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DIREITO INDGENA, DIREITO COLETIVO E MULTICULTURALISMO
Paulo Thadeu Gomes da Silva, Especialista em Sistemas de Proteo dos Direitos Humanos pelo Institut International dAdministration Publique/Paris, Mestre em Direito pela PUC/RJ, Doutor em Direito pela PUC/SP, Pesquisador, inverno/2002, junto ao Max Planck Institut fr europische Rechtsgeschichte-Frankfurt am Main, Procurador Regional da Repblica em So Paulo e Professor da UNIFMU.
SUMRIO: I. Introduo....................................................................................................................... 2 II. Mundializao................................................................................................................ 5 a) diferenciao, e no discriminao ............................................................................ 6 b) a Conveno n. 169, da OIT ....................................................................................... 10 III. Conceitos antecedentes das aproximaes adequadas do tema ........................ 11 a)pluralismo..................................................................................................................... 12 a.1) distino entre pluralismo e relativismo ............................................................... 14 b) multiculturalismo........................................................................................................ 16 c) etnia.............................................................................................................................. 20 d) direito coletivo ............................................................................................................ 21 IV. Aproximaes adequadas do tema ......................................................................... 25 a) abordagem antropolgica.......................................................................................... 26 b) abordagem sociolgica.............................................................................................. 27 c) abordagem dogmtico-jurdica ................................................................................. 28 V. Questes da dogmtica jurdica relativas ao tema................................................. 29 VI. Concluses................................................................................................................. 38
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I. Introduo
Este artigo nasceu de uma reflexo levada a cabo por ocasio de debate a
respeito do tema direito indgena nas hostes da Escola de Magistratura Federal da 3.
Regio1. O debate demandou leitura de livros e artigos pertinentes ao tema. Da surgiu a
constatao de que, quase sem exceo, trata-se dele, tema, sob a perspectiva de um
problema: o problema indgena. Pronto: a fantasia foi criada. A partir disso quem quiser
se informar de maneira mais adequada tem que, necessariamente, recorrer psicanlise,
cincia mais afeta ao desmascaramento das fantasias.
O propsito deste artigo, ento, traduz-se em dois objetivos: a) indicar o falso
tratamento dispensado ao tema como se fosse ele um problema; b) indicar, e tentar
suprir, a falta de doutrina especfica sobre o tema.
A preocupao toma corpo se se pensar que mesmo um autor clssico da
antropologia como Darcy Ribeiro tratou do tema sob o epteto de problema. Em seu
livro Os ndios e a Civilizao, ademais de em vrias passagens o autor descrever o
tema como problema, h um captulo especfico intitulado O Problema Indgena. Por
certo que o objetivo do autor no foi o de criar uma espcie de estigma para as
sociedades indgenas2 ao tratar de descrev-las sob o plio de problema. Em realidade
a sua preocupao parecia ser mesmo a de chamar a ateno para as especificidades que
faziam das sociedades tradicionais sociedades distintas da envolvente, as quais
deveriam ser tomadas em conta quando da ocorrncia das chamadas frices
intertnicas.
Tanto isso correto que, aps descrever a interao das duas sociedades como
problema representado pelas abordagens que dele so feitas, quais sejam, a etnocntrica,
a romntica e a absentesta, afirma: O dogmatismo etnocntrico da primeira corrente e
o absentesmo da ltima levam concepo de que no existe um problema especfico a
exigir tratamento especializado3. Portanto, o apelo era dirigido constatao da
existncia de especificidades que marcavam as sociedades tradicionais.
A postura assumida neste artigo no quer negar as lies de Darcy Ribeiro.
Primeiro porque seria expresso de desconhecimento do valor da obra do autor, tendo
1 I Jornada de Reflexes de Direito Federal em Mato Grosso do Sul, Ponta Por, maio de 2006. 2 Neste artigo no h a preocupao em se diferenciar sociedade (Gesellschaft) de comunidade (Gemeinschaft), distino essa gravada por Ferdinand Tnnies (1887), Community and Society, Dover, New York, 2002, portanto, neste texto, sociedade indgena e comunidade indgena so utilizadas como sinnimas. 3 Darcy Ribeiro, Os ndios e a civilizao, Companhia das Letras, SP, 2004, pp. 213-215.
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em vista ter sido ele um dos maiores pensadores do tema indgena, e segundo porque, ao
menos at onde se consegue compreender, ao tempo em que foi escrito o livro havia
ainda a necessidade de se tratar do tema pela palavra problema.
No se quer tambm, com o que vem de ser escrito, negar, atualmente, a
existncia de problemas que envolvem a interao entre sociedades tradicionais e
sociedade envolvente. Todavia, parece mais adequado descrever o tema pela palavra
direito indgena, e assim o que era problema passa a ser denominado de conflito. Sim,
porque tanto a interao entre as sociedades tradicionais e a envolvente, quanto a que
ocorre no interior das sociedades tradicionais so passveis de gerar conflitos, e no
apenas problemas. Preserva-se, de igual efeito, a idia factvel de manifestao de
especificidades das sociedades tradicionais, o que, trocando em midos e trazendo a
descrio para os dias atuais, constitui-se na j conhecida diferenciao das sociedades
tradicionais.
O fato de se tratar do tema do direito indgena como um problema traz consigo
uma enorme carga de preconceito, o que impede sua espontnea abordagem como um
tema do direito, seja do constitucional, seja do infraconstitucional. Vez ou outra o tema
vem tratado sob o ttulo de questo indgena, como se fosse um assunto especial. Essa
desfocada abordagem no d margem interpretao e construo do tema como um
continuum, pois trata dele como problema estrutural do Estado brasileiro a ser ou no
resolvido. Primeiro de se destacar que no h soluo para os problemas da
sociedade moderna; quando muito, mitigam-se os efeitos das polticas errticas e
devastadoras, por exemplo, do meio ambiente. Na viso aqui assumida como argumento
no h a preocupao de tratar do tema como se fosse ele um problema, mas sim e
apenas como um tema do direito, e que s por isso merece ser objeto de observao do
jurista nessa condio, passvel de construo terico-doutrinria e jurisprudencial.
Isto pe de manifesto que os conflitos oriundos do e no direito indgena so
conflitos do direito, assim como todo o material jurdico construdo sobre as bases de
todos os temas do direito. O direito indgena, sendo um desses temas e ao se auto-
construir, permite, de igual efeito, contribuir para a formao do arcabouo jurdico
existente no pas e no mundo. Da o prprio ttulo deste artigo ser grafado como direito
indgena.
A insuficincia e a inadequao da linguagem empregada para se descrever o
tema do direito indgena no param a, pois continua o direito indgena a demonstrar sua
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ambigidade quando mal comparado com seu antpoda, qual seja, o direito agrrio, de
vez que este nem mesmo se constitui em ramo do direito antagnico quele.
A designao ento encontrada na produo terica e mesmo na coloquial no
d conta de descrever o evento quando, por exemplo, em comparao com seu suposto
antagonista, ao menos no que diz com o aspecto da retomada de territrios, que o
direito agrrio com seus institutos tipicamente civilistas: no h, portanto, direito dos
fazendeiros ou mesmo esse direito nunca vem tratado sob a forma de problema.
A carncia da produo terica, no campo jurdico, tanto mais constatada
quanto mais se informe a respeito. A meno aos sistemas jurdicos da sociedade
mundial, se para comparao visando ao aperfeioamento do sistema nacional, no
existe. Decises proferidas em casos jurdicos levados ao conhecimento dos diversos
Tribunais que ocupam o centro dos sistemas jurdicos da sociedade mundial e repletas
de material jurdico-antropolgico para a reflexo e construo de uma teoria no so
sequer lanadas de forma passageira.
O que se encontra uma produo terica produzida em campos do
conhecimento distintos do direito, mais especificamente, na antropologia. Talvez no
seja conferida tanta relevncia ao tema pelo fato de ele no se inserir dentre aqueles que,
uma vez formulados, possam ser convertidos em tema de interesse da maioria, de vez
que atinente minoria, o que no deixa de demonstrar o estado de comodismo que toma
conta da doutrina.
A breve descrio do tema no panorama mundial produz uma valiosa
conseqncia na compreenso que se deva dele ter no Brasil e que representada pelo
tratamento dispensado a ele no como problema, mas sim como um tema do direito, da
poltica, da economia, portanto, da sociedade.
E aqui bem j poder-se-ia comear a problema