistas da sociedade visada, que vêm negada a possibilidade de venderem as suas participações a um oferente diferente por uma contrapartida superior, (ii) da sociedade visada, que poderia ser gerida pelo oferente concorrente, com os potenciais benefícios daí decorrentes conforme referido em (C) supra e (iii) para o próprio mercado em geral, sem que, em contrapartida, a aplicação da restrição permita algum tipo de benefício para os sujeitos envolvidos.

A conclusão quanto a este ponto será assim a de que a presente causa de imputação de direitos de voto não deverá servir de restrição ao participante para o lançamento de OPA Concorrente.

g) Direitos de voto detidos por titulares do direito de voto que tenham conferido ao participante poderes discricionários para o seu exercício

Aplica-se, mutatis mutandis, o raciocínio explanado em (A) supra, dando-se por reproduzida a conclusão a que chegámos nesse ponto.

24 A escolha da percentagem de 1% é meramente aleatória, pois, conforme referido na nota de rodapé n.º 1, o nosso entendimento é o mesmo independente da percentagem de direitos de voto objeto de imputação.

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h) Direitos de voto detidos por pessoas que tenham celebrado algum acordo com o participante que vise adquirir o domínio da sociedade ou frustrar a alteração de domínio ou que, de outro modo, constitua um instrumento de exercício concertado de infl uência sobre a sociedade participada

Quanto à presente causa de imputação, remetemos para o que foi dito quanto à alínea (c) supra, sendo assim nossa opinião que a existência deste fator de imputação não justifi ca a inibição de um participante, que com o oferente tenha celebrado um acordo com uma das fi nalidades aqui referidas relativamente à sociedade visada, vir a lançar uma OPA Concorrente.

Com efeito, apesar de no presente caso estarem em causa, designadamente, acordos parassociais, bem como a concertação de comportamentos, nomeadamente na convocatória, aposição de pontos à ordem de trabalhos e exercício de sentido de direito de voto em deliberações da assembleia geral, ou em outros atos sociais nos quais os acionistas concertados intervenham, consideramos que se poderá aplicar o mesmo raciocínio exposto em (c) supra, por estar em causa a defi nição de comportamentos futuros com relevância para a sociedade, pelo que a presente alínea deverá igualmente ser excluída da limitação genérica que se encontra prescrita no artigo 185.º, n.º 3 do Código dos Valores Mobiliários.

i) Direitos de voto imputáveis a qualquer das pessoas referidas numa das alíneas anteriores por aplicação, com as devidas adaptações, do critério constante de alguma das outras alíneas

Relativamente a esta última alínea, a conclusão será, na maioria dos casos, negativa, pois que apenas uma das causas de imputação supra referidas foi identifi cada como fator razoável de inibição da possibilidade de lançamento de OPA Concorrente - a causa de imputação constantes da alínea (b) do artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários.

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5.1.2 A OPA Concorrente à luz do artigo 186.º do Código dos Valores Mobiliários

Ultrapassada a análise do requisito subjetivo imposto pelo regime da OPA Concorrente, e com conclusões que postulam por uma interpretação mais lata ou, idealmente, uma alteração da redação do preceito legal em causa, e que têm o condão de favorecer a proliferação de OPAs Concorrentes; cumpre agora analisar outra questão que se pode colocar nesta temática, e que diz respeito à aplicabilidade, ao oferente concorrente, da limitação imposta pelo artigo 186.º do Código dos Valores Mobiliários.

De acordo com o referido preceito “Salvo autorização concedida pela CMVM para proteção dos interesses da sociedade visada ou dos destinatários da oferta, nem o oferente nem qualquer das pessoas que com este estejam em alguma das situações previstas no n.º 1 do artigo 20.º podem, nos 12 meses seguintes à publicação do apuramento do resultado da oferta, lançar, diretamente, por intermédio de terceiro ou por conta de terceiro, qualquer oferta pública de aquisição sobre os valores mobiliários pertencentes à mesma categoria dos que foram objeto da oferta ou que confi ram direito à sua subscrição ou aquisição”.

Cumpre saber, contudo, se esta limitação se aplica em caso de OPA Concorrente, isto é, se uma pessoa que caia na previsão do artigo 186.º poderá, caso um outro oferente lance uma OPA sobre a mesma sociedade visada, lançar OPA Concorrente sobre essa mesma sociedade.

A questão não parece ser de resposta fácil. Com efeito, a ratio que subjaz a esta limitação tem por objetivo evitar distorções de mercado, nomeadamente que o oferente, através de um conjunto de OPAs sucessivas e sem qualquer suscetibilidade de sucesso, limite sucessivamente a atuação da sociedade visada, subjugando-a aos deveres e limitações impostos pelos artigos 181.º e 182.º do Código dos Valores Mobiliários, respetivamente, ao mesmo tempo que cria confusão nos acionistas da sociedade, presenteados sucessivamente com ofertas que poderão ser completamente descabidas em termos de contrapartida oferecida.

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Ora, atenta a ratio da disposição, conclui-se que a aplicação da mesma não reveste lógica no caso de o “inibido” pretender lançar uma OPA Concorrente.

Com efeito, na medida em que (i) o oferente inicial não está sujeito à regra do artigo 186.º do Código dos Valores Mobiliários e que (ii) o regime da oferta concorrente obriga a OPA Concorrente a ser lançada em termos não menos favoráveis do que a oferta inicial, e com uma contrapartida superior em pelos menos 2% à oferta antecedente; não se justifi ca impedir que seja lançada OPA Concorrente por quem já tenha lançado nos últimos 12 meses uma OPA sobre a mesma sociedade visada.

Admitimos que este entendimento, visto de determinados prismas, possa parecer desprovido de sentido. Com efeito, a aceitar-se esta possibilidade, criar-se-ia a circunstância de o “inibido” fi car dependente do lançamento de uma oferta por outro oferente para poder, através de OPA Concorrente, escapar às “amarras” do artigo 186.º do Código dos Valores Mobiliários. Ademais, poder-se-ia dar o caso de o valor oferecido pelo oferente na OPA Concorrente ser inferior ao que havia sido oferecido na oferta lançada nos doze meses anteriores - mas conforme com o artigo 185.º, n.º 5 do Código dos Valores Mobiliários -, o que constituiria um desvirtuamento do sentido material da própria norma.

Parece-nos, no entanto, que, à falta de regras que regulem especifi camente esta circunstância, a faculdade de um oferente “inibido” poder lançar uma OPA Concorrente estará dependente de autorização da CMVM, a conceder casuisticamente caso conclua que a OPA Concorrente permitiria proteger os interesses da sociedade visada ou dos destinatários da oferta25.

Caberá assim à CMVM, caso o oferente “inibido” nos termos do artigo 186.º do Código dos Valores Mobiliários pretenda lançar uma OPA Concorrente, avaliar se esta será benéfi ca para os sujeitos supra referidos, concedendo a autorização se a conclusão for positiva26.

25 Conforme artigo 186.º do Código dos Valores Mobiliários.26 À luz do que foi já explicado acerca do regime da OPA Concorrente, a

tendência é que a resposta da CMVM seja afi rmativa. Mais dúvidas se colocam nos casos em que a contrapartida oferecida na OPA Concorrente seja inferior à

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Por último, importa alertar que a presente conclusão se encontrará, necessariamente, sujeita a um limite, que é o de garantir que oferente inicial e oferente concorrente não tiveram como mero propósito fazer cair a limitação imposta pelo artigo 186.º do Código dos Valores Mobiliários.

A existência de um tal conluio será tanto mais provável quando o oferente inicial e oferente concorrente estejam ligados por algum dos critérios de imputação de direitos de voto constantes do artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários, em particular da alínea f), ou quando exista um mero acordo qual A se comprometa perante B a lançar uma OPA sobre C, numa altura em que B esteja impedido de lançar OPA sobre C por efeito do artigo 186.º do Código dos Valores Mobiliários, com o exclusivo intuito de benefi ciar da interpretação por nós supra defendida.

5.2 O Objeto da Oferta

5.2.1 Bitola uniforme para todos os oferentes concorrentes

Os requisitos quanto ao objeto da OPA Concorrente encontram-se estabelecidos no artigo 185.º, n.º 4 do Código dos Valores Mobiliários, o qual determina que “As ofertas concorrentes não podem incidir sobre quantidade de valores mobiliários inferior àquela que é objeto da oferta inicial”.

Independentemente das razões que lhe subjazam, entendemos que o preceito é claro: a bitola a tomar em consideração pelo oferente concorrente será sempre a oferta inicial, o que signifi ca que todos os oferentes concorrentes estarão, em termos de objeto da oferta, balizados pela mesma cifra - o objeto da oferta tal como delineado pelo oferente inicial27.

contrapartida oferecida pelo oferente concorrente na oferta que realizara nos doze meses anteriores.

27 Note-se, aliás, que se quisesse utilizar como bitola a oferta antecedente, como no caso do artigo 185.º, n.º 5 e 6, o legislador tê-lo-ia referido expressamente. Em sentido contrário, , ob. cit pp 94-95.

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Esta circunstância vem permitir, no entanto, e como bem nota , que se possam gerar situações que

desvirtuem o propalado princípio da melhoria progressiva das ofertas concorrentes28.

De acordo com este princípio, só se justifi ca que uma OPA Concorrente seja admitida conquanto traduza uma melhoria objetiva em relação à oferta anterior, aumentando assim o potencial retorno para os acionistas da sociedade visada que vendam as suas ações.

A este argumento acrescentaríamos um outro, que parece ter estado na mente do legislador quando edifi cou o regime substantivo da OPA Concorrente: assegurar que qualquer OPA Concorrente corresponderá a uma melhoria substancial da oferta inicial, por forma a, de certa forma, proteger a posição do oferente inicial, cuja oferta apenas poderá ser “desafi ada” por outra que apresente termos objetivamente mais favoráveis, representando um verdadeiro compromisso do oferente concorrente na aquisição da sociedade visada, e não uma mera intenção emulativa, de destruição dos objetivos do oferente inicial.

O preceito em análise, da forma como está redigido, não concretiza, de per se, o princípio da melhoria progressiva das ofertas concorrentes, sendo no entanto um auxiliar precioso do mesmo, ao garantir, pelo menos, a manutenção do status quo no que concerne ao objeto da oferta inicial.

Note-se, no entanto, que em virtude da redação do preceito, poderá suceder, por exemplo, que um primeiro oferente concorrente aumente o objeto da oferta em 20% dos valores mobiliários, com o correspondente aumento da contrapartida em 2%29 e que, em momento posterior, um segundo oferente venha lançar OPA Concorrente sobre o mesmo objeto da oferta inicial, acompanhada da necessária subida da contrapartida de 2% em relação à primeira

28 , ob. cit pp 226-227.29 Conforme exigido pelo artigo 185.º, n.º 5 do Código dos Valores Mobiliários,

conforme analisaremos infra.

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OPA Concorrente. Neste caso, a segunda OPA Concorrente será tendencialmente menos favorável do que a primeira OPA Concorrente, pois apesar de aumentar ligeiramente a contrapartida, diminuiria o objeto da oferta de tal modo que haveria um número considerável de acionistas da sociedade visada que no caso da primeira OPA Concorrente conseguiriam vender as suas ações, mas que no caso da segunda OPA Concorrente veriam gorada essa intenção.

Sem prejuízo de, teoricamente, poder haver um prejuízo para os acionistas pelo facto de a segunda OPA Concorrente ser à partida menos favorável do que a primeira OPA Concorrente, a verdade é que a existência desta segunda OPA Concorrente teoricamente não prejudica, mas antes alarga, o leque de opções dos acionistas da sociedade visada - que podem aceitar uma ou outra oferta -, com os benefícios daí inerentes, sem prejuízo, naturalmente, de este alargamento do leque de ofertas poder implicar que, em uma delas, ou em ambas, a condição de sucesso estabelecida não se verifi que30.

Apesar de o preceito em análise não corresponder à aplicação material do princípio da melhoria progressiva das ofertas concorrentes, a verdade é que a forma como o preceito está redigido permite cumprir alguns dos desígnios do regime da OPA Concorrente, como sejam (i) a promoção da existência de OPAs; (ii) a promoção da existência de OPAs Concorrentes e (iii) a melhoria31 da posição dos acionistas da sociedade visada, da sociedade visada e do mercado em geral.

Em relação a (i) supra, o modo como o preceito está construído salvaguarda a posição do oferente inicial, impondo que uma OPA Concorrente apenas seja admitida se não for objetivamente menos favorável, protegendo assim, dentro do possível, a posição de quem deu origem à OPA, com os custos com a descoberta da

30 Em última análise, o surgimento da OPA Concorrente poderá impedir que se verifi quem as condições de sucesso da oferta inicial. Nessa circunstância, caso a OPA Concorrente não atinja, também, a condição de sucesso, as duas ofertas terão o efeito de se anularem a si mesmas.

31 Ou, pelo menos, a manutenção do status quo.

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oportunidade e de auditoria prévia à sociedade visada que lhe terão estado associados.

No que concerne a (ii), a promoção da existência de OPAs Concorrentes funda-se no facto de não ser exigido o aumento do objeto da oferta, mas somente a manutenção do objeto constante da oferta inicial. Com esta construção, permite-se aos oferentes concorrentes, independentemente da ordem por que surjam, ter como bitola o objeto da oferta inicial, podendo assim escolher qual o modo de estruturação da sua oferta que mais facilmente captará o interesse dos acionistas da sociedade visada32.

Finalmente, no que diz respeito a (iii), a melhoria da posição dos acionistas da sociedade visada, da própria sociedade visada, e do mercado em geral é uma decorrência do referido em (i) e (ii). Com efeito, é um dado inequívoco que a existência de OPAs e de OPAs Concorrentes tem o condão de melhorar a posição relativa dos sujeitos supra identifi cados: (i) no caso dos acionistas da sociedade visada, por permitir optar entre manter a participação ou aliená-la (muito provavelmente com um prémio face ao valor de cotação ou contabilístico, consoante as ações estejam ou não admitidas à negociação em mercado); (ii) no caso da sociedade visada, por signifi car que há quem se proponha adquirir essa sociedade, por a considerar um substrato capaz de criar valor33, e (iii) no caso do mercado em geral, por a existência de OPAs e OPAs Concorrentes permitir a melhoria da posição dos sujeitos supra identifi cados sem implicar um correspondente prejuízo para outro sujeito de mercado - o chamado movimento de Pareto34.

32 Isto é, se apostam em manter o objeto da oferta inicial e aumentar a contrapartida acima dos 2% exigidos pelo artigo 185.º, n.º 5 do Código dos Valores Mobiliários ou se, ao invés, apostam, por exemplo, na extensão do objeto, acompanhada do aumento mínimo da contrapartida.

33 Daí que, por regra, as sociedades cujas ações estejam admitidas à negociação em mercado, quando sejam objeto de OPA, tendem a ver a sua cotação aumentar após a publicação do anúncio preliminar, frequentemente acima do valor da contrapartida fi xado no referido anúncio.

34 , , in Economia Pública, McGraw Hill, Lisboa, 1997, pp. 2-3.

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5.2.2 Os casos em que o oferente concorrente seja acionista da sociedade visada

Finalmente, cumpre analisar uma situação que poderá representar uma exceção - ou, pelo menos, adaptação - do que foi referido em 5.2.1 acerca do objeto da oferta.

Conforme se concluiu supra, qualquer OPA Concorrente poderá ser lançada desde que não incida sobre uma quantidade inferior de valores mobiliários, ou seja, desde que o objeto seja, pelo menos, igual.

Coloca-se, porém, a questão de saber qual o modo de aferir do cumprimento desta disposição legal nos casos em que um dado oferente concorrente detenha já uma participação social na sociedade visada.

Com efeito, se o objeto de uma oferta inicial for 90% do capital social da sociedade, e um oferente concorrente detiver 10%, o objeto da sua oferta deverá corresponder (i) a 90% do capital social (ou seja, 100% do capital social que não detém)? a 90% do capital social que ele não detém, ou seja, a 81% do capital social? Ou deverá somente ter como objeto uma percentagem tal do capital social que, a fi nal, lhe possa granjear a mesma participação com que o oferente inicial fi caria adquirisse 90% do capital social - i.e. 80% (a que se somam os seus 10%)?

Cremos que, para este efeito, deverá considerar-se que o objeto da oferta inicial, para efeitos da determinação do objeto mínimo da oferta concorrente, corresponde a uma percentagem do capital social, já deduzido da participação detida pelo oferente. Ou seja, se a oferta inicial incidiu sobre 90% dos valores mobiliários, e o oferente concorrente detém uma participação de 10% no capital social, considera-se a priori que o oferente concorrente rejeitará a oferta inicial, a qual terá assim um objeto real de 100% do capital social adquirível. Será esta a percentagem que deverá constituir objeto da OPA Concorrente, 100% do capital social que este não detém, que nesta hipótese corresponde a 90% do capital social.

Pela aplicação do mesmo método, resultará que se o oferente concorrente detiver 20% do capital social da sociedade visada, o objeto real da oferta inicial será somente 80% do capital social, que

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corresponde a 100% do capital social adquirível, pois assume-se que o oferente concorrente rejeitaria a oferta inicial. Neste sentido, também a OPA Concorrente deverá ter por objeto 100% do capital social que ainda não detém, ou seja, 80% do capital social.

Caso, por exemplo, o oferente inicial detivesse 5% do capital social e o objeto da oferta inicial fosse 90%, o modelo de cálculo acima proposto levaria a que o objeto da oferta inicial fosse pelo menos 94,73% do capital social adquirível. O oferente concorrente deveria assim, para que a sua OPA Concorrente fosse admitida, abranger 94,73% do capital social que não detém, ou seja, 90% da totalidade do capital social.

Em suma, a aplicação do presente método permite alcançar duas conclusões alternativas: (i) ou o oferente concorrente detém uma participação que é igual ou inferior à diferença entre 100% e o objeto da oferta inicial (aplicável, no caso de o objeto da oferta inicial ser de 90%, se a participação do oferente concorrente for de até 10%, inclusive), caso em que o objeto da OPA Concorrente deverá ser, pelo menos, igual ao da oferta inicial; ou (ii) o oferente concorrente detém um participação na sociedade visada superior à diferença entre 100% e o objeto da oferta inicial (aplicável, no caso de o objeto da oferta inicial ser 90%, se a participação do oferente concorrente for superior a 10% da sociedade visada), caso em que o objeto da oferta será a totalidade do capital social que o oferente concorrente não detém.

Este parece ser o método que reproduz de modo mais fi dedigno os requisitos do artigo 185.º, n.º 4 do Código dos Valores Mobiliários, sendo aquele que melhor salvaguarda a posição dos acionistas da sociedade.

Em conclusão, o artigo 185.º, n.º 4 deverá ser interpretado no sentido de, à semelhança do referido no artigo 185.º, n.º 6, mutatis mutandis35, permitir que o objeto da OPA Concorrente

35 No caso do artigo 185.º, n.º 6 trata-se de um caso em que é o oferente inicial que já detém uma participação no capital social da sociedade visada, assim se permitindo que o oferente concorrente estabeleça uma percentagem mais elevada de aceitações como condição de sucesso.

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seja, em absoluto, inferior ao da oferta inicial, quando o oferente concorrente detenha uma participação na sociedade visada que seja superior à diferença entre 100% do capital social e a percentagem de capital social objeto da oferta inicial. Este raciocínio acaba por se reconduzir a uma conclusão simples: a de que ao oferente concorrente não será vedado lançar OPA Concorrente se, em virtude de ter uma participação na sociedade visada, o objeto desta for necessariamente inferior ao objeto da oferta inicial.

5.3 Condições da Oferta

5.3.1 As condições de sucesso do artigo 185.º, n.º 6 do Código dos Valores Mobiliários

No que concerne ao terceiro dos requisitos substanciais da OPA Concorrente, relativo às condições da oferta, estipula o artigo 185.º, n.º 6 do Código dos Valores Mobiliários que “A oferta concorrente não pode fazer depender a sua efi cácia de uma percentagem de aceitações por titulares de valores mobiliários ou de direitos de voto em quantidade superior ao constante da oferta inicial ou de oferta concorrente anterior, salvo se, para efeitos do número anterior, essa percentagem se justifi car em função dos direitos de voto na sociedade visada já detidos pelo oferente e por pessoas que com este estejam em alguma das situações previstas no n.º 1 do artigo 20.º.

No presente artigo, o legislador seguiu uma lógica ligeiramente diferente da descrita em 5.2 supra quanto ao objeto mínimo da OPA Concorrente.

Com efeito, não obstante determinar que a OPA Concorrente não deverá conter condições de sucesso menos favoráveis do que as da oferta anterior, não obrigando assim a uma melhoria substancial da oferta no que a este requisito diz respeito, vem estabelecer como bitola a ter com conta pelo oferente concorrente, não as condições tais como defi nidas na oferta inicial, mas sim na oferta antecedente.

O legislador parece neste caso ter estado mais de acordo com as matrizes do princípio da melhoria progressiva das ofertas

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concorrentes, em comparação com o regime do objeto da OPA Concorrente, ao obrigar cada oferente concorrente a apresentar condições pelo menos tão favoráveis como as da oferta antecedente, a qual possivelmente incluirá condições mais favoráveis do que as defi nidas na oferta inicial.

O artigo 185.º, n.º 6 do Código dos Valores Mobiliários faz referência, em concreto, às chamadas condições de sucesso, da OPA, que consubstanciam percentagens mínimas da aceitação da OPA a partir da qual esta produzirá concretizar os seus efeitos.

Neste sentido, se o oferente inicial estabelecer como condição de sucesso a obtenção de 50,1% do capital social, nenhum oferente concorrente poderá estabelecer uma condição de sucesso mais elevada - i.e. tornando menos provável o sucesso da OPA Concorrente.

Perguntar-se-á36, no entanto, se o presente preceito deve ser interpretado literalmente, ou se, pelo contrário, deve ser interpretado no sentido de salvaguardar o princípio da melhoria progressiva das ofertas concorrentes. Referimo-nos, em particular, à circunstância de, em alguns casos, uma oferta concorrente poder incluir como condição de sucesso uma percentagem superior de aceitações, e mesmo assim ser objetivamente mais favorável do que a oferta inicial, como seja o caso extremo em que a oferta inicial tenha por objeto 30% do capital e uma condição de sucesso de 30% e uma oferta concorrente que tenha por objeto 100% do capital e uma condição de sucesso de 31%.

Neste exemplo, em que a OPA Concorrente será em princípio considerada mais favorável, por abranger mais do triplo dos acionistas da sociedade visada, o requisito de manutenção das condições de sucesso da oferta antecedente previsto no artigo 185.º, n.º 3 do Código dos Valores Mobiliários não se encontraria cumprido, com a consequente rejeição do registo da OPA Concorrente. Cremos, contudo, que a solução legal deveria

36 Ver, neste sentido, , ob. cit, pp. 101.

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permitir uma maior fl exibilidade na aferição do cumprimento destes requisitos, nomeadamente atribuindo à CMVM a faculdade de determinar se, em cada caso concreto, se justifi ca a sua admissão à luz da globalidade dos elementos da OPA Concorrente.

Finalmente, fazemos notar que o presente preceito prevê, como exceção à obrigatoriedade de o oferente concorrente apresentar condições de sucesso que não sejam menos favoráveis que as previstas em oferta antecedente, aquelas em que uma percentagem mais elevada se justifi car em função dos direitos de voto na sociedade visada já detidos pelo oferente ou por pessoas que com este estejam em alguma das situações de imputação de direitos de voto previstas no artigo 185.º, n.º 6 do Código dos Valores Mobiliários.

Com efeito, se o oferente inicial já detinha, por exemplo, 10% do capital social da sociedade visada, e lança uma oferta em que a condição de sucesso é de 40,01% de aceitações, deve ser admitido ao oferente concorrente sujeitar a efi cácia da OPA Concorrente a 50,01% de aceitações, percentagem que se parece justifi car face ao provável objetivo de ambos os oferentes: a obtenção do controlo da sociedade visada.

5.3.2 As condições previstas no artigo 185.º, n.º 5 do Código dos Valores Mobiliários

A acrescer às condições de sucesso, tratadas no artigo 185.º, n.º 6 do Código dos Valores Mobiliários, prevê ainda o artigo 185.º, n.º 5 do Código dos Valores Mobiliários que a oferta concorrente “não contenha condições que a tornem menos favorável”.

Este número vem assim fi xar um leque adicional de limitações em matéria de condições da OPA Concorrente, determinando que, a acrescer às condições de sucesso, a oferta concorrente não poderá conter outras condições menos favoráveis do que as estipuladas na oferta inicial.

As referidas condições deverão, em qualquer caso, ser em primeiro lugar compatíveis com os pressupostos ínsitos no artigo 124.º, n.º 3 do Código dos Valores Mobiliários, o qual estipula que “a oferta só pode ser sujeita a condições que correspondam a um

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interesse legítimo do oferente e que não afetem o funcionamento normal do mercado”.

Relativamente a estas condições, destacamos a aprovação de alterações estatutárias, designadamente, a supressão de tetos de voto - a chamada desblindagem de estatutos - ou a obtenção prévia de uma decisão de não oposição por parte de uma entidade administrativa, designadamente da Autoridade Concorrência37 ou da Comissão Europeia.

Fazemos notar, no entanto, que a aposição, no anúncio preliminar de OPA Concorrente, das condições supra referidas, apenas estará - ou só fará sentido estar - sujeita à restrição imposta pelo artigo 185.º, n.º 5 do Código dos Valores Mobiliários na medida em que a sua verifi cação se dê após o registo e lançamento da OPA Concorrente.

Com efeito, caso as referidas condições sejam condições lançamento38, de cuja efi cácia depende o registo e lançamento da OPA Concorrente, e não a efi cácia da própria OPA Concorrente - que apenas se considera efetivamente lançada com a publicação do anúncio de lançamento, após o registo da oferta - não deverão ser sujeitas à restrição supra referida, por se situarem em momento cronológico que ainda não justifi ca a aplicação do meio de tutela previsto do artigo 185.º, n.º 5 do Código dos Valores Mobiliários, por não haver ainda concretamente uma OPA Concorrente, mas tão somente uma promessa pública do seu lançamento.

As condições relevantes para efeitos do artigo 185.º, n.º 5 do Código dos Valores Mobiliários deverão, assim, ser somente as condições de aquisição39, ou seja, aquelas cuja verifi cação deva ocorrer em momento posterior ao anúncio de lançamento da OPA Concorrente, apenas aí se justifi cando, à luz do princípio da melhoria progressiva das ofertas concorrentes, a proibição de aposição de condições menos favoráveis40.

37 Ver, neste sentido, , ob. cit. página 104, ob. cit.38 , ob. cit pág. 609.39 Idem.40 Com efeito, não faz sentido contemplar no artigo 185.º, n.º 5 do Código dos

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5.4 A Contrapartida

5.4.1 A relevância da contrapartida na OPA Concorrente

Chegamos, por fi m, ao requisito “rei” em matéria de OPA Concorrente, a contrapartida.

Este requisito constitui o principal fator de diferenciação dos termos da OPA Concorrente em relação à oferta inicial, por traduzir especifi camente o benefício que os acionistas da sociedade visada poderão retirar da OPA Concorrente.

Com efeito, as condições analisadas em 5.1, 5.2 e 5.3 supra mais do que não são do que meros acessórios do verdadeiro fator de atratividade para os acionistas da sociedade visada - a contrapartida que poderão obter pela venda das sus ações na OPA.

O tratamento que é dado pelo legislador parece ter em conta esta diferença, ao determinar, relativamente ao critério (i) da identidade do oferente concorrente; (ii) do objeto da oferta e (iii) das condições da oferta; que estas não deverão ser menos favoráveis do que as defi nidas na oferta antecedente (exceto no caso do objeto da oferta, em que a bitola é a oferta inicial), i.e., o legislador procura assegurar o status quo relativamente a estes elementos, sem prejuízo da possibilidade de melhoria da oferta relativamente a qualquer um deles.

Já a contrapartida funciona como verdadeiro centro nevrálgico da OPA Concorrente, admitindo assim o legislador que a contrapartida é o principal fator a ter em consideração pelos acionistas da sociedade visada, que fi cam a saber que, na medida em que os requisitos se encontrem preenchidos, poderão vir a obter, no mínimo, uma majoração da contrapartida em 2% face à da oferta inicial41.

pois caso estas não se verifi quem não haverá lugar ao lançamento da oferta pública de aquisição concorrente, não se chegando sequer a aplicar o regime do artigo 185.º, n.º 5 (sem prejuízo, naturalmente, do que referimos em 3 supra).

41 O valor da contrapartida, que logo no anúncio preliminar deverá corresponder a uma créscimo de 2% relativamente á oferta inicial, poderá entretanto ser aumentado até ao anúncio de lançamento, não podendo contudo, tornar-se inferior (nos termos do artigo 176.º, n.º 2 a) do Código dos Valores Mobiliários). Adicionalmente, este valor poderá vir a ser aumentado na pendência da oferta nos termos previstos no artigo 185.º-B, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários.

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5.4.2 O regime da contrapartida

A regra da contrapartida na OPA Concorrente encontra-se prevista no artigo 185.º, n.º 5 do Código dos Valores Mobiliários, o qual prevê que “A contrapartida da oferta concorrente deve ser superior à antecedente em pelo menos 2% do seu valor e não pode conter condições que a tornem menos favorável”.

Esta exigência de majoração face à oferta inicial terá algumas razões de ser.

Em primeiro lugar, a necessária majoração da contrapartida corresponde ao expoente máximo do princípio da melhoria progressiva das ofertas subsequentes, sinalizando assim a melhoria objetiva da OPA Concorrente em relação à oferta inicial.

Em segundo lugar, obriga o oferente concorrente a ponderar fortemente a viabilidade do lançamento da oferta naqueles termos, excluindo assim - ou pelo menos mitigando - o risco de lançamento de OPAs Concorrentes com o exclusivo objetivo de (i) prejudicar o oferente inicial ou (ii) de aumentar o período das ofertas, com a correspondente extensão do período em que a sociedade visada se encontra sujeita aos deveres e limitações impostos pelos artigos 181.º e 182.º do Código dos Valores Mobiliários, respetivamente, com os prejuízos daí decorrentes para a sociedade visada.

Em terceiro lugar, este regime permite tutelar de alguma forma a posição do oferente inicial, que teve maiores custos na identifi cação da oportunidade de aquisição da sociedade visada, com os custos de auditoria que lhe terão estado associados, assegurando assim o legislador que a sua oferta só terá concorrência se esta comportar uma contrapartida substancialmente superior. A tutela do oferente inicial, que frequentemente tem sido criticada por implicar limitações ao princípio da liberdade de iniciativa privada e de livre concorrência no mercado do controlo societário42, tem no entanto o condão de favorecer o lançamento de ofertas iniciais, as quais constituem

42 Neste sentido, , ob. cit pág. 248.

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pressuposto lógico da existência de OPAs Concorrentes, cuja proliferação não poderá ser potenciada se não for acompanhada de medidas de regime que assegurem que os incentivos ao lançamento de ofertas iniciais não sejam comprimidos43.

O facto de o legislador exigir um aumento da contrapartida da OPA Concorrente em pelo menos 2% tem sido objeto de numerosas críticas na doutrina que se tem pronunciado sobre o tema, a qual tem genericamente considerado que esta cifra poderá tornar demasiado oneroso o lançamento da OPA Concorrente, criando-se o risco de que em alguns casos a OPA Concorrente acabar por não ser lançada por o aumento da contrapartida não compensar ao oferente concorrente, o qual até poderia estar disposto a lançar uma OPA Concorrente que envolvesse a mesma contrapartida da oferta inicial ou um aumento da mesma em percentagem inferior aos 2% defi nidos na lei ou, alternativamente, disposto a abranger um objeto mais alargado, mas com a contrapartida limitada à da oferta inicial44.

Admite-se, nesta sede, que o aumento do objeto da oferta poderá por vezes ser mais viável do que o aumento da contrapartida. Com efeito, a partir da avaliação que o oferente faz da sociedade visada, estabelece-se um limite ao montante de contrapartida que este estará disposto a oferecer por cada ação, pois que a certo ponto a contrapartida oferecida não será compensada pela avaliação que o oferente concorrente faz da ação da sociedade visada. Já no que respeita ao aumento do objeto da oferta, o mesmo apenas implica uma maior despesa inicial do oferente, que será compensada pela maior participação granjeada na sociedade visada, e na correspondente maior parcela de lucros que lhe caberão.

Sem prejuízo do acima exposto, tendemos a não concordar com as críticas feitas ao regime tal como se encontra delineado.

43 Neste sentido, e , in “Control Transactions, The anatomy of corporate law - a comparative and functional approach”, Oxford University Press, Nova Iorque, 2004, pp. 137 e ss.

44 , ob.cit, pp. 137 e ss e , ob.cit pp. 105 e ss.

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Com efeito, o legislador terá partido do pressuposto de que até à cifra de 2%, a melhoria que poderia advir para os acionistas da sociedade visada pela possibilidade de venderem mais caro não compensaria o prejuízo que tal causaria para a sociedade visada, em função do aumento do prazo das ofertas, nos termos do artigo 185.º-A do Código dos Valores Mobiliários, com a consequente extensão dos deveres e limitações impostos à sociedade visada nos termos dos artigos 181.º e 182 do Código dos Valores Mobiliários, respetivamente.

Adicionalmente, terá também o legislador considerado que a exigência deste “intervalo” mínimo de 2% corresponderia a uma compensação atribuída ao oferente inicial por ter tido o esforço (fi nanceiro) de lançamento da oferta inicial - com os correspondentes custos de identifi cação da oportunidade e de auditoria à sociedade -, estimando em cerca de 2% do valor da oferta os custos acrescidos em que incorreu com o lançamento da oferta inicial, e que deverão assim ser também suportados pelos oferentes concorrentes, sob a forma de majoração obrigatória da contrapartida da OPA Concorrente face à cifra inscrita na oferta inicial.

A defi nição de uma majoração mínima comporta sempre o risco de a mesma não refl etir corretamente o valor económico da tutela conferida ao oferente inicial. No entanto, entendemos que a cifra de 2% representa uma percentagem razoável e adequada face aos diferentes interesses que são dignos de tutela, os quais serão idóneos a maximizar os benefícios gerados por estas operações de aquisição do controlo societário.

5.4.3 A natureza da contrapartida

Uma última questão que caberá colocar-se a respeito do requisito da contrapartida na OPA Concorrente é se o artigo 177.º do Código dos Valores Mobiliários, cujo n.º 1 estipula que “A contrapartida pode consistir em dinheiro, em valores mobiliários, emitidos ou a emitir, ou ser mista” se aplica em toda a sua extensão ao regime da OPA Concorrente por efeito do 185.º, n.º 2, podendo a OPA

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Concorrente apresentar uma contrapartida em valores mobiliários quando a oferta inicial seja em dinheiro.

Esta questão é tanto mais relevante quando é frequente a contrapartida oferecida ser total ou parcialmente assente em valores mobiliários, dispensando assim o oferente a transformar esses valores mobiliários em liquidez para efeitos do lançamento da oferta.

Como argumentos a favor desta possibilidade temos (i) o facto de a oferta de valores mobiliários ser uma contrapartida lícita; (ii) ser possível determinar o valor dos valores mobiliários, nomeadamente com base nos critérios defi nidos no artigo 188.º do Código dos Valores Mobiliários45 e de (iii) respeitado o aumento de 2% face à oferta antecedente, estar preenchido o requisito quantitativo defi nido por lei para a contrapartida, com a consequente salvaguarda dos princípios que lhe subjazem e que se encontram melhor descritos em 5.4.2 supra.

O argumento contra seria, aqui, o de a contrapartida em espécie poder ser considerada menos favorável do que em dinheiro, dada a menor liquidez que está associada aos valores mobiliários. De qualquer modo, o artigo 177.º, n.º 3 do Código dos Valores Mobiliários, ao fi xar que “Se a contrapartida consistir em valores mobiliários, estes devem ser de adequada liquidez e ser de fácil avaliação”, parece aceitar que a contrapartida em valores mobiliários, na medida em que preencha estes requisitos, não deverá ser considerada menos favorável do que a contrapartida em dinheiro, não procedendo assim o argumento contra a possibilidade de a contrapartida da OPA Concorrente ser em valores mobiliários.

Finalmente, face ao supra exposto, concluímos por maioria de razão que nada obstará a que, sendo a oferta inicial em valores mobiliários, a OPA Concorrente seja em dinheiro.

45 Com efeito, apesar de integrante do regime das ofertas públicas obrigatórias, cremos que as ferramentas de cálculo do valor equitativo da contrapartida defi nidas nos n.º 1 e 2 do artigo 188.º do Código dos Valores Mobiliários deverão ser aplicáveis caso se aceite, como parece fazer sentido, que a contrapartida da OPA Concorrente seja em valores mobiliários.

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6. Conclusão

Feita a análise, ainda que sumária, dos quatro requisitos substantivos da OPA Concorrente, concluímos que, apesar das críticas que os mesmos têm suscitado, o modo como os mesmos estão construídos se justifi ca face ao conjunto de sujeitos cuja posição se visa tutelar.

Sem prejuízo do exposto, foram identifi cadas algumas situações que, na nossa opinião, careceriam de uma interpretação mais restritiva ou extensiva - conforme os casos - do que a que resulta da mera análise das normas relevantes de um ponto de vista declarativo e, noutros casos, se justifi caria uma revisão da própria redação das normas, por forma a melhor tutelar os interesses da multiplicidade de sujeitos envolvidos nos procedimentos de ofertas em concorrência.

Não pretendendo ser exaustivos, podemos sintetizar alguns dos pontos que nos mereceram reparos no regime da OPA Concorrente:

(i) Relativamente ao requisito da identidade do oferente, concluímos que a limitação subjetiva de lançamento de OPA Concorrente a todos aqueles que se encontrem com o oferente inicial ligados, relativamente à sociedade visada, por alguma das causas de imputação do artigo 20.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários, se revela excessiva e inapropriada e, consequentemente, lesiva de um regime de OPAs Concorrentes que se pretende o mais favorável possível ao lançamento das mesmas. Na nossa opinião, apenas a alínea b) do referido artigo constitui uma causa de imputação que justifi ca a restrição de lançamento de OPA Concorrente;

(ii) Ainda quanto ao ponto supra referido, consideramos que se deveria ponderar, na redação do preceito, a atribuição à CMVM da capacidade de fazer, in casu, um juízo de razoabilidade quanto à inibição de lançamento de uma OPA Concorrente, por estar verifi cada uma das causas de imputação supra referidas;

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(iii) No que concerne ao requisito do objeto da oferta, concluímos que nos casos em que o oferente concorrente seja já acionista da sociedade visada, se deverá ter em conta esta especial circunstância na interpretação dos requisitos em matéria de objeto da oferta. Para este efeito, entendemos que: (a) no caso em que o oferente concorrente detenha uma participação na sociedade visada igual ou inferior à diferença entre 100% do capital social e o objeto da oferta inicial, o objeto da OPA Concorrente deverá ser, pelo menos, igual ao da oferta inicial; e (b) no caso em que o oferente concorrente detenha uma participação na sociedade visada superior à diferença entre 100% do capital social e o objeto da oferta inicial, o objeto da OPA Concorrente será a totalidade do capital social restante;

(iv) Relativamente às condições de sucesso, concluímos que em alguns casos a aplicação literal do artigo 185.º, n.º 6 do Código dos Valores Mobiliários poderá levar à não admissão de propostas objetivamente mais favoráveis, nomeadamente quando a OPA Concorrente englobe um objeto mais alargado, ao qual depois associe uma condição de sucesso ligeiramente mais elevada. Nestas situações, consideramos que se justifi caria a atribuição à CMVM do poder de, em cada caso concreto, verifi car se é razoável a admissão da OPA Concorrente, ainda que sem conformidade estrita com as exigências do artigo 186.º, n.º 6 do Código dos Valores Mobiliários;

(v) Ainda relativamente às condições da oferta, mas agora às estipuladas no artigo 185.º, n.º 5 do Código dos Valores Mobiliários, entendemos que o preceito legal apenas se refere às condições de aquisição, e não às condições de lançamento, uma vez que estas últimas terão necessariamente de se verifi car antes da publicação do anúncio de lançamento, devendo assim considerar-se subtraídas às restrições impostas pelo referido preceito legal;

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(vi) Relativamente ao principal requisito de substância da OPA Concorrente - a contrapartida - entendemos que a exigência de majoração da contrapartida na OPA Concorrente em 2% relativamente à oferta inicial se justifi ca face aos diferentes sujeitos que estão em causa e aos diferentes interesses que são dignos de tutela, os quais serão idóneos a maximizar os benefícios gerados por estas operações de aquisição do controlo societário;

(vii) Finalmente, concluímos que, à luz do artigo 177.º do Código dos Valores mobiliários, ex vi artigo 185.º n.º 2, se aceita a possibilidade de a contrapartida da OPA Concorrente ser em valores mobiliários se a oferta inicial tiver sido em dinheiro, na medida em que os mesmos cumpram os requisitos impostos pelo artigo 177.º, n.º 3 do Código dos Valores Mobiliários. Adicionalmente, propomos que a avaliação dos valores mobiliários dados em contrapartida seja feita com base no método previsto nos n.º 1 e 2 do artigo 188.º do Código dos Valores Mobiliários.

Terminado este breve ensaio, o qual apenas se deteve sobre uma parcela do regime da OPA Concorrente, resta agora aguardar pelo aparecimento de mais OPAs, e com elas, OPAs Concorrentes, no mercado de capitais português, para que o debate sobre esta temática se possa desenvolver, e se possam “fechar” alguns dos pontos em aberto e algumas incongruências que permanecem, por forma a que o regime legal permita a maximização dos benefícios gerados nos intervenientes do mercado de controlo societário.

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Lisboa, 16 de junho de 2013

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