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Direito e Marxismo Políticas Publicas

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    Direito e Marxismo: economia globalizada, mobilizao popular e

    polticas sociais

    Martonio MontAlverne Barreto Lima Organizador

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    FUNDAO UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL

    Presidente: Roque Maria Bocchese Grazziotin

    Vice-Presidente: Orlando Antonio Marin

    UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL

    Reitor: Prof. Isidoro Zorzi

    Vice-Reitor: Prof. Jos Carlos Kche

    Pr-Reitor Acadmico: Prof. Evaldo Antonio Kuiava

    Coordenador da Educs: Renato Henrichs

    CONSELHO EDITORIAL DA EDUCS

    Adir Ubaldo Rech (UCS) Gilberto Henrique Chissini (UCS) Israel Jacob Rabin Baumvol (UCS)

    Jayme Paviani (UCS) Jos Carlos Kche (UCS) presidente

    Jos Mauro Madi (UCS) Luiz Carlos Bombassaro (UFRGS)

    Paulo Fernando Pinto Barcellos (UCS)

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    Direito e Marxismo: economia globalizada, mobilizao popular e polticas

    sociais

    Martonio MontAlverne Barreto Lima Organizador

    Doutor e Ps-Doutor em Direito pela Johann Wolfgang Goethe-Universitt Frankfurt am Main. Professor Titular na Universidade de Fortaleza. Coordenador da rea de Direito na Capes.

    Procurador do Municpio de Fortaleza.

    Colaboradores:

    Adir Ubaldo Rech Luiz Fernando Vasconcelos de Freitas Ana Paula Arrieira Simes Mara de Oliveira Celso Rodrigues Mariana Pio Ramos Ferreira Eduardo Jos Bordignon Benedetti Marli Marlene Moraes da Costa Evelisen de Freitas Avila Monique Soares Vieira Fabiano Rodrigo Dupont Nara Raquel Alves Gcks Fernando Oliveira Piedade Patrcia Dittrich Ferreira Diniz Flvio Marcelo Busnello Patrcia Krieger Grossi Gabriel Webber Ziero Renata Ovenhausen Albernaz Gabrieli Bandeira Renata Piroli Mascarello Geovana Prante Gasparotto Roberta Marina Cioatto Gissele Carraro Rodrigo Cristiano Diehl Guilherme Gomes Ferreira Salete Oro Boff Jeaneth Nunes Stefaniak Solange Emilene Berwig Joo Luiz Stefaniak Tania Angelita Iora Jocenir de Oliveira Silva Vanderlei Schneider de Lima Juliana Rego Silva Vanessa Azevedo Karina Morgana Furlan Vanisa da Silva Raber Karlla Maria Martini Wellington Migliari Leonardo Bacher Medeiros Yuri Gabriel Campagnaro Lislen de Freitas vila Lucas Mateus Dalsotto

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    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Universidade de Caxias do Sul

    UCS - BICE - Processamento Tcnico

    ndice para o catlogo sistemtico:

    1. Direito e socialismo Amrica Latina 340.11:316.26(7/8=134)(0.034.1) 2. Filosofia marxista 141.82

    Catalogao na fonte elaborada pela bibliotecria Ana Guimares Pereira CRB 10/1460.

    EDUCS Editora da Universidade de Caxias do Sul Rua Francisco Getlio Vargas, 1130 Bairro Petrpolis CEP 95070-560 Caxias do Sul RS Brasil Ou: Caixa Postal 1352 CEP 95020-972 Caxias do Sul RS Brasil Telefone/Telefax PABX (54) 3218 2100 Ramais: 2197 e 2281 DDR (54) 3218 2197 Home Page: www.ucs.br E-mail: [email protected]

    D598 Direito e marxismo [recurso eletrnico] / org. Enzo Bello, Martonio MontAlverne Barreto Lima, Srgio Augustin. - Caxias do Sul, RS : Educs, 2014. 4 arquivos digitais.

    ISBN 978-85-7061-743-9 (v. 1) ISBN 978-85-7061-739-2 (v. 2) ISBN 978-85-7061-740-8 (v. 3) ISBN 978-85-7061-741-5 (v. 4) Apresenta bibliografia.

    Modo de acesso: World Wide Web. Contedo: v. 1. Materialismo histrico, trabalho e educao v. 2.

    Economia globalizada, mobilizao popular e polticas sociais v. 3. Transformaes na Amrica Latina contempornea v. 4. Meio ambiente.

    1. Direito e socialismo Amrica Latina. 2. Filosofia marxista. I. Bello, Enzo. II. Lima, Martonio MontAlverne Barreto. III. Augustin, Srgio.

    CDU 2.ed.: 340.11:316.26(7/8=134)(0.034.1)

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    SUMRIO

    Apresentao ............................................................................................................................. 8 Enzo Bello Martonio MontAlverne Barreto Lima Srgio Augustin

    Captulo I ECONOMIA GLOBALIZADA E MARXISMO

    Sistema nico de sade em tempos de capital fetiche .......................................................... 15 Gabrieli Bandeira Vanessa Azevedo

    Trabalho: as transformaes societrias e as diferentes relaes do mundo do trabalho ..................................................................................................................................... 23 Jocenir de Oliveira Silva Solange Emilene Berwig

    Da acumulao primitiva revoluo tecnolgica: transformaes no modo de explorao da mo de obra do trabalhador .......................................................................... 38 Karlla Maria Martini Patrcia Dittrich Ferreira Diniz

    O consumo do Poder Pblico enquanto efetivao do princpio da preveno: consumo, preveno e ambiente .............................................................................................................. 51 Nara Raquel Alves Gcks

    As patentes de medicamentos sob um olhar marxista a flexibilizao do sistema a partir da perspectiva dos pases em desenvolvimento ..................................................................... 65 Roberta Marina Cioatto Salete Oro Boff

    A globalizao e o estado neoliberal: acumulao por espoliao ...................................... 81 Yuri Gabriel Campagnaro

    Captulo II LUTAS SOCIAIS E MOBILIZAO POPULAR

    Pluralismo jurdico e reconhecimento: contribuies para as polticas sexuais na Amrica Latina ........................................................................................................................ 94 Eduardo Jos Bordignon Benedetti Renata Ovenhausen Albernaz

    Direito e linguagem: participao social e acesso Justia ............................................... 109 Fernando Oliveira Piedade Marli Marlene Moraes da Costa

    O papel das lutas sociais na radicalizao da democracia ................................................. 118 Flvio Marcelo Busnello Leonardo Bacher Medeiros

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    Teorias e concepes sobre sexualidade e gnero presentes nos estudos marxistas ......... 134 Guilherme Gomes Ferreira

    Engels e a questo da habitao e os movimentos sociais na luta pela efetividade do direito moradia ............................................................................................................................... 149 Jeaneth Nunes Stefaniak Joo Luiz Stefaniak Vanderlei Schneider de Lima

    Cotidiano e novos movimentos sociais: uma breve anlise sob o espectro dos direitos fundamentais ......................................................................................................................... 161 Juliana Rego Silva Mariana Pio Ramos Ferreira

    A luta pelo direito cidade como luta de classes ................................................................ 174 Luiz Fernando Vasconcelos de Freitas

    A atuao dos movimentos sociais na recente luta pela reforma urbana no Brasil ........ 181 Renata Piroli Mascarello

    A questo da opresso da mulher na sociedade capitalista: contribuies das obras de Marx e Engels no campo do trabalho .................................................................................. 191 Tania Angelita Iora

    Captulo III DESIGUALDADE SOCIAL, POBREZA E POLTICAS SOCIAIS NA

    CONTEMPORANEIDADE

    Instrumentos de incluso social ........................................................................................... 198 Adir Ubaldo Rech

    O fenmeno do consumismo como fomentador da delinquncia juvenil atravs da excluso social ........................................................................................................................ 208 Ana Paula Arrieira Simes Fabiano Rodrigo Dupont

    A crise do sistema prisional e a sociedade de controle ................................................... 216 Celso Rodrigues Gabriel Webber Ziero

    Juventude e polticas pblicas: o trabalho como direito de cidadania ............................. 224 Evelisen de Freitas Avila Lislen de Freitas Avila

    Sistema nico de Assistncia Social: problematizaes a partir da teoria social de Marx ....................................................................................................................................... 238 Geovana Prante Gasparotto Monique Soares Vieira Patricia Krieger Grossi

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    Desigualdade Social, Pobreza e Polticas Sociais na Contemporaneidade ....................... 254 Gissele Carraro Karina Morgana Furlan Mara de Oliveira

    A crtica marxista de Cohen ao liberalismo igualitrio de Rawls ..................................... 267 Lucas Mateus Dalsotto

    As polticas pblicas educacionais como instrumentos eficazes para prevenir e erradicar o trabalho infantil ................................................................................................. 274 Marli Marlene Moraes da Costa Rodrigo Cristiano Diehl

    A herana conservadora negadora dos direitos no Brasil, reiteradora da subalternidade ....................................................................................................................... 285 Vanisa da Silva Raber

    A afirmao negativa do direito moradia ........................................................................ 301 Wellington Migliari

    Colaboradores ....................................................................................................................... 315

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    Apresentao

    A partir da publicao de recentes livros,1 coletneas2 e da criao de peridicos acadmicos3 voltados promoo de debates relacionando Direito e Marxismo na atualidade, tem se evidenciado a relevncia da retomada e do fortalecimento da obra de Karl Marx e de sua crtica ao Direito.

    Neste contexto, entre 27 e 29 de maro de 2011, foi realizado o I Congresso Internacional de Direito e Marxismo, na cidade de Caxias do Sul, a partir de uma parceria envolvendo a Universidade de Caxias do Sul, a Universidade de Fortaleza e a Universidade Federal Fluminense. O evento recebeu mais de 1.100 participantes, oriundos de 20 unidades da Federao brasileira e de nove pases (Brasil, Frana, Mxico, Peru, Argentina, Portugal, Equador, Itlia e Alemanha), alm de ter mais de 100 trabalhos submetidos e apresentados em Grupos de Trabalho (GTs).

    O evento teve como objetivo principal proporcionar a difuso entre estudantes de graduao e ps-graduao, professores e pesquisadores das reas de Direito, Sociologia, Economia, Servio Social, Administrao, Cincia Poltica, Filosofia, Meio Ambiente, etc. da obra de Karl Marx e da tradio terica e poltica que se formou em sua esteira. Para tanto, foram promovidas palestras, oficinas e produes bibliogrficas4 no campo do marxismo, voltadas temtica do Direito Constitucional contemporneo.

    De modo mais especfico, almejou-se: (i) divulgar o pensamento marxiano e a teoria marxista entre estudantes, professores e profissionais do Direito em geral; (ii) reunir pesquisadores nacionais e estrangeiros preocupados com a conexo entre Direito e Marxismo; (iii) proporcionar canais de dilogo entre profissionais atuantes em diferentes reas do Direito, assim como em reas afins, que estabelecem dilogos entre

    1 BELLO, Enzo. A cidadania na luta poltica dos movimentos sociais urbanos. Caxias do Sul: Educs,

    2013; MASCARO, Alysson. Estado e forma poltica. So Paulo: Boitempo, 2013; ALVES, Alar Caff. Dialtica e Direito: linguagem, sentido e realidade. So Paulo: Manole, 2010; SARTORI, Vitor Bartoletti. Lukcs e a crtica ontolgica ao direito. So Paulo: Cortez, 2010; MELO, Tarso de. Direito e ideologia: um estudo a partir da funo social da propriedade. So Paulo: Expresso Popular, 2009; KASHIURA JNIOR, Celso Naoto. Crtica da igualdade jurdica: contribuio ao pensamento jurdico marxista. So Paulo: Quartier Latin, 2009; CALDAS, Camilo Onoda Luiz. Perspectivas para o direito e a cidadania: o pensamento jurdico de Cerroni e o marxismo. So Paulo: Alfa-mega, 2006; NAVES, Mrcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. So Paulo: Boitempo, 2000. 2 LIMA, Martonio MontAlverne Barreto; BELLO, Enzo (Coord.). Direito e marxismo. Rio de Janeiro:

    Lumen Juris, 2010. 3 KASHIURA JNIOR, Celso Naoto et al. (Ed.). Cadernos de pesquisa Marxista do Direito, So Paulo:

    Ed. Expresso Popular. Disponvel em: . 4 Como fruto do I Congresso Internacional de Direito e Marxismo foram publicadas as seguintes obras:

    BELLO, Enzo; AUGUSTIN, Srgio; LIMA, Martonio MontAlverne Barreto (Org.). Anais do 1 Congresso Internacional Direito e Marxismo. Caxias do Sul: Plenum, 2011; BELLO, Enzo; AUGUSTIN, Srgio; LIMA, Martnio MontAlverne Barreto; LIMA, Letcia Gonalves Dias (Org.). Direito e marxismo: tendncias atuais. Caxias do Sul: Educs, 2012.

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    si e com o Direito; (iv) promover a difuso de trabalhos cientficos acerca dos eixos temticos adotados; (v) fomentar o debate de solues alternativas para a problemtica da falta de efetividade da Constituio; (vi) auxiliar acadmicos com dificuldades quanto ao aprofundamento terico em pesquisas; e (vii) recuperar fundamentos da teoria marxista, sem deixar de lado outros enfoques ideolgicos.

    Na primeira edio do Congresso Internacional de Direito e Marxismo, os Eixos Temticos (ETs) analisaram alguns dos principais tpicos do Direito Constitucional: as teorias da Constituio, da cidadania, da democracia, do Direito Econmico Constitucional, dos direitos fundamentais, do Estado social, da sociedade civil, da judicializao da poltica, das relaes sociais, da justia e da proteo ao ambiente. Este tem se mostrado o campo jurdico mais frtil para reflexes interdisciplinares e sintetiza uma gama de temas nodais no pensamento marxiano.

    O sucesso do evento demonstrou que o debate acerca das contribuies da teoria marxista na conjuntura contempornea mais atual e acentuado do que se havia imaginado. Restou evidenciado que as discusses continuam oportunas, exatamente por se constatar que o Direito Constitucional, em particular a Teoria Constitucional, est na vanguarda da discusso do prprio Direito, relativamente sua (auto)compreenso e tambm quanto ao seu engajamento na luta por uma sociedade mais solidria, igualitria e justa.

    Ratificado, portanto, que o pensamento de Marx oferece contribuies de extrema relevncia, possibilitando uma compreenso crtica do Direito Constitucional em um campo mais amplo do que o meramente dogmtico (da ineficcia social das normas constitucionais), uma segunda edio mostrou-se necessria, tanto para dar continuidade aos diversos dilogos iniciados em 2011, como para amadurecer ainda mais o debate, focando-se, agora, nas novas tendncias do mbito constitucional na Amrica Latina.

    A importncia do pensamento de Marx e sua relao com o Direito de forma toda especial relativamente ao Direito Constitucional tem despertado contnua dedicao de intelectuais em diversos pases, percebendo-se, no Brasil e em toda Amrica Latina, alguma deficincia sobre tal tema, em que pese suas novas tendncias. No se trata de procurar na obra de Marx uma teoria do Direito, mas de se redimensionar o que o Direito Constitucional pode vir a ganhar com a incorporao dos elementos de anlise marxiana.

    O II Congresso Internacional de Direito e Marxismo Novas tendncias da Amrica Latina foi realizado entre os dias 20 e 22 de maio de 2013, novamente na cidade de Caxias do Sul, fruto da parceria entre a Universidade de Caxias do Sul (UCS), a Universidade de Fortaleza (Unifor), a Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Universidad Nacional Autnoma de Mxico (Unam). O evento contou com o patrocnio

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    da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes), imprescindvel e valioso para o sucesso da empreitada, e recebeu cerca de 1.600 participantes, alm de ter mais de 100 trabalhos submetidos e apresentados em Grupos de Trabalho (GTs).

    Este evento foi dedicado como homenagem pstuma a Carlos Nelson Coutinho. Falecido em 20 de setembro de 2012, o professor, intelectual e militante baiano era um dos convidados a celebrar a Conferncia de Abertura deste Congresso. A ele foram dedicados dois belos textos (publicados neste volume) elaborados pelos professores Enzo Bello e Leandro Konder, este ltimo um de seus amigos mais prximos e referncia entre os intelectuais marxistas brasileiros.

    Visando a ampliar o debate, a segunda edio do Congresso Internacional de Direito e Marxismo trouxe novos Eixos Temticos, de modo a contemplar o contexto latino-americano como espao de transformao social, poltica, econmica e cultural. Assim, foram agregados novos elementos estrutura constitucional oferecida pelas experincias europeia e estadunidense, alm de se criar um marco diversificado que se notabiliza pelo resgate de elementos histricos da regio.

    A seguir so descritos os novos ETs,5 estabelecidos a partir dos critrios de adeso com as linhas de pesquisa dos cursos de graduao e dos programas de ps-graduao das instituies realizadoras e da afinidade com o projeto terico e poltico desenvolvido por Karl Marx. Desse modo, buscou-se estabelecer um norte para os debates envolvendo os elementos fundamentais do atual processo de reconfigurao social em curso na Amrica Latina.

    (i) ESTADO Refundao nacional e transio do Estado Democrtico de Direito ao Estado Pluricultural e Multinacional: com o advento do chamado novo constitucionalismo latino-americano, o formato assumido pelo Estado passa por significativas transformaes, a partir dos processos de refundao nacional realizados mediante assembleias nacionais constituintes, notadamente na Venezuela, na Bolvia e no Equador. Entre estes pases, acrescida a Colmbia, observa-se um avano do modelo do Estado Democrtico de Direito para o chamado Estado Pluricultural ou Multinacional, que rompe com a noo tradicional de correlao entre um Estado e uma nao, a qual seria inteiramente homognea e representativa de todos os segmentos da sociedade. Com estes processos recentes de transformaes institucionais impulsionadas a partir da sociedade civil, o Estado passa a ser tido como instncia de representao inclusive dos grupos tnico-sociais historicamente negligenciados, especialmente os

    5 Ser publicado, ainda no ano de 2014, um volume impresso contendo o teor das conferncias proferidas

    pelos palestrantes em todos os cinco ETs.

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    povos indgenas, que tm novos direitos reconhecidos e ganham fora poltica na cena democrtica.

    (ii) TEORIA DO DIREITO Pluralismo jurdico e produo do Direito pela sociedade civil: como consequncia dos recentes processos constituintes da Amrica Latina, a Teoria do Direito a ser pensada e aplicada na regio deve observar os novos institutos, instituies, direitos e sujeitos de direitos considerados pelos textos constitucionais, de modo que se pe em xeque o tradicional entendimento acerca do Estado como nica instncia legtima de produo de normas jurdicas. O pluralismo jurdico ganha impulso com o reconhecimento do carter fundamental dos costumes e das tradies dos povos indgenas, que devem ter sua autonomia preservada a todo custo, inclusive no que tange aos seus regramentos sociais. Nesse aspecto, mostram-se relevantes as tentativas de conciliao entre as diferentes culturas, sem a imposio de uma sobre a outra, de modo a se promover a diversidade como elemento central na produo do Direito.

    (iii) DIREITOS HUMANOS Do universalismo interculturalidade: elemento simblico desse processo de transio, os direitos humanos corporificam as inmeras transformaes reivindicadas nas ruas e contempladas pelos novos textos constitucionais latino-americanos. Na linha da ideia de refundao nacional, os direitos humanos deixam de ser concebidos na perspectiva eurocntrica do universalismo, e passam a ser considerados como representao de distintas culturas e vises de mundo, abarcando concepes axiolgicas relacionadas aos diversos segmentos sociais e servindo como elo entre eles. Entre as novas constituies da Amrica Latina, tem-se o reconhecimento de novos direitos fundamentais e a ampliao do rol dos seus titulares, que passam a abranger sujeitos antes discriminados formal e materialmente.

    (iv) ECONOMIA Trabalho e desenvolvimento no ps-neoliberalismo: aps as duas ondas de reformas neoliberais na Amrica Latina e as crises socioeconmicas delas decorrentes, atualmente delineia-se um cenrio de recuperao dos valores sociais como diretrizes de uma vida digna e livre. Ao invs de privatizaes e desestatizaes, tem-se utilizado a via da nacionalizao ou reestatizao como estratgia para a viabilizao de um desenvolvimento orientado pelo homem, e no mais pela perspectiva mercadolgica do lucro a todo custo. Nesse contexto, tem-se uma srie de transformaes tambm na concepo acerca do trabalho, que persiste como elemento central da sociedade humana, mas deve ser encarado de modo diferente da perspectiva tradicional, considerando-se as inovaes no processo produtivo e as consequentes mudanas nas relaes entre modos de produo, foras produtivas e agentes de produo.

    (v) MEIO AMBIENTE O princpio do bien vivir (sumak kawsay) como novo eixo epistemolgico: dentro da concepo de refundao nacional e resgate das origens

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    genunas da cultura latino-americana figura a noo de Pachamama (me terra), que representa a centralidade da natureza na organizao humana. Advinda da cultura inca, denota uma viso de mundo centrada na importncia da natureza como orientadora da vida do ser humano, que deve coexistir harmonicamente com os recursos naturais. Como seu corolrio, tem-se o princpio do sumak kawsay (bem-viver), que representa os aspectos de uma vida com qualidade, preenchidos os requisitos essenciais de dignidade para o ser humano como alimentao, moradia, transportes, respeito ao meio ambiente etc. , no mais numa perspectiva abstrata e genrica, mas faticamente situada.

    Paralelamente s conferncias proferidas no mbito dos cinco Eixos Temticos, de modo a se contemplar a interdisciplinaridade das diferentes reas do conhecimento, foram promovidos oito Grupos de Trabalho (GTs):

    GT I Concepo e Mtodo na Perspectiva Marxista; GT II A Categoria Trabalho na Sociedade Contempornea; GT III Economia Globalizada e Marxismo; GT IV Educao e Materialismo Histrico; GT V Lutas Sociais e Mobilizao Popular; GT VI Desigualdade Social, Pobreza e Polticas Sociais na Contemporaneidade; GT VII Amrica Latina, Direitos Humanos e Marxismo; e GT VIII Marxismo, Direito e Meio Ambiente.

    Os trabalhos submetidos, aprovados e apresentados no II Congresso Internacional de Direito e Marxismo vm a pblico atravs de quatro volumes, entre os quais o presente (Direito e Marxismo: economia globalizada, mobilizao popular e polticas sociais, Vol. II), no qual constam os textos referentes aos GTs n. 3, 5 e 6, que possuem a seguinte descrio:

    GT III Economia Globalizada e Marxismo: Trabalho e desenvolvimento no ps-neoliberalismo: aps as duas ondas de reformas neoliberais na Amrica Latina e as crises socioeconmicas delas decorrentes, atualmente delineia-se um cenrio de recuperao dos valores sociais como diretrizes de uma vida digna e livre. Ao invs de privatizaes e desestatizaes, tem-se utilizado a via da nacionalizao ou reestatizao como estratgia para a viabilizao de um desenvolvimento orientado pelo homem, e no mais pela perspectiva mercadolgica do lucro a todo custo. Nesse contexto, tem-se uma srie de transformaes tambm na concepo acerca do trabalho, que persiste como elemento central da sociedade humana, mas deve ser encarado de modo diferente da perspectiva tradicional, considerando-se as inovaes no processo

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    produtivo e as consequentes mudanas nas relaes entre modos de produo, foras produtivas e agentes de produo.

    GT V Lutas Sociais e Mobilizao Popular: Em paralelo ao processo de modificaes estruturais do sistema capitalista de produo, as diversas formas de atuao poltica e sociais tambm passam por reformulaes e atualizaes. A partir do contexto da social democracia, e ao longo da implementao do neoliberalismo, constituem-se novos sujeitos poltico-sociais e desenvolvem-se estratgias inovadoras de atuao coletiva para fornecer respostas s novas demandas apresentadas pela classe trabalhadora em geral, e por setores especficos da sociedade. Em conjunto com os atores tradicionais da poltica (partidos e sindicatos), os diversos movimentos sociais empunham novas bandeiras (tnicas, de gnero, ambientalistas, etc.) e, calcados na premissa da autonomia perante o Estado, buscam novos espaos de atuao poltica. Assim, mostram-se relevantes os debates acerca das possibilidades de articulao entre os novos movimentos sociais e os atores tradicionais da poltica, bem como de suas novas bandeiras em relao questo central do trabalho.

    GT VI Desigualdade Social, Pobreza e Polticas Sociais na Contemporaneidade: Os temas da desigualdade social e da pobreza persistem em voga na atualidade. As razes para tanto podem ser atribudas insuficincia dos modelos e do alcance das polticas pblicas elaboradas a partir do Estado de bem-estar social, onde este de fato existiu. No compasso das mutaes do capitalismo, criam-se novas estratgias de interveno do Estado e se questionam os limites da sua atuao, na busca de se concretizar o discurso da justia social, por meio do reequilbrio da distribuio de recursos, no contexto da sociedade capitalista.

    A ttulo de advertncia aos leitores, optou-se por manter os modelos de citao adotados em cada artigo (autor/data e completa), de maneira a se preservar sua originalidade.

    Por fim, registra-se um agradecimento a toda a equipe (funcionrios, alunos, professores e parceiros) que viabilizou a realizao do II Congresso Internacional de Direito e Marxismo, bem como Capes, que contribuiu com a concesso de verba no mbito do Programa de Apoio a Eventos no Pas (Paep).

    Tambm merece um agradecimento especial a mestranda Renata Piroli Mascarello, que prestou auxlio precioso na sistematizao e reviso dos textos ora publicados.

    Prof. Dr. Enzo Bello Prof. Dr. Martonio MontAlverne Barreto Lima

    Prof. Dr. Srgio Augustin Rio de Janeiro, Fortaleza e Caxias do Sul, janeiro de 2014.

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    Captulo I

    ECONOMIA GLOBALIZADA E MARXISMO

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    Sistema nico de Sade em tempos de capital fetiche

    Gabrieli Bandeira Vanessa Azevedo

    1 Introduo

    Na sociedade capitalista, a poltica social constitui-se em um fenmeno associado a um sistema econmico de produo, neste caso ao sistema capitalista e isto envolve produzir e reproduzir relaes socioeconmicas, polticas, culturais que se movimentam e disputam hegemonia na esfera estatal, pblica e privada.1 Dentre essas polticas, a Poltica de Sade ganha destaque pela politizao e forte presena dos grupos de presso, seja da indstria farmacutica, seja dos trabalhadores de sade, seja ainda da sociedade civil.

    Nesse campo de disputa, ora o governo investe em polticas de incentivo a medicina hospitalar, materializado, por exemplo, na Lei Federal 12.550, de 15 de dezembro de 2011, que cria a Empresa Brasileira de Servios Hospitalares (EBSERH), empresa pblica de direito privado. Em outros momentos, h o investimento em polticas com os ideais sanitaristas, como os investimentos na rede bsica de ateno sade e no desenvolvimento de polticas como a Poltica de Humanizao da Sade.

    Neste artigo pretende-se discorrer sobre esse campo de disputa, e como a adeso por um tipo de projeto a escolha por um projeto societrio. Deste modo, organizou-se o presente trabalho em duas partes, na primeira parte discorre-se sobre financeirizao do capital na tica marxiana, de modo que esse entendimento favorea a compreenso da construo da poltica de sade a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso. Na segunda parte aborda-se a constituio da poltica de sade, em tempos de capital fetiche, de maneira a possibilitar ao leitor o entendimento dos projetos em disputa na organizao e consolidao da Poltica de Sade. A escolha do ttulo foi inspirada no livro de Marilda Iamamoto: Servio Social em tempo de capital e fetiche: capital financeiro, trabalho e questo social2 que apropria-se dessa expresso marxiana que se refere ao capital financeiro que oculta a teoria do valor, cuja base a explorao do trabalho.

    2 A financeirizao do capital sob a perspectiva da tradio marxista

    O desenvolvimento das foras produtivas levou ao desenvolvimento de novas formas de capital. No avanado processo de circulao de mercadorias do capital industrial e tambm do capital de comrcio de mercadorias, o dinheiro passou a realizar movimentos puramente tcnicos e, autonomizados como funo de um capital 1 PEREIRA, Potyara A. P. Poltica social: temas & questes. So Paulo: Cortez, 2008.

    2 IAMAMOTO, Marilda Vilela. Servio Social em tempo de capital e fetiche: capital financeiro, trabalho e questo

    social. 3. ed. So Paulo: Cortez, 2008.

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    especfico, torna-se esse capital o capital de comrcio de dinheiro. Do capital global surge uma forma especfica de capital, o capital monetrio, que tem a funo de executar as operaes de comrcio de dinheiro para toda a classe de capitalistas industriais e comerciais.

    Nesta perspectiva, o desenvolvimento das foras produtivas levou ao desenvolvimento de novas formas de capital. No avanado processo de circulao de mercadorias do capital industrial e tambm do capital de comrcio de mercadorias, o dinheiro passou a realizar movimentos puramente tcnicos e, autonomizados como funo de um capital especfico, torna-se esse capital o capital de comrcio de dinheiro. Do capital global surge uma forma especfica de capital, o capital monetrio, que tem a funo de executar as operaes de comrcio de dinheiro para toda a classe de capitalistas industriais e comerciais. Os movimentos desse capital monetrio so, portanto, por sua vez, apenas movimentos de uma parte autonomizada do capital industrial empenhado em seu processo de reproduo.3

    O capital que porta juros sempre existiu na Histria, antes mesmo da sociedade capitalista de produo, na forma de capital usurrio. Mas na sociedade capitalista que esta forma de capital torna-se mercadoria especfica com valor de uso e valor. O valor de uso do capital que porta juros o de ser utilizado como capital, impulsionando a produo de valor por meio do capitalista funcionante. Este definido por Marx como o capitalista que investe diretamente no processo produtivo, que compra meios de produo e matria-prima e, no final do processo de produo obtm uma nova mercadoria, acrescida de valor por meio da mo de obra do trabalhador, pois s o trabalho vivo cria mais valor.

    A atividade dos capitalistas funcionantes destina-se a extrair mais valor e o juro ou a remunerao do capital que se converte em mercadoria corresponde a uma parcela deste mais-valor extrado. Deste modo, os juros so uma parte do lucro, como define Marx:

    A parte do lucro que lhe paga chama-se juro, o que portanto nada mais que um nome particular, uma rubrica particular para uma parte do lucro, a qual o capital em funcionamento, em vez de pr no prprio bolso, tem de pagar ao proprietrio do capital.4

    Todo o movimento entre o emprstimo e a devoluo deste valor acrescido de dinheiro camuflado pelos liberais. Porm a mercadoria dinheiro (capital que porta juros) s pode retornar s mos do seu proprietrio acrescida de valor do contrrio no teria ele motivos para abrir mo dele e s se incrementa no processo de produo de mais-valia. O capitalista produtivo no poderia iniciar seu processo de produo sem tomar emprestado o dinheiro do capitalista monetrio, e este no poderia receber os juros sem que aquele investisse no processo produtivo.

    3 MARX, Karl. Contribuies crtica da economia poltica. 2. ed. So Paulo: M. Fontes, 1983. p. 237.

    4 MARX, op. cit., p. 256.

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    Sob a forma dinheiro equivalente de troca que em si j meio alienante de equiparao de diferentes valores de uso, na qual se apagam todas as determinaes qualitativas o capital que porta juros parece no estar contaminado pelo processo de extrao de mais-valia. Como diz o autor, da mesma maneira que o crescimento pertence rvore, assim o produzir dinheiro pertence ao prprio capital nesta sua forma pura de [capital] dinheiro.5 Assim, como capital que porta juros, o capital assume a forma mais pura de fetiche.

    medida que cresce a concentrao deste capital monetrio nas mos de capitalistas que passam a dispor de grande massa de poupanas de outros milhares de capitalistas dispersos, estes montantes passam a ser colocados disposio para emprstimo. Atualmente o papel do crdito fundamental ao processo de valorizao do capital, pois permite a reduo do tempo de rotao do capital. Se, no tempo de Marx o crdito era essencial para garantir a produo capitalista e era um recurso acessvel aos capitalistas funcionantes para o investimento produtivo, atualmente sua funo est tambm em contrarrestar a superproduo e permitir a realizao do valor. Seu acesso ao longo do sculo XX, fruto do desenvolvimento do capital bancrio, se estendeu classe trabalhadora, a qual passa tambm a depender em boa parte do crdito para a sua reproduo.

    Quando o capital portador de juros passa a operar com a especulao, com a acumulao futura, descolada de sua base real, material dado o avano da financeirizao do capital como no caso dos ttulos pblicos, tem-se o capital fictcio, que se origina daquela forma de capital. O capital fictcio constitui-se na forma ilusria que adquirem os rendimentos que parecem provir do capital portador de juros. Neste caso, a emisso de papis, como nas sociedades por aes e os ttulos da dvida pblica (do qual trataremos mais adiante), so a forma ilusria, fictcia, que assume o capital ao especular com o que Marx chama de valores imaginrios. O carter fictcio dos ttulos da dvida pblica muito maior, pois, como diz o autor

    [...] os ttulos de dvida pblica no precisam de forma alguma representar nenhum capital existente. O dinheiro emprestado pelos credores do Estado pode ter virado fumaa h muito tempo. Esses ttulos nada mais so do que o preo pago por uma participao nos impostos anuais que representam o rendimento de um capital inteiramente diferente do que foi gasto na poca de uma forma improdutiva.6

    Se este estudo j aponta os desdobramentos do desenvolvimento de capital portador de juros poca de Marx, esta forma de capital assume em nossos dias um novo papel no sistema monetrio, pois est organicamente associado ao capital industrial. Ao fundir-se com o capital industrial altamente concentrado e centralizado, submete-o a sua dinmica de atuao, na qual ganha destaque o capital fictcio.

    5 MARX, 1982, p. 197.

    6 HILFERDING, Rudolf. O capital financeiro. So Paulo: Nova Cultural, 1985. p. 114.

  • 18

    Em tempos atuais, de mundializao do capital, esses rentistas daro a direo poltica e ideolgica ao Estado e requisitaro a atuao do fundo pblico diretamente a favor dos seus interesses a depender, claro, da correlao de foras presentes na sociedade. O capital monetrio ento passa a ditar o comportamento dos Estados e das empresas produtivas. Este processo de financeirizao do capital penetra os meios de reproduo social da classe trabalhadora, quais sejam as polticas sociais historicamente conquistadas.

    Neste contexto assistimos ao processo de desmonte das polticas sociais, em que os donos dos capitais transferem os recursos das polticas sociais para o pagamento da dvida pblica, por meio de contrarreformas, nas quais os recursos sociais so transferidos para a esfera financeira. Neste processo de circulao de mercadorias, o capital global surge como forma especfica de capital monetrio, a fim de executar as operaes de comrcio para toda classe burguesa. Isto se institui em um fenmeno mundial em que h um retrocesso das polticas pblicas universais em detrimento de polticas focalizadas de cunho privatista.7

    3 A poltica de sade em tempos de contrarreforma

    Na contemporaneidade, torna-se necessrio que ao se estudar as polticas sociais tenha-se uma compreenso crtica do capital financeiro, de maneira a problematizar as mltiplas determinaes que atuam no processo de financeirizao da vida social, ao se desmitificar essa forma de capital possvel olhar o real modo de produo em que se ampara. Essa compreenso possibilita analisar que, ao longo do processo de expanso do capitalismo, apesar da classe trabalhadora ter significativas conquistas no campo da proteo social, tem-se uma diminuio da apropriao de parte da riqueza socialmente produzida por aqueles que a produzem, a classe trabalhadora.8

    No Brasil a histria no muito diferente, pouco depois da promulgao da Constituio de 1988, considerada a constituio cidad, na dcada de 1990 o projeto neoliberal impede a implantao do texto constitucional e a proposta de um Sistema de Seguridade de Social ameaada sucessivamente, principalmente pelos governos de Fernando Henrique Cardoso, Luiz Incio Lula da Silva e Dilma Rousseff, resultando em reduo dos direitos sociais e trabalhistas, desemprego estrutural, sucateamento das polticas de sade e educao. No que tange especificamente Poltica de Sade, o que presenciamos o retrocesso dos preceitos do Projeto da Reforma Sanitria e a transitoriedade de acesso universal para todos, para o acesso para quem pode pagar, enfatizando-se as parcerias entre pblico e privado.

    7 CAMPOS, Gasto Wagner de Souza. Reforma da reforma: repensando sade. So Paulo: Hucitec, 1997;

    IAMAMOTO, Marilda Vilela. Servio social em tempo de capital e fetiche: capital financeiro, trabalho e questo social. 3. ed. So Paulo: Cortez, 2008; MARX, Karl. Contribuio crtica da economia poltica. Traduo e introduo de Florestan Fernandes. 2. ed. So Paulo: Expresso Popular, 2008. 8 SILVA, Giselle Souza da. Financeirizao do capital, fundo pblico e polticas sociais em tempos de crise. In:

    BRAVO, Maria Ins Souza; MENEZES, Juliana Souza Bravo de (Org.). Sade na atualidade: por um sistema nico de sade estatal, universal, gratuito e de qualidade. Rio de Janeiro: UERJ, Rede Sirius, 2011. p. 10.

  • 19

    O processo de Reforma do Estado brasileiro, iniciado no governo Collor (1990-1992) e consolidado no governo FHC (1995-2002), promoveu a ateno curativa, atravs de investimentos na rea mdico-hospitalar. A proposta neste perodo, era de dividir o SUS em dois o hospitalar e o bsico.9 Neste projeto, o papel do Estado era assegurar assistncia mnima para os miserveis, ficando a cargo do setor privado o atendimento dos que tm acesso ao mercado. Nesta perspectiva, o objetivo era desenvolver aes de carter focalizado, atravs de um pacote bsico de aes em sade para atender a populao vulnervel, com um grande nmero de privatizaes e estmulo aos planos de sade.10 Este projeto de sade est claramente voltado ao mercado e no populao.

    Em sntese, a partir deste governo dois projetos antagnicos convivem em constante tenso: o promulgado na Constituio Federal de 1988, conhecido como o j referido Projeto da Reforma Sanitria e o Projeto de Sade Privatista. O primeiro defende o acesso universal e o Estado como responsvel pela sua manuteno, no somente em relao poltica de sade, como tambm no que concerne a todas as polticas sociais. O segundo, voltado corresponsabilidade entre o Estado e a sociedade, com concepes mdico assistencial privatista, fragmentadoras da realidade. Neste processo de reforma do Estado, as polticas sociais foram consideradas servios no exclusivos, de propriedade pblica no estatal ou privada. (BRAVO, 2009).11

    Este processo de precarizao do SUS segue no governo de Luiz Incio Lula da Silva (2003-2006). A contrarreforma previdenciria do governo Lula caracteriza-se por ser antidemocrtica, antirrepublicana e, ainda, por promover uma redistribuio de renda s avessas, entre os servidores e o capital financeiro. (MARQUES; MENDES, 2005, p. 150-151),12 ocasionando a reduo do mundo do trabalho e a privatizao dos recursos pblicos, a ampliao dos espaos de acumulao do capital.

    Para Bravo (200413 e 2006),14 o Ministrio da Sade, no incio do governo, vai sinalizar como um dos desafios incorporao da agenda tico-poltica da Reforma Sanitria. Entretanto, o que se percebe a manuteno da disputa entre os dois projetos: Reforma Sanitria e Privatista. Em alguns aspectos, o governo procura fortalecer o primeiro projeto e, em outros, o segundo.

    Considerando aspectos de defesa do Projeto da Reforma Sanitria, so exemplos, a escolha de profissionais comprometidos com a luta sanitarista para ocupar o segundo escalo do ministrio; as alteraes na estrutura organizativa do Ministrio da Sade; a 9 BRAVO, Maria Ins Souza. Poltica de Sade no Brasil. In: MOTA, Ana Elizabete et al. Servio Social e sade:

    formao e trabalho profissional. 4. ed. So Paulo: Cortez; Braslia: OPAS, OMS, Ministrio da Sade, 2009. p. 101. 10

    COSTA, Nilson de Rosrio. O Banco Mundial e a Poltica Social nos anos 90: agenda para reforma do setor de sade no Brasil. In: COSTA, Nilson de Rosrio. Poltica de sade e inovao institucional: uma agende para os anos 90. Rio de Janeiro: ENSP, 1997. 11

    BRAVO, op. cit. 12

    MARQUES, R. M.; MENDES, A. Desvendando o social no governo Lula: a construo de uma nova base de apoio. In: PAULA, J. A. de (Org.). Adeus ao desenvolvimento a opo do governo Lula. Belo Horizonte: Autntica, 2005. MASSON, F. M. A Terceira Via na Reforma. 13

    BRAVO, Maria Ins Souza. A poltica de sade no governo Lula: algumas reflexes. Revista INSCRITA, Braslia: CFESS, n. 9, 2004. 14

    BRAVO, op. cit.

  • 20

    convocao extraordinria da 12 Conferncia Nacional de Sade (CNS) e a sua realizao em dezembro de 2003 e a escolha de representante da Central nica dos Trabalhadores (CUT) para assumir a secretaria executiva do Conselho Nacional de Sade. Quanto continuidade do projeto privatista, h uma focalizao, precarizao e terceirizao de recursos humanos, o desfinanciamento da Poltica de Seguridade Social, este ltimo fator ligado diretamente ao investimento financeiro do governo para a manuteno e consolidao das polticas pblicas.15

    No segundo mandato do governo Lula (2007/2010), escolhido como ministro da Sade Jos Gomes Temporo, um dos formuladores do Projeto da Reforma Sanitria nos anos de 1980. Em seu discurso de posse, o ministro afirma que h uma tenso permanente entre o iderio reformista e o projeto real em construo, assim como aspectos culturais e ideolgicos em disputa, como as propostas de reduo do Estado, de individualizao do risco, de focalizao, de negao da solidariedade e banalizao da violncia.16

    O ministro, durante sua gesto, realizou o debate de questes polmicas, tais como: a legalizao do aborto considerado um problema de sade pblica; a ampliao das restries publicidade de bebidas alcolicas e a necessidade de fiscalizar as farmcias. Algo que merece destaque foi a quebra de patente do medicamento Efavirenz (Stocrin), da Merk Sharp & Dohme, elogiada amplamente pelas entidades de combate Aids. Apresenta, por outro lado, proposies que so contrrias ao projeto, como a adoo de um novo modelo jurdico-institucional para a rede pblica de hospitais, ou seja, a criao de Fundaes Estatais de Direito Privado. Dentro desta perspectiva percebe-se a fragilizao das lutas sociais, a desregulamentao das polticas pblicas e dos direitos sociais, desloca-se a ateno da pobreza para a iniciativa privada e individual, impulsionada por motivaes solidrias e benemerentes.17

    No que tange ao incio do governo Dilma (2011/2014), o que se percebe a continuao ora de aes que beneficiem um projeto privatista e, em outros, que fortalea aos preceitos de Reforma Sanitria. Em seu discurso de posse, Dilma ressalta que o governo federal ir estabelecer parcerias entre o pblico privado e usar a fora governamental para acompanhar a qualidade dos servios dos servios prestados, bem como o respeito dispensado ao usurio. Alguns desafios tm sido destacados pelo ministrio como a regulamentao da Emenda Constitucional (EC) 29 e a definio de regras claras em relao ao financiamento da sade. Ressalta-se tambm a necessidade de aprimorar a gesto, fortalecendo um modelo de ateno focado no usurio e que tenha a ateno bsica como pilar. Nesta direo, o que se presencia a ampliao dos

    15

    BRAVO, Maria Ins Souza. Poltica de Sade no Brasil. In: MOTA, Ana Elizabete et al. Servio social e Sade: formao e trabalho profissional. 4. ed. So Paulo: Cortez; Braslia: OPAS, OMS, Ministrio da Sade, 2009; BRAVO, Maria Ins Souza; MENEZES, Juliana Souza Bravo de. A sade nos governos Lula e Dilma: algumas reflexes. In: BRAVO, Maria Ins Souza; MENEZES, Juliana Souza Bravo de (Org.). Sade na atualidade: por um sistema nico de sade estatal, universal, gratuito e de qualidade. Rio de Janeiro: UERJ, Rede Sirius, 2011. 16

    BRAVO, op. cit., p. 19. 17

    YAZBEK, M. C. Pobreza e excluso social: expresses da questo social. Revista Temporalis, Revista da Associao Brasileira de Ensino e Pesquisa em Servio Social Abepss, n. 3, ano III, jan./jun. 2001.

  • 21

    modelos de gesto que privatizam a sade como as Organizaes Sociais (OSs), Organizaes da Sociedade Civil de Interesse Pblico (OSCIPs), Fundaes Estatais de Direito Privado e os problemas que estas ocasionam para os trabalhadores da sade e usurios.18

    No que tange aos trabalhadores da sade, estes tm sido prejudicados com as OSs, atravs da eliminao de concurso pblico para contratao de pessoal, abrindo um precedente para o clientelismo nesta contratao, bem como para a precarizao do trabalho frente flexibilizao dos vnculos. Isto acarreta um forte rebatimento na qualidade dos servios prestados populao usuria do SUS, visto que os servios de sade no se realizam sem o trabalho humano em todas as suas dimenses. Em muitos momentos so esquecidos ou desconhecidos os determinantes sociais no processo sade e doena, atendendo a populao doente somente em seus sintomas, sem que sejam vistas as causas que os levam at a unidade de sade.

    4 Consideraes finais

    Na dcada de 1990, o SUS foi alvo das contrarreformas neoliberais que tm atacado seu carter universal e pblico, visando o seu desmonte, atravs de um processo de universalizao excludente, mercantilizao e privatizao da sade. Estas contrarreformas so decorrentes dos reflexos das mudanas do mundo econmico em nvel mundial e das consequentes reformas sanitrias propostas pelos agentes financeiros internacionais, em especial, pelo Banco Mundial. Na rea da Sade as OSs, as OSCIPs e as Fundaes Estatais de Direito Privado podem ser contestadas legalmente, pois a Constituio Federal e a Lei Orgnica da Sade 8.080/90 admitem a prestao de servios privados de sade de forma complementar ao SUS e no substitutiva a servios ou rgos do SUS.19

    Essas diretrizes foram construdas com base nos preceitos da Reforma Sanitria, baseados nos princpios da universalidade, da integralidade e da equidade. E apesar dos avanos e retrocessos, uma srie de propostas tem sido construda com vistas efetivao das demandas que fizeram nascer o Movimento Sanitarista, acrescidas de outras necessidades que foram surgindo, como produto do estgio de desenvolvimento da relao contraditria capital x trabalho e do reordenamento do papel do Estado e da sociedade civil, como j referidas ao longo deste artigo.

    Esta intrnseca relao entre os preceitos da Constituio Federal de 1988 no campo da sade e o projeto tico-poltico dos assistentes sociais, no cotidiano das relaes, deve-se buscar promover o acesso da populao aos servios de sade, materializao a legislao, apontando as ameaas presentes no confronto entre o Projeto Privatista de cuidados de sade e o projeto da Reforma Sanitria.

    18

    BRAVO; MENEZES, op. cit. 19

    BRASIL. Ministrio da sade. Lei Orgnica do SUS, 8.080. Ministrio da Sade, Assessoria de Comunicao Social, Braslia, 19 de setembro de 1990.

  • 22

    Todavia, essa no uma tarefa simples, pois mediatizada pela relao de trabalhador assalariado, subsumido muitas vezes ao poder do empregador, para atende a demandas que vo ao encontro da instituio e de encontro classe trabalhadora.

  • 23

    Trabalho: as transformaes societrias e as diferentes relaes do mundo do trabalho

    Jocenir de Oliveira Silva Solange Emilene Berwig

    1 Consideraes iniciais

    O presente trabalho tem como proposta fazer uma breve reconstruo da trajetria de desenvolvimento das relaes sociais em torno do trabalho na sociedade de maneira histrica, considerando os diferentes perodos de espao e tempo. Para fazer tal reflexo, utilizou-se um referencial terico que foi embasando esta construo e levando o autor por diferentes pontos da histria que influenciaram determinantemente no contexto do mundo do trabalho at a contemporaneidade.

    Este trabalho divide-se, pois, em duas etapas distintas, a primeira conduz leitura de um resgate do tema trabalho, sua origem e formas de desenvolvimento das relaes sociais em torno desta categoria. Na segunda etapa, a discusso adensa sobre as profundas modificaes sofridas pelo mundo do trabalho a partir dos anos 1980, chamadas de acumulao flexvel, padro produtivo caracterizado pela flexibilizao e precarizao nos processos de trabalho e a face da globalizao como eixo mediador do padro de acumulao flexvel. A finalidade deste artigo problematizar estas questes no contexto da reproduo das relaes sociais e das novas configuraes que assume o trabalho.

    2 Trabalho: uma categoria em movimento

    O trabalho uma categoria central na vida do homem. Sempre existiu e sempre vai existir, j que uma condio inerente ao ser humano. Entende-se por trabalho todas as atividades executadas pelo homem, para sua manuteno e sobrevivncia. A categoria trabalho nasce do processo de que participam o homem e a natureza, em que o homem, a partir de sua ao impulsiona, regula seu intercmbio com a natureza. Ele, o trabalho, em sua natureza uma inter-relao entre homem (sociedade) e natureza.1

    Ferreira, em seu dicionrio,2 situa de forma breve e sucinta a definio de trabalho, como sendo a aplicao da fora e faculdades humanas para alcanar um determinado fim. Essa definio popular apresenta o trabalho como uma ao finalstica, que tem uma funo. essa funo que faz o trabalho to importante e relevante socialmente, muito embora essa definio seja limitada e defina o senso comum. O pensamento marxiano apresenta como a grande diferena do trabalho humano, a capacidade cognitiva do homem, revelando assim o sentido teleolgico do 1 LUKCS, 1980: IV-V, apud ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmao e a negao

    do trabalho. 5. ed. So Paulo: Boitempo, 2001. p. 136. 2 FERREIRA, 2004, s/p.

  • 24

    trabalho. Teleologia, presente na capacidade humana de produzir e reproduzir previamente o que se pretende a partir de sua ao. Essa capacidade faz com que o homem imprima sua ideia sobre a matria, transformando-a. Antunes,3 quando discorre sobre trabalho e teleologia, resgata o pensamento de Marx.

    bastante conhecida a distino Marxiana entre a abelha e o arquiteto. Pela capacidade de prvia ideao, o arquiteto pode imprimir ao objeto a forma que melhor lhe aprouver, algo que teleologicamente concebido e que uma impossibilidade para a abelha.4

    O homem sempre trabalhou, e seu trabalho difere-se do trabalho dos demais seres, devido a sua capacidade intelectual, sua capacidade de prever com antecedncia o resultado de sua ao. O trabalho proporciona ao homem um lugar de destaque sobre os outros seres e a natureza, alterando sua existncia de ser biolgico, para ser social. O trabalho humano constitui na base de toda a vida social. O homem, a partir do impulso de suas necessidades vitais, se apropria da natureza e produz bens necessrios para a sua manuteno, o que lhe dar condies de existir e reproduzir. Problematizar o trabalho implica conceber uma reflexo terica sobre sua origem e existncia, enquanto categoria central na vida do homem, sabendo que o trabalho uma relao de troca orgnica. Isso quer dizer que somente o pensamento humano, por meio do trabalho, capaz de reorganizar as propriedades inerentes natureza, de formas distintas, sempre conferindo uma nova objetividade, at ento no existente, inicialmente entre o homem e a natureza, e no da espcie humana entre si.5

    O trabalho to antigo quanto o homem na Terra. O homem sempre trabalhou; no incio, s com a finalidade de obter alimentos, pois no possua outras necessidades em face de uma poca primitiva de relaes humanas. Na eminncia da ameaa apresentada por animais ferozes e at mesmo outros homens, iniciou a fabricao de instrumentos de defesa. Posteriormente, verificando que o osso encontrado em restos de animais, j em decomposio, partia-se com facilidade, comeou a lascar pedras e fabricar lanas e machados, criando, no perodo paleoltico, sua primeira atividade artesanal.6

    Os homens criam as ferramentas, e as ferramentas recriam os homens.7 Com essa afirmativa, entende-se que o homem compreende, reconhece sua capacidade intelectual, utiliza-se dela para imprimir na matria sua ideia e, a partir do objeto j estruturado, o homem renova suas informaes construindo novos objetos, e criando novas necessidades. Dessa forma, utilizando-se da sua capacidade teleolgica, modificando sua relao com o trabalho, que o homem percebe sua capacidade. Ele parte do ser biolgico para o ser social. Esse momento definitivo para a humanidade,

    3 ANTUNES, 2001.

    4 Ibidem, p. 136.

    5 HOLANDA, Maria N. A. Brando de. O trabalho em sentido ontolgico para Marx e Lukcs: algumas

    consideraes sobre o trabalho e servio social. Revista Servio Social e Sociedade, So Paulo, Cortez, n. 69, 2002. 6 VIANNA, Segadas. Antecedentes histricos. In: SUSSEKIND, Arnaldo; TEIXEIRA, Joo de Lima. (Org.)

    Instituies de direito do trabalho. So Paulo: LTr, 2002. p. 29-44. 7 MASAGO, Marcelo. Ns que aqui estamos por vs esperamos. Documentrio em CD, Brasil, 1998.

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    j que o homem se reconhece como ser social, atravs da sociabilidade, o que promove, segundo Antunes,8 a primeira diviso do trabalho, tendo em vista que este deixa de ser uma relao homem x natureza, e passa a ser uma relao social do homem com seu semelhante.

    A partir da sociabilidade e criao de novos objetivos, o ser social travou lutas com outros homens pertencentes a tribos distintas. Dessa forma, acabou por matar seus adversrios e prisioneiros, sendo que mais tarde, concebeu que seria mais til para si, utilizar-se da fora de tais prisioneiros. Assim, o homem passou a escravizar seu semelhante e usufruir de sua capacidade de trabalho. Com o processo de escravido, o trabalho passa a ser um produto com poder de troca. Os chefes mais valentes, com capacidade de escravizar o maior nmero de prisioneiros, tm agora a possibilidade de vend-los, troc-los e alug-los.

    A escravido enraizou-se entre todos os povos, mas foi entre os egpcios, gregos e romanos que tomou grandes propores.

    Na Grcia havia fbricas de flautas, de facas, ferramentas agrcolas e moveis, onde o operariado era todo composto de escravos. Em Roma os grandes senhores tinham escravos de vrias classes, desde pastores at gladiadores, msicos, filsofos e poetas.9

    Na Grcia antiga, compreendia-se o trabalho, para alm de uma atividade de produo e subsistncia, sendo encarado como uma ao desprezada e desvalorizada, considerada degradante e penosa.10 Portanto, tal atividade reservada aos escravos, os quais eram encarados, pelos senhores, da mesma forma que seus animais domsticos, com funo laborativa, para desempenhar trabalhos agrcolas e domsticos. Muitos escravos vieram, mais tarde, a se tornar livres; isso porque seus senhores os libertavam, como sinal de sua gratido em troca de trabalhos relevantes, o que ocorria por ocasio da comemorao em dias festivos, ou na eminncia de sua morte, declarando como livres seus escravos prediletos. Porm, de posse de sua liberdade, o que restava a esse homem era o direito de trabalhar nos seus ofcios habituais. O que isso diferenciava da escravido que agora o pagamento pelo seu trabalho era para si. E, assim, nascem os primeiros trabalhadores assalariados, o que no significa o fim do trabalho escravo.11

    H registros de atividades escravas, desde o perodo que compreende a Idade Antiga (at 476 d.C.), muito embora em [...] 1452, o Papa Nicolau autorizara o Rei de Portugal a combater e reduzir a escravido.12 Sob vrios pretextos, ela persistiu at a Idade Moderna,13 e expandiu-se com o descobrimento da Amrica. Foi atravs de seu descobrimento, em 1500, que o Brasil conheceu o regime de escravido, quando os

    8 ANTUNES, op. cit.

    9 VIANNA, op. cit., p. 29.

    10 KAUFMANN, Josef Nicolas. Turbulncias no mundo do trabalho: quais so as perspectivas? Revista Servio

    Social e Sociedade, So Paulo: Cortez, n. 69, p. 33, 2002. 11

    VIANNA, op. cit. 12

    Ibidem, p. 30. 13

    A Idade Moderna inicia-se em 1453, com a Queda de Constantinopla, at 1789 ano da Revoluo Francesa.

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    portugueses que aqui chegaram introduziram tal regime, primeiro aos ndios, depois aos negros trazidos da frica.

    Os portugueses dominaram a fora de trabalho e a capacidade dos ndios e negros. Foi a partir dessa apropriao, considerada por Vianna14 como inumana e desumana, que o Brasil estruturou o seu sistema de produo. A contribuio do escravo preto ou ndio para a formao brasileira alm daquela energia motriz quase nula.15 Dessa forma, os ndios e negros escravizados proporcionaram a estruturao do Brasil, na economia mundial, atravs de seu trabalho braal, trabalho inerente ao homem, mas apropriado por seu senhorio.

    Com a Revoluo Francesa,16 aos poucos, o regime escravocrata foi cedendo lugar para uma nova conduta sobre o trabalho. O que se seguiu foi o regime de servido. Os servos no eram mais juridicamente escravos, mas, embora nesse regime fossem assegurados ao homem direitos como os de herana de animais e objetos, no possuam sua liberdade, estando sujeitos a severas restries, principalmente de deslocamento, bem como no eram possuidores, em hiptese alguma, de terras.17

    Enfatiza-se que, naquele perodo, os servos possuam bens como animais, e objetos, entre eles arados e materiais para trabalho para o manuseio da terra. Porm, no possuam a terra, o que implicava a venda de seu trabalho para os senhorios, que por sua vez tinham at mesmo o direito de negociar a fora de trabalho de seus servos, prtica remanescente da escravido. Pode-se compreender, a partir de Vianna,18 que o que diferencia um regime do outro que na escravido o escravo era vendido, deixando assim de ser propriedade de seu senhor, e na servido vende-se a fora de trabalho do servo, podendo assim o senhorio vender a fora de um nico servo, quantas vezes considerasse conveniente.

    Ainda no regime de servido, observa-se que um novo sistema econmico comea a emergir, causando o declnio da economia domstica. Somente no final da Idade Mdia, a servido comeou a desaparecer. Diferentemente de todo o restante do mundo, a Inglaterra registra vestgios da servido at meados do sculo XIX. Consequentemente, a essa mudana, grupos de servos comeam a fugir dos campos onde os senhorios detinham o poder, sendo que esses homens, principalmente aqueles que tinham conseguido manter-se livres, concentraram massas de populao nas cidades.19

    A partir desse xodo para as cidades, d-se incio unio de pessoas que criam, a partir de seus espaos, as corporaes de ofcio. Tais corporaes estabeleceram suas

    14

    VIANNA, op. cit., p. 29-44. 15

    PRADO, 2000, p. 270 apud VIANNA, 2002, p. 31. 16

    A Revoluo Francesa proclamou a indignidade da escravido, esta, a partir de 1857, foi tambm proscrita oficialmente em outros territrios. (VIANNA, 2002, p. 30). 17

    VIANNA, 2002. 18

    Idem. 19

    Idem.

  • 27

    prprias regras e leis. Passou-se, naquele perodo, a trabalhar de forma organizada, mas o homem ainda no dispunha de sua inteira liberdade.20

    A partir do sistema de corporao, surgiu a figura do mestre que, alm de ter seus aprendizes, detinha a fora de trabalho daqueles que lhe estavam subordinados.

    O mestre tinha sob suas ordens, no apenas aprendizes, pois lhe estavam subordinados trabalhadores, mediante rigorosos contratos nos quais o motivo no era simplesmente a locao do trabalho, pois se submetiam s determinaes do mestre at mesmo quanto o direito de mudana de domiclio. Em troca, alm do salrio, tinham a proteo de socorros em casos de doena e lhes ficava assegurado um verdadeiro monoplio de profisso, j que s podiam exerc-la os que estivessem inscritos na corporao correspondente, e, mais ainda, poderiam um dia vir a ser tambm mestres.21

    Na Espanha, registra-se uma interveno importante. Nesse contexto, houve a regulamentao da jornada de trabalho, fixada como de sol a sol, com perodos de descanso para a alimentao, e ainda assegurou a liberdade de qualquer pessoa ensinar ofcio a quem soubesse e quisesse aprend-lo.22 Vianna interpreta que, na realidade, o sistema de corporao no passou de uma frmula mais amena de escravido do trabalhador. Isso porque mesmo com maior liberdade, o trabalhador acabava sendo explorado, trabalhando unicamente para comida e moradia, raramente obtendo alguma propriedade. Nessa trajetria histrica, entre escravido e os movimentos de estruturao do trabalho, nos quais persiste a lgica de explorao do trabalhador, h um marco importante, reconhecido como a libertao do trabalhador.23 Trata-se de uma luta no mais constituda contra os senhores da terra ou contra os mestres das corporaes, mas contra um poder maior, o patro, o capitalista, amparado pelo Estado: evidencia-se a a Revoluo Industrial.

    A Revoluo Industrial , iniciou na Inglaterra no final do sculo XVIII e que ao longo dada primeira metade o sculo XIX se irradiou por toda a Europa Ocidental e atravs dos fluxos migratrios atingiu tambm os Estados Unidos, no significa apenas o momento das grandes invenes [...]. Significa momento crucial de surgimento e ascenso do capitalismo industrial. A introduo das mquinas automticas e o surgimento das grandes unidades fabris foram resultados materiais da Revoluo Industrial, cujos efeitos ultrapassaram os limites da fbrica e atingiram a sociedade como um todo.24

    As realidades impostas na sociedade, no raramente, sufocam, minimizam e exploram determinada parcela da populao. Ao longo da histria do trabalho, percebe-se que essa foi a relao entre empregado e patro. Com o advento da Revoluo Industrial, o que est posto se modifica de forma rpida, interrompendo um ciclo at

    20

    Idem. 21

    Ibidem, p. 33. 22

    Idem. 23

    Ibidem, p. 34 24

    MARTINELLI, Maria Lcia. Servio social: identidade e alienao. 10. ed. So Paulo: Cortez, 2006. p. 36.

  • 28

    ento considerado normal. Os mtodos de trabalho sofreram uma revoluo, a partir da inveno da mquina e de sua aplicao na indstria, o que modificou tambm as relaes entre patres e trabalhadores. As diversas mquinas inseridas na produo industrial e a automao do setor fizeram com que se reduzisse drasticamente a utilizao da mo de obra, num primeiro momento. um perodo marcado pela concentrao de poder nas mos da burguesia, tanto no que tange ao poder poltico quanto ao econmico. A Revoluo Industrial interferiu na forma do desenvolvimento do trabalho. O modo de produo capitalista aumentou a produo, a partir da automao, expandindo mercados, desenvolvendo os sistemas de comrcio; e as indstrias desenvolveram-se e, consequentemente, admitiram um nmero maior de trabalhadores, porm com salrios muito mais baixos, j que, com as mquinas, produziam em srie.25

    nesse momento de intensas mudanas no trabalho, e nas relaes entre patres e empregados, que surgem duas classes importantes. A classe burguesa, que possua todos os meios de produo; e a classe proletria ou trabalhadora, que vende seu trabalho, com o valor a ele atribudo pelo e aos capitalistas, com salrios no condizentes com suas necessidades. Marx26 apresenta a transformao ocorrida no mundo do trabalho, com a mudana do regime corporativo para o regime capitalista, quando explica que

    [...] o advento da burguesia trouxe a destruio dos privilgios nobilirquicos e a abolio do regime corporativo, porque o trabalho livre era necessrio produo capitalista; a necessidade de instituir a liberdade do trabalho determinou a emancipao do trabalhador da dependncia feudal e da hierarquia corporativa.27

    Tais classes, burguesia e proletariado, so econmica e socialmente antagnicas, e enfrentam-se em lutas peridicas. Porm, a classe proletria, embora seja muitas vezes maior, sofre os reflexos dessa luta, em virtude de a classe capitalista possuir poder econmico e, consequentemente, poltico. Aumento de produo, baixas custas operrias, transformao dos modos de produo, aumento das propriedades e fbricas, trouxeram, consequentemente, a acumulao do capital nas mos da minoria, dificultando as condies de trabalho e sobrevivncia da maioria. Esse processo resultou, segundo Kaufmann,28 em mudanas no valor do trabalho.

    A categoria trabalho, central na vida do homem, se modificou ao longo da evoluo da espcie humana. Paralelamente, ocorreram mudanas de cunho poltico, econmico e social. Da mesma forma, o valor do trabalho referenciado por Kaufmann29 sofre mutaes. De posse de sua liberdade, o trabalhador pode, agora, usufruir o que de sua propriedade, sua fora de trabalho. Porm, tudo o que esse trabalhador livre pode fazer vender sua fora de trabalho para o capital. A partir desse processo, vai conhecer 25

    MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003. V. I. T. I. 26

    Ibidem, p. 19. 27

    Idem. 28

    KAUFMANN, op. cit., p. 34. 29

    Idem.

  • 29

    o valor do trabalho de duas formas, o valor de uso das coisas produzidas e seu valor de troca.

    O valor de uso refere-se ao trabalho concreto; medido sobre o trabalho que depende de habilidades humanas, enquanto o valor de troca da mercadoria est ligado quantidade de tempo que o trabalhador gasta para produzi-la. Ento, valor de uso o que torna o produto til. til de modo a satisfazer as necessidades humanas. Dessa forma, toda coisa que pode ser aproveitada pelo homem, para satisfazer-lhe alguma necessidade, ter valor de uso para si. A partir do instante que tal mercadoria possui valor de uso importante para o homem, esse produto ter tambm valor de troca. O valor de troca se d pela relao de necessidade que o homem tem sobre o produto, o que o torna interessante a ponto de ser utilizado como mercadoria, considerando o tempo necessariamente gasto na produo do mesmo.30

    Nem tudo o que o homem cria atravs de seu trabalho mercadoria, isso porque, em algumas situaes, o homem satisfaz suas necessidades prprias com seu prprio trabalho, de modo que esse no cria valor de troca, apenas valor de uso. Para produzir mercadorias, h que produzir valores de uso, com o fim de os entregar ao consumo geral por meio da troca.31

    O homem produz mercadorias com utilidade sociedade, para satisfazer as diversas necessidades humanas. Para atender a tantas necessidades, deve corresponder a um conjunto variado de obras; isso faz com que o trabalho humano divida-se em partes, que se completam entre si.

    Os ofcios individuais, cada um dos quais corresponde quando mais a uma ordem de necessidades, cuja variedade indispensvel no resulta de nenhum convnio prvio, formam na sua totalidade com os elos do sistema social da diviso do trabalho, que se adapta diversidade infinita das necessidades, do qual resulta uma multido de indstrias.32

    Compreende-se, dessa forma, que o trabalho divide-se numa cadeia de ofcios, a fim de atender as diversas necessidades do homem. Alm da diviso das indstrias, que objetivam atender as diversas necessidades. Antunes33 define que, nesse momento de diviso do trabalho e formao de elos, desenvolvem-se inter-relaes do homem com outros seres sociais, tambm com vistas produo de valores de uso. Isso quer dizer que o homem supera sua interface homem versus natureza, fazendo emergir a prxis social interativa, que objetiva convencer outros seres sociais a realizarem determinado ato teleolgico.

    Essa forma mais desenvolvida do trabalho humano passa a existir, a partir do momento em que o trabalho se tornou social. Nesse instante, o homem necessita da

    30

    MARX, op. cit. 31

    Ibidem, p. 66. 32

    Idem. 33

    ANTUNES, Ricardo. Trabalho e precarizao numa ordem neoliberal. In: GENTILI, Pablo; FRIGOTTO, Gaudncio (Org.). A cidadania negada. 3. ed. So Paulo: Cortez; [Buenos Aires, Argentina]: CLACSO, 2002. p. 35-48, 139.

  • 30

    cooperao de mais pessoas, independente de esta cooperao ter como objetivo apenas o valor de uso ou at mesmo o valor de troca.34 Nesse sentido, a finalidade do trabalho humano no mais a transformao da natureza, mas a transformao dos homens e, consequentemente, das relaes sociais. fundamental entender que o trabalho, como ato concreto, seja ele individual, seja coletivo , inegavelmente, uma experincia social. Esse processo contnuo e intermitente para o homem. Dele nascem dimenses ambivalentes, opresso e emancipao, alienao e criao.35 Tais dimenses perpassam os limites laborais, repercutindo sobre a vida social dos trabalhadores.

    A alienao est presente na medida em que o trabalhador que produz algo no encontra, ou no se reconhece no seu produto. Tal objeto meramente uma mercadoria, e no algo necessariamente til, em que o trabalhador empregou sua capacidade teleolgica para transformar o produto, tornando-se estranho para si. O estranhamento ou a alienao do trabalho ocorre devido interveno das mquinas, mecanizao e automao do processo de trabalho implementados pelo modo de produo fordista.36 A mquina no suficientemente capaz de produzir sozinha, necessita da fora de trabalho operria para seu funcionamento. Dessa forma, mesmo com a automao da indstria, necessrio o trabalho humano, porm ele reduzido e limitado, de tal modo que gera estranhamento. A alienao se processa no no reconhecimento do homem na mercadoria por ele produzido, e no no acesso desse operrio ao produto de seu trabalho.

    Como a mquina no pode suprimir o trabalho humano, ela necessita de uma maior interao entre a subjetividade que trabalha e a nova mquina inteligente. E nesse processo, o envolvimento interativo aumenta ainda mais o estranhamento e a alienao do trabalho [...].37

    Durante o perodo do fordismo, a instalao de mquinas e o novo modelo de produo garantiram que o mercado retirasse do trabalhador mais valor de uso do que aquele suficientemente necessrio, a mais-valia, que o lucro do capital. A mais-valia gerada quando o valor de troca de uma mercadoria maior do que o conjunto de mercadorias necessrias para produzi-la.38

    Com a obstinao e a busca crescente pelo lucro, comea aos poucos ser inserido no mercado um novo modelo de produo, o toyotismo. Tal modelo emerge nos anos de 1950, com a pretenso de melhorar o sistema fordista. Inicia-se a a era da acumulao flexvel.39

    34

    HOLANDA, op. cit., p. 14. 35

    CATTANI, Antonio David. Trabalho & autonomia. 2. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. p. 39. 36

    Fordismo, modelo de organizao da produo, introduzido pelo empresrio Henry Ford, fundador da Ford Motor Company em 1902. Atingiu seu pice nas dcadas de 1950 e 1960, que ficaram conhecidas na histria do capitalismo como Os Anos Dourados. (ANTUNES, 2006). 37

    ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 11. ed. So Paulo: Cortez, 2006. p. 163. 38

    MARX, Karl. O Capital: crtica de economia poltica. 3. ed. So Paulo: Nova cultural, 1988. p. 211. 39

    ANTUNES, 2006.

  • 31

    Esse modelo traz um novo contexto para o patro e para o trabalhador. Para o patro possibilidade de crescimento voltado para a explorao de trabalho vivo (mo de obra), dentro de uma dinmica tecnolgica e organizacional. Para o trabalhador, a flexibilidade desse modelo permite ainda mais sua precarizao; isso porque, alm de adequar-se ao novo modo de produo para dar conta das exigncias do trabalho, esse trabalhador vivenciou os impactos gerados pela flexibilizao, quando a mesma mercadoria que ele produz pode ser produzida em outras fbricas, por preos mais baixos, e mo de obra mais barata.40

    Curiosamente, o desenvolvimento de novas tecnologias gerou excedentes de fora de trabalho, que tornaram o retorno de estratgias absolutas de extrao de mais-valia, mais vivel mesmo nos pases capitalistas avanados [...]. Em condies de acumulao flexvel, parece que sistemas de trabalho alternativos podem existir lado a lado, no mesmo espao, de uma maneira que permita que os empreendedores capitalistas escolham vontade entre eles.41

    Assim, a proposta de acumulao flexvel possibilitou que o mercado tambm se flexibilizasse, de modo que as empresas podem ir para espaos nos quais a mo de obra seja mais acessvel ao capital, tornando-o mais competitivo e lucrativo. O resgate feito em torno da histria do trabalho demonstra que o trabalho sempre existiu e persistiu, e o que realmente se modificou foram as relaes entre patres e empregados. Tais relaes acompanharam a evoluo poltica e econmica da sociedade e seus diversos contextos. Em todos os perodos, desde o perodo primitivo, o homem dominou seu semelhante, e o trabalho foi o objeto de apropriao do mais forte. Independentemente de o regime ser primitivo, escravocrata, de servido, corporao ou capitalista, algum dominou os meios de produo. O que se modificou, ao longo da Histria, foram as maneiras de apropriao e a intensidade de explorao.

    3 Trabalho e globalizao

    Na contemporaneidade, o regime capitalista impe sociedade novos mtodos de apropriao do trabalho. O exrcito industrial de reserva de mo de obra cresceu a partir da globalizao. O termo globalizao algo difcil de conceituar, j que advm de diversos fatores e fenmenos, que interferem nas relaes internacionais e afetam diferentes aspectos da vida social. Kaufmann42 delimita que, pelo menos h trs dcadas, deu-se incio ao processo de globalizao, que tem sua origem relacionada com as mudanas ocorridas no mundo do trabalho, com a internacionalizao e a tecnologizao da produo industrial.

    40

    ANTUNES, op. cit. 41

    HARVEY, 1992 apud ANTUNES, 2006, p. 22. 42

    KAUFMANN, op. cit.

  • 32

    No diferente desse conceito, Fernandes43 nega que a globalizao seja algo contemporneo. Remete o incio da globalizao expanso das atividades comerciais e manufatureiras no Norte da Itlia, j no sculo XV. A internacionalizao dessas atividades oportunizou o crescimento econmico e comercial do mercado europeu. Com isso, o capitalismo europeu consolidou-se econmica e politicamente no restante do mundo, no sculo XIX.

    Olhando, a partir de uma perspectiva histrica, entende-se que a globalizao no algo assim to novo. Pode-se definir que esse processo iniciou quando o homem saiu navegando, na nsia de descobrir novas terras, a fim de reconhecer novos territrios e expandir suas atividades mercantis. Considerando que, na atualidade, a globalizao um conceito forte e concreto, evidencia-se que houve uma evoluo na construo e disseminao de tal categoria. No entanto, nos anos 1980 a globalizao ganhou expresso e destaque, com o avano nos estudos sobre o conceito e sua influncia no mercado internacional. Isso ocorreu a partir de uma farta literatura especializada produzida por quadros formados nas escolas de administrao de empresas do mundo anglo-saxo.44

    As transformaes ocorridas na sociedade, na economia e na poltica mundial influenciaram diretamente para instalao e evoluo do sistema capitalista globalizado. Entende-se que o processo de globalizao multiplica-se pela internacionalizao da produo e das finanas, quando ocorre, tambm, uma profunda alterao na diviso do trabalho internacional, o que quer dizer que, antes da criao de uma nova diviso de trabalho dentro de empresas transnacionais, ocorria somente em um nico pas (de origem, geralmente), e, a partir do processo de globalizao, essa diviso pde ser espalhada em vrios pases e at mesmo continentes. A globalizao proporciona ao capitalismo a condio de utilizar-se de mo de obra mais barata onde quer que ela esteja; comprar matria-prima ao menor preo em qualquer lugar do mundo; instalar-se onde os governos oferecem mais vantagens. Da mesma forma que o capital, utiliza-se de meios de integrao e locomoo para apropriar-se, ao longo do globo, de subsdios para baratear sua produo, e aproveita tambm esses meios para enviar seus produtos, indispensveis sobrevivncia45 humana para qualquer canto do mundo.

    As corporaes, impulsionadas pela globalizao de mercado e pelo insumo, inseridas no processo de reestruturao produtiva, possuem um mundo sem fronteiras para investir e colher seus resultados. A reestruturao produtiva advm do processo de acumulao flexvel, sendo este um modelo avassalador para o mundo do trabalho. O 43

    FERNANDES, Luis. As armadilhas da globalizao. In: CARRION, Raul K.M.; VIZENTINI, Paulo G. Fagundes (Org.). Globalizao, neoliberalismo, privatizaes: Quem decide este jogo? 2. ed. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1998. p. 13-20. 44

    FERNANDES, Luis. As Armadilhas da Globalizao. In: CARRION, Raul K.M.; VIZENTINI, Paulo G. Fagundes (Org.). Globalizao, neoliberalismo, privatizaes: quem decide este jogo? 2. ed. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1998. p. 14. 45

    Guareschi (2007, p. 154) explica essas necessidades, com a intensa publicidade do capital em torno de seus produtos, que convencem-nos da necessidade de adquiri-los, criando necessidades inimaginveis, num mundo em que no foram resolvidas questes bsicas de sobrevivncia de centenas de milhes ou bilhes de seres humanos (fome, sade, emprego, moradia, educao, etc.). Isso porque os valores bsicos de nossa sociedade so o lucro, a competio, a busca pelo prestgio, valores fundamentalmente materialistas.

  • 33

    modo de produo flexvel rege o mercado e determina os nveis de crescimento e desenvolvimento da indstria e comrcio. A reestruturao produtiva tem como palavra de ordem a flexibilizao. Freire46 expe a mxima da interferncia da reestruturao produtiva no mundo do trabalho, afirmando:

    Desse modo, foi sendo ditada uma nova cultura e aes polticas de inspirao neoliberal no mundo do trabalho, que buscam flexibilizar ao mximo no somente as estratgias de produo e racionalizao, atravs de novas tecnologias, polticas, processos de trabalho, estoques, tempo de giro do capital, produtos, padres de consumo, como tambm as condies de trabalho, os direitos e os compromissos do Estado para com a populao, conquistados no perodo anterior.47

    Sobre os direitos e os compromissos do Estado mencionados, vale ressaltar que muitos deles sofreram mutilaes, na medida em que a flexibilizao do mercado e das relaes forou tambm uma flexibilizao dos direitos, consolidados pela Constituio Federal de 1988. No contexto de reforma do Estado, h uma reduo das responsabilidades sociais e pblicas, seguindo a tendncia contempornea do capitalismo, dentro das polticas neoliberais. Sobre os direitos, vale ressaltar quais so: direitos civis, direitos polticos e direitos sociais.

    A ordem capitalista se modifica, provoca tendncias mercadolgicas para ser capaz de alcanar de forma satisfatria seus objetivos: produtividade, competitividade e lucratividade. Tais objetivos so categorias interligadas, j que para o capital atingir lucratividade precisa de mxima produtividade, com menor custo, resultando em maior competitividade. Para a obteno de mxima produtividade com baixo custo , portanto, necessrio estar alocado em locais com mo de obra barata. A alta produtividade gera, ainda, aumento do ritmo de trabalho, acarretando sobrecarga dos trabalhadores, ou proporcionando as contrataes temporrias, para suprir os momentos de maior venda. uma busca pelo ganho de mercado, de economia de custos e maior lucro.48

    O mercado de trabalho passa por uma reorganizao, para que o mesmo adapte-se ao ritmo acelerado do crescimento, desenvolvimento produtivo e tecnolgico, sem prejuzos ao capitalismo. As modificaes do mercado de trabalho na era globalizada acarretaram um custo social elevado, sem falar nas consequncias imprevisveis para as prximas dcadas. O contexto contemporneo de trabalho apresenta um mercado em que o emprego formal, com garantias de salrios, segurana, vantagens sociais torna-se cada vez mais escasso.49

    Surge, nesse processo, um novo modelo de trabalho temporrio, casual, parcial, na realidade um desemprego disfarado. Tais condies afastam uma parcela considervel de trabalhadores do mercado e essa problemtica torna-se global, com tendncia a 46

    FREIRE, Lcia M. B. O servio social na reestruturao produtiva: espaos, programas e trabalho profissional. 2. ed. So Paulo: Cortez, 2006. 47

    Ibidem, p. 32. 48

    ANTUNES, op. cit., p. 35-48. 49

    FREIRE, Lcia M. B. O servio social na reestruturao produtiva: espaos, programas e trabalho profissional. 2. ed. So Paulo: Cortez, 2006.

  • 34

    crescer na mesma proporo que a tecnologia. Paralelamente a essas mutaes, ocorre tambm a mutilao social50 e o alto custo social51 na manuteno desses trabalhadores.

    A reorganizao do mundo do trabalho, a partir da reestruturao produtiva, na era da globalizao, tanto nas organizaes pblicas como nas privadas, impe aos trabalhadores um cenrio de precarizao das relaes de trabalho. Essa nova aparncia do trabalho acarreta a insegurana do trabalhador diante de seu espao laboral, causando o medo de perder o emprego, consequentemente dificultando o acesso sade, moradia e educao.52

    A incerteza em todos os aspectos (mercado, emprego, renda), gerada por esse processo, reflete no modo de viver, de pensar e at mesmo de sentir a vida pelo trabalhador. So as relaes sociais se modificando a partir das transformaes ocorridas, de maneira global, no capitalismo contemporneo.

    Esse comportamento atribui-se s exigncias vindas das empresas, que esperam de seus empregados mais do que aquilo que lhes foi solicitado: esperam pr-atividade, criatividade. Em contraponto s exigncias mercadolgicas mundiais, acontece, na era da reestruturao produtiva, a reduo dos postos de trabalho para aqueles que no se adaptaram aos novos processos de produo, tornando-os trabalhadores excludos.

    Excludos, so todos aqueles que, por suas limitaes, no sero aproveitados pelo capital, e tero de buscar seu sustento no mercado informal. O fato de o trabalhador ser excludo o torna apenas mais um personagem entre as tantas transformaes que reconfiguram a classe trabalhadora mundialmente; estaro divididos em estveis e precrios, homens e mulheres, jovens e idosos, nacionais e imigrantes, brancos e negros, qualificados e desqualificados, includos e excludos.53

    O esforo vivido pelas empresas, para adaptarem-se nova realidade mundial, reflete sobre o trabalhador, que precisa estar cada vez mais qualificado, a fim de no perder, nesse espao sem fronteiras, seu posto de trabalho. Os espaos de trabalho tambm sofreram mutaes e, nesse contexto, que anteriormente o operariado de cho de fbrica ocupava como figura central, agora substitudo pela expanso crescente do setor de prestao de servios, em que incorporou-se, tambm, de modo expressivo, um grande contingente feminino.54

    Muito embora as mulheres tenham ocupado um espao significativo no mercado de trabalho, isso no pode ser considerado um avano. O capital absorveu a mo de obra feminina, com inteno de baratear custos, o que fica evidente quando sua fora de

    50

    De acordo com a obra de Freire (2006, p. 47), os trabalhadores na reestruturao produtiva vo assumindo novas responsabilidades e uma grande carga de sofrimento psquico. Esse processo resulta na ampliao do desgaste fsico e mental do trabalhador, crescendo o exrcito de mutilados e de mortos prematuramente. J a mutilao social diz respeito perda dos direitos sociais j conquistados e autocensura do trabalhador. A autora identifica, ainda, a construo e reforo do processo de alienao social no trabalho. 51

    Em relao ao alto custo social, ainda em Freire (2006, p. 47), salientam-se os gastos do estado, pelo crescente custo econmico dos acidentes e doenas profissionais para o Pas. 52

    ANTUNES, op. cit., 2002. 53

    ANTUNES, Ricardo. Trabalho e precarizao numa ordem neoliberal... op. cit., p. 59. 54

    ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho... op. cit.

  • 35

    trabalho utilizada para tarefas que no necessitam qualificao profissional, e seus salrios so reduzidos em relao aos dos homens.

    A expanso do trabalho feminino tem, entretanto, significado inverso, quando se trata da temtica salarial, terreno em que a desigualdade salarial das mulheres contradita a sua crescente participao no mercado de trabalho. Seu percentual de remunerao bem menor do que aquele auferido pelo trabalho masculino. O mesmo ocorre frequentemente no que concerne aos direitos e condies de trabalho.55

    Com a explorao da mo de obra feminina, ocorreu tambm uma superexplorao do trabalho, a partir da utilizao sem limites do trabalho de imigrantes, dos negros, alm da expanso dos nveis de trabalho infantil, sob condies criminosas, em tantas partes do mundo.56

    Netto e Braz57 relatam a precarizao do trabalho nesse sistema que, para alm do desemprego, gera a pauperizao do trabalhador, quando o exrcito de reserva serve ao capital como argumento, para pressionar os salrios para baixo. Sob a ameaa de perder seu emprego para o exrcito de reserva, esse trabalhador acaba subordinando-se e aceitando as novas condies, nada satisfatrias, como a queda do salrio real e intensificao do ritmo de trabalho.58

    Os resultados mencionados provm de um conjunto de fatores que compem os setores poltico, econmico, cultural e institucional. As relaes de trabalho esto inseridas em ambientes diversos. Essas relaes so formadoras e formadas pelo processo de precarizao do mercado. A transnacionalizao da produo torna crescente o uso da fora de trabalho global, sendo que a tecnologia da informao o meio de conexo entre os diversos segmentos da fora de trabalho. Porm, a fora de trabalho no circula livremente nas redes globalizadas, como o capital e as mercadorias produzidas pelo trabalhador.

    Castells59 apresenta aspectos importantes para a compreenso sobre a influncia da globalizao para o mundo do trabalho, referenciando a reduo do quadro funcional, com a manuteno apenas de empregados altamente qualificados, contratao de mo de obra temporria, trabalhadores de meio expediente, e a busca de material e mo de obra onde for mais barato.

    Aparecem assim duas opes para o trabalhador diante desse novo mercado, dito capitalista contemporneo, globalizado: ou apropria-se de conhecimento, tornando-se um trabalhador indispensvel, ou sofre-se as consequncias do trabalho precarizado, fragmentado, terceirizado, anteriormente exposto. Essa concepo fragmentou a classe trabalhadora que, nesse contexto, busca atender interesses individuais, e no busca mais o coletivo. H um movimento constante de individualizao das relaes de trabalho.

    55

    ANTUNES, op. cit., 2001, p. 105. 56

    Ibidem, p. 233. 57

    PAULO NETTO, Jos; BRAZ, Marcelo. Economia poltica: uma introduo crtica. So Paulo: Cortez, 2006. 58

    Ibidem, p. 135. 59

    CASTELLS, M. A sociedade em rede. So Paulo: Paz e Terra, 1999.

  • 36

    A individualizao ou fragmentao fica explcita nos novos tipos de vnculos trabalhistas que os trabalhadores mantm com as empresas, tais como trabalhos temporrios, parciais, terceirizados. Essa diviso rompe com a construo de identidades coletivas capazes de representar interesses homogneos, e coloca os trabalhadores como rivais, concorrentes entre si, deslocando ou