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DIREITO E ECONOMIA I Sumário: 1. Propósito. 2. Encadeamento. 3. Direito: prática social. 4. Descritivismo e objectivismo jurídico. 5. Igual dignidade, desiguais méritos. 6. Mas também direitos iguais e fundamentais. 7. Economia positiva: utilitarismo ou realismo. 8. Economia e Direito: geometria variável. 9. Direito Económico ou Direito da Economia? 10. Mudança de raiz na natureza da regulamentação jurídica. 11. Sequência. 12. Princípio da precaução. 13. Precaução e custos. Ref. Bibl. 1. É-me proposta, para discutir o carácter instrumental e a moralidade do direito da economia, a crítica da seguinte asserção: a ordem jurídica não é apenas um instrumento ao serviço de um sistema externo de valores, tem uma finalidade interna, valores que lhe são próprios enquanto instrumento de limitação recíproca dos interesses em presença. Na tentativa de prosseguir o comentário juntar-lhe-ei uma das outras questões: o princípio da precaução representa uma inovação normativa com implicações profundas nos modos de regular o exercício de actividades económicas das quais resultam riscos para o ambiente ou a saúde pública o que é que explica a emergência deste princípio e a importância por ele adquirida no direito e jurisprudência europeus? como avaliar os efeitos da aplicação do princípio da precaução sobre a governança do mercado interno europeu? 2. Antes de mais, tentarei clarificar, sobretudo com apoio em Vittorio Villa (1994), o que se nos apresenta como o de dentro e o de fora do Direito e, alcançado algum rigor neste caso, seguir, num primeiro passo, pelas interrogações sobre o estatuto ético da igualdade, apoiado em Rawls (1985), aí onde poderão ser justificados no âmago do direito esses valores que lhe são próprios enquanto instrumento de limitação recíproca dos interesses em presença; depois, irei abordar do ponto de vista dos exemplos a interacção da problemática de saúde pública e ambientalista com o campo jurídico, visto à luz das conclusões iniciais. 3. Na actualidade o conhecimento jurídico tende a modalidades mais libertas. Podemos convocar-lhe dois perfis diferentes: (i) perfil de actividade – disposição colectiva dos membros da comunidade jurídica, tal prática social guiada por regras atinentes à aquisição e elaboração de stocks informativos sobre aquilo que pode ser chamado meio específico da experiência jurídica; (ii) perfil de obra conjunto coordenado de enunciados, conceptuais, valorativos, teóricos, cujo relacionamento com a experiência acaba por conscrevê-lo a si mesmo. Tem finalidades práticas: guia as acções (finalidade externa) e as decisões (finalidade interna). E a legitimidade do conhecimento

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DIREITO E ECONOMIA I

Sumário: 1. Propósito. 2. Encadeamento. 3. Direito: prática social. 4. Descritivismo

e objectivismo jurídico. 5. Igual dignidade, desiguais méritos. 6. Mas também direitos iguais e fundamentais. 7. Economia positiva: utilitarismo ou realismo. 8.

Economia e Direito: geometria variável. 9. Direito Económico ou Direito da Economia? 10. Mudança de raiz na natureza da regulamentação jurídica. 11.

Sequência. 12. Princípio da precaução. 13. Precaução e custos. Ref. Bibl.

1. É-me proposta, para discutir o carácter instrumental e a moralidade do direito da economia, a crítica da seguinte asserção: a ordem jurídica não é apenas um instrumento ao serviço de um sistema externo de valores, tem uma finalidade interna, valores que lhe são próprios enquanto instrumento de limitação recíproca dos interesses em presença.

Na tentativa de prosseguir o comentário juntar-lhe-ei uma das outras questões: o princípio da precaução representa uma inovação normativa com implicações profundas nos modos de regular o exercício de actividades económicas das quais resultam riscos para o ambiente ou a saúde pública – o que é que explica a emergência deste princípio e a importância por ele adquirida no direito e jurisprudência europeus? como avaliar os efeitos da aplicação do princípio da precaução sobre a governança do mercado interno europeu?

2. Antes de mais, tentarei clarificar, sobretudo com apoio em Vittorio Villa (1994), o que se nos apresenta como o de dentro e o de fora do Direito e, alcançado algum rigor neste caso, seguir, num primeiro passo, pelas interrogações sobre o estatuto ético da igualdade, apoiado em Rawls (1985), aí onde poderão ser justificados no âmago do direito esses valores que lhe são próprios enquanto instrumento de limitação recíproca dos interesses em presença; depois, irei abordar do ponto de vista dos exemplos a interacção da problemática de saúde pública e ambientalista com o campo jurídico, visto à luz das conclusões iniciais.

3. Na actualidade o conhecimento jurídico tende a modalidades mais libertas. Podemos convocar-lhe dois perfis diferentes: (i) perfil de actividade – disposição colectiva dos membros da comunidade jurídica, tal prática social guiada por regras atinentes à aquisição e elaboração de stocks informativos sobre aquilo que pode ser chamado meio específico da experiência jurídica; (ii) perfil de obra – conjunto coordenado de enunciados, conceptuais, valorativos, teóricos, cujo relacionamento com a experiência acaba por conscrevê-lo a si mesmo. Tem finalidades práticas: guia as acções (finalidade externa) e as

decisões (finalidade interna). E a legitimidade do conhecimento

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prático, tal qual reflexão teórica sobre uma prática, não diminui pela circunstância de ser utilizado para orientar acções e decisões. Mas logo poderá ser objectado, aqui, que o conhecimento jurídico nem se refere especificamente a um campo da experiência, porque se ocupa de entidades normativas, ausentes da existência empírica. Ora bem! Uma norma jurídica enquanto objecto de interpretação pode ser concebida fenomenicamente como pertença do campo de experiência jurídica, porque o elemento normativo que contêm nunca se nos apresentará completamente separado do elemento empírico do comportamento considerado ou, dito de outro modo, das espécies de comportamentos onde tomam sentido justamente as regras ou os princípios. É por esta via que hoje se fala do direito como prática social: entre as regras e os comportamentos existe uma relação interna (Villa, 1994: 283).

4. Este esquema e, mais além, a configuração que o conhecimento jurídico postula, depende naturalmente da teoria geral que privilegiemos. E das duas uma, podemos optar pelo descritivismo, centrado no tópico de a linguagem do conhecimento dever, em última análise, reflectir a realidade, representá-la passiva e naturalmente tal qual ela é, adoptado este ponto de vista pelo neopositivismo e pelas concepções realistas; ou pelo construtivismo, que arranca da ideia de ser o conhecimento uma obra social colectiva em parte ligada à linguagem, enfim, uma prática social de intervenção activa na realidade. Segundo o modelo descritivo do conhecimento jurídico, dar conta do direito, no limite, significa tomar esse mesmo objecto colocado, agora, para além da esfera do conhecimento, numa dimensão independente da realidade e que não é de maneira alguma influenciada por uma intervenção cognitiva (Villa, 1994: 289). Assim, o conhecimento verdadeiro no campo jurídico é principalmente tudo o que diz respeito à interpretação jurídica, às valorações, pressupostos e novas atribuições de sentido.

A interpretação é, por esta via, uma actividade cognitiva enquanto as valorações, cesuras e atribuições de sentido tomam um significado pré-existente, e tanto é de natureza extra-cognitiva a actividade que cria o direito de novo: vive-se na dicotomia descrever/criar. Grande parte das concepções juspositivistas e jusnaturalistas partilham este modelo não obstante a configuração do objecto do conhecimento ser diferente, segundo qualquer delas: tratando-se da natureza essencial do direito, teremos uma descrição metafísica; tratando-se do direito como produto humano, teremos uma descrição

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empírica. E corresponde a este modelo uma concepção objectivista do direito o plain fact view de Dworkin, ligado ao panorama jurídico dos objectos, normas, factos…, dotados de uma arquitectura autónoma, específica, independente da actividade cognitiva posterior tanto quanto de todas as outras: interpretativas, aplicativas… Desta forma estabelece-se uma separação nítida entre o direito como obra, saído de uma só vez de um só criador (legislador; juiz) e o conjunto das actividades de interpretação, de argumentação e de aplicação, que intervêm num segundo tempo para o manipular ou para o modificar. Segundo o modelo construtivista do conhecimento jurídico, pelo contrário, constitui este sempre uma intervenção no direito, um modo de reconstruir o campo da experiência jurídica que parte invariavelmente de um esquema conceptual predeterminado, quer implícita quer explicitamente: serve à descoberta do sentido e do alcance do conhecimento jurídico tanto na fase dita teórica como na fase dita prática. Ora, sobretudo a interpretação judicial constitui a passagem necessária dos materiais jurídicos em bruto para os materiais jurídicos decantados. E pode ser concebida como actividade que procura a possível reconstrução total do campo da experiência jurídica, reorganizando de uma forma sistemática e unitária a massa informe dos fenómenos jurídicos. O modelo construtivista do conhecimento jurídico corresponde-lhe, e perfeitamente, a uma Teoria do Direito que é possível caracterizar esquematicamente como teoria da prática social, que persegue o direito muito menos como conjunto de actividades linguísticas e extra-linguísticas e muito mais como conjunto de objectos: discursos e actividade multiformes, viradas para as normas jurídicas que constituem, depois, o elemento central da reflexão sobre o direito. Logo o adoptemos, a distinção entre discurso sobre o direito e discurso no direito é ilusória; na realidade, nunca deixam de fazer-se discursos sobre o direito, mas sempre no direito. Cada um dos discursos sobre o direito, de interpretação, de argumentação e de aplicação, é ao mesmo tempo uma reconfirmação da sua existência (valor epistemológico) e uma modificação do seu conteúdo (valor teórico). Enfim, segundo a perspectiva construtivista, descrever uma prática social complexa como é esta do direito significa entrar no jogo, fazer parte de um circuito social onde as regras são reproduzidas continuamente na prática (Villa, 1994: 291).

5. Avancemos, pois, convocando neste registo a igualdade e a justiça segundo Rawls.

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Por um lado, o princípio da liberdade corresponde numa visão global à ideia moderna de direitos-liberdades tal como se desenvolveu a partir de Hobbes através de Locke e Rousseau, para cristalizar, num primeiro momento culminante, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Está aqui a essência em si mesma da ideia de direito subjectivo, concebido como poder do indivíduo a quem são reconhecidos os direitos ou liberdades fundamentais, liberdade de opinião, de expressão… Por outro, o princípio da igualdade democrática visa essencialmente os direitos sociais e económicos, onde o direito à igualdade de oportunidades unifica a distribuição desigual da riqueza fundada no trabalho, no mérito, nas responsabilidade sociais e no espírito de iniciativa, mas com a condição de as desigualdades darem proveito a todos. Este segundo princípio, que persegue um objectivo realista de justiça distributiva, não reconhece, portanto, um igualitarismo das condições socio-económicas. Permite, pelo contrário, justificar as diferenças que podem existir sempre entre os mais favorecidos e os mais desfavorecidos de um grupo social dado, assentes no risco igual para cada um de participar livremente no jogo da cooperação social por via dessa igualdade de oportunidades, mediado afinal pela condição de as vantagens particulares poderem beneficiar aos dois grupos. A bem dizer, este segundo princípio apoia-se no princípio utilitarista da eficiência, de que corrige os possíveis abusos pela regra obrigatória e reputada racional da maximização do bem-estar mínimo, maximum minimorum (Rawls, 1971: 154). O princípio da igualdade desemboca assim num princípio de diferenciação conforme ao ideal de justiça distributiva dirigido ao objectivo do bem-estar óptimo de todos os membros da sociedade: a igual dignidade das pessoas exige o reconhecimento da liberdade de cada um e do respeito da diversidade de opinião, de escolhas, de crenças, de responsabilidades. Esta igualdade de direito, afirmada em nome da liberdade moral, torna igualmente aceitáveis, ao nível da justiça distributiva, as desigualdades provenientes das diferenças de mérito, de responsabilidades e de aspirações de cada um de nós.

6. Ainda do mesmo modo, a exigência de eficácia económica faz também parte da ideia desta sociedade bem ordenada onde seria desrazoável, segundo Rawls, manter o princípio de uma partilha igualitarista que prejudicasse o dinamismo da sociedade, aperreasse a liberdade dos cidadãos e ameaçasse em si mesma a ideia de democracia. Em suma, a eficiência económica global acaba por justificar o princípio da diferença e as desigualdades que contribuem, apesar de tudo, para um melhor bem comum (Rawls, 1975: 97-98).

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É então que a teoria de Rawls confere uma dimensão maior à noção de dever que à de direito. Onde Kant vê um conceito de direito derivado do conceito de dever e, por consequência, derivado do imperativo da moralidade, da mesma maneira Rawls concede um lugar proeminente ao conceito de dever que serve directamente para explicar de imediato o seu conceito de justiça como equidade, justice as fairness (Rawls, 1985: 223-251). Entretanto, Rawls apresenta-nos a ideia de deveres naturais como uma consequência lógica da cooperação social a todos proeminente. Supõe o concurso de certas obrigações recíprocas da parte dos contratantes (ou seja, dos cidadãos): dever de prestar ajuda ao outro na necessidade; dever de não causar prejuízo; dever de respeito mútuo, i.é, de respeito pela pessoa como ser moral provido de sentido de justiça e capaz de conceber o bem; dever de dirigir e defender instituições justas. Depois, estes deveres não têm carácter jurídico-institucional, são regras gerais de conduta e valem para todos por força da igualdade moral em que se inscrevem, independentemente de estarem investidos numa estrutura social particular: deveres naturais, portanto (Rawls, 1971: 114 ss). Aqui, a dimensão mais importante destes deveres naturais é sem dúvida a reciprocidade que implicam e pela qual os cidadãos ficam agregados a uma justiça concreta, afinal o mais importante dos deveres naturais. Enfim, o reconhecimento da justiça como equidade não é possível senão a par da dignidade da pessoa e na condição de a escolha livre de cada um se incluir na cooperação social mutuamente vantajosa. É nesta perspectiva de igualdade e de reciprocidade dos relacionamentos de seres racionais, que a noção de justiça como equidade se nos explica nos conceitos de dignidade, de respeito e de autonomia. Na verdade, tal como já vimos, não é possível essa justiça, antes de mais, sem a igual dignidade da pessoa e sem a escolha livre de cada individualidade se empenhar na cooperação social mutuamente vantajosa, condições estas que Rawls resumiu nas noções de sociedade bem ordenada e de pessoa moral, esteios racionais da teoria que nos apresenta: o princípio da equidade estabelece de alguma maneira o dever ou a obrigação de respeito dos condicionamentos de uma justiça fundada justamente no respeito de uns pelos outros e na cooperação social. Ora, ao dar fundamento assim a um dever, a equidade faz ao mesmo tempo emergir um direito, o direito de cada um ver respeitadas as condições de cooperação pelos outros. Por conseguinte, a equidade decorre da condição segundo a qual quem se entrega a uma cooperação reciprocamente vantajosa, aceitando limitar a sua

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liberdade individual em favor do todo social, adquire um direito de fazer respeitar um empenhamento tal por parte de quem aproveita da cooperação. Logo, o direito à equidade decorre de um dever de defender a justiça e naturalmente de apoiar instituições justas, enquanto este direito e este dever são por si mesmos tributários do princípio da autonomia de pessoas que escolheram, por sua vez, os princípios racionais da justiça (Rawls, 1985: 223-251). Toda esta proposta de fundamento do direito na subjectividade tem apoio manifesto numa concepção bem definida de homem, resumida na noção de pessoa moral, caracterizada em dois pontos principais: (i) capacidade de conceber o bem próprio em função de um plano de vida racional; (ii) capacidade de adquirir e conservar um sentido de justiça que leva a agir logo de seguida segundo os princípios da justiça. E é em função desta ideia de homem que a noção de direitos naturais toma verdadeiramente sentido, mas conceito que supõe, ainda assim, pertencerem este tipo de direitos aos particulares, independentemente de qualquer normatividade de origem social… por critérios naturais. Eis a ideia de uma justiça igualitária que torna possível efectivamente o reconhecimento de direitos iguais e fundamentais.

7. Depois, por aí adiante, até ao pensamento da finalidade interna da ordem jurídica governada por valores que lhe são próprios enquanto instrumento, ela, de limitação recíproca dos interesses em presença e onde o direito da economia se constitui como um dispositivo adequado… Contudo, tem aqui, apesar de tudo, de ser aberto um parêntesis, para acolher a problemática das dúvidas sobre a economia positiva, quando funda a análise no utilitarismo das hipóteses, mas desinteressando-se do realismo delas. Com efeito, a inter-relação dinâmica entre actores económicos tem como consequência a influência do comportamento de uns pelo comportamento dos outros. Todavia, na realidade, os padrões daí emergentes são completamente imprevisíveis. Ora bem! segundo a análise económica, essas acções são pré-reconciliadas pelas expectativas racionais, esquecidas contudo as expectativas induzidas, e ainda que o modelo do agente representativo que optimiza num horizonte infinito tenha entretanto perdido hegemonia. No entanto, sempre há razões efectivas para que as pessoas não pré-calculem nem pré-determinem as suas acções em períodos longos com contingências múltiplas, porque é impossível repetir, uma a uma, as experiências o número de vezes suficiente, aí onde está, afinal, o verdadeiro limite da racionalidade, que tem no treino

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importância como lugar geométrico do esforço consciente de racionalização. Mais além, qualquer teoria económica vale o que valer a política que ela fundamenta e recomenda, sendo vãos os esforços do neoclassicismo liberal no sentido de excluir da análise as valorações socio-económicas, hipostasiando o pretexto da incompetência e mesmo da perversidade do Estado enquanto interventor na vida económica. Contradiz-se a teoria, desde logo, porque faz dogma de a previsão económica validar o controlo da economia através do orçamento público, da moeda, do crédito e das taxas de juro. E não obstante existir um corpo considerável de provas de que os indivíduos não são maximizadores racionais da utilidade ou de que o número de violações sistemáticas da teoria da utilidade replicadas e demonstradas em laboratório é crescente (Corrêa, 1999: 227), qualquer exame sumário à literatura económica ou de análise económica do direito mostra, pelo contrário, uma persistência do modelo convencional. Mas ninguém tem dúvidas já sobre o carácter complexo do sistema económico, onde os peculiares fenómenos da auto-organização estão constantemente a surgir: a maioria das interacções humanas, nomeadamente as de carácter económico, são eminentemente sociais, no convívio, no trabalho, na vizinhança, na associação. E é através destas interacções, ocorridas num horizonte infinito de possibilidades, que emergem justamente as formas agregadas, espontâneas, de actores e agentes económicos, numa série variada de arranjos que vão, por exemplo, da família ao clube, da empresa à cooperativa, do sindicato à nação. Há, enfim, que ver da realidade última da adaptabilidade e da evolução que se exprimem espontaneamente: a ajuda teórica pode porventura ter de ser pedida, no limite, a outros sistemas complexos como a biologia, a antropologia ou a história (Corrêa, 1999: 228).

8. Eis pois que as relações entre a economia e o direito convocam a geometria variável de caminhos vários, muito pouco homogéneos os pontos de vista dos especialistas da ciência económica e da ciência jurídica sobre essas relações entre direito e a economia. Vamos apesar de tudo recenseá-los: (i) Law and Economics, ou Análise Económica do Direito, escola desenvolvida em particular por especialistas de microeconomia de Chicago – pretende compreender e avaliar economicamente as regras e as instituições jurídicas, mas não é isenta de certo conteúdo normativo, ao propor as condições de edição e selecção das regras jurídicas conformes ao princípio da eficiência, tomando corpo numa teoria explicativa do Direito; (ii) Economia Jurídica do Direito, variante da anterior, praticada principalmente por juristas que são também juízes, p.ex., Posner e Calabresi, mas reticente quanto à sobredeterminação do Direito pela lógica da eficiência; (iii) Neo-institucionalismo Americano ou

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Institutional Law and Economics, proposta pela Michigan State University, que assenta nas premissas seguintes – (a) a Economia não tem existência independente nem é um dado; (b) supõe um ponto de vista dinâmico centrado quer na multiplicidade e na complexidade dos processos de mudança e ajustamento, quer no papel que acaba por desempenhar na acção colectiva; (c) quais concorram para avaliar as práticas efectivas dos agentes nas transacções que levam a cabo e a recentrarem-se no Direito tal como ele é; (iv) Economia dos Custos de Transacção, que põe o problema das normas jurídicas, suportes das transacções, sob diferentes estruturas de governança, insistindo na eficiência, em termos da redução de custos, da dimensão relacional das práticas contratuais das empresas (relational contracting), a eficiência procedimental das normas, portanto, mais importante que a eficiência alocativa. E é neste ponto que o direito dos contratos passa a ser visto como suporte das acções de actores económicos dotados de uma racionalidade limitada e que procuram estabilizar e tornar seguras as relações entre eles ao longo do tempo, mas num ambiente mutável e não apreensível a priori1. Williamson (1985), o principal autor desta corrente, reivindica uma abordagem intencionalista e não dogmático-jurídica deste direito dos contratos para demonstrar que cada forma genérica de organização é sustentada e definida por uma forma particular de convénio: não admira que privilegie os mecanismos de arbitragem em detrimento das modalidades jurisdicionais litigiosas, aqueles mesmos que possibilitam no âmbito das relações contratuais re-arranjos privados num quadro relativamente plástico, perante o diferendo. A Economia dos Custos de Transacção permite esclarecer o desempenho nas relações contratuais à luz das propriedades do regime jurídico a que se reportam, i.é, coloca-as na sua própria matriz institucional, e esta via, seguida por Scott Masten (1991) no prolongamento das teses do fundador da escola, permite entrar antes de mais na caixa negra do regime jurídico das relações económicas, da troca e do emprego, quer dizer, do equipamento jurídico das diferentes estruturas da governança (Kirat, 1999: 21).

9. Chegamos então à pergunta Direito Económico ou Direito da Economia? A ordem jurídica afecta o sistema económico existente e por este é afectada; o funcionamento harmonioso de um determinado sistema económico requer um certo número de regras de Direito que assegurem a apropriação e o uso dos factores de produção, dos

1 Vd. sobre a nova microeconomia das organizações, Cahuc (1998).

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produtos e dos serviços: em sentido inverso toda a ordem jurídica tem repercussões, intencionais ou não, no sistema económico que enquadra, rege ou normaliza (Jaquemin & Schrans, 1982). Segundo os autores, Direito Económico corresponde a um conceito que diríamos descritivista. Direito da Economia corresponderá a um conceito construtivista: insiste na necessidade de uma abordagem interdisciplinar que transforme a regra jurídica. O desígnio do Direito Económico será então o de fornecer um quadro de análise das relações entre a evolução dos regimes jurídicos e as transformações da Economia, situando-se no paralelo da Economia do Direito. Direito que, de outro ponto de vista, organizará a economia e os mercados (Farjat, 1992), levantando a suspeita de noção antiliberal, i.é, direito de organização da economia no sentido de encaminhamento das relações entre actores económicos e poderes públicos, onde se estrutura um espaço marcado de colaboração entre público e privado. Entretanto, é o Direito da Concorrência que constitui o núcleo duro do Direito Económico na perspectiva analítica da Economia do Direito. Não é, com efeito, um assunto normativo puro e duro, mas ainda uma tarefa, digamos assim, de criação e descoberta de novas modelações interpretativas e aplicativas, que se funda nas normas mas não lhe é inteiramente circunscrita: a Administração, as jurisdições, os órgãos independentes de supervisão (caso da Autoridade da Concorrência portuguesa) intervêm e combinam esforços na construção criativa do Direito da Concorrência fazendo uso, aqui, de uma racionalidade específica.

10. As políticas públicas e principalmente aquelas que se orientam à política económica vêm muitas vezes traduzidas em instrumentos jurídicos que emergem das escolhas económicas do poder. É o caso da política de emprego, da política do arrendamento ou da política do ambiente... ora, todas essas leis, qualquer que seja a modalidade legística que revistam, quando têm objectivos económicos, por exemplo, de redução do desemprego, de ordenamento do território, e oferecem instrumentos operativos adequados, por exemplo, incentivos fiscais, desoneração de encargos sociais, têm como finalidade transformar o comportamento dos actores económicos. Estão, porém, no centro das discussões sobre a efectividade ou inefectividade do Direito, largamente comentadas neste perfil de ferramenta para a resolução dos problemas económico-sociais, não se furtando a críticas severas. É neste ponto também que a utensilagem legal com vista ao governo da economia é frequentemente considerada como ícone de uma mudança de raiz na natureza da regulamentação jurídica. Marca-a a emergência de um

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direito ancorado crescentemente nos procedimentos (Lenoble & Bertem, 1996, cit. Kirat, 1999: 29). Declínio do Direito estatal com a retirada expectante das instituições centrais da regulamentação jurídica, entre outras do aparelho jurisdicional, em benefício de órgãos que se situam na periferia do Estado, tal como as autoridades administrativas independentes, ou órgãos corporativos, por assim dizer, tais comissões deontológicas ou ordens profissionais: caminhamos para o pluralismo jurídico, no mínimo, para um normativismo plural (kirat, 1999:29). Todavia, o desenvolvimento destas formas novas de regulamentação jurídica no âmbito de um Direito mais negociado que imposto pelos poderes públicos tem sido diversamente estimado pelos autores. Teubner (1994) confere-lhe o sinal de abertura do subsistema social direito aos outros subsistemas sociais, cultura e economia, mas segundo De Munck, al. (1996) reenvia à desestatização da produção legislativa, onde o Estado ele próprio apenas se limita a fornecer um quadro procedimental, donde vem a emergência das regras de fundo, através de um empenhamento dos seus destinatários, nomeadamente no campo da economia. De qualquer modo, esta concepção de um pluralismo jurídico amarra na ideia de que o Direito ele próprio se alimenta de várias energias quer das comunidades quer dos agrupamentos humanos, da família às autarquias, às empresas… onde são produzidos sistemas normativos e processos de regulamentação jurídica. Este ponto de vista já vem de Gurvitch (1931) e prossegue, hoje, pelo Carbonnier da visão psico-sociológica e pelos conceitos de infra-direito e de contratos relacionais. Como já vimos, este último ponto de vista recentra as relações entre Direito e práticas económicas, o contrato como vector do pluralismo jurídico (Belley, 1996). Considera a análise dos modos que os actores económicos do mundo dos negócios elegem nos relacionamentos contratuais que têm: não planificam ao detalhe, recorrem raramente às sanções legais e ao direito estatal mesmo quando transigem em caso de diferendo. Em suma, apresentam-se-nos desligadas do ordenamento e são, em paralelo, auto-reguladoras enquanto buscam fundamento em normas de comportamento partilhadas, como por exemplo, o respeito pela palavra dada. Eis uma manifestação do pluralismo jurídico que, no limite, cristaliza numa verdadeira horizontalidade jurídica e na coexistência de centros de produção normativa. Temos, pois, metodologias e, no limite, crenças jurídicas que se caracterizam por esta proximidade à Economia e às práticas de gestão contratual estabelecidas entre empresas: oferecem-nos um pensamento não dogmático sobre as interferências entre o Direito e a Economia, não obstante poderem conduzir à rejeição do Direito

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legítimo e mesmo da norma jurídica. Mas nas visões menos radicais, por exemplo de Teubner (1994), as análises da empresa como sistema normativo remetem antes para o problema clássico da personalidade jurídica empresarial, corporativa, com uma responsabilidade social específica em face dos interesses sociais que põe em jogo. No momento mais produtivo do seu pensamento, o autor encara a relação Direito e Economia do ângulo das relações entre subsistemas sociais relativamente autónomos, onde o subsistema Direito não penetra na Economia nem através da racionalidade formal nem da racionalidade material, mas por uma orientação procedimental, criando normas de organização, de processo e de competência com destino a uma regulamentação indirecta e abstracta da auto-regulamentação social.

11. Feito este percurso pela instrumentalidade numa configuração avançada do Direito da Economia depois de termos visto os fundamentos ético-juridicos das limitações recíprocas de interesses do seu próprio campo, adstritas à igualdade de oportunidades sob o governo da justiça-equidade, importa agora sondar a continuação destas fronteiras de par ao estudo do princípio da precaução e das interrogações a que tem dado lugar a interferência com a governança do mercado interno europeu.

12. É para a humanidade irrealizável o empreendimento de estabelecer risco zero no mundo existente. No entanto, os esforços da ciência e da tecnologia podem apresentar-nos um balanço global positivo, desde logo, em volta do aumento progressivo da esperança de vida e seu corolário de diminuição da mortalidade infantil. Por isso mesmo, a aplicação do princípio da precaução que veda a economicidade das tecnologias não suficientemente testadas, pode dar lugar a efeitos perversos para uma dada comunidade ou um dado nicho ecológico numa certa época se não se tomar atenção aos impactos globais dele derivados. Em suma, o exercício extremo do princípio da precaução – não exercer uma determinada actividade em caso de qualquer dúvida sobre poder vir a provocar potenciais riscos para a saúde ou para o meio ambiente – pode constituir, muito pelo contrário, um verdadeiro perigo tanto para a saúde como para os actuais padrões de qualidade de vida (Whelan, cit. Formosinho, 2005). Por exemplo, em 50 anos, o uso do DDT salvou muito mais vidas do que o emprego de antibióticos: cerca de 25 milhões em estimativas da OMS, enquanto a malária começa a espalhar-se cada vez mais por todo o mundo e está a tornar-se de novo numa relevante causa de morte infantil, por efeito da abolição. E no entanto os compostos cancerígenos que ocorrem de forma natural nos nosso alimentos são em muito maior número que os da síntese química dos pesticidas. Não obstante, é subjacente ao princípio da precaução a

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ideia da bondade de tudo quanto é natural e dos perigos relevantes de tudo quanto provém da acção humana, artificial e tecnológico… no caso das dioxinas, para buscarmos um caso da actualidade, muitas delas são produzidas em fogos florestais e por acção biológica do solo! Ora, o princípio da precaução assume com frequência o pior dos cenários, enquanto distrai os particulares e os decisores públicos da solução dos problemas de risco real para a saúde humana, ao pretender elidir, contra os dados da experiência comum, o risco da existência, através da aplicação das suas propostas e restrições. Contudo, podem naturalmente verificar-se exemplos saudáveis da aplicação do princípio da precaução, tal o banimento dos clorofluorocarbonos (CFC), detectados cientificamente os riscos da produção destes compostos na depleção do ozono nas altas camadas da atmosfera, mas, concedida moratória, mesmo assim, que permitiu o desenvolvimento tecnológico de alternativas mais seguras. É o princípio da precaução originário da política ambiental europeia da década de 70 e regido pelas máximas proverbiais do melhor prevenir que remediar e da jurisprudência das cautelas. Tem tido sempre presente o síndroma de todas as surpresas desagradáveis das novas tecnologias; reporta às histórias dramáticas do amianto, do chumbo e de outras substâncias tóxicas das quais houve notícia precoce de perigo que não deu origem a cuidados suficientes. E tornou-se um hábito da lei internacional. Por exemplo, na Declaração Ministerial de Bremen de 1984, da Conferência Internacional de Protecção do Mar do Norte ficou exarado que os Estados não devem esperar por provas de efeitos danosos antes de partir para a acção, ou na Declaração do Rio de 1992, onde existir a ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a falta de certeza científica plena não deve ser usada como razão para adiar medidas de custo-benefício eficientes no sentido de prevenir a degradação ambiental. De uma forma mais radical, na Carta Mundial da Natureza consta: onde o potencial de efeitos adversos não for plenamente compreendido, as actividades não devem tomar lugar – bem vistas as coisas é proibida qualquer nova tecnologia. Já no Tratado da União Europeia o princípio da precaução foi consagrado de forma mais prudente, consignado apenas que especificamente as políticas comunitárias devem ser baseadas no princípio da precaução, sem qualquer definição deste mais aprofundada. Entretanto, os litígios abertos sob égide do princípio da precaução têm dado lugar a um crescente corpo de precedentes legais, desde logo, acórdãos do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias. De

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entre eles, o caso da imposição de bloqueio à carne britânica na crise da encefalopatia espongiforme bovina, conquanto mais recentemente, em 2002, o Tribunal se tenha pronunciado em contrário da manutenção do bloqueio francês. Mas também a exigência à França de um cronograma para avaliar as solicitações para a venda de grãos transgénicos, num ziguezague em que os interesses socio-económicos conflituantes se debatem sob a convocação da responsabilidade de tomar decisões de precaução. Ora, respondendo à controvérsia criada por medidas de precaução tomadas por alguns dos Estados-membros, em 2000, a Comissão Europeia produziu um importante relatório no sentido da racionalização deste princípio preventivo: recomenda cautela contra o uso arbitrário do princípio da precaução e sobretudo aponta para a necessidade de o usar da forma politicamente mais transparente possível. Por isso mesmo, as medidas de precaução têm de responder a um problema identificado e não a uma qualquer tentativa de se atingir risco zero; de ser baseadas em cuidadosa revisão das provas científicas, concluídas as análises custo-benefício das medidas propostas. E temporárias essas mesmas medidas de precaução, conexionadas com o compromisso de obter informações adequadas para uma análise criteriosa das políticas a implementar. Em suma, trata-se de um princípio a ser aplicado adentro de uma moldura que assegure, com toda a transparência procedimental, que não é usado para promover qualquer agenda comercial ou política. No entanto, na falta de harmonização comunitária, os Estados-membros mantêm a liberdade de escolher o nível de protecção da saúde ou ambiental que pretendem adoptar, perante os casos concretos. Aqui, o recurso a um sistema de condicionamento como o de autorização prévia, por exemplo, só é compatível com as exigências da liberdade de estabelecimento e da livre circulação de pessoas e mercadorias se for justificado e proporcional ao objectivo pretendido no âmbito daquelas salvaguardas. O procedimento, portanto, está sujeito à prova da sua necessidade. Mas um procedimento destes não pode estar em conformidade com a norma comunitária se a duração ou os custos por ele gerados forem de tal modo excessivos que dissuadam os operadores de a ele recorrerem. Comportará em si, por fim, a possibilidade de recurso jurisdicional. Se tivermos agora em atenção a jurisprudência do Tribunal das Comunidades, uma decisão restritiva só é legítima se se basear na existência de um risco real determinado com base nos dados científicos mais recentes que estejam disponíveis na data da adopção

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dessa decisão, através de análise em profundidade e padronizada aos protocolos da investigação científica internacional2. Mas revelando os dados científicos disponíveis um risco real e certo para a saúde e o meio ambiente, a proibição está em conformidade com o Direito Comunitário uma vez que aquelas protecções prevalecem sobre o princípio de livre circulação de pessoas e mercadorias ou a liberdade de estabelecimento. Outro problema é o de estabelecer os limites em caso de incerteza quanto à existência ou alcance do risco, uma única condição negativa tendo sido colocada até agora pela jurisprudência: para determinar a incerteza científica não basta referir condições hipotéticas, portanto, a demonstração da incerteza científica só pode ser feita no final de uma avaliação dos riscos.

13. O recurso ao princípio da precaução tem consequências distintas consoante seja aplicado pelas instituições comunitárias ou pelos Estados-membros. Na verdade, no caso de um Estado-membro invocar por e para si só o princípio da precaução, provocará um fraccionamento do mercado único: o ponto de vista dos outros Estados-membros não pode ser tido em conta, mesmo que a medida tomada não seja ditada por motivos proteccionistas. Pelo contrário, quando uma instituição comunitária adopte uma decisão com base no mesmo princípio já tal não sucede. De uma maneira ou de outra, está no vórtice do êxito da integração económica europeia. E é aqui que se põe naturalmente o problema de avaliar os efeitos da aplicação do princípio da precaução sobre a governança do mercado interno europeu. Na sociedade da informação e do risco, os problemas são cada vez mais determinados a nível global, mas vividos a nível singular, e quer a abertura, quer a participação promovem, no fim de contas, os valores da equidade, da solidariedade e da responsabilidade partilhada: tudo evolui para formas de proximidade mais palpáveis, tornando-se cada vez mais necessária uma aproximação das instituições aos cidadãos, que se acomodam e anseiam por novas formas de comparticipar O conceito de governança provém da teoria da gestão estratégica empresarial, para onde convocou o principio prima non nocere: antes de mais, não causar distúrbios, só depois tentar fazer melhor. Exige visão estratégica, modelos de gestão, desenvolvimento organizacional, capacidade de execução e de avaliação permanentes. Consolida a permanência das aprendizagens, gerindo dinâmicas de conhecimento e reflexividade. É portanto de esperar que em torno

2 Vd. Ac. Muller e Ac. Bellon.

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do princípio da precaução venha a fazer-se também o caminho da cidadania europeia, rasgado no Tratado Constitucional Mas, para além deste horizonte, a crítica mais importante ao princípio da precaução reside em não serem tidos em conta os custos gerados por uma medida de protecção, apenas os benefícios esperados para a saúde e o ambiente. Nesta crítica não incorreu o Supremo Tribunal Administrativo quando julgou o caso ACOP – Associação de Consumidores de Portugal vs. MAOT [Ministério do Ambiente], a propósito do problema da co-incineração de resíduos perigosos, acolhendo, primeiro, a posição do Ministério Público: …como bem salienta a entidade requerida… a manutenção do status quo, bem como a falta de tratamento adequado dos resíduos industriais perigosos, significaria não só a continuação e proliferação de lixeiras a céu aberto e de locais contaminados, onde acabariam por ser depositados de forma clandestina e desordenada toda a espécie desses resíduos, mas também a contaminação de aquíferos e linhas de água, a poluição do ar pela combustão descontrolada de matéria orgânica e dos cheiros nauseabundos que produzem também a poluição visual, com os consequentes prejuízos que daí advêm para a saúde pública, para o ambiente e qualidade de vida a que as populações têm direito, incluindo a de Souselas, ao que acresce o facto de tais lixeiras constituírem verdadeiros e reais focos de transmissão de doenças… E decidindo depois: …ora, a requerente… limitou-se a afirmar o receio e dúvidas sobre a existência dos receados riscos do processo de co-incineração, invocando pareceres críticos desfavoráveis às conclusões e recomendações formuladas do Relatório da comissão científica independente, em que se baseia o despacho atacado e, nestas circunstâncias, impõe-se o reconhecimento de que a suspensão da eficácia do acto prejudicaria seriamente a prossecução do interesse público que ele visou, pois que determinaria o retardamento da alteração da situação existente, com a persistência da contaminação dos solos e recursos aquíferos de todo o país e a consequente lesão, de forma grave e irreversível, da preservação do ambiente e das condições de saúde das populações integrantes da própria comunidade nacional. Tudo visto, o princípio da precaução pode efectivamente, acaso não seja entendido num quadro restritivo e de prudente cautela, bloquear a economia e sobretudo a construção exitosa do mercado único, como refúgio proteccionista e deriva conservadora onde pode vir a ancorar.

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Todavia, na margem estritamente racional em que deve ser aplicado é compaginável com a instrumentalidade e a exigência de limites internos ao Direito da Economia que foram sendo expostos.

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Assim, a arquitectura institucional do Direito da Concorrência, por exemplo, ao nível da articulação União Europeia/República Portuguesa, surge de certo modo como um paradigma neste particular, quando fez emergir no ordenamento nacional o organismo de supervisão independente Autoridade da Concorrência. Compete-lhe – assegurar a aplicação das regras de concorrência em Portugal, no respeito pelo princípio da economia de mercado

e da livre concorrência, tendo em vista: O funcionamento eficiente dos mercados, Um elevado nível de progresso técnico, E, sobretudo, o prosseguimento do maior benefício para os

consumidores. Desta forma, a defesa da concorrência constitui-se num bem público que cabe à Autoridade da Concorrência preservar numa perspectiva instrumental, nos termos constitucionais3, o que a coloca ao mais alto nível das missões do Estado no domínio económico e social, diz de si próprio este organismo no site http://www.autoridadedaconcorrencia.pt. Por conseguinte, a política da concorrência constitui um instrumento ao serviço do desenvolvimento económico e de promoção do Bem Estar geral, alocado ao cumprimento da linha de força dos Tratados, nas versões de Roma a Nice: quanto a uma concorrência não falseada, norma orientadora básica da construção da União Europeia. Continua a informação disponibilizada ao público: para além de beneficiar os consumidores, uma concorrência sã beneficia as empresas, ao estabelecer o level playing field, evitando assim que algumas sejam eliminadas por simples práticas predatórias. E desde logo a Autoridade desempenhará as suas funções de forma a:

prosseguir o mais elevado nível de rigor intelectual e científico nas áreas económica e jurídica, criando um corpo de técnicos com capacidade própria de formulação de metodologias, investigação e supervisão,

garantir princípios éticos, de justiça e de imparcialidade, assegurar a transparência da informação e a execução das suas

tarefas, respondendo perante os órgãos de soberania e tendo em vista o desempenho estrito das suas funções perante a sociedade4.

3 Artigo 81.e: …assegurar o funcionamento eficiente dos mercados de modo a garantir a

equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização

monopolistas e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do

interesse nacional. 4 A Autoridade possui poderes de regulamentação, de supervisão e sancionatórios:

Propor leis aos órgãos competentes, e aprovar regulamentos necessários para a

defesa da concorrência

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Não desdenhando núcleos de tarefas tão importantes como:

Formação da opinião pública: fomentar práticas sãs de concorrência nos agentes económicos;

Cooperação: colaborar com as outras instituições de concorrência, sobretudo as pertencentes à rede europeia, e, em especial, com a Comissão Europeia;

Representação: representar o Estado Português a nível comunitário e internacional em "fora" relativos à concorrência;

Apoio às empresas portuguesas que estão em mercados estrangeiros, de forma a esclarecê-las sobre as regras de concorrência nesses mercados;

Investigação e estudos: promover a investigação científica nestas matérias, contribuir para o aperfeiçoamento da legislação portuguesa e elaborar estudos a pedido do governo. E na verdade, segundo os esquemas utilizados, que se distinguem do aparelho judicial e da administração clássica, os modos de interpretação do Direito Económico poderão ser muito diferentes, determinante a composição e sobretudo a independência perante as autoridades e os particulares, dos organismos, como este da Autoridade da Concorrência, encarregados da aplicação em concreto, e certamente a familiaridade que têm com as exigências de eficiência económica e a missão instrumental do Direito da Economia. Mas não vá sem se dizer, um pouco noutro caminho, que a jurisdição civil nos Estados Unidos da América tem estado em larga medida

Emitir recomendações e directrizes genéricas sobre os casos analisados e

práticas seguidas

Propor e homologar códigos de conduta e boas práticas Decidir sobre as notificações de aquisições e fusões, dando a sua não oposição ou

rejeição

Identificar e investigar práticas restritivas da concorrência, segundo as leis

nacionais e comunitárias. Da mesma forma, terá de realizar estudos, inquéritos, ou

inspecções que ajudem à detecção dessas práticas.

Instruir e decidir os processos, aplicando sanções ou tomando providências

cautelares

Instruir e decidir procedimentos administrativos sobre a compatibilidade de

certas práticas restritivas da concorrência com a legislação em vigor,

considerando-as como não atentórias da lei da concorrência.

O objectivo das políticas de concorrência é promover o funcionamento eficiente dos

mecanismos de mercado. Assim, o núcleo das actividades da Autoridade deve incidir sobre

as seguintes operações: (i) fusões e aquisições que possam constituir um poder de mercado

que coarcte a concorrência e prejudique os consumidores; (ii) acordos de cartelização do

mercado (acordos horizontais); (iii) acordos verticais de restrição da concorrência; (iv)

abusos de posição dominante; (v) restrições estatais à concorrência, seja por

regulamentação, seja por actuação através do sector público empresarial ou de entidades

autónomas públicas. Contudo, existem outras áreas em que distorções de concorrência pode

prejudicar seriamente o bem público – também estão adstritas à supervisão da Autoridade

da Concorrência, em conjunto com outras entidades: concursos públicos; ajudas de Estado;

práticas de dumping, regulamentação sectorial.

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aberta à influência da Análise Económica do Direito, justamente na medida em que as soluções de fundo aplicáveis aos casos são, segundo a técnica legislativa do país, de um grande grau de generalidade ou decorrem de precedentes, em frente dos argumentos económicos em sentido forte utilizados pelas partes, através de peritos experimentados.

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O conhecimento jurídico parte sempre de afirmações (que constituem a estrutura dos casos-paradigma) unanimemente partilhadas no campo da experiência jurídica determinada de uma ou várias comunidades científicas, e donde defluem os conceitos de direito que são do senso comum. Mas daí também emergem sob a influência do ante plano das ideias-sobre-o-direito, tradições de investigação jurídica, cultural e historicamente contingentes, de carácter mais geral. Pairam sobre estas, depois, as teorias jurídicas em sentido próprio, que representam uma ulterior especificação e concretização dessas mesmas correntes de estudo: passam a valer como modelos intelectuais explicativos do campo da experiência jurídica dado inicialmente. Um exemplo pertinente deste esquema vem-nos da concepção juspositivista em contraponto à concepção jusnaturalista do direito. Neste domínio, todas as tradições de investigação juspositivista partem de um conceito comum de direito positivo, amarrado em dois pontos esquemáticos, e ao mesmo tempo negações do jusnaturalismo, a saber: (i) não há diferença alguma de sentido e de referência entre as expressões direito e direito positivo; (ii) todo o direito é, sem excepção, um produto humano radicalmente contingente, seja do ponto de vista da sua emergência, seja do ponto de vista da avaliação/justificação: os conteúdos normativos do direito positivo não têm, por isso mesmo, qualquer ligação exterior ou raiz no contexto histórico e cultural. É sobre esta concepção que se debruçaram de seguida as diferentes tradições da investigação (normativa, realista, institucional…) que interpretaram estas proposições de maneira diferente, dando, antes de mais, um sentido diferenciado ao segmento produto humano historicamente contingente (ou normas estabelecidas, ou conjunto de factos psicossociais, ou práticas sociais…). Logo, por de cima das tradições de investigação, as verdadeiras teorias jurídicas (Kelsen, Ross, Hart…). No domínio jurídico, a estes dois modelos correspondem duas diferentes teorias do conhecimento jurídico e duas teorias do Direito: interactivas as relações entre métodos e teorias, a escolha do método depende da pré-definição de um objecto e vice-versa a configuração do objecto condiciona a escolha do método.

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E sugere-nos para o conceito de sociedade bem ordenada uma interpretação do reino dos fins kantiano submetido às condições da justiça prática numa sociedade humana, através da utilização do conceito de liberdade negativa, no sentido preciso em que Kant o utilizou quer na Fundamentação quer na Introdução à Metafísica dos Costumes. Supõe contratantes a agirem independentemente de causas estranhas à sua vontade.

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(partilha-a, por exemplo, com o modelo do actor económico interino, diante da sobreposição de gerações ou da informação assimétrica e/ou externalidades que se desviam, porque produzem ineficiências e falhas de coordenação) De qualquer forma, segundo a teoria neoclássica continuam a ser postuladas duas alavancas que levam a raciocínio circular, partindo e chegando de/ou à lei natural, assentes nos pontos fixos de uma racionalidade olímpica e dos equilíbrios económicos, inscritos na natureza das coisas (Corrêa, 1999: ). Acompanhemos Friederich Hayek (1979,cit.Corrêa,1999): …o homem nunca inventou as suas instituições mais fecundas, desde a linguagem até ao direito passando pela moral; e na hora actual não compreende porque razão as deveria preservar quando elas não satisfazem nem os seus instintos nem a sua razão: os utensílios fundamentais da civilização – a língua, a moral, o direito e a moeda – são todos fruto de um crescimento espontâneo e não de um projecto: o poder político organizado apoderou-se dos dois últimos citados e corrompeu-os completamente.

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Pergunta-se: qual o papel reservado a cada actor no quadro da governância? novo conceito que se insinua nos tempos contemporâneos neste contexto de transformação dos exercícios funcionais, que não só faz apelo às instituições como à própria sociedade. Na sociedade de informação e do risco, os problemas são cada vez mais determinados a nível global, mas vividos a nível singular, e quer a abertura quer a participação promovem os valores da equidade, da solidariedade e da responsabilidade partilhada: tudo evolui para formas de vizinhança e de proximidade mais palpáveis, tornando-se cada vez mais necessária uma proximidade das instituições aos cidadãos, que se acomodam e anseiam por novas formas de comparticipação.

Voltemos atrás um pouco: o conceito de governância provém da

teoria da gestão estratégica empresarial, tem a ver sobretudo com o

bom governo da organização, qualquer que ela seja.

Desde logo evoca o princípio do juramento médico, acima de tudo

não prejudicar: prima non nocere. Antes de mais, não causar

distúrbios, só depois, tentar fazer o bem: para tal, exige-se, na

verdade, visão estratégica, modelos de gestão, bom desenvolvimento

organizacional, capacidade de execução e de avaliação permanentes.

Mas igualmente se demanda a capacidade de reconhecer aquilo que

se não deve fazer. Tratar-se-á de apostar, por assim dizer, numa

responsabilidade distribuída, adoptar um modelo de difusão de

responsabilidades ao invés de persistir na concentração. Está assim

em causa um modelo substancialmente diverso daquele onde uma

prestação de contas unificada tem lugar.

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Em suma, a governância inspira-se na ideia de que as organizações,

públicas ou privadas, são organizações alargadas – ultrapassam a

esfera restrita dos empregados e da sua realidade física para integrar

redes pluri-dimensionais de cidadãos e suas organizações primárias.

Têm assim de aprender em permanência, gerindo dinâmicas de

conhecimento, acrescentando inteligência e reflexividade ao

desenvolvimento avançado das organizações.