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O problema dos fins das penas Teorias absolutas. A teoria da retribuição. A essência da pena criminal incide na retribuição da mesma ao comportamento ilícito do agente que se comina no crime – é a compensação do mal gerado pelo crime, e aí se esgota. Há uma correspondência entre a pena e o facto porque a pena é “a justa paga do mal”. A pena funciona como um castigo. A “compensação” de que a retribuição se nutre só pode ser feita em função da ilicitude do facto e da culpa do agente. Se a culpa como princípio é a máxima de um direito penal humano, civilizado e democrático, então, não pode haver pena sem culpa e a medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a da culpa. A teoria da retribuição como teoria dos fins das penas deve ser recusada pela sua inadequação à legitimação, à fundamentação e ao sentido da intervenção penal. O Estado democrático actual não se pode basear em entidades sancionadores do pecado e do vício mas tem de limitar-se a proteger os bens jurídicos. A doutrina retributiva também se acaba por revelar não só estranha, mas no fundo inimiga do delinquente por afastar qualquer tentativa de socialização do mesmo e da restauração da paz da comunidade afectada pelo crime. Teorias relativas: a pena como instrumento de prevenção. Estas teorias também reconhecem que a pena se traduz num mal para que o sofre; mas, como instrumento político- criminal, não pode a pena bastar-se com essa característica. A pena como instrumento de prevenção geral. A concepção da pena como instrumento político-criminal destina-se a actuar (psicologicamente) sobre a generalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes através da ameaça penal estatuída pela lei. A pena pode ser concebida, por um lado, como forma estatalmente acolhida de intimidação das outras pessoas através do sofrimento com que ela se inflige ao delinquente e cujo receio as conduzirá a não cometerem factos puníveis – prevenção geral negativa ou de intimidação. Mas, por outro lado, a pena pode ser concebida como forma de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal – é a 1

Direito Penal I a Doutrina Geral Do Crime

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O problema dos fins das penas

Teorias absolutas. A teoria da retribuição. A essência da pena criminal incide na retribuição da mesma ao comportamento ilícito do agente que se comina no crime – é a compensação do mal gerado pelo crime, e aí se esgota. Há uma correspondência entre a pena e o facto porque a pena é “a justa paga do mal”. A pena funciona como um castigo. A “compensação” de que a retribuição se nutre só pode ser feita em função da ilicitude do facto e da culpa do agente. Se a culpa como princípio é a máxima de um direito penal humano, civilizado e democrático, então, não pode haver pena sem culpa e a medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a da culpa. A teoria da retribuição como teoria dos fins das penas deve ser recusada pela sua inadequação à legitimação, à fundamentação e ao sentido da intervenção penal. O Estado democrático actual não se pode basear em entidades sancionadores do pecado e do vício mas tem de limitar-se a proteger os bens jurídicos. A doutrina retributiva também se acaba por revelar não só estranha, mas no fundo inimiga do delinquente por afastar qualquer tentativa de socialização do mesmo e da restauração da paz da comunidade afectada pelo crime.

Teorias relativas: a pena como instrumento de prevenção. Estas teorias também reconhecem que a pena se traduz num mal para que o sofre; mas, como instrumento político-criminal, não pode a pena bastar-se com essa característica. A pena como instrumento de prevenção geral. A concepção da pena como instrumento político-criminal destina-se a actuar (psicologicamente) sobre a generalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes através da ameaça penal estatuída pela lei. A pena pode ser concebida, por um lado, como forma estatalmente acolhida de intimidação das outras pessoas através do sofrimento com que ela se inflige ao delinquente e cujo receio as conduzirá a não cometerem factos puníveis – prevenção geral negativa ou de intimidação. Mas, por outro lado, a pena pode ser concebida como forma de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal – é a prevenção geral positiva ou de integração. O grande argumento que sempre se repete contra as doutrinas de prevenção geral é o de que elas fazem da pena um instrumento que viola, de forma inadmissível, a dignidade da pessoa humana. A pena como instrumento de prevenção especial ou individual. Estas doutrinas têm como denominador comum a ideia de que a pena é um instrumento de actuação preventiva sobre a pessoa do delinquente com o fim de evitar que, no futuro, ele cometa crimes. Fala-se, neste sentido, de uma prevenção de reincidência. Para uns, a “correcção” do delinquente será uma utopia, pelo que só se pode falar de intimidação individual quando se dirige à prevenção especial: a pena visaria intimidar o delinquente ate um ponto em que ele não repetiria, no futuro, a prática de crimes. Enquanto para outros, a prevenção especial lograria alcançar um efeito de pura defesa social através da separação ou segregação do delinquente, procurando atingir-se a neutralização da sua perigosidade social – prevenção especial negativa.

A lei penal e a sua aplicação

O princípio da legalidade da intervenção penal. O princípio nullum crimen, nulla poena sine lege. O princípio do Estado de Direito conduz a que a protecção dos direitos, liberdades e garantias seja levada a cabo não apenas através do direito penal, mas também perante o direito penal. Há que ter em conta que a possibilidade de arbítrio ou de excesso se ocorre submetendo a intervenção penal a um rigoroso princípio de

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legalidade, cujo conteúdo essencial se traduz em que não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (nullum crimen, nulla poena sine lege). A norma contida no art. 29º/2 CRP confere jurisdição aos tribunais portugueses para conhecerem de certos crimes contra o direito internacional, mesmo que as condutas visadas não sejam puníveis à luz da lei positiva interna. Necessário é porém que se trate de crimes à luz dos “princípios gerais do direito internacional comummente reconhecidos” (8º/1 CRP) e a punição só pode ter lugar nos limites da lei interna. A ideia de que o direito internacional pode impor directamente deveres de natureza penal aos indivíduos consolidou-se a partir dos julgamentos de Nuremberga e de Tóquio, onde as potencias aliadas julgaram e condenaram membros das forças do Eixo por violações graves do direito internacional (crimes contra a paz e a humanidade e crimes de guerra) que não eram punidas pela lei internacional desses países. Deste modo, o art. 29º/2 CRP parece ter adoptado a concepção segundo a qual a responsabilidade por crimes contra o direito internacional não se encontra sujeita ao princípio da legalidade previsto no 29º/1, válido apenas para a lei estadual. Porém, hoje é seguro que o princípio nullum crimen, nulla poena sine lege constitui um princípio geral de direito internacional, embora o seu “modo” seja diverso, uma vez que no termo de lege se inclui também o direito (internacional) costumeiro. De toda a maneira, a importância do problema tem vindo a reduzir-se progressivamente desde o fim da II Guerra por força da cristalização positiva do direito costumeiro em várias convenções internacionais, cujas normas os Estados vão incorporando no seu direito interno.

O princípio da legalidade da intervenção penal possui uma pluralidade de fundamentos, uns externos (isto é, ligados à concepção fundamental do Estado), outros internos (de natureza especificamente jurídico-penal). Entre os primeiros avultam o princípio liberal, o princípio democrático e o princípio da separação de poderes. De acordo com o princípio liberal, toda a actividade intervencionista do Estado na esfera de direitos, liberdades e garantias das pessoas tem de ligar-se à existência de uma lei e mesmo de uma lei geral, abstracta e anterior (18º/2 CRP). De acordo com os princípios democrático e da separação de poderes, para a intervenção penal, com o seu particular peso e magnitude, só se encontra legitimada a instância que represente o Povo como titular último de ius puniendi, da exigência de uma lei formal emanada do Parlamento ou por ele competentemente autorizado (165º/1, c) CRP).

Entre os fundamentos internos costumam apontar-se a ideia da prevenção geral e o princípio da culpa. Com razão. Não pode esperar-se que a norma cumpra a sua função motivadora do comportamento da generalidade dos cidadãos se aqueles não puderem saber, através de lei anterior, estrita e certa, por onde passa a fronteira que separa os comportamentos criminalmente puníveis dos não puníveis. Como não seria legítimo dirigir a alguém a censura por ter actuado de certa maneira se uma lei com aquelas características não considerasse o comportamento respectivo como crime.Nullum crimen sine lege. O princípio segundo o qual não há crime sem lei anterior que como tal preveja uma certa conduta significa que, por mais socialmente nocivo e reprovável que se afigure um comportamento, tem o legislador de o considerar como crime (descrevendo-o e impondo-lhe como consequência jurídica uma sanção criminal) para que ele possa como tal ser punido.

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Nulla poena sine lege. A fórmula “não há crime sem lei” é complementada pela fórmula "não há pena (sanção criminal, pena ou medida de segurança) sem lei”. Na interpretação desta fórmula verificam-se todavia algumas dificuldades: desde logo cumpre dizer que, entre nós, também este segmento do princípio tem expressão consagração jurídico-constitucional e legal. Nesse sentido afirma logo o 29º/3 CRP que “não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior”. No que toca às penas, esta exigência de lex praevia correspondente à doutrina penal dominante. Este princípio, por outro lado, significa ser completamente vedado ao juiz criar instrumentos sancionatórios que não se encontrem estritamente previstos em lei anterior. O princípio da legalidade assume consequências em cinco planos diversos: no plano do âmbito ou da extensão; no plano da fonte, no plano da determinabilidade, no plano da proibição da analogia e no plano da proibição de retroactividade.

i. O plano do âmbito de aplicação. Neste plano cumpre assinalar que o princípio da legalidade não cobre, segundo a sua função e o seu sentido, toda a matéria penal, mas apenas a que se traduz em fundamentar ou agravar a responsabilidade do agente. Por exemplo, o princípio cobre toda a matéria relativa ao tipo de ilícito ou ao tipo de culpa, mas já não a que respeita às causas de justificação ou às causas de exclusão de culpa.

ii. O plano da fonte. Neste plano o princípio conduz à exigência de lei formal: só uma lei da AR ou por ela competentemente autorizada pode definir o regime dos crimes, das penas e das medidas de segurança e seus pressupostos. E esta exigência tanto se aplica à função de criminalização como de descriminalização.

iii. A determinabilidade do tipo legal. No plano da determinabilidade do tipo legal ou tipo de garantia – precisamente, o tipo formado pelo conjunto de elementos cuja fixação se torna necessária para uma correcta observância do princípio da legalidade – importa que a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição seja levada ate a um ponto em que se tornem objectivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objectivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos. Nesta acepção se afirma que a lei penal fundamentadora ou agravadora da responsabilidade tem de ser uma lei certa e determinada.

iv. A proibição da analogia. Toma-se neste contexto o conceito de analogia como aplicação de uma regra jurídica a um caso concreto não regulado pela lei através de um argumento de semelhança substancial com os casos regulados. Tem em direito penal de ser proibido, por força do conteúdo de sentido do princípio da legalidade, sempre que ele funcione contra o agente e vise servir a fundamentação ou a agravação da sua responsabilidade.

Interpretação e analogia em direito penal. A proibição da analogia pressupõe a resolução do problema dos limites da interpretação admissível em direito penal. Está hoje afastada definitivamente a convicção iluminista de que o princípio da separação dos poderes conduziria logo à proibição de qualquer processo de interpretação jurídica (Montesquieu: les juges ne sont que la bouche qui prononce les paroles de la loi”). E

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aceita-se, pelo contrário, que praticamente todos os conceitos utilizados na lei são susceptíveis e carentes de interpretação; deste modo se torna inarredável a questão de saber o que pertence ainda à interpretação permitida e o que pertence já à analogia proibida em direito penal pelo princípio da legalidade. O critério de distinção teleológica e funcionalmente imposto pelo fundamento e pelo conteúdo de sentido do princípio da legalidade só pode ser o seguinte: o legislador é obrigado a exprimir-se através de palavras; as quais todavia nem sempre possuem um único sentido; por isso, o texto legal se torna carente de interpretação, oferecendo as palavras que o compõem, segundo o seu sentido comum e literal, um quadro de significados dentro do qual o aplicador da lei se pode mover e pode optar sem ultrapassar os limites legítimos da interpretação. Fora deste quadro, sob não importa que argumento, o aplicador encontra-se inserido já no domínio da analogia proibida. Se o caso couber em um dos sentidos possíveis das palavras da lei nada há, a partir daí, a acrescentar ou a retirar aos critérios gerais da interpretação jurídica.

Âmbito da proibição da analogia. Face ao fundamento, à função e ao sentido do princípio da legalidade, a proibição da analogia vale relativamente a todos os elementos, qualquer que seja a natureza, que sirvam para fundamentar a responsabilidade ou para a agravar; a proibição vale pois contra reum ou in malem partem, não favore reum ou bonam partem. Concretamente, a proibição abrange antes de tudo os elementos constitutivos dos tipos legais de crime descritos no CP ou em legislação penal extravagante. Também relativamente à matéria das consequências jurídicas do crime vale a proibição da analogia em tudo quanto possa revelar-se desfavorável ao agente, isto é, no fundo, em tudo o que signifique restrição da sua liberdade no sentido mais compreensivo. Por isso não tem hoje razão de ser uma doutrina segundo a qual a proibição valeria em ateria de penas, mas já não de medidas de segurança, por estarem aqui em causa finalidades estritas de prevenção especial positiva.

A proibição de retroactividade. O âmbito de validade temporal da lei penal ou problema da “aplicação da lei penal no tempo”

Aplicação da lei penal no tempo e princípio da irretroactividade. O plano porventura mais significativo da refracção do princípio da legalidade é o da proibição da retroactividade in malem partem, isto é, contra o agente. Pode suceder que após a prática de um facto, que ao tempo não constituía crime, uma lei nova venha criminalizá-lo; ou, sendo o facto já crime ao tempo da sua prática, uma lei nova venha prever para ele uma pena mais grave, ou qualitativamente, ou quantitativamente. Este direito como que se reduz, no âmbito penal, ao princípio que traduz uma das consequências mais fundamentais do princípio da legalidade: o da proibição da retroactividade em tudo quanto funcione contra o réu. Através dele se satisfaz a exigência constitucional e legal de que só seja punido o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da prática do facto.

Determinação do tempus delicti. Pressuposto da actuação do princípio da irretroactividade é pois a determinação do tempus delicti, isto é, daquele que deve considerar-se o momento da prática do facto que é definido pelo art. 3º CP: “o facto considera-se praticado no momento em que o agente actuou ou, no caso de omissão, deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido”. Desta disposição legal resulta que decisivo para determinação do momento da prática do facto é a conduta, não o resultado.

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Âmbito da aplicação da proibição. Tal como sucede com a proibição de analogia, a proibição da retroactividade funciona apenas a favor do agente, não contra ele.

O princípio da aplicação da lei mais favorável. A consequência teórica e praticamente mais importante do princípio segundo o qual a proibição da retroactividade só vale contra o agente, não a favor dele, consubstancia-se no princípio da aplicação da lei mais favorável. Esta consequência é de tal modo significativa que assume expressão não só ao nível da lei ordinária (2º/4 CP), como da lei constitucional (29º/4, 2ª parte CRP, que manda aplicar “retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido”).

As hipóteses de descriminalização. A primeira situação será aquela em que uma lei posterior à prática do facto deixe de considerar este como crime. Uma tal situação cabe, em rigor, dentro do princípio da aplicação da lei mais favorável – 2º/2 CP; a segunda parte do preceito traduz a ideia de a eficácia do princípio da aplicação da lex mellior ser tão forte que, quando se analise em uma descriminalização directa do facto, ela se impõe, no que toca à execução dos seus efeitos penais, ainda no caso de a sentença condenatória ter já transitado em julgado. Um segundo grupo de casos aos quais deve ser dada uma solução análoga é o daqueles em que a lei nova mantém a incriminação de uma conduta concreta embora sob um novo ponto de vista político-criminal, mesmo que ela se traduza na modificação do bem jurídico protegido.

As hipóteses de atenuação da consequência jurídica. O mesmo que se expôs para as hipóteses de descriminalização deve defender-se para o caso em que a lei nova atenue as consequências jurídicas que ao facto se ligam, nomeadamente a pena, a medida de segurança ou os efeitos penais do facto. Também neste caso a lei mais favorável deve ser retroactivamente aplicada, todavia, de acordo com o disposto no art. 2º/4 CP, com ressalva dos casos julgados. Da imposição do regime deste preceito não resulta uma imposição de reabertura do processo para nova determinação da pena concreta no quadro da nova moldura penal, mas somente um limite à execução da pena concreta aplicada na condenação transitada em julgado, que coincide com o limite máximo da pena aplicável pela lei nova mais favorável.

As leis intermédias. O princípio da aplicação da lei mais favorável vale mesmo relativamente ao que na doutrina se chama leis intermédias: leis, isto é, que entraram em vigor posteriormente à prática do facto, mas já não vigoravam ao tempo da apreciação judicial deste. Esta solução é coberta pela letra do art. 29º/4, 2ª parte CRP como pela art. do 2º/4, 1ª parte CP. E justifica-se teleológica e funcionalmente porque com a vigência da lei mais favorável (intermédia) o agente ganhou uma posição jurídica que deve ficar a coberto da proibição da retroactividade da lei mais grave posterior.

As chamadas “leis temporárias”. Uma excepção ao princípio da aplicação da lei mais favorável está consagrada no art. 2º/3 CP, para as chamadas leis temporárias. Leis temporárias devem pois considerar-se apenas aquelas que, a priori, são editadas pelo legislador para um tempo determinado; seja porque este período é desde logo apontado pelo legislador em termo de calendário ou em função da verificação ou cessação de um certo evento. Comum é a circunstancia de a lei cessar automaticamente a sua vigência uma vez decorrido o período de tempo para o qual foi editada. A razão que justifica o afastamento da aplicação da lei mais favorável reside em que a modificação legal se

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operou em função não de uma alteração da concepção legislativa, mas unicamente de uma alteração das circunstâncias fácticas que deram base à lei.

Âmbito de validade espacial da lei penal

O sistema de aplicação da lei penal no espaço e seus princípios constitutivos. O princípio-base do nosso sistema é o princípio da territorialidade, segundo o qual o Estado aplica o seu direito penal a todos os factos penalmente relevantes que tenham ocorrido no seu território, com indiferença por quem ou contra quem foram tais factos cometidos. Um princípio acessório à aplicação da lei penal no espaço é o princípio da nacionalidade, segundo o qual o Estado pune todos os factos penalmente relevantes praticados pelos seus nacionais, com indiferença pelo lugar onde eles foram praticados e por aquelas pessoas contra quem o foram.

Conteúdo e sistema de combinação dos princípios aplicáveis. O princípio básico da territorialidade: justificação e conteúdo. A generalidade dos sistemas legislativos penais dos nossos dias assume como princípio basilar da aplicação da sua lei penal no espaço o princípio da territorialidade, não o da nacionalidade. E é esta a posição tradicional do direito penal português. Num momento, como o presente, em que a política criminal tende a universalizar-se, a consagração da nacionalidade como princípio básico de aplicação no espaço não poderia deixar, por isso, de ser considerada como internacionalmente disfuncional. É a comunidade onde o facto teve lugar que viu a sua paz jurídica por ele perturbada e que exige por isso que a sua confiança no ordenamento jurídica e as suas expectativas na vigência da norma sejam estabilizadas através da punição. O princípio geral da territorialidade encontra-se previsto no art. 4º/a), segundo o qual, a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados em território português, seja qual for a nacionalidade do agente.

O princípio complementar da nacionalidade. Justificação e conteúdo. A complementaridade do princípio da nacionalidade relativamente ao princípio da territorialidade logo significa que não se pretende, por meio dele, obviar a todo e qualquer crime que possa ser cometido por um português fora do seu país. Existe uma máxima, aceite pelo direito internacional e comummente seguida, atinente de forma imediata a toda a matéria da aplicação da lei penal de um país a factos cometidos por um seu nacional no estrangeiro: a máxima da não-extradição de cidadãos nacionais. Se os não extradita, então os princípios da convivência internacional devem conduzir a que, uma vez que eles se encontrem de novo no país da nacionalidade, o Estado nacional os puna: o Estado ou extradita ou, quando não extradita, pune.

O princípio da nacionalidade surge como princípio da nacionalidade activa: o agente é um português e surge como princípio da nacionalidade passiva, para efeito da aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiros por estrangeiros contra portugueses. Com efeito, a máxima da não-extradição de nacionais não desempenha aqui qualquer papel, uma vez que relevante é a nacionalidade da vítima, não a do agente. O que oferece fundamento ao princípio da nacionalidade passiva é a necessidade, sentida pelo Estado português, de proteger os cidadãos nacionais. É, dito por outras palavras, a exigência de protecção de nacionais perante factos contra eles cometidos por estrangeiros no estrangeiros e, neste sentido, a protecção de interesses nacionais. O princípio da nacionalidade encontra-se consagrado, na forma normal do seu aparecimento – e na verdade tanto na vertente activa como passiva – no art. 5º/1, e).

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De acordo com ele, a lei penal portuguesa é aplicável a factos cometidos fora do território nacional, por portugueses (nacionalidade activa) ou por estrangeiros contra portugueses (nacionalidade passiva), sob uma tríplice condição:

A de os agentes serem encontrados em Portugal; A de tais factos serem puníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido

praticados, salvo quando nesse lugar não se exercer poder punitivo; E a de constituírem crime que admite extradição e esta não pode ser concedida.

Condições de aplicação.

Que o agente seja encontrado em Portugal. A primeira condição – art. 5º/1, e) I – explica-se, quanto ao princípio da personalidade activa, por ser nela que se concretiza a razão que lhe da fundamento: a não-extradição de nacionais.

Que o facto seja também punível pela legislação do lugar em que tiver sido praticado. A exigência de que o facto também seja punível pela legislação do lugar em que tiver sido praticado é a condição materialmente mais importante da aplicação do princípio da nacionalidade e que mais claramente o converte em princípio subsidiário. Não é, em regra, razoável estar a submeter ao poder punitivo alguém que praticou o facto num lugar onde ele não é considerado penalmente relevante e onde, por isso, não se fazem sentir quaisquer exigências preventivas, quer sob a forma de tutela das expectativas comunitárias da manutenção da validade da norma violada, quer sob a forma de uma socialização de que, segundo a lei do lugar, o agente não carece.

Que o facto constitua crime que admita extradição e esta não possa ser concedida. O inciso III do art. 5º/1, e) põe como ultima condição de aplicação do princípio da personalidade, activa o passiva, que o facto constitua crime que admita extradição e esta não possa ser concedida. Se estiver em causa o princípio da nacionalidade activa (sendo o agente português), a extradição só é possível nos apertados limites do regime previsto no art. 33º/3 CRP e no 32º da L44/99. Assim, o actual art. 33º/3 CRP só permite a extradição de nacionais desde que se verifiquem os seguintes requisitos cumulativos:

Existência de reciprocidade de tratamento por parte do Estado requerente; Consagração dessa reciprocidade em convenção internacional; Tratar-se de casos de terrorismo ou de criminalidade internacional organizada; Consagração de garantias de um processo justo e equitativo pela ordem jurídica

do Estado requerente.

Crime que admita extradição é qualquer um à excepção da “infracção de natureza política ou infracção conexa a infracção política segundo as concepções do direito português” e do “crime militar que não seja simultaneamente previsto em lei comum” (art. 7º/1, a) e b) L44/99). Se o crime é, pela sua natureza, passível de extradição, pode todavia esta não ser concedida, porque não foi requerida, seja por efeitos das normas em matéria de extradição. Algumas das quais se inscrevem logo no texto constitucional: justamente a que proíbe a extradição de nacionais fora dos casos previstos (33º/3); a que impede a extradição pedida por motivos políticos (33º/6); e as que vedam a extradição por crimes a que correspondam reacções criminais segundo o direito do Estado requerente: a pena de morte e a pena de que resulte lesão irreversível da integridade

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física (33º/4), bem como a pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade de carácter perpétuo ou de duração indefinida (33º/4).

Extensão do princípio da nacionalidade. Com uma extensão do princípio da nacionalidade depara-se no art. 5º/1, b), segundo o qual a lei portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional, contra portugueses, por portugueses que viverem habitualmente em Portugal ao tempo da sua prática e aqui forem encontrados. Uma tal extensão foi justificada com a consideração de que importaria impedir a impunidade nos casos em que um português se dirige ao estrangeiro para aí cometer um facto que, se bem que lícito segundo a lex loci, constitui todavia um crime segundo a lex patrice, com a agravante de um tal crime ser cometido contra um português; e, em que, uma vez o crime cometido, o agente volta a Portugal provavelmente para aqui continuar a viver tranquilamente. O agente teria adquirido, se a extensão em causa não existisse, um verdadeiro direito à impunidade, através de uma fraude à lei penal.

A doutrina geral do crime

A construção da doutrina do crime. Todo o Direito Penal é direito de facto e não Direito Penal do agente. O facto constitui o fundamento e o limite dogmático do conceito geral de crime. O facto – e portanto todo e qualquer tipo de crime – é um conjunto de cinco elementos: a acção – que depois é classificada (classificação quadripartida) como ilícita, típica, culposa, e punível. Acção, tipicidade, ilicitude, culpa e punibilidade são os elementos constitutivos do conceito de facto ou do conceito de crime e do respectivo sistema dogmático.

Concepção “clássica” (positivista-naturalista). Há que ter em conta a bipartição do conceito de crime que agrupe os seus elementos constitutivos na vertente objectiva (a acção típica e ilícita) e na vertente subjectiva (a acção culposa). Esta concepção via na acção o movimento corporal determinante de uma modificação do mundo exterior, ligada causalmente à vontade do agente. Acção que se tornaria em acção típica sempre que fosse lógico-formalmente subsumível num tipo legal de crime, isto é, numa descrição puramente externo-objectiva da realização da acção, completamente estranha a valores e a sentidos. Acção típica, por seu turno, que se tornaria em ilícita se no caso não interviesse uma causa de justificação. Quanto à vertente subjectiva do facto, ela concentrar-se-ia na categoria da culpa. A acção típica e ilícita tornar-se em acção culposa sempre que for possível comprovar a existência, entre o agente (imputável) e o seu facto objectivo, de uma ligação psicológica susceptível de legitimar a imputação do facto ao agente a título de dolo (conhecimento e vontade de realização do facto) ou de negligência (deficiente tensão de vontade impeditiva de prever correctamente a realização do facto).

Apreciação crítica. Logo o conceito de acção, ao exigir um movimento corpóreo e, de todo o modo, uma modificação do mundo exterior, restringia de forma inadmissível a base de toda a construção. Por outro lado, como reduzir o juízo de ilicitude à ausência de uma causa de justificação do facto típico constituiria uma compreensão paupérrima e, em definitivo, inexacta do que vai implicado no juízo de contrariedade à ordem jurídica. Finalmente, a concepção psicológica da culpa esqueceria que também o inimputável – por definição, incapaz de culpa – pode agir com dolo ou negligência.

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Concepção neoclássica (normativista). Esta pretende retirar o direito do mundo naturalista do “ser”, para, como “ciência do espírito”, o situar numa zona intermediária entre aquele mundo e o do puro “dever-ser”, mais rigorosamente, num campo referencial, num mundo das referências da realidade aos valores, do ser ao dever-ser. No que toca ao sistema do crime, há que preencher os conceitos com estas referências, nomeadamente passando a caracterizar o ilícito como “danosidade social” e a culpa como “censurabilidade” do agente por ter agido como agiu, quando podia ter agido de forma diferente. Descontados os exageros naturalistas, agora substituídos pela ideia de “relevância social”, a acção continuou a ser concebida, no essencial, como comportamento humano causalmente determinante de uma modificação do mundo exterior ligada à vontade do agente. Por isso os finalistas puderam qualificar globalmente as concepções da acção das orientações clássica e neoclássica como concepções causais da acção. Mas já em matéria da tipicidade se considerava agora ser indispensável vè-la não apenas como uma descrição formal-externa de comportamentos, mas materialmente como uma unidade de sentido socialmente danoso, como comportamento lesivo de bens juridicamente protegidos; para a qual relevavam não só elementos objectivos, mas, em muitos casos necessariamente, igualmente elementos subjectivos. De tal modo que também o ilícito se apresentava em diversas hipóteses como um conglomerado de elementos objectivos e subjectivos, indispensável para a partir dele se concluir pela contrariedade material do facto à ordem jurídica. Quanto à culpa, agora traduzida num juízo de censura – a chamada concepção normativa da culpa – ela enriquecia-se e diversificava-se nos seus elementos constitutivos: a imputabilidade, como capacidade do agente de avaliar a ilicitude do facto e de as determinar por essa avaliação; o dolo ou a negligencia como formas ou graus de culpa; a exigibilidade de um comportamento adequado ao direito.

Apreciação crítica. A crítica dirigiu-se sobretudo ao conceito mecânico-causalista da acção de que a teoria neoclássica continuava a partir, esquecendo não ser aí que reside a essência do actuar humano.

A concepção finalista (ôntico-fenomenológica). A verdadeira “essência” da acção humana foi encontrada por Welzel na verificação de que o homem dirige finalisticamente os processos causais naturais em direcção a fins mentalmente antecipados, escolhendo para o efeito os meios correspondentes: toda a acção humana é assim supradeterminação final de um processo causal.

A primeira consequência derivada daquela concepção da acção é a de que o dolo (que no parecer da teoria clássica como da neoclássica constituía um elemento da culpa) passa agora a conformar um elemento essencial da tipicidade. Não seria bastante dizer, como afirmava a teoria neoclássica, que o tipo pode em certos casos conter elementos objectivos. Preciso seria afirmar que o tipo é sempre constituído por uma vertente objectiva (os elementos descritivos do agente, da conduta e do seu circunstancialismo) e por uma vertente subjectiva: o dolo ou eventualmente a negligência. Só da conjugação destas duas vertentes podendo resultar o juízo de contrariedade da acção à ordem jurídica, é dizer, o juízo de ilicitude). Só assim também se atingiria uma verdadeira concepção normativa da culpa, como havia sido intenção da orientação neoclássica. O erro desta teria residido em continuar a juntar na categoria da culpa a valoração (o juízo de culpa, de censura) com o objecto da valoração (o dolo e a negligência). Extraindo este objecto da valoração da culpa e situando-o no tipo de ilícito, estava cumprida a

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condição necessária para “reduzir” a culpa àquilo que verdadeiramente ela deveria ser, um “puro juízo de (des) valor”, um autêntico juízo de censura.

Apreciação crítica. A afirmação de que a culpa é mero juízo de desvalor, expurgada de todo o objecto de valoração e reduzida à pura valoração do objecto, não é compatível com a função político-criminal que o princípio da culpa deve exercer no sistema.

Fundamentos de uma construção teleológica-funcional e racional do conceito de facto punível. Pode afirmar-se que, na doutrina hoje mais avançada, já mal se depara com construções que continuem a assentar num conceito finalista ortodoxo de acção, como supradeterminação final de um processo causal; e, sobretudo, que se disponham a ver em tal conceito um princípio ontológico. De outra parte, encontra-se hoje generalizada a convicção de que o ilícito típico não é, como pretendiam os neoclássicos, uma entidade eminentemente objectiva, que traduza primariamente um desvalor de resultado e para o qual só excepcionalmente releva o desvalor da acção; é sim e sempre, como sustentou Welzel e depois se tornou em marca distintiva de toda a concepção finalista, um ilícito pessoal. Quanto à culpa, a generalidade dos autores contemporâneos está de acordo em que os elementos da imputabilidade e da consciência do ilícito relevam para o juízo de culpa.

A discussão à toda do conceito de acção e as formas básicas do aparecimento de crime. As funções atribuíveis ao conceito de acção dentro de um sistema categorial-classificatório. Continua a subscrever-se a ideia tradicional do conceito de acção como base autónoma e unitária de construção do sistema, capaz de suportar as posteriores predicações da tipicidade, da ilicitude (antijuridicidade), da culpa e da punibilidade, sem todavia as pré-determinar. Para que assim possa ser deve então ser exigido deste conceito “geral de acção” que cumpra uma pluralidade de funções: uma função de classificação, uma função de definição e ligação e uma função de delimitação. Para cumprir a sua função de classificação o conceito tem de ser um tal que assuma o carácter de conceito superior, abrangendo todas as formas possíveis de aparecimento do comportamento punível (a forma activa como a omissa, a forma dolosa como a negligente) e representando o elemento comum a todas elas. Para cumprir a sua função de definição e ligação ele tem de possuir a capacidade, por um lado, de abranger todas as predicações posteriores (acção típica, ilícita, culposa, punível) sem todavia, por outro lado, as pré-determinar, isto é, sem antecipar o significado material especifico que anima cada ma delas. Para cumprir a sua função de delimitação o conceito tem de permitir que, com o apelo a ele, logo se excluam todos os comportamentos que, e independentemente das predicações posteriores, não podem nem devem constituir acções relevantes para o direito penal e para a construção dogmática do conceito de facto punível (acontecimentos naturais ou comportamentos de animais, meras cogitações ou pensamentos, actos reflexos, etc.). Perante esta multiplicidade de funções, um puro conceito causal-naturalístico de acção está hoje fora de questão e dele se põe afirmar já não ser hoje defendido por ninguém; e o mesmo se dirá, ainda com maior razão, de um conceito puramente normativo, que logo à partida revela não cumprir minimamente a função de ligação, na medida em que pré-determina de uma forma absoluta a tipicidade.

Tanto o finalismo como o objectivismo social – desde que normativizados, no sentido de referidos a sentidos e a valores – constituem concepções aceitáveis sobre a essência do actuar humano nos contextos pessoal e social e têm uma palavra de relevo a dizer na

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doutrina do facto punível. As exigências que se fazem ao conceito de acção parecem, em definitivo, contraditórias, no sentido de que mutuamente se excluem. Se o conceito deve assumir uma função de classificação – de modo a abranger todas as espécies do actuar humano que possam, em geral, relevar para o direito penal – parece certo que a sua conformação há-de ser imputada a um sistema pré-jurídico, seja ele o sistema ôntico-final ou antes o normativo-social.

O conceito final de acção. As insuficiências da concepção finalista para cumprir as funções que a qualquer conceito geral de acção são assinaladas patentearam-se claramente no preciso momento em que Welzel levou a cabo a última tentativa de lhe oferecer um estatuto definitivo, através do esclarecimento entre as relações entre finalidade e dolo. Há aqui, em abstracto, apenas duas possibilidades: a primeira reside em manter a identificação entre finalidade e dolo. Neste caso porem o conceito de acção perde a sua função de ligação, na medida em que se opera a sua pré-tipicidade, por isso que o dolo só pode referir-se ao tipo ou constitui mesmo um seu elemento e o tipo é normativamente conformado, contem em sim os elementos que dão à supradeterminação final um sentido que a torna “esclarecida” e “socialmente relevante”. A segunda possibilidade está em operar a cisão entre finalidade e dolo, bastando então, para que de acção final se possa falar, que o agente “tenha querido alguma coisa”, que tenha supradeterminado finalisticamente um qualquer processo causal, sem que releve para as posteriores valorações sistemáticas da vontade.

Não se pode em definitivo dizer que um tal conceito de acção final cumpra a sua função primária de classificação e abarque a totalidade das formas básicas de aparecimento do facto punível. Pois se não há dúvida que um tal conceito abrange os crimes dolosos de acção, já terá de deixar de fora os crimes de omissão e não possui em último termo conteúdo material bastante para que uma parte dos crimes negligentes possa ser conexionado com ele. A conclusão é pois a de que o conceito final de acção não pode arvorar-se em conceito geral de acção.

O conceito social de acção. A omissão, antes mesmo da sua predicação jurídica, pode já em si própria possuir relevo social: o “social” pode constituir em si mesmo um sistema normativo extra-jurídico. Mas assim como ao conceito final de acção se deve opor que deixa fora da acção negligente um dos mais relevantes elementos das posteriores determinações da tipicidade e da ilicitude (o resultado), também o conceito social de acção que aspire, como deve, a uma autonomia pré-jurídica deixará fora da omissão o elemento que verdadeiramente “constitui” o ilícito-típico do crime omissivo: a acção positiva omitida e juridicamente imposta, devida o esperada. Contrapor-se-á que também ao nível da acção geral se devem fazer logo intervir critérios mais apertados de imputação. Todos estes critérios porém só podem provir do âmbito e do fim de protecção da norma incriminadora e, assim, da ordenação jurídica-penal dos tipos, não de uma qualquer ordenação extra-jurídica, mesmo que esta seja a ordenação social. Desta maneira, em conclusão, de novo terá o conceito social de acção perdido a sua neutralidade e o seu carácter prévio e autónomo perante a doutrina da tipicidade não terá cumprido a sua função de ligação.

O conceito “negativo” de acção. Em tempos recentes, têm pretendido alguns autores alcançar um conceito geral negativo de acção: “ a acção do direito penal é o não evitar evitável de um resultado”; pensando desta forma ter logrado uma base sobre a qual se pode construir uma doutrina geral do facto, do activo como do omissivo, do doloso

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como do negligente. Parece claro, todavia desde logo, que, qualquer uma das múltiplas formulações que o aludido pensamento pode assumir, a caracterização só abrange os chamados “crimes de resultado”, não os de “mera actividade” ou “mera omissão”, não cumprido assim, já por aqui, a função de classificação.

O conceito pessoal de acção. Um tal conceito – pessoal – de acção residiria em ver esta como “expressão da personalidade”, em abarcar nela “tudo aquilo que pode ser imputado a um homem como centro de acção anímico-espiritual”. É pelo menos duvidoso que um tal conceito de acção logre libertar-se completamente de algumas aporias que ao conceito social de acção foram apontadas. E isto essencialmente porque o comportamento só pode muitas vezes constituir-se como “expressão da personalidade” na base de uma sua prévia valoração como juridicamente relevante, também aqui se antecipando, nesta parte, a sua tipicidade e perdendo o conceito, nesta precisa medida, a sua função de ligação. Por outra parte, não parece seguro que o conceito pessoal de acção possa cumprir capazmente a sua função de delimitação.

Conclusões. Necessidade de a teoria da acção ceder a primazia à teoria da realização típica do ilícito. A doutrina da acção deve, na construção do conceito do facto punível, ceder a primazia à doutrina da acção típica ou da realização do tipo de ilícito, passando a caber ao conceito de acção apenas “a função de integrar, no âmbito da teoria do tipo, o meio adequado de prospecção da espécie de actuação”. O conceito de acção não é algo de previamente dado ao tipo, mas apenas um elemento, a par de outros, integrante do cerne dos tipos de ilícito. A partir daqui é inevitável assinalar ao conceito o desempenho de um papel secundário no sistema teleológico, essencialmente correspondente, uma vez mais se diz, à função de delimitação ou função “negativa” de excluir da tipicidade comportamentos jurídico-penalmente irrelevantes; enquanto a primazia há-de ser conferida ao conceito de realização típica do ilícito e à função por ela desempenhada na construção teleológica do facto punível.

A delimitação da acção relevante para o Direito Penal. Para fundamentar a responsabilidade penal, de acordo com a Prof. Fernanda Palma, a acção como uma identificação susceptível de um comportamento ter responsabilidade penal é um esquema indispensável baseado em critérios objectivos. Quando se pode atribuir responsabilidade penal? Quais as características do comportamento? Para Hegel, a ideia de acção corresponde a um comportamento livre e responsável dependente da vontade do autor, sendo as consequências atribuídas à acção humana voluntária. Para se poder valorar negativamente o comportamento do autor, não se pode recorrer a pensamentos e a atitudes, senão constituir-se-ia um critério completamente arbitrário e subjectivista. A convicção do mal e do desvalor é que cria o facto – o que se demonstra ser uma construção com vício porque a valoração deve ser feita sobre o facto e não pela convicção através de uma leitura a ser valorada. Há que definir o facto e depois construir a sua valoração: se disse que há uma definição do facto, então há uma valoração através da convicção, sendo uma construção perigosa porque com a valoração se define a própria valoração. Por exemplo, a omissão: “a mãe deixou que a criança morresse”. A valoração a partir da convicção abrange, desde logo, a construção “matar”, não se sabendo se cabe nesta situação ou não. Há que construir uma base objectiva de comportamento sem se ter em conta a valoração; “matar” será “matar” para o direito penal como uma realidade autónoma. O perigo da realidade autónoma está relacionado com as valorações das convicções e até culturais; o objecto da valoração tem de ser neutro para se poder criar uma base objectiva. Na valoração de um crime há um

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aspecto externo-objectivo (a ilicitude) e um aspecto interno-subjectivo (a culpabilidade). Há uma dimensão objectiva da lesão de bens jurídicos e outra que faz depender da vontade do autor. Começa-se por valorar a produção da consequência através da ilicitude e, depois, dos aspectos relacionados com o conteúdo da vontade; antes de uma responsabilidade por culpa há que ter em conta valorações objectivas.

O Direito penal não diz o que é proibido; antes, descreve o proibido. Há uma disposição da conduta proibida. Então, o Direito penal será um direito com uma natureza secundária porque apenas demonstra as sanções para certos comportamentos. Coube a Welsel a crítica muito consistente ao sistema clássico: o conceito de acção não poderia ser o critério para a responsabilidade penal, como descrito por esta doutrina; o único comportamento ao qual se atribui responsabilidade penal não é a causalidade mas a finalidade – o sujeito orienta o seu comportamento para chegar a determinado fim. O que distingue o comportamento humano voluntário é a finalidade porque esta exprime o controlo pela vontade, isto é, o agente antecipa mentalmente um determinado resultado (fim) escolhendo os meios causais, conduzindo a sua conduta ao resultado pretendido. As normas têm de proibir comportamentos evitáveis, se só podendo proibir e sancionar acções finais.

A acção relevante para o direito penal é aquela que o indivíduo consegue controlar de forma voluntária. O indivíduo não consegue não reagir quando se trate de um acto reflexo, uma vez que não se trata de uma verdadeira ordem; o direito penal não se ocupa dos actos reflexos porque não há um domínio de controlo dos mesmos. Para o direito penal só interessa a acção final porque esta está associada a um determinado resultado (fim). Há que delimitar negativamente o que é a acção. O grande problema deste critério é o automatismo: será que o indivíduo consegue ter uma reacção diferente? Por exemplo, subir escadas ou conduzir. Os automatismos não são actos reflexos mas estão de tal forma enraizados na pessoa que esta não consegue reagir de outra maneira.

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