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Direito Legislação e Liberdade Vol. 1

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Clássico de F. A. HAYEK

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  • DIREITO, LEGISLAO E LIBERDADE

    Volume 1

    Friedrich A. Hayek

  • 3

    Sumrio

    Apresentao .............................................................................................................................................. 6

    Prefcio Edio Brasileira .................................................................................................................... 43

    Prefcio ..................................................................................................................................................... 45

    Introduo ................................................................................................................................................ 47

    Nota dos tradutores ................................................................................................................................. 58

    ............................................................................................................................... 60

    Captulo 1 - Razo e evoluo ................................................................................................................ 61

    Construo e evoluo ........................................................................................................................ 61

    As teses do racionalismo cartesiano ................................................................................................. 64

    As limitaes permanentes de nosso conhecimento factual. ........................................................ 68

    Conhecimento factual e cincia......................................................................................................... 74

    A evoluo concomitante da mente e da sociedade: o papel das normas .................................... 79

    A falsa dicotomia entre 'natural' e 'artificial' .................................................................................... 84

    A ascenso da perspectiva evolucionista .......................................................................................... 88

    A persistncia do construtivismo no pensamento atual ................................................................ 95

    Nossa linguagem antropomrfica ..................................................................................................... 97

    Razo e abstrao ..............................................................................................................................102

    Por que as formas extremas do racionalismo construtivista levam habitualmente a uma

    revolta contra a razo. .......................................................................................................................106

    Captulo 2 - Kosmos e taxis ..................................................................................................................111

    O conceito de ordem.........................................................................................................................112

    As duas fontes de ordem ..................................................................................................................115

    As propriedades distintivas das ordens espontneas....................................................................118

    Ordens espontneas na natureza.....................................................................................................120

    Na sociedade, confiar na ordem espontnea amplia e limita ao mesmo tempo nossos poderes

    de controle. .........................................................................................................................................122

    As ordens espontneas decorrem da obedincia de seus elementos a certas normas de conduta

    .............................................................................................................................................................125

    A ordem espontnea da sociedade constituda de indivduos e organizaes ....................131

    As normas das ordens espontneas e as normas organizacionais ..............................................134

  • 4

    Os termos 'organismo' e 'organizao' ............................................................................................141

    Captulo 3 - Princpios e oportunismo ...............................................................................................147

    Objetivos individuais e benefcios coletivos ..................................................................................147

    A liberdade s pode ser preservada pela observncia de princpios, sendo destruda pela

    prtica do oportunismo ....................................................................................................................150

    As 'necessidades' da politica de governo so geralmente consequncia de medidas anteriores

    .............................................................................................................................................................155

    O risco de se atribuir maior importncia s consequncias previsveis de nossas aes que s

    meramente possveis .........................................................................................................................158

    O realismo esprio e a coragem necessria para ousar a utopia .................................................160

    O papel do profissional do direito na evoluo politica...............................................................164

    Captulo 4 - O mutvel conceito de direito ........................................................................................177

    O direito mais antigo que a legislao .........................................................................................177

    As lies da etologia e da antropologia cultural ............................................................................181

    Normas factuais e normas prescritivas ...........................................................................................190

    O direito antigo .................................................................................................................................194

    A tradio clssica e a medieval.......................................................................................................196

    Os atributos distintivos do direito emanado do costume e do precedente ...............................202

    Por que o direito oriundo de um processo evolutivo requer correo por legislao .............207

    A origem dos corpos legislativos .....................................................................................................211

    Obedincia e soberania .....................................................................................................................214

    Captulo 5 - Nomos: o direito como salvaguarda da liberdade .......................................................218

    As funes do juiz .............................................................................................................................218

    Como a funo do juiz difere da do chefe de uma organizao ..................................................224

    O objetivo da jurisdio manter uma ordem vigente de aes ................................................226

    'As aes relativas a outrem' e a proteo de expectativas ...........................................................230

    Numa ordem dinmica de aes apenas algumas expectativas podem ser protegidas ............233

    A coincidncia mxima das expectativas obtida pela delimitao de domnios protegidos 240

    O problema geral da influncia dos valores sobre os fatos ..........................................................247

    O 'propsito' do direito ....................................................................................................................250

    A formulao do direito e a previsibilidade das decises judiciais .............................................255

    A funo do juiz restringe-se ao mbito de uma ordem espontnea .........................................260

  • 5

    Concluses .........................................................................................................................................266

    Captulo 6 - Thesis: a lei proveniente da legislao ...........................................................................269

    A legislao origina-se da necessidade de estabelecer normas organizacionais .......................269

    Lei e ato legislativo: a aplicao da lei e a execuo de determinaes ......................................273

    A legislao e a teoria da separao dos poderes...........................................................................277

    As funes governamentais das assembleias representativas ......................................................280

    Direito privado e direito pblico .....................................................................................................284

    Direito constitucional .......................................................................................................................289

    Legislao financeira .........................................................................................................................292

    O direito administrativo e o poder de polcia................................................................................294

    As 'medidas' de poltica governamental .........................................................................................298

    A transformao do direito privado em direito pblico pela legislao 'social' ........................300

    A parcialidade de um legislativo dedicado direo do aparelho governamental ...................305

  • 6

    Apresentao

    HENRY MAKSOUD

    H cerca de dois anos lanamos o livro 'Os Fundamentos da Liberdade' que

    a verso brasileira do 'The Constitution of Liberty', trabalho notvel deste

    grande filsofo poltico Friedrich A. Hayek. Na 'Introduo' que preparei

    para aquele lanamento falo sobre a vida e o trabalho do autor, a que o

    leitor interessado pode reportar-se. O presente livro uma obra

    suplementar, no um substituto daquele. Ao leitor incipiente o prprio

    Hayek recomenda que leia 'Os Fundamentos da Liberdade' antes, de passar

    anlise especifica dos problemas para os quais ele prope solues nos

    trs volumes deste 'Direito, Legislao e Liberdade' que a verso brasileira

    de seu 'Law, Legislation and Liberty'.

    Pretendendo "preencher as lacunas" que descobriu depois de ter feito

    'Os Fundamentos da Liberdade', Hayek explica nestes volumes por que

    ideias que h muito tempo vm sendo consideradas antiquadas se mostram

    em verdade ainda "imensamente superiores a quaisquer doutrinas

    alternativas que tenham encontrado, nos ltimos tempos, maior

    receptividade do pblico". E conclui mostrando que o perigoso rumo cm

    direo ao Estado totalitrio que vm tomando os chamados 'governos

    democrticos' dos pases considerados mais avanados em decorrncia

    de certos defeitos de construo profundamente arraigados de seus sistemas

    polticos o levou a "uma nova formulao dos princpios liberais de

  • 7

    justia e economia poltica", ou seja, exposio de uma 'Constituio da

    Liberdade' que o tema central do presente trabalho.

    A liberdade o valor que predomina em todo o pensamento de

    Hayek. Ele sempre se refere liberdade na vida do homem em sociedade.

    Quanto mais se mergulha em seu trabalho das ltimas quatro dcadas, mais

    evidente se torna o fato de que toda sua obra gira em torno da busca da

    liberdade liberdade que ele define com muita clareza e de forma

    insofismvel como sendo um valor uno e indivisvel, pois que s existe uma

    liberdade, a liberdade individual. E no h dvida de que o objetivo

    primordial deste 'Direito, Legislao e Liberdade' exclusivamente esta

    liberdade, pois para Hayek a liberdade a fonte e o pr-requisito de todos

    os demais valores do homem; e que ela somente poder ser preservada se

    for tratada como um princpio supremo, que no deve ser sacrificado a

    vantagens especficas.

    Direito e legislao correspondem a meios que precedem o fim maior

    que a liberdade do indivduo: o direito, cm geral preservando-a, e a

    legislao, muitas vezes desafiando-a e colocando-a ilegitimamente sob

    restrio. Como mostram magistralmente os dois primeiros volumes, o

    primeiro dos quais ganhou o subttulo de 'Normas e Ordem' ('Rules and

    Order') e o segundo, de 'A Miragem da Justia Social' (The Mirage of Social

    Justice'). O terceiro volume, com o subttulo 'A Ordem Poltica de um Povo

    Livre' (The Political Order of a Free People'), examina

    pormenorizadamente o porqu do persistente malogro dos sistemas de

    governo representativos atuais e apresenta uma formulao constitucional

    bsica, original, que tem por finalidade o cultivo e a salvaguarda da

  • 8

    liberdade do indivduo. Aqui, Hayek fala da 'Demarquia', embora confesse

    seu "pesar por no ter tido a coragem de empregar sistematicamente" este

    neologismo em toda a extenso do livro.

    A indiscutvel predominncia da liberdade na escala de valores de

    Hayek no pode, porm, obnubilar o fato de que para ele a liberdade

    subordinada ao direito e existe na conformidade com as leis da sociedade.

    Isto ele enfoca com mestria mpar em todo o livro, mas trata com

    pormenores no primeiro volume, 'Normas e Ordem'. Hayek reconhece que

    este tipo de liberdade na vida em sociedade algo relativo e que, numa

    sociedade livre, to amplo quanto possvel. Isso quer dizer que existe uma

    liberdade que mais absoluta e mais abrangente que a que se tem na vida

    em sociedade. Pois, j que a liberdade na sociedade a liberdade conforme

    o direito daquela sociedade, existe realmente uma liberdade metajurdica,

    intangvel; que uma liberdade menos restringida que a sujeita s normas

    jurdicas porque a lei , por definio, algo que restringe.

    A despeito de visualizar essa liberdade no sentido mais amplo, Hayek

    ainda assim enfatiza que a liberdade que ele tem em mente a liberdade

    subordinada ao direito. Isso fica evidente quando assegura numa de suas

    obras anteriores que "o homem jamais existiu sem leis". Ou quando ele cita

    e concorda com Kant quando este diz que o "homem livre se no precisar

    obedecer a ningum mas apenas s leis", ou com a frase de Montesquieu

    "nous sommes donc libres, parce que nous vivons sous les lois civiles". Em

    'Os Fundamentos da Liberdade' ele afirma que se deve ao estadista e

    filsofo romano Marco Tlio Ccero (106 43 A.C.) muitas das

    formulaes mais precisas do conceito de liberdade dentro da lei,

  • 9

    destacando dele a frase concepo segundo a qual obedecemos lei para

    sermos livres: "omnes legum servi sumus ut liberi esse possimus"1.

    Tambm proclama a liberdade no estado de direito quando sada o

    filsofo poltico ingls John Locke (1632 1704), por tornar claro que no

    pode haver liberdade fora da ordem jurdica, adotando como epgrafe do

    Captulo Onze, 'As Origens do Estado de Direito', de seu 'Os Fundamentos

    da Liberdade', a seguinte frase de Locke: "A finalidade da lei no abolir ou

    restringir, mas preservar e ampliar a liberdade. Porque onde no h lei no

    h liberdade, como se v nas sociedades em que existem seres humanos

    capazes de fazer leis. Pois liberdade significa estar livre de coero e da

    violncia dos outros, o que no pode ocorrer onde no h lei; e no

    significa, como dizem alguns, liberdade de cada um fazer o que lhe apraz

    (pois quem poderia ser livre se estivesse sujeito aos humores de algum

    outro?), mas liberdade de dispor a seu bel-prazer de sua pessoa, suas aes,

    bens e todas as suas propriedades, com a limitao apenas das leis s quais

    est sujeito. Significa, portanto, no ser o escravo da vontade arbitrria de

    outro, mas seguir livremente sua prpria"22. E ao longo de todo o presente

    livro ele escreve das mais diversas maneiras que a liberdade 'sempre

    liberdade dentro da lei'.

    As pessoas mal avisadas poderiam concluir em face dessas

    consideraes que a liberdade um elemento inferior ao direito, j que ela

    1 "Os Fundamentos da Liberdade". F. A. Hayek, Ed. Viso. 1983, p. 190. n. 36.

    2 Ibid., p. 18.

  • 10

    subordinada formalmente s leis no estado de direito. No e essa, porm, a

    ideia de Hayek. Embora a liberdade seja subordinada ao direito, este no

    superior liberdade. A subordinao formal da liberdade (liberdade dentro

    da lei, por cx.) no afeta a subordinao material do direito (e das leis)

    liberdade. Para Hayek, o direito um meio no apenas para se fazer

    cumprir normas legais mas tambm, e principalmente, para a promoo da

    liberdade individual. Ele no deixa dvidas em sua obra sobre o sistema de

    vida social que o estado de direito deveria manter e salvaguardar: um

    sistema que proporcione o mximo de liberdade possvel de se ter numa

    sociedade. Ele acredita numa ordem liberal que seria o Kosmos a que se

    refere no Vol. I (vide Capitulo Dois: Kosmos e Taxis) e que costuma

    denominar 'Grande Sociedade', que equivale 'Sociedade Aberta' de seu

    amigo o filsofo Karl R. Popper (1902 ).

    importante neste ponto ressaltar que, ao contrrio do que muita

    gente pensa, o estado de direito no significa apenas o imprio da lei. O

    estado de direito ('the rule of law') " um ideal poltico que transcende a

    simples legalidade, pois concerne quilo que a lei deva ser e implica que o

    governo nunca deva coagir um indivduo, salvo no caso da aplicao de

    uma lei geral conhecida. Ele ento tambm uma doutrina que limita os

    poderes de todo o governo. Limita os poderes do legislativo, pois os

    legisladores somente podem elaborar leis que possuam o atributo de serem

    normas gerais e prospectivas de conduta justa. Alm de, dessa forma,

    limitar os poderes do legislativo, o estado de direito estabelece que somente

  • 11

    o legislativo pode legislar. Uma lei produzida por um rgo no autorizado

    a legislar no ser, portanto, uma lei de verdade"3.

    Quando destaca que o direito a base da liberdade, Hayek segue (conforme

    ele mesmo escreve p.54 do Vol. I) "uma longa tradio, que se estende

    desde os gregos antigos e Ccero, atravessa a Idade Mdia, passa pelos

    liberais clssicos como John Locke, David Hume, Immanuel Kant e os

    filsofos escoceses da moral e chega at diversos estadistas americanos dos

    sculos XIX e XX, para quem direito e liberdade no podiam existir

    separadamente". Mas, ao passo que segue essa tradio, Hayek se revolta

    contra o pensamento de Thomas Hobbes, Jeremy Bentham, muitos

    pensadores franceses e os positivistas jurdicos modernos, para quem o

    direito significa necessariamente uma usurpao da liberdade. E explica:

    "Esse aparente conflito entre longas estirpes de grandes pensadores no

    significa que tenham chegado a concluses opostas, mas simplesmente que

    usaram a palavra 'direito' em sentidos diferentes". Dessa confuso, ento,

    surgiram conceitos errneos e esprios dos significados de 'estado de

    direito', 'direito' e 'lei' que o faz queixar-se quando diz, por exemplo, que a

    "expresso 'liberdade sob a gide do direito' ou 'liberdade dentro da lei'

    ('liberty under the law'), que em determinada poca talvez transmitisse a

    ideia essencial melhor que qualquer outra, se tornou quase sem sentido,

    porque tanto 'liberdade' quanto 'direito' deixaram de ter significado claro".

    Em decorrncia dessa confuso, os conceitos de lei e de legislao

    degeneraram completamente. A grande maioria dos atos que hoje

    3"Sabe o que o estado de direito?" in "Os Poderes do Governo", Henrv Maksoud. Ed. Viso, So Paulo,

    1984, p. 67

  • 12

    chamamos de leis no propriamente lei em termos estritamente jurdicos.

    O ideal poltico do estado de direito e a doutrina da separao de poderes

    pressupem, na Grande Sociedade de Hayek, uma concepo muito bem

    definida do que significa a palavra 'lei'. Neste conceito de ordem poltica,

    que visa liberdade, somente so normas de direito, ou seja, leis de

    verdade, as normas de conduta justa individual que possuam os atributos

    de serem gerais, iguais para todos e prospectivas, alm de serem conhecidas

    e certas. So normas abstratas, essencialmente permanentes, que se referem

    a casos ainda desconhecidos e no contm referncias a pessoas, lugares ou

    objetos determinados mas que regulam as relaes de conduta entre

    pessoas privadas ou entre essas pessoas e o Estado. Na prtica corrente,

    entretanto, tudo que for estabelecido por um rgo legislativo ou mesmo

    por qualquer outra autoridade, por meio de algum processo de legislao,

    tambm chamado 'lei'. Na maior parte, estas assim chamadas 'leis', porm,

    nada mais so que normas organizacionais, instrues administrativas,

    baixadas pelo Estado para seus funcionrios, relativas ao modo pelo qual

    estes devem conduzir a mquina governamental e manejar os meios de que

    dispem. So regras ou normas de organizao governamental e no

    normas de conduta justa individual. So chamadas 'leis' porque os governos

    passaram a reivindicar para elas a mesma respeitabilidade conferida s

    normas gerais de conduta, que so as verdadeiras leis, prprias do direito.

    Seria mais adequado que tivessem outro nome j foram sugeridas

    expresses genricas tais como 'regras ou estatutos de governo', 'paraleis' ou

    'infraleis'4.

    4 Leis, paraleis e pseudoleis" in "Os Poderes do Governo", Henry Maksoud, Ed. Viso, So Paulo, 1984, p.

  • 13

    Os governos coletivistas tm por objetivo a realizao de metas e

    planos especficos nos campos econmico e social. Para conseguir tais

    intentos, eles possuem sistemas polticos que possibilitam determinar a

    maneira de agir dos cidados e conduzir o esforo de todos no sentido

    exclusivo dos objetivos governamentais por meio de 'determinaes

    especficas' ou 'ordens de comando' que tambm chamam de 'leis'. Tais

    sociedades no so sociedades livres, abertas, baseadas no direito

    verdadeiro, ou seja, naquilo que Hayek chama de 'Nomos: o direito como

    salvaguarda da liberdade' ('Nomos: the law of liberty'). So povos obrigados

    a obedecer a 'pseudoleis', que no passam de normas de organizao

    mascaradas de normas de conduta justa e que podem ser arbitrrias,

    mutveis, inconsistentes, discricionrias, incertas e at retroativas5.

    Dando a denominao de 'leis' s normas de organizao, os

    governos em geral, e no apenas os Estados totalitrios, conseguiram impor

    ao cidado obedincia a determinaes especficas destinadas realizao

    de tarefas especficas ou ao atingimento de objetivos especficos almejados

    pelos governos. E muita gente julga que as regras de organizao

    governamental so do mesmo gnero que as normas de conduta justa (do

    direito fundado na liberdade) pelo fato de ambas emanarem, nas atuais

    instituies governamentais, da mesma entidade (o legislativo) que detm o

    poder de elaborar as normas de conduta justa. Esta confuso tem levado os

    chamados governos democrticos e as muitas autocracias que por a

    73.

    5 lbid., pginas 73 e 74.

  • 14

    existem a usar frequentemente o processo de legislao para criar normas

    de organizao fantasiadas de leis que so usadas cegamente como

    instrumentos de perverso do verdadeiro estado de direito. Hayek acentua

    isso de vrias formas ao longo de todo o livro.

    Convm neste ponto fazer um parntese para destacar algo muito

    importante que se encontra principalmente no Vol. I: que as normas gerais

    de conduta justa (as leis de verdade) que hoje se conhecem no so todas

    elas resultado de criao intencional (no surgiram do processo de

    legislao), embora o homem tenha aprendido aos poucos a aperfeio-las

    de acordo com suas necessidades. Essas normas do direito foram, de fato,

    descobertas por meio de um processo evolutivo de seleo entre diferentes

    sistemas de normas e passaram a compor um sistema jurdico aceito por

    todos medida que foi ficando patente que elas ajudavam certas

    comunidades a prosperar mais e a sobreviver melhor que outras

    comunidades que viviam to-somente sombra de regras de organizao

    decretadas por algum tipo de autoridade. Elas foram sendo transpostas para

    o papel proporo que a experincia, principalmente judicial, ia

    acumulando-se e as comunidades iam aceitando-as como fatores de paz e

    entendimento. Embora Hayek nos mostre que o direito no sentido estrito

    de 'ordem jurdica que visa salvaguarda da liberdade' seja oriundo de um

    processo evolutivo, ele destaca que no se pode prescindir da legislao por

    vrias razes que pormenorizadamente descreve neste seu livro. Ele

    tambm ressalta que o "direito mais antigo que a legislao". E que a

    legislao, dentre todas as invenes do homem, aquela mais prenhe de

    graves consequncias, tendo seus efeitos alcance maior que os do fogo e da

  • 15

    plvora. E conclui afirmando que a legislao "continuar sendo um poder

    extremamente perigoso enquanto acreditarmos que s ser nocivo se

    exercido por homens maus".

    Hayek mostra, outrossim, que o processo de legislao "a criao

    intencional de leis" se originou da necessidade de estabelecer normas

    organizacionais. por isso que a palavra 'legislativo' no passa "de uma

    espcie de titulo de cortesia conferido a assembleias surgidas originalmente

    como instrumentos de governo representativo. Os legislativos modernos

    provm claramente de rgos que existiam antes que a elaborao

    deliberada de normas de conduta justa tivesse sequer sido considerada

    possvel, e s mais tarde essa tarefa foi atribuda a instituies

    habitualmente encarregadas de funes muito diversas". Eram funes

    governamentais propriamente ditas. Dai a parcialidade dos chamados

    'legislativos' que at hoje se encontram imbudos do esprito de que, em

    sendo assembleias representativas do povo, devem ser dedicados tambm

    direo do aparelho governamental. A doutrina da separao de poderes

    no foi, assim, jamais observada.

    A despeito de serem comumente usadas pelos governantes como

    meios de perverso do direito ou como instrumentos de dominao, as

    normas de organizao so necessrias numa sociedade livre. Elas devem,

    no entanto, sempre subordinar-se s normas gerais de conduta justa do

    verdadeiro direito. Nas sociedades no tribais, a mquina governamental

    no pode operar exclusivamente na base de comandos diretos de um

    mandante. Portanto, a organizao necessria a qualquer governo moderno

    para preservar a paz interna, guardar o pas contra os inimigos externos e

  • 16

    prestar outros servios exigir normas distintas e prprias que lhe

    determinem a estrutura, as funes e os objetivos. No entanto, estas normas

    que comandam a mquina governamental tero de possuir,

    necessariamente, um carter diverso daquele das normas gerais de conduta

    individual. Sero, como escreve Hayek, "normas organizacionais, criadas

    para alcanar fins especficos, para suplementar determinaes positivas no

    sentido de que se faam coisas especficas ou se obtenham certos resultados,

    e para estabelecer os diversos rgos por meio dos quais o governo 'opera' ".

    Mesmo uma organizao dedicada exclusivamente a fazer cumprir as

    normas Inalterveis de conduta justa exigiria, para seu funcionamento, "um

    outro conjunto de normas".

    Esse "outro conjunto de normas" que engloba as normas de

    organizao , praticamente, o que conhecemos como direito pblico, em

    contraposio ao direito privado, que envolve as normas gerais de conduta

    justa individual. Este cobre as relaes das pessoas entre si e entre as

    pessoas e o Estado, e tambm o chamado direito 'penal' (criminal). O

    direito pblico abrange principalmente o direito administrativo, o direito

    constitucional e o direito processual. Para os que acreditam no positivismo

    jurdico, cujo padroeiro Hans Kelsen (1881 1973) haveria nenhuma

    diferena qualitativa entre esses dois tipos de norma. Assim critica Hayek

    este ponto de vista: "Visto que a construo intencional de normas tem por

    principal objeto as normas organizacionais, a reflexo sobre os princpios

    gerais da atividade legislativa ficou tambm quase inteiramente a cargo dos

    publicistas, ou seja, dos especialistas em organizao que, frequentemente,

    tem pouca simpatia pelo lawyer's law. Hesitamos, por isso, em consider-

  • 17

    los profissionais do direito. So eles que, nos tempos modernos, tm

    dominado quase totalmente a filosofia do direito e afetaram

    profundamente o direito privado. O fato de que a Jurisprudncia (em

    especial na Europa continental) vem sendo realizada quase exclusivamente

    por publicistas para quem o direito antes de mais nada o direito

    pblico, e a ordem se reduz organizao uma das principais causas da

    preponderncia no apenas do positivismo jurdico (que, no direito

    privado, simplesmente no tem sentido) mas tambm das ideologias

    socialistas e totalitrias nele implcitas".

    E, j que tocamos na questo do positivismo jurdico, bom referir-

    nos logo 'justia social', tema principal de todo o segundo volume. No

    sem forte motivo que Hayek lhe deu o subttulo de 'A miragem da justia

    social'. 'Justia social' uma das expresses mais enganosas (e talvez por

    isso mesmo mais frequentemente usada) do discurso poltico

    contemporneo. de verdade uma miragem. Trata-se de uma frmula

    ilusria que, por conter atrativos quimricos, constantemente utilizada

    pelos polticos para conseguir que uma determinada pretenso seja

    considerada plenamente justificada sem ter de dar razes morais para a sua

    adoo. Hayek espera com sua vigorosa afirmao de que o culto da

    'justia social' desonesto, fonte de constante confuso poltica e destruidor

    de todo o sentimento moral que os oradores, polticos, escritores,

    jornalistas e todos os pensadores responsveis venham a sentir, "para

    sempre, total vergonha de empregar a expresso 'justia social' ".

    A 'justia social' invocada comumente como sinnimo de 'justia

    distributiva' na abordagem dos problemas decorrentes da chamada

  • 18

    'desigual distribuio da riqueza' entre os homens e, especificamente na

    sonhada perseguio do bem-estar gera) para todos os indivduos. Hayek

    nos ensina, porm, que numa sociedade aberta no pode haver justia

    distributiva simplesmente porque nela ningum distribui; nela, funciona o

    jogo do mercado, que ele chama de 'catalaxia' (termo usado originalmente

    tambm por Von Mises), no qual os resultados obtidos por cada um dos

    participes no so nem pretendidos nem prognosticveis pelos demais e,

    portanto, o resultado no pode ser classificado nem como justo nem como

    injusto. A despeito da conquista da imaginao popular pela ideia de

    'justia social', ele expe brilhantemente sobre a inaplicabilidade do

    conceito de justia aos resultados de um processo espontneo baseado no

    mercado e disserta com firmeza sobre o fundamento lgico do jogo

    econmico em que s a conduta dos jogadores, mas no o resultado, pode

    ser justa.

    A 'justia social' nada tem a ver com o direito, nem com a liberdade

    dentro da lei e nem com a justia verdadeira e nica, sem adjetivaes. A

    justia um atributo da conduta humana e no se correlaciona com a busca

    de propsitos particulares como quer a ideologia do bem-estar geral do

    positivismo jurdico e do socialismo. Em lugar das falsas leis, ou normas de

    organizao, que advenham da 'justia social', Hayek destaca a "importncia

    das normas abstratas como guias num mundo cujos detalhes so em sua

    maior parte desconhecidos... As normas abstratas atuam como valores

    ltimos porque servem a fins particulares desconhecidos". Para ele,

    portanto, numa sociedade livre, "o bem geral consiste principalmente na

    facilitao da busca de propsitos individuais desconhecidos". E o que

  • 19

    "possibilita o consenso e a paz em tal sociedade que no se exige dos

    indivduos consenso quanto a fins, mas somente quanto aos meios capazes

    de servir a uma grande variedade de propsitos, meios que cada um espera

    o auxiliem na busca de seus objetivos". Esse pensamento significa muito,

    pois se refere descoberta de um mtodo de cooperao na vida em

    sociedade que exige acordo somente quanto a meios e no quanto a fins.

    Essa descoberta de uma ordem definvel apenas por certas caractersticas

    abstratas que auxiliaria na consecuo de grande multiplicidade de

    diferentes fins levou as pessoas empenhadas na busca de objetivos os mais

    diversos a concordar quanto ao uso de certos instrumentos polivalentes que

    teriam probabilidade de auxiliar a todos.

    Embora o conceito de 'justia social' seja em geral usado apenas para

    fins falsos, provvel que para muitos, no perodo posterior 2 Grande

    Guerra, ele decorra da 'Declarao Universal dos Direitos Humanos'

    aprovada pela Assembleia Geral das Naes Unidas em 1948. Esse

    documento , sabidamente, uma tentativa de fundir os direitos da tradio

    liberal ocidental com a concepo completamente diversa oriunda da

    revoluo marxista russa. Num Apndice ao Capitulo Nove do segundo

    volume, Hayek mostra que relao dos direitos civis clssicos,

    enumerados em seus primeiros vinte e um artigos, a 'Declarao' acrescenta

    sete garantias adicionais destinadas a expressar os novos 'direitos sociais e

    econmicos'. Como jamais foi feito com tamanha fora, ele demonstra o

    quo absurdas so essas garantias adicionais prometidas a 'todo homem,

    como membro da sociedade', principalmente em termos da justia e do

    direito, quando se considera que elas no atribuem, ao mesmo tempo, a

  • 20

    algum a obrigao ou o encargo de conced-las e o documento omite

    tambm, por completo, uma definio desses direitos que permitisse a um

    tribuna! determinar seu significado numa situao especifica. Hayek

    afirma, por exemplo: " evidente que todos esses 'direitos' se baseiam na

    interpretao da sociedade como uma organizao deliberadamente criada,

    da qual todos os homens seriam empregados. Eles no poderiam ser

    tornados universais num sistema de normas de conduta justa baseado na

    ideia da responsabilidade individual, e requerem, portanto, que toda a

    sociedade seja convertida numa nica organizao, isto , tornada

    totalitria no mais amplo sentido da palavra. ... Pelo visto, jamais ocorreu

    aos autores da 'Declarao' que nem todos so membros empregados de

    uma organizao, cujo direito a repouso e lazer, inclusive a limitao

    razovel das horas de trabalho e frias remuneradas peridicas (Art. 24),

    possa ser garantido. A ideia de um 'direito universal' que assegure ao

    campons, ao esquim e, quem sabe, ao Abominvel Homem das Neves

    'frias remuneradas peridicas' mostra o absurdo da proposio. Bastaria

    um mnimo de senso comum para que os autores do documento

    percebessem que o que decretaram como direitos universais era uma utopia

    no presente e cm qualquer futuro previsvel, e que proclam-los

    solenemente como direitos foi um irresponsvel jogo de palavras com a

    ideia de 'direito', o que s poderia resultar na destruio do respeito pelo

    termo". Bastam estas citaes para que o leitor sinta a fora e a importncia

    desse Apndice denominado "Justia e Direitos Individuais".

    No se pode perceber claramente a razo do sucesso dessa terrvel

    onda chamada 'justia social' sem que se compreenda que na origem de

  • 21

    tudo se encontrem, no seio da humanidade, foras atvicas propensas ao

    ressurgimento do pensamento organizacional tribal. Como mostra Hayek

    principalmente no segundo volume e no capitulo de eplogo do terceiro

    volume , o que se destaca no discurso poltico e na ao administrativa

    baseados na chamada 'justia social' a preponderncia do apelo aos

    instintos inatos em contraposio aos valores culturais acumulados pela

    civilizao. As persistentes exigncias por uma 'justia social', que reclamam

    o uso arbitrrio e discricionrio do poder coercitivo organizado (do

    governo ou dos sindicatos) para alocar rendas e outros mltiplos benefcios

    sociais, conforme critrios de mrito, ou simples imposio majoritria, so

    exemplos de atos de revolta contra a natureza da ordem abstrata de

    mercado por razes de puro atavismo de sentimentos tribais. Nos tempos

    atuais, nmero crescente de pessoas tem sua vida girando em funo de

    grandes organizaes e encontra seu horizonte de compreenso limitado ao

    que lhe requerido pela estrutura interna dessas organizaes. O modo de

    pensar dos homens mais influentes e poderosos da sociedade moderna gira

    tambm cm torno da ideia da 'organizao', ou seja, da unidade hierrquica

    de objetivos, do arranjo deliberado dos fins a atingir, do racionalismo

    construtivstico cartesiano. A evoluo da tcnica da organizao, com a

    consequente ampliao da gama de tarefas que podem ser levadas a cabo

    por meio da organizao em larga escala, desenvolveu a crena de que no

    h nada que a organizao no possa conseguir. Com isso, as pessoas

    perderam a perspectiva do fato de que o sucesso dessas mesmas

    organizaes, de todas elas, depende de uma ordem social muito mais

    abrangente, que movida por foras espontneas de ordenao que

  • 22

    possuem natureza completamente distinta das que constituem as grandes

    empresas e as grandes organizaes burocrtico-administrativas. Como

    consequncia dessa falta de viso, estimulada pelo violento ataque socialista

    e por terrveis equvocos intelectuais, todas as regras do jogo do mercado,

    que tornaram possvel ao homem viver na forma de uma grande sociedade

    aberta, so ignoradas, voltando tona demandas fundadas cm instintos

    selvagens que haviam sido h tanto tempo restringidos pela evoluo

    cultural.

    No Captulo Dez do Vol. II, ao discorrer sobre a 'ordem de mercado' ou

    'catalaxia', Hayek destaca que "uma sociedade livre uma sociedade

    pluralista sem uma hierarquia comum de fins especficos" que "deve sua

    coeso sobretudo ao que vulgarmente se chama de relaes econmicas" e

    em que o objetivo da poltica governamental "no pode ser um mximo de

    resultados previsveis, mas somente uma ordem abstrata". Essa "ordem

    abstrata" a 'catalaxia' ou jogo do mercado, onde o resultado funo da

    aptido, do esforo e da sorte dos participantes e serve para obter de cada

    participe a mxima contribuio a um fundo comum de onde cada qual

    obter uma parte incerta. Como no caso de qualquer jogo, se as regras

    forem por todos conhecidas e respeitadas, o resultado poder ser sempre

    classificado de bom ou mau, porm nunca de justo ou injusto. E, por isso,

    Hayek estabelece a importncia e a natureza das normas abstratas de

    conduta justa no jogo do mercado, concluindo que "O direito deve ter por

    objetivo aumentar igualmente o nmero de ocasies propicias ao sucesso

    de todos" e que a "Boa Sociedade aquela em que o nmero de

  • 23

    oportunidades de qualquer pessoa aleatoriamente escolhida tenha

    probabilidade de ser o maior possvel".

    Na ltima tera parte do livro, o autor explica que decidiu realizar

    algumas mudanas terminolgicas mas acentua que sente "certo pesar de

    no ter tido a coragem" de continuar empregando sistematicamente ao

    longo do restante da obra diversos neologismos por ele sugeridos, como

    'kosmos', 'taxis', 'nomos', 'thesis', 'catalaxia' e 'demarquia'. Ele sente que com

    as modificaes a exposio talvez tenha ganhado em inteligibilidade para o

    leitor comum o que perdeu cm preciso. Em nosso modo de ver, mesmo

    tendo deixado de usar sistematicamente parte dessas expresses, elas

    continuam sempre presentes na mente do leitor atento e interessado e

    deixam patente que o autor nos traz um enfoque efetivamente novo a

    respeito de matrias como legislao, economia, mercado, leis, direito,

    ordem, democracia, partidarismo, etc. de que tanto ouvimos hoje falar em

    nossa vida em sociedade.

    Neste terceiro volume, Hayek formula os princpios de justia e

    economia poltica de uma sociedade livre 'a ordem poltica de um povo

    livre'. Ao expor suas ideias a respeito do que seria uma nova ordem poltica

    fundada na liberdade ele no pretende tentar 'organizar' a sociedade de uma

    dada forma, porque sabe melhor que ningum que a sociedade um

    fenmeno extremamente complexo, sendo impossvel manipul-la

    deliberadamente. Qualquer tentativa de forar uma ordem social que vise a

    finalidades concretas h de falhar e leva a sociedade ao totalitarismo. De

    acordo com Hayek, o que se deve fazer, se o objetivo for a liberdade, 'criar

    as condies para uma ordem social baseada na liberdade'. O papel correto

  • 24

    do governo no o de criar uma dada ordem social. Em sua obra "O

    Caminho da Servido" (veja-se, por exemplo, na recente edio brasileira

    do Instituto Liberal, RJ, 1984, p. 43) o autor explica que a "atitude do liberal

    para com a sociedade e semelhante do jardineiro que cuida de uma planta

    e que, a fim de criar as condies mais favorveis ao seu crescimento, deve

    conhecer tudo o que for possvel a respeito da estrutura e das funes dessa

    planta". Por isso, antes de expor os princpios que favorecero o

    florescimento de uma ordem social fundada na liberdade, Hayek adentra os

    meandros das atuais instituies das chamadas 'democracias ocidentais' e

    analisa e critica todos os seus aspectos estruturais e funcionais.

    Ele fala do crescente desencanto com a democracia, j que "as

    atividades do governo moderno produzem resultados globais que poucos

    desejaram ou previram" mas que so, erroneamente, sempre considerados

    "uma caracterstica inevitvel da democracia". De fato, estamos to viciados

    a considerar democrtico unicamente o conjunto particular de instituies

    hoje existente cm todas as democracias ocidentais (e cm que a maioria de

    um organismo de representao estabelece as leis e administra o governo)

    que essa forma de democracia nos parece a nica possvel. Em

    consequncia, diz ele, "no estamos dispostos a encarar o fato de que esse

    sistema no s produziu muitos resultados que ningum aprecia, mas

    mostrou-se tambm impraticvel cm quase todos os pases cm que essas

    instituies democrticas no foram limitadas por slidas tradies acerca

    das funes prprias das assembleias representativas". portanto por

    acreditarmos, por bons motivos, no ideal bsico da democracia, "que nos

    sentimos quase sempre obrigados a defender as instituies especficas que

  • 25

    vm sendo h muito tempo aceitas como sua corporificao e hesitamos em

    critic-las porque isso poderia enfraquecer o respeito por um ideal que

    desejamos preservar".

    Embora um amante da democracia, mas considerando no ser mais

    possvel fazer vista grossa aos graves defeitos de aplicao e ao

    esquecimento dos ideais originais de liberdade da antiga democracia,

    Hayek ataca fundo o que se chama hoje de democracia. Mostra que, antes

    de tudo, o defeito fatal da forma vigente de democracia o poder ilimitado

    das entidades governamentais representativas. Esse poder ilimitado conduz

    a uma democracia de 'barganha' incapaz de agir de acordo com as

    concepes comuns maioria do eleitorado, que se ver "obrigada a formar

    e manter unida uma maioria por meio da satisfao das exigncias de uma

    pluralidade de grupos de presso, cada um dos quais s concordar com a

    concesso de benefcios especiais a outros grupos em troca de igual

    considerao para com seus prprios interesses especiais".

    Mas, ao mesmo tempo em que demonstra a perversidade desse poder

    ilimitado, ele mostra "a debilidade de uma assembleia eletiva com poderes

    ilimitados" de legislao. Ela "corrupta e fraca ao mesmo tempo: incapaz

    de resistir presso dos grupos que a integram, a maioria governante

    obrigada a fazer o que pode para satisfazer os desejos dos grupos de cujo

    apoio precisa, por nocivas que possam ser essas aes para os demais

    pelo menos na medida em que isso no seja demasiado evidente ou em que

    grupos sobre os quais essas medidas nocivas incidiro no sejam demasiado

    populares. Embora imensa e opressivamente poderosa, capaz de esmagar

  • 26

    qualquer resistncia de uma minoria, absolutamente incapaz de manter

    uma linha coerente de ao...".

    Essa ambgua situao das atuais assembleias representativas que

    so hoje ao mesmo tempo dbeis e todo-poderosas se deve ao processo

    poltico degenerativo "pelo qual a concepo original da natureza das

    constituies democrticas foi gradualmente perdida e substituda pela

    concepo do poder ilimitado da assembleia democraticamente eleita". Os

    sbios e os heris que lutaram pela liberdade contra o absolutismo

    monrquico a partir do sculo XVII na Inglaterra e que criaram as

    primeiras instituies do constitucionalismo representativo logo

    aprenderam que 'um parlamento podia ser to tirnico quanto um rei',

    dando ento lugar compreenso de que, 'para que a liberdade individual

    no fosse violada, tambm os legislativos deviam sofrer restries', de modo

    que s tivessem autoridade 'para agir de uma maneira especifica' e que,

    ademais, seus membros somente poderiam fazer leis que possussem os

    atributos de ser gerais, iguais para todos, abstratas e prospectivas. Quando,

    entretanto, ao longo dos tempos que se seguiram, os representantes do

    povo comearam a agir nas assembleias eletivas como se tivessem herdado

    as prerrogativas reais, os homens, que antes s consideravam perigoso o

    poder real, passaram a sentir os mesmos males de que se queixavam no

    regime autocrtico monrquico: arbitrariedade, discricionariedade,

    corrupo, ineficincia, parasitismo, irresponsabilidade e crescente

    limitao da liberdade individual. A concepo original do

    constitucionalismo representativo, fundado no ideal do estado de direito e

    da separao de poderes, foi gradualmente perdida e substituda pela

  • 27

    concepo do poder ilimitado da assembleia democraticamente eleita que

    at hoje se observa nas chamadas democracias ocidentais. "Os esforos que

    por sculos vinham sendo realizados para tornar realidade os ideais da

    separao de poderes e do estado de direito, para limitar os poderes

    coercitivos dos governos e salvaguardar a liberdade individual, foram

    anulados pelo conceito de que no havia mais necessidade de limitao

    desses poderes, j que o controle do governo se faria automaticamente na

    democracia, uma vez que o governo agora era o prprio povo"6.

    O grave defeito degenerativo dos atuais 'governos democrticos' foi

    determinado pelo fato de termos confiado s assembleias representativas

    duas funes inteiramente diversas para serem executadas

    simultaneamente. Hayek explica que, embora os chamemos de 'legislativos',

    a maior parte de seu trabalho consiste no na explicitao e aprovao de

    normas gerais de conduta, mas no controle de medidas governamentais

    concernentes a questes especficas. Na verdade, diz ele, "o que h de mais

    flagrante nessas assembleias que a atividade considerada primordial de

    um legislativo constantemente relegada, e um nmero crescente de

    funes que o homem do povo supe constiturem a principal ocupao

    dos legisladores de fato desempenhado por funcionrios pblicos. em

    grande parte por se ocuparem os legislativos do que e de fato administrao

    discricionria que o verdadeiro trabalho de elaborao das leis fica cada vez

    mais a cargo da burocracia...". E acentua que o crescente ativismo

    governamental em todas as fases da vida em sociedade se deve a "uma

    6 "Por que demarquia e no apenas democracia", in VISO, 10-7-78, e in "A Revoluo que precisa ser

    feita", H. Maksoud, Ed. Viso, So Paulo, 1980, p. 115.

  • 28

    ordenao pela qual o interesse da autoridade suprema volta-se sobretudo

    para o governo, no para o direito" e que isso s pode "dar lugar

    preponderncia cada vez maior do governo sobre o direito".

    Grande parcela de culpa por essa verdadeira decadncia da sociedade

    democrtica se deve ao partidarismo. Hayek mostra com clareza o mau uso

    que se faz atualmente dos chamados 'partidos polticos' e indica qual o seu

    papel correto num sistema de governo duma sociedade livre. Mas deixa

    claro que os prejuzos que os partidos produzem atualmente no se devem

    " democracia enquanto tal, mas forma particular de democracia que hoje

    praticamos". E confessa algo importante para ilustrar seu pensamento:

    "Acredito mesmo que, se selecionssemos por sorteio cerca de quinhentas

    pessoas amadurecidas e deixssemos que se dedicassem durante vinte anos

    tarefa de aperfeioar as leis, guiadas exclusivamente por sua conscincia e

    desejo de serem respeitadas, obteramos uma amostra muito mais

    representativa da verdadeira opinio do povo do que aquela resultante do

    atual sistema de leilo, pelo qual, a cada eleio, confiamos o poder de

    legislar aos que prometem a seus partidrios os maiores benefcios

    especiais".

    Hayek ataca a superstio construtivstica da soberania popular. Essa

    superstio se baseia na noo de que "a maioria do povo (ou seus

    representantes eleitos) deve ter a liberdade de decretar tudo que possa

    decidir por comum acordo". Ele, no entanto, est de acordo com a crena

    de que todo poder existente deve pertencer ao povo, e de que os desejos

    deste devem ser expressos por decises majoritrias. Mas encontra erro

    fatal na convico de que essa fonte mxima do poder deve ser ilimitada. "A

  • 29

    pretensa necessidade lgica de tal fonte ilimitada de poder simplesmente

    no existe." A ideia de que a onipotncia de uma autoridade est

    relacionada origem de seu poder uma degenerao influenciada pelo

    positivismo jurdico e baseada na crena ilusria de que, "uma vez adotados

    os procedimentos democrticos, tudo que apurado pelo mecanismo de

    verificao da vontade da maioria corresponde de falo opinio de uma

    maioria, no havendo limites para o nmero de questes em que a

    concordncia da maioria pode ser avaliada por esse processo". Chegar o

    dia, diz o autor, em que as pessoas sentiro, ante a ideia de uma assembleia

    de homens dotada do poder de determinar tudo o que queira, "mesmo que

    autorizada pela maioria dos cidados, o mesmo horror que hoje nos

    infundem praticamente todas as demais formas de governo autoritrio".

    O autor acentua em lodo o terceiro volume que as constituies

    foram idealizadas com o objetivo de impedir toda ao arbitrria de todos

    os rgos do governo. Nenhuma constituio ainda conseguiu alcanar essa

    meta, embora exista muito difundida a crena de que a preveno da

    arbitrariedade seja um efeito necessrio da obedincia a uma constituio

    desde que ela seja considerada 'democrtica'. Hayek explica que "a confuso

    sobre essa matria e fruto da concepo equivocada do positivismo

    jurdico"; e demonstra larga a importncia fundamental de se diferenciar

    cm termos absolutos o mister de elaborar uma constituio do mister da

    verdadeira legislao e do de governar. bvio que o judicirio tambm se

    enquadra nessa separao. Impe-se, portanto, um sistema de corpos

    representativos em trs nveis alm do judicirio: "um se ocuparia da

    estrutura semipermanente da constituio e s precisaria atuar a longos

  • 30

    intervalos, quando se julgasse necessrio alterar essa estrutura; outro teria o

    encargo permanente de promover o aperfeioamento gradual das normas

    gerais de conduta justa, enquanto o terceiro seria incumbido da conduo

    rotineira do governo, isto , da administrao dos recursos a ele confiados".

    Mas do que trata a constituio? "Uma constituio", responde

    Hayek, "trata sobretudo da organizao do governo e da alocao dos

    diferentes poderes s vrias instncias dessa organizao. Ainda que muitas

    vezes seja desejvel, para lhes conferir uma proteo especial, incluir nos

    documentos formais que 'constituem' a organizao do Estado alguns

    princpios de justia substantiva, uma constituio continua sendo

    essencialmente uma superestrutura erigida para servir aplicao das

    concepes existentes de justia, no para express-las: pressupe a

    existncia de um sistema de normas de conduta justa e estabelece apenas

    um mecanismo para sua aplicao regular". A constituio idealizada pelos

    filsofos polticos do constitucionalismo representativo sempre foi

    teorizada para ser um estatuto bem ordenado relativo distribuio e

    limitao dos poderes governamentais, visando preservao da liberdade

    individual. Ela foi imaginada como sendo um conjunto permanente de

    normas de organizao de um determinado sistema de governo, que no s

    alocasse os diferentes poderes mas que tambm obrigatoriamente limitasse

    esses mesmos poderes do Governo esfera que lhe prpria. Se a

    constituio da sociedade aberta por definio um conjunto de normas de

    organizao, ela no pode ser confundida com uma lei, no sentido estrito

    do estado de direito, pois no uma norma de conduta individual mas sim

    uma norma de organizao de um sistema de governo.

  • 31

    A despeito do que muitas pessoas mal avisadas podem julgar, o

    sistema poltico hayekiano no significa a ausncia total de atuao do

    governo na rea econmica. Numa sociedade desenvolvida " dever do

    governo usar seu poder para arrecadar fundos por meio da tributao, de

    modo a fornecer uma srie de servios que, por vrias razes, ou o mercado

    no pode prestar ou no pode prestar adequadamente". Embora sem entrar

    em pormenorizao desnecessria num livro desta natureza, no Capitulo

    Catorze Hayek discute as bases poltico filosficas de atuao do governo

    na vida econmica da sociedade e compara "o setor pblico e o setor

    privado", onde indica "o vasto campo dessas atividades perfeitamente

    legtimas que o governo, enquanto administrador de recursos comuns,

    pode exercer". Mas o que realmente se deve destacar neste captulo o

    preceito de que, embora a prestao de certos servios pelo governo possa

    vir a ser a forma mais eficaz de propici-los, isso no significa que,

    enquanto responsvel por eles, o governo precise ou deva arrogar-se

    quaisquer atributos de autoridade e respeito a quem faz jus no exerccio de

    suas funes precpuas na aplicao das leis e na defesa contra o inimigo.

    "No h razo alguma", diz ele, "para que essa autoridade ou direito

    exclusivo sejam transferidos aos rgos prestadores de servios de carter

    puramente utilitrios, confiados ao governo porque somente ele capaz de

    financi-los. Nada h de repreensvel em tratar esses rgos como aparelhos

    puramente utilitrios, to teis quanto o aougue ou a padaria, no mais

    que isso e, de certo modo, mais suspeitos em razo dos poderes

    coercitivos de que podem valer-se para cobrir seus custos. A democracia

    moderna, se tantas vezes incapaz de mostrar, pela lei, o respeito que lhe

  • 32

    devido, tende tambm a exaltar indevidamente o papel do Estado em suas

    funes de provedor de servios e reivindicar para ele, nessa qualidade,

    privilgios que s deveria possuir enquanto defensor da lei e da ordem."

    A frase de Ludwig von Mises: "A verdadeira economia de mercado

    pressupe que o governo, o aparelho social de compulso e coero,

    empenha-se em preservar o funcionamento do sistema de mercado,

    abstm-se de obstru-lo e o protege contra a intromisso de outrem",

    colocada no inicio do Captulo Quinze (intitulado "A poltica

    governamental e o mercado"), representa bem o contedo do mesmo, que

    discorre magistralmente sobre a concorrncia, ou seja, sobre o mercado

    livre. Basta notar algumas das frases que constam do sumrio do captulo

    para se sentir atrado pela sua leitura detida: "As vantagens da concorrncia

    no dependem de sua 'perfeio' "; "A concorrncia () como um processo

    de descoberta"; "Se as condies factuais da concorrncia 'perfeita' esto

    ausentes, no possvel obrigar as empresas a agirem 'como se' ela

    existisse". Aqui ele trata tambm dos aspectos polticos do poder

    econmico e entra no mago da questo dos monoplios, mostrando

    quando o monoplio se torna pernicioso e as contradies existentes na

    questo da legislao contra os monoplios. E, quando se encontra nesse

    captulo tambm a demonstrao de que a maior ameaa liberdade "no

    o egosmo individual mas sim o grupai", logo se concluir sobre o quo

    perniciosas, fteis, desnecessrias e contraproducentes so no s todas as

    atividades governamentais de controle de preos, de redistribuio de

    rendas e, enfim, de planificao da economia, mas tambm a ao

    monopolstica sindical: "O que bloqueia cada vez mais a atuao das foras

  • 33

    espontneas do mercado no o que o pblico tem em mente quando se

    queixa dos monoplios, mas as ubquas associaes de classe e os sindicatos

    das diversas categorias de trabalhadores. Eles atuam fundamentalmente por

    meio da presso que podem exercer sobre o governo com o objetivo de

    for-lo a 'regular' o mercado em seu beneficio".

    Um dos mais graves mitos das ltimas dcadas a ideia de que o

    desenvolvimento de grupos organizados com o propsito de exercer

    presso sobre o governo democrtico inevitvel; e de que, to logo todos

    os grupos importantes estiverem igualmente organizados em condies de

    se contrabalanarem uns aos outros, todos os efeitos perniciosos hoje

    observados no movimento coletivista sero sanados. Hayek diz que

    possvel demonstrar a falsidade dessas concepes e o faz: mostra que s

    vale a pena pressionar o governo quando este possui poderes arbitrrios e

    discricionrios, o que acontece apenas quando ele "est autorizado a

    estabelecer e aplicar normas direcionadas e discriminatrias", autorizao

    que, no final das contas, lhe fornecida pelos prprios grupos de presso

    organizados. E cita um importante estudo de M. Olson o qual demonstra

    que a existncia de interesses comuns no leva, em geral, formao

    espontnea de uma abrangente organizao, j que s grupos relativamente

    pequenos formam uma organizao espontnea. Esse estudo tambm

    destaca que a organizao sempre propiciada pelos governos de

    determinados grandes grupos d lugar a uma persistente explorao de

    grupos no organizados ou no organizveis aos quais "parecem pertencer

    importantes grupos, como os consumidores em geral, os contribuintes, as

    mulheres, os idosos e muitos outros que, em conjunto, formam um

  • 34

    contingente significativo da populao. Todos eles esto fadados a sofrer as

    consequncias do poder de grupos de presso organizados".

    No Capitulo Dezesseis Hayek enfatiza, recapitulando, as razes do

    malogro do ideal democrtico. Por ter sido posto em prtica de maneira

    errada o principio da democracia, e agravado pela constante ampliao do

    campo de sua aplicao, "nmero cada vez maior de homens sensatos e

    bem intencionados est pouco a pouco perdendo a f no que outrora foi,

    para eles, o estimulante ideal da democracia". Originalmente, a democracia

    significava apenas um certo procedimento, um mtodo especfico, para se

    chegar a decises polticas, nada dizendo, entretanto, essas decises, sobre

    quais deviam ser os objetivos do governo. Era, e continua sendo, o nico

    mtodo de mudana pacfica dos governantes j descoberto pelos homens.

    Mas na sua forma atual, que nada mais que "uma democracia de

    barganha", um mero "joguete dos interesses de grupos", ela decepciona

    amargamente a todos aqueles que acreditavam no principio de que o

    governo deveria ser norteado pela verdadeira opinio da maioria.

    Como se criou essa situao? o que pergunta e responde o prprio

    Hayek ao longo deste capitulo. E em resumo ele diz: "Por dois sculos,

    desde o fim da monarquia absoluta at o surgimento da democracia

    irrestrita, a grande meta do governo constitucional foi limitar todos os

    poderes governamentais. Os princpios bsicos gradualmente estabelecidos

    para impedir lodo exerccio arbitrrio do poder foram a separao dos

    poderes, o estado de direito, o governo submetido ao direito, a distino

    entre o direito pblico e o privado e as normas de procedimento jurdico.

  • 35

    Todos esses princpios ajudaram a definir e limitar as condies em que

    qualquer coero sobre os indivduos era admissvel.

    Considerava-se que s o interesse geral justificava a coero. E

    apenas a coero de acordo com normas uniformes aplicveis igualmente a

    todos era reputada do interesse geral. Todos esses importantes princpios

    liberais foram relegados a segundo plano e parcialmente esquecidos quando

    se passou a acreditar que o controle democrtico do governo tornara

    dispensveis quaisquer outras salvaguardas contra o uso arbitrrio do

    poder. O que se verificou foi no tanto o esquecimento dos velhos

    princpios, mas o esvaziamento do significado de seus termos tradicionais

    por meio da gradual modificao do sentido das palavras-chave neles

    empregadas. O mais importante desses termos, de que dependia o

    significado das frmulas clssicas da constituio liberal, era 'Lei' (e

    'Direito'), e todos os velhos princpios perderam o sentido medida que o

    contedo dessa palavra foi modificado".

    O que aconteceu com o surgimento do democratismo a partir

    finalmente de meados do sculo XIX foi que o poder de estabelecer leis e o

    poder governamental propriamente dito se tornaram completamente

    entrelaados, desaparecendo o no muito que existia da doutrina da

    separao de poderes. O efeito dessa apenas aparente vitria do ideal

    democrtico foi o de dar autoridade governamental que conseguisse

    qualquer tipo de composio majoritria no seio das foras poltico

    eleitorais e das organizaes sindicais todas as condies para estabelecer

    para si mesma as 'leis' que melhor favorecessem a consecuo de seus

    objetivos imediatos. Essa democracia profundamente enftica quanto

  • 36

    representatividade popular majoritria no governo era produto do conceito

    de Rousseau que, em seu Contrato Social de 1762, associou ao povo a ideia

    da soberania suprema e ilimitada, sem deixar, no entanto, a no ser a

    ambgua concepo da 'vontade geral', quaisquer princpios que definissem

    o que era a lei de verdade e como o povo deveria legislar. Caracterstica do

    democratismo rousseauniano que imperava em fins do sculo XIX e que

    ainda tpico dos dias atuais nos chamados pases democrticos a

    seguinte parte de um discurso demaggico do poltico ingls Joseph

    Chamberlain, proferido em Londres em 1885: "Quando o governo era

    representado apenas pela autoridade da Coroa e pelas opinies de uma

    determinada classe, posso compreender que era o dever primeiro dos

    homens que davam valor a sua liberdade restringir sua autoridade e limitar

    seus gastos. Mas tudo isso est mudado. Agora, o governo a expresso

    organizada das vontades e das carncias do povo e, portanto, devemos

    deixar de olh-lo com suspeita. A suspeita o produto dos velhos tempos,

    de circunstncias que desapareceram h bastante tempo. Agora nossa

    obrigao estender suas funes e verificar de que maneira suas operaes

    podem ser vantajosamente ampliadas".

    A consequncia dessa evoluo degenerativa foi o fim do princpio

    do governo submetido lei e o retrocesso ao governo com poderes

    ilimitados como era nas monarquias absolutas. Mas muito mais profundo

    foi "o efeito de privar de seu significado o prprio conceito de lei. O

    pretenso legislativo j no se restringia (como John Locke o prescrevera)

    formulao de leis no sentido de normas gerais. Tudo que o 'legislativo'

    decidisse passou a ser chamado de 'lei', e o rgo j no era chamado de

  • 37

    legislativo porque estabelecia leis, e sim 'lei' passou a ser a designao de

    tudo que emanasse do legislativo. A consagrada palavra 'lei' perdeu, assim,

    seu antigo significado, convertendo-se na designao das determinaes de

    um governo que os pais do constitucionalismo teriam qualificado de

    arbitrrio. A tarefa de governar transformou-se na principal ocupao do

    'legislativo' e a funo de legislar foi subordinada a essa tarefa de governar".

    As consequncias do democratismo associado corrupo

    (acalentada pelo positivismo jurdico e pelo socialismo) do conceito

    originai de lei no se revelaram de imediato, como diz Hayek: "Por algum

    tempo, as tradies desenvolvidas no perodo do constitucionalismo liberal

    (principalmente no sculo XVI11 e at meados do sculo XIX) atuaram

    como um freio expanso do poder governamental". No entanto, "sempre

    que foram imitadas em partes do mundo onde essas tradies do

    liberalismo clssico no existiam, semelhantes formas de democracia

    sucumbiram rpida e invariavelmente". Mas, nos pases com mais longa

    experincia constitucional representativa, as barreiras liberais clssicas ao

    uso arbitrrio do poder "foram minadas, de incio, em funo de motivos

    inteiramente benvolos". Passou-se a adotar nas 'democracias' que a

    discriminao para auxiliar os menos afortunados no deveria ser

    considerada discriminao. E, para colocar em condies materiais mais

    equitativas pessoas (que passaram a ser absurdamente chamadas de 'menos

    privilegiadas') com inevitveis diferenas em muitas das circunstncias da

    vida das quais depende seu sucesso material, os governos comearam a

    tratadas de forma desigual, rompendo o princpio fundamental de

    igualdade de tratamento perante a lei. Sob "o embuste da frmula de 'justia

  • 38

    social'", os governos dessas democracias converteram-se "em instituies de

    caridade expostas a incontrolvel extorso".

    Hayek esclarece que "uma assembleia representativa nominalmente

    ilimitada (soberana) ser cada vez mais impelida a promover uma

    constante e irrestrita expanso dos poderes do governo". E que esse

    agigantamento "s pode ser evitado pela diviso do poder supremo entre

    duas diferentes assembleias democraticamente eleitas, i. e., pela aplicao

    do princpio da separao dos poderes no mais alto nvel".

    A separao de poderes foi o princpio doutrinrio de governo que os

    fundadores do constitucionalismo liberal e do governo representativo

    desenvolveram a partir do sculo XVII para limitar, os poderes

    monrquicos, visando salvaguarda da liberdade individual. Os trs

    fundamentos dessa doutrina eram: 1) que a atividade legislativa no deveria

    ser levada a cabo pelas mesmas pessoas que executassem as leis; 2) que

    somente seriam reconhecidas como leis aquelas que fossem "normas gerais

    de conduta justa individual, idnticas para todos e aplicveis a um nmero

    desconhecido de casos futuros"; e 3) que a coero (pelo governo ou por

    qualquer outra pessoa ou grupo) somente seria admitida para fazer valer ou

    executar a lei. Essa verso mais pura da separao de poderes contm,

    portanto, o sentido do estado de direito, pois se os homens devem ser

    governados por leis imparciais (as normas gerais de conduta justa), aqueles

    que fazem as leis no podem tambm julgar nem punir as violaes das leis;

    e se aqueles que executam as leis tambm possuem poder legislativo para

    mudar as limitaes legais sob as quais eles agem, ento eles estaro, para

  • 39

    todos os efeitos, desvinculados das normas gerais do direito, sendo,

    portanto, nada menos que soberanos arbitrrios.

    Aps demonstrar com argumentos persuasivos por que se deu o

    malogro das instituies representativas, Hayek prope no Captulo

    Dezessete as linhas mestras de um modelo constitucional que corrigiria os

    sistemas existentes naqueles aspectos que provocaram o desvirtuamento

    das ideias originais tanto da democracia quanto do constitucionalismo

    representativo. A constituio que se desenvolvesse com base nesse modelo

    levaria a uma reformulao realmente revolucionria das atuais formas de

    governo, permitindo o surgimento de um novo sistema poltico (que seria

    chamado 'demarquia' como pretendeu Hayek), sensivelmente diferente dos

    que temos hoje nas chamadas democracias ocidentais. As duas atribuies

    distintas, a da legislao (no seu autntico sentido clssico e no na forma

    degenerada que hoje se observa) e a do governo, no sentido estrito de

    administrar a coisa pblica, teriam de ser executadas, nesta nova estrutura

    organizacional, por duas entidades democrticas diferentes e totalmente

    independentes entre si, com funes inteiramente distintas e nitidamente

    separadas. Estas duas entidades no seriam s duas assembleias

    representativas separadas apenas formalmente, como ocorre hoje: seriam

    escolhidas e organizadas com base em dois princpios completamente

    diferentes, e, pela primeira vez, existiria uma verdadeira separao de

    poderes.

    A entidade executiva governamental seria algo mais ou menos no

    gnero do que existe hoje nos pases democrticos mais evoludos do

    ocidente, cuja organizao e maneira de proceder se conformaria,

  • 40

    entretanto, necessidade de governar (administrar) e no necessidade de

    legislar. Compreenderia um rgo governamental executivo e uma

    assembleia governamental de representantes (ou deputados), ambos

    compostos de membros eleitos pelo mtodo democrtico convencional, nos

    moldes dos atualmente adotados, inclusive obedecendo a esquemas

    partidrios. Algo muito diferente seria necessrio para a constituio de

    uma verdadeira assembleia legislativa. O que se quer uma assembleia que

    no leve em conta as necessidades ou os interesses de determinados grupos

    ou faces mas os princpios gerais permanentes sobre os quais estariam

    ordenadas as atividades da comunidade. Seus membros e resolues

    representariam no grupos especficos e seus anseios particulares, mas a

    opinio predominante a respeito do tipo de conduta considerada justa. Para

    estabelecer as normas de conduta justa que deveriam vigorar por muito

    tempo, e que seriam iguais para todos e sempre prospectivas, esta

    assembleia teria de ser representativa, ou seja, reproduziria uma espcie de

    corte transversal das opinies predominantes sobre o certo e o errado; seus

    membros no poderiam ser os porta-vozes de interesses particulares ou

    expressar a 'vontade' de um setor especfico da populao. Seriam homens e

    mulheres de elevada confiana e respeitados pelos traos de carter

    demonstrados nos seus afazeres normais e no precisariam da aprovao de

    grupos especficos de eleitores ou de partidos polticos. A disciplina

    partidria, necessria para a unidade de uma equipe de governo, na

    entidade executiva governamental, , entretanto, evidentemente indesejvel

    num organismo legislativo que estabelece normas gerais de conduta e que,

    portanto, limitam os poderes do governo. Por isso, a eleio democrtica

  • 41

    dos legisladores neste novo sistema de governo baseado na liberdade no

    teria qualquer relao partidarista7.

    Alm de discutir os princpios gerais que norteariam essa

    constituio ideal, Hayek entra em pormenores sobre cada um dos poderes

    principais que comporiam o novo sistema bem como sobre os mtodos

    democrticos que seriam utilizados para a eleio de seus membros. Trata

    tambm da importante questo dos 'poderes de emergncia' que a

    constituio deveria prever, e das profundas e benficas modificaes no

    campo das finanas pblicas e da tributao que essas novas disposies

    constitucionais produziriam.

    Antes de apresentar o notvel Eplogo, "As Trs Fontes de Valores

    Humanos" (que parece ser uma espcie de pr-apresentao da linha

    que pode ser considerado um captulo de sinopse e concluses. Ele de incio

    destaca que a "limitao efetiva do poder o problema mais importante da

    ordem social". E acentua que o governo s indispensvel formao de

    uma ordem social na medida em que possa dar a todos "proteo contra a

    coero e a violncia praticadas pelos demais". E conclui ao fim deste

    Captulo Dezoito: "O que tentei esboar nestes volumes (e no ensaio que fiz

    cm separado sobre o papel da moeda numa sociedade livre8) foi traar um

    roteiro que nos permita escapar ao processo de degenerao da forma

    7 Veja discusso sobre "Um Legislativo sem Partidarismo", Henry Maksoud (org.), Editora Viso Ltda.,

    1984, So Paulo.

    8 Ele se refere ao seu trabalho sobre desestatizao da moeda que pode ser examinado em

    "Denationalisation of Money", F. A. Hayek, Hobart Paper 70, The Institute of Economics Affairs, London.

    1978.

  • 42

    existente de governo, bem como elaborar uma instrumentao intelectual

    de emergncia que esteja ao nosso alcance quando no tivermos outra

    escolha seno substituir a estrutura insegura por uma edificao mais

    slida, em vez de recorrer, em desespero, a alguma forma de regime

    ditatorial. Um governo necessariamente produto de criao intelectual. Se

    pudermos dar-lhe uma conformao que o induza a fornecer uma estrutura

    benfica ao livre desenvolvimento da sociedade, sem dar a ningum o

    poder de controlar as particularidades desse desenvolvimento, poderemos

    ter esperanas de assistir evoluo contnua da civilizao".

    Hayek mostra, mais uma vez, nesta sua obra que "para evitar destruir

    nossa civilizao pela asfixia do processo espontneo de interao dos

    indivduos" precisamos abandonar a iluso (e deixar de aceitar a pregao

    correspondente dos intelectuais socialistas de nossos dias) de que podemos

    'criar o futuro da humanidade', encarregando o governo de dirigir a vida

    dos indivduos na sociedade.

    So Paulo, abril de 1985

    HENRY MAKSOUD

  • 43

    Prefcio Edio Brasileira

    O avano das ideias de um indivduo um processo lento. , portanto, uma

    recompensa muito gratificante, pelo esforo despendido, quando, ainda que

    no acaso da vida, a pessoa v que suas ideias vo sendo divulgadas com uma

    rapidez que se aproxima da prpria progresso das mesmas. H apenas dois

    anos tive a oportunidade de escrever o prefcio edio brasileira de um

    livro meu publicado pela primeira vez h mais de vinte anos; agora,

    prefacio uma obra cuja ltima parte conclu h apenas seis anos, enquanto

    me preparo para enviar aos editores, dentro de poucos meses, a primeira

    parte de meu ltimo livro. Tudo isso evidentemente o resultado de um

    trabalho contnuo que venho realizando h muito mais tempo. Faz agora

    quarenta anos que comecei a desviar-me da teoria pura da economia para

    empreender uma anlise das razes que tanto perverteram as polticas neste

    campo na maior parte do mundo. Isso fez com que cada vez mais eu me

    afastasse dos aspectos tcnicos da economia para estudar os problemas da

    filosofia e particularmente os motivos pelos quais o prprio aumento da

    capacidade de compreenso do homem levou-o a exagerar os poderes da

    razo humana e a acreditar que ele poderia organizar deliberadamente a seu

    bel-prazer o padro da interao humana, embora a vasta ordem das

    interaes humanas, da qual dependemos, exceda claramente o poder de

    nossa percepo e conhecimento. No tenho a pretenso de j haver

    conseguido algo como o conhecimento definitivo a respeito desses

    problemas isso para sempre negado ao homem. Mas acredito ter

    descoberto as origens de alguns dos mais perigosos erros correntes que

  • 44

    constituem uma grave ameaa ao futuro da humanidade, e no cessarei de

    combat-los enquanto tiver foras para tanto.

    Freiburg im Breisgau, maio 1984

    F.A. HAYEK

  • 45

    Prefcio

    Este o primeiro dos trs volumes em que me pareceu conveniente dividir

    a discusso do amplo tema indicado pelo titulo geral. De acordo com o

    plano do conjunto esboado na Introduo, ser seguido por um segundo

    volume, que abordar 'A miragem da justia social', e por um terceiro, cujo

    assunto ser 'A ordem poltica de uma sociedade livre'. Visto que uma

    primeira verso destes dois ltimos volumes j foi escrita, espero poder

    public-los num futuro prximo. O leitor interessado em saber aonde

    conduzir a argumentao encontrar nesse meio tempo algum indcio

    numa srie de estudos preliminares publicados ao longo dos anos em que

    este trabalho esteve em preparo, reunidos em parte nos meus Studies in

    Philosophy, Politics, and Economics (Londres e Chicago, 1967) e, de modo

    mais completo (mas em alemo), nos meus Freiburger Studien (Tbingen,

    1969).

    Seria impossvel agradecer aqui, citando-os, a todos os que me

    auxiliaram de diversas maneiras durante os dez anos em que este trabalho

    me ocupou. Mas h uma dvida de gratido que cumpre reconhecer

    especificamente. O professor Edwin McClellan, da Universidade de

    Chicago, novamente, como o fez em outra ocasio, deu-se ao grande

    trabalho de tornar minha exposio mais legvel do que eu prprio o

    poderia ter feito. Sou profundamente grato a esse esforo solidrio, mas

    devo acrescentar que, como o manuscrito com que trabalhou sofreu

    posteriormente outras alteraes, ele no deve ser considerado responsvel

    por quaisquer falhas que a verso final possa apresentar.

  • 46

  • Introduo

    Parece haver uma nica soluo para o problema: tornar-se a elite da

    humanidade consciente das limitaes da mente humana ao

    mesmo tempo simples e profunda, humilde e sublime para que a

    civilizao ocidental passe a aceitar essas deficincias inevitveis.

    G. FERRERO*

    Quando Montesquieu e os autores da Constituio dos Estados Unidos da

    Amrica formularam o conceito de constituio limitativa1, que se

    desenvolvera na Inglaterra, fixaram o modelo seguido desde ento pelo

    constitucionalismo liberal. Seu objetivo maior era estabelecer salvaguardas

    institucionais para a liberdade individual; e o dispositivo que lhes pareceu

    mais confivel foi a separao de poderes. Essa diviso de poderes entre

    legislativo, judicirio e executivo, na forma em que a conhecemos, no

    alcanou o que dela se pretendia: governos de todo o mundo obtiveram,

    por meios constitucionais, poderes que aqueles homens lhes tinham

    pretendido negar. A primeira tentativa de assegurar a liberdade individual

    por meio de constituies evidentemente fracassou.

    * Guglielmo Ferrero, The Principies of Power (Nova Iorque, 1942), pgina 318. O pargrafo do qual a

    citao foi extrada comea da seguinte maneira: 'A ordem o exaustivo trabalho de Ssifo da

    humanidade, em relao ao qual esta se encontra em constante estado de conflito potencial (...)'.

    1 A expresso consagrada, de uso corrente nos sculos XVIII e XIX, 'constituio limitada', mas

    'constituio limitativa' tambm aparece ocasionalmente na literatura mais antiga.

  • 48

    Constitucionalismo significa governo com poderes limitados2. Mas a

    interpretao dada s frmulas tradicionais de constitucionalismo tornou

    possvel concili-las com um conceito de democracia segundo o qual essa

    uma forma de governo cm que a vontade da maioria, no tocante a qualquer

    questo, ilimitada3. Em consequncia, j se chegou mesmo a afirmar que

    as constituies so remanescentes obsoletos, incompatveis com o conceito

    moderno de governo*4. De fato, que papel desempenha uma constituio

    que torna possvel um governo onipotente? Ser sua funo simplesmente

    permitir a atuao desimpedida e eficaz do governo, sejam quais forem os

    objetivos deste?

    Diante disso, seria importante indagar o que fariam hoje os

    fundadores do constitucionalismo liberal se, visando aos mesmos objetivos

    de outrora, pudessem usufruir de toda a experincia que adquirimos desde

    ento. Deveramos ter extrado, da histria dos ltimos duzentos anos, um

    conhecimento de que aqueles homens, com toda a sua sabedoria, no

    podiam dispor. A meu ver, seus objetivos permanecem vlidos como

    2 Ver K. C. Wheare, Modern Constitutions, edio revista (Oxford, 1960), pgina 202: 'a ideia original

    subjacente [s constituies] a de limitar os poderes do governo e exigir dos governantes submisso a

    leis e normas'; ver tambm C. H. Mcllwain, Constitutionalism: Ancient and Modern, edio revista (Ithaca,

    N.Y. 1958), pgina 21: 'Todo governo constitucional por definio governo com poderes limitados (...) o

    constitucionalismo tem uma qualidade essencial: uma limitao legal imposta ao governo; a anttese

    do governo arbitrrio; seu oposto e o governo desptico, o governo da vontade'; C. J. Friedrich,

    Constitutional Government and Democracy (Boston, 1941), especialmente a pgina 131, onde se define

    constituio como 'o processo pelo qual a ao governamental efetivamente restringida'.

    3 Ver Richard Wollheim, 'A paradox in the theory of democracy', em Peter Laslett e W. G. Runciman

    (eds.), Philosophy, Polities and Society, segunda srie (Oxford, 1962), pgina 72: 'a concepo moderna de

    Democracia t a de uma forma de governo em que no se impe restrio alguma ao corpo governante'.

    4 Ver George Burdeau, 'Une Survivance: Ia notion de constitution', em L'Evolution du cIroir public, iudes

    offertes Achille Mestre (Paris, 1956).

  • 49

    sempre o foram, mas, j que os meios de que lanaram mo se mostraram

    inadequados, faz-se necessrio inovar no campo institucional.

    Em outro livro tentei reformular a doutrina tradicional do

    constitucionalismo liberal, e espero ter conseguido elucid-la em alguma

    medida5. No entanto, s depois de estar o livro concludo percebi

    nitidamente por que aqueles ideais no tinham conseguido preservar a

    adeso dos idealistas, responsveis por todos os grandes movimentos

    polticos, e compreendi quais das convices dominantes de nossa poca se

    revelaram incompatveis com tais ideais. Vejo agora que isso se deveu

    principalmente perda da f numa justia desvinculada do interesse

    pessoal; consequentemente, ao emprego da legislao como forma de

    autorizar a coero, no s para impedir a ao injusta, mas para garantir

    determinados resultados a pessoas e grupos especficos; e fuso, nas

    mesmas assembleias representativas, de duas tarefas, a de formular normas

    de conduta justa e a de dirigir o governo.

    O que me levou a escrever mais um livro sobre o mesmo tema geral

    abordado pela obra anterior foi o reconhecimento de que a preservao de

    uma sociedade de homens livres depende da compreenso de trs ideias

    fundamentais que nunca foram adequadamente elucidadas, e s quais so

    dedicadas as trs partes principais desta obra. A primeira que ordem

    autogeradora, ou espontnea, e organizao so duas coisas distintas, e que

    essa distino est relacionada aos dois tipos de normas ou leis que

    predominam em cada uma delas. A segunda que o que hoje geralmente

    5 Ver F. A. Hayek, The Constitution of Liberty (Londres e Chicago, 1960); Os fundamentos da liberdade

    (So Paulo e Braslia, 1983).

  • 50

    considerado justia 'social' ou distributiva s tem sentido no interior da

    segunda dessas duas formas de ordem, a organizao, mas no tem sentido

    algum na ordem espontnea chamada por Adam Smith de 'Grande

    Sociedade' e por Sir Karl Popper de 'Sociedade Aberta', sendo com ela

    totalmente incompatvel. A terceira que o modelo dominante de

    instituio democrtica liberal, em que mesmo organismo representativo

    estabelece as normas de conduta justa e dirige o governo, leva uma

    transformao gradual da ordem espontnea de uma sociedade livre em um

    sistema totalitrio posto a servio de alguma coalizo de interesses

    organizados.

    Espero demonstrar que essa transformao no decorre

    forosamente da democracia sendo apenas resultado daquela forma

    especfica de governo com poderes ilimitados com a qual a democracia

    passou a ser identificada. Se meu ponto de vista estiver correto, concluir-se-

    , de fato, que a forma de governo representativo hoje predominante no

    mundo ocidental que muitos se sentem no dever de defender por

    consider-la, erroneamente, a nica forma possvel de democracia tem a

    tendncia inerente de se afastar dos ideais a que deveria servir. No se pode

    negar que, a partir do momento em que esse gnero de democracia foi

    aceito, afastamo-nos progressivamente do ideal de liberdade individual que

    ela era considerada a melhor salvaguarda, e vemo-nos agora impelidos para

    um sistema que ningum desejava.

    Contudo, no faltam indcios de que a democracia ilimitada caminha

    para um abismo, no qual cair no com uma exploso, mas com um

  • 51

    suspiro*. J se torna evidente que muitas das expectativas por ela

    des