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Maria Fernanda Palma | 2015/2016
DIREITO PENAL II
Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016
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A Teoria geral da infrao como teoria da deciso penal1
1. - O sistema de anlise do conceito de crime e a deciso sobre a
imputao de responsabilidade
Introduo: a definio do crime: o estudo dos princpios do Direito Penal revelou um elenco de garantias a que a interpretao-aplicao da lei penal est sujeita. O conceito material de
crime foi o tema adequado para uma reflexo sobre os limites de uma liberdade legislativa de
conformao dos contedos do Direito Penal. Mas uma aplicao do Direito Penal em
obedincia efetiva aos princpios da culpa, da legalidade e da necessidade da pena ainda reclama
um mtodo disciplinador do juzo valorativo sobre a responsabilidade criminal. Como que se
decide a aplicao da lei penal aos casos concretos na perspetiva da confrontao direta do caso
com a lei j identificada, de forma a decidi-lo de acordo com o Direito? esta teoria da deciso
do caso em face da lei penal e do Direito que a doutrina tem buscado na teoria geral da infrao
ou teoria do crime, propondo uma ordenao lgico-valorativa da determinao da
responsabilidade penal a partir do confronto do facto concreto com os tipos legais de crime. A
teoria geral da infrao no surge, porm, nas suas formulaes tradicionais, como uma teoria
da deciso penal, mas antes como uma teoria sobre a definio do crime. Assim, o que a teoria
europeia de inspirao germnica costuma propor o estudo da essncia do crime a partir das
caractersticas comuns a todas as figuras de crime contidas num cdigo penal, propondo que se
desenhem atravs dessa essncia e dessas categorias os passos lgicos que conduziro o
intrprete no processo de qualificao de um facto concreto como crime. A teoria germnica
desenvolveu a orientao secular do pensamento jurdico europeu que se ocupou de definir as
caractersticas comuns a todos os crimes, as quais permitiriam uma imputao jurdica segundo
um mtodo uniforme relativamente a todos os crimes. Na fase mais madura desse processo,
chegou-se ideia de que a natureza da ao, a ilicitude do facto e a culpa do agente seriam os
critrios que permitiriam a qualificao de um facto como crime. O crime seria uma ao ilcita
e culposa. A estas qualidades veio adicionar-se a tipicidade isto , a adequao do facto
concreto ao tipo legal de crime ou, como por vezes se diz, o preenchimento de um tipo legal de
crime. O crime seria, assim, uma ao tpica, ilcita, culposa e punvel. Admite-se, pois, que todas
as figuras previstas no Cdigo Penal como crimes justificam a aplicao da pena respetiva, na
medida em que so espcies de um mesmo gnero o crime , isto , so aes dominadas pela
vontade (ou, nos casos de negligncia, apenas dominveis pela vontade), no justificadas
excecionalmente pela realizao de valores juridicamente relevantes nem desculpveis por
fora de qualquer estado psicolgico do enfraquecimento por fora de um qualquer estado
psicolgico de enfraquecimento da liberdade de determinao vivido pelo agente, caso em que
as referidas aes no chegariam a ser crimes. Diz-se, assim, que crime o facto tpico, ilcito,
culposo e punvel, expressando um conjunto de exigncias e uma ordem do juzo na apreciao
de tais elementos. Em primeiro lugar, o crime necessariamente um facto porque tem de exibir
1 Palma, Maria Fernanda; Direito Penal Parte Geral A teoria geral da infrao como teoria da deciso penal; Edio revista; AAFDL Editora, Lisboa 2015.
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primariamente uma objetividade indiscutvel, uma traduo no mundo exterior sobre a qual seja
exercvel um juzo afirmativo de verdade, de certeza. Essa exigncia j decore dos princpios do
Direito Penal. A legalidade e a reserva de lei, por exemplo, seriam esvaziadas de contedo se
no se revissem definio de factos objetivos como crimes. Para um Direito Penal da atitude,
que conceda ao juiz a possibilidade de determinar as infraes na base de comportamentos
subjetivos dos agentes, a proibio de retroatividade da lei penal, por exemplo, no atingir um
suficiente efeito garantstico, porque uma tal lei penal, apesar de ser anterior ao
comportamento do agente, no indicar com rigor objetivo os critrios da ao que os agentes
devero evitar e, consequentemente, os critrios que o julgador observar posteriormente. Da
necessidade de o crime consubstanciar um facto objetivado resultam consequncias quanto s
modalidades exigidas no comportamento que viola, efetivamente, a norma penal, tal como a
necessidade de se ter atingido uma certa fase ou grau de desenvolvimento da conduta infratora.
, assim, necessrio que uma ao de uma certa espcie tenha ultrapassado uma fase
meramente interna ou de preparao, tenha atingido uma certa realizao ainda que
incompleta aquilo que o artigo 22. CP designa como atos de execuo, isto , a fase de
tentativa. Esta garantia de objetividade do facto implica, igualmente, que comportamentos
perigosos, mas pr-delitivos, no admitam legtima defesa por no consubstanciarem agresses
ilcitas (artigo 32. CP) e no configurem sequer flagrante delito nos termos do artigo 256. CPP.
Em segundo lugar, o crime necessariamente uma ao, no sentido de um comportamento
voluntrio, dominado ou dominvel pela vontade. Que o facto seja uma ao implica, j, uma
certa compreenso do prprio sentido da voluntariedade do comportamento. Os autores tm-
se divido. Para alguns, os que pertenciam escola clssica ou causalista (designada como causal-
naturalista), teorizada no princpio do sculo por Von Lizst e Beling, bastava a voluntariedade
formal do comportamento, independentemente de a vontade se dirigir espcie de ao
desenhada legalmente. O contedo da vontade ou o seu objeto concreto era a questo a ser
valorada ulteriormente e no impediria a verificao da condio primeira da qualificao de
um facto humano como crime, isto , a qualidade de ao do facto. Para outra linha de
pensamento (o pensamento finalista de Welzel), o contedo da vontade era essencial para a
identificao da ao. Assim, no teria sentido qualificar um comportamento como ao num
homicdio s porque tal comportamento foi comandado pelo sujeito num mero sentido
fisiolgico, quando, na perspetiva dos fins, a vontade se dirigiu exclusivamente a um outro fim.
Em amas as posies, todavia, a verificao de um comportamento voluntrio um primeiro
momento da qualificao de um facto como crime. Tanto a escola clssica, de Von Lizst e Beling,
como a escola finalista, de Welzel, que corresponde a estas duas posies, propem como
condio primeira da qualificao de um facto como crime a sua natureza de comportamento
voluntrio exteriorizado. A diferena essencial entre as duas construes referidas consiste,
porm, como se disse, na compreenso da vontade e do conceito de voluntrio significativos
para o Direito Penal. Para a primeira escola, a vontade compreende-se como causa de
movimentos corpreos numa perspetiva naturalstica. Para a segunda escola, a vontade uma
especificidade do comportamento humano, correspondendo conduo (ou condutibilidade)
para fins ou objetivos concretos previamente selecionados. A principal consequncia desta
diversidade de definies de vontade e de ao so as caractersticas necessrias para a
verificao, no primeiro momento, do juzo que decide sobre a verificao de um crime. Para a
escola causalista, o primeiro juzo de verificao do facto bastava-se com uma constatao
mnima de voluntariedade; para a escola finalista, era, desde logo, exigida uma ao final (real
ou potencial). Mas para alm destas divergncias sobre o objeto do primeiro juzo, isto , sobre
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a base da qualificao de um facto como crime, verifiricar-se- j uma divergncia mais profunda
sempre que se venha entender que no necessrio autonomizar esse primeiro momento ou,
ento, que esse primeiro momento no a constatao de factos (atravs de um juzo descritivo,
ainda no valorativo) mas j um juzo valorativo sobre o sentido social de um acontecimento,
prximo de um juzo de ilicitude. Quem tender a atribuir menor relevncia ao requisito da ao
poder aceitar, mais facilmente, uma responsabilidade criminal a partir do ficcionamento de
comportamentos ou generalizar como base do comportamento criminoso a mera violao de
deveres de conduta. Se o sentido social, o significado desvalioso do acontecimento for um
critrio absorvente da prpria objetividade do facto (e do requisito de verificao de uma ao)
ser possvel equiparar generalizadamente aes e omisses e admitir como relevantes
comportamentos de duvidosa voluntariedade, como os automticos ou inconscientes. Esta
rutura com a relevncia de uma ao factual, de base naturalstica, no Direito Penal,
sobrepondo-se a ela o significado social de um comportamento, est associada a concees que
prescindem, na realidade, da ao como elemento da definio do crime (conceo bipartida do
crime). Para tais concees a questo prioritria na definio do crime a correspondncia entre
o significado do facto e a negao dos valores que a norma penal visa proteger. As vrias
concees da ao social favoreceram, precisamente, a rutura com a exigncia de ao
propugnada pelas escolas clssica e finalista, na medida em que procuravam uma significao
social das condutas em funo das condutas valoradas negativamente pelas normas penais. Esta
divergncia reflete-se, consequentemente, na alternativa entre a tripartio e bipartio na
construo do crime. Quem autonomize a ao em si mesma ser conduzido a autonomizar um
momento de juzo de pura constatao ftica de que se est perante uma conduta voluntria
no caso concreto, independentemente da sua identidade como tipo de ao, e a condicionar
pelas caractersticas da ao os restantes juzos sobre o facto. E, nessa perspetiva, tambm a
ilicitude ser condicionada pela vontade da ao relativamente ao dever jurdico, no se
reduzindo puramente objetiva leso de bens, direitos ou interesses. Mas ento o que significa
exigir a integrao da ao na definio do crime como seu elemento? Afirmar que o crime
uma ao significa, antes de mais, que a qualificao de um facto como crime pressupe um
certo grau de objetividade a objetividade da concretizao de uma vontade no mundo das
relaes humanas e que essa objetividade no pode ser ficcionada pela lei ou pelo valor que
se queira atribuir aos factos. O crime depende, assim, de um juzo de valorao, mas tal
valorao no , em si mesma, criadora do objeto sobre que incide como acontecimento
definido no mundo das relaes sociais, pressupondo antes a existncia desse objeto e uma sua
apetncia para ser valorado. A ao como elemento do crime tem, deste modo, um valor
garantstica, porque a prova no processo penal incide sobre um tipo de acontecimento cujo
conhecimento e identificao no est dependente de valoraes, o qual pode ser discutido
atravs de critrios de racionalidade no especificamente jurdicos e tem um valor de
articulao dos conceitos e valoraes do Direito com a estrutura da realidade (valor de
articulao com o dever ser). A ao tem, tambm, devido ao anterior pressuposto, uma funo
sistemtica na definio do crime. O prprio juzo de ilicitude isto , da contrariedade ao Direito,
no pode ser concebido apenas como leso de bens jurdicos (momento objetivo da ao), mas
tem de incluir um momento de contrariedade da vontade da ao (momento subjetivo da ao)
ao dever jurdico emanado da norma. E a prpria culpa pressupe a censurabilidade do
comportamento previamente censurabilidade da personalidade do agente. S culpa da
pessoa na medida em que seja referida a um facto censurvel. Finalmente, no pode deixar de
se assinalar ao uma funo negativa ou delimitativa, pela qual se excluem do crime
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comportamentos praticados sob coao fsica vis absoluta comportamentos reflexos e, pro
vezes, certos comportamentos inconscientes e automticos. Mas, afinal, o que uma ao para
efeitos de responsabilidade penal? S-lo-, apenas, o elemento externo e objetivo de um
comportamento voluntrio, como pretendiam os adeptos da teoria clssica, ou antes de mais
um comportamento que projeta pessoa que o realiza de um outro modo? um dado emprico
observvel ou e uma realidade que tem esse significado para o seu autor?
a. Neste ponto, surgiu, como j se referiu, uma das mais acesas disputas entre escolas de pensamento, entre os causalistas e os finalistas: para os adeptos da chamada teoria da
ao causal no era mais do que uma expresso corporal comandada pela vontade. Isso
bastava para consubstanciar a objetividade de que depende a qualificao do facto
como crime. Para a teoria finalista, o retrato estrutural da ao que a teoria causalista
pretendia traar era insuficiente pois no integrava o momento de direo da vontade
pelo agente e da orientao para um fim de comportamento (a sobredeterminao
causal de meios pelo agente para a obteno de um certo objetivo). A ao humana era,
por conseguinte, necessariamente, ao final e os elementos subjetivos estavam
indissociavelmente associados sua descrio objetiva. Welzel, porm, no entendia a
finalidade como um contedo espiritual, de significao, mas sobretudo como uma
orientao implcita do comportamento exterior pela vontade. Assim, o momento
ontolgico em que se baseava a valorao jurdica no era uma estrutura objetiva no
sentido de uma mera modificao objetiva do mundo exterior; mas um processo
orientado para a modificao do mundo exterior. Tanto Welzel, finalista, como os
adeptos da teoria da ao causal bastavam-se, porm, com uma estrutura (meramente
objetiva ou, no caso de Welzel, subjetiva-objetiva) comportamental,
independentemente da significao no mundo social, como base das valoraes da
ilicitude e da culpa. A discusso filosfica (envolvente dessa discusso doo pensamento
jurdico) sobre a ao andou, sobretudo, associada teoria da vontade, pretendendo-
se sempre identificar na ao as caractersticas do comportamento voluntrio. E, com
efeito, a especificidade do comportamento voluntrio surge, fundamentalmente,
associada possibilidade (capacidade) de escolha entre alternativas e de configurao
do comportamento como a realizao de projetos. Mas esta configurao no tanto
um dado emprico que marque os comportamentos, numa perspetiva de cincia da
natureza, mas o produto da compreenso da pessoa, do seu modo de entender o
comportamento prprio alheio. Finalismo, embora tenha podido identificar uma
caracterstica estrutural da especificidade da ao humana, concebeu-a quase sempre
como um objeto emprico ou natural, observvel laboratorialmente, no dando
cabalmente conta do que significa a vontade humana na compreenso dos atos de cada
pessoa. No poderia, assim, fazer de um esqueleto de ao humana a expresso objetiva
de um comportamento voluntrio. A compreenso do que seja efetivamente uma
expresso objetiva de vontade suscetvel de ser a base de imputao de
responsabilidade penal h-de exigir mais do que a finalidade formal, h-de exigir um
contedo suscetvel de ser compreendido pelo prprio agente como uma sua deciso,
um seu projeto para si e para qualquer pessoa ou, pelo menos, aquele algo que o agente
poderia ter evitado.
b. claro que as aes intencionais exprimem, em princpio, mais complexamente, os comportamentos voluntrios, porque correspondem realizao de projetos e a uma
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articulao entre os motivos e os fins, embora isso no signifique que os
comportamentos intencionais no possam conter um certo grau de automaticidade. A
inteno no significa, necessariamente, um projeto mental vivido antes de qualquer
exteriorizao, mas o sentido contextual de um certo comportamento. Todavia, diferem
dos comportamentos instintivos ou de adaptao s resistncias do meio que
caracterizam a atividade animal e que tambm so finais (comportamentos
automticos). Os primeiros, apesar de automticos so a expresso de um significado
especificamente humano, de realizao de projetos ou de uma deciso. Os chamados
comportamentos negligentes (artigo 15. CP), por outro lado, no revelam um projeto
do sujeito, mas assumem-se como desvios indesejados de uma direo inicial. Ainda so,
porm, comportamentos voluntrios na medida em que poderiam ser evitados pelos
seus autores se estes tivessem tido uma outra atitude no controlo das consequncia dos
seus atos. A evitabilidade , com efeito, o limiar inferior da voluntariedade, ao exprimir
um momento mnimo de escolha entre alternativas da ao. A construo finalista
reconduz a negligncia a uma finalidade potencial, isto , que poderia ter existido no
sentido de evitar o resultado criminoso. Exprime, tambm, a objetiva realidade de um
momento de controlo sobre os atos que justifica que o comportamento negligente seja
base da responsabilidade penal.
Se o crime uma ao, as omisses no podem ser crimes? Com efeito, h omisses criminosas
segundo o artigo 10. CP e, de um modo geral, as ordens jurdicas reconhecem os crimes
omissivos. Ser sustentvel considerar os crimes omissivos como aes? As teorias causalista e
finalista tiveram muita dificuldade em enquadrar a omisso, pois nela falta todo o momento
exterior e causal que define para aquelas perspetivas a ao. Todavia, a teoria finalista admitia
que a omisso no seria um ente puramente normativo, dependente da violao de um dever
de agir, apelando a finalidade potencial. Welzel viria c concluir que aes reais e possveis so
iguais na respetiva dignidade ontolgica sendo a possibilidade efetiva de ao (concordante com
o Direito) o momento pr-valorativo e objetivo em que se apoiaria o crime omissivo, para alm
da violao do dever. Mas verdade que o dever jurdico pressuposto necessrio da relevncia
da omisso e a sua imposio que permite identificar a possibilidade da ao. Esta dimenso
especfica da omisso impe que ela s possa ser equiparada ao onde o dever de ao for
determinado por uma relao de domnio ou de responsabilidade social institucionalmente
indiscutvel com o bem jurdico.
Se A no trava a tempo o automvel e atropela B, ser indiferente designar este
comportamento como ao ou omisso para efeitos da sua relevncia penal,
embora ele tenha caractersticas omissivas, porque o agente responsvel pela
conformao e controlo da sua esfera de domnio da vontade.
A, h uma natural equiparao da omisso ao, permitindo fundi-las no contedo da norma
proibitiva. Mas, outras situaes, a equiparao depende, essencialmente de esferas de
responsabilidade institucional, na famlia, na empresa ou em instituies sociais, por exemplo.
O crime tambm uma ao tpica. O que significa a atribuio de tipicidade?
a. O papel da tipicidade central e comanda a ordem das valoraes. A ilicitude e a culpa
so necessariamente enquadradas pela tipicidade. Para Beling, o autor alemo que no
princpio do sculo teorizou a tipicidade (tatbestantmssigkeit) como um verdadeiro
juzo autnomo, o crime seria, antes de mais, o facto (ao) anlogo ou correspondente
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ao facto descrito na norma, que se idealizou como ilcito (contrrio ao Direito) e culposo
(censurvel ao seu autor). A tipicidade seria, pois, uma qualificao do facto criminoso,
ainda no valorativa, mas to-s lgica e classificatria. Este momento da tipicidade,
autnomo da ilicitude para Beling, numa primeira fase do seu pensamento, consistia
numa verificao da correspondncia do aspeto externo-objetivo do facto lei. Mas o
tipo era tambm descritivo, de modo que a constatao da adequao do facto lei era
um mero juzo de facto sem ponderao valorativa. A esta fase seguia-se, para Beling, a
verificao da antijuridicidade ou da ilicitude do facto tpico, isto , a constatao da
contrariedade do facto ordem jurdica no seu conjunto, nomeadamente por no
existirem causas de justificao. A antijuridicidade correspondia ao momento normativo
da afirmao da ilicitude do facto. E, finalmente, surgiria a culpa, em que se valorariam
os momento subjetivos do facto, a relao de voluntariedade psicolgica do autor com
o facto. Em resumo: esta definio de crime da escola clssica considerava o crime como
um comportamento externo-objetivo, que fosse adequado descrio do facto na lei
penal, relativamente ao qual no existisse qualquer norma permissiva e em que o agente
tivesse vontade, num sentido psicolgico, de realizar o facto. A tipicidade, assim,
elemento do crime, a par da ilicitude e da culpa. O tipo era descritivo e objetivo, a
ilicitude um juzo normativo e objetivo e a culpa era um juzo descritivo sobre
acontecimentos subjetivos. O esquema de Beling refletia a teoria das normas de Binding
a distino entre norma jurdica e lei penal propugnada por aquele autor. A lei penal
para Binding no seria verdadeiramente uma norma mas a mera sano de normas
contidas noutros setores do ordenamento jurdico. A ilicitude penal, embora se aferisse
pela lei penal, resultaria da violao dessas outras normas, assumindo um carter
secundrio e sancionatrio. Beling, por isso, no identificava o tipo legal com a norma e
referia a norma, que no se preocupava em identificar, coo um elemento formulado ou
implcito do ordenamento jurdico geral. Numa segunda fase do seu pensamento em
1930, porm, Beling reconheceria que a tipicidade no era uma valorao ou uma
qualidade do facto criminoso mas qpenas um enquadramento ou delimitao da
ilicitude; o tipo seria um quadro legal, um tipo de delito, mas uma figura delitiva que
condicionaria a anlise da prpria culpa. A tipicidade seria uma espcie de antecipao
das qualidades que efetivamente definiriam o crime. O tipo j no seria s objetivo, mas
tambm conteria o aspeto subjetivo o crime, antecipando a valorao da culpa, mas
seria sempre uma figura condicionante das valoraes do crime, mas que condicionaria
a afirmao da ilicitude e da culpa. De qualquer modo, mesmo esta ltima conceo de
Beling implica uma conceo de tipo indiciador. O tipo passou, ento, a ser visto como
a necessria referncia de ilicitude (contrariedade ao Direito), o Leitbildtatbestand, isto
, um quadro legal da descrio do facto. Mas, em rigor, a tipicidade no seria um quid
autnomo das valoraes de ilicitude e culpa. Seria, apenas, o seu enquadramento, a
sua concretizao.
b. Esta evoluo do pensamento de Beling esteve associada distino entre a figura do
tipo indiciador de ilicitude e a do tipo como ratio essendi da ilicitude ou tipo de delito.
A ideia de tipo indiciador corresponde considerao de que a tarefa de
enquadramento do facto concreto no facto legal, num plano lgico, o primeiro
momento da qualificao do facto como crime, no produzindo verdadeiros juzos de
valor. S num segundo momento que se avaliaria a contrariedade com a ordem
jurdica a ilicitude. A tipicidade seria apenas a verificao de um indcio de crime. A
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ideia de um tipo de ilcito concebe a tipicidade com um outro papel. A tipicidade passa
a ser no apenas o indcio, mas a fonte da antinormatividade e, por isso, fundamentaria
por si a ilicitude do facto. Assim, se para a doutrina do tipo indiciador a tipicidade seria
apenas um primeiro passo a que se seguiria um processo lgico de confirmao do
indcio de ilicitude, para a segunda doutrina, a tipicidade seria o princpio e o fim do juzo
valorativo. A afirmao da tipicidade corresponderia, necessariamente, afirmao de
ilicitude tpica, atravs do competente juzo valorativo. Cavaleiro de Ferreira, nos anos
trinta, criticou profundamente a ideia de Beling de atribuir tipicidade o carter de uma
verdadeira qualidade do facto. A tipicidade no seria mais do que o instrumento de
averiguao da ilicitude (o tipo no verdadeiramente uma realidade substancial, mas
a forma da sua traduo no preceito legal).
c. Que sentido tem toda esta discusso sobre a tipicidade? O que levou os autores a
dedicarem tantas pginas ao assunto? Esta discusso sobre a tipicidade resulta, sem
dvida, de se ter concludo que um trao geral comum qualificao de qualquer facto
como crime a verificao de uma congruncia imprescindvel entre o facto descrito
legalmente e o facto concreto. Mas, para uns autores, essa congruncia um momento
do juzo global, instrumental do juzo de ilicitude, e para outros o prprio juzo de
ilicitude. O interesse da primeira perspetiva avanada por Beling foi deslocar para um
plno analtico esse momento e atribui-lhe uma natureza lgica especfica. Beling
pretendia, com efeito, alcanar um mtodo objetivo e rigoroso pelo qual o juiz definisse
o carter criminoso do facto concreto, um mtodo cientfico prximo do utilizado pelas
cincias naturais, sendo a tipicidade o conceito que servia esta finalidade. A discusso
entre os autores gerou-se em torno da impossibilidade de prescindir, na configurao
da tipicidade, de juzos de valor. Os autores neoclssicos, que defenderam a conceo
de um tipo de ilcito, consideravam que o tipo legal no seria mais do que uma valorao
de comportamentos lesivos de bens jurdicos e que seria atravs da descoberta dessas
valoraes que se atingiria o resultado final da qualificao jurdica do facto. Tais
autores pretendiam mesmo negar qualquer momento de puro juzo de facto na
qualificao jurdica e remeter todo o juzo sobre o carter criminoso do facto para uma
valorao da contrariedade norma legal. O desenvolvimento do pensamento
germnico consistiu em anular a relao de autonomia entre a tipicidade e a ilicitude.
Assim, os autores normativistas reduziram a ilicitude tipicidade o tipo era visto como
ratio essendi da ilicitude , o que, na realidade, era uma pura decorrncia do formalismo
da teoria da ilicitude. Esta evoluo assentou em dois aspetos: na constatao prtica
de que os tipos no so descritivos, mesmo quando integram elementos meramente
descritivos, pois o juzo sobre o elemento ultrapassa a natureza do elemento,
interpretativo e valorativo; e na constatao terica de que a tipicidade seria a
individualizao da ilicitude. Estaramos, assim, perante uma construo do crime como
facto ilcito e culposo tpico. O tipo seria normativo e o juzo de tipicidade no se
autonomizaria do juzo de ilicitude.
d. Mas quem tinha razo nesta divergncia? A tipicidade no , seguramente, um puro
produto de juzos de facto, sem qualquer momento valorativo. Mas tambm verdade
que a tipicidade no pode ser utilizada apenas como produto de uma valorao em
concreto. H momentos da verificao da realizao de um facto correspondente ao
descrito na norma que se baseiam em critrios de valorao comum dos atos e de
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identificao social da ao e no se consomem na pura valorao jurdica. Por isso,
deve haver um primeiro momento, na qualificao de um facto como crime, em que se
averigua a prpria possibilidade de uma ulterior imputao. Afirmar a tipicidade no
deve, assim, ser o mesmo que imputar definitivamente, mas verificar simplesmente os
pressupostos lgicos e fticos de uma possvel e ulterior) imputao, realizando uma
leitura social do facto e analisando a sua coincidncia lgica e social como o facto
descrito na norma. Porm, esta afirmao parece transcender uma relao de tipicidade
com a matria da ilicitude, para referir o tipo a todos os outros elementos do crime.
Apesar disso, ela especialmente determinante na indiciao da ilicitude. Assim,
quando se fala de tipo indiciador tambm se tem ainda geralmente em vista a indiciao
do ilcito do facto, isto , um momento de antecipao (provisria) do facto proibido, do
ilcito penalmente relevante. O chamado tipo de garantia refere-se, antes, a todos os
pressupostos da punio que tm de estar fixados na lei penal. Todavia, o tipo de
garantia no tem qualquer funo na definio do crime, isto , no um momento da
determinao da imputao do facto. Questo muito debatida na doutrina, dividindo
ainda clssicos e neoclssicos, foi a de saber se as causas de justificao seriam
verdadeiros elementos negativos do tipo ou antes elementos que apenas excluiriam a
ilicitude de se ter verificado plenamente a tipicidade. Todavia, a considerao das causas
de justificao como elementos negativos do tipo, fundindo a afirmao da ilicitude
tpica com a sua excluso, no aceitvel por razes valorativas e sistemticas. A
afirmao da ilicitude tpica , necessariamente, o reconhecimento da valorao
negativa de uma ao e do seu resultado ante um bem jurdico protegido. a
constatao da violao de uma norma de valorao e proteo de um bem. A excluso
da ilicitude por uma causa de justificao uma valorao positiva excecional do facto
ou pelo menos a afirmao de um contra-valor neutralizante da violao da norma ou
valorao. H, por isso, uma dimenso de conflito de valores e um juzo de prevalncia
de um valor determinado sobre o que o bem jurdico protegido pela proibio penal
encarna. Dogmaticamente, a considerao das causas de justificao como elementos
negativos do tipo levaria a resultados inaceitveis, tais como a verificao do dolo do
agente (tipo subjetivo) ter de se referir ausncia de causas de justificao ou a excluso
do dolo no caso de erro sobre as causas de justificao.
O crime um facto tpico e ilcito. A ilicitude a contrariedade ao Direito do facto. No a
mesma coisa que a tipicidade. A tipicidade significa sempre a comparao de um facto concreto
com um facto abstrato e, nesse sentido, afirmativa algum matou ou furtou, isto , esse
facto verificou-se; a ilicitude exprime, antes, uma contradio, uma negao de algo tido como
um valor pelo Direito; , por isso, um juzo negativo o facto concreto de algum ter produzido
a morte de outrem proibido. A diferena entre tipicidade e ilicitude dependia, na escola
clssica, de Beling, claramente, do parmetro pelo qual o facto era aferido: na ilicitude tratava-
se de toda a ordem jurdica; na tipicidade era apenas o tipo legal de crime que se contrapunha
ao acontecimento concreto. Na perspetiva neoclssica, o facto seria ilcito por estar em
contradio com a prpria proibio penal que se deduzia do tipo legal do homicdio. A ilicitude,
no primeiro caso, seria um juzo que implicaria uma avaliao do confronto do facto com todas
as proibies e permisses que o mesmo suscitaria. Na segunda perspetiva, seria o tipo legal
que fundamentaria, por si, toda a afirmao de valor possvel sobre o facto. A distino entre
estas duas ideias de ilicitude no , porm, necessariamente, uma distino entre contedos da
ilicitude, mas refere-se, sobretudo, ao mtodo que subjaz aplicao do Direito Penal. Quando
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se postula que o facto ilcito o que contradiz a ordem jurdica, no atribuindo tipicidade mais
do que o papel de um indicio dessa contradio, pretende-se diferenciar dois momentos lgicos,
uma fase pr-valorativa da constatao da verificao do facto tpico e uma fase valorativa
posterior. Quando se concebe que o tipo a ratio essendi da ilicitude, como os neoclssicos,
pretende-se decidir logo no juzo de tipicidade se foram negados os valores que o Direito visa
proteger no caso. Por outro lado, embora se possa chegar geralmente ao mesmo resultado
quanto responsabilidade penal, os dois mtodos revelariam, tambm, uma diferente posio
do Direito Penal na Ordem Jurdica. A teoria clssica da ilicitude era adequada ao carter
secundrio e sancionatrio do Direito Penal inerente teoria das normas de Binding; a teoria
neoclssica, com o seu normativismo penal, era a expresso de valoraes especficas do
legislador penal na incriminao das condutas e de uma justificao autnoma das normas
penais. No tem sentido, atualmente, tomar posio acerca daquela luta de escolas, na base do
conceito de ilicitude. No se deve hoje, em rigor, ser clssico, finalista ou neoclssico quanto aos
conceitos de tipicidade ou de ilicitude, antes de se tomar posio sobre cada uma das
consequncias metodolgicas destas escolas e dificilmente se chegar a aceitar os pressupostos
e consequncias de cada escola. Tais escolas pretendiam, com efeito, impor uma deduo
sistemtica na definio de crime a partir dos seus pressupostos lgicos, o que pouco
sustentvel como mtodo de anlise conducente determinao da responsabilidade criminal.
Assim, por exemplo, correto separar o tipo indiciador da ilicitude, enquanto mtodo de
separao lgica do objeto da valorao o facto tpico da valorao do objeto a valorao
como ilcito do facto. Mas isso no implicar aceitar um carter secundrio do Direito Penal nem
ter de impedir o intrprete de extrair do tipo legal de crime a norma de ilicitude que lhe subjaz
(ou, como refere Figueiredo Dias, que o tipo concretiza), isto , a especial razo pela qual um
certo facto proibido pelo Direito Penal. A ideia de um tipo indiciador , por isso, associvel a
uma autntica e originria ilicitude penal, em que sejam identificveis razes especficas para a
proibio que no resultam automaticamente do reconhecimento do valor do bem jurdico em
geral para o direito ou at do reconhecimento pelo Direito de um direito fundamental. Assim,
nem todas as violaes de direitos fundamentais ou de bens fundamentais tero de ser crimes
sem que uma especial necessidade o imponha, nem haver, em geral, incriminaes obrigatrias
que resultem da ordem constitucional sem que os fins do Direito Penal as reclamem. A ilicitude
do facto, porm, no apenas uma incompatibilidade lgico-formal (ilicitude-formal) com a
ordem jurdica mas uma incompatibilidade plena de contedo, isto , leso de bens jurdicos,
produo de danosidade social no compensada pela preservao de outros valores
(compensao que j aconteceria nos casos de causas da justificao), e incompatibilidade entre
um facto e uma proibio jurdica (ilicitude material na dupla dimenso de desvalor da ao e
do resultado). A ilicitude , assim, um juzo que implica a afirmao do desvalor da ao e do
resultado do facto. E tal desvalor no apenas lgico-formal, tem um contedo graduvel,
admite variaes de gravidade, consoante a importncia do bem jurdico lesado e a gravidade
da contradio da vontade com o Direito. O facto, como se referiu, bidimensionado,
constitudo pela sua expresso objetiva-material e pela sua subjetividade. Tambm a
contradio como o Direito h-de englobar aquela bidimensionalidade. Ser, ento, contradio
objetiva-subjetiva com uma norma ou um conjunto de normas que ditam o que proibido em
face do caso concreto. A afirmao da ilicitude do facto, por isso, depende do desvalor da ao
e do desvalor do resultado. Poder-se-ia dizer que a desobedincia e a danosidade se teriam que
combinar. Porm, o desvalor da ao no desobedincia a uma ordem, mas violao voluntria
de uma proibio ou de um imperativo. O que o ilcito , portanto, o facto concreto contrrio
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ao dever emanado das proibies legais, cujas consequncias produzem os efeitos que o
Direito Penal pretende evitar (resultado tpico e leso do bem jurdico tal como a perturbao
concreta das esferas jurdicas associada violao do direito de propriedade no caso de furto).
ilicitude do facto acresce a necessidade de culpabilidade: o facto tpico e ilcito tem de ser
realizado com culpa pelo agente para ser um crime. Poder no ser crime ainda o disparar
produzindo a morte de uma pessoa sem qualquer causa de justificao do facto (isto , sem
qualquer circunstncia que o torne permitido ou pura e simplesmente no proibido, como a
legtima defesa ou o direito de necessidade) se, por exemplo, o agente tiver disparado sobre
uma pessoa sob a ameaa de que um filho seu, raptado, ser morto. Este agente no tem
certamente o direito de o fazer, mas pode concluir-se que no possvel uma censura de culpa
se lhe no for, no caso concreto, exigvel outro comportamento dada a gravidade da ameaa, a
perturbao causada no agente e a eventual impossibilidade de outros meios serem usados para
evitar a concretizao de tal ameaa (artigo 35. CP). Tambm no caso de ser menor de dezasseis
anos ou de sofrer de anomalia psquica (artigos 19. e 20.CP) o agente no poder ser
considerado como culpado, embora pratique um facto ilcito. Do mesmo modo, se o agente
desconhecer a ilicitude do facto que pratica de modo no censurvel, o facto permitido: no
haver crime. A culpa , assim, a dimenso da censurabilidade do autor do facto, que no
automaticamente uma decorrncia da voluntariedade do mesmo nem da sua ilicitude. O Direito
Penal exige, para que haja culpa, uma certa medida de conhecimento, de capacidade e de
liberdade de motivao pela norma, o que h-de significar, em ltima instncia, que o facto
criminoso seja a expresso do seu autor e no apenas o reflexo incontrolvel das circunstncias
que rodearam a ao do mesmo ou de uma personalidade incapaz de se orientar pelos valores
do Direito. Embora a culpa seja um juzo autnomo de ilicitude, no s na sua matria factual,
que h-de corresponder vivncia das motivaes do autor e do controlo sobre si mesmo, mas
tambm no seu critrio como juzo, a afirmao da culpa fundamentalmente questionada
quando se invocam possibilidades da sua ausncia. Chegou-se mesmo a admitir que a culpa no
seria mais do que um juzo negativo de valor, mas, na realidade, no pode deixar de afirmar-se
positivamente a culpa na medida em que ela , pelo menos, o limite obrigatrio da medida
concreta da pena. a chamada funo restritiva da culpa, que Roxin, assinala e que Figueiredo
Dias parece ver consagrada no artigo 40. CP portugus. O que est, fundamentalmente, em
causa na culpa na afirmao do necessrio controlo da vontade do autor em face da norma
penal: a capacidade de motivao pela norma devido a um suficiente conhecimento de que o
facto proibido e a capacidade de inibio da vontade perante o facto ilcito. O crime ainda
necessariamente um facto punvel, isto , depende da punibilidade de um facto tpico, ilcito e
culposo. A afirmao da punibilidade corresponde a uma outra filtragem do facto com vista
sua qualificao como crime. Segundo tal filtragem, para que a lei penal se aplique a uma certa
categoria de factos ainda necessrio que no se verifiquem algumas circunstncias erigidas
pelo legislador como condies objetivas de punibilidade. Trata-se de factos contextuais que
condicionam o interesse punitivo do Estado relativamente a condutas que, pelas suas
caractersticas intrnsecas, seriam crimes (ilcitos culposos), mas que no necessrio punir. A
punibilidade neste sentido, enquanto associada a condies de punibilidade previstas num tipo
legal de crime, um momento autnomo e ulterior da qualificao do facto como crime uma
ltima fase do juzo qualificativo. Porm, punibilidade tambm se costuma associar uma
funo profunda, relacionada com uma adaptao ou conformao das categorias da ilicitude e
da culpa s exigncias poltico-criminais, nomeadamente carncia efetiva de tutela penal.
Neste sentido, a punibilidade seria um juzo sem momento certo no qualificao doo facto como
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crime ou uma qualificao adicional e seletiva das outras qualificaes. H, porm, uma
discusso sobre se a punibilidade seria um juzo antecipado, situado na tipicidade, um juzo final
ou, como se referiu, um juzo sem momento determinado mas meramente seletivo e
conformador.
Desenvolvimento: as teorias sobre a definio de crime e a ideia de sistema: esta primeira abordagem da definio do crime sugere-nos que a aplicao da lei penal consiste
essencialmente numa qualificao de um facto em funo de certas caractersticas. Tal , com
efeito, a proposta de um sistema de anlise do crime que subjaz doutrina tradicional, de
inspirao germnica nas escolas clssica, finalista e neoclssica. Porm, a deciso dos casos
concretos no corresponde apenas a um tcnica e a uma linguagem indiferente a juzos ticos e
poltico-criminais mais gerais sobre a responsabilidade, posio que a teoria geral da infrao,
nas suas piores vulgarizaes dogmticas, permitia. A teoria clssica (Beling e Von Liszt) defendia
um sistema de tipo indiciador, objetivo e descritivo, em que a ilicitude era formal (contradio
com as normas que constituam a ordem jurdica) e objetiva e atribua culpa um contedo
psicolgico, consubstanciado no dolo ou na negligncia. A teoria finalista (Welzel) mantinha a
perspetiva de um tipo indiciador e descritivo, mas inclua nele o momento subjetivo da ao,
por fora do conceito de ao final que propugnava. Retirava, assim, da culpa o dolo e tornava
a culpa um mero juzo normativo de censurabilidade do agente esvaziando-a do objeto factual.
A ilicitude era constituda, igualmente, pelo desvalor da ao e do resultado, sendo portanto um
juzo normativo, mas tambm objetivo-subjetivo. A conceo neoclssica (Mezger, Engisch)
defendia o tipo como fundamento do ilcito, mas mantinha o carter objetivo do mesmo, isto ,
no inclua momentos de violao do dever, o dolo ou a negligncia, seno em certos caos em
que o tipo inclua explicitamente momentos subjetivos, como a exigncia e uma especial
inteno. As causas de justificao eram elementos negativos do tipo e a culpa tinha uma
componente normativa a censurabilidade tico-social do agente. Com estes esquemas, a
preocupao fundamental tornava-se o lugar sistemtico das qualidades do facto a ser
confrontado com a lei penal; saber se a ilicitude era objetiva ou objetiva-subjetiva, isto , se nela
se analisava j a contradio com uma norma de dever por parte do agente (o que implicaria a
anlise da capacidade concreta de evitar o facto ilcito) ou apenas a contradio com uma norma
que objetivamente valorasse o bem jurdico, protegendo a vida, a propriedade, etc.. Assim, as
grandes questes colocadas pelos trs principais sistemas clssico, neoclssico e finalista
fora, essencialmente, duas:
A procura de um elemento predominante na fundamentao dos critrios e solues
utilizadas na definio do crime (a lei positiva, as estruturas ontolgicas do
comportamento humano ou as finalidades e valoraes essenciais do sistema penal);
A determinao do contedo e da relao das categorias essenciais em que se baseia a
responsabilidade criminal (tipicidade, ilicitude, culpa e punibilidade).
A primeira questo suscitou, como refere Figueiredo Dias, dois modelos superadores o
correspondente normativizao do ontologismo e o correspondente ontologizao do
normativismo. A segunda originou um esvaziamento material das categorias, que passaram a
poder abranger contedos variados. Em ambos os casos, resultou uma excessiva formalizao
da teoria do crime e alguma circularidade. A causa desses formalismo e circularidade foi, sem
dvida, a procura de um ponto a partir do qual a definio do crime se viesse a deduzir em
cascata, isto , a procura de um ponto fixo de pensamento para que se pudesse remeter,
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constantemente, permitindo a soluo dos casos implicados na definio do crime. Mas, pro
causa disso, no s falharia a deduo ontolgica finalista (que pretendia justificar, a partir do
conceito de ao final como espcie do ser, o contedo da tipicidade e as relaes entre esta, a
ilicitude e a culpa) como tambm a deduo neoclssica do contedo da tipicidade e da culpa a
partir de valores finais do sistema, tais como a retribuio e a censurabilidade social. Mas a
colocao em causa da funo dedutiva do sistema de definio do crime proposta por finalistas
e neoclssicos atingiria, inevitavelmente, as prprias construes posteriores, teleolgicas ou
funcionalistas dos sistema penal e da teoria geral da infrao. Na realidade, h um ponto a partir
do qual impossvel negar o dedutivismo sistemtico sem rejeitar todo e qualquer sistema. Se
e certo que se dever evitar um nico topos argumentativo, uma nica lgica sistemtica, j
parece inultrapassvel manter, pelo menos, um sistema aberto, aceitando-se, at, uma
imanente e implcita conflitualidade sistemtica. Por outro lado, o sistema de anlise do crime
no pode deixar de explicitar o funcionamento concreto da teleologia implcita nem da
referncia ontolgica em que assenta, isto , s a compreenso do sistema proposto pelo
legislador permite a sua crtica ou, pelo menos, o seu confronto com o que funciona
praticamente. E os limites da ao humana condicionvel pelas normas no podem deixar de
ser analisados, para se compreender as possibilidades de funcionamento do sistema. O estudo
do sistema de anlise do crime para servir a construo e o desenvolvimento de uma lgica de
determinao da responsabilidade penal tem de permitir a revelao do funcionamento prtico
dessa lgica, a sua crtica e eventual superao. Este modo de abordagem evitar as principais
questes que opuseram finalistas e neoclssicos. As velhas questes da incluso do dolo no tipo
ou da relevncia do erro sobre as causas de justificao podero deixar de ser resolvidas,
segundo uma lgica geral do sistema, a partir de um certo elemento predominante no sistema
de natureza ontolgica (estrutura da ao) ou valorativa (finalidade retributiva do sistema)? Na
verdade, questes como a incluso do dolo no tipo ou na culpa perdero muito do seu
significado tradicional se se alcanar um consenso acerca da necessidade de basear o juzo de
responsabilizao pessoal na determinao da conduta violadora do dever jurdico (desvalor da
ao). Assim, a incluso do dolo no tipo no deveria ser compreendida como pura decorrncia
da natureza do comportamento humano, mas colocar-se, antes, como uma opo relativa s
finalidades do juzo de responsabilizao penal. A justificao deste juzo pressupe que toda a
valorao negativa de um comportamento depende de um contexto de capacidade de opes
da ao humana e social, num sistema justo e responsabilizador. Tambm a exigncia, no mbito
do crime negligente, de que a conduta tpica seja integrada pela violao do dever individual de
cuidado h-de significar que a censura da pessoa do agente posterior identificao do facto (o
posterior juzo de culpa) no se baseia apenas na mera divergncia do comportamento perante
a norma, mas ainda na possibilidade concreta de o agente adequar o seu comportamento s
prescries da norma em face das suas capacidades. Em suma, a remisso pura e simples para
a culpa, como momento de censurabilidade da pessoa (isto , da atitude ou personalidade),
daquele quid que deve ser apurado no plano das possibilidades de ao de um determinado
indivduo, prescindindo de incluir tais momentos na tipicidade, poder, ilegitimamente, antepor
pura valorao tico-social do comportamento sua identificao ou definio como ao
humana, expresso de opo entre alternativas. A combinao entre a perceo das finalidades
normativas do sistema, do seu funcionamento prtico e das possibilidades fticas do agente
impor certas solues, independentemente de opes concetuais e sistemticas. Ora as
questes sistemticas tradicionais no colocam no primeiro plano opes quanto ao sentido do
juzo responsabilizador decorrente da definio de crime, embora as contenham implcitas sob
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outras vestes, nem articulam muito explicitamente essas opes com as possibilidades fticas
ou sociais do agir. Mas so estas opes e possibilidades que devero ser colocadas em primeiro
plano, considerando as consequncias (no s lgicas mas tambm prticas) do seu
funcionamento. Tais construes tericas apenas so credveis se revelarem opes quanto s
fronteiras da responsabilizao criminal, se permitirem obter distines operantes e de
significado percetvel e se se basearem em possibilidades concretas dos destinatrios das
normas. Na doutrina portuguesa, Figueiredo Dias demonstrou claramente na sua obre O
Problema da Conscincia da Ilicitude, que o erro sobre os pressupostos das causas de
justificao (em que o agente representa erradamente que uma condio factual de uma causa
de justificao se verifica) e o erro sobre a ilicitude do facto (em que o agente desconhece que
o facto que pratica proibido) no tinham uma soluo cabal a partir da distino sistemtica
entre tipicidade e ilicitude e dos diferentes contedos atribuveis ao tipo e ao ilcito,
nomeadamente no dependiam da incluso das causas de justificao no tipo conforme a
perspetiva neoclssica ou do dolo no tipo, conforme a perspetiva finalista. No dependeria
consequentemente, da posio neoclssica ou finalista a soluo a dar a estes erros como causa
de excluso do dolo ou de atenuao da culpa mas apenas do diferente relevo para a
censurabilidade pessoal do agente de tais erros em confronto com o erro sobre o tipo. Com esta
deslocao para a culpa da sede dos critrios de distino entre o erro que exclui o dolo (e
portanto a tipicidade) e o erro que, se no censurvel, apenas pode afetar a culpa, ganham-se,
sobretudo, critrios de distino justificveis por uma argumentao extra-sistemtica isto ,
que so percetveis como opo normativa por si, independentemente de quaisquer
pressupostos sistemticos. Com efeito, a colocao de tais erros como imediata questo de
culpa impede que a soluo jurdica dependa de opes mais abstratas (teorias da ao, por
exemplo) acerca da definio de crime. Mas o que o exemplo buscado em O Problema da
Conscincia da Ilicitude revela que a teoria geral da infrao tem de funcionar com critrios
imediatamente aptos para uma justificao aceitvel (e compreensvel) da deciso do caso,
devendo tais critrios constituir uma verdadeira teoria da deciso penal. A chave da teoria do
crime no em si mesma a referncia de um problema a uma categoria mas uma outra forma
de abordagem, discursiva, direta e material. A este propsito, interessante verificar que um
autor americano, George Fletcher, refere as doze distines bsicas do Direito Penal,
ultrapassando as que so prprias da teoria da infrao, mas abrangendo, igualmente, algumas
referidas teoria da pena Uma tal linha de pesquisa surge para o pensamento europeu como
retorno s fases pr-sistemticas da teoria penal, que caracterizam a doutrina penal pr-
moderna baseada no comentrio das leis e no casusmo em que era incipiente uma ideia geral
de crime, mas com a subtil diferena de hoje, se poder trabalhar com distines j
laboriosamente estruturadas pela teoria dos sistemas. Com efeito, todas as grandes distines
doo Direito Penal no so (provavelmente com a exceo das distines entre erros com
referncia ao tipo e ilicitude ou culpa) um produto da teoria dos sistemas, mas distines
seculares, oriundas do Direito Romano ou do pensamento jurdico europeu sobre os
pressupostos da responsabilidade penal. A tarefa racionalizadora do pensamento sistemtico
construdo sobretudo a partir de Beling parece ter levado a autonomizar excessivamente o
sistema das suas funes primordiais, criando aquele aparente esquecimento dos fins e do
discurso compreensvel que caracteriza a abstrao terica. So esses fins, essa plausibilidade
das solues no discurso, que devem assumir o primeiro plano. Mas haver possibilidade e
necessidade de reorientar o pensamento sistemtico? Uma resposta possvel foi, como veremos,
a do pensamento funcionalista.
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a. O pensamento funcionalista e a reconstruo do sistema de definio e anlise do
crime: o funcionalismo sociolgico e o funcionalismo teleolgico: o pensamento
funcionalista aplicado teoria geral da infrao como uma nova opo de pensamento
sistemtico reconstri a lgica dos sistemas, clssico neoclssico e finalista, atravs da
ideia de adaptao funcional da prpria definio de crime tarefa de integrao no
sistema dos seus destinatrios. Nesta orientao, paradigmtico o pensamento de
Jakobs, embora j Roxin tivesse concebido uma orientao funcional das categorias
tradicionais do conceito de crime, a partir das finalidades preventivas do sistema penal.
Como refere Vives Antn, poder-se- falar de um funcionalismo teleolgico e de um
funcionalismo sociolgico, integrando-se Roxin no primeiro e Jakobs no segundo, no
sendo adequado fundir todo o apelo aos fins do sistema no mesmo conceito de
funcionalismo. Um pensamento funcionalista que se autonomize verdadeiramente da
racionalidade teleolgica do sistema neoclssico ter de se distanciar da prpria
definio da realidade utilizada pelo sistema jurdico (da respetiva definio e
compreenso), tanto do que regulado pelo sistema jurdico como da realidade que o
sistema postula como do prprio sistema jurdico enquanto elemento da realidade; isto
, ter de traduzir as normas do sistema bem como a sua teleologia em funes sociais,
numa espcie de realidade oculta subjacente. No funcionalismo de Luhmann, que mais
tem influenciado o pensamento jurdico, a realidade (aes, pessoas, instituies,
objetos) toda ela reduzida a um sistema complexo de interaes (papis e funes)
apto a realizar determinadas funes exigidas pelo ambiente em que se integra
(output/input). Assim, o papel ou a funo que define o objeto de conhecimento, que
o cria enquanto tal, de modo que a leitura do real no um retrato de entidades ta
como estas se apresentam ao sujeito de conhecimento, puramente autnomas
relativamente aos critrios ou modelos de conhecimento, mas depende de certo modo
dos prprios critrios e perspetivas atravs das quais so conhecidas. Este funcionalismo
radical depende se uma perspetiva epistemolgica diferenciada da que classicamente
subjaz teoria dos sistemas no Direito Penal. Com efeito, o prprio finalismo, apoiado
embora (na ltima fase) num modelo ciberntico de ao, baseia-se ainda numa
definio da realidade anti-determinista, voluntarista, construda sobre o conceito de
ao humana racional e livre, em que o eixo de compreenso e definio da realidade
a prpria ideia comum de ao humana, admitida como universal e englobante de todo
o comportamento humano. O pensamento neoclssico, por outro lado, construindo a
realidade a partir do valor e da significao dos factos, admite igualmente o controlo
humano sobre os valores e a significao e, consequentemente, a determinao do ser
pelo dever-ser. Mas o funcionalismo altera verdadeiramente a relao entre o sujeito e
o objeto do conhecimento e valorao pressuposta pelas orientaes anteriores, na
medida em que no concebe a realidade fora de um determinado modelo explicativo.
No se trata nem de uma anteposio do ser ao dever-ser, como pretende o
ontologismo, nem do dever-ser ao ser, como pretendeu o neokantianismo, mas sim de
uma determinao do ser, neste caso a realidade das normas, pela adscrio de papis
e funes. Deste modo, levado at s ltimas consequncias, o funcionalismo no tem
que pressupor a liberdade (como o finalismo) ou optar pela liberdade como valor (como
o sistema neoclssico). Sendo, em si mesmo, alheio a qualquer lgica legitimadora, o
funcionalismo no consegue, porm, superar a circularidade resultante de que todo o
conhecimento, neste caso o das funes, tambm o produto das mesmas regras que
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explicam o funcionamento do conhecido, por conseguinte, determinado pelos
condicionantes e pelos fins do sujeito e, por isso, deste modo, apenas vlido na medida
dessa adequao. O funcionalismo, diferentemente do finalismo, no procura o modelo
de comportamento livre, racional e vinculvel condicionante da implantao de uma
tica de responsabilidade mas constata que o subsistema penal, por ter a funo de
estabilizao contrafctica das expectativas dos destinatrios do sistema, tem a sua
validade ditada pelo sistema social, isto , tem que apurar os seus critrios de
responsabilidade determinados pela funo para cumprir o desgnio da sua existncia.
Assim, a coincidncia entre os critrios de responsabilidade determinados pela funo
do subsistema penal e os critrios de uma tica do agir livre e responsvel ser puro ou
acaso ou, quando muito, uma opo funcionalmente determinada pela lgica soberana
da reproduo do sistema. Mas o funcionalismo, tal como o finalismo e o sistema
neoclssico, tem uma lgica sistemtica totalitria e reducionista quanto aos critrios
de determinao da responsabilidade. Poder tal lgica determinar solues tal como a
do ontologismo finalista? Na realidade, o funcionalismo criou o seu modelo de solues
a partir da ideia de que uma soluo disfuncional (Critrio da deciso de um tipo de
problemas), isto , que no serve a estabilizao das expectativas do sistema, no
racionalmente defensvel e no deve ser proferida. O funcionalismo no apela a uma
legitimao extrnseca ao sistema, como um conjunto de valores superiores, mas apenas
necessidade pressuposta (no demonstrada) de preservao do sistema,
imagem da norma fundamental de Kelsen. Prescinde da fundamentao no sentido
prprio, como a referncia a uma instncia superior que determine o bem ou o mal, o
vlido ou o invlido. Mas ao faz-lo, o funcionalismo mutila, sem dvida, a necessidade
imperiosa de critrios extrnsecos de fundamentao que permitam exigir o
cumprimento de norma ou que a ela nos sujeitemos isto , suprime a necessidade de
validar substancial discursivamente o Direito nas sociedades democrticas
respeitadoras dos direitos fundamentais e num certo direito justia. O vcio do
finalismo foi absolutizar a estrutura racional do agir humano derivando dela todas as
categorias do sistema de determinao da responsabilidade, como se tal estrutura no
fosse tambm eleita em funo das leis ticas do sistema jurdico. O vcio do
funcionalismo , agora, mais radicalmente, apagar a necessidade de fundamentao
extrnseca do sistema e da sua lgica, como se a tica no fosse igualmente uma
necessidade humana e social e uma condio de aceitabilidade do sistema. A soluo
do problema da distino entre o dolo e a negligncia exemplarmente expressiva do
modelo de soluo do problema penal proposto pelo funcionalismo. Jakobs defende
uma conceo segundo a qual o comportamento doloso se define pela avaliao feita
pelo agente, no momento da ao no improvvel, prescindindo de qualquer
relevncia autnoma de momentos psicolgicos (desejos ou estados mentais) ou, ainda,
de momentos de atitude (deciso pela leso de bens jurdicos). Quando fundamenta a
distino entre dolo e negligncia Jakobs apenas refere que os autores negligentes
afetam menos a validade da norma (tangieren die Normgeltung weniger) do que os
dolosos, pois a negligncia resulta da incompetncia do autor para se servir a sua
prpria esfera (ou o que lhe diz respeito), no podendo avaliar (dada a sua desateno)
as prprias consequncias do seu agir. Diferentemente, para o autor doloso as
consequncias fticas e lesivas da sua ao so aceitveis e a norma jurdica reguladora
diretamente posta em causa pela natureza da prpria conduta. No bastar a posio
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do agente perante os valores protegidos pela norma, a partir de um certo contexto
motivacional. Mesmo que no se exclua que as motivaes possam ser utilizadas no
raciocnio probatrio, elas sero apenas consideradas indcios pouco relevantes da
verificao do juzo de no improbabilidade, no qual no se poder deixar de proceder
a uma avaliao da situao por terceiros (pelos cdigos vigentes de interpretao da
situao). Deste modo, a possibilidade de uma conotao do dolo com a culpa, isto , a
censurabilidade do agente em face das motivaes, fica prejudicada e a deciso pela
responsabilidade dolosa torna-se indiferente avaliao da prpria perigosidade do
agente. Independentemente da razoabilidade do critrio de Jakobs, o que resulta claro
que o seu fundamento corresponde a uma opo de desvinculao do valor penal de
uma conduta do quadro tico comum (ou vlido noutras linguagens sociais) de
censurabilidade dos comportamentos sociais. A funo de preservao da validade das
normas justificar, em situaes concretas, que se prescinda de qualquer avaliao da
atitude segundo critrios de valor (bem/mal) prprios da tica, admitindo-se a
qualificao do comportamento como doloso, em ltima anlise, onde a atitude do
agente no revele uma carga tica muito intensamente negativa. Sem exibir uma
diferenciao epistemolgica to radical como a que subjaz ao funcionalismo
sociolgico, tem sido designada como funcionalista, embora os autores no se auto-
qualifiquem como tal, aquela orientao que tinha sido menosprezada pelo
pensamento sistemtico anterior, num modelo de pensamento em que o principal
critrio de qualificao e deciso so as prprias finalidades preventivas do sistema
penal. Retomando o exemplo do contedo do dolo (para no referir as outras categorias,
como as causas de justificao e de desculpa ou a tentativa, que Roxin constri sob
idntica lgica), tambm claro no pensamento deste autor que doloso o
comportamento adequado pena de dolo e cujas caractersticas so fixadas na base de
decises valorativas poltico-criminais e no resultam de quaisquer caractersticas
ontolgicas ou mesmo definidas socialmente do agir humano. Assim, o dolo eventual,
fronteirio da negligncia, corresponde a uma deciso pela possvel leso do bem
jurdico, como expresso de uma superior motivabilidade pela norma e de uma
consequente justificao de uma preveno especial e geral mais intensa. Ora, este
modo de construo sistemtica ainda uma decorrncia da realidade neokantiana,
que tende a derivar das puras opes de valor as categorias da realidade e a no atribuir
qualquer papel determinante e autnomo aos objetos no relevantes valorativamente.
Diferentemente do funcionalismo sociolgico, em que os valores dos sistema no
protagonizam as suas figuras e solues, este outro funcionalismo coloca os contedos
valorativos de um determinado sistema penal no plano central. A necessidade da pena,
a preveno especial, a dignidade da pessoa e os valores constitucionais do Estado de
Direito so os crivos, os tpicos que decidem os critrios da responsabilidade e da
graduao da pena. No se cura, todavia, de uma seleo dos referentes
comportamentais que servem a aplicao daqueles critrios valorativos, mas que seriam
definidos pr-valorativamente ou noutras instncias de leitura da realidade. Admite-se,
antes, uma construo da realidade interna ao sistema valorativo. A categoria geral da
ao ou do comportamento humano no ponto central do sistema. Quando muito, -
lhe assinalada uma funo delimitativa negativa relativamente aos comportamentos
sem um mnimo de autonomia e voluntariedade, no contribuindo para a determinao
dos critrios de imputao penal, tornando-se, portanto, desprovida de valor
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sistemtico. o comportamento tpico, interpretado segundo os valores gerais do
sistema, que expressar os valores particulares da situao concreta (decorrendo, assim,
a base da imputao penal dos desgnios gerais do sistema). Este funcionamento
teleolgico (ou esta teleologia), que numa vertente mais moderada, sistematicamente
mais complexa e aberta, integra o pensamento de Figueiredo Dias, tende a no extrair
qualquer operatividade para as categorias de imputao penal de outros sistemas de
construo ou definio da realidade. Se o funcionalismo sociolgico redutor porque
aniquila as questes sobre as preferncias ou opes normativas, retirando deciso
jurdica o seu nvel tradicional de fundamentao, o funcionalismo teleolgico incorre,
se levado s ltimas consequncias, numa auto-construo dos valores do sistema penal,
no solipsismo valorativo, perdendo, igualmente, a possibilidade de integrar no nvel
tico-jurdico a contribuio de outras experincias de pensamento.
b. O aproveitamento na teoria geral da infrao da reconstruo sistemtica do
pensamento sobre a sociedade (a teoria da ao comunicativa, a teoria da linguagem
e a racionalidade intersubjetivamente determinada): pode dizer-se que existe um
(ainda) tmido esforo para suscitar um novo impulso epistemolgico no pensamento
penal europeu, a partir dos desenvolvimentos da filosofia da ao e da teoria da
sociedade, embora sem concretizao e formalizao idnticas do funcionalismo
sociolgico. A ideia mnima de um tal enquadramento terico a rejeio de uma
racionalidade puramente jurdica e a constante imbricao da realidade social no Direito
como instrumento da interpretao do Direito existente e da sua reconstruo
valorativa. A ao no vista como um puro facto, uma substncia ou um substrato
fsico-comportamental, mas no tambm uma mera construo do sistema jurdico.
Surge como interpretao normativa ou construo normativa (atravs das regras
sociais) do mundo. Aparentemente, este conceito de ao no mais do que a ao
social que a teoria neoclssica viria a adotar. Todavia, neste entendimento de ao
social est implicada uma inverso entre o mtodo e o objeto do conhecimento
relativamente teoria da ao social neoclssica. O objeto do conhecimento no j a
determinao das caractersticas essenciais comuns a todo o comportamento com o
valor de ao a partir de significado social, mas antes as regras da linguagem social (e
dos respetivos contextos) que permitem designar validamente como ao (ou ao de
um determinado tipo) um certo comportamento, num dado contexto. O facto de a ao
ser entendida como construo de significado a partir de regras sociais (as da linguagem
e dos seus jogos) torna essas regras e os contextos sociais do seu uso o verdadeiro
objeto da investigao acerca da ao e das suas formas. Assim, tal como quanto
conceo de ao e das suas formas. Assim, tal como quanto conceo de ao social
investigar-se- quais as regras sociais que distinguem uma ao de um determinado tipo
(ofensa corporal) de um puro facto ou de uma ao de um outro tipo (por exemplo, de
uma interveno cirrgica), todavia sero essas mesmas regras sociais, os eu modo de
produo e a sua relatividade, a principal finalidade da anlise e no a deduo a partir
delas das caractersticas em geral dos comportamentos humanos. A partir deste
entendimento, a ao no um problema de definio das caractersticas de uma
realidade, que ainda uma perspetiva ontolgica, mas um problema de identificao
das regras (ou critrios de atribuio de significado) de validade da designao de uma
conduta num determinado contexto relevante para o Direito. A teoria da ao com
interesse para o Direito Penal seria, neste sentido, a teoria sobre as lgicas, as regras e
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as condies da comunicao pelo Direito de tais lgicas, da qual derivariam as
condies de validade das prprias designaes das condutas penais como condutas de
um certo tipo (ao, omisso, dolo, negligncia, autoria, comparticipao, homicdio,
injria, etc.). Uma tal perspetiva , como foi referido, meramente embrionria, mas
parece indicada pelo modo como constitudo o discurso em vrio autores, como
Michael Khler, fazem uma abordagem antiontolgica da responsabilidade penal, mas,
igualmente no funcionalista, a que no alheia a ideia de racionalidade comunicativa
e uma fundamentao da validade do Direito em estruturas lgico-sociais da ao livre.
Este autor desenvolve uma importante crtica metodolgica do positivismo jurdico e do
normativismo (nomeadamente da escola neoclssica), criticando, expressamente, a
reduo de ao pressuposta pelo sistema jurdico causalidade natural ou
racionalidade dos fins. Para Khler, a ao no uma ordem exterior ao Direito, mas
sim o encontro de uma razo jurdica intersubjetivamente definida. Porm, esses
autores apenas se renem, como se referiu, atravs de uma tendncia para buscar a
racionalidade do Direito, como pretendia Max Weber, na racionalidade de outros
sistemas sociais e no intrinsecamente nos valores que aquele autoprope. Desenham
geralmente uma linha reconstrutiva das solues do sistema penal e dos seus valores
de acordo com aquela mesma ideia de racionalidade comunicativa, adequada ao
fortalecimento dos valores do respeito pela subjetividade e pelo consenso
intersubjetivo. A prpria referncia s racionalidades sociais extra-jurdicas nas solues
do Direito surge simultaneamente como produto de compreenso da validade do
Direito e da sua eficaz reconstruo. A possvel repercusso destas abordagens na teoria
da infrao a prpria alterao dos problemas sistemticos que constituram o quadro
terico da teoria dos sistemas, desde Beling. Todavia, ainda no emergiu uma suficiente
conscincia dessa alterao, com repercusso decisiva na enunciao dos problemas do
Direito Penal. s questes sobre o reencontro entre tipicidade e ilicitude ou ilicitude e
culpa, que tornam o Direito Penal um pensamento hermtico, e que o cristalizam em
dogmas inultrapassveis (delimitando rigidamente o campo dos conceitos, como as
causas de justificao, o dolo, as espcies de erro, etc.), dever contrapor-se em sistema
mais flexvel de conceitos em que a deciso sobre as consequncias do crime assumir,
objetivamente, o papel preponderante.
A teoria geral da infrao e as questes primrias de uma teoria da deciso sobre a
responsabilizao penal. Proposta metodolgica: uma teoria geral da infrao baseada uma certa ordenao sistemtica dos elementos da definio de crime leva referncia das
caractersticas do facto concreto que justificam a sua qualificao como crime, tais como, por
exemplo, a inteno do agente, a verificao de uma situao de legtima defesa ou a capacidade
de motivao pela norma penal, a cada elemento da definio de crime, a tipicidade, a ilicitude
e a culpa. Mas a teoria geral da infrao deve ser uma anlise desformalizada dos critrios gerais
de deciso sobre a responsabilidade penal, no se fechando hermeticamente num sistema de
definio do crime motivado pela mera preocupao de apreenso da racionalidade dos
elementos comuns a qualquer crime no sistema. Sem abandono das categorias propostas pelos
sistemas de definio e anlise do crime, indispensveis pela sua dimenso concetual,
necessrio, porm, progredir-se para uma exposio dos critrios de determinao da
responsabilidade penal, que interprete o contedo da ilicitude e da culpa (e a dimenso da
tipicidade que as interpenetra e em que se baseiam) como critrios de deciso das fronteiras da
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responsabilidade penal, de acordo com opes de justia, construtivas do sistema penal. A
teoria geral da infrao poder, consequentemente, assumir o papel de uma teoria da deciso
sobre a imputao penal num sistema jurdico aberto considerao de outras linguagens. No
prosseguimento de tais objetivos, deveremos confrontar-nos com o quadro das grandes opes
ou critrios de determinao das fronteiras de atribuio de responsabilidade (imputao) penal,
tais como: h (ou deve haver) uma limitao do facto punvel a um determinado sentida de ao,
que exclua, por exemplo, uma equiparao generalizada da omisso ao? A imputao de
consequncias de um comportamento coincide essencialmente com a causalidade ou prescinde
dela? O comportamento doloso abrange (ou deve abranger) algo mais do que a representao
como no improvvel de um resultado? A ilicitude reclama a violao de um dever ou basta-se
com a leso objetiva de um bem jurdico e a correspondente danosidade social? A culpa poder
prescindir da valorao de uma atitude interna do agente? Esta transferncia das questes
sistemticas tradicionais para a esfera de uma lgica de deciso no prescinde do entendimento
da prpria lgica estrutural bsica da teoria geral da infrao tradicional, consistente numa teia
de precedncias entre a tipicidade, a ilicitude e a culpa. Mas, como a doutrina no unnime
quanto ao contedo das categorias, acontecer, por vezes, que o que prioritrio e antecedente
numa proposta sistemtica no o ser noutra abordagem. O mesmo se passar com a distino
entre ilicitude e culpa que, sendo hoje praticamente indiscutida, no evita a transferncia de
contedos entre os seus termos, de modo que aquilo que foi mero fundamento de desculpa
poder passar a suscitar a atipicidade ou a excluso da ilicitude. Todavia, a excessiva insistncia
em problemas como o sistema tripartido ou bipartido, a insero sistemtica do dolo e o lugar
da punibilidade no parece justificvel. As questes materiais, as referidas opes bsicas da
deciso sobre a imputao penal, devero levar a decidir essas outras questes que apenas
podem ser formalizaes das alternativas colocadas pelas primeiras. Tais questes, ou pelo
menos as primrias, podero ser reduzidas ao seguinte elenco exemplificativo:
A imputao penal, como atribuio de responsabilidade, pode referir-se a quaisquer
factos humanos ou exige comportamentos com certa natureza (funo delimitativa do
conceito de ao)?
Na interpretao da norma penal incriminadora com vista imputao penal, o
intrprete est vinculado a uma certa racionalidade pr-jurdica? Existir essa
vinculao na delimitao entre ao e omisso ou na configurao do dolo e da
negligncia (funo sistemtica da ao e da relao entre tipicidade e ilicitude)?
Na delimitao de um facto como tpico, por exigncias decorrentes do princpio da
legalidade, vivel um critrio interpretativo que condicione s razes gerais do sistema
(fins e funes) a determinao da existncia do facto tpico para alm do sentido
possvel das palavras (problemas na interpretao das normas penais e no
relacionamento entre tipicidade e ilicitude)?
Qual a importncia da causalidade na imputao jurdica das consequncias de um
facto ao de um agente?
Como que se imputam (atribuem) os factos aos agentes?
Na imputao do dolo (imputao subjetiva) h uma vinculao a uma estrutura racional
de intencionalidade ou o dolo uma construo do sistema penal de acordo com as suas
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funes e finalidades? Em qualquer dos casos, qual o contedo do dolo (questo do
contedo e espcies de dolo e decorrentemente da sua insero sistemtica)?
exigvel algum momento subjetivo como o dolo ou a negligncia para a afirmao de
que a conduta viola a norma penal (questo de objeto do juzo de ilicitude e dos papis
relativos dos desvalores da ao e do resultado?
Que diferena essencial existe entre a ilicitude ou excluir a culpa ou justificar e desculpa?
As causas de justificao implicam uma efetiva permisso e valorao positiva de uma
conduta (natureza da justificao, distino entre justificao e desculpa)?
A culpa implica uma valorao da atitude do agente ou apenas da sua capacidade de
agir de modo diferente (problema das concees de culpa)?
O erro pode excluir a responsabilidade penal (problema da distino entre erro
intelectual e erro moral e espcies de erro de acordo com os sistemas da definio do
crime)?
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Ttulo I A construo da doutrina do crime (do facto
punvel)2
10. - Questes fundamentais
Sentido, mtodo e estrutura da conceitualizao do facto punvel: princpio hoje indiscutivelmente aceite em matria de dogmtica jurdico-penal e de construo do conceito de
crime o de que todo o Direito Penal Direito Penal do facto, no direito penal do agente. E num
duplo sentido:
No de que toca a regulamentao jurdico-penal liga a punibilidade a tipos de factos
singulares e sua natureza, no a tipos de agentes e s caractersticas da sua
personalidade; e
Tambm no de que as sanes aplicadas ao agente constituem consequncias daqueles
factos singulares e neles se fundamentam, no so formas de reao contra uma certa
personalidade ou tipo de personalidade.
Nesta aceo pode e deve logo ser dito que a construo dogmtica do conceito de crime afinal,
em ltima anlise, a construo do conceito de facto punvel. Em suma, pois mesmo em matria
de segurana criminais , o facto e s ele constitui, na aceo agora em causa, o fundamento e o
limite dogmtico do conceito geral de crime; de sorte que perguntar por este perguntar, do
mesmo passo, pelo conceito de facto ou, se preferirmos, de facto punvel ou de facto criminoso.
Ora, a tentativa de apreenso dogmtica deste conceito jurdico-penal do facto constitui uma das
mais ingentes tarefas a que at hoje se dedicou a dogmtica jurdica. E essa tentativa ocorreu
quase sempre, durante os dois ltimos sculos,, na base de um procedimento metodolgico
categorial-classificatrio, atravs do qual se toma como base um conceito geral no caso, o
conceito de ao suscetvel, pela sua larga extenso e pela sua reduzida compreenso, de servir
de pedra angular de todas as suas predicaes ulteriores. O que no significa desagregar ou
quebrar em pedaos diversos e autnomos o conceito de crime, mas alcanar uma sua
compreenso unitria atravs de uma sua compreenso lgico-sistemtica, a permitir que uma
realidade unitria seja contemplada a partir de pontos de vista diversos. Assim se chega
compreenso do facto e portanto de todo e qualquer crime como conjunto de cinco
elementos: como ao, que depois qualificada (conceo quadripartida) como tpica, ilcita,
culposa e punvel. Como quer que estes elementos devam mutuamente compreender-se e
delimitar-se (e eventualmente, at um certo ponto, fundir-se), ao, tipicidade, ilicitude,, culpa e
punibilidade so os elementos constitutivos do conceito de facto ou do conceito de crime e do
respetivo sistema dogmtico.
2 Dias, Jorge Figueiredo; Direito Penal, Parte Geral Tomo I; Coimbra Editora, 2. Edio; Coimbra outubro 2012.
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Sobre a evoluo histrica da doutrina geral do facto punvel: a construo do conceito de facto punvel, tal como hoje se apresenta, filha de uma experincia de tal forma multmoda e
plurifacetada que se impe oferecer, a quem dela se aproxima pela primeira vez, modelos de
compreenso, tanto quanto possvel fceis e manejveis, das querelas atuais; mas que, na sua
simplicidade, correspondam todavia, no essencial, vivncia e evoluo histrico-dogmticas
do ltimo sculo. Correspondncia que no poderia deixar de entrar em linha de conta com as
mundividncias culturais e filosficas que estiveram na base das concees principais e
decisivamente as influenciaram. Com este propsito distinguir-se-o em seguida trs grandes
perodos ou fases da evoluo da doutrina do facto punvel: o da conceo clssica, de notria
influncia naturalista e juspositivista; o da conceo neoclssica, cujos fundamentos se devem
procurar no normativismo jurdico de raiz neokantiana; e o da conceo finalista, orientada por
uma conceo ntica ou regional-ontolgica do Direito, ligada fenomenologia e a uma filosofia
material dos valores. Devendo todavia desde o primeiro momento fazer-se uma preveno: a de
que cada uma das concees referidas pretendeu, mais do que substituir, superar a anterior.
Como exatamente sublinha Jescheck,
nenhuma das teorias conseguiu afastar completamente as outras, continuando ainda hoje vivos,
uns junto dos outros, pensamentos procedentes dos trs sistemas.
1. A conceo clssica (positivista-naturalista):
a. Exposio sumria: a conceo chamada clssica do facto punvel3 assenta numa
viso do jurdico decisivamente influenciada, em perspetiva poltico criminal,
pela ento dita Escola moderna e, de forma geral, pelo naturalismo positivista
que caracterizou o monismo cientfico prprio de todo o pensamento da
segunda metade do sculo XIX. Tambm o direito teria como ideal a exatido
cientfica prpria das cincias da natureza e a ele deveria incondicionalmente
submeter-se; de sorte que, do mesmo modo, o sistema do facto punvel haveria
de ser apenas constitudo por realidades mensurveis e empiricamente
comprovveis, pertencessem elas facticidade (objetiva) do mundo exterior ou
antes a processos psquicos internos (subjetivos). Com o que ficava prxima uma
bipartio do conceito de crime que agrupasse os seus elementos constitutivos
na vertente objetiva (a ao tpica e ilcita) e na vertente subjetiva (a ao
culposa); conceo esta ainda hoje muito viva, por exemplo, na doutrina francesa
dominante, que se limita em regra a distinguir no conceito de crime o elenco
material e o elemento moral da infrao. De acordo com o que fica dito, esta
conceo via na ao o movimento corporal determinante de uma modificao do
mundo exterior, ligada casualmente vontade do agente. Ao que se tornaria em ao
tpica sempre que fosse lgico-formalmente subsumvel num tipo legal de ao,
completamente estranha a valores e a sentidos. Ao tpica, por seu turno, que
se tornaria um ilcita se no caso no interviesse uma causa de justificao, dizer,
uma situao (legtima defesa, estado de necessidade, obedincia devida, etc.)
que, a ttulo excecional, tornasse a ao tpica em ao lcita, aceite ou permitida
pelo Direito; e que assim determinasse em definitivo a contrariedade da ao ao
ordenamento jurdico. E com isto ficaria perfeita a vertente objetiva facto.
3 E para a qual contriburam decisivamente autores como Berner.
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Quanto vertente subjetiva do facto, ela concentrar-se-ia na categoria de culpa.
A ao tpica e ilcita tornar-se-ia em ao culposa sempre que fosse possvel
comprovar a existncia, entre o agente (imputvel, sc., capaz de culpa) e o seu
facto objetivo, de uma ligao psicolgica da esta doutrina ter ficado
conhecida como conceo psicolgica da culpa suscetvel de legitimar a
imputao do facto ao agente a ttulo de dolo (conhecimento e vontade de
realizao do facto) ou de negligncia (deficiente tenso de vontade impeditiva
de prever corretamente a realizao do facto). E com isto se teria logrado a
apreenso perfeita e completa do conceito de crime.
b. Apreciao crtica: a partir de certo momento compreendeu-se que o sistema
naturalista-positivista do crime, assim delineado, no podia prevalecer. Logo o
conceito de ao, ao exigir um movimento corpreo e, de todo o modo, uma
modificao do mundo exterior, restringia de forma inadmissvel a base de toda
a construo. O que conduziria a afirmaes to estranhas realidade da vida
como a de que a ao, no crime de injria, consistiria na emisso de ondas
sonoras dirigidas ao aparelho auditivo do recetor; ou que, na omisso, o que
relevaria como ao seria a ao precedente (a me seria punida no por ter
deixado morrer o seu beb fome, mas por, em vez de o amamentar, ter ido
passar um fim de semana ao campo). Reduzir por outro lado a tipicidade a uma
operao lgico-formal de subsuno, esquecendo as unidades de sentido social
que vivem nos tipos, levaria a igualar o ato do cirurgio que salva a vida do
paciente com o do faquista que, em vendetta, esventra a sua vtima. Como
reduzir o juzo de ilicitude ausncia de uma causa de justificao do facto tpico
(de um obstculo ilicitude ou de uma causa de excluso da ilicitude) constituiria
uma compreenso pauprrima e, em definitivo, inexata do que vai implicando
no juzo de contrariedade ordem jurdica. Finalmente, a conceo psicolgica
da culpa esqueceria que tambm o inimputvel por definio, incapaz de culpa
pode agir com dolo ou negligncia; que na negligncia, ao menos na
inconsciente, onde no h previso do resultado, no existe qualquer relao
psicolgica comprovvel entre o agente e o facto, antes ausncia dela (o faroleiro
que se deixa adormecer e no d o sinal devido); e ainda que,
independentemente da verificao do dolo ou da negligncia, circunstncias
existem que devem excluir a culpa, nomeadamente, certas situaes de falta de
conscincia do ilcito ou da inexigibilidade de outro comportamento. No fundo,
a conceo da escola clssica foi abandonada no preciso momento em que se
pde compreender que no mais eram defensveis os fundamentos ideolgicos
e filosficos sobre que assentava. verdade que a ela coube o mrito
indeclinvel de, pela primeira vez, ter erigido todo um sistema do crime assente
uma rigorosa metdica categorial-classificatria, dotado de uma notabilssima
clareza e simplicidade (com a distino entre as vertentes objetiva e subjetiva do
facto punvel) e, por sobre tudo isto, baseado numa salutar preocupao de
segurana e de certeza, congenitamente requerida pela ideia do Estado de
Direito e por uma realizao prtica do princpio da legalidade. Mas tambm
verdade que as suas insuficincias no mais podiam ser escondidas: o direito em
geral e o direito penal de forma particular no participa do monismo
metodolgico (e ideolgico) das cincias naturais, trata com realidades que
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