520
Maria Fernanda Palma | 2015/2016 大象城堡 葡京法律的大学 DIREITO PENAL II

direito penal ii - sebentas.weebly.com · O conceito material de crime foi o tema adequado para uma reflexão sobre os limites de uma liberdade legislativa de conformação dos conteúdos

  • Upload
    ngongoc

  • View
    216

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Maria Fernanda Palma | 2015/2016

DIREITO PENAL II

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

1

A Teoria geral da infrao como teoria da deciso penal1

1. - O sistema de anlise do conceito de crime e a deciso sobre a

imputao de responsabilidade

Introduo: a definio do crime: o estudo dos princpios do Direito Penal revelou um elenco de garantias a que a interpretao-aplicao da lei penal est sujeita. O conceito material de

crime foi o tema adequado para uma reflexo sobre os limites de uma liberdade legislativa de

conformao dos contedos do Direito Penal. Mas uma aplicao do Direito Penal em

obedincia efetiva aos princpios da culpa, da legalidade e da necessidade da pena ainda reclama

um mtodo disciplinador do juzo valorativo sobre a responsabilidade criminal. Como que se

decide a aplicao da lei penal aos casos concretos na perspetiva da confrontao direta do caso

com a lei j identificada, de forma a decidi-lo de acordo com o Direito? esta teoria da deciso

do caso em face da lei penal e do Direito que a doutrina tem buscado na teoria geral da infrao

ou teoria do crime, propondo uma ordenao lgico-valorativa da determinao da

responsabilidade penal a partir do confronto do facto concreto com os tipos legais de crime. A

teoria geral da infrao no surge, porm, nas suas formulaes tradicionais, como uma teoria

da deciso penal, mas antes como uma teoria sobre a definio do crime. Assim, o que a teoria

europeia de inspirao germnica costuma propor o estudo da essncia do crime a partir das

caractersticas comuns a todas as figuras de crime contidas num cdigo penal, propondo que se

desenhem atravs dessa essncia e dessas categorias os passos lgicos que conduziro o

intrprete no processo de qualificao de um facto concreto como crime. A teoria germnica

desenvolveu a orientao secular do pensamento jurdico europeu que se ocupou de definir as

caractersticas comuns a todos os crimes, as quais permitiriam uma imputao jurdica segundo

um mtodo uniforme relativamente a todos os crimes. Na fase mais madura desse processo,

chegou-se ideia de que a natureza da ao, a ilicitude do facto e a culpa do agente seriam os

critrios que permitiriam a qualificao de um facto como crime. O crime seria uma ao ilcita

e culposa. A estas qualidades veio adicionar-se a tipicidade isto , a adequao do facto

concreto ao tipo legal de crime ou, como por vezes se diz, o preenchimento de um tipo legal de

crime. O crime seria, assim, uma ao tpica, ilcita, culposa e punvel. Admite-se, pois, que todas

as figuras previstas no Cdigo Penal como crimes justificam a aplicao da pena respetiva, na

medida em que so espcies de um mesmo gnero o crime , isto , so aes dominadas pela

vontade (ou, nos casos de negligncia, apenas dominveis pela vontade), no justificadas

excecionalmente pela realizao de valores juridicamente relevantes nem desculpveis por

fora de qualquer estado psicolgico do enfraquecimento por fora de um qualquer estado

psicolgico de enfraquecimento da liberdade de determinao vivido pelo agente, caso em que

as referidas aes no chegariam a ser crimes. Diz-se, assim, que crime o facto tpico, ilcito,

culposo e punvel, expressando um conjunto de exigncias e uma ordem do juzo na apreciao

de tais elementos. Em primeiro lugar, o crime necessariamente um facto porque tem de exibir

1 Palma, Maria Fernanda; Direito Penal Parte Geral A teoria geral da infrao como teoria da deciso penal; Edio revista; AAFDL Editora, Lisboa 2015.

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

2

primariamente uma objetividade indiscutvel, uma traduo no mundo exterior sobre a qual seja

exercvel um juzo afirmativo de verdade, de certeza. Essa exigncia j decore dos princpios do

Direito Penal. A legalidade e a reserva de lei, por exemplo, seriam esvaziadas de contedo se

no se revissem definio de factos objetivos como crimes. Para um Direito Penal da atitude,

que conceda ao juiz a possibilidade de determinar as infraes na base de comportamentos

subjetivos dos agentes, a proibio de retroatividade da lei penal, por exemplo, no atingir um

suficiente efeito garantstico, porque uma tal lei penal, apesar de ser anterior ao

comportamento do agente, no indicar com rigor objetivo os critrios da ao que os agentes

devero evitar e, consequentemente, os critrios que o julgador observar posteriormente. Da

necessidade de o crime consubstanciar um facto objetivado resultam consequncias quanto s

modalidades exigidas no comportamento que viola, efetivamente, a norma penal, tal como a

necessidade de se ter atingido uma certa fase ou grau de desenvolvimento da conduta infratora.

, assim, necessrio que uma ao de uma certa espcie tenha ultrapassado uma fase

meramente interna ou de preparao, tenha atingido uma certa realizao ainda que

incompleta aquilo que o artigo 22. CP designa como atos de execuo, isto , a fase de

tentativa. Esta garantia de objetividade do facto implica, igualmente, que comportamentos

perigosos, mas pr-delitivos, no admitam legtima defesa por no consubstanciarem agresses

ilcitas (artigo 32. CP) e no configurem sequer flagrante delito nos termos do artigo 256. CPP.

Em segundo lugar, o crime necessariamente uma ao, no sentido de um comportamento

voluntrio, dominado ou dominvel pela vontade. Que o facto seja uma ao implica, j, uma

certa compreenso do prprio sentido da voluntariedade do comportamento. Os autores tm-

se divido. Para alguns, os que pertenciam escola clssica ou causalista (designada como causal-

naturalista), teorizada no princpio do sculo por Von Lizst e Beling, bastava a voluntariedade

formal do comportamento, independentemente de a vontade se dirigir espcie de ao

desenhada legalmente. O contedo da vontade ou o seu objeto concreto era a questo a ser

valorada ulteriormente e no impediria a verificao da condio primeira da qualificao de

um facto humano como crime, isto , a qualidade de ao do facto. Para outra linha de

pensamento (o pensamento finalista de Welzel), o contedo da vontade era essencial para a

identificao da ao. Assim, no teria sentido qualificar um comportamento como ao num

homicdio s porque tal comportamento foi comandado pelo sujeito num mero sentido

fisiolgico, quando, na perspetiva dos fins, a vontade se dirigiu exclusivamente a um outro fim.

Em amas as posies, todavia, a verificao de um comportamento voluntrio um primeiro

momento da qualificao de um facto como crime. Tanto a escola clssica, de Von Lizst e Beling,

como a escola finalista, de Welzel, que corresponde a estas duas posies, propem como

condio primeira da qualificao de um facto como crime a sua natureza de comportamento

voluntrio exteriorizado. A diferena essencial entre as duas construes referidas consiste,

porm, como se disse, na compreenso da vontade e do conceito de voluntrio significativos

para o Direito Penal. Para a primeira escola, a vontade compreende-se como causa de

movimentos corpreos numa perspetiva naturalstica. Para a segunda escola, a vontade uma

especificidade do comportamento humano, correspondendo conduo (ou condutibilidade)

para fins ou objetivos concretos previamente selecionados. A principal consequncia desta

diversidade de definies de vontade e de ao so as caractersticas necessrias para a

verificao, no primeiro momento, do juzo que decide sobre a verificao de um crime. Para a

escola causalista, o primeiro juzo de verificao do facto bastava-se com uma constatao

mnima de voluntariedade; para a escola finalista, era, desde logo, exigida uma ao final (real

ou potencial). Mas para alm destas divergncias sobre o objeto do primeiro juzo, isto , sobre

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

3

a base da qualificao de um facto como crime, verifiricar-se- j uma divergncia mais profunda

sempre que se venha entender que no necessrio autonomizar esse primeiro momento ou,

ento, que esse primeiro momento no a constatao de factos (atravs de um juzo descritivo,

ainda no valorativo) mas j um juzo valorativo sobre o sentido social de um acontecimento,

prximo de um juzo de ilicitude. Quem tender a atribuir menor relevncia ao requisito da ao

poder aceitar, mais facilmente, uma responsabilidade criminal a partir do ficcionamento de

comportamentos ou generalizar como base do comportamento criminoso a mera violao de

deveres de conduta. Se o sentido social, o significado desvalioso do acontecimento for um

critrio absorvente da prpria objetividade do facto (e do requisito de verificao de uma ao)

ser possvel equiparar generalizadamente aes e omisses e admitir como relevantes

comportamentos de duvidosa voluntariedade, como os automticos ou inconscientes. Esta

rutura com a relevncia de uma ao factual, de base naturalstica, no Direito Penal,

sobrepondo-se a ela o significado social de um comportamento, est associada a concees que

prescindem, na realidade, da ao como elemento da definio do crime (conceo bipartida do

crime). Para tais concees a questo prioritria na definio do crime a correspondncia entre

o significado do facto e a negao dos valores que a norma penal visa proteger. As vrias

concees da ao social favoreceram, precisamente, a rutura com a exigncia de ao

propugnada pelas escolas clssica e finalista, na medida em que procuravam uma significao

social das condutas em funo das condutas valoradas negativamente pelas normas penais. Esta

divergncia reflete-se, consequentemente, na alternativa entre a tripartio e bipartio na

construo do crime. Quem autonomize a ao em si mesma ser conduzido a autonomizar um

momento de juzo de pura constatao ftica de que se est perante uma conduta voluntria

no caso concreto, independentemente da sua identidade como tipo de ao, e a condicionar

pelas caractersticas da ao os restantes juzos sobre o facto. E, nessa perspetiva, tambm a

ilicitude ser condicionada pela vontade da ao relativamente ao dever jurdico, no se

reduzindo puramente objetiva leso de bens, direitos ou interesses. Mas ento o que significa

exigir a integrao da ao na definio do crime como seu elemento? Afirmar que o crime

uma ao significa, antes de mais, que a qualificao de um facto como crime pressupe um

certo grau de objetividade a objetividade da concretizao de uma vontade no mundo das

relaes humanas e que essa objetividade no pode ser ficcionada pela lei ou pelo valor que

se queira atribuir aos factos. O crime depende, assim, de um juzo de valorao, mas tal

valorao no , em si mesma, criadora do objeto sobre que incide como acontecimento

definido no mundo das relaes sociais, pressupondo antes a existncia desse objeto e uma sua

apetncia para ser valorado. A ao como elemento do crime tem, deste modo, um valor

garantstica, porque a prova no processo penal incide sobre um tipo de acontecimento cujo

conhecimento e identificao no est dependente de valoraes, o qual pode ser discutido

atravs de critrios de racionalidade no especificamente jurdicos e tem um valor de

articulao dos conceitos e valoraes do Direito com a estrutura da realidade (valor de

articulao com o dever ser). A ao tem, tambm, devido ao anterior pressuposto, uma funo

sistemtica na definio do crime. O prprio juzo de ilicitude isto , da contrariedade ao Direito,

no pode ser concebido apenas como leso de bens jurdicos (momento objetivo da ao), mas

tem de incluir um momento de contrariedade da vontade da ao (momento subjetivo da ao)

ao dever jurdico emanado da norma. E a prpria culpa pressupe a censurabilidade do

comportamento previamente censurabilidade da personalidade do agente. S culpa da

pessoa na medida em que seja referida a um facto censurvel. Finalmente, no pode deixar de

se assinalar ao uma funo negativa ou delimitativa, pela qual se excluem do crime

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

4

comportamentos praticados sob coao fsica vis absoluta comportamentos reflexos e, pro

vezes, certos comportamentos inconscientes e automticos. Mas, afinal, o que uma ao para

efeitos de responsabilidade penal? S-lo-, apenas, o elemento externo e objetivo de um

comportamento voluntrio, como pretendiam os adeptos da teoria clssica, ou antes de mais

um comportamento que projeta pessoa que o realiza de um outro modo? um dado emprico

observvel ou e uma realidade que tem esse significado para o seu autor?

a. Neste ponto, surgiu, como j se referiu, uma das mais acesas disputas entre escolas de pensamento, entre os causalistas e os finalistas: para os adeptos da chamada teoria da

ao causal no era mais do que uma expresso corporal comandada pela vontade. Isso

bastava para consubstanciar a objetividade de que depende a qualificao do facto

como crime. Para a teoria finalista, o retrato estrutural da ao que a teoria causalista

pretendia traar era insuficiente pois no integrava o momento de direo da vontade

pelo agente e da orientao para um fim de comportamento (a sobredeterminao

causal de meios pelo agente para a obteno de um certo objetivo). A ao humana era,

por conseguinte, necessariamente, ao final e os elementos subjetivos estavam

indissociavelmente associados sua descrio objetiva. Welzel, porm, no entendia a

finalidade como um contedo espiritual, de significao, mas sobretudo como uma

orientao implcita do comportamento exterior pela vontade. Assim, o momento

ontolgico em que se baseava a valorao jurdica no era uma estrutura objetiva no

sentido de uma mera modificao objetiva do mundo exterior; mas um processo

orientado para a modificao do mundo exterior. Tanto Welzel, finalista, como os

adeptos da teoria da ao causal bastavam-se, porm, com uma estrutura (meramente

objetiva ou, no caso de Welzel, subjetiva-objetiva) comportamental,

independentemente da significao no mundo social, como base das valoraes da

ilicitude e da culpa. A discusso filosfica (envolvente dessa discusso doo pensamento

jurdico) sobre a ao andou, sobretudo, associada teoria da vontade, pretendendo-

se sempre identificar na ao as caractersticas do comportamento voluntrio. E, com

efeito, a especificidade do comportamento voluntrio surge, fundamentalmente,

associada possibilidade (capacidade) de escolha entre alternativas e de configurao

do comportamento como a realizao de projetos. Mas esta configurao no tanto

um dado emprico que marque os comportamentos, numa perspetiva de cincia da

natureza, mas o produto da compreenso da pessoa, do seu modo de entender o

comportamento prprio alheio. Finalismo, embora tenha podido identificar uma

caracterstica estrutural da especificidade da ao humana, concebeu-a quase sempre

como um objeto emprico ou natural, observvel laboratorialmente, no dando

cabalmente conta do que significa a vontade humana na compreenso dos atos de cada

pessoa. No poderia, assim, fazer de um esqueleto de ao humana a expresso objetiva

de um comportamento voluntrio. A compreenso do que seja efetivamente uma

expresso objetiva de vontade suscetvel de ser a base de imputao de

responsabilidade penal h-de exigir mais do que a finalidade formal, h-de exigir um

contedo suscetvel de ser compreendido pelo prprio agente como uma sua deciso,

um seu projeto para si e para qualquer pessoa ou, pelo menos, aquele algo que o agente

poderia ter evitado.

b. claro que as aes intencionais exprimem, em princpio, mais complexamente, os comportamentos voluntrios, porque correspondem realizao de projetos e a uma

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

5

articulao entre os motivos e os fins, embora isso no signifique que os

comportamentos intencionais no possam conter um certo grau de automaticidade. A

inteno no significa, necessariamente, um projeto mental vivido antes de qualquer

exteriorizao, mas o sentido contextual de um certo comportamento. Todavia, diferem

dos comportamentos instintivos ou de adaptao s resistncias do meio que

caracterizam a atividade animal e que tambm so finais (comportamentos

automticos). Os primeiros, apesar de automticos so a expresso de um significado

especificamente humano, de realizao de projetos ou de uma deciso. Os chamados

comportamentos negligentes (artigo 15. CP), por outro lado, no revelam um projeto

do sujeito, mas assumem-se como desvios indesejados de uma direo inicial. Ainda so,

porm, comportamentos voluntrios na medida em que poderiam ser evitados pelos

seus autores se estes tivessem tido uma outra atitude no controlo das consequncia dos

seus atos. A evitabilidade , com efeito, o limiar inferior da voluntariedade, ao exprimir

um momento mnimo de escolha entre alternativas da ao. A construo finalista

reconduz a negligncia a uma finalidade potencial, isto , que poderia ter existido no

sentido de evitar o resultado criminoso. Exprime, tambm, a objetiva realidade de um

momento de controlo sobre os atos que justifica que o comportamento negligente seja

base da responsabilidade penal.

Se o crime uma ao, as omisses no podem ser crimes? Com efeito, h omisses criminosas

segundo o artigo 10. CP e, de um modo geral, as ordens jurdicas reconhecem os crimes

omissivos. Ser sustentvel considerar os crimes omissivos como aes? As teorias causalista e

finalista tiveram muita dificuldade em enquadrar a omisso, pois nela falta todo o momento

exterior e causal que define para aquelas perspetivas a ao. Todavia, a teoria finalista admitia

que a omisso no seria um ente puramente normativo, dependente da violao de um dever

de agir, apelando a finalidade potencial. Welzel viria c concluir que aes reais e possveis so

iguais na respetiva dignidade ontolgica sendo a possibilidade efetiva de ao (concordante com

o Direito) o momento pr-valorativo e objetivo em que se apoiaria o crime omissivo, para alm

da violao do dever. Mas verdade que o dever jurdico pressuposto necessrio da relevncia

da omisso e a sua imposio que permite identificar a possibilidade da ao. Esta dimenso

especfica da omisso impe que ela s possa ser equiparada ao onde o dever de ao for

determinado por uma relao de domnio ou de responsabilidade social institucionalmente

indiscutvel com o bem jurdico.

Se A no trava a tempo o automvel e atropela B, ser indiferente designar este

comportamento como ao ou omisso para efeitos da sua relevncia penal,

embora ele tenha caractersticas omissivas, porque o agente responsvel pela

conformao e controlo da sua esfera de domnio da vontade.

A, h uma natural equiparao da omisso ao, permitindo fundi-las no contedo da norma

proibitiva. Mas, outras situaes, a equiparao depende, essencialmente de esferas de

responsabilidade institucional, na famlia, na empresa ou em instituies sociais, por exemplo.

O crime tambm uma ao tpica. O que significa a atribuio de tipicidade?

a. O papel da tipicidade central e comanda a ordem das valoraes. A ilicitude e a culpa

so necessariamente enquadradas pela tipicidade. Para Beling, o autor alemo que no

princpio do sculo teorizou a tipicidade (tatbestantmssigkeit) como um verdadeiro

juzo autnomo, o crime seria, antes de mais, o facto (ao) anlogo ou correspondente

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

6

ao facto descrito na norma, que se idealizou como ilcito (contrrio ao Direito) e culposo

(censurvel ao seu autor). A tipicidade seria, pois, uma qualificao do facto criminoso,

ainda no valorativa, mas to-s lgica e classificatria. Este momento da tipicidade,

autnomo da ilicitude para Beling, numa primeira fase do seu pensamento, consistia

numa verificao da correspondncia do aspeto externo-objetivo do facto lei. Mas o

tipo era tambm descritivo, de modo que a constatao da adequao do facto lei era

um mero juzo de facto sem ponderao valorativa. A esta fase seguia-se, para Beling, a

verificao da antijuridicidade ou da ilicitude do facto tpico, isto , a constatao da

contrariedade do facto ordem jurdica no seu conjunto, nomeadamente por no

existirem causas de justificao. A antijuridicidade correspondia ao momento normativo

da afirmao da ilicitude do facto. E, finalmente, surgiria a culpa, em que se valorariam

os momento subjetivos do facto, a relao de voluntariedade psicolgica do autor com

o facto. Em resumo: esta definio de crime da escola clssica considerava o crime como

um comportamento externo-objetivo, que fosse adequado descrio do facto na lei

penal, relativamente ao qual no existisse qualquer norma permissiva e em que o agente

tivesse vontade, num sentido psicolgico, de realizar o facto. A tipicidade, assim,

elemento do crime, a par da ilicitude e da culpa. O tipo era descritivo e objetivo, a

ilicitude um juzo normativo e objetivo e a culpa era um juzo descritivo sobre

acontecimentos subjetivos. O esquema de Beling refletia a teoria das normas de Binding

a distino entre norma jurdica e lei penal propugnada por aquele autor. A lei penal

para Binding no seria verdadeiramente uma norma mas a mera sano de normas

contidas noutros setores do ordenamento jurdico. A ilicitude penal, embora se aferisse

pela lei penal, resultaria da violao dessas outras normas, assumindo um carter

secundrio e sancionatrio. Beling, por isso, no identificava o tipo legal com a norma e

referia a norma, que no se preocupava em identificar, coo um elemento formulado ou

implcito do ordenamento jurdico geral. Numa segunda fase do seu pensamento em

1930, porm, Beling reconheceria que a tipicidade no era uma valorao ou uma

qualidade do facto criminoso mas qpenas um enquadramento ou delimitao da

ilicitude; o tipo seria um quadro legal, um tipo de delito, mas uma figura delitiva que

condicionaria a anlise da prpria culpa. A tipicidade seria uma espcie de antecipao

das qualidades que efetivamente definiriam o crime. O tipo j no seria s objetivo, mas

tambm conteria o aspeto subjetivo o crime, antecipando a valorao da culpa, mas

seria sempre uma figura condicionante das valoraes do crime, mas que condicionaria

a afirmao da ilicitude e da culpa. De qualquer modo, mesmo esta ltima conceo de

Beling implica uma conceo de tipo indiciador. O tipo passou, ento, a ser visto como

a necessria referncia de ilicitude (contrariedade ao Direito), o Leitbildtatbestand, isto

, um quadro legal da descrio do facto. Mas, em rigor, a tipicidade no seria um quid

autnomo das valoraes de ilicitude e culpa. Seria, apenas, o seu enquadramento, a

sua concretizao.

b. Esta evoluo do pensamento de Beling esteve associada distino entre a figura do

tipo indiciador de ilicitude e a do tipo como ratio essendi da ilicitude ou tipo de delito.

A ideia de tipo indiciador corresponde considerao de que a tarefa de

enquadramento do facto concreto no facto legal, num plano lgico, o primeiro

momento da qualificao do facto como crime, no produzindo verdadeiros juzos de

valor. S num segundo momento que se avaliaria a contrariedade com a ordem

jurdica a ilicitude. A tipicidade seria apenas a verificao de um indcio de crime. A

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

7

ideia de um tipo de ilcito concebe a tipicidade com um outro papel. A tipicidade passa

a ser no apenas o indcio, mas a fonte da antinormatividade e, por isso, fundamentaria

por si a ilicitude do facto. Assim, se para a doutrina do tipo indiciador a tipicidade seria

apenas um primeiro passo a que se seguiria um processo lgico de confirmao do

indcio de ilicitude, para a segunda doutrina, a tipicidade seria o princpio e o fim do juzo

valorativo. A afirmao da tipicidade corresponderia, necessariamente, afirmao de

ilicitude tpica, atravs do competente juzo valorativo. Cavaleiro de Ferreira, nos anos

trinta, criticou profundamente a ideia de Beling de atribuir tipicidade o carter de uma

verdadeira qualidade do facto. A tipicidade no seria mais do que o instrumento de

averiguao da ilicitude (o tipo no verdadeiramente uma realidade substancial, mas

a forma da sua traduo no preceito legal).

c. Que sentido tem toda esta discusso sobre a tipicidade? O que levou os autores a

dedicarem tantas pginas ao assunto? Esta discusso sobre a tipicidade resulta, sem

dvida, de se ter concludo que um trao geral comum qualificao de qualquer facto

como crime a verificao de uma congruncia imprescindvel entre o facto descrito

legalmente e o facto concreto. Mas, para uns autores, essa congruncia um momento

do juzo global, instrumental do juzo de ilicitude, e para outros o prprio juzo de

ilicitude. O interesse da primeira perspetiva avanada por Beling foi deslocar para um

plno analtico esse momento e atribui-lhe uma natureza lgica especfica. Beling

pretendia, com efeito, alcanar um mtodo objetivo e rigoroso pelo qual o juiz definisse

o carter criminoso do facto concreto, um mtodo cientfico prximo do utilizado pelas

cincias naturais, sendo a tipicidade o conceito que servia esta finalidade. A discusso

entre os autores gerou-se em torno da impossibilidade de prescindir, na configurao

da tipicidade, de juzos de valor. Os autores neoclssicos, que defenderam a conceo

de um tipo de ilcito, consideravam que o tipo legal no seria mais do que uma valorao

de comportamentos lesivos de bens jurdicos e que seria atravs da descoberta dessas

valoraes que se atingiria o resultado final da qualificao jurdica do facto. Tais

autores pretendiam mesmo negar qualquer momento de puro juzo de facto na

qualificao jurdica e remeter todo o juzo sobre o carter criminoso do facto para uma

valorao da contrariedade norma legal. O desenvolvimento do pensamento

germnico consistiu em anular a relao de autonomia entre a tipicidade e a ilicitude.

Assim, os autores normativistas reduziram a ilicitude tipicidade o tipo era visto como

ratio essendi da ilicitude , o que, na realidade, era uma pura decorrncia do formalismo

da teoria da ilicitude. Esta evoluo assentou em dois aspetos: na constatao prtica

de que os tipos no so descritivos, mesmo quando integram elementos meramente

descritivos, pois o juzo sobre o elemento ultrapassa a natureza do elemento,

interpretativo e valorativo; e na constatao terica de que a tipicidade seria a

individualizao da ilicitude. Estaramos, assim, perante uma construo do crime como

facto ilcito e culposo tpico. O tipo seria normativo e o juzo de tipicidade no se

autonomizaria do juzo de ilicitude.

d. Mas quem tinha razo nesta divergncia? A tipicidade no , seguramente, um puro

produto de juzos de facto, sem qualquer momento valorativo. Mas tambm verdade

que a tipicidade no pode ser utilizada apenas como produto de uma valorao em

concreto. H momentos da verificao da realizao de um facto correspondente ao

descrito na norma que se baseiam em critrios de valorao comum dos atos e de

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

8

identificao social da ao e no se consomem na pura valorao jurdica. Por isso,

deve haver um primeiro momento, na qualificao de um facto como crime, em que se

averigua a prpria possibilidade de uma ulterior imputao. Afirmar a tipicidade no

deve, assim, ser o mesmo que imputar definitivamente, mas verificar simplesmente os

pressupostos lgicos e fticos de uma possvel e ulterior) imputao, realizando uma

leitura social do facto e analisando a sua coincidncia lgica e social como o facto

descrito na norma. Porm, esta afirmao parece transcender uma relao de tipicidade

com a matria da ilicitude, para referir o tipo a todos os outros elementos do crime.

Apesar disso, ela especialmente determinante na indiciao da ilicitude. Assim,

quando se fala de tipo indiciador tambm se tem ainda geralmente em vista a indiciao

do ilcito do facto, isto , um momento de antecipao (provisria) do facto proibido, do

ilcito penalmente relevante. O chamado tipo de garantia refere-se, antes, a todos os

pressupostos da punio que tm de estar fixados na lei penal. Todavia, o tipo de

garantia no tem qualquer funo na definio do crime, isto , no um momento da

determinao da imputao do facto. Questo muito debatida na doutrina, dividindo

ainda clssicos e neoclssicos, foi a de saber se as causas de justificao seriam

verdadeiros elementos negativos do tipo ou antes elementos que apenas excluiriam a

ilicitude de se ter verificado plenamente a tipicidade. Todavia, a considerao das causas

de justificao como elementos negativos do tipo, fundindo a afirmao da ilicitude

tpica com a sua excluso, no aceitvel por razes valorativas e sistemticas. A

afirmao da ilicitude tpica , necessariamente, o reconhecimento da valorao

negativa de uma ao e do seu resultado ante um bem jurdico protegido. a

constatao da violao de uma norma de valorao e proteo de um bem. A excluso

da ilicitude por uma causa de justificao uma valorao positiva excecional do facto

ou pelo menos a afirmao de um contra-valor neutralizante da violao da norma ou

valorao. H, por isso, uma dimenso de conflito de valores e um juzo de prevalncia

de um valor determinado sobre o que o bem jurdico protegido pela proibio penal

encarna. Dogmaticamente, a considerao das causas de justificao como elementos

negativos do tipo levaria a resultados inaceitveis, tais como a verificao do dolo do

agente (tipo subjetivo) ter de se referir ausncia de causas de justificao ou a excluso

do dolo no caso de erro sobre as causas de justificao.

O crime um facto tpico e ilcito. A ilicitude a contrariedade ao Direito do facto. No a

mesma coisa que a tipicidade. A tipicidade significa sempre a comparao de um facto concreto

com um facto abstrato e, nesse sentido, afirmativa algum matou ou furtou, isto , esse

facto verificou-se; a ilicitude exprime, antes, uma contradio, uma negao de algo tido como

um valor pelo Direito; , por isso, um juzo negativo o facto concreto de algum ter produzido

a morte de outrem proibido. A diferena entre tipicidade e ilicitude dependia, na escola

clssica, de Beling, claramente, do parmetro pelo qual o facto era aferido: na ilicitude tratava-

se de toda a ordem jurdica; na tipicidade era apenas o tipo legal de crime que se contrapunha

ao acontecimento concreto. Na perspetiva neoclssica, o facto seria ilcito por estar em

contradio com a prpria proibio penal que se deduzia do tipo legal do homicdio. A ilicitude,

no primeiro caso, seria um juzo que implicaria uma avaliao do confronto do facto com todas

as proibies e permisses que o mesmo suscitaria. Na segunda perspetiva, seria o tipo legal

que fundamentaria, por si, toda a afirmao de valor possvel sobre o facto. A distino entre

estas duas ideias de ilicitude no , porm, necessariamente, uma distino entre contedos da

ilicitude, mas refere-se, sobretudo, ao mtodo que subjaz aplicao do Direito Penal. Quando

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

9

se postula que o facto ilcito o que contradiz a ordem jurdica, no atribuindo tipicidade mais

do que o papel de um indicio dessa contradio, pretende-se diferenciar dois momentos lgicos,

uma fase pr-valorativa da constatao da verificao do facto tpico e uma fase valorativa

posterior. Quando se concebe que o tipo a ratio essendi da ilicitude, como os neoclssicos,

pretende-se decidir logo no juzo de tipicidade se foram negados os valores que o Direito visa

proteger no caso. Por outro lado, embora se possa chegar geralmente ao mesmo resultado

quanto responsabilidade penal, os dois mtodos revelariam, tambm, uma diferente posio

do Direito Penal na Ordem Jurdica. A teoria clssica da ilicitude era adequada ao carter

secundrio e sancionatrio do Direito Penal inerente teoria das normas de Binding; a teoria

neoclssica, com o seu normativismo penal, era a expresso de valoraes especficas do

legislador penal na incriminao das condutas e de uma justificao autnoma das normas

penais. No tem sentido, atualmente, tomar posio acerca daquela luta de escolas, na base do

conceito de ilicitude. No se deve hoje, em rigor, ser clssico, finalista ou neoclssico quanto aos

conceitos de tipicidade ou de ilicitude, antes de se tomar posio sobre cada uma das

consequncias metodolgicas destas escolas e dificilmente se chegar a aceitar os pressupostos

e consequncias de cada escola. Tais escolas pretendiam, com efeito, impor uma deduo

sistemtica na definio de crime a partir dos seus pressupostos lgicos, o que pouco

sustentvel como mtodo de anlise conducente determinao da responsabilidade criminal.

Assim, por exemplo, correto separar o tipo indiciador da ilicitude, enquanto mtodo de

separao lgica do objeto da valorao o facto tpico da valorao do objeto a valorao

como ilcito do facto. Mas isso no implicar aceitar um carter secundrio do Direito Penal nem

ter de impedir o intrprete de extrair do tipo legal de crime a norma de ilicitude que lhe subjaz

(ou, como refere Figueiredo Dias, que o tipo concretiza), isto , a especial razo pela qual um

certo facto proibido pelo Direito Penal. A ideia de um tipo indiciador , por isso, associvel a

uma autntica e originria ilicitude penal, em que sejam identificveis razes especficas para a

proibio que no resultam automaticamente do reconhecimento do valor do bem jurdico em

geral para o direito ou at do reconhecimento pelo Direito de um direito fundamental. Assim,

nem todas as violaes de direitos fundamentais ou de bens fundamentais tero de ser crimes

sem que uma especial necessidade o imponha, nem haver, em geral, incriminaes obrigatrias

que resultem da ordem constitucional sem que os fins do Direito Penal as reclamem. A ilicitude

do facto, porm, no apenas uma incompatibilidade lgico-formal (ilicitude-formal) com a

ordem jurdica mas uma incompatibilidade plena de contedo, isto , leso de bens jurdicos,

produo de danosidade social no compensada pela preservao de outros valores

(compensao que j aconteceria nos casos de causas da justificao), e incompatibilidade entre

um facto e uma proibio jurdica (ilicitude material na dupla dimenso de desvalor da ao e

do resultado). A ilicitude , assim, um juzo que implica a afirmao do desvalor da ao e do

resultado do facto. E tal desvalor no apenas lgico-formal, tem um contedo graduvel,

admite variaes de gravidade, consoante a importncia do bem jurdico lesado e a gravidade

da contradio da vontade com o Direito. O facto, como se referiu, bidimensionado,

constitudo pela sua expresso objetiva-material e pela sua subjetividade. Tambm a

contradio como o Direito h-de englobar aquela bidimensionalidade. Ser, ento, contradio

objetiva-subjetiva com uma norma ou um conjunto de normas que ditam o que proibido em

face do caso concreto. A afirmao da ilicitude do facto, por isso, depende do desvalor da ao

e do desvalor do resultado. Poder-se-ia dizer que a desobedincia e a danosidade se teriam que

combinar. Porm, o desvalor da ao no desobedincia a uma ordem, mas violao voluntria

de uma proibio ou de um imperativo. O que o ilcito , portanto, o facto concreto contrrio

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

10

ao dever emanado das proibies legais, cujas consequncias produzem os efeitos que o

Direito Penal pretende evitar (resultado tpico e leso do bem jurdico tal como a perturbao

concreta das esferas jurdicas associada violao do direito de propriedade no caso de furto).

ilicitude do facto acresce a necessidade de culpabilidade: o facto tpico e ilcito tem de ser

realizado com culpa pelo agente para ser um crime. Poder no ser crime ainda o disparar

produzindo a morte de uma pessoa sem qualquer causa de justificao do facto (isto , sem

qualquer circunstncia que o torne permitido ou pura e simplesmente no proibido, como a

legtima defesa ou o direito de necessidade) se, por exemplo, o agente tiver disparado sobre

uma pessoa sob a ameaa de que um filho seu, raptado, ser morto. Este agente no tem

certamente o direito de o fazer, mas pode concluir-se que no possvel uma censura de culpa

se lhe no for, no caso concreto, exigvel outro comportamento dada a gravidade da ameaa, a

perturbao causada no agente e a eventual impossibilidade de outros meios serem usados para

evitar a concretizao de tal ameaa (artigo 35. CP). Tambm no caso de ser menor de dezasseis

anos ou de sofrer de anomalia psquica (artigos 19. e 20.CP) o agente no poder ser

considerado como culpado, embora pratique um facto ilcito. Do mesmo modo, se o agente

desconhecer a ilicitude do facto que pratica de modo no censurvel, o facto permitido: no

haver crime. A culpa , assim, a dimenso da censurabilidade do autor do facto, que no

automaticamente uma decorrncia da voluntariedade do mesmo nem da sua ilicitude. O Direito

Penal exige, para que haja culpa, uma certa medida de conhecimento, de capacidade e de

liberdade de motivao pela norma, o que h-de significar, em ltima instncia, que o facto

criminoso seja a expresso do seu autor e no apenas o reflexo incontrolvel das circunstncias

que rodearam a ao do mesmo ou de uma personalidade incapaz de se orientar pelos valores

do Direito. Embora a culpa seja um juzo autnomo de ilicitude, no s na sua matria factual,

que h-de corresponder vivncia das motivaes do autor e do controlo sobre si mesmo, mas

tambm no seu critrio como juzo, a afirmao da culpa fundamentalmente questionada

quando se invocam possibilidades da sua ausncia. Chegou-se mesmo a admitir que a culpa no

seria mais do que um juzo negativo de valor, mas, na realidade, no pode deixar de afirmar-se

positivamente a culpa na medida em que ela , pelo menos, o limite obrigatrio da medida

concreta da pena. a chamada funo restritiva da culpa, que Roxin, assinala e que Figueiredo

Dias parece ver consagrada no artigo 40. CP portugus. O que est, fundamentalmente, em

causa na culpa na afirmao do necessrio controlo da vontade do autor em face da norma

penal: a capacidade de motivao pela norma devido a um suficiente conhecimento de que o

facto proibido e a capacidade de inibio da vontade perante o facto ilcito. O crime ainda

necessariamente um facto punvel, isto , depende da punibilidade de um facto tpico, ilcito e

culposo. A afirmao da punibilidade corresponde a uma outra filtragem do facto com vista

sua qualificao como crime. Segundo tal filtragem, para que a lei penal se aplique a uma certa

categoria de factos ainda necessrio que no se verifiquem algumas circunstncias erigidas

pelo legislador como condies objetivas de punibilidade. Trata-se de factos contextuais que

condicionam o interesse punitivo do Estado relativamente a condutas que, pelas suas

caractersticas intrnsecas, seriam crimes (ilcitos culposos), mas que no necessrio punir. A

punibilidade neste sentido, enquanto associada a condies de punibilidade previstas num tipo

legal de crime, um momento autnomo e ulterior da qualificao do facto como crime uma

ltima fase do juzo qualificativo. Porm, punibilidade tambm se costuma associar uma

funo profunda, relacionada com uma adaptao ou conformao das categorias da ilicitude e

da culpa s exigncias poltico-criminais, nomeadamente carncia efetiva de tutela penal.

Neste sentido, a punibilidade seria um juzo sem momento certo no qualificao doo facto como

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

11

crime ou uma qualificao adicional e seletiva das outras qualificaes. H, porm, uma

discusso sobre se a punibilidade seria um juzo antecipado, situado na tipicidade, um juzo final

ou, como se referiu, um juzo sem momento determinado mas meramente seletivo e

conformador.

Desenvolvimento: as teorias sobre a definio de crime e a ideia de sistema: esta primeira abordagem da definio do crime sugere-nos que a aplicao da lei penal consiste

essencialmente numa qualificao de um facto em funo de certas caractersticas. Tal , com

efeito, a proposta de um sistema de anlise do crime que subjaz doutrina tradicional, de

inspirao germnica nas escolas clssica, finalista e neoclssica. Porm, a deciso dos casos

concretos no corresponde apenas a um tcnica e a uma linguagem indiferente a juzos ticos e

poltico-criminais mais gerais sobre a responsabilidade, posio que a teoria geral da infrao,

nas suas piores vulgarizaes dogmticas, permitia. A teoria clssica (Beling e Von Liszt) defendia

um sistema de tipo indiciador, objetivo e descritivo, em que a ilicitude era formal (contradio

com as normas que constituam a ordem jurdica) e objetiva e atribua culpa um contedo

psicolgico, consubstanciado no dolo ou na negligncia. A teoria finalista (Welzel) mantinha a

perspetiva de um tipo indiciador e descritivo, mas inclua nele o momento subjetivo da ao,

por fora do conceito de ao final que propugnava. Retirava, assim, da culpa o dolo e tornava

a culpa um mero juzo normativo de censurabilidade do agente esvaziando-a do objeto factual.

A ilicitude era constituda, igualmente, pelo desvalor da ao e do resultado, sendo portanto um

juzo normativo, mas tambm objetivo-subjetivo. A conceo neoclssica (Mezger, Engisch)

defendia o tipo como fundamento do ilcito, mas mantinha o carter objetivo do mesmo, isto ,

no inclua momentos de violao do dever, o dolo ou a negligncia, seno em certos caos em

que o tipo inclua explicitamente momentos subjetivos, como a exigncia e uma especial

inteno. As causas de justificao eram elementos negativos do tipo e a culpa tinha uma

componente normativa a censurabilidade tico-social do agente. Com estes esquemas, a

preocupao fundamental tornava-se o lugar sistemtico das qualidades do facto a ser

confrontado com a lei penal; saber se a ilicitude era objetiva ou objetiva-subjetiva, isto , se nela

se analisava j a contradio com uma norma de dever por parte do agente (o que implicaria a

anlise da capacidade concreta de evitar o facto ilcito) ou apenas a contradio com uma norma

que objetivamente valorasse o bem jurdico, protegendo a vida, a propriedade, etc.. Assim, as

grandes questes colocadas pelos trs principais sistemas clssico, neoclssico e finalista

fora, essencialmente, duas:

A procura de um elemento predominante na fundamentao dos critrios e solues

utilizadas na definio do crime (a lei positiva, as estruturas ontolgicas do

comportamento humano ou as finalidades e valoraes essenciais do sistema penal);

A determinao do contedo e da relao das categorias essenciais em que se baseia a

responsabilidade criminal (tipicidade, ilicitude, culpa e punibilidade).

A primeira questo suscitou, como refere Figueiredo Dias, dois modelos superadores o

correspondente normativizao do ontologismo e o correspondente ontologizao do

normativismo. A segunda originou um esvaziamento material das categorias, que passaram a

poder abranger contedos variados. Em ambos os casos, resultou uma excessiva formalizao

da teoria do crime e alguma circularidade. A causa desses formalismo e circularidade foi, sem

dvida, a procura de um ponto a partir do qual a definio do crime se viesse a deduzir em

cascata, isto , a procura de um ponto fixo de pensamento para que se pudesse remeter,

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

12

constantemente, permitindo a soluo dos casos implicados na definio do crime. Mas, pro

causa disso, no s falharia a deduo ontolgica finalista (que pretendia justificar, a partir do

conceito de ao final como espcie do ser, o contedo da tipicidade e as relaes entre esta, a

ilicitude e a culpa) como tambm a deduo neoclssica do contedo da tipicidade e da culpa a

partir de valores finais do sistema, tais como a retribuio e a censurabilidade social. Mas a

colocao em causa da funo dedutiva do sistema de definio do crime proposta por finalistas

e neoclssicos atingiria, inevitavelmente, as prprias construes posteriores, teleolgicas ou

funcionalistas dos sistema penal e da teoria geral da infrao. Na realidade, h um ponto a partir

do qual impossvel negar o dedutivismo sistemtico sem rejeitar todo e qualquer sistema. Se

e certo que se dever evitar um nico topos argumentativo, uma nica lgica sistemtica, j

parece inultrapassvel manter, pelo menos, um sistema aberto, aceitando-se, at, uma

imanente e implcita conflitualidade sistemtica. Por outro lado, o sistema de anlise do crime

no pode deixar de explicitar o funcionamento concreto da teleologia implcita nem da

referncia ontolgica em que assenta, isto , s a compreenso do sistema proposto pelo

legislador permite a sua crtica ou, pelo menos, o seu confronto com o que funciona

praticamente. E os limites da ao humana condicionvel pelas normas no podem deixar de

ser analisados, para se compreender as possibilidades de funcionamento do sistema. O estudo

do sistema de anlise do crime para servir a construo e o desenvolvimento de uma lgica de

determinao da responsabilidade penal tem de permitir a revelao do funcionamento prtico

dessa lgica, a sua crtica e eventual superao. Este modo de abordagem evitar as principais

questes que opuseram finalistas e neoclssicos. As velhas questes da incluso do dolo no tipo

ou da relevncia do erro sobre as causas de justificao podero deixar de ser resolvidas,

segundo uma lgica geral do sistema, a partir de um certo elemento predominante no sistema

de natureza ontolgica (estrutura da ao) ou valorativa (finalidade retributiva do sistema)? Na

verdade, questes como a incluso do dolo no tipo ou na culpa perdero muito do seu

significado tradicional se se alcanar um consenso acerca da necessidade de basear o juzo de

responsabilizao pessoal na determinao da conduta violadora do dever jurdico (desvalor da

ao). Assim, a incluso do dolo no tipo no deveria ser compreendida como pura decorrncia

da natureza do comportamento humano, mas colocar-se, antes, como uma opo relativa s

finalidades do juzo de responsabilizao penal. A justificao deste juzo pressupe que toda a

valorao negativa de um comportamento depende de um contexto de capacidade de opes

da ao humana e social, num sistema justo e responsabilizador. Tambm a exigncia, no mbito

do crime negligente, de que a conduta tpica seja integrada pela violao do dever individual de

cuidado h-de significar que a censura da pessoa do agente posterior identificao do facto (o

posterior juzo de culpa) no se baseia apenas na mera divergncia do comportamento perante

a norma, mas ainda na possibilidade concreta de o agente adequar o seu comportamento s

prescries da norma em face das suas capacidades. Em suma, a remisso pura e simples para

a culpa, como momento de censurabilidade da pessoa (isto , da atitude ou personalidade),

daquele quid que deve ser apurado no plano das possibilidades de ao de um determinado

indivduo, prescindindo de incluir tais momentos na tipicidade, poder, ilegitimamente, antepor

pura valorao tico-social do comportamento sua identificao ou definio como ao

humana, expresso de opo entre alternativas. A combinao entre a perceo das finalidades

normativas do sistema, do seu funcionamento prtico e das possibilidades fticas do agente

impor certas solues, independentemente de opes concetuais e sistemticas. Ora as

questes sistemticas tradicionais no colocam no primeiro plano opes quanto ao sentido do

juzo responsabilizador decorrente da definio de crime, embora as contenham implcitas sob

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

13

outras vestes, nem articulam muito explicitamente essas opes com as possibilidades fticas

ou sociais do agir. Mas so estas opes e possibilidades que devero ser colocadas em primeiro

plano, considerando as consequncias (no s lgicas mas tambm prticas) do seu

funcionamento. Tais construes tericas apenas so credveis se revelarem opes quanto s

fronteiras da responsabilizao criminal, se permitirem obter distines operantes e de

significado percetvel e se se basearem em possibilidades concretas dos destinatrios das

normas. Na doutrina portuguesa, Figueiredo Dias demonstrou claramente na sua obre O

Problema da Conscincia da Ilicitude, que o erro sobre os pressupostos das causas de

justificao (em que o agente representa erradamente que uma condio factual de uma causa

de justificao se verifica) e o erro sobre a ilicitude do facto (em que o agente desconhece que

o facto que pratica proibido) no tinham uma soluo cabal a partir da distino sistemtica

entre tipicidade e ilicitude e dos diferentes contedos atribuveis ao tipo e ao ilcito,

nomeadamente no dependiam da incluso das causas de justificao no tipo conforme a

perspetiva neoclssica ou do dolo no tipo, conforme a perspetiva finalista. No dependeria

consequentemente, da posio neoclssica ou finalista a soluo a dar a estes erros como causa

de excluso do dolo ou de atenuao da culpa mas apenas do diferente relevo para a

censurabilidade pessoal do agente de tais erros em confronto com o erro sobre o tipo. Com esta

deslocao para a culpa da sede dos critrios de distino entre o erro que exclui o dolo (e

portanto a tipicidade) e o erro que, se no censurvel, apenas pode afetar a culpa, ganham-se,

sobretudo, critrios de distino justificveis por uma argumentao extra-sistemtica isto ,

que so percetveis como opo normativa por si, independentemente de quaisquer

pressupostos sistemticos. Com efeito, a colocao de tais erros como imediata questo de

culpa impede que a soluo jurdica dependa de opes mais abstratas (teorias da ao, por

exemplo) acerca da definio de crime. Mas o que o exemplo buscado em O Problema da

Conscincia da Ilicitude revela que a teoria geral da infrao tem de funcionar com critrios

imediatamente aptos para uma justificao aceitvel (e compreensvel) da deciso do caso,

devendo tais critrios constituir uma verdadeira teoria da deciso penal. A chave da teoria do

crime no em si mesma a referncia de um problema a uma categoria mas uma outra forma

de abordagem, discursiva, direta e material. A este propsito, interessante verificar que um

autor americano, George Fletcher, refere as doze distines bsicas do Direito Penal,

ultrapassando as que so prprias da teoria da infrao, mas abrangendo, igualmente, algumas

referidas teoria da pena Uma tal linha de pesquisa surge para o pensamento europeu como

retorno s fases pr-sistemticas da teoria penal, que caracterizam a doutrina penal pr-

moderna baseada no comentrio das leis e no casusmo em que era incipiente uma ideia geral

de crime, mas com a subtil diferena de hoje, se poder trabalhar com distines j

laboriosamente estruturadas pela teoria dos sistemas. Com efeito, todas as grandes distines

doo Direito Penal no so (provavelmente com a exceo das distines entre erros com

referncia ao tipo e ilicitude ou culpa) um produto da teoria dos sistemas, mas distines

seculares, oriundas do Direito Romano ou do pensamento jurdico europeu sobre os

pressupostos da responsabilidade penal. A tarefa racionalizadora do pensamento sistemtico

construdo sobretudo a partir de Beling parece ter levado a autonomizar excessivamente o

sistema das suas funes primordiais, criando aquele aparente esquecimento dos fins e do

discurso compreensvel que caracteriza a abstrao terica. So esses fins, essa plausibilidade

das solues no discurso, que devem assumir o primeiro plano. Mas haver possibilidade e

necessidade de reorientar o pensamento sistemtico? Uma resposta possvel foi, como veremos,

a do pensamento funcionalista.

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

14

a. O pensamento funcionalista e a reconstruo do sistema de definio e anlise do

crime: o funcionalismo sociolgico e o funcionalismo teleolgico: o pensamento

funcionalista aplicado teoria geral da infrao como uma nova opo de pensamento

sistemtico reconstri a lgica dos sistemas, clssico neoclssico e finalista, atravs da

ideia de adaptao funcional da prpria definio de crime tarefa de integrao no

sistema dos seus destinatrios. Nesta orientao, paradigmtico o pensamento de

Jakobs, embora j Roxin tivesse concebido uma orientao funcional das categorias

tradicionais do conceito de crime, a partir das finalidades preventivas do sistema penal.

Como refere Vives Antn, poder-se- falar de um funcionalismo teleolgico e de um

funcionalismo sociolgico, integrando-se Roxin no primeiro e Jakobs no segundo, no

sendo adequado fundir todo o apelo aos fins do sistema no mesmo conceito de

funcionalismo. Um pensamento funcionalista que se autonomize verdadeiramente da

racionalidade teleolgica do sistema neoclssico ter de se distanciar da prpria

definio da realidade utilizada pelo sistema jurdico (da respetiva definio e

compreenso), tanto do que regulado pelo sistema jurdico como da realidade que o

sistema postula como do prprio sistema jurdico enquanto elemento da realidade; isto

, ter de traduzir as normas do sistema bem como a sua teleologia em funes sociais,

numa espcie de realidade oculta subjacente. No funcionalismo de Luhmann, que mais

tem influenciado o pensamento jurdico, a realidade (aes, pessoas, instituies,

objetos) toda ela reduzida a um sistema complexo de interaes (papis e funes)

apto a realizar determinadas funes exigidas pelo ambiente em que se integra

(output/input). Assim, o papel ou a funo que define o objeto de conhecimento, que

o cria enquanto tal, de modo que a leitura do real no um retrato de entidades ta

como estas se apresentam ao sujeito de conhecimento, puramente autnomas

relativamente aos critrios ou modelos de conhecimento, mas depende de certo modo

dos prprios critrios e perspetivas atravs das quais so conhecidas. Este funcionalismo

radical depende se uma perspetiva epistemolgica diferenciada da que classicamente

subjaz teoria dos sistemas no Direito Penal. Com efeito, o prprio finalismo, apoiado

embora (na ltima fase) num modelo ciberntico de ao, baseia-se ainda numa

definio da realidade anti-determinista, voluntarista, construda sobre o conceito de

ao humana racional e livre, em que o eixo de compreenso e definio da realidade

a prpria ideia comum de ao humana, admitida como universal e englobante de todo

o comportamento humano. O pensamento neoclssico, por outro lado, construindo a

realidade a partir do valor e da significao dos factos, admite igualmente o controlo

humano sobre os valores e a significao e, consequentemente, a determinao do ser

pelo dever-ser. Mas o funcionalismo altera verdadeiramente a relao entre o sujeito e

o objeto do conhecimento e valorao pressuposta pelas orientaes anteriores, na

medida em que no concebe a realidade fora de um determinado modelo explicativo.

No se trata nem de uma anteposio do ser ao dever-ser, como pretende o

ontologismo, nem do dever-ser ao ser, como pretendeu o neokantianismo, mas sim de

uma determinao do ser, neste caso a realidade das normas, pela adscrio de papis

e funes. Deste modo, levado at s ltimas consequncias, o funcionalismo no tem

que pressupor a liberdade (como o finalismo) ou optar pela liberdade como valor (como

o sistema neoclssico). Sendo, em si mesmo, alheio a qualquer lgica legitimadora, o

funcionalismo no consegue, porm, superar a circularidade resultante de que todo o

conhecimento, neste caso o das funes, tambm o produto das mesmas regras que

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

15

explicam o funcionamento do conhecido, por conseguinte, determinado pelos

condicionantes e pelos fins do sujeito e, por isso, deste modo, apenas vlido na medida

dessa adequao. O funcionalismo, diferentemente do finalismo, no procura o modelo

de comportamento livre, racional e vinculvel condicionante da implantao de uma

tica de responsabilidade mas constata que o subsistema penal, por ter a funo de

estabilizao contrafctica das expectativas dos destinatrios do sistema, tem a sua

validade ditada pelo sistema social, isto , tem que apurar os seus critrios de

responsabilidade determinados pela funo para cumprir o desgnio da sua existncia.

Assim, a coincidncia entre os critrios de responsabilidade determinados pela funo

do subsistema penal e os critrios de uma tica do agir livre e responsvel ser puro ou

acaso ou, quando muito, uma opo funcionalmente determinada pela lgica soberana

da reproduo do sistema. Mas o funcionalismo, tal como o finalismo e o sistema

neoclssico, tem uma lgica sistemtica totalitria e reducionista quanto aos critrios

de determinao da responsabilidade. Poder tal lgica determinar solues tal como a

do ontologismo finalista? Na realidade, o funcionalismo criou o seu modelo de solues

a partir da ideia de que uma soluo disfuncional (Critrio da deciso de um tipo de

problemas), isto , que no serve a estabilizao das expectativas do sistema, no

racionalmente defensvel e no deve ser proferida. O funcionalismo no apela a uma

legitimao extrnseca ao sistema, como um conjunto de valores superiores, mas apenas

necessidade pressuposta (no demonstrada) de preservao do sistema,

imagem da norma fundamental de Kelsen. Prescinde da fundamentao no sentido

prprio, como a referncia a uma instncia superior que determine o bem ou o mal, o

vlido ou o invlido. Mas ao faz-lo, o funcionalismo mutila, sem dvida, a necessidade

imperiosa de critrios extrnsecos de fundamentao que permitam exigir o

cumprimento de norma ou que a ela nos sujeitemos isto , suprime a necessidade de

validar substancial discursivamente o Direito nas sociedades democrticas

respeitadoras dos direitos fundamentais e num certo direito justia. O vcio do

finalismo foi absolutizar a estrutura racional do agir humano derivando dela todas as

categorias do sistema de determinao da responsabilidade, como se tal estrutura no

fosse tambm eleita em funo das leis ticas do sistema jurdico. O vcio do

funcionalismo , agora, mais radicalmente, apagar a necessidade de fundamentao

extrnseca do sistema e da sua lgica, como se a tica no fosse igualmente uma

necessidade humana e social e uma condio de aceitabilidade do sistema. A soluo

do problema da distino entre o dolo e a negligncia exemplarmente expressiva do

modelo de soluo do problema penal proposto pelo funcionalismo. Jakobs defende

uma conceo segundo a qual o comportamento doloso se define pela avaliao feita

pelo agente, no momento da ao no improvvel, prescindindo de qualquer

relevncia autnoma de momentos psicolgicos (desejos ou estados mentais) ou, ainda,

de momentos de atitude (deciso pela leso de bens jurdicos). Quando fundamenta a

distino entre dolo e negligncia Jakobs apenas refere que os autores negligentes

afetam menos a validade da norma (tangieren die Normgeltung weniger) do que os

dolosos, pois a negligncia resulta da incompetncia do autor para se servir a sua

prpria esfera (ou o que lhe diz respeito), no podendo avaliar (dada a sua desateno)

as prprias consequncias do seu agir. Diferentemente, para o autor doloso as

consequncias fticas e lesivas da sua ao so aceitveis e a norma jurdica reguladora

diretamente posta em causa pela natureza da prpria conduta. No bastar a posio

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

16

do agente perante os valores protegidos pela norma, a partir de um certo contexto

motivacional. Mesmo que no se exclua que as motivaes possam ser utilizadas no

raciocnio probatrio, elas sero apenas consideradas indcios pouco relevantes da

verificao do juzo de no improbabilidade, no qual no se poder deixar de proceder

a uma avaliao da situao por terceiros (pelos cdigos vigentes de interpretao da

situao). Deste modo, a possibilidade de uma conotao do dolo com a culpa, isto , a

censurabilidade do agente em face das motivaes, fica prejudicada e a deciso pela

responsabilidade dolosa torna-se indiferente avaliao da prpria perigosidade do

agente. Independentemente da razoabilidade do critrio de Jakobs, o que resulta claro

que o seu fundamento corresponde a uma opo de desvinculao do valor penal de

uma conduta do quadro tico comum (ou vlido noutras linguagens sociais) de

censurabilidade dos comportamentos sociais. A funo de preservao da validade das

normas justificar, em situaes concretas, que se prescinda de qualquer avaliao da

atitude segundo critrios de valor (bem/mal) prprios da tica, admitindo-se a

qualificao do comportamento como doloso, em ltima anlise, onde a atitude do

agente no revele uma carga tica muito intensamente negativa. Sem exibir uma

diferenciao epistemolgica to radical como a que subjaz ao funcionalismo

sociolgico, tem sido designada como funcionalista, embora os autores no se auto-

qualifiquem como tal, aquela orientao que tinha sido menosprezada pelo

pensamento sistemtico anterior, num modelo de pensamento em que o principal

critrio de qualificao e deciso so as prprias finalidades preventivas do sistema

penal. Retomando o exemplo do contedo do dolo (para no referir as outras categorias,

como as causas de justificao e de desculpa ou a tentativa, que Roxin constri sob

idntica lgica), tambm claro no pensamento deste autor que doloso o

comportamento adequado pena de dolo e cujas caractersticas so fixadas na base de

decises valorativas poltico-criminais e no resultam de quaisquer caractersticas

ontolgicas ou mesmo definidas socialmente do agir humano. Assim, o dolo eventual,

fronteirio da negligncia, corresponde a uma deciso pela possvel leso do bem

jurdico, como expresso de uma superior motivabilidade pela norma e de uma

consequente justificao de uma preveno especial e geral mais intensa. Ora, este

modo de construo sistemtica ainda uma decorrncia da realidade neokantiana,

que tende a derivar das puras opes de valor as categorias da realidade e a no atribuir

qualquer papel determinante e autnomo aos objetos no relevantes valorativamente.

Diferentemente do funcionalismo sociolgico, em que os valores dos sistema no

protagonizam as suas figuras e solues, este outro funcionalismo coloca os contedos

valorativos de um determinado sistema penal no plano central. A necessidade da pena,

a preveno especial, a dignidade da pessoa e os valores constitucionais do Estado de

Direito so os crivos, os tpicos que decidem os critrios da responsabilidade e da

graduao da pena. No se cura, todavia, de uma seleo dos referentes

comportamentais que servem a aplicao daqueles critrios valorativos, mas que seriam

definidos pr-valorativamente ou noutras instncias de leitura da realidade. Admite-se,

antes, uma construo da realidade interna ao sistema valorativo. A categoria geral da

ao ou do comportamento humano no ponto central do sistema. Quando muito, -

lhe assinalada uma funo delimitativa negativa relativamente aos comportamentos

sem um mnimo de autonomia e voluntariedade, no contribuindo para a determinao

dos critrios de imputao penal, tornando-se, portanto, desprovida de valor

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

17

sistemtico. o comportamento tpico, interpretado segundo os valores gerais do

sistema, que expressar os valores particulares da situao concreta (decorrendo, assim,

a base da imputao penal dos desgnios gerais do sistema). Este funcionamento

teleolgico (ou esta teleologia), que numa vertente mais moderada, sistematicamente

mais complexa e aberta, integra o pensamento de Figueiredo Dias, tende a no extrair

qualquer operatividade para as categorias de imputao penal de outros sistemas de

construo ou definio da realidade. Se o funcionalismo sociolgico redutor porque

aniquila as questes sobre as preferncias ou opes normativas, retirando deciso

jurdica o seu nvel tradicional de fundamentao, o funcionalismo teleolgico incorre,

se levado s ltimas consequncias, numa auto-construo dos valores do sistema penal,

no solipsismo valorativo, perdendo, igualmente, a possibilidade de integrar no nvel

tico-jurdico a contribuio de outras experincias de pensamento.

b. O aproveitamento na teoria geral da infrao da reconstruo sistemtica do

pensamento sobre a sociedade (a teoria da ao comunicativa, a teoria da linguagem

e a racionalidade intersubjetivamente determinada): pode dizer-se que existe um

(ainda) tmido esforo para suscitar um novo impulso epistemolgico no pensamento

penal europeu, a partir dos desenvolvimentos da filosofia da ao e da teoria da

sociedade, embora sem concretizao e formalizao idnticas do funcionalismo

sociolgico. A ideia mnima de um tal enquadramento terico a rejeio de uma

racionalidade puramente jurdica e a constante imbricao da realidade social no Direito

como instrumento da interpretao do Direito existente e da sua reconstruo

valorativa. A ao no vista como um puro facto, uma substncia ou um substrato

fsico-comportamental, mas no tambm uma mera construo do sistema jurdico.

Surge como interpretao normativa ou construo normativa (atravs das regras

sociais) do mundo. Aparentemente, este conceito de ao no mais do que a ao

social que a teoria neoclssica viria a adotar. Todavia, neste entendimento de ao

social est implicada uma inverso entre o mtodo e o objeto do conhecimento

relativamente teoria da ao social neoclssica. O objeto do conhecimento no j a

determinao das caractersticas essenciais comuns a todo o comportamento com o

valor de ao a partir de significado social, mas antes as regras da linguagem social (e

dos respetivos contextos) que permitem designar validamente como ao (ou ao de

um determinado tipo) um certo comportamento, num dado contexto. O facto de a ao

ser entendida como construo de significado a partir de regras sociais (as da linguagem

e dos seus jogos) torna essas regras e os contextos sociais do seu uso o verdadeiro

objeto da investigao acerca da ao e das suas formas. Assim, tal como quanto

conceo de ao e das suas formas. Assim, tal como quanto conceo de ao social

investigar-se- quais as regras sociais que distinguem uma ao de um determinado tipo

(ofensa corporal) de um puro facto ou de uma ao de um outro tipo (por exemplo, de

uma interveno cirrgica), todavia sero essas mesmas regras sociais, os eu modo de

produo e a sua relatividade, a principal finalidade da anlise e no a deduo a partir

delas das caractersticas em geral dos comportamentos humanos. A partir deste

entendimento, a ao no um problema de definio das caractersticas de uma

realidade, que ainda uma perspetiva ontolgica, mas um problema de identificao

das regras (ou critrios de atribuio de significado) de validade da designao de uma

conduta num determinado contexto relevante para o Direito. A teoria da ao com

interesse para o Direito Penal seria, neste sentido, a teoria sobre as lgicas, as regras e

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

18

as condies da comunicao pelo Direito de tais lgicas, da qual derivariam as

condies de validade das prprias designaes das condutas penais como condutas de

um certo tipo (ao, omisso, dolo, negligncia, autoria, comparticipao, homicdio,

injria, etc.). Uma tal perspetiva , como foi referido, meramente embrionria, mas

parece indicada pelo modo como constitudo o discurso em vrio autores, como

Michael Khler, fazem uma abordagem antiontolgica da responsabilidade penal, mas,

igualmente no funcionalista, a que no alheia a ideia de racionalidade comunicativa

e uma fundamentao da validade do Direito em estruturas lgico-sociais da ao livre.

Este autor desenvolve uma importante crtica metodolgica do positivismo jurdico e do

normativismo (nomeadamente da escola neoclssica), criticando, expressamente, a

reduo de ao pressuposta pelo sistema jurdico causalidade natural ou

racionalidade dos fins. Para Khler, a ao no uma ordem exterior ao Direito, mas

sim o encontro de uma razo jurdica intersubjetivamente definida. Porm, esses

autores apenas se renem, como se referiu, atravs de uma tendncia para buscar a

racionalidade do Direito, como pretendia Max Weber, na racionalidade de outros

sistemas sociais e no intrinsecamente nos valores que aquele autoprope. Desenham

geralmente uma linha reconstrutiva das solues do sistema penal e dos seus valores

de acordo com aquela mesma ideia de racionalidade comunicativa, adequada ao

fortalecimento dos valores do respeito pela subjetividade e pelo consenso

intersubjetivo. A prpria referncia s racionalidades sociais extra-jurdicas nas solues

do Direito surge simultaneamente como produto de compreenso da validade do

Direito e da sua eficaz reconstruo. A possvel repercusso destas abordagens na teoria

da infrao a prpria alterao dos problemas sistemticos que constituram o quadro

terico da teoria dos sistemas, desde Beling. Todavia, ainda no emergiu uma suficiente

conscincia dessa alterao, com repercusso decisiva na enunciao dos problemas do

Direito Penal. s questes sobre o reencontro entre tipicidade e ilicitude ou ilicitude e

culpa, que tornam o Direito Penal um pensamento hermtico, e que o cristalizam em

dogmas inultrapassveis (delimitando rigidamente o campo dos conceitos, como as

causas de justificao, o dolo, as espcies de erro, etc.), dever contrapor-se em sistema

mais flexvel de conceitos em que a deciso sobre as consequncias do crime assumir,

objetivamente, o papel preponderante.

A teoria geral da infrao e as questes primrias de uma teoria da deciso sobre a

responsabilizao penal. Proposta metodolgica: uma teoria geral da infrao baseada uma certa ordenao sistemtica dos elementos da definio de crime leva referncia das

caractersticas do facto concreto que justificam a sua qualificao como crime, tais como, por

exemplo, a inteno do agente, a verificao de uma situao de legtima defesa ou a capacidade

de motivao pela norma penal, a cada elemento da definio de crime, a tipicidade, a ilicitude

e a culpa. Mas a teoria geral da infrao deve ser uma anlise desformalizada dos critrios gerais

de deciso sobre a responsabilidade penal, no se fechando hermeticamente num sistema de

definio do crime motivado pela mera preocupao de apreenso da racionalidade dos

elementos comuns a qualquer crime no sistema. Sem abandono das categorias propostas pelos

sistemas de definio e anlise do crime, indispensveis pela sua dimenso concetual,

necessrio, porm, progredir-se para uma exposio dos critrios de determinao da

responsabilidade penal, que interprete o contedo da ilicitude e da culpa (e a dimenso da

tipicidade que as interpenetra e em que se baseiam) como critrios de deciso das fronteiras da

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

19

responsabilidade penal, de acordo com opes de justia, construtivas do sistema penal. A

teoria geral da infrao poder, consequentemente, assumir o papel de uma teoria da deciso

sobre a imputao penal num sistema jurdico aberto considerao de outras linguagens. No

prosseguimento de tais objetivos, deveremos confrontar-nos com o quadro das grandes opes

ou critrios de determinao das fronteiras de atribuio de responsabilidade (imputao) penal,

tais como: h (ou deve haver) uma limitao do facto punvel a um determinado sentida de ao,

que exclua, por exemplo, uma equiparao generalizada da omisso ao? A imputao de

consequncias de um comportamento coincide essencialmente com a causalidade ou prescinde

dela? O comportamento doloso abrange (ou deve abranger) algo mais do que a representao

como no improvvel de um resultado? A ilicitude reclama a violao de um dever ou basta-se

com a leso objetiva de um bem jurdico e a correspondente danosidade social? A culpa poder

prescindir da valorao de uma atitude interna do agente? Esta transferncia das questes

sistemticas tradicionais para a esfera de uma lgica de deciso no prescinde do entendimento

da prpria lgica estrutural bsica da teoria geral da infrao tradicional, consistente numa teia

de precedncias entre a tipicidade, a ilicitude e a culpa. Mas, como a doutrina no unnime

quanto ao contedo das categorias, acontecer, por vezes, que o que prioritrio e antecedente

numa proposta sistemtica no o ser noutra abordagem. O mesmo se passar com a distino

entre ilicitude e culpa que, sendo hoje praticamente indiscutida, no evita a transferncia de

contedos entre os seus termos, de modo que aquilo que foi mero fundamento de desculpa

poder passar a suscitar a atipicidade ou a excluso da ilicitude. Todavia, a excessiva insistncia

em problemas como o sistema tripartido ou bipartido, a insero sistemtica do dolo e o lugar

da punibilidade no parece justificvel. As questes materiais, as referidas opes bsicas da

deciso sobre a imputao penal, devero levar a decidir essas outras questes que apenas

podem ser formalizaes das alternativas colocadas pelas primeiras. Tais questes, ou pelo

menos as primrias, podero ser reduzidas ao seguinte elenco exemplificativo:

A imputao penal, como atribuio de responsabilidade, pode referir-se a quaisquer

factos humanos ou exige comportamentos com certa natureza (funo delimitativa do

conceito de ao)?

Na interpretao da norma penal incriminadora com vista imputao penal, o

intrprete est vinculado a uma certa racionalidade pr-jurdica? Existir essa

vinculao na delimitao entre ao e omisso ou na configurao do dolo e da

negligncia (funo sistemtica da ao e da relao entre tipicidade e ilicitude)?

Na delimitao de um facto como tpico, por exigncias decorrentes do princpio da

legalidade, vivel um critrio interpretativo que condicione s razes gerais do sistema

(fins e funes) a determinao da existncia do facto tpico para alm do sentido

possvel das palavras (problemas na interpretao das normas penais e no

relacionamento entre tipicidade e ilicitude)?

Qual a importncia da causalidade na imputao jurdica das consequncias de um

facto ao de um agente?

Como que se imputam (atribuem) os factos aos agentes?

Na imputao do dolo (imputao subjetiva) h uma vinculao a uma estrutura racional

de intencionalidade ou o dolo uma construo do sistema penal de acordo com as suas

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

20

funes e finalidades? Em qualquer dos casos, qual o contedo do dolo (questo do

contedo e espcies de dolo e decorrentemente da sua insero sistemtica)?

exigvel algum momento subjetivo como o dolo ou a negligncia para a afirmao de

que a conduta viola a norma penal (questo de objeto do juzo de ilicitude e dos papis

relativos dos desvalores da ao e do resultado?

Que diferena essencial existe entre a ilicitude ou excluir a culpa ou justificar e desculpa?

As causas de justificao implicam uma efetiva permisso e valorao positiva de uma

conduta (natureza da justificao, distino entre justificao e desculpa)?

A culpa implica uma valorao da atitude do agente ou apenas da sua capacidade de

agir de modo diferente (problema das concees de culpa)?

O erro pode excluir a responsabilidade penal (problema da distino entre erro

intelectual e erro moral e espcies de erro de acordo com os sistemas da definio do

crime)?

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

21

Ttulo I A construo da doutrina do crime (do facto

punvel)2

10. - Questes fundamentais

Sentido, mtodo e estrutura da conceitualizao do facto punvel: princpio hoje indiscutivelmente aceite em matria de dogmtica jurdico-penal e de construo do conceito de

crime o de que todo o Direito Penal Direito Penal do facto, no direito penal do agente. E num

duplo sentido:

No de que toca a regulamentao jurdico-penal liga a punibilidade a tipos de factos

singulares e sua natureza, no a tipos de agentes e s caractersticas da sua

personalidade; e

Tambm no de que as sanes aplicadas ao agente constituem consequncias daqueles

factos singulares e neles se fundamentam, no so formas de reao contra uma certa

personalidade ou tipo de personalidade.

Nesta aceo pode e deve logo ser dito que a construo dogmtica do conceito de crime afinal,

em ltima anlise, a construo do conceito de facto punvel. Em suma, pois mesmo em matria

de segurana criminais , o facto e s ele constitui, na aceo agora em causa, o fundamento e o

limite dogmtico do conceito geral de crime; de sorte que perguntar por este perguntar, do

mesmo passo, pelo conceito de facto ou, se preferirmos, de facto punvel ou de facto criminoso.

Ora, a tentativa de apreenso dogmtica deste conceito jurdico-penal do facto constitui uma das

mais ingentes tarefas a que at hoje se dedicou a dogmtica jurdica. E essa tentativa ocorreu

quase sempre, durante os dois ltimos sculos,, na base de um procedimento metodolgico

categorial-classificatrio, atravs do qual se toma como base um conceito geral no caso, o

conceito de ao suscetvel, pela sua larga extenso e pela sua reduzida compreenso, de servir

de pedra angular de todas as suas predicaes ulteriores. O que no significa desagregar ou

quebrar em pedaos diversos e autnomos o conceito de crime, mas alcanar uma sua

compreenso unitria atravs de uma sua compreenso lgico-sistemtica, a permitir que uma

realidade unitria seja contemplada a partir de pontos de vista diversos. Assim se chega

compreenso do facto e portanto de todo e qualquer crime como conjunto de cinco

elementos: como ao, que depois qualificada (conceo quadripartida) como tpica, ilcita,

culposa e punvel. Como quer que estes elementos devam mutuamente compreender-se e

delimitar-se (e eventualmente, at um certo ponto, fundir-se), ao, tipicidade, ilicitude,, culpa e

punibilidade so os elementos constitutivos do conceito de facto ou do conceito de crime e do

respetivo sistema dogmtico.

2 Dias, Jorge Figueiredo; Direito Penal, Parte Geral Tomo I; Coimbra Editora, 2. Edio; Coimbra outubro 2012.

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

22

Sobre a evoluo histrica da doutrina geral do facto punvel: a construo do conceito de facto punvel, tal como hoje se apresenta, filha de uma experincia de tal forma multmoda e

plurifacetada que se impe oferecer, a quem dela se aproxima pela primeira vez, modelos de

compreenso, tanto quanto possvel fceis e manejveis, das querelas atuais; mas que, na sua

simplicidade, correspondam todavia, no essencial, vivncia e evoluo histrico-dogmticas

do ltimo sculo. Correspondncia que no poderia deixar de entrar em linha de conta com as

mundividncias culturais e filosficas que estiveram na base das concees principais e

decisivamente as influenciaram. Com este propsito distinguir-se-o em seguida trs grandes

perodos ou fases da evoluo da doutrina do facto punvel: o da conceo clssica, de notria

influncia naturalista e juspositivista; o da conceo neoclssica, cujos fundamentos se devem

procurar no normativismo jurdico de raiz neokantiana; e o da conceo finalista, orientada por

uma conceo ntica ou regional-ontolgica do Direito, ligada fenomenologia e a uma filosofia

material dos valores. Devendo todavia desde o primeiro momento fazer-se uma preveno: a de

que cada uma das concees referidas pretendeu, mais do que substituir, superar a anterior.

Como exatamente sublinha Jescheck,

nenhuma das teorias conseguiu afastar completamente as outras, continuando ainda hoje vivos,

uns junto dos outros, pensamentos procedentes dos trs sistemas.

1. A conceo clssica (positivista-naturalista):

a. Exposio sumria: a conceo chamada clssica do facto punvel3 assenta numa

viso do jurdico decisivamente influenciada, em perspetiva poltico criminal,

pela ento dita Escola moderna e, de forma geral, pelo naturalismo positivista

que caracterizou o monismo cientfico prprio de todo o pensamento da

segunda metade do sculo XIX. Tambm o direito teria como ideal a exatido

cientfica prpria das cincias da natureza e a ele deveria incondicionalmente

submeter-se; de sorte que, do mesmo modo, o sistema do facto punvel haveria

de ser apenas constitudo por realidades mensurveis e empiricamente

comprovveis, pertencessem elas facticidade (objetiva) do mundo exterior ou

antes a processos psquicos internos (subjetivos). Com o que ficava prxima uma

bipartio do conceito de crime que agrupasse os seus elementos constitutivos

na vertente objetiva (a ao tpica e ilcita) e na vertente subjetiva (a ao

culposa); conceo esta ainda hoje muito viva, por exemplo, na doutrina francesa

dominante, que se limita em regra a distinguir no conceito de crime o elenco

material e o elemento moral da infrao. De acordo com o que fica dito, esta

conceo via na ao o movimento corporal determinante de uma modificao do

mundo exterior, ligada casualmente vontade do agente. Ao que se tornaria em ao

tpica sempre que fosse lgico-formalmente subsumvel num tipo legal de ao,

completamente estranha a valores e a sentidos. Ao tpica, por seu turno, que

se tornaria um ilcita se no caso no interviesse uma causa de justificao, dizer,

uma situao (legtima defesa, estado de necessidade, obedincia devida, etc.)

que, a ttulo excecional, tornasse a ao tpica em ao lcita, aceite ou permitida

pelo Direito; e que assim determinasse em definitivo a contrariedade da ao ao

ordenamento jurdico. E com isto ficaria perfeita a vertente objetiva facto.

3 E para a qual contriburam decisivamente autores como Berner.

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

23

Quanto vertente subjetiva do facto, ela concentrar-se-ia na categoria de culpa.

A ao tpica e ilcita tornar-se-ia em ao culposa sempre que fosse possvel

comprovar a existncia, entre o agente (imputvel, sc., capaz de culpa) e o seu

facto objetivo, de uma ligao psicolgica da esta doutrina ter ficado

conhecida como conceo psicolgica da culpa suscetvel de legitimar a

imputao do facto ao agente a ttulo de dolo (conhecimento e vontade de

realizao do facto) ou de negligncia (deficiente tenso de vontade impeditiva

de prever corretamente a realizao do facto). E com isto se teria logrado a

apreenso perfeita e completa do conceito de crime.

b. Apreciao crtica: a partir de certo momento compreendeu-se que o sistema

naturalista-positivista do crime, assim delineado, no podia prevalecer. Logo o

conceito de ao, ao exigir um movimento corpreo e, de todo o modo, uma

modificao do mundo exterior, restringia de forma inadmissvel a base de toda

a construo. O que conduziria a afirmaes to estranhas realidade da vida

como a de que a ao, no crime de injria, consistiria na emisso de ondas

sonoras dirigidas ao aparelho auditivo do recetor; ou que, na omisso, o que

relevaria como ao seria a ao precedente (a me seria punida no por ter

deixado morrer o seu beb fome, mas por, em vez de o amamentar, ter ido

passar um fim de semana ao campo). Reduzir por outro lado a tipicidade a uma

operao lgico-formal de subsuno, esquecendo as unidades de sentido social

que vivem nos tipos, levaria a igualar o ato do cirurgio que salva a vida do

paciente com o do faquista que, em vendetta, esventra a sua vtima. Como

reduzir o juzo de ilicitude ausncia de uma causa de justificao do facto tpico

(de um obstculo ilicitude ou de uma causa de excluso da ilicitude) constituiria

uma compreenso pauprrima e, em definitivo, inexata do que vai implicando

no juzo de contrariedade ordem jurdica. Finalmente, a conceo psicolgica

da culpa esqueceria que tambm o inimputvel por definio, incapaz de culpa

pode agir com dolo ou negligncia; que na negligncia, ao menos na

inconsciente, onde no h previso do resultado, no existe qualquer relao

psicolgica comprovvel entre o agente e o facto, antes ausncia dela (o faroleiro

que se deixa adormecer e no d o sinal devido); e ainda que,

independentemente da verificao do dolo ou da negligncia, circunstncias

existem que devem excluir a culpa, nomeadamente, certas situaes de falta de

conscincia do ilcito ou da inexigibilidade de outro comportamento. No fundo,

a conceo da escola clssica foi abandonada no preciso momento em que se

pde compreender que no mais eram defensveis os fundamentos ideolgicos

e filosficos sobre que assentava. verdade que a ela coube o mrito

indeclinvel de, pela primeira vez, ter erigido todo um sistema do crime assente

uma rigorosa metdica categorial-classificatria, dotado de uma notabilssima

clareza e simplicidade (com a distino entre as vertentes objetiva e subjetiva do

facto punvel) e, por sobre tudo isto, baseado numa salutar preocupao de

segurana e de certeza, congenitamente requerida pela ideia do Estado de

Direito e por uma realizao prtica do princpio da legalidade. Mas tambm

verdade que as suas insuficincias no mais podiam ser escondidas: o direito em

geral e o direito penal de forma particular no participa do monismo

metodolgico (e ideolgico) das cincias naturais, trata com realidades que

Maria Fernanda Palma | Direito Penal II 2015/2016

24