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DISCURSOS SOBRE A INCLUSÃO

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DISCURSOS SOBRE A INCLUSÃO

Eliana Lucia FerreiraEni P. Orlandi(organizadoras)

Niterói

Intertexto

2014

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© 2014 by Eliana Lucia Ferreira, Eni P. Orlani

Direitos desta edição reservados à Editora Intertexto.

É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios, sem autorização expressa da editora.

Capa: André Luiz da Fonseca JuniorProjeto gráfico, diagramação e editoração: Camilla Pinheiro

Os textos são de responsabilidade total de seus autores.

Intertexto Editora e Consultoria LtdaTelefax: (21) 2613-3732e-mail: [email protected]

Dados internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

D611 Discursos sobre a inclusão / Eliana Lucia Ferreira, Eni P. Orlandi (organizadoras) – Niterói : Intertexto, 2014. 286 p. : il. ; 21 cm. Inclui bibliografias. ISBN 978-85-7964-046-9 1. Educação especial. 2. Educação inclusiva. I. Ferreira, Eliana Lucia. II. Orlandi, Eni P. CDD 371.9

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ...................................................9

EQUÍVOCOS QUE CONSTITUEM O MACRODISCURSO POLÍTICO-EDUCACIONAL DA INCLUSÃO

Juliana Santana Cavallari ............................................ 11

1 INTRODUÇÃO ...........................................................13

2 SOBRE O EQUÍVOCO NA PRODUÇÃO DE

SENTIDOS OUTROS .................................................17

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS .............. 20

4 ANÁLISE DOS REGISTROS ..................................... 23

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................... 39

REFERÊNCIAS ........................................................... 47

O DISCURSO DA INCLUSÃO PELA DIFERENÇA NA RELAÇÃO MÍDIA E SOCIEDADE

CaCiane Souza de MedeiroS ..........................................51

1 INTRODUÇÃO .......................................................... 53

2 UMA INCLUSÃO PARTIDA ..................................... 54

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3 AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO

DA INCLUSÃO .......................................................... 62

4 OS SENTIDOS DA INCLUSÃO

NEOLIBERAL: A CONSTRUÇÃO

DO SUJEITO ENGAJADO ........................................77

5 POR UMA RETOMADA DA DISCUSSÃO

SOBRE O CONCEITO DE INCLUSÃO .................. 82

REFERÊNCIAS ........................................................... 87

DISCURSIVIDADES DE INCLUSÃO E A MANUTENÇÃO DA EXCLUSÃO

GreCiely CriStina da CoSta ......................................... 89

1 INTRODUÇÃO ...........................................................91

2 DISCURSO: SENTIDOS E SUJEITOS .................... 94

3 A SOCIEDADE DA SEGREGAÇÃO ......................... 96

4 SENTIDOS PARA A DIFERENÇA ...........................101

5 CONCLUSÕES .........................................................133

REFERÊNCIAS ..........................................................135

FORMAÇÃO OU CAPACITAÇÃO?: DUAS FORMAS DE LIGAR SOCIEDADE E CONHECIMENTO

eni PuCCinelli orlandi ...............................................141

1 INTRODUÇÃO ........................................................ 143

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2 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO E/OU

SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO? ........................ 148

3 EDUCAR É FORMAR: A LÍNGUA

ENTRA EM CENA .....................................................153

4 O SUJEITO E O SENTIDO OUTRO:

A FORMAÇÃO NA RELAÇÃO DA

LINGUAGEM COM A SOCIEDADE .......................161

5 HISTORICIDADE, ALTERIDADE .......................... 170

6 CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS ......................178

REFERÊNCIAS ......................................................... 183

ACESSIBILIDADE: SENTIDOS EM MOVIMENTO

débora MaSSMann .......................................................191

1 INTRODUÇÃO ........................................................ 193

2 DIVERSIDADE E ACESSIBILIDADE .......................197

3 DO SENTIDO POSTO AO SENTIDO

FLUIDO .....................................................................202

4 SOBRE O(S) SENTIDO(S) DE

ACESSIBILIDADE ....................................................208

REFERÊNCIAS ..........................................................221

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TRAÇO, CORPO, SENTIDO: SOBRE A ESCOLA, A CRIANÇA E A ESCRITA

renata ChryStina bianChi de barroS ........................ 225

1 INTRODUÇÃO ........................................................ 227

2 A ESCOLA DE EDUCAÇÃO INFANTIL

CONTEMPORÂNEA: A PEDAGOGIZAÇÃO

DO CORPO ..............................................................234

3 DO CORPO BIOLÓGICO AO

CORPO-SENTIDO ..................................................246

4 O SUJEITO DA ESCOLA

CONTEMPORÂNEA ............................................... 255

5 DO APRISIONAMENTO À SUBVERSÃO:

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................260

REFERÊNCIAS .........................................................265

EDUCAÇÃO FÍSICA: EM BUSCA DE UMA NOVA A RE-SIGNIFICAÇÃO

eliana luCia Ferreira .................................................269

1 INTRODUÇÃO .........................................................271

2 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................... 281

REFERÊNCIAS .........................................................285

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9

APRESENTAÇÃO

Atualmente, o processo de inclusão escolar e

social é um “movimento em movimento”, com ra-

mificações em compromissos individuais em prol de

compromissos coletivos, com a pretensão de resol-

ver as insuficiências de um sistema social, se posi-

cionando como um desejo de completude político/

educacional.

Portanto, os discursos sobre a inclusão aqui

apresentados inserem-se em um contexto de de-

bates e posicionamentos trazidos pela legislação,

pela educação e pela política na sua dimensão so-

cial mais ampla.

O que se percebe é que há um jogo de diver-

gências e convergências entre os movimentos so-

ciais legitimados para se instaurarem na diversidade,

mas há também uma resistência silenciada. E é nes-

te contexto que o movimento da inclusão recobre-

-se de sentidos, agregando valoração simbólica.

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Portanto, as questões, aqui, não somente con-

tribuem para a inclusão social, mas também encon-

tram ressonância em práticas inclusivas voltadas

para a educação de um modo geral.

Sendo assim, esta obra é marcada pela plura-

lidade de discursos que recolocam a questão da

inclusão em um universo mais amplo de possibili-

dades de compreensão das marcas históricas e dos

sentidos das relações sociais.

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Juliana Santana Cavallari**

EQUÍVOCOS QUE CONSTITUEM O MACRODISCURSO POLÍTICO-EDUCACIONAL DA INCLUSÃO*

* Uma versão primeira deste trabalho foi publicada na Revista Brasileira de Linguística Aplicada (RBLA).

** Doutora e pós-doutora pela UNICAMP. Professora do Programa de Mestrado em Ciências da Linguagem da Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS).

Não há verdade que, ao passar pela atenção, não minta.

laCan

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13

1 INTRODUÇÃO

Na tentativa de promover a democratização da

escola e do ensino, uma série de ações políticas foi

adotada pelo governo, sobretudo a partir da déca-

da de 1990 (VIZIM, 2003). Através da Declaração da

Educação para Todos (1990), da Política Nacional de

Educação Especial (1994), dentre outras propostas,

buscou-se, por meio da adoção de práticas inclusi-

vas, atender às necessidades dos excluídos, isto é,

daqueles que sofrem algum tipo de privação social,

física ou cognitiva. Assim sendo, o macrodiscurso

político-educacional, difundido não só por gover-

nantes ou representantes legais, mas, em especial,

por agentes educacionais1 tende a reforçar e a asse-

gurar a aplicação de políticas inclusivas, o que, ima-

ginariamente, possibilitaria um processo de ensino e

aprendizagem mais justo e igualitário.

Recentemente, o Governo Federal anunciou

um grande investimento na Educação Especial, com

vistas à efetivação de práticas inclusivas e à oferta

de educação de qualidade para todos. Vale desta-

car que o enunciado “educação para todos” exerce

o efeito de slogan ou propaganda do atual gover-

1 Neste estudo, adotamos o termo “agente educacional” não no sentido de agenciar ou de agenciadores, mas sim para designar os sujeitos que exercem funções que incidem diretamente no ato educativo, como professores, diretores, coordenadores, supervisores etc.

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no, além de ser frequentemente empregado como

promessa primordial de campanha de futuros go-

vernantes, de modo geral. Não é por acaso que, ao

longo deste texto, adotamos o termo “macrodiscur-

so político-educacional da inclusão” para nos re-

ferirmos ao objeto de análise deste texto, graças a

aparente fusão, ou melhor, (con)fusão que parece

afetar o discurso político e o discurso da educação

formal acerca da inclusão, já que passam a funcionar

quase que indistintamente, na tentativa de viabilizar

a educação inclusiva e suas diretrizes já anunciadas

e prescritas em documentos oficiais. Tomamos essa

(con)fusão de discursividades que, por sua vez, nos

remete a uma mesma formação discursiva acerca da

inclusão, como um macrodiscurso que se apresen-

ta como verdadeiro e já legitimado e que, portanto,

incide direta e indiretamente nos diversos âmbitos

sociais e, sobretudo, no contexto educacional.

O objetivo específico deste estudo é desve-

lar o modo como intra e interdiscursivamente2 o

discurso da inclusão – que se materializa em prá-

ticas inclusivas tidas como politica e moralmente

corretas – produz efeitos de sentido e de verda-

de em nosso meio sócio-histórico. Para tanto, nos

2 De acordo com a Análise de Discurso de linha francesa, que fundamenta este estudo, o intradiscurso se refere à aparente linearidade do dizer, ao passo que o interdiscurso, que atravessa o fio discursivo à revelia do sujeito de linguagem, nos remete ao “conjunto de formulações feitas e já esquecidas (já-ditos) que determinam o que dizemos” (ORLANDI, 1999, p. 33).

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pautamos nos seguintes questionamentos: como

as noções de inclusão e diferença (con)formam e

engendram o dizer-fazer de agentes educacionais?

Como educação e inclusão se relacionam e afetam

as práticas discursivo-pedagógicas? Partindo do

pressuposto de que a prática e política inclusivas

evocam noções e representações que significam

em oposição e por meio de pares dicotômicos (in-

clusão x exclusão; igualdade x diferença) já natura-

lizados no contexto escolar, levantamos a hipótese

de que a educação inclusiva (EI) silencia e apaga

a(s) diferença(s) e o diferente, já que “incluir” pro-

duz o efeito de sentido de “normalizar” ou de “tor-

nar o outro meu semelhante”.

Como material de pesquisa foram utilizados

alguns depoimentos proferidos por agentes edu-

cacionais (professores, assistentes, coordenadores

de cursos, diretores, pedagogos e psicólogos), por

ocasião de algumas palestras e seminários realiza-

dos em um congresso nacional cujo tema era “in-

clusão e diversidade”. Trata-se de um amplo even-

to realizado anualmente, no estado de São Paulo,

e que reúne profissionais da educação de diversos

campos do saber e de diversas áreas de atuação.

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Do ponto de vista teórico, os pressupostos da

Análise de Discurso de linha francesa (ADF), que

postula a determinação inconsciente e ideológica

do sujeito e da linguagem, fundamentam a análise

dos registros e as considerações aqui propostas.

Em última instância, o presente estudo sugere o

acolhimento das diferenças e da ingovernabilidade

que, vez por outra, irrompem no contexto escolar,

de modo que possamos atuar como agentes edu-

cacionais, no sentido de não temermos ou ficarmos

passivos diante do inesperado, mas de concebermos

a diferença e o diferente como fatores produtivos

que provocam transformações em todos os partici-

pantes do contexto escolar, independentemente da

função exercida, deslocando saberes pré-construí-

dos ou já normalizados sócio-historicamente.

A seguir, abordamos o conceito de equívoco

que se mostrou bastante produtivo para o desenvol-

vimento da parte analítica deste estudo.

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2 SOBRE O EQUÍVOCO NA PRODUÇÃO DE SENTIDOS OUTROS

Tendo em vista a problemática levantada neste

estudo “o equívoco no discurso da inclusão”, faz-

-se necessário adentrarmos o conceito de equívoco

que viabilizou o recorte discursivo efetuado no ma-

terial de análise.

De acordo com a perspectiva discursiva, o

equívoco produz uma falha materializada na/pela

língua, à revelia do sujeito enunciador. Essa falha não

pode ser recoberta, levando à produção de sentidos

outros, por vezes indesejáveis, e que denunciam a

posição discursiva, portanto ideológica, ocupada

pelo sujeito de linguagem, bem como as formações

discursivas em que seu dizer se inscreve para pro-

duzir efeitos de verdade e de evidência enunciativa.

Nesse prisma, não é o sujeito que fala a língua, mas

sim a língua que fala e (d)enuncia o posicionamento

do sujeito enunciador, uma vez que aponta para as

suas formações ideológicas e para os vários discur-

sos que legitimam seu dizer.

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Convém ressaltar que o sujeito constituído na/

pela linguagem, tal como postula Pêcheux, não

é causa nem origem dos sentidos que produz ao

enunciar, pois surge como efeito do assujeitamento

à linguagem que, por sua vez, não pode ser tomada

como mero instrumento de comunicação, dada sua

opacidade e não transparência. Estabelecendo um

possível diálogo entre as perspectivas que embasam

este estudo, tanto para a AD como na Psicanálise, o

dizer não é transparente ao enunciador, pois o sen-

tido lhe escapa, irrepresentável, em sua determina-

ção pelo inconsciente e pelo interdiscurso.

Essa duplicidade, que faz referir um discur-

so a um discurso outro para que ele faça

sentido, na psicanálise, envolve a questão

do inconsciente. Na análise de discurso,

essa duplicidade, esse equívoco, é trabalha-

do como a questão ideológica fundamen-

tal, pensando a relação material do discurso

à língua e a da ideologia ao inconsciente

(ORLANDI, 1996, p. 81-82).

A noção de equívoco ou de equivocidade que

suporta o duplo, o heterogêneo ou, ainda, tudo

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aquilo que ultrapassa a vontade do sujeito enun-

ciador, também se faz presente na psicanálise. Em

ambas as perspectivas teóricas, a verdade não se

apresenta na aparente unidade discursiva, mas se dá

a escutar através de formações do inconsciente ou

da equivocidade que é própria da linguagem. Nas

palavras de Lacan (1986, p. 302), “nossas palavras

que tropeçam são as palavras que confessam. Elas

revelam uma verdade de detrás”.

Com base nas considerações arroladas é pos-

sível afirmar que, estruturalmente, todo e qualquer

dizer é tomado pelo equívoco ou pela possibilida-

de de deriva de sentidos, uma vez que o sujeito de

linguagem é duplamente marcado: pela ideologia e

pelo inconsciente. Ao encontro de tais afirmações,

Mariani (2006, p. 8) postula que o equívoco se ins-

taura nos sentidos produzidos por um determinado

acontecimento discursivo, à revelia do sujeito enun-

ciador, e “faz falhar a vontade de unidade e trans-

parência da comunicação, pois incorpora o real em

suas análises do simbólico e do imaginário”. São

justamente esses pontos de equívoco ou de deslize

de sentidos que se dão a escutar na materialidade

posta, que buscamos resgatar e problematizar na

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análise dos acontecimentos discursivos, de modo a

melhor compreender como a prática inclusiva signi-

fica no contexto escolar.

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Como já mencionado anteriormente, lança-

mos um olhar discursivo ao corpus, para entendê-

-lo não como conteúdo ou testemunho de verda-

de, mas para desvelar, nos enunciados analisados,

a formação discursiva em que o sujeito de lingua-

gem se inscreve, para que suas palavras tenham

sentido (ORLANDI, 1996). Em suma, a abordagem

discursiva ancora a análise dos registros na ma-

terialidade linguística, “desnudando” os aspectos

sócio-histórico-ideológicos que atuam na consti-

tuição dos sentidos e que são “esquecidos” pelo

sujeito que enuncia.

Vale salientar, ainda, de que forma os pressu-

postos da ADF e da psicanálise dialogam entre si,

fornecendo as balizas teórico-metodológicas des-

te estudo. Para a AD, o funcionamento discursivo é

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engendrado pela articulação entre a ideologia e as

condições de produção do discurso, isto é, o con-

texto sócio-histórico de sua enunciação e o lugar

discursivo ocupado pelo falante. Na teoria psica-

nalítica, por sua vez, a determinação dos sujeitos e

dos sentidos é inconsciente e atemporal e só se faz

acessível por meio da linguagem que comporta fa-

lhas ou buracos. Feitas essas colocações, postula-

-se uma relação da ideologia com o inconsciente,

por meio da linguagem, ou seja, a ideologia, assim

como o inconsciente, embora oculta ao sujeito

enunciador, se mostra no funcionamento do discur-

so: da estrutura ao acontecimento. Pêcheux (1997)

reflete sobre a materialidade da linguagem como

região de equívoco em que se ligam materialmente

o inconsciente e a ideologia. Dito de outro modo,

o sujeito da estrutura é afetado pela determinação

inconsciente que faz com que as redes de memória

e as formações ideológicas, às quais o discurso e o

sujeito se filiam para produzir sentidos, escapem ao

saber consciente do eu. Observa-se, portanto, que o

funcionamento da ideologia não constitui um saber

consciente, embora seja condição de existência do

sujeito e do discurso, uma vez que governa e atribui

sentidos ao fazer-dizer.

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Nas análises que se seguem, foram destacadas

algumas regularidades que constituem equívocos

de ordem ideológica e que, em função dos senti-

dos que produzem, para além do saber consciente

do enunciador, apontam para a posição discursiva

e ideológica do sujeito de linguagem em relação à

proposta de educação inclusiva.

Convém retomar que os excertos analisados

foram coletados durante um congresso nacional,

sediado em uma instituição particular de ensino su-

perior do Estado de São Paulo, cuja proposta era dis-

cutir questões acerca da inclusão e da diversidade.

Durante a realização de algumas palestras e semi-

nários, agentes educacionais que exercem funções

distintas no contexto escolar como: professores, re-

presentantes do MEC, diretores, pedagogos, entre

outros, formularam algumas considerações sobre o

referido tema. Algumas dessas formulações foram

transcritas e, posteriormente, selecionadas para este

estudo, a fim de elucidarmos alguns questionamen-

tos aqui propostos. A análise empreendida não tem

a pretensão de concordar ou discordar com o teor

do que está sendo dito, tampouco de acusar ou cul-

par os sujeitos de pesquisa pelos equívocos desta-

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cados em suas formulações, mas sim de compre-

ender como essas formulações produzem sentidos,

ao evocarem outros domínios discursivos. Dito de

outro modo, não se trata de individualizar ou res-

ponsabilizar o sujeito de pesquisa por suas supostas

falhas ou equívocos de ordem inconsciente, mas de

compreendermos como as práticas discursivas fun-

cionam e provocam efeitos de legitimidade.

4 ANÁLISE DOS REGISTROS

De modo a elucidar as perguntas de pesquisa que

direcionam a análise dos registros discursivos – como

os conceitos de inclusão e diferença (con)formam e

engendram o dizer-fazer de agentes educacionais?

Como “educação” e “inclusão” se relacionam e afetam

práticas discursivo-pedagógicas? – faz-se necessário

rastrearmos a presença do interdiscurso que interpela

e legitima os depoimentos proferidos pelos sujeitos

pesquisados. Passemos à análise do corpus.

Por ocasião da palestra de abertura do referido

congresso, o reitor da universidade onde o evento

foi sediado proferiu:

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[RD 1]3 Incluir na pauta um congresso de in-

clusão e diversidade visa a resolver melhor

esta situação no Brasil. De mãos dadas pre-

tendemos caminhar neste tema com a par-

ticipação efetiva da universidade. A inclusão

é abrangente e parece imposta. Podemos

dar uma contribuição social, ao propor o

desmonte de mecanismos de exclusão.

Com base no excerto acima, observa-se que

o sujeito de linguagem, ocupando o lugar de reitor

de uma instituição de ensino superior, inicia sua fala

reiterando a necessidade de promover a inclusão

“com a participação efetiva da universidade”. A ma-

terialidade posta põe em evidência a função política

e social que a escola e seus agentes devem exercer

e que parece se sobrepor, ou até mesmo se impor,

à função de ensinar e de transmitir saberes. Mais

especificamente, a universidade e seus represen-

tantes passaram a exercer a função de hospedar o

diferente sem, de fato, incluí-lo de modo significa-

tivo, tendo em vista que é para os normais e para os

profissionais que têm seu saber cientifica e social-

mente legitimado que é dado o direito e o poder de

construir saberes, julgamentos e verdades sobre os

3 RD 1, 2, 3… é o símbolo adotado para representar os recortes discursivos analisados.

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que são representados e marcados como anormais

e excluídos. Nesse sentido, o processo de constru-

ção do saber sobre o excluído acaba por exclui-lo

dessa construção, pois este é tomado como objeto

do olhar e do saber do outro, cujo lugar enunciativo

tem certo valor e reconhecimento social.

Ferre (2001) salienta a contradição inerente ao

saber produzido na/pela universidade, via práticas

discursivo-pedagógicas. Nas palavras da autora

(FERRE, 2001, p. 199),

O que na Universidade se produz pode ser

tudo ao contrário: nenhuma reflexão sobre

um sujeito próprio, nenhum saber ou sabor

acerca de nossa intimidade e um acúmulo

de conteúdos sobre o outro que o define,

o identifica e o encerra em um opaco en-

voltório tecnicista que faz dos demais os

especiais, os descapacitados, os diferentes,

os estranhos, os diversos e de nós os ob-

viamente normais, os capacitados, os nati-

vos, os iguais; e, por isso, dois são os tipos

de identidade que a Universidade segue

produzindo ao transmitir o conhecimento

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acadêmico, científico e técnico que alude

à diferença e à diversidade na educação: a

identidade normal e a identidade anormal; é

a esta segunda a que se passou a chamar de

diferente, especial ou diversa.

A repetição redundante do termo “incluir”, que no

recorte acima é pronunciado três vezes, sem que haja

qualquer questionamento do tipo: incluir o que, quem

e como? sugere a naturalização de verdades discur-

sivamente construídas e que se materializam no/pelo

macrodiscurso político-educacional, ao representar a

proposta de educação inclusiva como um compromis-

so de todos ou, segundo o enunciador, como um meio

de “dar uma contribuição social e de resolver melhor

esta situação no Brasil”. Na formulação em questão,

o sujeito de linguagem deixa escapar que a inclusão é

uma situação problemática que ainda não se resolveu

no Brasil, tendo em vista que o que já está resolvido

não requer melhoras, nem necessita de compreensão.

O vocábulo “resolver”, empregado na formulação “in-

cluir na pauta um congresso de inclusão e diversida-

de visa a resolver melhor esta situação no Brasil”, nos

remete a um problema a ser endereçado, no caso: a

inclusão que “parece imposta”, segundo o enunciador.

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Ao formular “incluir na pauta”, o enunciador atri-

bui um efeito de formalidade e de certa superficia-

lidade ao tema abordado no congresso: inclusão e

diversidade, tendo em vista que o vocábulo “pauta”

costuma ser empregado para se referir aos assuntos

a serem tratados em uma reunião de trabalho e que

podem ser sanados ou pelo menos endereçados até

o seu término. Além disso, a inclusão ou educação

inclusiva é um assunto que está em pauta ou na or-

dem do dia, em especial, no contexto escolar, em

função das últimas diretrizes da política nacional da

educação.

O uso da primeira pessoa do plural, no trecho:

“de mãos dadas pretendemos caminhar neste tema;

podemos dar uma contribuição social”, provoca um

efeito de convocação e de participação de todos

os agentes educacionais, de modo a viabilizar a in-

clusão que ainda parece não ter sido alcançada, já

que se trata, ainda, de um “tema” a ser discutido em

um congresso da área. Esse efeito de convocação é

produzido pelo discurso progressista e da união so-

cial que versa sobre a união de todos (unidos ven-

ceremos!) como forma de se atingir o progresso e

a ordem.

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Embora o enunciador proponha “o desmon-

te de mecanismos de exclusão”, deixando entrever

certa noção dos mecanismos de poder engendra-

dos pela ideologia vigente, o enunciador parece não

se dar conta de que a viabilização da inclusão no

contexto escolar não depende única e exclusiva-

mente da “boa” vontade dos agentes educacionais

ou de seu poder transformador, uma vez que os tais

mecanismos de exclusão, bem como o modelo de

escola excludente que ainda é predominante em

nosso meio, foram legitimados ao longo de uma

longa trajetória político-econômica que, por meio

de práticas discursivas e de jogos de poder-saber,

segundo uma visão foucaultiana, foram construindo

verdades sobre os excluídos e sobre a necessida-

de de incluí-los. Nos últimos anos, a insignificância

e a (in)fâmia4 daqueles que foram discursivamente

marcados como excluídos parece ganhar relevân-

cia político-social, se tornando alvo das instituições

“normalizadoras” que atuam como aparelho ideoló-

gico do estado, segundo Althusser (1992), uma vez

que a exclusão e os excluídos passaram a represen-

tar certa ameaça à acomodação social e ao exercí-

cio da cidadania.

4 Segundo Foucault (1992, p. 90), os (in)fames não são apenas os personagens de nossa história que cometem algum ato vil, mas, sobretudo, aqueles “cuja existência foi ao mesmo tempo obscura e desafortunada”.

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Ainda em relação ao excerto anterior [RD1], ape-

sar de tentar modalizar o seu dizer sobre a proposta

da inclusão, ao formular “a inclusão é abrangente e

parece imposta”, o equívoco que produz sentidos

“indesejados” marca a posição ideológica do sujeito

em relação ao tema abordado. O caráter impositivo

da educação inclusiva se materializa nessa formula-

ção, apontado para o fato de que a inclusão é bas-

tante complexa e não é um procedimento natural,

pois, se assim o fosse, não precisaria ser apresen-

tada na forma de lei ou de proposta pedagógica a

ser seguida e nem seria tomada, pelos educadores,

como uma imposição. Nesse prisma, é significativo

ressaltar que a natureza humana é mais seletiva do

que inclusiva, uma vez que, segundo Skliar (2006),

a diferença tende a ser vista negativamente, pois

aponta para o intolerável ou para fora da normali-

dade. Em outras palavras, é mais fácil e “natural” ex-

cluir do que tentar incluir. Ao encontro dessas ideias,

Ferre (2001, p. 197) enfatiza que o mundo dos ditos

“normais” é um mundo onde “a presença de seres

diferentes aos demais, diferentes a esses demais ca-

racterizados pelo espelhismo da normalidade, é vi-

vida como uma grande perturbação”.

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A menção ao caráter impositivo da educação

que prega a inclusão de todos, preferencialmente

em turmas de escolas regulares, a despeito da dife-

rença e, por vezes, da deficiência física marcada no

corpo, também foi observada no excerto a seguir,

formulado por uma diretora de uma escola pública

de ensino fundamental:

[RD 2] A inclusão é um susto, um espanto.

Ela chegou de repente e a gente tem que

saber o que fazer. Na verdade, ela está entre

nós desde 71, com a lei 5.692/71.

No recorte em questão, o enunciador deixa es-

capar seu espanto diante da proposta da inclusão,

apesar de enunciar a partir do lugar de dirigente de

uma instituição escolar que, em conformidade com

as leis vigentes, deveria garantir a política de educa-

ção inclusiva. Ao se dar conta do equívoco de ordem

ideológica que seu dizer produziu, o enunciador faz

alusão à lei que garante a aplicação de práticas in-

clusivas, por mais espantosas ou assustadoras que

possam parecer. Assim sendo, apesar de toda in-

segurança vivenciada pelos agentes educacionais

diante do estranho e do diferente que, na maioria

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das vezes, vira sinônimo de deficiente, a necessida-

de de tudo saber e de fornecer respostas acertadas

para situações inesperadas constitui a identidade do

sujeito educador, além de governar seu fazer peda-

gógico, tal como sugere a formulação: “a gente ‘tem

que’ saber o que fazer”.

A formulação posta acima parece dialogar com

o próximo excerto, formulado por uma pedagoga

que, no evento em questão, representava o MEC e

suas propostas:

[RD 3] A dona inclusão não está só batendo

na porta, ela está dentro da sala de aula. A

postura do MEC é essa: todos na sala de aula

e aí a gente vai caprichando na qualidade.

A formulação “a postura do MEC é essa: todos

na sala de aula e aí a gente vai caprichando na qua-

lidade” reflete as políticas públicas brasileiras que

se caracterizam pelo improviso e despreparo dos

profissionais envolvidos em sua implementação, no

caso: dos agentes educacionais que, mesmo sem a

formação necessária para trabalhar com os alunos

ditos especiais, devem acolhê-los no espaço de sala

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de aula, ainda que isso implique na má qualidade da

educação oferecida. Como já sugerido por Coraci-

ni (2007, p. 107), o fato de partilhar do mesmo es-

paço físico não significa “por si só e por força da

lei, ausência de discriminação, in-clusão, in-serção

social”. A autora (CORACINI, 2007, p. 109) conclui

que “a vontade de igualar, de homogeneizar na me-

lhor das intenções [...] é que cava um abismo ainda

maior entre uns e outros”, ou seja, entre os alunos

“ditos” normais e os representados como excluídos

ou especiais. Assim sendo, a própria escola que se

diz inclusiva acaba construindo muros que marcam

e segregam a diferença, excluindo ainda mais.

Partindo da premissa de que todos são iguais

ou, ainda, de que a igualdade é um ideal a ser al-

cançado, a educação inclusiva silencia as diferen-

ças que poderiam provocar transformações produ-

tivas e significativas no contexto escolar. Em nome

de uma prática pedagógica mais justa e igualitária,

igualam-se, também, os sujeitos, suas demandas e

desejos, confinando-os a um mesmo espaço e prá-

tica discursivo-pedagógica, em que o aluno só pa-

rece ser considerado ou endereçado como objeto

do saber do outro (professor, coordenador, peda-

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gogo etc.) que, por sua vez, deve sempre saber o

que fazer diante do inesperado. Essa noção de que

todos são iguais ou de que “devem” ser iguais ganha

sentidos a partir da ideologia religiosa e jurídica, se-

gundo as quais os homens são iguais perante Deus

e perante a Lei. Nesse prisma, a aplicabilidade da lei,

neste caso, das premissas da educação inclusiva, as-

segura os direitos de todos, ganhando estatuto de

compromisso moral e social.

No recorte anterior (RD 3), diversos efeitos de

sentidos são produzidos, a partir da personificação

da “inclusão”, na seguinte formulação: “a dona in-

clusão não está só batendo na porta, ela está dentro

da sala de aula”. O sujeito de linguagem sugere que

a inclusão já está sendo contemplada pelo simples

fato de permitir que o aluno diferente permaneça no

mesmo espaço dos alunos tidos como “normais”.

Em outras palavras, a inclusão se personifica na fi-

gura do aluno “diferente”, muitas vezes confundido

e entendido como “deficiente”, e parece perder o

seu caráter de proposta transformadora que deve-

ria incidir, de forma significativa, na prática pedagó-

gica. Evocando a questão da hospitalidade, tratada

por Derrida (2003), para adentrar a temática levan-

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tada neste estudo, é possível afirmar que aos agentes

educacionais, em especial ao professor, é dada a di-

fícil tarefa de hospedar e ser hospitaleiro, isto é, não

hostil, com esse estranho que foi inserido – mas não

totalmente incluído – no espaço de sala de aula da

escola regular, na ilusão de ser possível se atingir e

viabilizar uma hospitalidade universal: “sem reservas,

sem limites, sem fronteiras” (CORACINI, 2007, p. 110).

Propondo um alinhavo entre a leitura de Lacan

(1992), a temática aqui abordada e a materialidade

destacada anteriormente, observa-se que “a inclu-

são do diferente” é metaforizada como uma visita

inesperada ou como um hóspede desconhecido que

“bate à porta” em momento inoportuno, adentrando

e ameaçando a estabilidade de um mundo já norma-

lizado, com fronteiras bem demarcadas. Nas palavras

de Lacan (1992, p. 87), “esse hóspede é o que já pas-

sou para o hostil [hostile] [...]. No sentido corriqueiro,

esse hóspede não é heimlich, não é o habitante da

casa, é o hostil lisonjeado, apaziguado, aceito”.

É justamente essa posição de “hostil aceito e li-

sonjeado” que é assumida pelo aluno diferente e/

ou deficiente, na escola regular, tendo em vista que

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tal aceitação está prevista em lei, além de tornar os

agentes educacionais mais tolerantes e generosos,

em conformidade com a ideologia em funciona-

mento no discurso religioso e que também atribui

efeitos de sentido para as práticas inclusivas. Em um

estudo anterior (CAVALLARI, 2011) enfatizei, com

base no princípio responsabilidade proposto por

Forbes (2010), que a criação de saídas singulares e

criativas para cada situação de inclusão – que não

passe pela compaixão, mas que parta do universal

para o particular de cada caso, tratando diferente-

mente as diferenças, ao invés de tentar igualá-las –

é que poderá propiciar uma inclusão menos “nor-

malizante” e mais significativa.

O último excerto abordado foi formulado por

uma professora de ensino fundamental e médio da

rede pública, que trabalha com alunos especiais em

turmas regulares. O equívoco que possibilita a deri-

va de sentidos indesejados também se fez presente

na materialidade posta. Vejamos:

[RD 4] Temos que resgatar um erro. Trata-

mos as pessoas diferente porque elas são

diferente de nós. Nós é que excluímos as

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pessoas. Temos que deixar de fixar a ima-

gem nos estereótipos.

O esquecimento número dois5, da ordem da

enunciação, segundo Pêcheux (1988), provoca di-

ferentes efeitos de sentido na referida formulação.

Em outras palavras, ao empregar o verbo “resgatar”,

ao invés de “corrigir”, o sujeito de linguagem nos

permite entrever sua posição discursiva, portanto,

ideológica, segundo a qual o aluno diferente ou de-

ficiente é visto como um erro que deve ser resgata-

do ou corrigido por nós, “os normais”, que temos o

poder de construir um saber sobre o outro.

Nos depoimentos dos agentes educacionais,

de modo geral, as noções de “diferente” e de “de-

ficiente” se confundem, justificando a necessidade

da aplicação de práticas pedagógicas igualitárias e

simplificadoras das diferenças. Lembrando que a in-

clusão se faz necessária para além das deficiências,

podemos afirmar que um equívoco de ordem ide-

ológica está em funcionamento nos depoimentos

abordados, bem como na proposta de EI, conforme

ratifica Vizim (2003, p. 52), na citação a seguir:

5 O esquecimento número dois, segundo Orlandi (1999, p. 35) faz o enunciador acreditar que “há uma relação direta entre pensamento, a linguagem e o mundo, de modo que pensamos que o que dizemos só pode ser dito com aquelas palavras e não outras”.

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O tema educação inclusiva, apontado na

década de 1990, ficou restrito, por vezes,

à educação de pessoas com deficiências.

Cabe ressaltar que esta é uma situação la-

mentável diante da complexidade de se

criar uma política pública de educação para

todos. Não se trata única e exclusivamente

do segmento das pessoas com deficiência,

no sentido de incluí-los nas escolas regu-

lares, deve-se incluir também toda criança,

jovem e adulto que vive a condição de anal-

fabeto ou de analfabeto funcional, de dife-

rença étnica, cultural, religiosa, de condição

social, enfim, de marginalização diante da

hegemonia social.

Em um trecho do recorte anterior: “tratamos as

pessoas diferente porque elas são diferente de nós”

[sic.], nota-se uma fala pouco significativa, circular

e esvaziada de sentidos, uma vez que apenas evoca

representações e discursos já naturalizados em nos-

so contexto sócio-histórico. Esse esvaziamento de

sentidos também foi abordado por Coracini (2007),

partindo da análise de depoimentos de professores.

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Nas palavras da autora (CORACINI, 2007, p. 101-

102), “o que se percebe é uma repetição redundante

de termos que parecem esvaziados de sentidos ou

tão plenos de sentido – naturalizados pela ideologia

dominante – que não precisam de explicitação [...]”.

Nesse prisma, podemos afirmar que a naturalização

é desastrosa e infértil, já que não promove transfor-

mações e/ou deslocamentos, pois acaba por sim-

plificar e igualar as diferenças. Em larga medida, o

equívoco de ordem ideológica que irrompe nos de-

poimentos acerca da EI, nos permite entrever que

o foco das práticas inclusivas está no apagamento

da diferença e na deficiência e não no acolhimento

da diversidade como algo que pode ser produtivo

no processo de ensino-aprendizagem, uma vez que

requereria a (trans)formação não só do aluno dito

“especial”, mas de todos os envolvidos no processo

em questão.

Ainda em relação ao excerto anterior, nota-se

que o sujeito de linguagem convoca os agentes

educacionais para o seu dizer, quando emprega a

primeira pessoa do plural (nós, temos que), atribuin-

do a eles e a si mesmo a culpa pela exclusão prati-

cada no contexto escolar “nós é que excluímos as

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pessoas”. Na formulação destacada, engendra-se a

individualização e responsabilização do sujeito por

seus atos e escolhas. Dito de outro modo, o enun-

ciador não se vê afetado por outros discursos que

circulam em nosso meio e que produzem “verda-

des” ou efeito(s) de evidência discursiva, mas como

o único agente capaz de fazer escolhas acertadas

que possibilitem a inclusão. Segundo Kehl (2001,

p. 59), dentro da modalidade subjetiva contempo-

rânea, “o sujeito não se dá conta de suas filiações

simbólicas e passa a se considerar como um indiví-

duo isolado”. Daí advém sentimentos diversos como

culpa e angústia diante do insucesso da EI e da apa-

rente inviabilidade de suas propostas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora, à primeira vista, tudo se baseie na di-

versidade, no que tange à Educação Inclusiva (EI) e/

ou Especial e suas propostas, os recortes analisados

reforçam a hipótese inicialmente levantada neste

estudo de que a EI silencia a(s) diferença(s) e o dife-

rente, já que “incluir” produz o efeito de sentido de

“normalizar” ou de “tornar o outro meu semelhante”.

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Em outras palavras, o modo como a diversidade é

significada no macrodiscurso político-educacional

da inclusão acaba por promover a diluição, apaga-

mento e até mesmo o silenciamento da diferença

e daquilo que o sujeito dito excluído apresenta de

mais singular e distintivo.

Em todas as formulações analisadas o enfoque

está na inclusão enquanto proposta e não no su-

jeito a ser incluído ou nas especificidades de sua(s)

diferença(s). Em suma, o sujeito dito especial parece

ficar fora ou excluído da discussão sobre como in-

cluí-lo e, portanto, se objetifica, ao ocupar, ainda que

à revelia, a posição de objeto do olhar, das ações, do

fazer e do suposto poder-saber do outro. Tal como

sugere Balocco (2006, p. 83), só há referência ao su-

jeito, “enquanto objeto de representações discursi-

vas, ou construções identitárias”, lembrando que os

discursos produzem sujeitos que não são nem estão

na origem de sua enunciação. Trazendo as conside-

rações arroladas para este estudo, podemos con-

cluir que o sujeito da EI aparece como assujeitado

ou como efeito do assujeitamento ao macrodiscurso

político-educacional da inclusão e às verdades que

esse discurso parece evocar e disseminar.

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Como já destacado anteriormente, as práticas

e política inclusivas significam ao evocarem pares

dicotômicos e imaginariamente excludentes como:

diferença x igualdade; exclusão x inclusão. São essas

noções extremamente simplificadoras e homoge-

neizantes, geralmente pensadas em oposição, que

incidem na constituição identitária do sujeito mar-

cado e representado como excluído, uma vez que

passam a constituir as imagens nas quais esse sujeito

se reconhece e se identifica. Segundo Souza (1995),

as práticas discursivo-pedagógicas, de modo geral,

e os conceitos que as fundamentam são tratados de

forma unívoca: sem equívocos, falhas ou enganos.

As práticas discursivo-pedagógicas, desencadeadas

pelo macrodiscurso político-educacional da inclu-

são e também concebidas de forma unívoca, se pau-

tam na busca de igualdade e tendem a criar identida-

des narcísicas, isto é, idênticas às daqueles que são

tidos como normais e que têm o poder de construir

um saber sobre o outro dito excluído ou especial.

A materialidade posta nos recortes analisados

também possibilitou a problematização do modo

como o macrodiscurso político-educacional da in-

clusão e as práticas “ditas” inclusivas concebem a

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diferença e a singularidade que são constitutivas da

identidade de todo e qualquer sujeito de linguagem

e não apenas daqueles que têm a diferença marca-

da no corpo. Skliar (2006, p. 29) reforça que “aca-

bamos reduzindo toda alteridade a uma alteridade

próxima, a alguma coisa que tem de ser obrigato-

riamente parecida a nós – ou ao menos previsível,

pensável, assimilável”. Em consonância com as afir-

mações anteriores salientei (CAVALLARI, 2008, p. 5)

que a resistência em acolher as diferenças se atrela

ao fato de que tudo o que nos parece estranho ou

não familiar expõe o não saber ou o não contro-

le, desestabilizando o lugar de suposto-saber que é

constitutivo da identidade de agentes educacionais,

sobretudo de professores. Essa redução do estra-

nho em familiar, do diferente em normal, entretanto,

inviabiliza uma prática inclusiva que, de fato, con-

temple a singularidade do sujeito-aluno e a diversi-

dade inevitavelmente presente em todo e qualquer

contexto escolar.

Outro equívoco de ordem ideológica, bastante

recorrente nos excertos abordados, deriva da con-

fluência de sentidos entre “diferente” e “deficiente”,

que parece resultar da igualação ou da fusão esta-

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belecida entre educação regular e educação espe-

cial, de acordo com a política de educação especial.

No entanto, é significativo problematizarmos de

que modo “educação” e “inclusão” de fato se rela-

cionam e afetam as práticas discursivo-pedagógicas

na contemporaneidade. A análise dos depoimentos

nos sugere que educação e inclusão só se implicam

mutuamente no macrodiscurso político-educacio-

nal da inclusão, mas não nas práticas discursivo-

-pedagógicas em que parece haver uma hiância ou

uma lacuna imaginariamente intransponível entre

a educação tradicionalmente concebida e ainda

praticada e as premissas da EI. Resta-nos questio-

nar, portanto, como tocar ou afetar esse sujeito que

ocupa a posição de agente educacional para além

do imaginário ou do politicamente correto acerca

da inclusão? Um primeiro passo seria promover uma

reflexão sobre como as políticas públicas de inclu-

são são construídas e significadas.

Recorrendo aos personagens (in)fames da his-

tória e salientando a importância de resistir e con-

frontar o poder hegemônico, Foucault (1992, p.

98) enfatiza a necessidade de “transpor os limites,

de passar para o outro lado, escutar e fazer ouvir a

linguagem que vem de fora ou de baixo [...]. Estas

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vidas, por que não ir escutá-las lá onde falam por si

próprias?” Trazendo essas indagações para as prá-

ticas inclusivas, conclui-se que os mecanismos de

poder-saber, muitas vezes engendrados e sustenta-

dos pelo discurso universitário que, segundo Lacan

(1992), formaliza e legitima o modo de se organi-

zar as relações interpessoias, devem ser descons-

truídos ou, pelo menos, desnaturalizados, a fim de

promover uma inclusão que acolha as diferenças e

as especificidades de todo e qualquer sujeito de lin-

guagem e não apenas daqueles ditos ou represen-

tados como “anormais”. Ao encontro de tais consi-

derações, Skliar (2003) propõe uma “pedagogia do

acontecimento” que acolha o estranho, o diferente

e o inesperado sem temê-los ou silenciá-lo.

Em última instância, sugerimos que as noções

de inclusão e diferença, já sedimentadas no macro-

discurso político-educacional da inclusão, sejam

(re)pensadas e (re)significadas no interior de nos-

sas experiências educacionais, para que provoquem

transformações e desloquem o saber instituciona-

lizado e historicamente determinado sobre o outro

dito e marcado como “especial”. Vale destacar que

se há algo de “natural” na inclusão é sua desarmonia.

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Desse modo, para que as práticas inclusivas sejam

tomadas de forma menos romantizada ou menos

afetada pelo imaginário de compaixão e igualdade,

precisamos nos lembrar de que o semelhante e o

dessemelhante, a ordem e o conflitual se implicam

mutuamente na desarmonia natural da EI e da Edu-

cação que se pretende para Todos e que, graças a

sua natureza universalizante, não é de ninguém, pois

não leva em conta a singularidade que diferencia os

sujeitos de linguagem.

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* Jornalista/professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS). Doutora em Letras – Estudos Linguísticos na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

CaCiane Souza de MedeiroS*

Sem o antagonismo entre incluídos e excluídos, poderemos nos encontrar em um

mundo em que Bill Gates é o principal humanista, lutando contra a pobreza e as

doenças, e Rupert Murdoch o maior ambientalista, mobilizando milhões de pessoas

por meio de seu império da mídia.SlavoJ zizek

O DISCURSO DA INCLUSÃO PELA DIFERENÇA NA RELAÇÃO MÍDIA E SOCIEDADE

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53

1 INTRODUÇÃO

A sociedade e seus modos de organização, fun-

cionamento, movimento de sentidos, sujeitos e suas

práticas é um lugar de interesse em meu percurso

de estudo da relação mídia e sociedade. Dentro do

espaço social constituído por seus antagonismos,

regularidades, falhas e práticas sociais de (re)produ-

ção de sentidos destaco a mídia em uma posição

instituída (legitimada) onde questões sociais, que

mobilizam sentidos na história, são retomados para

significar de outro jeito o que já está lá, o que já faz

sentido (ORLANDI, 1999).

O objetivo deste trabalho é discutir e dar visibi-

lidade aos sentidos que constituem o conceito de

inclusão postos em circulação na/pela mídia, a partir

de uma leitura discursiva de campanhas produzidas

no Brasil sobre a questão da inclusão social. Para isto

me detenho em observar as condições de produção

onde habitam os sentidos em torno do conceito de

inclusão que são (re)produzidos na mídia para pro-

blematizar a ancoragem ideológica que marca este

discurso em nossa sociedade e que está edificado

em um modo de estruturar o social sustentado em

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uma formação ideológica neoliberal de ver, de fazer,

de significar o mundo e os sujeitos.

Parto do princípio de leitura de que a questão da

inclusão em seu espaço de significação social tem,

inevitavelmente, uma história, um movimento de

sentidos que vêm sendo mobilizados e que busco

problematizar neste capítulo como possibilidade de

compreender, à guisa dos preceitos teóricos de Fou-

cault (2002, 2007, 2008), no tocante aos conceitos

de sociedade, poder e de neoliberalismo; e da teoria

discursiva de Pêcheux (1990, 1993, 1998, 2009, ) e

Orlandi (1993, 1999, 2001) a que me filio, a costura

ideológica e as condições de produção que consti-

tuem o conceito de inclusão e seus modos de signi-

ficar deflagrados na/pela mídia. Tracei um caminho

de leitura discursiva que propõe, a partir da análise

teórica que mobilizo, uma retomada do conceito de

inclusão e suas formas de significação na sociedade.

2 UMA INCLUSÃO PARTIDA

Um dos temas mais publicizados na mídia da

atualidade é, de fato, o da inclusão social e neste

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entorno de significação os sujeitos marcados pela

diferença passam a figurar em posição “destaca-

da” no projeto social que apregoa uma inclusão de

superfície discursiva horizontalizada, sem deslizes,

sem conflitos e arranjada em um imaginário de “boa

vontade” coletiva que ressoa um modo de discur-

sivizar a inclusão de sujeitos identificados pela di-

ferença determinado por uma formação ideológica

neoliberal1 que retoma sentidos individualizantes

que já estão naturalizados.

A posição teórica que me orienta nesta leitura e

análise é determinante para que se compreenda que

o discurso existe no social e na relação dos sujei-

tos com a linguagem que os subjetiva. Parto da pre-

missa teórica elaborada por Michel Pêcheux (2009),

que define o discurso como sendo constituído e

constitutivo do social e dado à materialização na lin-

guagem. Esse conceito tem sido largamente citado

e retomado no âmbito dos estudos discursivos é o

amparo vital para um estudo que entende a neces-

sidade de compreensão da linguagem para além de

sua materialidade pragmática ou mesmo conteudís-

tica de leitura e interpretação.

1 A questão do neoliberalismo e sua relação discursiva com a questão da inclusão na sociedade será explicitada na sequência da seção.

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Minha proposta de reflexão está, assim, com-

prometida com uma leitura da sociedade atual em

seus modos, discursos e práticas, que só se justifi-

cam e se legitimam no bojo teórico que entende o

discurso como “efeito de sentidos entre interlocu-

tores” (PÊCHEUX, 1993, p. 170). Esta noção de dis-

curso representa, em sua materialidade simbólica, o

encontro entre linguagem, história e ideologia. Em

um mesmo movimento, o discurso materializa-se

em mecanismo constitutivo de sujeito e de sentido,

ilusões e esquecimentos (ORLANDI, 1999), e este

processo ganha corpo em diferentes formas, ou

seja, na materialidade discursiva que se (re)produz

na mídia. De acordo com o que Pêcheux (1998, p.

58) assevera, ao localizar a Análise de Discurso (AD)

como dispositivo de leitura, há um caminho de es-

tudo determinado

[...] pelo campo dos espaços discursivos

não estabilizados logicamente, dependen-

do dos domínios filosófico, sócio-histórico,

político ou estético, e também, portanto,

dos múltiplos registros do cotidiano não es-

tabilizado (cf. a problemática dos -universos

de crença, a dos - mundos possíveis, etc.).

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Nesta perspectiva, a linguagem é entendida

como ação, transformação, como um trabalho sim-

bólico em que tomar a palavra é um ato social com

todas as suas implicações, conflitos, reconhecimen-

tos, relações de poder, constituição de identidade

etc. (ORLANDI, 1993, p. 17).

Seguindo no percurso discursivo de produção

de sentido proposto por Pêcheux, saliento que o su-

jeito é atravessado tanto pela ideologia quanto pelo

inconsciente, o que produz não mais um sujeito

uno, mas um sujeito cindido, clivado, descentrado,

(re)partido, não se constituindo na fonte e origem

dos processos discursivos que enuncia, uma vez

que estes são determinados pela formação discur-

siva na qual o sujeito está inscrito e que determina

o que pode e o que não pode ser dito (PÊCHEUX,

2009). Mais que isso, a formação discursiva na qual

o sujeito está identificado é regida por uma rede de

memória já instituída e “acionada” (posta em funcio-

namento) no momento da formulação do dizer. O

conceito de memória postulado por Pêcheux (2009)

é, doravante, uma memória do discurso, ou seja,

uma memória interdiscursiva, onde habita um con-

junto de já-ditos que sustenta todo dizer. De acordo

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com este conceito, os sujeitos estão filiados a um

saber discursivo que não se aprende, mas que pro-

duz seus efeitos através da ideologia e do incons-

ciente. O interdiscurso está articulado ao complexo

de formações ideológicas: algo já foi dito antes, em

outro lugar, independentemente. Essa relação se dá

em continuidade histórica de produção discursiva.

O interdiscurso é, pois,

[...] definido como aquilo que fala antes, em

outro lugar, independentemente. Ou seja, é o

que chamamos de memória discursiva: o sa-

ber discursivo que torna possível todo dizer e

que retoma, sob a forma do pré-construído,

o já-dito que está na base do dizível, susten-

tando cada tomada de palavra. O interdiscur-

so disponibiliza dizeres que afetam o modo

como o sujeito significa em uma situação

discursiva dada (ORLANDI, 1999, p. 31).

A determinação discursiva do sujeito em socie-

dade é um importante alce para minha observação

acerca dos objetos de mídia e os sentidos da inclu-

são que funcionam nesta discursividade, pois sina-

liza traços da implicação ideológica do discurso na

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aparência simbólica da obviedade. Essas questões

apontam para o fato de que, na constituição do su-

jeito do discurso, intervêm dois aspectos que não

podem ser deixados de lado: primeiro, o sujeito é

social, interpelado pela ideologia, mas se acredita

livre, individual; e, segundo, o sujeito é dotado de

inconsciente, contudo acredita estar o tempo todo

consciente ou, pelo menos, dotado de uma cons-

ciência social comum entre seus pares e dotada de

intenção. Afetado por esses aspectos e assim cons-

tituído, o sujeito (re)produz o seu discurso.

Na mídia, o processo de formulação e circula-

ção discursivo está localizado em um lugar de (re)

produção permanente. Em sua prática de produ-

ção, a mídia tem, portanto, um lugar de seleção e de

permanência desse acervo de saberes sobre, bem

como um lugar de circulação de sentidos, a partir

das escolhas do que é dito (e mostrado) e do que

é silenciado ou deixado de lado; de quem partici-

pa efetivamente na definição desses saberes e de

quem não está presente. De acordo com o que Or-

landi (1999) teoriza, há um duplo jogo de memória

quando a observamos em uma relação discursiva.

Nas palavras da autora,

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[...] saber como os discursos funcionam é

colocar-se na encruzilhada de um duplo

jogo da memória: o da memória institucional

que estabiliza, cristaliza, e, ao mesmo tempo,

o da memória constituída pelo esquecimen-

to, que é o que torna possível a diferença, a

ruptura, o outro (ORLANDI, 1999, p. 10).

A compreensão de como os lugares sociais e a

ideologia são estabelecidas nas relações simbólicas

entre os sujeitos é uma contribuição ímpar, espe-

cialmente no tocante à questão em uma análise dis-

cursiva: a ideologia se materializa em discurso, que,

por sua vez, dá-se na materialidade textual. Sujeito e

sentido constituem-se simultânea e historicamente

nas relações de força e conflitos ideológicos.

Retomar o caráter histórico do discurso e do

sujeito, percebendo aquele como lugar de consti-

tuição deste, é permitir a compreensão das lutas so-

ciais, visto que as composições biopsicológicas são

politicamente conformistas. É permitir, por exem-

plo, o entendimento do fato de que as assimetrias

sociais e de poder são delineadoras das identidades

subjetivas: questões de lugar, raça, nacionalidade,

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religião... inclusão/exclusão, ganham materialidade

a partir da heterogeneidade própria às formações

discursivas e das posições-sujeito no acontecimen-

to discursivo. Sem a intermediação do discurso, visto

em sua heterogeneidade, não é possível compreen-

der a constituição do ser-sujeito em sua pluralidade,

como materialização na/pela história.

As ideologias só fazem sentido para o sujeito na

sua relação de constituição com a sociedade, ca-

bendo a este compreendê-las e observar as pos-

síveis posições que se coadunam em determinado

contexto histórico. Assim sendo, entendo que a

mídia atua no social a partir de uma formação ide-

ológica e histórica determinada que delineia a (re)

produção de sentidos mobilizada em suas práticas.

O discurso é, desse modo, efeito de sentido tam-

bém do lugar da mídia no social e das relações de

poder aí imbricadas que repercutem nas instituições

sociais (como na escola, por exemplo) que regulam

a prática dos sujeitos em seu meio. Observar em que

sociedade (com)vivemos é ponto de partida e che-

gada na compreensão discursiva dos sentidos. E é

sobre a sociedade e as condições de produção que

encaminho a discussão sobre a inclusão.

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3 AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DA INCLUSÃO

A promoção e divulgação de sentidos materiali-

zados como campanhas, propagandas e outras ma-

terialidades dadas à discursividade midiatizada tem

ocupado um espaço amplo em nossa sociedade

marcada pela profusão de imagens. No caso especí-

fico das materialidades discursivas deflagradas pela

mídia a respeito da questão da inclusão, o universo

de possibilidades versadas para o consumo é de-

terminado por uma conjuntura sócio-histórica que

precisa ser considerada em sua base constitutiva:

as condições de produção que situam os sentidos

que significarão de um modo e não de outro. Con-

sideradas num sentido mais amplo, as condições de

produção incluem o contexto sócio-histórico e o

aspecto ideológico de produção discursiva. A pro-

posta de (re)definição de condições de produção

entende que exista um alinhamento à análise histó-

rica das contradições ideológicas na materialidade

dos discursos e uma articulação teórica ao concei-

to de formação discursiva que é próprio da teoria

discursiva que trago para sustentar um questiona-

mento sobre a questão da inclusão. A somatória dos

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valores ideológicos constitui o imaginário que de-

signa o lugar que os sujeitos do discurso se atribuem

mutuamente. Nas palavras de Pêcheux (1990, p. 77),

“um discurso é sempre pronunciado a partir de con-

dições de produção dadas”, portanto, importa não

somente o que se diz, mas também o que não se diz

sobre inclusão. Neste ponto, é importante salientar

que não interessa aqui analisar especificamente o

papel das mídias ao constituir um palco para viabili-

zar uma pretensa conscientização sobre a inclusão.

O objetivo é trazer à problematização um aspecto

que vejo como sendo emblemático no tempo pre-

sente: a relação de sentidos da inclusão à prática

de engajamento social que vem sendo mobilizada

como modelo de vida em sociedade; as idas e vindas

do cenário midiático montado para criar estas for-

mas de engajamento enfatizando a diferença como

caminho regular de uma possibilidade já instituída

de promover uma espécie de “consciência prática

de inclusão”; as textualidades mobilizadas para tais

práticas e seus efeitos na produção de modelos de

conduta frente a sujeitos ditos especiais.

Para adentrar nesta leitura das condições de

produção, faz-se necessário retomar a noção de in-

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clusão que mobilizo. Por inclusão, entendo mais do

que um paradigma educacional ou social; tomo in-

clusão como um princípio de organização da socie-

dade, propulsionado pela lógica de uma formação

ideológica neoliberal tomada por sentidos pré-cons-

truídos que se atualizam em “novas” formas de dizer/

mostrar e simbolizar os sujeitos. Neste sentido, trago

para o centro do debate as condições que ancoram

o movimento discursivo da inclusão, com o propó-

sito de compreender seu funcionamento e discutir

seus efeitos de legitimidade, entendendo que:

[...] as palavras têm um sentido porque têm

um sentido, e os sujeitos são sujeitos por-

que são sujeitos: mas, sob essa evidência, há

o absurdo de um círculo pelo qual a gente

parece subir aos ares se puxando pelos pró-

prios cabelos (PÊCHEUX, 2009, p. 32).

Para tanto, estou embasada na posição teórico-

-discursiva de Pêcheux que entende que a ideologia

é constitutiva do sujeito, “não há sujeito sem ideo-

logia” (PÊCHEUX, 2009), ou seja, não é ocultação é,

isso sim, “produção de evidências” (ORLANDI, 2001,

p. 104) e que a sociedade é essencialmente cons-

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tituída por relações de poder. Poder que se movi-

menta no que eu prefiro chamar de sociedade da

imagem por dispositivos de visibilidade elencados e

agenciados ideologicamente.

Considerar o caráter da visibilidade em seu me-

canismo histórico de organização vem ao encontro

da relação mídia e poder que é constitutiva da nossa

sociedade. A mídia tem papel determinante no pro-

cesso de difusão de saberes e valores na sociedade

contemporânea. No caso da mídia, como lugar de

circulação de sentidos, se o controle não ocorre pela

via da vigilância repressora da presença e da orde-

nação do olhar de sujeitos em presença, se dá na

emergência de modelos de realidade; no agencia-

mento da consciência, como promotora de gestos

de interpretação, (re)produtora de fatos de lingua-

gem, de posições-sujeito atuantes na esfera de or-

ganização social. Retomando Foucault (2007, p. 8),

[...] se o poder fosse somente repressivo, se

não fizesse outra coisa a não ser dizer não,

você acredita que seria obedecido? O que

faz com que o poder se mantenha e que

seja aceito é simplesmente que ele não pesa

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só como uma força que diz não, mas que

de fato ele permeia, produz coisas, induz ao

prazer, forma saber, produz discurso.

A instituição midiática (recortada em nosso tra-

balho como mídia dada à divulgação de saberes e

ideias em curso na sociedade brasileira se autoriza a

mobilizar – sob a égide de seu papel instituído como

serviço social, lugar instituído como instrumento

democrático, reconhecido na esfera da liberdade de

expressão e de direito dos cidadãos – seu lugar (po-

lítico, econômico e comercial) através do discurso.

Este é um mote essencial para a compreensão des-

te lugar midiático, pois entre os direitos declarados

pela Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu

art. 5º (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coleti-

vos), temos o direito à comunicação, à informação.

O dado constitucional de direito em si mostra que

esse lugar institucional coloca a comunicação em

uma relação gregária e social que, ao incluir as ne-

cessidades de autoexpressão e de troca de informa-

ções, sustenta um lugar de poder para esta mídia.

A mídia, nesta posição de comunicação, no es-

paço social de produção discursiva, investe espe-

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cialmente no que tange os aportes tecnológicos – e,

portanto ideológicos –, na manutenção e legitima-

ção de seu lugar social. Essa legitimidade não é uma

invenção da mídia, como se ela configurasse uma

entidade independente e manipuladora, tampouco

será abordada neste texto em uma relação simplista

de influência, já que o discurso da mídia é parte do

complexo sociopolítico do Estado democrático que

é legitimado como sistema organizador em nossa

sociedade; ou seja, é o social que determina a pro-

dução de práticas e ideias mobilizadas nas esferas

institucionais (entre as quais temos a mídia na sua

posição informativa), e não o contrário. No mesmo

sentido e com maior especificidade, minha posi-

ção teórica justifica-se pela própria concepção de

linguagem que adotamos, a saber, a da linguagem

constituída por um aspecto material, a língua (o que

pode ser visto “a olho nu”) atravessada pela história

e pela ideologia, as quais caracterizam relações es-

senciais para compreendermos a manifestação do

sentido e de seus efeitos na leitura e nas práticas so-

ciais do sujeito.

Compreender o que se diz sobre inclusão, por

exemplo, precede uma observação da mídia, ou seja,

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na posição discursiva que me atenho, a mídia é ob-

servada em seu lugar singular de poder, não o poder

que vigia ou ameaça, mas o poder que regulariza a

versão possível – já condicionada em uma prática

(técnica e ideológica) instituída, que tem lugar so-

cial definido. Com esse pensamento, dispomo-nos

a observar o leque que relaciona o discurso da mí-

dia e suas relações sociais, entendendo que o poder

não é da mídia – como detentora manifesta das ver-

sões escolhidas ou dotada de um lugar de intenção

lógico e claro, mas é exercido e regulado por forças

ideológicas que são, antes, políticas, econômicas e

sociais que otimizam a (re)produção de alguns sen-

tidos em detrimento de outros.

Para Foucault (2007), o processo de otimização

do poder, pela economia política, que implica em

estratégias que tem como efeito o máximo controle

pelo mínimo investimento de poder, seria uma ten-

dência. Nesta lógica, produzir condutas que relacio-

nam o sujeito com os demais – por meio de proce-

dimentos que visam gerir a população – aliadas a

práticas que o sujeito empreende com ele mesmo

– pela ética, por exemplo – além da amenização do

risco, permite a autogestão da sociedade. Mas, para

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que essa lógica seja eficiente, algumas táticas e téc-

nicas precisam ser inventadas/acionadas.

Trazendo a teorização disciplinar dos séculos

XVIII e XIX para a atualidade, entendemos que é nes-

se regime que a inclusão, como elemento de parti-

cipação e acesso de todos, toma corpo. Não basta

ser parte da sociedade, é preciso participar. Mais do

que isso, é preciso querer participar de certos espa-

ços e ações e incentivar que todos participem. As

formas de publicizar este ideal relacionam modos

de subjetivação já instituídos e as ressonâncias in-

terdiscursivas dessa relação numa sociedade que se

pretende inclusiva dentro de um projeto ideológico

legitimado em práticas de engajamento regulares.

Para dar visibilidade ao entorno teórico que venho

propondo até aqui, recortei materialidades midiáticas2

que me chamaram a atenção para o modo como tex-

tualizam a questão da inclusão e, a partir delas, enfa-

tizo a observação de sentidos filiados a uma determi-

nada formação ideológica e à (re)tomada de sentidos

(o parafraseamento discursivo) que propagandeiam a

prática de engajamento como solução anunciada e

simbolizada como garantia de avanço social.

2 As campanhas que versam sobre a inclusão pela diferença serão tomadas como objeto de leitura e análise na sequência da seção.

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Os recortes trazidos para discussão referem-se

a campanhas3 divulgadas nos últimos cinco anos

em diferentes formas midiáticas de (re)produção e

foram sequenciadas (em recortes) para dar visibili-

dade a aspectos analíticos em torno do conceito de

inclusão e sua relação significante com uma orde-

nação social de divulgação. Observemos a sequên-

cia discursivo-parafrástica de recortes:

Recorte 1(R1) – Campanha publicitária

Fotografia 1 – Imagem divulgada pelo Instituto MetaSocial

cujo slogan de campanha é “Ser diferente é

normal”

“Ser diferente é normal”

Fonte – Disponível em: <http://www.inclusive.org.br/?p=21677>

3 Peças publicitárias (impressas e audiovisuais) amplamente divulgadas.

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Recorte 2 (R2)4 – Campanha publicitária

Fotografia 2 – Imagem referente ao filme da campanha

do Instituto MetaSocial cujo slogan é “Ser

diferente é normal”

“Ser diferente é normal”

Fonte – Disponível em: <www.facebook.com/

sindromededown8?hc_location=timeline>

4 A imagem do recorte refere-se à sexta campanha desenvolvida para a ONG MetaSocial fundada por Helena Werneck. No filme publicitário, de 2011, com versões de 60 e 30 segundos, Paula Werneck, uma atriz que já protagonizou outras campanhas do MetaSocial, está em casa e declara, em uma narrativa, ser uma menina diferente. A suposição leva a crer que essa “diferença” seria por outros motivos até que ela de-clara que é por gostar de tocar bateria. A cena seguinte mostra Paula tocando bateria num parque gramado (as filmagens ocorreram no Parque da Marinha do Brasil, em Porto Alegre) ao som de “Kids of the Future”, da banda inglesa Jonas Brothers. Aos poucos, outros jovens se aproximam e cantam com ela. Ao final, todos abraçam a baterista e o enunciado “Ser diferente é normal” entra em cena. Como recursos de acessibilidade, o filme conta com legendas e audiodescrição para versar sobre questão da diferença. O vídeo pode ser visto no endere-ço eletrônico: <http://www.youtube.com/watch?v=mjLpJboOQy4>.

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Recorte 3 (R3) – Campanha publicitária

Fotografia 3 – Imagem da campanha “Ser diferente é normal”

“E daí que diferença faz?!

Ser diferente é normal”

Fonte – Disponível em: <www.facebook.com SerDiferenteENormal2012>

Recorte 4 (R4) – Campanha publicitária

Fotografia 4 – Imagem de campanha divulgada em comemora-

ção ao dia internacional da Síndrome de down.

Fonte: Disponível em: <www.deficienteciente.com.br>

“Não sou diferente, eu faço a diferença.”

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Recorte 5 (R5) – Campanha publicitária

Fotografia 5 – Imagem de campanha da Federação das Ações

do Estado do Rio de Janeiro

“O que nos faz especial são exatamente as nossas diferenças”

Fonte – Disponível em: <www.blogclientesa.clientesa.com.br>

Ao ler, ver e/ou ouvir, em diferentes mídias, em

diferentes materialidades discursivas, o enunciado:

“Ser diferente é normal”, deparei-me tocada a pro-

blematizar os sentidos no tempo presente: os sen-

tidos de engajamento na causa inclusiva, a partir da

espetacularização da diferença/diversidade – sua

produção e seu consumo simbólico na e pela lin-

guagem midiática. Nesse registro, retomo questões

pertinentes à minha reflexão: Como os sentidos da

chamada inclusão social vem sendo movimentados

na mídia?

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Se observarmos a sequência de materialidades

(os recortes) enunciativas nas campanhas supra-

mostradas podemos explicitar o deslize de senti-

dos constitutivo do parafraseamento5 dos enuncia-

dos instaurados em um antagonismo histórico que

constitui a subjetividade dos que são e dos que não

são considerados diferentes e sua possibilidade de

inclusão social pela diferença. O reforço enunciativo

que deflagra que “ser diferente é normal” só pode

ser dito e fazer sentido na relação com uma me-

mória interdiscursiva num espaço que nos lembra

(traz à atualidade) da segregação historicamente

construída e discursivizada dos sujeitos (os deficien-

tes, os especiais, os diferentes...) que ainda estão

imersos na esteriotipia social da deficiência, da falta,

da estagnação como sujeitos (desen)formados dos

moldes sociais vigentes.

Desta forma, a tentativa discursiva que a mídia

(re)produz nas campanhas é a de um (re)posiciona-

mento direto, horizontal dos sentidos da diferença,

inclusive pelo não-uso da designação “deficiência”

que carrega, em sua história e memória, sentidos

ainda atuantes do esquecimento, da desvalia e do

não-pertencimento social. Os enunciados parafrás-

5 Tomo o conceito de paráfrase na perspectiva discursiva que entende que os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória. A paráfrase está do lado da estabilização (ORLANDI, 1999).

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ticos recortados das campanhas (R1, R2, R3, R4 e R5)

marcam esta memória discursiva histórica em que

as diferentes práticas relacionadas ao cuidado com

pessoas com deficiência permitem problematizar o

modo como cada período histórico, especialmente

o de agora, atualiza a questão da diferença. Dife-

rentes atores sociais em suas posições-sujeito estão

envolvidos nessas práticas que vão da caridade e as-

sistência6 até às práticas ditas integrativas e inclusi-

vas que marcam a questão da deficiência na con-

temporaneidade, mas que vem produzindo sentidos

há muito tempo.

Segundo Foucault (2002), desde o início do sé-

culo XIX, os sujeitos com deficiência eram vistos a

6 A prática assistencial está diretamente relacionada ao surgimento das instituições de confinamento. Nesse modelo e intervenção o atendimento aos carentes constitui objeto de práticas especializadas. Assim surgem diferentes equipamentos sociais – tais como hospitais, asilos, orfanatos, hospícios – que oferecerão atendimento especializado a certas categorias da população que outrora eram assumidos, sem mediação, pelas comunidades. Vão surgindo estruturas cada vez mais complexas e sofisticadas de atendimento assistencial, esboço de uma profissionalização futura desse tipo de prática. Foucault (2002) produz um trabalho denso sobre a sociedade suas formas de regulação e pontua historicamente a mudança das práticas sociais de cuidado (para ele formas de ordenação) social.

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partir de suas deficiências: elas deveriam ser medi-

das e classificadas e seus corpos tornados objetos

de controle, já que se opunham à ordem social. Essa

dominação exercida pelas disciplinas, a partir dos

séculos XVII e XVIII, se institui através deformas sutis

por técnicas minuciosas e íntimas. Através de uma

política do detalhe, de atenção às minúcias, esse

corpo doente passa a ser estudado, analisado, co-

nhecido, para ser recuperado e tratado... Este cená-

rio discursivo movimentou-se e tem agregado no-

vos sentidos para significar o sujeito diferente (e não

só deficiente). Considerando o fracasso das institui-

ções em integrar o sujeito com deficiência à socie-

dade e ao mercado de trabalho produtivo a partir de

um modelo social de normalidade, iniciou-se, em

vários setores sociais, e a mídia ocupa uma posição

importante neste processo, um questionamento e

pressão para a desinstitucionalização das pessoas

com deficiência.

No modelo da inclusão discursivizado na atua-

lidade, onde a diversidade é proclamada como má-

xima do ser/estar na orientação certa (àquela jus-

tificada e assentada nas formas de dizer e fazer do

“politicamente correto”), materializa-se um movi-

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mento de sentidos que identifica e conclama à inte-

gração a sociedade e as pessoas com necessidades

especiais, isso como forma de minimizar os proble-

mas encontrados por ambas no convívio social his-

toricamente estruturado. São práticas distintas que

ora colocam todo o peso sobre a pessoa com de-

ficiência, ora procuram distribuir a responsabilidade

pela inclusão para todo o conjunto social propondo

o engajamento como única (melhor) opção.

4 OS SENTIDOS DA INCLUSÃO NEOLIBERAL: A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO ENGAJADO

Como parte da proposta de debate sobre a ma-

terialidade discursiva e suas implicações, considero

importante apontar algumas condições históricas de

produção dos discursos da inclusão. Compreendo

que há na sociedade um movimento que deflagra a

inclusão enquanto incentivo à participação e aces-

so de todos a determinados espaços sociais, como

uma grande rede que se tece em torno de políticas e

práticas conectadas aos interesses e conveniências

do modo de vida neoliberal.

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Por neoliberalismo, a partir de Foucault (2008),

compreendo a lógica que vem se empreendendo

desde meados da década de 1970, em que o mer-

cado assume posição centralizadora na formulação

de significados. Com isso, o papel do Estado na di-

nâmica social se reconfigura e há um incentivo à

autocondução. Assim, se no liberalismo clássico o

Estado gerenciava o mercado, no neoliberalismo,

a relação inverte-se. O mercado cria e monitora o

funcionamento do Estado e das suas relações com

os sujeitos e destes com eles próprios (os sujeitos

consigo mesmos e entre si), pois isso torna o pro-

cesso mais produtivo e economicamente viável.

Dentro do neoliberalismo como forma de vida

do tempo presente e na conjuntura em que vivemos

certas normas são instituídas não só com a finalidade

de posicionar os sujeitos dentro de uma rede de sa-

beres, como também de criar e conservar o interes-

se em cada um em particular, para que se mantenha

presente em redes sociais e de mercado. Estamos

todos, de uma maneira ou de outra, sendo condu-

zidos por determinadas práticas e regras implícitas

que nos levam a entrar e permanecer no jogo eco-

nômico do neoliberalismo. É possível apontar pelo

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menos duas grandes regras que operam nesse jogo

do neoliberal. A primeira regra é manter-se sempre

em atividade. Não é permitido que ninguém pare ou

fique de fora, que ninguém deixe de estar integrado

nas malhas que dão sustentação aos jogos de mer-

cado e que garantem que “todos”, ou a maior quan-

tidade de sujeitos, sejam beneficiados pelas ações de

Estado e de mercado. Por sua vez, Estado e o mer-

cado estão cada vez mais articulados e dependentes

um do outro, na tarefa de educar a população para

que ela viva em condições de sustentabilidade, de

empresariamento, de autocontrole etc.

A segunda regra é que todos devem estar incluí-

dos, mas em diferentes níveis de participação, nas re-

lações que se estabelecem entre o que é da ordem Es-

tado/população, público/comunitário e mercado. Não

se admite que alguém perca tudo ou fique sem jogar.

Para tanto, as condições principais de participação

são três: primeiro, “ser educado em direção a entrar

no jogo”; segundo, “permanecer no jogo (permanecer

incluído)”; terceiro, “desejar permanecer no jogo”.

Foucault (2008), ao escrever sobre o neolibe-

ralismo e ao colocar que o ponto comum existente

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entre o econômico e o social é a regra da não-ex-

clusão, possibilita a compreensão da inclusão como

um imperativo neoliberal para a manutenção de

todos (os sujeitos e suas instituições) nas redes do

mercado. Mesmo considerando que se trata de um

processo construído sob regras estritas e historica-

mente produzidas, entendo que as práticas sociais

significadas na/pela mídia através de campanhas ou

pesquisas, ou mesmo na militância em diferentes

esferas políticas estão sendo afetadas pelas redes

(entre as quais destaco a ideológica) que engen-

dram historicamente tal processo. Na maior parte

das situações em que vejo aplicado hoje o conceito

de exclusão (corriqueiramente ligado ao da inclu-

são, sob um efeito de autodependência significan-

te), está-se falando de outra coisa, ou seja, são atri-

buídos sentidos de vulnerabilidade, de expurgação,

de expulsão, de precarização e de marginalização,

mas não propriamente de exclusão.

Se pensarmos na proposta discursiva que de-

flagra como direta a relação da diferença com um

padrão de normalidade do cotidiano social, o fato

de “pertencer”, de o sujeito atravessar uma suposta

fronteira da exclusão, não garante atingir esse ob-

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jetivo de prevenção do risco por meio da inclusão.

Não há uma garantia de que, além de empreender

o esforço de buscar sua própria inclusão, cada su-

jeito, numa perspectiva (tentativa) coletiva, perma-

neça como que num estado permanente de busca

por se manter incluído e “ajudar” o outro a estar lá:

no lugar da inclusão. Dito de outra forma, a neces-

sidade de controle social de “todos e de cada um”

vai criando as condições de possibilidades para a

implementação de políticas de inclusão como um

imperativo neoliberal que, desde o final do século

XX, atende a uma demanda específica de sentidos:

a de aproximar para governar melhor. Desse lugar,

governar melhor não significa governar mais, se-

não utilizar a economia (no sentido de frugal) do

poder a serviço da máxima eficácia da orientação

imperativa das condutas na sutileza do discurso da

consciência inclusiva que aceita, recebe, conside-

ra a diferença, mas não necessariamente conhece,

tem ou imagina como produzir instrumentos para

lidar com ela. Nesse registro, é possível pontuar

algumas permanências e deslocamentos do pro-

cesso discursivo que dão subsídios na compreen-

são do funcionamento do discurso neoliberal da

inclusão.

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5 POR UMA RETOMADA DA DISCUSSÃO SOBRE O CONCEITO DE INCLUSÃO

A criação de modelos de engajamento a partir

do enunciado “Ser diferente é normal” é significa-

da no projeto da militância imperativa da promo-

ção da inclusão. Em outras palavras, a propaganda

(materializada nos recortes das campanhas que tra-

go à observação) busca convencer a todos a reali-

zar um “retorno a um estado natural inclusivo” que

não se identifica com a história social, um retorno

a um suposto “verdadeiro eu”, em que cada sujeito

constitui-se na relação consigo mesmo, na busca

pelo “aperfeiçoamento” pessoal e social de cunho

fraterno e engajado. A fraternidade, nesta rede de

sentidos, significa-se na justificativa natural para a

igualdade, e esta seria condição imprescindível para

aquela. Dessa forma, parece fazer mais sentido dei-

xar a diferença viver, mais que isso, (com)viver. Dito

de outra forma, aproximar a diferença, torná-la pro-

dutiva para o bem de todos e de cada um, dos “com”

e dos “sem” deficiência, no afã de promover uma

conduta de simpatia explícita a toda a diversidade e

abrandar o mote de segregação que acumulamos

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em nossa existência social. Para isso, para que todos

convivam harmonicamente em todos os espaços, e

na diferença que os constitui, é preciso o consenti-

mento, a aceitação, o respeito, a tolerância.

Em meio a este processo de trabalho discursivo,

instaura-se um exaustivo (no sentido de repetitivo

mesmo) incentivo ao aperfeiçoamento constante:

tornar-se um agente atuante da inclusão como uma

forma de melhorar o mundo e, principalmente, a si

mesmo. Um parafraseamento ideológico massivo

(pois circula em muitas instâncias midiáticas) que

superlativa a necessidade de inclusão da diferença,

como se a diferença, a segregação, e outros senti-

dos filiados interdiscursivamente a ela não fossem

passíveis de conflito, como se tal separação fosse

também parte da nossa condição como sujeitos;

como se a formação ideológica desenvolvimentista

social/estrutural não fosse imperativa e não dificul-

tasse o arrojo das práticas inclusivas em instituições

formadoras como a escola, por exemplo. Mais que

isso, como se a exclusão, ou se desnaturalizarmos

este conceito e retomarmos o sentido da exclusão

como sendo a inclusão em outro lugar, não fosse

marca constitutiva da historicidade no espaço social

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e seus modos de convivência, ordenação, institu-

cionalização de sentidos e práticas.

É neste sentido que problematizo os sentidos

do “aprender a ser inclusivo” (re)produzido na mídia,

que textualiza-se como uma espécie de pedagogia

da consciência ou, nos termos de Foucault (2002) ,

como prática de si. Afinal, se não podemos escapar

do campo de gravitação da formação discursiva to-

mada no ideal de inclusão, não basta que o sujeito se

inclua, é preciso que haja um convencimento dos be-

nefícios de manter os demais sujeitos também inclu-

ídos. Uma das molas propulsoras desse processo, no

sentido de divulgação, circulação e consumo dessas

práticas, é a publicidade, em suas diferentes formas

de aparescência e circulação (televisão, internet, rá-

dio, outdoors...) como trouxemos em recortes, mas

ela não está só. Nesta conjuntura, consumir as van-

tagens da inclusão, no discurso e nas práticas coti-

dianas, faz com que ela seja objetificada7, ou melhor,

que torne o sujeito em estado de inclusão, alguém

cujo capital humano é mais valorizado, mas não ne-

cessariamente inclusos e atuantes nesse processo de

fato. Um dos aspectos que parecem valorizar ainda

mais a performance inclusiva é assumir essa causa, 7 No sentido de

tornar-se objeto.

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tornando-se um “parceiro/sócio” na vigilância8 pela

inclusão de todos. Essas são algumas considerações

que não dão conta, ainda, da complexidade da ques-

tão da inclusão e suas práticas sociais, mas é preciso

assumir o risco: “é preciso suportar o que venha a ser

pensado, isto é, é preciso ‘ousar pensar por si mes-

mo’” (PÊCHEUX, 2009, p. 304).

A inscrição deste ensaio analítico se corporifica

numa perspectiva de análise que não busca o ocul-

to, mas sim o que se constitui na superfície discur-

siva. O empreendimento analítico que se aproxima

dessa forma de olhar desapegada da “verdade”, ob-

serva seus objetos e sujeitos como constituídos e

constituintes de discursos. Em outras palavras, não

importa se algo é ou não verdadeiro, se existem uma

ou muitas verdades, mas entender as correlações de

forças implicadas na produção histórica da verdade

que define, por exemplo, o que é ou não ser dife-

rente; o que é estar ou não estar incluso; o que é ou

não é ser respeitado, ser coitadinho, ter ou não ter

preconceito, ser melhor ou pior etc.

A implicação ideológica da sequência de recor-

tes que nos chama a atenção para a diferença como

8 Nos termos teóricos de Foucault (2002, 2008) sobre a questão da vigilância e do cuidado de si presentes na ordenação social.

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atributo de normalidade reforça o jogo de posições-

-sujeito de uma formação ideológica que discursi-

viza uma inclusão, é preciso apontar: segmentada,

partida, num complexo enunciativo de completude,

de obviedade. Há um deslize que marca o antago-

nismo ideológico dos sentidos que constituem nos-

sa sociedade e que nos aponta desafios para além

da ordem prática de como promover a inclusão

num espaço histórico-discursivo afetado pela divi-

são e mantido pela segregação. Essas mesmas prá-

ticas apresentam uma relação de tensões e forças

nos dias atuais. Convivemos com uma somatória de

práticas bem intencionadas de educação especial

nas escolas e também movimentos comprometi-

dos com a defesa das pessoas com deficiência que

esbarram em conflitos políticos, éticos e mercado-

lógicos. Os sentidos que chamam à inclusão como

forma de engajamento social, produzem efeitos que

não podemos medir, mas que ressoam um modo

de significar a inclusão. Processo de (re)afirmação

ou refutação de práticas ditas inclusivas ainda em

processo, em compasso de debate e em inevitável

movimento de sentidos.

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REFERÊNCIAS

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______; FUCHS, C. A propósito da análise automáti-

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do por Péricles Cunha. In: GADET, F.; HAK, T. (Org.).

Por uma análise automática do discurso. Campinas,

SP: Ed. da Unicamp, 1990. p. 163-252.

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DISCURSIVIDADES DE INCLUSÃO E A MANUTENÇÃO DA EXCLUSÃOGreciely cristina da costa*

Ninguém=NinguémHá tantos quadros na parede

Há tantas formas de se ver o mesmo quadroHá tanta gente pelas ruas

Há tantas ruas e nenhuma é igual a outraNinguém é igual a ninguém

Me espanta que tanta gente sinta(se é que sente) a mesma indiferença [...]

huMberto GeSSinGer – enGenheiroS do hawaii

* Doutora em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL/UNICAMP). Professora pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS).

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1 INTRODUÇÃO

A convivência entre iguais e diferentes talvez

seja a principal temática discutida na sociedade atu-

almente. Inclusão, integração, aceitação, tolerância

são alguns dos termos que funcionam como espé-

cies de palavras de ordem, sempre trabalhados, si-

lenciosamente ou não, no interior da expressão “é

preciso. É preciso incluir, é preciso integrar, aceitar,

tolerar [...]” Ou sempre sustentando discursos que

apontam para elas mesmas, isto é, para a inclusão, a

integração, a aceitação e a tolerância, entre outras,

como se fossem elas necessidades. Necessidades

que se apresentam como transparentes, como evi-

dentes. O que significa dizer que nem sempre quem

é preciso incluir é objeto de discussão. Que sujeito é

esse? Que necessidade é essa? Como a evidência de

necessidade é construída? Necessidade de quem?

Nessa instância, os sentidos de iguais e dife-

rentes tornam-se tão naturalizados ao passo que

o processo de significação, suas especificidades e

opacidade são apagados. Com efeito, a significação

dos sujeitos ditos iguais ou diferentes não é posta

em questão. O modo como são individuados pelo

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Estado e suas instituições (ORLANDI, 2001) mui-

to menos. E mais complexo ainda, a inclusão toma

contornos significativos na direção de manter na

sociedade a ideia de exclusão em suas práticas.

Meu intuito, neste trabalho, a partir da Análi-

se de Discurso, é buscar compreender e explicitar

discursos que se apresentam como sendo discur-

sos de inclusão, mas que funcionam para, em cer-

ta medida, ratificar a exclusão. E, ainda, como esses

discursos atuam no processo de individuação dos

sujeitos. Com esse objetivo, parto do pressuposto

de que as relações sociais são relações de sentido,

atravessadas pela ideologia e divididas pelo políti-

co. Nesta perspectiva, a ideologia é entendida como

mecanismo de produzir evidências via imaginário e

o político é definido por Orlandi (2010) como a divi-

são dos sentidos. A autora explica que:

os sentidos são divididos, não são os mes-

mos para todo mundo, embora “pareçam”

os mesmos. Esta divisão tem a ver com o

fato de que vivemos em uma sociedade que

é estruturada pela divisão e por relações de

poder que significam essas divisões. Como

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sujeito e sentido se constituem ao mesmo

tempo não só os sujeitos são divididos entre

si, como o sujeito é dividido em si (ORLAN-

DI, 2010, p. 12, grifo nosso).

Daí decorre minha proposta de então analisar

como o político divide os processos discursivos de

significação de igualdade e de diferença de modo a

produzir efeitos de sentidos para os sujeitos toman-

do como lugar de observação trechos da Resolução

nº 45/91 da ONU, o funcionamento de denomina-

ções para pessoas com deficiências e o discurso de

uma campanha do governo federal.

Para tanto, este estudo organiza-se da seguinte

maneira. Primeiro, situo teoricamente como discur-

so, sentido e sujeitos são compreendidos em Análise

de Discurso. Em seguida, teço considerações acerca

da sociedade e, mais especificamente, da configu-

ração da sociedade atual, na qual as relações sociais

são marcadas por práticas de segregação, cujo par

inclusão/exclusão tem em sua constituição a con-

tradição. Dando continuidade, apresento a maneira

pela qual diferença é significada ao ser relaciona-

da com iguais, ao se dar nomes e ao substituí-los.

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E, por fim, exponho minhas considerações acerca

dessa compreensão, ressaltando, embora pareça

óbvio, que “um sujeito não é igual a outro”.

2 DISCURSO: SENTIDOS E SUJEITOS

Para essa investigação, teoricamente é impor-

tante situar que:

• o homem é considerado sujeito sócio-his-

tórico e simbólico;

• discurso é definido como efeito de sentido

entre locutores, no qual o funcionamento

da linguagem em condições específicas nos

leva a observar a constituição dos sujeitos e

a produção de sentidos.

Isto quer dizer que o discurso supõe um sis-

tema significante, mas supõe também a re-

lação deste sistema com sua exterioridade

já que sem história não há sentido, ou seja,

é a inscrição da história na língua que faz

com que ela signifique. Daí os efeitos entre

locutores (ORLANDI, 1994, p. 53);

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• apesar de as palavras parecem transparen-

tes, elas não tem um sentido fixado a priori.

O sentido é sempre produzido em determi-

nadas condições de produção e engendra

diferentes efeitos;

• o lugar de observação da relação entre lin-

guagem e ideologia é o discurso. O que

significa dizer também que sujeito e lingua-

gem são pensados na relação com o in-

consciente além da ideologia na sociedade;

• a relação entre o mundo e a linguagem é

atravessada pelo imaginário;

• a produção de efeitos de sentido e de su-

jeitos é pensada também a partir da relação

com o Estado, uma vez que é ele o articu-

lador simbólico-político que individua os

sujeitos. Orlandi (2012) explica que o indiví-

duo é interpelado em sujeito pela ideologia

no simbólico. Com efeito, a forma-sujeito-

-histórica é constituída sob a égide do capi-

talismo, ou seja, a forma-sujeito é capitalista

e, por sua vez, se sustenta no jurídico. Por

consequência, a forma-sujeito-histórica ca-

pitalista caracteriza-se pela ideia de que o

sujeito tem direitos e deveres, é livre e ao

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mesmo tempo responsável. Essa mesma

forma é individuada pelo Estado e suas ins-

tituições. Resulta do processo de individua-

ção do sujeito, o sujeito individuado

que vai estabelecer uma relação de identifica-

ção com esta ou aquela formação discursiva.

E assim se constitui em uma posição-sujeito

na sociedade (ORLANDI, 2012, p. 228).

3 A SOCIEDADE DA SEGREGAÇÃO

Refletindo sobre a sociedade face à exclusão,

Touraine (1991, p. 166) afirma que nós assistimos

hoje a passagem de uma sociedade vertical, a cha-

mada sociedade de classes, para uma sociedade

horizontal. Com esta mudança, o autor ressalta que

se torna importante saber se estamos no centro ou

na periferia. Fora ou dentro.

Essa tensão entre centro e periferia, fora e dentro,

entre verticalidade e horizontalidade se projeta, para

Schaller (2002), na contemporaneidade, na luta de luga-

res: ou se está dentro ou se está fora. Segundo o autor,

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o indivíduo que está fora não tem mais,

como no caso de uma sociedade de inte-

gração piramidal, a possibilidade de imagi-

nar que possa subir os degraus da escala,

que possa progredir e se sair bem. O fosso

aparece como algo quase instransponível e

o medo difuso é o de cair do lado errado

(SCHARLLER, 2002, p. 151).

Pensando a oposição inclusão/exclusão, que

tem sido amplamente mobilizada para intermediar

os conflitos decorrentes das desigualdades sociais

seja pelas políticas públicas do governo brasileiro,

seja pelas instituições de ensino, organizações não

governamentais ou pela mídia em geral, a partir das

considerações de Touraine e Schaller, o foco torna-

-se não a oposição, mas a segregação, pois é a se-

gregação que parece reger a sociedade contempo-

rânea. Trata-se do próprio da sociedade neoliberal,

mundializada. Não estamos mais diante da discrimi-

nação, nos tornamos uma sociedade de segrega-

ção, é o que enfatiza Touraine (1991, p. 171).

Como é possível incluir aquele que está segre-

gado? Essa pergunta é fundamental, pois os autores

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supracitados mostram que uma vez segregado, é

impossível ao sujeito entrar nas relações sociais. En-

tretanto, há discursos que trabalham a ilusão da re-

lação incluir/excluir como se a sociedade capitalista

fosse a da oportunidade, como se “bastasse” o sujei-

to estudar, trabalhar, ser competente, disciplinado,

ter boa vontade para conquistar seu lugar (ao sol).

São discursos que colocam o sujeito como “respon-

sável” por alcançar seu lugar. Um exemplo é o dis-

curso do Estado sobre a inclusão digital. Segundo

Dias (2011, p. 301, grifo do autor), esse discurso

do acesso digital ou inclusão digital corro-

bora o sistema que responsabiliza o próprio

sujeito pelo seu fracasso. Uma vez que o

governo dá o acesso (mesmo que sem con-

dições mais complexas de aprendizagem e

igualdade de oportunidades), ele se desres-

ponsabiliza alegando: “o Estado fez a sua

parte, mas eles não souberam aproveitar”.

Através da “oportunidade” dada pelo o governo

seria possível ao sujeito o “acesso” a um lugar na socie-

dade. Ele poderia mudar de lugar, de fora para dentro.

Mas, a responsabilidade de se incluir seria do sujeito.

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Na leitura de Orlandi (2012 p. 213, grifo nosso), faz

parte da ideologia, no capitalismo, a exis-

tência de formas de onipotência no cha-

mado domínio pessoal em que a posição é

“se eu quiser, eu posso tudo” e essa posição

aparece como se sustentando na vontade e

na consciência.

Enquanto no domínio social, a forma é “juntos

podemos tudo”. No entanto, o político, ou seja, os

sentidos que dividem ou segregam a sociedade fi-

cam silenciados e produzindo efeitos, cujas conse-

quências deixam marcas na história.

A configuração da sociedade disciplinar de que

fala Foucault (1987), nos séculos XVII e XVIII, é exem-

plar do modo como a disciplinarização do corpo,

o controle, a vigilância e o ordenamento promove-

ram a separação dos sujeitos e a classificação entre

aqueles considerados normais e aqueles ditos anor-

mais. A medicina, competência reconhecida pela

opinião pública, juntamente com a instância jurídica

e administrativa e, também, com a autoridade reli-

giosa tornou-se instituição reguladora que decidia,

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distinguia, designava, nomeava e instaurava o limite

entre o doente e o são, a loucura e a sanidade, en-

tre o espiritual e o corpo, o místico e o patológico

(FOUCAULT, 2009). Assim, a sociedade disciplinar e

suas instituições instalam a sanção normalizadora,

que segundo Foucault (2009, p. 215), estabelece

um conjunto de graus de normalidade, que

são sinais de filiação a um corpo social ho-

mogêneo, mas que têm em si mesmos um

papel de classificação, de hierarquização e

de distribuição de lugares. Em certo sen-

tido, o poder de regulamentação obriga à

homogeneidade; mas individualiza, permi-

tindo medir os desvios, determinar os níveis,

fixar as especialidades e tornar úteis as dife-

renças, ajustando-as umas às outras.

O autor acentua que, através desse conjunto,

que em síntese normaliza os sujeitos, as instituições

comparam, diferenciam, hierarquizam, homogeni-

zam, excluem. No quadro traçado por Foucault, a

“necessidade” de diferenciação é útil para manter o

jogo de iguais e desiguais, aqueles que trabalham e

que os que não trabalham, por exemplo.

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Pelo viés discursivo, de acordo com Orlandi

(2004, p. 85), “há em nossa realidade social uma com-

plexidade de jogo de forças” que excede a simples

relação inclusão/exclusão. Penso que essa comple-

xidade das relações de força reside no fato de que a

inclusão só se dê em virtude da exclusão. Mas não é

tão óbvio assim. Há sujeitos que já são excluídos ten-

do em vista determinadas condições históricas, em

razão da formação social que vivemos, que é capita-

lista, e, por um demanda política e econômica “pre-

cisam ser incluídos”. Nesta direção, Sawaia (1999, p.

8) afirma que a “sociedade exclui para incluir e esta

transmutação é condição da ordem social desigual,

o que implica no caráter ilusório da inclusão”. Nesta

ordem social, no caso das pessoas com deficiências,

como é discursivizada a inclusão?

4 SENTIDOS PARA A DIFERENÇA

A partir da década de 1980, quando a Orga-

nização das Nações Unidas (ONU) realizou o Ano

Internacional das Pessoas Deficientes, as políticas

públicas de inclusão social tiveram início. Resulta-

do de reuniões, debates e conferências, vários do-

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cumentos e declarações foram firmados pautados

no princípio de que todas as pessoas têm os mes-

mos direitos. A Resolução nº 45/91 (ORGANIZAÇÃO

DAS NAÇÕES UNIDAS, 1991), formulada no âmbito

da assembleia geral da ONU, em 1990, é um des-

ses documentos que dispõe sobre a estruturação da

sociedade da inclusão, também chamada de “So-

ciedade para todos”. Werneck (1997, p. 21) assinala

que “a sociedade para todos, consciente da diversi-

dade da raça humana, estaria estruturada para aten-

der às necessidades de cada cidadão, das maiorias

às minorias, dos privilegiados aos marginalizados”.

Para isso, a resolução mencionada aponta uma sé-

rie de medidas e metas que deveriam ser adotadas e

cumpridas pelos países membros da Organização, o

chamado Programa de Ação Mundial para as Pessoas

Deficientes e da Década das Pessoas com Deficiên-

cias das Nações Unidas.

Na resolução, por um lado, chamam a atenção

o objetivo de se elaborar normas que equiparem as

oportunidades para crianças, jovens e adultos com

deficiência e a menção à década de 80 como sen-

do um período satisfatório de sensibilização e cons-

cientização sobre os direitos e necessidades das

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pessoas com deficiência. Por outro lado, destaca-se

o fato de não serem mencionadas quais são essas

necessidades, o que significa equiparar as oportuni-

dades e ao mesmo tempo a referência a uma cres-

cente demanda por assistência. Vejam abaixo um

trecho do documento:

11. Convida Governos e organizações não-

-governamentais a continuarem dando suas

contribuições ao Fundo Voluntário e pede

aos Governos e organizações não-gover-

namentais que ainda não fizeram isso para

que considerem contribuir para o Fundo

Voluntário, permitindo assim que este res-

ponda eficazmente à crescente demanda

por assistência (ORGANIZAÇÃO DAS NA-

ÇÕES UNIDAS, 1991, p. 5, grifo nosso).

Neste ponto, é fundamental perguntar: o que

significa enunciar “equiparar oportunidades, cons-

cientizar sobre direitos e necessidades” face à ideia

de assistencialismo? Com isso, o que pretendo res-

saltar é que as necessidades, os direitos a partir de

uma escrita lacunar continuam não nomeados,

continuam apagados como se fossem da ordem da

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transparência. Enquanto isso, o discurso da inclusão

vai sendo significado pelo discurso do assistencialis-

mo, em certas instâncias. As lacunas vão sendo pre-

enchidas por formas e sentidos sempre sujeitos ao

equívoco da linguagem. É o caso da campanha da

Secretaria Especial dos Direitos Humanos pela In-

clusão de Pessoas com deficiência que trago para

a análise com o objetivo de compreender como o

discurso da inclusão é significado e produz sentidos

para diferença.

Começo então pela afirmação de que não há

espaço para as diferenças, para o sujeito dito dife-

rente em uma sociedade da segregação. Essas di-

ferenças e sujeitos ficam fora, mas o discurso da

inclusão produz como efeito a ilusão de inclui-los.

Essas diferenças e sujeitos são então controlados,

administrados e emergem na sociedade através do

discurso da igualdade, do processo de individuação

do Estado e suas instituições que ao individuar o

sujeito faz com ele ocupe uma posição-sujeito na

“sociedade para todos”, faz com ele se projete den-

tro, como parte dessa sociedade. Ou ainda, como

fora, mas que pode vir a ser incluído nas relações

sociais. Essa conclusão é resultado da análise do re-

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corte abaixo, que trata de uma campanha da Secre-

taria Especial dos Direitos Humanos pela inclusão de

pessoas com deficiência. Observem, para começar,

o enunciado Iguais na Diferença.

Fotografia 1 – Campanha pela inclusão de pessoas com

deficiência

Fonte – Arquivo pessoal

O que significa dizer iguais na diferença? Que

efeitos de sentido produz esse enunciado?

Em Análise de Discurso, um procedimento ana-

lítico bastante produtivo consiste na construção de

paráfrases, pois à medida que se constrói uma pa-

ráfrase do enunciado em questão há a possibilida-

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de de se lidar com diferentes formulações que dele

derivam. Isso permite que observemos, a partir do

contraste de formulações remetidas à sua exteriori-

dade constitutiva, que efeitos são provocados pelo

enunciado acima considerando os sentidos que se

mantêm na base do dizível e os que se deslocam, ou

seja, produzem outros sentidos, a polissemia.

A produção da linguagem, de acordo com Or-

landi (1996, p. 27, grifo nosso), se dá na articulação

desses dois processos: o parafrástico e o polissêmi-

co. Trata-se da

manifestação da relação homem e mundo

(natureza, a sociedade, o outro), manifesta-

ção da prática e do referente da linguagem.

Há um conflito entre o que é garantido e o

que tem que garantir. A polissemia é essa

força na linguagem que desloca o mesmo,

o garantindo, o sedimentado. Essa tensão

básica do discurso, tensão entre o texto e

o contexto histórico-social: o conflito entre

o “mesmo” e o “diferente”, entre a paráfrase

e a polissemia (ORLANDI, 1996, p. 27, grifo

do autor).

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Dessa forma, penso, primeiramente, na formu-

lação de uma paráfrase que explicita a quem se re-

feriria talvez a palavra “iguais”. Quem são “iguais”?

A partir dessa questão é possível parafrasearmos o

enunciado trazendo para a formulação Todos, que

no enunciado da campanha, a partir da elipse, fica

apagado.

Iguais na Diferença

(P1) Todos Iguais na Diferença

Como isso é possível? Essa paráfrase é perti-

nente tendo em vista as condições específicas de

produção da campanha. O governo atual tem como

princípio a inclusão de todos na sociedade através

da elaboração de diversas políticas públicas. A ideia

de universalismo é a principal premissa que rege es-

sas políticas. Por isso, o Todos já está por um efeito

de pré-construído, ou seja, “como se esse elemento

já se encontrasse aí” (PÊCHEUX, 1988, p. 99), fun-

cionando no enunciado sob a forma de uma verda-

de universal. Por outro lado, ao trazer Todos para a

formulação, o enunciado passa por um processo de

tensão entre o mesmo e o diferente uma vez que

não se trata mais do mesmo enunciado, ou melhor,

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o acréscimo, ou a visibilidade de Todos direciona os

sentidos para outro domínio de significação. Antes,

o enunciado não se referia diretamente à totalidade,

o que permitia que nem todos se identificassem com

o discurso da campanha, não fossem todos indivi-

duados pelo discurso do governo federal. E ainda,

essa paráfrase explicita a filiação a um dizer que re-

mete aos fundamentos da Declaração Universal dos

Direitos Humanos, à Constituição Federal de 1988,

entre outros, que tomam Todos como sujeitos de

direito e igualdade. Mas, quem são esses “Todos”?

Em uma análise do enunciado do governo Lula,

“Brasil, um país de todos”, Orlandi (2012) toma o “to-

dos” como lugar de ambiguidade. A autora questiona:

“Somos todos nós brasileiros, que estamos aí evoca-

dos, ou todos em aberto?”. E continua, o “equívoco

está em que pensamos sermos nós, povo brasileiro,

em nossa igualdade social (impossível) e na verdade

somos apenas um todo indeterminado, parte do dis-

curso da globalização [...] Onde todos é cada um e

ninguém” (ORLANDI, 2012, p. 126-127, grifo nosso).

A análise de Orlandi me leva a uma terceira via

de interpretação, na qual recorro mais uma vez à

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noção de pré-construído, que consiste, de acordo

com Pêcheux (1988, p. 99, grifo do autor), em uma

“construção anterior, exterior, mas nem sempre in-

dependente, em oposição ao que é ‘construído’

pelo enunciado”. Com base nessa noção, pode-se

dizer que irrompe no enunciado “Todos iguais na

diferença”, um discurso oposto, ou seja, o de que

“Não somos todos iguais na diferença ou Ninguém

é igual na diferença”.

Continuando a formulação de paráfrases, po-

der-se-ia construir as que seguem:

Iguais na Diferença

(P1) Todos Iguais na Diferença

(P2) Todos Iguais na Deficiência

(P3) Todos Iguais na Sociedade

O que se mantém no enunciado e nas paráfrases

derivadas dele é a sequência “iguais na”. “Diferença”

é substituída em (P2) por Deficiência e em (P3) por

Sociedade. Ao passo que diferença é substituída por

deficiência, observa-se que recai sobre a formula-

ção um primeiro sentido para diferença. Diferença

pode ser significada, em nossa sociedade, a partir da

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campanha do governo, como deficiência. Essa pa-

ráfrase não foi construída aleatoriamente, ela deriva

das condições específicas de produção menciona-

das acima, sobretudo, no que se refere à campanha

governamental voltada para inclusão de pessoas

com deficiência. No entanto, por que enunciar di-

ferença e não deficiência? Porque não somos todos

deficientes e, portanto, também não somos todos

iguais. Observem que parece haver uma impossibi-

lidade de se pensar a igualdade frente à deficiên-

cia, neste caso, o que coloca em suspenso a ideia

de universalismo, além de provocar um desacordo

na própria ideia de igualdade. Diferença aparece aí

significando a sutura, a possibilidade de enquadrar

deficientes e não deficientes no TODO. Como se a

inclusão fosse conter as deficiências, as diferenças.

Neste caso, deficiência e diferença não estabelecem

uma relação de sinonímia, diferença não é sinônimo

de deficiência.

Por outro lado, segundo Rodrigues (2006, p. 5,

grifo do autor), “classificar alguém como ‘diferen-

te’ parte do principio que o classificador considera

existir outra categoria que é a de ‘normal’ na que ele

naturalmente se insere”. É por este sentido que con-

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cordo também com a leitura de Dias (2011, p. 47),

ao afirmar que o discurso da inclusão/exclusão vem

funcionando para validar “aquilo que o homem não

consegue justificar, ou seja, suas atitudes de repul-

são ao outro, ao diferente, ao que não está dentro

das normas estabelecidas por certo tipo de poder

que o Estado precisa capturar”.

Em outra via, tomando a (P3), na qual Diferen-

ça é substituída por Sociedade, percebam que o

enunciado se abre à polissemia mais uma vez. Essa

substituição possibilita que o discurso da campa-

nha governamental explicite a divisão, ou melhor,

a segregação social uma vez que somente como

iguais é possível estar na Sociedade. Através dessa

discursividade, o sujeito deficiente é individuado por

um discurso que o tira de fora e o coloca dentro da

Sociedade, imaginariamente. No entanto, para estar

dentro “é preciso ser igual”. Esse é um dos efeitos de

sentido produzidos. Mas, o que significa ser igual?

Ter os mesmos direitos? Ter os mesmos deveres?

Estudar, trabalhar, consumir? Ou se enquadrar a um

padrão? Ser também regulado pelas instituições?

Continuar de fora com a sensação de estar dentro.

Esse é o efeito de ilusão marcado no discurso da

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inclusão, pois a própria restrição ou prerrogativa de

direitos e deveres delimita aqueles que serão sem-

pre tomados de seu lugar de fora.

No caso das pessoas com deficiência é interes-

sante notar que um dos primeiros gestos da Reso-

lução nº 45/91 instituída pela Assembléia Geral da

ONU, apresentada anteriormente, é solicitar que a

tradução de termos tais como “incapacidade”, “defi-

ciência”, “pessoas deficientes” seja revista. Vejamos:

7. Solicita também ao Secretário-Geral que

reveja a tradução, para os idiomas oficiais

das Nações Unidas, dos termos “impe-

dimento”, “deficiência”, “incapacidade” e

“pessoas deficientes” utilizados no Progra-

ma Mundial de Ação (ORGANIZAÇÃO DAS

NAÇÕES UNIDAS, 1991, p. 5);

Pode-se dizer que é um dos primeiros passos

para tentar resignificar deficiência até então signifi-

cada como incapacidade, impedimento, anormali-

dade. Mas, essa é, sobretudo, a maneira pela qual a

deficiência e o sujeito são inseridos no documento

de fato. É o momento em que, no texto, sujeito e

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deficiência são explicitados na relação que estabe-

lecem. Explicitados à medida que se chama a aten-

ção para sentidos que foram historicamente cons-

truídos e ressoam em palavras como impedimento,

incapacidade, etc. É possível barrar esses sentidos?

Nos últimos anos, aos poucos a deficiência vai

se afastando dos sentidos destes termos e se apro-

ximando da palavra diferença. Mas como vimos a

relação de sinonímia entre deficiência e diferença

falha. Isso se dá pelo processo de denominar e re-

denominar que está investido na política da palavra

(ORLANDI, 1989). Há algum tempo venho inves-

tigando o funcionamento da denominação na re-

lação com a construção discursiva do referente, o

que implica pensar a relação do nome com o que

ele nomeia, o modo como o gesto de denominar

e redenominar pode ser tomado enquanto meca-

nismo ideológico na produção de sentidos (COSTA,

2011, 2012), pois ao redenominar as pessoas com

deficiências, a denominação anterior embora subs-

tituída não desaparece1, como no relatório do IBGE

de 2010, cuja denominação utilizada é “deficientes”.

Também encontramos espalhadas pela cidade ou-

tras denominações como “portadores de necessi-

1 São várias as denominações que ao longo da história passaram pelo processo de redenominação. Isto não significa que elas não sejam mais usadas. Ao contrário, elas aparecerem nos mais diversos discursos. No relatório do IBGE de 2010, por exemplo, a denominação utilizada é deficientes. Disponível em: <http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&busca=1&idnoticia= 2170>. Acesso em: maio 2013.

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dades especiais”, em um estacionamento comercial

(ver fotos abaixo).

Fotografias 2 e 3 – Placa de um estacionamento comercial na

cidade de Campinas

Fonte – Arquivo pessoal

As mais diferentes denominações continuam

sendo enunciadas, engendrando determinados sen-

tidos, espacializadas na cidade (ORLANDI, 2004). O

próprio fato de terem sido substituídas é significati-

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vo. Trata-se para Pêcheux (1988, p. 263) de relações

de metáfora, pois o sentido é sempre “uma palavra,

uma expressão ou uma proposição por uma outra

[...] o sentido existe nas relações de metáfora (rea-

lizadas em efeitos de substituição, paráfrases, for-

mações de sinônimos)”. Em um dos contos de Ly-

gia Fagundes Telles encontrei um exemplo. A autora

enumera: “asilos, sanatórios, clínicas de repouso,

institutos – dezenas de nomes, rótulos que variam

com a condição econômica” do sujeito. Depois ex-

plica: “Se é louco pobre, nada cerimônia, é hospício

mesmo” (TELLES, 1980, p. 25). Esse exemplo mostra

que a denominação dirige os sentidos entre hospí-

cio e louco pobre, mostra, portanto, que denomi-

nar não é um gesto aleatório, é uma interpretação

no nível do simbólico (ORLANDI, 1996; PÊCHEUX,

1997). E ainda, entendo que a denominação inter-

vém na individuação dos sujeitos, pois à medida

que um sujeito, uma instituição denomina o outro,

determina-se a posição esse outro ocupa na socie-

dade. Ao passo que, o sujeito ao se identificar com

um nome, já se inscreve em uma posição discursiva.

De “anormal, deficiente, incapaz, aleijado, cego,

limitado, especial, excepcional, pessoa deficiente,

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portador de deficiências, portador de necessidades

especiais, pessoa com necessidade especial, para

pessoas com deficiências” (físicas, visuais, motoras,

auditivas, intelectuais). A instituição dessa última de-

nominação aparece enfatizada na cartilha Politica-

mente Correto e Direitos Humanos2, de 2004. Essa

cartilha apresenta um glossário de termos que são

considerados preconceituosos e discriminatórios

e indica qual seria o termo “correto” a ser utilizado.

Vejamos a definição dos termos deficiente e aleijado:

Deficiente – Tratamento generalizador, ina-

dequado para chamar o portador de defi-

ciência física, auditiva, visual ou mental. As

expressões respeitosas podem ser “pessoa

portadora de deficiência” ou “pessoa com

deficiência”. O fato de ter alguma deficiência

não torna uma pessoa inválida ou incapaz.

Aleijado – Termo ofensivo, que estigmatiza

as pessoas com deficiência física ou mental.

Não é correto chamá-las de “pessoas defi-

cientes” ou “excepcionais”, atribuindo-lhes

incapacidade absoluta. Nem é pertinente

chamá-las de “portadoras de habilidades

2 Disponível em: <http://www.awmueller.com/deposito/politicamente_correto.pdf>. Acesso em: maio 2013.

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especiais”, eufemismo que não ajuda a pre-

servar sua dignidade. Em geral, as pesso-

as nessas condições preferem ser tratadas

como “portadoras de deficiência” ou sim-

plesmente “pessoas com deficiência”.

São muitas as discursividades que poderíamos

analisar, neste recorte, no entanto, chamo a atenção

para o que sustenta a mudança de uma denomina-

ção para a outra. O que está na base das duas é a

negação de discursos sobre a deficiência. Em Defi-

ciente, a negação é da incapacidade e da invalidez.

Em Aleijado, também incapacidade, desta vez abso-

luta, é negada. Inadequação, respeito, pertinência,

preservação da dignidade são evocados para justifi-

car a redenominação. Trata-se de um discurso efi-

caz. Esse processo se instala no interior do discurso

do politicamente correto funcionando pela interdi-

ção: “é proibido dizer aleijado”. Há indícios de que se

trata do funcionamento de um discurso normaliza-

dor tendo em vista o modo de se tentar padronizar

as denominações. Enquanto, a incidência do políti-

co na divisão do social pela divisão dos sentidos vai

sendo institucionalizada, administrada à medida que

se determina como devem ser denominados os su-

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jeitos. Assim, as reais condições de existência dessas

pessoas vão sendo reduzidas em cartilhas e manu-

ais. De um lado, a reverberação das incorreções das

denominações que ao serem negadas, pela remis-

são à memória discursiva, instauram a exclusão; por

outro, há o recobrimento das práticas discrimina-

tórias que reside nas denominações “diferença” e

“diferente” por serem anunciadas como “politica-

mente corretas”. Sublinho que nesse movimento de

um nome para outro, o sentido que é silenciado em

uma denominação é transferido para a outra. Nesta

transferência, o sentido silenciado pode derivar para

outro, resignificar-se. Todavia, em silêncio, ele não

deixa de significar. E quanto às práticas das institui-

ções em relação a esses sentidos?

Retomo o enunciado analisado “Iguais na Dife-

rença”, agora para observar o comercial, de aproxi-

madamente 30 segundos, no qual o referido enun-

ciado aparece3. É interessante trazê-lo para a análise

para mostrar como o efeito de ilusão de inclusão vai

sendo discursivizado por uma narrativa que apre-

senta diversas pessoas com as mais variadas defici-

ências na relação com pessoas sem deficiência, em

situações distintas, na cidade. Com isso, explicito

3 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=ANFu9g cIQho>. Acesso em: maio 2013.

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como a produção de significação seria outra se o

enunciado em questão fosse “Diferentes na Diferen-

ça ou Diferentes na Sociedade”.

O comercial em forma de narrativa é estrutura-

do por uma música. Trata-se de parte de Condição,

de Lulu Santos (1986), cantada pelos participantes

da propaganda, cuja letra é recortada e apresentada

trecho por trecho de distintas maneiras. Primeiro, a

câmera foca o dizer “Eu não sou” estampado na par-

te frontal da camiseta de uma deficiente visual, que é

conduzida por seu cão-guia, na calçada (Fotografia

4). Esse é o primeiro verso da música. Na sequência,

focaliza o dizer “diferente de ninguém” na parte das

costas da camiseta da mulher (Fotografia 5).

Fotografia 4 – Recorte Comercial

Inclusão para pessoas

com deficiência

Fonte – Disponível em: <http://

youtube.com/

watch?v=ANFu9gcIQho>.

Acesso em: maio 2013

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Fotografia 5 – Recorte Comercial Inclusão para pessoas com

deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com/

watch?v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

Fotografia 6 – Recorte Comercial Inclusão para pessoas com

deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com/

watch?v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

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“Quase todo mundo faz assim” é o enuncia-

do que aparece na parede de estabelecimento em

frente à parada de ônibus (Fotografia 6). Em cenas

intercaladas, uma jovem corre e sinaliza para o ôni-

bus parar e a câmera captura outro dizer. Desta vez,

aparece no painel do ônibus o enunciado “Eu me

viro bem melhor” (Fotografia 7). Acima, o símbolo

de cadeirante é mostrado, o que identifica o ônibus

adaptado para transportar pessoas com deficiência

física. Enquanto isso a câmera capta o motorista

cantando e porta de trás é aberta para um cadeiran-

te descer. Ele carrega no colo uma espécie de placa,

nela a inscrição: “Quando tá mais pra bom que pra

ruim” (Fotografia 8).

Fotografia 7 – Recorte Comercial

Inclusão de pessoas

com deficiência

Fonte – Disponível em:

<http://youtube.com/

watch?v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

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122

Fotografia 8 – Recorte Comercial Inclusão de pessoas com

deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com/

watch?v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

Rapidamente uma outra cena é sobreposta, na

qual aparece uma jovem andando de bicicleta, ao

fundo, noutra parede, os dizeres “Não quero cau-

sar impacto” (Fotografia 9) toma o lugar no enqua-

dramento. Para em seguida a câmera abrir e focar

a imagem de amigos que, sentados numa mesa de

bar, se divertem e conversam através da língua bra-

sileira de sinais (Fotografia 10). A câmera mais uma

vez deixa essa cena para agora capturar a imagem

do cardápio do bar, que ao invés de fazer algum

anúncio, registra outro trecho da música: “Nem

tampouco sensação” (Fotografia 11).

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Fotografia 9 – Recorte Comercial Inclusão de pessoas com

deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com/

watch?v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

Fotografia 10 – Recorte Comercial Inclusão de pessoas com

deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com/

watch?v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

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Fotografia 12 – Recorte Comercial Inclusão de pessoas com

deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com/

watch?v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

Ao lado, já aparece um jovem com síndrome de

down em uma loja de discos. Ele exibe na capa de um

dos discos a frase “O que eu digo é muito exato” (Fo-

tografia 12). Acima, um televisor mostra uma banda

tocando e cantando a continuação da músi-

ca: “É o que cabe na canção” (Fotografia 13).

Fotografia 13 – Recorte Comercial Inclusão de

pessoas com deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com watch?

v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

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A tela da televisão torna-se a tela de um com-

putador. A câmera nos leva do ambiente da loja de

discos passando pela tela do televisor para a sala

de um escritório (Fotografia 14), no qual um jovem

mostra dois cartazes. Em um, a palavra “Triste”, no

outro, “Sozinho” (Fotografias 15 e 16).

Fotografia 14 – Recorte Comercial

Inclusão de pessoas

com deficiência

Fonte – Disponível em: <http://

youtube.com/

watch?v=ANFu9gcIQho>.

Acesso em: maio 2013

Fotografia 15 – Recorte Comercial

Inclusão de pessoas

com deficiência

Fonte – Disponível em: <http://

youtube.com/

watch?v=ANFu9gcIQho>.

Acesso em: maio 2013

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Fotografia 16 – Recorte Comercial Inclusão de pessoas com

deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com/

watch?v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

E, por fim, no enquadramento, o último cartaz é

substituído por outro que aparece empunhado por

uma mulher. Nele a inscrição “É a minha condição”

(Fotografia 17). A câmera amplia seu campo de visão

e filma a reunião de todos os sujeitos que

fizeram parte do comercial (Fotografia 18).

Fotografia 17 – Recorte Comercial Inclusão de

pessoas com deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com watch?

v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

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Fotografia 18 – Recorte Comercial Inclusão de

pessoas com deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com/

watch?v=ANFu9gcIQho>. Acesso em:

maio 2013

Fechando o comercial, “Iguais na Diferença” é enun-

ciado além de aparecer estampado em imenso banner

que é desenrolado face à parede de um prédio que tem

ao lado as pessoas do comercial (Fotografia 19).

Fotografia 19 – Recorte Comercial Inclusão de pessoas com

deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com/

watch?v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

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Essa narrativa tem como regularidade o fato de

mostrar o percurso de pessoas com deficiência pela

cidade, na qual elas dividem os espaços com outras

pessoas. A deficiente visual divide a calçada com ou-

tros pedestres, a jovem que sinaliza para o ônibus,

que é adaptado, e o motorista convivem com o defi-

ciente físico. O deficiente auditivo se comunica com

os amigos no bar, o rapaz com síndrome de down

aparentemente trabalha na loja de discos. A música

também é cantada e tocada por uma banda em um

estúdio. No escritório, pessoas com e sem defici-

ência ocupam seu lugar no mercado de trabalho. O

efeito produzido é o de que “Todos têm lugar”.

O dizer “Eu não sou diferente de ninguém” vai

sendo alicerçado nessas imagens de convivência, de

circulação pelos distintos espaços. As pessoas apa-

recem felizes, em harmonia, no comercial. Não há

conflitos, não há dificuldades, não há preconceito

nem segregação. No entanto, o mesmo dizer toma

“o ser diferente” noutra instância, a do corpo, pois a

deficiência aparece no corpo seja nas marcas que

caracterizam a síndrome de down, seja pela lingua-

gem específica utilizada. Ou ainda, pela condução do

cão-guia, o uso da cadeira de rodas etc. A deficiência

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é mostrada pelo/no corpo. Se, por um lado, “não ser

diferente de ninguém” parece se significar pelo “aces-

so a”: acesso à rua, à cidade, ao trabalho, ao lazer etc.

“Acesso a um lugar”. Por outro, o paralelo que o co-

mercial estabelece entre o sujeito com deficiência e

sem deficiência, pelo corpo, mostra a diferença en-

tre eles. Diferença que significa de alguma maneira,

porque é historicamente construída. São duas ordens

distintas, a do acesso e o da diferença. E o que parece

é que o sujeito é individuado pelo discurso do acesso

que, por sua vez, é a síntese do discurso da inclusão.

Vejamos a letra da música tomada na constitui-

ção desse discurso:

Eu não sou diferente de ninguém

Quase todo mundo faz assim

Eu me viro bem melhor

Quando tá mais pra bom que pra ruim

Não quero causar impacto

Nem tampouco sensação

O que eu digo é muito exato

É o que cabe na canção

Eu não sei viver triste e sozinho

É a minha condição

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A música de Lulu Santos é estruturada em pri-

meira pessoa do singular. O que permite que o dis-

curso da campanha governamental projete, nessa

letra, o discurso da pessoa com deficiência, pois

a narrativa em imagens mostra os sujeitos cantan-

do, como se fosse a música fosse o próprio dizer

desses sujeitos. É a voz do sujeito com deficiência

sendo interpretada, construída pelo discurso ins-

titucional. Uma voz imaginária, na qual o interdis-

curso – o já-dito que fala antes, em outro lugar,

independentemente, ecoa – repousa e recorta

certas regiões da memória discursiva. Regiões que

significam a condição do sujeito com deficiência

como aquela que é igual, como um sujeito que se

vira bem, que não quer causar impacto, nem tam-

pouco sensação, que não sabe viver triste nem so-

zinho. O que significa causar impacto e sensação?

No discurso do Estado, movido, explicitado neste

comercial, trata-se de um modo de dizer o que a

deficiência provoca na sociedade. Impacto e Sen-

sação, neste domínio de significação, podem ser

substituídos e deslizam pelos sentidos de espanto,

aversão, recusa, exclusão. A colagem da letra da

música à voz do sujeito, dessa forma, coloca esse

sujeito como responsável pelo o que é dito, pelo o

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que faz e pode provocar na sociedade, pelo modo

que circula e se significa na relação com o outro,

ao mesmo tempo, que o coloca como responsável

pela “sua condição”.

“É a minha condição” é a parte da música que

todos cantam juntos, em coro, finalizando-a. Que

condição é essa, diz respeito à deficiência, ou à

condição de se incluir, condição para se incluir?

Neste discurso, o que se explicita é a “condição de

excluído que (pode) alcançar a inclusão”, susten-

tando então os dizeres de inclusão e assim man-

tendo o discurso da exclusão, pois para ser inclu-

ído é preciso que o sujeito seja significado como

excluído.

Em funcionamento, articulado a esse discurso

de responsabilização do sujeito pela sua condição,

pela sua inclusão, observem o processo de indivi-

duação incidindo em “Eu não sei viver triste e sozi-

nho”. O discurso da condição individua o sujeito e

o leva se inscrever em um formação discursiva da

posição sujeito excluído, na qual se reconhece e

com a qual se identifica como aquele que não sabe

“viver triste e sozinho”. Face a essa posição, o ima-

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ginário social constrói a imagem da pessoa com

deficiência como aquele que precisa ser integra-

do, aceito, tolerado, incluído. Em cena, entram, via

esse imaginário, os discursos do assistencialismo,

da solidariedade, que não discutem as reais con-

dições de existência das pessoas com deficiência

e formas de transformá-las, de significá-las fora

da relação contraditória inclusão/exclusão. Com

efeito, a inclusão escolar, por exemplo, em muitos

casos, fracassa, porque a ideia do discurso que in-

clui é aquela do acesso. Incluir no sentido de dar

acesso, acesso à escola, não é suficiente para lidar

com os sentidos, que historicamente construídos,

continuam ecoando na atualidade, constituindo os

sujeitos, dividindo aqueles que têm e não têm lu-

gar nas relações sociais. Uma possibilidade de se

romper com essa relação, de instalar uma outra

rede de sentidos seria derivar de “Iguais na Dife-

rença para Diferentes na Diferença ou Diferentes

na Sociedade”. Uma possibilidade de fazer atuar o

discurso de que “um sujeito não é igual a outro”,

uma maneira de intervir no real, de se compreen-

der a deficiência sem submetê-la ao discurso de

exclusão. E assim lidar com as reais necessidades

dos sujeitos com deficiência.

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5 CONCLUSÕES

À guisa de conclusão, retomo algumas consi-

derações ainda acerca do enunciado “Iguais na Di-

ferença”, que como vimos, aponta para a existência

de um Todos indeterminado, para a negação de que

“ninguém é igual na diferença”. Explicita que ao se

significar a diferença enquanto deficiência, a relação

de sinonímia falha, pois a palavra diferença funcio-

na, no enunciado, na rede de significações que es-

tabelece com ele, como uma espécie de sutura que

possibilita ao Estado a administração, o controle e o

enquadramento de pessoas com ou sem deficiência

no TODO indeterminado.

Em geral, as discursividades analisadas se apre-

sentam como sendo de inclusão. Todavia, pela com-

preensão empreendida, foi possível explicitar como,

em funcionamento, o discurso da inclusão ratifica a

exclusão. Esse funcionamento se inscreve em uma

sociedade marcada por práticas de segregação,

cujos sujeitos têm ou não lugar, cujos sentidos se

constituem politicamente, ou seja, são divididos pe-

las relações de poder instauradas nas relações so-

ciais. Com efeito, o discurso da inclusão explicita

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de que maneira a contradição afeta os sujeitos na

sociedade à medida que produz enquanto efeito a

ideia de que “Todos têm lugar”. A contradição é a de

que se todos têm lugar, por que alguns precisam ser

incluídos?

É uma maneira de se trabalhar a inclusão no

embate com a cidadania. A cidadania “como um

objeto, um fim desejado, ainda sempre não alcan-

çado” (ORLANDI, 2001, p. 159), enquanto a inclusão

se estabelece por uma relação condicional que faz

com que o sujeito, afetado pela ilusão da inclusão,

no processo de individuação, se identifique como

excluído e que busque, almeje, se responsabilize

pela sua própria inclusão.

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eni PuCCinelli orlandi*

FORMAÇÃO OU CAPACITAÇÃO?: DUAS FORMAS DE LIGAR SOCIEDADE E CONHECIMENTO

* Pesquisadora 1A do CNPQ. Professora colaboradora do IEL/UNICAMP e pesquisadora do Laboratório de Estudos Urbanos do Nudecrin/UNICAMP. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS).

Édipo não se cegou por culpa, mas por excesso de informação.

M. FouCault

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1 INTRODUÇÃO

Em análise feita do bordão “País rico é país sem

pobreza” do logotipo do governo de Dilma Rous-

sef (ORLANDI, 2011), mostramos como, este bor-

dão, em uma de suas apresentações, tendo como

pano de fundo a educação como tema, poderia ser

substituído por “País rico é país educado” com uma

deriva para “País rico é país sem analfabetos”. Esta

formulação se inscreve no que M. Pêcheux chama

de “posição sociologista”, ou seja, a posição do “hu-

manismo reformista”, ou, em termos atuais, a do

neoliberalismo. Esta posição reduz o social a cate-

gorias empiristas ou psicologistas, trabalhando com

categorias psico-sociais – idade, educação, sexo

etc. – e que, ao mesmo tempo em que fala do po-

lítico, o apaga. Nesta formação discursiva da prática

do sociologismo, a questão da educação, do analfa-

betismo, é só um déficit a ser corrigido: humanismo

reformista. Uma questão de desenvolvimento, este

sendo pensado como o acesso a trabalho e ao mer-

cado. E não se coloca como uma questão de estru-

tura, que teria, não que ser reformada, mas trans-

formada, rompida. Aparece como uma questão de

“capacitação”, de “treinamento” e não de “formação”

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(educação no sentido mais forte e definidor de outra

estrutura política, de outra formação social).

O que fica por significar, por ser definido, na

apresentação da situação da educação, – uma jo-

vem subindo uma escadinha que, projetada na pare-

de, reproduz uma escala estatística que mostra que

o Brasil está galgando degraus na sua classificação

mundial, quanto à educação –, junto ao “logo” do

governo federal, é a própria educação: o que é um

país educado? O governo não sabe ou não procura

saber, pois dá como consensual. Todo mundo “sabe”

o que é um país educado. O efeito de sentido que aí

se produz, por ilação, é que “país sem pobreza é país

educado”. O que nos leva a concluir que a educação

erradica a pobreza. Ou, o que se dá, na ideologia

consensual, a de a que nossa riqueza é a educação.

Posta em um enunciado repetido à exaustão em

países em que a educação é um bem de consumo

caro: “A melhor herança é um diploma”. Quem não

o tem é segregado do “desenvolvimento social”, ou

seja, fica fora da formação social.

Em uma sociedade do conhecimento, do sa-

ber, sociedade da escrita como ícone do desen-

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volvimento e da divisão, a existência da Escola não

só significa no seu interior, mas a formação social

em sua natureza e estrutura, ou seja, afeta também

quem está fora dela, da Escola. Isto é, o sujeito de

uma sociedade que tem a escola mesmo não es-

tando nela é por ela significado, no caso, pela au-

sência, pela falta: você é escolarizado ou não es-

colarizado e isso define as relações sociais em que

você se enreda. O que fica aí silenciada é a questão:

como dar condições para educar, para ir à escola,

para quem no tem os meios necessários?1 Mais do

que isso: sem a posse de bens sociais mínimos, já

se está fora dos que contam nesta sociedade. Sabe-

mos que o orçamento para educação é dos meno-

res. Embora a educação seja o argumento dos mais

presentes em campanhas políticas e em discursos

do governo quando quer mostrar que trabalha em

política social, pública. Educação, saúde, seguran-

ça, eis o trio campeão de audiência e de abuso. Mas

não há projetos sólidos e estruturados para a “Edu-

cação Social”.

Não podemos deixar de observar que, nos dis-

cursos que falam da educação, temos outra forma

de nomear o que aí está significado: alfabetização.

1 Novamente se apresentam as soluções reformistas: cotas pra x, pra y, sem que se saiba muito bem qual é a prioridade: ser negro ou ser pobre? Ser negro é uma categoria social? Tem o mesmo peso de ser índio, no Brasil? Redução do social a categorias psicossociais, ou antropológicas, e não políticas e sociais em sua estrutura e funcionamento e que se prestam ao jogo e ao equívoco.

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Mas estas formas de dizer se sucedem em con-

junturas históricas diversas: “alfabetização e desen-

volvimento”, atualmente se declinam em “educação

e mercado”, em que o mercado exige “a qualifica-

ção do trabalho”, “a qualificação do trabalhador”:

um país educado. Um país rico em que os cidadãos,

educados, são “capacitados” para o trabalho e cir-

culam como consumidores de um mercado de tra-

balho qualificado. Consumo e cidadania se conju-

gam. O denominador comum é o trabalho e não o

conhecimento. Este funciona como uma premissa

indefinida para, claro, se falar em “sustentabilidade”.

Esta, a palavrinha mágica que traz em seu efeito de

memória a de desenvolvimento (sustentável). Todas

estas formulações se ligam em algum ponto do pro-

cesso discursivo.

Acentuo a importância da questão, enunciada

no título, na palavra “formação”. Como dizia em ou-

tro trabalho, houve um momento, em nossa histó-

ria, em que se dizia: “quando você se ‘forma?’”. Mas,

atualmente, a pergunta é: “Quando você ‘termina?’”.

Questão de tempo, de oportunidade, de emprego,

de mercado de trabalho qualificado. Questão de

“capacitação” Para ser empresário. Não de “forma-

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ção”. A gente não se forma, a gente termina. E ter-

mina o que?

Esta equação não é fácil. Ela passa pela relação

educação, trabalho, conhecimento. E nossa per-

gunta desliza para o que significa aí “conhecimento”.

Antes de iniciar a busca destes sentidos para co-

nhecimento, lembremos como a questão de “capa-

citação” tem tido presença constante na mídia, na

fala de empresários e governantes. É um coringa

que se tira do bolso para silenciar a força da reivin-

dicação social.

Tomemos o exemplo do tão propalado “plano

antimiséria”. Este plano é seguido da proposta de um

cartão que vai promover o acesso social de milhões

de pessoas, e o governo garante que, desta vez, o as-

sistencialismo é só uma parte do programa pois ha-

verá “cursos de capacitação” para os que vivem em

condições de extrema pobreza. O que evitaria práti-

cas de populismo e coronelismo. O que o logo país

rico é país sem pobreza não garante. Apesar de falar

em pobres, no programa de antimiséria, a presidente

continua a falar em capacitação e, quando fala em

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educação, fala de cursos no exterior para pessoas

de formação mais avançada (é preciso, pois, chegar

lá). Para os mais pobres, ficam os treinamentos e a

capacitação. No discurso dos especialistas também

esta questão se faz presente. Cursos de capacitação,

como disse um economista em entrevista, não re-

solve, porque não garante permanência, sustenta-

ção. De minha parte, retomo o que venho afirman-

do: é preciso educação básica, penso, “formação”

mesmo, para que esses sujeitos ingressem no tra-

balho e saibam objetivar-se nas relações sociais em

que estão concernidos. Porque o que não está dito

é que se somos uma sociedade do conhecimento e

da informação estas são as formas de atender a uma

sociedade do trabalho (e do mercado).

2 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO E/OU SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO?

Sabemos que nossa conjuntura, histórico-so-

cial, é a que resulta das condições de produção do

conhecimento como forma de poder. E são muitas

as obras que falam desta relação. Um dos gran-

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des especialistas no desenvolvimento deste tema

é sem dúvida M. Foucault (2011) em suas muitas

produções: saber e poder andam juntos. Não há

relação de poder sem constituição correlativa de

um campo de saber, nem de saber que não supo-

nha e não constitua ao mesmo tempo relações de

poder, segundo Foucault, como retoma Viana do

Castelo. A filosofia da diferença faz sua emergência

crítica na tradição racionalista: “Penso logo sou”.

Que não fica parada e se produz no deslizamento

de sentidos, efeito metafórico que deriva para: “Sei

logo tenho poder”. Para Nietzsche (2008), a von-

tade do poder central é o impulso primordial, en-

quanto para Foucault (1971), a vontade da verdade

é uma versão deturpada da vontade do poder cen-

tral, segundo P. Strathern (2003, p. 52). A diferença

entre Foucault e Nietzsche, para Strathern (2003),

é que, para Nietzsche, a vontade de poder reside

no indivíduo (super-homem) e, para Foucault, nas

relações sociais. Em seu livro Vigiar e punir (1975),

Foucault fala da microfísica do poder, abordando

instituições como Escola, Prisão, Hospital e Fábri-

ca. E para não falar em identidade, que é por defi-

nição, uma noção estática, ele fala em “processos

de subjetivação”. E aí começamos a nos apartar da

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maneira como diz Foucault e o modo como traba-

lhamos discursivamente.

Na análise de discurso, consideramos que a

identidade resulta de “processos de identificação”.

E não de subjetivação, como em Foucault, pois o

processo de constituição do sujeito passa pela no-

ção de ideologia (que não é parte do corpo teórico

de Foucault). Ou seja, para o analista de discurso, o

processo de constituição do sujeito se dá pela “in-

terpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia”.

Não há sujeito sem ideologia. Já para Foucault não

se coloca a questão da ideologia. Através da noção

de poder, ele fala em processo de subjetivação e

coloca a necessidade de novos processos de subje-

tivação. Para nós, não há sujeito sem ideologia. E o

que pode haver (PÊCHEUX, 2011) são novas formas

de assujeitamento produzidas pelo sistema capita-

lista, em diferentes processos de interpelação ide-

ológica do indivíduo em sujeito, mantida sua forma

sujeito histórica, a do capitalismo. O capitalismo,

por sua vez, não é inerte, se movimenta. Ao invés

de colocarmos o poder como nuclear, colocamos

a ideologia. E, neste caso, o poder depende da ma-

neira como a ideologia funciona em nós, indivíduos

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ideologicamente interpelados. Sujeitos e sentidos se

constituem ao mesmo tempo. E os sentidos, como

sabemos, não existem em si, mas pela inscrição de

palavras, frases e expressões em formações discur-

sivas que são, no discurso, o reflexo das formações

ideológicas. O que significa que tampouco há sen-

tidos sem ideologia. Por outro lado, em nossa for-

mação social, o que temos são relações de poder

simbolizadas, logo, como dissemos acima, consti-

tuídas pela sua inscrição em formações discursivas,

em outras palavras, pela ideologia. Isto significa que

o poder é relativo ao funcionamento da ideologia.

Mais diretamente: só há poder porque há ideolo-

gia em funcionamento e é daí que o poder tira seu

sentido e sua força. Como pensar relações de for-

ça, relações de poder sem a ideologia e a consti-

tuição dos sujeitos e dos sentidos pela ideologia?

Tampouco podemos pensar a sociedade apartada

da linguagem, na perspectiva discursiva. As práticas

sociais são práticas significativas, sendo o homem

um ser histórico e simbólico. As formas das relações

sociais, os movimentos na sociedade, os movimen-

tos sociais, as organizações sociais, significam. É a

linguagem a mediação necessária entre os sujeitos

e a realidade natural e social.

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Pois bem, uma afirmação usual é a de que somos

uma sociedade da informação, em que informação

equivale a conhecimento. O que, se pensamos dis-

cursivamente, não é nem necessário nem verdadei-

ro. Informação e conhecimento não significam a

mesma coisa. E podem até significar o contrário se

pensarmos em formações discursivas diferentes. Te-

nho tematizado, em meus trabalhos, como a forma

de circulação da informação, sua relação com a me-

mória discursiva – que distingo da memória metálica

que é a das TI, serializada, binômica e funcionando

pela quantidade – apresenta-se como um a-mais

que satura a relação linguagem/pensamento/mun-

do de tal modo que imobiliza os processos de cons-

tituição e formulação dos sentidos, estacionando os

sujeitos na variedade e repetição técnica2. Em suma,

na maior parte do tempo, temos mais informação

do que necessitamos para movimentar a relação

linguagem/pensamento/ mundo, na produção do

conhecimento. O conhecimento precisa da incom-

pletude, do inacabamento, da errância dos sujeitos e

dos sentidos, de sua inexatidão. A circulação da in-

formação em uma sociedade, dita da informação, ao

contrário, funciona pelo imaginário do completo, do

fixo, do preciso, melhor ainda, do exato. Saturação

2 A repetição técnica (diferente da empírica e da histórica) não se historiciza e não produz autoria. É a produção do mesmo, sob suas várias formas, versões que retornam ao mesmo espaço do dizível.

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e imobilidade, na maior parte das vezes, andam jun-

tas3. A imobilidade pelo excesso e não pela falta.

Partindo, pois, desta relação linguagem/pensa-

mento/mundo, que não se dá termo a termo, não

é exata e nem transparente4, e tendo falado rapida-

mente da informação, chegamos à parte básica de

nosso estudo: o da relação da linguagem com o co-

nhecimento.

3 EDUCAR É FORMAR: A LÍNGUA ENTRA EM CENA

Formar, em educação, traz necessariamente a

questão da língua. Porque é a língua que está in-

vestida na produção do conhecimento. Não é ape-

nas um instrumento no sentido pragmático, mas é

parte do próprio processo de constituição do saber,

da construção do objeto de conhecimento, da sua

compreensão, e interpretação do que significa no

conjunto da produção científica de que participa.

Aí podemos distinguir a língua como instrumen-

to de constituição do objeto de cientistas em geral,

3 Professores, sabemos no que isto tem dado, pensando a qualidade e o efeito dos textos, baseados na informação, e que se distanciam enormemente de um projeto de conhecimento, que resta na verdade, sempre projeto, enquanto as informações excedem. E temos uma bela afirmação de Foucault para este excesso: “Édipo não se cegou por culpa, mas por excesso de informação”(FOU-CAULT, 2011).

4 O que significa dizer que nesta relação funciona a interpretação, na passagem de um dos elementos que a constituem para outro.

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e do especialista que trabalha sobre a própria língua,

ou seja, que a tem como seu objeto de conheci-

mento, de pesquisa e ensino. E o ensino pensado

em seus vários níveis: fundamental, médio e supe-

rior. O que não é simples, porque poderíamos dizer

que a língua é tal que não é o mesmo objeto língua

que se apresenta na pesquisa e no ensino, pensando

esses diferentes níveis.

Para tratar destas dificuldades, penso, é que te-

mos diferentes teorias e métodos de estudo e pes-

quisa da linguagem em geral e da língua em particu-

lar. Entre eles, os da análise de discurso. Perspectiva

em que trabalho.

Nessa perspectiva, se fazem necessárias algu-

mas reflexões que juntam língua, sujeito, educação

com formação, e sociedade.

Vou retomar aqui, inicialmente, o que tenho

afirmado a propósito da constituição do sujeito e do

seu modo de individuação.

Há, como diz M. Pêcheux (1975), interpelação

do indivíduo em sujeito pela ideologia. Aí, diríamos,

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começa o processo de constituição do sujeito: o

indivíduo é afetado pela língua, e interpelado pela

ideologia, constituindo a forma sujeito histórica. E a

isto chamamos assujeitamento: para ser sujeito “de”,

o indivíduo é sujeito “a” (língua e ideologia). Dessa

forma, pelo simbólico, e determinada historicamen-

te, se constitui a forma sujeito histórica, a do capi-

talismo, sustentada no jurídico. Uma vez constitu-

ído em sua forma histórica, a do capitalismo, com

seus direitos e deveres, e sua livre circulação social,

como dissemos, temos a individuação do sujeito

pelo Estado. Os modos de individuação do sujeito,

pelo Estado, estabelecidos pelas instituições e dis-

cursos, resultam em um indivíduo ao mesmo tempo

responsável e dono de sua vontade, com direitos e

deveres, e direito de ir e vir. É importante considerar

a individuação do sujeito, pois ela é, por assim di-

zer, um pré-requisito no processo de identificação

do sujeito. É o sujeito individuado que se inscreve

em uma ou outra formação discursiva, identifican-

do-se com este ou aquele sentido, constituindo-se

em uma ou outra posição sujeito na formação so-

cial (patrão, empregado, traficante, aluno etc). Esta

posição sujeito social deriva, assim, de seus modos

de individuação pelo Estado – pensada aí também

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a falha do Estado – através das instituições e discur-

sos. Em uma paráfrase à Simone de Beauvoir, que diz

que “não se nasce mulher, torna-se mulher”, tam-

bém não se nasce traficante, torna-se traficante, ou

não se nasce aluno, torna-se aluno. Isto tem a ver

com a formação social em que vivemos e o que o

Estado significa na constituição e funcionamento

desta formação. Incide, nesse processo, fortemente,

as formações imaginárias: a imagem do que seja um

professor, a imagem do que seja um aluno, a ima-

gem do que seja um sujeito diferente em alguma de

suas características etc. No processo de constituição

do sujeito do capitalismo, a individuação pela articu-

lação sombólico-política pelo Estado é fundamental.

O que mostra que a sociedade não é algo já pronto e

não é inerte. É dinâmica. Daí insistirmos na noção de

formação social (e não sociedade), que nos é mais

significativa, já que estas posições-sujeito se cons-

tituem em um movimento contínuo de processos

de identificação, com uma ou outra formação dis-

cursiva, com um ou outro sentido, a partir do modo

como o sujeito é individuado e identifica-se. Assim é

que funciona o imaginário do mundo capitalista. Isto

quer dizer que não há uma identidade em si, já pronta

(o que é ser aluno?), mas um processo de constitui-

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ção da identidade. Há um imaginário político-social

ideologicamente constituído que funciona na esta-

bilização de imagens. Mas o bom ou mau aluno é

constituído como tal. Não o é por natureza. E isto,

para mim, é que implica a formação, em uma pers-

pectiva discursiva que é, por definição, não essencia-

lista, nem determinista5, mas materialista. E o bom ou

mau aluno é constituído por este ou aquele profes-

sor. Ou seja, não há homogeneidade, ou unicidade

de sentidos nem para o aluno nem para o professor.

E a questão posta de formação ou capacitação qua-

lifica, a meu ver, esta questão, constituindo este ou

aquele professor portanto com consequências para

a capacitação ou formação deste ou aquele aluno.

Temos, abaixo, o Esquema 1 que mostra estes

momentos, distintos mas inseparáveis, da interpela-

5 Muitas vezes, tem-se confundido a determinação das condições históricas de constituição dos sujeitos e dos sentidos, ou seja, o fato de que as condições de produção funcionam na constituição dos sujeitos e dos sentidos, com determinismo. É preciso, pois, não confundir a noção de determinação (que é histórica e faz com que haja justamente a possibilidade da repetição como do deslocamento)tal como ela funciona na análise de discurso com o determinismo (biológico, antropológico etc), que se produz como inexorável (sistema de causa e efeitos sem falhas).

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ção do indivíduo em sujeito pela ideologia e da indi-

viduação da forma sujeito histórica pelo Estado.

Esquema 1 – Processo de constituição do sujeito

 Fonte – A autora (2013)

Quando falo em individuação do sujeito pelo

Estado, também a “língua” faz parte do que é indivi-

duado. Nesse caso, o da língua, podemos dizer que

há o que denomino “língua institucionalizada”, ou

seja, a que se apresenta com a caução do Estado

e que aparece assim em sua legitimidade. Esta lín-

gua institucionalizada é a que se pretende que seja

ensinada na Escola. A língua correta. Normatizada.

O discurso dominante sobre a língua, na socieda-

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de capitalista, é o da língua institucionalizada, a que

tem correção, regularidade e unidade. Esta unidade

é a unidade da língua nacional. Desse modo, identi-

fica-se o aluno bem formado com aquele que fala a

língua institucionalizada, reconhecida na sociedade

como a língua legítima. A que, no “imaginário so-

cial”, se aprende na escola, instituição do Estado que

individua o sujeito como sujeito alfabetizado, esco-

larizado, o que sabe a língua que fala. Ou fala de

acordo com a norma6.

Por isto interrogo o que é interpretado como

educação. Porque, para que se tenha um aluno que

fale a língua institucionalizada, ele precisa ser indivi-

duado pelo Estado tendo condições de tê-la. Isto se

consegue em um processo de formação, na educa-

ção. A capacitação não dá as condições para que se

tenha a língua institucionalizada. E é esta língua que

é base do processo educativo, no imaginário capita-

lista. Como disse, a língua faz parte do modo como

os sujeitos do conhecimento compreendem seus

objetos de ciência. E quando este objeto de conhe-

cimento é a língua, ela entra duplamente neste pro-

cesso: do próprio processo de constituição do saber

e da construção do seu objeto de conhecimento,

6 Múltiplas (e cansativas) discussões sobre a língua que se fala, que se ensina, sobre norma, etc mantidas por linguistas, em geral funcionalistas, esquece completamente esta parte toda da questão do estado, da constituição das relações do estado com a nação, com o jurídico, com a forma sujeito histórica do capitalismo, etc. Porque parte do já constituído e não do processo de constituição, inclusive da própria língua em sua legitimidade.

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da compreensão que possibilite sua prática; conhe-

cer a língua e saber praticá-la com “fluência”. No-

ção esta que, ao contrário do que se tem pensado,

é política, pois, a fluência implica a posição-sujeito

social e a formação discursiva em que se inscreve.

A língua aqui não é tomada “como um sistema (o

software de um órgão mental) mas como um real

específico formando o espaço contraditório do des-

dobramento das discursividades” (PÊCHEUX, 2011).

A língua, pois, como condição das discursividades

(sejam quais forem).

Para isso é necessário que este sujeito não só

saiba a língua, mas saiba que a sabe. Por isto a escola

deve-lhe sua formação: para que ele tenha domínio

da constituição da gramática como objeto histórico

que representa uma extensão do sujeito falante em

sua representação social, e do processo da leitura e

da escrita como processos não só de repetição, mas

de retomada, de construção de sua própria identi-

dade como sujeito escolarizado, sujeito do conhe-

cimento e da língua que fala. E como entrada nos

processos discursivos em que desenvolve suas prá-

ticas e experiências. Um sujeito que se constitui, se

movimenta nestas práticas e experiências.

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4 O SUJEITO E O SENTIDO OUTRO: A FORMAÇÃO NA RELAÇÃO DA LINGUAGEM COM A SOCIEDADE

A formação, e não a capacitação, é capaz de

produzir um aluno “não alienado”. E retomo aqui

o conceito de alienação em Marx (1844). Segundo

este autor, “a alienação desenvolve-se quando o in-

divíduo não consegue discernir e reconhecer o con-

teúdo e o efeito de sua ação interventiva nas formas

sociais”. Consideramos que a educação, o ensino de

língua, poderia, se bem praticado como processo

formador do indivíduo na sua relação com o social e

o trabalho, dar condições para que este sujeito “sou-

besse” que sabe a língua, soubesse ler e escrever7

com fluência, com todas as consequências sociais

e históricas que isto implica e fosse, assim, capaz

de dimensionar o efeito de sua intervenção nas for-

mas sociais. O que a capacitação ou o treinamento

não fazem. Ele continua então um objeto na rela-

ção de trabalho. Agora bem treinado e, logo, mais

produtivo. Mas não muda a qualidade da sociedade

e nem arrisca deixar de ser apenas um instrumento

na feitura de um “país rico”. Que deu mais um passo

no mercado, um maior consumidor8. O saber a lín-

7 Não esqueçamos que a leitura e a escrita significam diferentes relações do sujeito com a história, com efeitos sobre a realidade em que ele vive. Assim como sobre o imaginário social que o significa: como analfabeto ou como sujeito capaz de se colocar, pela escrita, na posição sujeito autor no domínio das relações sociais.

8 Na publicidade: “mais um consumidor, mais cidadania”.

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gua, o saber da língua na língua, daria ao sujeito um

passo na direção de sua não alienação, na direção

de ser capaz não só de formular como reformular e

resignificar sua relação com a língua e com a socie-

dade. Elemento importante em sua possibilidade de

resistência. Com a capacitação, o treinamento, ele

é um eterno repetidor. Um autômato de uma em-

presa, na melhor das hipóteses, se for considerado

“capacitado” após um “treinamento”. Ou, pior que

isso: habilitado9, e a habilitação não implica relação

com conhecimento mas com o treinamento: sujeito

treinado=sujeito habilitado, segundo o que penso. É

esta a nova economia da escola, em geral, a da não

reprovação.

Pois bem, se pensamos que a resistência pode

se dar no movimento que se faz na individuação da

forma-sujeito-histórica pelo Estado, podemos di-

zer mais sobre a formação e a relação com a língua.

Tomando a interpelação do indivíduo em sujeito,

podemos dizer que, na figura da interpelação, es-

tão criticadas duas formas de evidência: a da cons-

tituição do sujeito e a do sentido. Crítica feita pela

teoria materialista do discurso à filosofia idealista da

linguagem que se apresenta quer sob o modo do

9 Observação de Juliana Cavallari em seminário.

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objetivismo abstrato (formalista) ou do subjetivismo

idealista (voluntarista). Para a análise de discurso, o

sujeito se submete à língua mergulhado em sua ex-

periência de mundo e determinado pela injunção a

dar sentido, a significar-se. E o faz em um gesto, um

movimento sócio-historicamente situado, em que

se reflete sua interpelação pela ideologia.

Nessa perspectiva, a questão é como concebe-

mos o fato de que a materialidade dos lugares (proje-

tados em posições, as posições-sujeito) dispõe a vida

dos sujeitos e, ao mesmo tempo, a resistência desses

sujeitos constitui outras posições que vão materiali-

zar novos (ou outros) lugares na formação social (a

sociedade, como disse, não é inerte, é dinâmica).

O Estado, em uma sociedade de mercado pre-

dominantemente, falha em sua função de articula-

dor simbólico e político. E funciona pela falha. Isto

é, a “falha do Estado” – que tem sido tematizada

por vários autores, como por exemplo Lewckowitz

(2003) – é, a meu ver, “estruturante do sistema ca-

pitalista contemporâneo”10. Não é uma falta de inte-

resse, um descaso, nem, a meu ver, ele é substituído

pelo Mercado. Essa falha é uma falha necessária para

10 Chamo a atenção aqui para o fato, já mencionado, de que temos as diferentes conjunturas do capitalismo assim como temos diferentes formas de assujeitamento desenvolvidas no capitalismo (PÊCHEUX, 2011).

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o funcionamento do sistema. Os sujeitos, como os

que analisei nos meus textos sobre delinquência (pi-

chador, Falcão, menino do tráfico etc) se individuam

pela falta, na falha do Estado11. O que contribui para

que sejam postos em um processo de segregação12.

Segundo Pêcheux (2011), elementos que fun-

cionam em uma formação discursiva, dado o fun-

cionamento do interdiscurso (memória), podem ser

metaforizados e se deslocar historicamente. Por-

tanto, podemos considerar que a questão da resis-

tência está, de um lado, vinculada à relação entre

forma-sujeito-histórica e a individuação pelo Esta-

do; de outro, pelo processo de identificação do su-

jeito individuado com a formação discursiva em sua

vinculação ao interdiscurso (memória).

11 Portanto, embora sejam intimamente ligadas, a falha e a falta sig-nificam de maneiras diferentes, no modo como colocamos: vejo a falha como estruturante do Estado, e vejo a falta do Estado como uma forma de presença em condições de produção em que deve-ria estar lá mas não está, falta. Exemplo: a falta de aparatos/institui-ções do Estado como escola, segurança etc.

12 O que fica claro, quando se trata das relações de violência: os po-liciais matam legitimamente – alegando legítima defesa – dando como explicação indiscutível: houve resistência à prisão. Foi elimi-nado. Não precisa de julgamento. Como segregado, está fora da formação social. Não existe, não “conta” juridicamente.

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Pensando a inscrição do sujeito na formação

discursiva para que se identifique, assim como a

produção do sentido, e o reflexo das formações

ideológicas nas formações discursivas, podemos

ver como é nesse passo, em que o sujeito indivi-

duado se identifica, que pode haver ruptura. Essa

ruptura é possível porque, se, de um lado, como

vimos acima, na forma do capitalismo atual, con-

sideramos que a falha do Estado é estruturante do

sistema capitalista, de outro, a ideologia é um ritual

com falhas (PÊCHEUX, 1982). E a falha, como tenho

insistido, é o lugar do possível. Daí a contradição:

o que produz a repetição é o que torna possível a

ruptura do processo de individuação, de identifica-

ção, na confluência da falha do Estado no processo

de individuação e da falha da ideologia no processo

de interpelação, ressoando no processo de identi-

ficação do sujeito à formação discursiva. Atingindo

o reflexo, no sujeito, do modo como a ideologia o

interpela, na sua inscrição em uma formação dis-

cursiva e não outra.

A ideologia, como dissemos, é um ritual com fa-

lhas. Na falha, ela se abre em ruptura, onde o sujeito

pode irromper com seus outros sentidos e com eles

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ecoar na história, fazendo sentido do sem sentido.

Condição para que os sujeitos e os sentidos pos-

sam ser outros. É a isto que chamo “resistência”. E

não ao voluntarismo inscrito em teorias que se sus-

tentam na onipotência dos sujeitos e dos sentidos

que mudam á vontade. Somos sujeitos interpelados

pela ideologia, afetados pelo inconsciente, e é só

pelo trabalho e pela necessidade histórica da resis-

tência que a ruptura se dá quando a língua se abre

em falha, na falha da ideologia, enquanto o Estado

falha, estruturalmente, em sua articulação do sim-

bólico com o político. Não é, pois pela magia, nem

pela vontade, mas pela práxis, em nosso caso, pela

“formação”, que a resistência pode tomar seu lugar.

Temos o sujeito que produz(-se) “de fora”. E não o

sujeito “fora”, o segregado, que é diametralmente

oposto ao “incluído”. Não é nessa equação que tra-

balhamos, mas na dissimetria das posições: na aber-

tura produzida pela resistência.

Podemos representar então esta forma de con-

siderar a resistência, na reformulação do esboço

apresentado acima, no Esquema 2, abaixo:

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Esquema 2 – A forma da resistência

 

Fonte – A autora (2013)

É assim que pensamos a resistência fora de uma

perspectiva humanista, reformista ou pragmática,

trazendo para a reflexão o “simbólico”, o “ideológi-

co” e o “histórico”. E é dessa forma que podemos

afirmar que “educar não é capacitar, nem treinar,

nem informar, mas dar condições para que, em seu

modo de individuação, pelo Estado, o sujeito tenha

a ‘formação’ (conhecimento/saber) necessária para

poder constituir-se em uma posição sujeito que

possa discernir, e reconhecer, os efeitos de sua prá-

tica na formação social de que faz parte”. Em outras

palavras, se construa, nesse processo, um espaço

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politicamente significado em uma formação social

que não é inerte mas dinâmica e capaz de movi-

mento. Esse espaço é a condição para que o sujeito

educador saiba relacionar-se com o educando não

colocando-se ele mesmo no lugar do educando,

sabendo, ao mesmo tempo, compreender esta dis-

tância, dar-lhe sentido. E, sobretudo, que saiba, isso

sim, criar condições para que este educando pense

e administre suas práticas nesta diferença, “como

diferente”. Caso contrário, ao insistir na diferença,

mas suturando o lugar do outro, preenchendo-o, o

sujeito educador, formador, desliza para o que cha-

mei capacitação e separa o sujeito educando dele

mesmo: preenche seu espaço significativo da dife-

rença, o que, nos meus termos, significa apagá-la

como tal. Porque não deixa o espaço da diferença,

ou do diferente, para a diferença, ou para o diferente

significá-la.

Face a essas reflexões e à educação, nossa po-

sição, ao propor a formação dos sujeitos, visa não

reproduzir o “discurso da inclusão”, que objetiva

transformar o dominado, o excluído, para adequá-

-lo às formas dominantes seja da cultura, seja do

conhecimento, seja da classe social. Transformação

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e ruptura devem vir juntas. Não se trata, tampou-

co, de inserir o não inserido, ou integrar o não inte-

grado (os apocalípticos?), ou seja, não visamos falar

do lugar em que a gestão pública se coloca como

lugar do assistencialismo, do multiculturalismo, do

comunitarismo, do integracionismo. Não supomos

também que temos, de um lado, o sistema capita-

lista e, de outro, agentes/sujeitos/posições-sujeito

inertes. Para nós, tanto uns como outros estão em

movimento, se deslocam e podem-se transformar,

irromper em novas formas sociais e significativas.

Embora o sistema seja estabilizador e suas rela-

ções de força trabalham na repetição do mesmo.

Interessa-nos pensar nos sentidos que a dominação

e a resistência tomam nesta relação tensa, já que,

tanto a estruturação como a desestruturação de-

las levam ao movimento da sociedade na história.

É a fabricação do consenso que tem produzido, na

realidade, a segregação. Já que o consenso, sobre

o qual se apoiam as políticas públicas, é um con-

senso imaginário – constituído no jogo do jurídico

e do administrativo, sustentado em práticas mate-

riais assistencialistas, multiculturais e comunitárias

– é preciso compreender os sentidos que toma o

consensual e como ele se significa nos sujeitos so-

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ciais, pelas formações imaginárias. E, então, o que

estamos falando do espaço social, dos lugares (po-

sições-sujeito) e da formação, leva-nos, nos termos

em que estamos pensando estas questões, face à

educação, a dizer que encontrar uma situação, um

(outro) espaço, politicamente significado, para o su-

jeito é encontrar um (outro) sentido e tornar possí-

vel o movimento de sua individuação: poder estar/

ser, instalar (-se em) uma situação. Passar do não-

-sentido ao sentido possível, de modo “que o irreali-

zado advenha formando sentido do interior do não-

-sentido” (PÊCHEUX, 1975). E isto é o contrário da

“adaptação”, da chamada “inclusão”.

5 HISTORICIDADE, ALTERIDADE

Tomando, agora, esta questão em termos da

conjuntura mais ampla, refletimos sobre a educa-

ção em suas condições de produção reais, no nosso

caso as do Brasil, em sua historicidade, sua memó-

ria, em que contam processos de significação que

passam pela colonização, pela independência, pela

organização social do século XIX em que as institui-

ções ganham corpo e sentidos, desenvolvendo-se

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no século XX e entrando no século XXI com suas

condições de funcionamento pautadas pelo desen-

volvimento científico e tecnológico.

Desse modo, gostaríamos, aqui, para pensar

esta relação com o outro, pensando a diferença, de

lembrar o que diz S. Rolnik em seu Subjetividade an-

tropofágica (1998, p. 5, grifo nosso), ao fazer consi-

derações sobre o sujeito, pensando o Brasil:

Esta liberdade de investir apenas o que in-

teressa num sistema de pensamento, foi

provavelmente gerada no contexto mestiço

que marca o país desde a fundação, o qual

exige este tipo de liberdade para que terri-

tórios de existência possam ganhar corpo.

Ganhar corpo e sentido, eu diria. Falar em “ter-

ritórios de existência que possam ganhar corpo e

sentido” me leva a pensar neste espaço do outro, da

diferença e em sua invenção. A cada prática. Rede-

finição permanente de estrutura. Ou, pensando os

sujeitos, considerando os processos de identifica-

ção e, como tenho concebido, a identidade como

movimento na história. Ou mesmo improvisação13.

13 Mas, como todo dizer, este também é sujeito a equívoco, em suas contradições: a improvisação pode ser um lugar de estabelecimento de condições de ruptura, mas pode ser também o lugar em que a capacitação, o “jeito brasileiro”, se aninha, suturando sentidos e produzindo obstáculos à historicização, ao deslizamento de sentidos outros, à deriva, ao diferente/outro significando como diferente/outro.

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Para, como penso, “constituir outras posições que

vão materializar novos (ou outros) lugares na forma-

ção social” (ORLANDI, 2005); ou para que “territórios

de existência possam ganhar corpo” (ROLNIK, 1998).

Falando da “subjetividade antropofágica”, S.

Rolnik (1998) diz que a cultura produzida no Brasil

“torna-se uma linha de fuga da cultura europeia e

não mais reposição submissa e estéril, nem simples

oposição”. E a subjetividade antropofágica, segun-

do ela, define-se por jamais aderir absolutamente a

qualquer sistema de referência, por uma plasticidade

para misturar à vontade toda espécie de repertório e

por uma liberdade de improvisação de linguagem a

partir de tais misturas. Esta é o tipo de relação com

a alteridade. Mas a antropofagia atualiza-se segundo

diferentes estratégias do desejo, movidas por dife-

rentes vetores de força, desde uma posição de afir-

mação da vida até a sua negação. Rastreia o mundo

pela busca de sentido. E, então, e de acordo com a

autora, são diferentes tipos de relação com a alteri-

dade que podemos observar. Um deles é enxergar e

querer a singularidade do outro; outro, é a tolerância

à pressão que os afetos inusitados – certo estado de

corpo – exercem sobre a subjetividade para que esta

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os encarne, recriando-se, tornando-se outra. E te-

mos, ainda, o que S. Rolnik chama de “rosto quente e

cambiante de uma subjetividade mestiça nascida da

exuberante variedade de universos que compõem as

condições locais” (nomadismo, errância?). Ou, en-

tão, o que ela chama de “singularidade impessoal”:

um todo aberto disperso nas múltiplas conexões do

desejo no campo social e que emerge entre os mun-

dos agenciados, enquanto a subjetividade regida por

um princípio identitário figurativo consiste na pes-

soalidade de um eu, individualidade murada, presa

a suas vivências psíquicas e comandada pelo medo

de se perder de si. Aponta ainda para o modo como

emerge o tipo de subjetividade antropofágica: se faz

por alianças e contágios, segundo a autora, um rizo-

ma infinito que muda de natureza e rumo ao sabor

das mestiçagens que se operam na grande usina de

nossa antropofagia cultural. Não se faz por filiação

como a identidade identitário-figurativa, promoven-

do uma fantasia de evolução linear e o compromis-

so aprisionador com um sistema de valores assumi-

do como essência a ser perpetuada e reverenciada

(ROLNIK, 1996). Esta é a posição de S. Rolnik falando

da subjetividade e da alteridade, em um país como o

Brasil, em sua conjuntura histórico-social e política.

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Para meus objetivos, guardo destas reflexões a

não-linearidade, o movimento, a dispersão e errân-

cia. Movimento. Incompletude. Não exatidão, que é

o que tenho procurado (ORLANDI, 2012) explicitar

nos processos de constituição de sentidos e dos su-

jeitos. E penso que muito do que S. Rolnik coloca na

subjetividade, eu colocaria nos modos de individu-

ação e que resultam nos processos de identificação

dos sujeitos. Não seriam assim características de

subjetividades mas distintas experiências dos modos

de individuação no processo de constituição dos

sujeitos, individuados pelo Estado em sua articula-

ção simbólico-política. Teriam, pois, a ver precipua-

mente com a ideologia e as condições de produção

de um país que, como disse, tem, em sua historici-

dade, a colonização, a escravidão, a organização da

sociedade republicana no século XIX , seu desenvol-

vimento no século XX, e a entrada na mundialização

do século XXI, com sua tecnologia e cientismo, sem

esquecer o autoritarismo, as experiências ditatoriais,

acompanhadas do positivismo, do higienismo, do

autoritarismo, na maior das vezes presentes nas re-

lações sociais vigentes. E não deixa de ser apreciá-

vel, neste sentido, o que diz Rolnik (1998, p. 10):

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Podemos inclusive supor que tanto faz se a

representação a ser investida como identi-

dade é imposta por um deus da caravela (lei

das potências católicas que colonizaram o

país), ou se ele foi substituído por um deus

moderno, padroeiro da nação brasileira, ou

por um deus mais moderno ainda, talvez até

pós-moderno, deus do “capitalismo mun-

dial integrado”, como o chamava Guattari,

com suas imagens globalizadas, flexíveis e

efêmeras.

É que sob qualquer uma dessas máscaras com

pretensão transcendente, tenderia a afirmar-se outra

– a qual, aliás, não é uma, mas várias e imprevisíveis,

pois ela se metamorfoseia acompanhando o noma-

dismo do desejo.

As subjetividades no Brasil teriam, assim,

certa maleabilidade para deixar-se habitar

por uma constante variação de universos,

bem como, uma certa liberdade de criação

de novas máscaras, territórios de existência

marcados pela hibridação de tais universos.

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Em suma, o inconsciente maquínico-antro-

pofágico se encontraria especialmente ativo

neste país (ROLNIK, 1996, p. 10).

Eu relativizaria esta afirmação, pensando as

condições de produção de sentidos (e de existên-

cia) desses sujeitos, e a força das relações de po-

der simbolizadas que funcionam no imaginário em

que os sujeitos estão mergulhados, significados.

A própria autora fala da desestabilização e do fato

de que aquilo que para o sujeito é falta revela-se

como excesso de singularidades que transbordam

e desmancham sua figura. No lugar do par prazer/

desprazer, diz Rolnik (1996) que o que se terá neste

caso é a alegria da atividade do desejo e a tristeza de

suas desativações. E ela refere a Oswald de Andra-

de, dizendo se não seria a esta alegria que se referia

Oswald em seu Manifesto antropófago (1990) quan-

do disse que “A alegria é a prova dos nove”. A autora

lembra, então, que não é nova esta imagem de uma

subjetividade brasileira marcada pelo prazer. Mas

prefere pensar em um movimento entre dois veto-

res: o da desestabilização exacerbada de um lado,

e, de outro, a persistência do regime de figuras-pa-

drão. Maleabilidade, novas máscaras, hibridação dos

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universos. Tensão, eu diria. Que não são prerroga-

tivas brasileiras, mas o próprio da espécie humana,

podendo, no entanto, estar mais ou menos ativo nas

subjetividades e isso em muito depende, diz S. Rol-

nik (1996), dos contextos sócio-culturais, do quan-

to tendem a favorecer ou inibir sua atividade. Força

determinante das condições de produção, eu diria.

Presos na tensão entre paráfrase e polissemia, entre

a repetição e a diferença, no que nos determina e na

resistência, no que é estabilizado e o que é sujeito a

equívoco.

E, não esqueçamos, não há sujeito sem a inter-

pelação do indivíduo pela ideologia, afetado pelo

simbólico. E a ideologia não se aprende, nem se ad-

ministra pela racionalidade. No entanto, ela produz

seus efeitos continuamente. E é assim que penso a

estrutura e funcionamento do que diz S. Rolnik so-

bre a “subjetividade antropofágica” que seria a nos-

sa. Portanto, nesta relação com este outro, que é

o diferente, ou seja, no que ela diz sobre a relação

com a alteridade, nada pode ser pensado sem le-

var em conta o imaginário, o funcionamento ideo-

lógico: o efeito de transparência da linguagem e a

ilusão do sujeito de ser a origem de si, quando re-

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toma sentidos pré-existentes. São estes que temos

de tomar em conta na relação que estabelecemos,

considerando o processo de “formação”. Formação

do professor que, por sua vez, vai formar o seu alu-

no etc. Formação que pode dar condições ao es-

tabelecimento do espaço políticamente significado

da diversidade que se diz, que se significa, e do su-

jeito que se re-significa. E que pode, também, esta-

cionar na repetição, maquiada, da estagnação bem

sucedida (o capacitado). Isto porque a diferença, a

diversidade, apresenta-se como um acaso, que as-

sim parece nas circunstâncias em que se dá, mas é

estruturante, parte da divisão social. Em uma forma-

ção social como a nossa, capitalista, ela organiza o

funcionamento da divisão na sociedade.

6 CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS

Na realidade, após essas reflexões, o que fica,

como objetivo que procuramos atingir, é obser-

var discursivamente a resistência, o deslocamento

possível na relação sujeito e ideologia, deslizamen-

to dos sujeitos e dos sentidos, incluindo aí a falha

e o equívoco. E isso implica em pensar um sujeito

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dividido, o assujeitamento nas formas históricas do

capitalismo, a ideologia como um ritual com falhas,

o Estado estruturado pela falha, o equívoco se cons-

tituindo pela inscrição dos efeitos da falha da língua

na história, e a formação social como algo que, apa-

rentemente já pronta, se constitui e se mantém con-

tinuamente. Trazemos para a reflexão a importância

do modo como a língua significa as relações sociais

e está presente na própria constituição e funciona-

mento da sociedade. A sociedade não é, como dis-

semos, inerte, e o indivíduo é individuado pelo Esta-

do, ou seja, pelas instituições e pelos discursos, em

um processo de identificação de que resultará sua

posição sujeito na formação social.

Podemos, enfim, afirmar que, nas formas atuais

de assujeitamento, no capitalismo, há um resto, nas

relações dissimétricas, que produz a resistência14,

não na forma heroica a que estamos habituados a

pensar, mas na divergência desarrazoada, de sujei-

tos que teimam em (r)existir. São estes os “bem for-

14 Sempre fica a questão: essas formas de resistência que atingem as posições-sujeitos são capazes de abalar a forma-sujeito-histórica capitalista? Maleabilidade, novas máscaras, heterogeneidade ?

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mados”15. E é por isto que, em uma sociedade que

se quer imexível e já feita, se evita a formação16 e,

com ela, a compreensão de como a língua/lingua-

gem funciona, tanto para o processo de simboliza-

ção, mas, sobretudo, para a individuação do sujeito

que se identifique com “uma posição sujeito capaz

de resistência e que ‘ouse pensar por si mesmo’”.

Este é o sujeito que objetivamos com a formação 17, o sujeito não alienado (MARX, 1844), aquele que

15 É importante aqui ressaltar que dizer bem formados não significa sempre conscientes de sua formação. Como apontamos mais aci-ma, a falha e o equívoco trabalham em permanência esses proces-sos de interpelação ideológica e de individuação pelo Estado, por onde vazam sentidos e posições sujeito irrompem. Por isto a forma-ção, tal como a caracterizamos, como forma de não alienação, é um modo de constituição de sujeitos que torna possível a resistência.

16 E se a substitui pela “capacitação”.17 Enquanto isso, o Estado propõe a capacitação para todos, socieda-

de de mercado e de trabalho, e, em programas para o Brasil – ou como “Brasil, país de todos” ou ”País rico é paios sem pobreza” – temos sempre projetos amplos que, ou não chegam nem mesmo a serem implementados ou, se implementados, nunca alcançam sua amplitude, ou a se completar. E se dão datas longínquas ou que se postergam. No caso da deficiência e a acessibilidade, temos: “Plano “Viver sem Limite” “promete promover a inclusão social e autonomia para as pessoas com deficiência” (17/11/2011).O Brasil tem a partir de agora um dos planos mais avançados em defesa dos direitos da pessoa com deficiência. A declaração foi feita pela Presi-dente Dilma Roussef, ao lançar o “Plano Viver sem Limites”, durante cerimônia realizada em Brasília. O programa “pretende” investir R$ 7,6 bilhões “até 2014” na inclusão de pessoas com deficiência.O Vi-

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ver Sem Limites vai aplicar R$ 1,8 bilhão em educação, com trans-porte escolar acessível, adaptação de acesso a escolas públicas e universidade, construção de salas com recursos multifuncionais, além da oferta de até 150 mil vagas para pessoas com deficiência em cursos federais de formação “profissional e tecnológica”. Já na saúde, há previsão de R$ 1,4 bilhão para ações de prevenção às de-ficiências[...]. Na área social, serão disponibilizados R$ 72,2 milhões para implantação de Centros de Referência, [...]. Junto com esta-dos e municípios, o governo quer ainda prevê aplicar R$ 4,1 bilhões em acessibilidade. Uma das ações nesse sentido é a possibilidade de “todas” as 1,2 milhão de residências do programa “Minha Casa, Minha Vida 2” serem “adaptadas” para pessoas com necessidades especiais. O plano prevê também a criação de cinco centros de ensino técnico para formação de treinadores de cães-guia. “Obras de mobilidade urbana para a Copa também deverão obedecer a critérios de acessibilidade”. A palavra “Plano” já nos indica que seus sentidos não se fazem para serem cumpridos mas para responde-rem a reivindicações, no imediato. Dificilmente se cumpre em seu futuro. Além disso, no próprio enunciado “Viver sem limites” há uma impropriedade significativa porque é próprio, da pessoa que vive em sociedade, aprender a lidar com limites. Não os impostos, mas os que se fazem necessários pela sociabilidade.

sabe discernir e reconhecer o conteúdo e o efeito

de sua ação interventiva nas formas sociais. Capaz

de pensar por si mesmo, tocando o real, no tenso

confronto com o imaginário que o determina.

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débora MaSSMann*

ACESSIBILIDADE: SENTIDOS EM MOVIMENTO

Não é a deficiência que me impede de exercer minha cidadania, mas sim a dificuldade

que a sociedade tem de eliminar barreiras, respeitar a diferença e aceitar a diversidade.

Gabriel, 14 anoS, deFiCiente viSual

* Mestre em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria e Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS).

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1 INTRODUÇÃO

Em um momento em que se observa um mo-

vimento político e social que propõe o respeito à

diferença nas suas mais distintas acepções, tem se

assistido ao emprego dos termos diversidade e aces-

sibilidade em diferentes textos sejam eles técnicos,

midiáticos, publicitários e jurídicos, entre outros. A

efervescência dos debates sobre diversidade permi-

tiu avanços importantes em relação ao modo de de-

signar os sujeitos que potencialmente inscrevem-se

como público alvo de políticas inclusivas. De acordo

com Gil (2011), a busca por outras formas de no-

mear sujeitos marcados pelos aspectos da diferen-

ça, “o ser diferente”, “expressa uma disputa profunda

e fundamental acerca das concepções que devem

vigorar no atendimento a essas pessoas”. No caso,

as diversas formas de nomear a diferença podem

fornecer pistas sobre quem são esses sujeitos, quais

tratamentos políticos, jurídicos, sociais e educacio-

nais merecem ter, e principalmente, como eles são

significados na e pela sociedade.

Juntamente com terminologias como diversi-

dade e acessibilidade, outras expressões são trazidas

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à baila. Este é o caso, por exemplo, de termos como

inclusão, no que concerne às práticas sociais e edu-

cativas, e mobilidade, no que diz respeito à ques-

tão do espaço urbano e digital. Há também aquelas

designações empregadas, como se assinalou acima,

na tentativa de nomear o sujeito da diferença, a sa-

ber, portador de deficiência, portador de necessi-

dade especial, deficiente, pessoa com necessidade

especial, pessoa com deficiência, entre outras.

As querelas terminológicas em torno das formas

de designar a parcela da população que necessita

de atendimento diferenciado começam a se diluir a

partir de 2008, quando o Brasil lança a Convenção

sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, texto

no qual se ratificam as deliberações adotadas pela

ONU1 em 2006. O documento brasileiro apresenta-

-se como emenda constitucional e pretende assim

assegurar os direitos e a cidadania dos sujeitos da

diferença. É a partir deste texto que o termo oficial

passa a ser “pessoa com deficiência” (PCD). Nota-

-se assim que, paralelamente ao advento de novas

formas de dizer a diferença na sociedade do século

XXI, busca-se deslocar esse “poder da Norma” atra-

vés do qual as instituições de poder, como a esco-

1 Disponível em: <http://www.acessobrasil.org.br/index.php?itemid=900>. Acesso em: 22 dez. 2012.

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la e o governo, por exemplo, tentam estabelecer o

“normal” como coerção social (FOUCAULT, 1987).

Os projetos que têm sido colocados em práti-

cas para deslocar e ressignificar os modos de dizer a

diferença não resultam apenas de um esforço brasi-

leiro, mas sim de um movimento político maior que

se sustenta em acordos internacionais, tais como a

Declaração dos Direitos Humanos de Viena (UNES-

CO, 1993) que constitui um texto fundamental para

essa questão à medida que discute o princípio da

diversidade, colocando o direito à igualdade em pa-

tamar semelhante ao direito à diferença:

22. Haverá que prestar atenção especial

para garantir a não discriminação e o gozo,

em termos de igualdade, de todos os Di-

reitos Humanos e liberdades fundamentais

por parte de pessoas com deficiência, in-

cluindo a sua participação ativa em todos

os aspectos da vida em sociedade (UNES-

CO, 1993, p. 6).

Ao reconhecer a pluralidade de sujeitos porta-

dores de direitos e de seus direitos específicos, o

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texto inscreve-os como parte integrante e indivisí-

vel da plataforma universal dos Direitos Humanos.

Desse modo, a Declaração de Viena pode ser con-

siderada um divisor de águas para a questão da di-

versidade, pois trouxe consigo a questão da Ética da

Diversidade na implantação de políticas inclusivas. É

fundamentada neste documento de Viena, que sur-

ge, em 1994, a Declaração de Salamanca (1994) em

que se discorre, de modo mais específico, “Sobre

Princípios, Políticas e Práticas na Área das Necessi-

dades Educativas Especiais”.

Estes dois documentos constituem uma amos-

tra das discussões internacionais sobre o assunto

e da rede de sentidos que foi se constituindo em

torno do tema diversidade. O movimento interna-

cional e a rede de sentido que ele suscitou produzi-

ram ecos e afetaram significativamente as políticas

públicas brasileiras no que concerne às questões de

cidadania de sujeitos com deficiência. Compreen-

de-se assim que para pensar a diversidade é mister

considerar a questão da cidadania.

A sociedade e suas instituições (Estado, escola,

organizações etc.) empenham-se assim em tentar

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diminuir as barreiras espaciais, sociais e ideológicas

e movimentam-se na direção da diversidade. Na es-

teira deste movimento, promove-se a luta contra o

preconceito e valorização de sujeitos da diferença, a

saber, sujeitos com deficiência, de diferentes etnias,

religiões, culturas e outros. Desse modo, o sentido

de diversidade apresenta-se relacionado à ideia de

acessibilidade, pluralidade, globalização e multipli-

cidade trazendo consigo a questão da tolerância e

da convivência com a diferença.

2 DIVERSIDADE E ACESSIBILIDADE

Com advento de políticas públicas que se em-

basam na premissa do respeito à diversidade, as cha-

madas políticas inclusivas, observa-se, como já se

apontou anteriormente, a emergência de diferentes

expressões linguísticas e também de formas distin-

tas de designar o sujeito da diferença. Neste estudo,

proponho-me a refletir sobre a palavra “acessibi-

lidade” que, além das áreas técnicas, passou a ser

empregada também em outros domínios como, por

exemplo, educação, comunicação, esportes etc.

Diante das ressignificações que a palavra “acessibi-

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lidade” foi adquirindo no decorrer dos últimos anos,

considera-se importante compreender os sentidos

que são postos em funcionamento nos dizeres so-

bre a acessibilidade que circulam na sociedade.

A palavra “acessibilidade” ganha visibilidade, ini-

cialmente, associada às áreas técnicas sobretudo em

Engenharia e Arquitetura em que espaços e artefatos

devem ser projetados de modo a estar ao alcance de

todos os sujeitos. No Brasil, a primeira norma técnica

que se pronuncia em relação à acessibilidade data

de 1985. À época, profissionais de diferentes áreas e

sujeitos com deficiência foram convidados a formar

um grupo de trabalho com o propósito de elabo-

rar o documento que pretendia fixar diretrizes (pa-

drões, medidas, modelos) que objetivavam facilitar o

acesso e a mobilidade de pessoas com algum tipo de

deficiência a diferentes espaços urbanos, tais como

edificações, transportes e vias públicas. A Associação

Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) lança assim a

NBR 9050, intitulada a “Adequação das Edificações e

do Mobiliário Urbano à Pessoa Deficiente”.

Atualmente, a ABNT conta em seu acervo com

mais de 12 versões de normas de acessibilidade que

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foram sendo reformuladas em função da deman-

da da sociedade a novas formas de serviço. Destas,

deve-se destacar a versão de 1994 que se amparou

no conceito de Desenho Universal2 para promover a

regulamentação de normas voltadas ao benefício de

todos. Nesta versão da NBR 90503, nomeada como

“Acessibilidade de pessoas portadoras de deficiência

às edificações e espaço, mobiliário e equipamen-

tos urbanos”, além de definir critérios de acessibi-

lidade e desenho universal, também foram descri-

tos alguns tipos de deficiência (física, visual, auditiva

etc.) que deveriam ser levados em consideração no

processo de planejamento urbano no que tange às

edificações destinadas à educação, saúde, cultura,

culto, esporte, lazer, serviços, comércio, indústria,

hospedagem e trabalho, entre outros.

Como se pode observar, as duas versões da

norma NBR 9050, descritas acima, trazem formas

distintas de significar a questão do acesso: “ade-

quação” (NBR 9050:1985) e “acessibilidade” (NBR

9050:1994); e modos diferentes de designar os pró-

prios sujeitos a quem esta normatização se desti-

na, a saber, “Pessoa Deficiente” (NBR 9050:1985) e

“Pessoas Portadoras de Deficiência”.

2 De acordo com a NBR 9050:2004, o Desenho Universal é definido como “aquele que visa atender à maior gama de variações possíveis das características antropométricas e sensoriais da população”. Disponível em: <http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/arquivos/%5Bfield_generico_imagens-filefield-description%5D_24.pdf>. Acesso em: 1 jun. 2013.

3 Para mais informações, confira <http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/arquivos/%5Bfield_generico_imagens-filefield-description%5D_24.pdf>. Acesso em: 1 jun. 2013.

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Essa observação nos leva a perceber ai não só

a questão da querela terminológica de que se fa-

lou anteriormente no que tange aos modos de dizer

os sujeitos da diferença, mas principalmente, a ob-

servar um movimento de sentidos. Sentidos que se

deslocam, neste caso, da “adequação” em direção

à “acessibilidade”. Desse modo, considera-se que

refletir sobre acessibilidade implica analisar sentidos

múltiplos, ora cristalizados, ora fluídos, sentidos em

movimento, pois, como destaca Orlandi (1988), os

sentidos podem sempre ser outros uma vez que se

constituem no funcionamento histórico da e pela

linguagem, ou seja, na história de enunciações que

tem um passado e projeta um futuro.

Entende-se assim que o sentido de uma palavra

não existe em si mesmo, isto é, não se constitui de

modo individual, isolado e prévio. Compreende-se

também que o sentido não pode ser considerado

como uma simples relação entre palavras, frases e

texto. O sentido é, pois, produzido pelo aconteci-

mento da enunciação. Assim, para descrever o senti-

do de “acessibilidade”, investiga-se a rede semântica

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que é posta em funcionamento nos modos de dizer

a acessibilidade no discurso da normatização, bem

como as condições histórico-ideológicas em que

o acontecimento enunciativo4 (GUIMARÃES, 2007)

se produz. Em outras palavras, trata-se pois de ob-

servar o processo de produção de sentidos que se

caracteriza pelo funcionamento da língua num dizer

específico sobre “acessibilidade”.

Tal processo de produção de sentidos mobili-

za procedimentos enunciativos que afetam, rees-

crevem, retomam e ressignificam o que já foi dito.

Assim, ao longo de um texto – ou entre textos dis-

tintos – expressões linguísticas retomam e repor-

tam-se umas às outras através de operações enun-

ciativas que reescrevem o já dito de outra maneira.

Elas reescrevem e ressignifcam o que já foi dito de

outro modo e assim constroem sentidos para aces-

sibilidade. Ao analisar a rede semântica que se tece

em torno desta palavra, busca-se compreender o

modo como seus sentidos circulam e como vão se

alterando à medida que ela vai sendo reescriturada

e ressignificada ao longo dos textos.

4 A cada acontecimento enunciativo as palavras podem assumir sentidos diversos e significar coisas diferentes (GUIMARÃES, 2007).

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3 DO SENTIDO POSTO AO SENTIDO FLUIDO

Inseridos em uma perspectiva materialista, nes-

te estudo, toma-se a linguagem como não trans-

parente e considera-se que sua relação com o real

é histórica (GUIMARÃES, 2002). Assim, a presente

reflexão inscreve-se no domínio teórico da Semân-

tica do Acontecimento (GUIMARÃES, 2002), a qual

compreende o sentido das palavras como sendo

constituído pelas relações de determinação semân-

tica que elas estabelecem entre si tanto no nível do

enunciado quanto no nível do texto e também en-

tre textos distintos, conforme assinalou-se anterior-

mente. O estudo do sentido de uma palavra não se

limita, portanto, à análise do seu funcionamento no

plano do enunciado: “este é parte da questão e não

o seu lugar” (GUIMARÃES, 2002, p. 28). Isso quer di-

zer que as posições ideológicas que estão em jogo

no processo sócio-histórico no qual as palavras são

produzidas, enunciadas e retomadas também de-

vem ser consideradas. Há aí um histórico de senti-

dos, embora não se considere de antemão nenhu-

ma realidade a que as palavras reportam, “há um real

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que a palavra significa. E as palavras têm a sua histó-

ria de enunciação. Elas não estão em nenhum texto

como um princípio sem qualquer passado” (GUIMA-

RÃES, 2007, p. 81).

A fim de mostrar os sentidos que estão em fun-

cionamento, representa-se a rede semântica a par-

tir do Domínio Semântico da Determinação (DSD)

(GUIMARÃES, 2007) que pode ser definido como

um mecanismo de descrição e de interpretação no

qual se mostra como o “funcionamento das pala-

vras na enunciação constitui sentidos [...]” (Guima-

rães, 2007, p. 96). Para Guimarães (2007, p. 96), no

acontecimento da enunciação, a língua em funcio-

namento movimenta-se, transforma-se e significa

de diferentes formas:

podemos dizer que no acontecimento se

refaz insistentemente uma língua, pensada

não como uma estrutura, um sistema fe-

chado, mas como um sistema de regulari-

dades determinado historicamente e que é

exposto ao real e aos falantes nos espaços

de enunciação.

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A determinação semântica ocupa, portanto,

uma posição de destaque já que é descrita como

uma relação enunciativa fundamental no processo

de produção de sentidos das expressões linguísticas

(GUIMARÃES, 2007). Ou seja, é nas e pelas relações

de determinação semântica, constituídas no acon-

tecimento enunciativo, que as palavras significam.

Assim sendo, nesta reflexão, o estudo do(s)

funcionamento(s) e do(s) deslizamento(s) de sentido(s)

da palavra “acessibilidade” ampara-se, necessaria-

mente, no conceito de DSD. Dito de outra forma, di-

zer qual é (ou quais são) o(s) sentido(s) de “acessibili-

dade” implica poder estabelecer o seu DSD. Para

isso, toma-se o enunciado como unidade de análise

e, dentro do enunciado, as relações de determina-

ção que as palavras estabelecem umas com as ou-

tras no funcionamento do texto. Não se pode perder

de vista que o enunciado apresenta-se integrado a

um texto. Para Guimarães (2009, p. 50), uma sequ-

ência linguística só é enunciado enquanto

unidade de sentido que integra um texto.

Assim falar do sentido de uma expressão

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em um enunciado exige que se considere

em que texto está essa unidade. São as re-

lações de linguagem que constituem senti-

do. E mais especificamente, são as relações

enunciativas do acontecimento que consti-

tuem sentido. O sentido não se reduz a uma

mera relação interna em uma estrutura en-

tre os elementos da estrutura, independen-

temente de qualquer exterioridade.

No processo de análise, o DSD é descrito, re-

presentado e identificado por sinais muito específi-

cos que constituem o próprio DSD. Tem-se assim a

seguinte representação:

1 os sinais ┬ ou ┴ ou├ ou ├, indicam “deter-

mina” (em qualquer direção);

2 o traço ─ indica uma relação de “sinoní-

mia”;

3 o traço maior ___________, dividindo o DSD,

significa “antonímia”;

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4 além disso, o DSD normalmente apresenta-

-se emoldurado, isto é, ele é descrito no in-

terior de uma moldura.

Através destes sinais, o DSD apresenta e re-

presenta uma análise da palavra. É a partir desta

análise que se pode descrever e compreender o(s)

funcionamento(s) de sentido de uma palavra nos

enunciados que constituem o corpus.

Para complementar o processo de análise, cujo nú-

cleo é o DSD, Guimarães (2002, 2007) estabelece dois

tipos de procedimentos analíticos fundamentais à cons-

tituição de sentidos: a articulação e a reescrituração.

A reescrituração pode ser definida como um

procedimento, através do qual a enunciação, reto-

ma, rediz e reescreve o que já foi dito atribuindo-lhe

novos sentidos, fazendo-o significar de outra ma-

neira diferente de si. Tem-se assim a reescrituração

como um procedimento que

atribui (predica) algo ao reescriturado. [...]

[ela] coloca em funcionamento uma opera-

ção enunciativa fundamental na constitui-

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ção do sentido de um texto. Vou chamá-la

de predicação [...]. Trata-se de uma opera-

ção pela qual, no fio do dizer, uma expres-

são se reporta a outra, pelos mais variados

procedimentos. Ou por negar a outra, ou

por retomá-la, ou por redizê-la com outras

palavras, ou por expandi-la ou condensá-la,

etc. (GUIMARÃES, 2007, p. 84)

Nesse sentido, compreende-se que a reescritu-

ração pode ocorrer sob diferentes formas. De fato,

ela pode se manifestar através de repetição, substi-

tuição, elipse, expansão, condensação ou definição.

Estes diferentes modos de reescrituração criam uma

trama (teia) de sentidos na superfície textual, pois

conectam pontos do texto entre si e com outros

textos. Através destes procedimentos de reescritu-

ração, pode-se observar como o sentido de uma

palavra é construído, deslizado e alterado. Dito de

outra forma, como o sentido da palavra se histori-

ciza e como, ao ser retomada, ela faz significar algo

que não estava significado (GUIMARÃES, 2007).

Enquanto a reescrituração engloba relações

que podem se estabelecer na unidade do texto, a

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articulação remete à análise das relações de conti-

guidade no interior do próprio enunciado. O estudo

da articulação permite dizer “como o funcionamen-

to de certas formas afeta outras que elas redizem”

(GUIMARÃES, 2007, p. 88). Dentre as relações de

articulação, pode-se citar a pressuposição, a predi-

cação e a referência no âmbito do enunciado e as

relações argumentativas, entre outras. É, portanto,

tomando como bases estes pressupostos teórico-

-metodológicos que se estabelecerá a análise do

corpus desta pesquisa.

4 SOBRE O(S) SENTIDO(S) DE ACESSIBILIDADE

Considerando que o corpus resulta “de uma

construção do próprio analista” (ORLANDI, 2002,

p. 63), sua seleção e sua organização constituem,

de certa forma, a primeira etapa da análise. Nessa

perspectiva, a etapa subsequente do trabalho com

o corpus diz respeito ao recorte5 dos enunciados

que constituirão as unidades de análise. Cada re-

corte constituirá um conjunto de enunciados que

serão analisados conforme o dispositivo teórico-

5 A noção de recorte é tomada aqui como “uma unidade discursiva. Por unidade discursiva, entendemos fragmentos correlacionados de linguagem-e-situação. Assim um recorte é um fragmento da situação discursiva” (ORLANDI, 1984, p. 14).

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-analítico da Semântica do Acontecimento descrita

como “uma semântica que considera que a análise

do sentido da linguagem deve localizar-se no es-

tudo da enunciação, do acontecimento do dizer”

(GUIMARÃES, 2002, p. 7).

Assim, para este estudo, toma-se, como objeto

de reflexão, um enunciado retirado do texto, Lei da

Acessibilidade (BRASIL, 2004), publicado e homolo-

gado em 2004, pelo então Presidente da República.

Esta Lei, que consolida parte do que já estava pos-

to nas normas da ABNT, estabelece diretrizes gerais

para a promoção da acessibilidade das pessoas com

deficiência ou com mobilidade reduzida, mediante

a supressão de barreiras e de obstáculos não só no

espaço urbano, mas também no que diz respeito a

diferentes serviços de utilidade pública, como, por

exemplo, informação e comunicação.

No recorte, apresentado abaixo, observa-se que

a palavra “acessibilidade” tem seus sentidos especi-

ficados aparecendo reescrita no Artigo 8, por um

procedimento de repetição que é seguido do sinal

de pontuação dois pontos cuja função é justamente

detalhar o sentido de acessibilidade estabelecendo

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ai uma relação predicativa marcada pelo sinal de

pontuação:

Recorte 1 – Acessibilidade

Art. 8 Para os fins de acessibilidade, considera-se:

I - acessibilidade: condição para utilização, com se-

gurança e autonomia, total ou assistida, dos espaços,

mobiliários e equipamentos urbanos, das edifica-

ções, dos serviços de transporte e dos dispositivos,

sistemas e meios de comunicação e informação, por

pessoa portadora de deficiência ou com mobilidade

reduzida;

Com o objetivo de afinar as análises, recorre-se

aqui às paráfrases que dão mais visibilidade ao que

está posto neste enunciado:

1’ acessibilidade é uma condição para uso de equi-

pamentos para a pessoa portadora de deficiência;

1” acessibilidade é uma condição para uso de equi-

pamentos para a pessoa com mobilidade reduzida;

1”’ acessibilidade é mobilidade.

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Nestas manobras iniciais, nota-se que a pala-

vra “acessibilidade” é predicada por “condição para

uso de equipamentos da pessoa portadora de defi-

ciência” e por “para uso de equipamentos da pessoa

com mobilidade reduzida”. Essa relação predicativa

permite já de início perceber a relação de sentidos

que está sendo produzida entre acessibilidade e mo-

bilidade. De um lado, acessibilidade determina uma

condição, um estado de um grupo de sujeitos cuja

mobilidade não existe ou está reduzida. Ou seja, su-

jeitos que, de certa forma, foram excluídos da socie-

dade pela sua diferença física. Promover a “acessi-

bilidade” neste sentido significa criar condições de

mobilidade e é este o funcionamento de sentido que

é tornado visível pela paráfrase e pelo DSD abaixo.

DSD1

pessoa portadora de deficiência ┤

ACESSIBILIDADE ├ mobilidade

pessoa com mobilidade reduzida ┤

Nas paráfrases seguintes, “acessibilidade”, ao

estabelecer relações predicativas com “segurança”

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208

e “autonomia” da pessoa com deficiência ou com

mobilidade reduzida, tem posição central. Nota-se

assim que o sentido vai deslizando de “condição”,

um estado do sujeito, para a questão da “segurança”

e “autonomia” de sujeitos com deficiência.

1”’acessibilidade é autonomia para a pessoa porta-

dora de deficiência ou com mobilidade reduzida;

1”” acessibilidade é segurança para a pessoa por-

tadora de deficiência ou com mobilidade reduzida.

DSD2

├ autonomia

ACESSIBILIDADE

├ segurança

Avançando um pouco na análise deste enun-

ciado, as paráfrases permitem visualizar a questão

do acesso ao espaço urbano, através de “mobiliá-

rios”, “edificações”, “equipamentos e transportes”, e

do acesso ao espaço digital/informacional através

de “equipamentos”, “sistemas e meios de comuni-

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cação e informação”. “Acessibilidade” é diretamente

reescriturada por definição por “condição para utili-

zação, com segurança e autonomia, total ou assis-

tida, dos espaços, mobiliários e equipamentos ur-

banos, das edificações, dos serviços de transporte e

dos dispositivos, sistemas e meios de comunicação

e informação, por pessoa portadora de deficiência

ou com mobilidade reduzida”. Esta definição colo-

ca diretamente a predicação de “acessibilidade” por

utilização dos espaços mobiliários, equipamentos

urbanos, edificações, transporte e dispositivos e sis-

tema e meios de comunicação e informação.

1”” acessibilidade é a condição de utilização mobili-

ária, de equipamentos urbanos e de edificações por

pessoa portadora de deficiência ou com mobilidade

reduzida;

1”””” acessibilidade é a condição de utilização de

serviços de transporte e dos dispositivos, sistemas

e meios de comunicação e informação por pes-

soa portadora de deficiência ou com mobilidade

reduzida.

As paráfrases nos conduzem ao seguinte DSD.

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210

DSD3

utilização de utilização de

espaço urbano mobiliário ┤ ├ equipamentos ┤espaço digital/

├ edificações ┤ ACESSIBILIDADE ├ comunicação informacional

transporte ┤ ├ informação

A partir dessas análises, é possível representar

as relações de sentido da palavra “acessibilidade” no

âmbito deste enunciado através de um único DSD.

DSD4

Mobilidade utilização

┴ ├ equipamentos

├ comunicação ┤ espaço digital/

├ informação informacional

pessoa

portadora de deficiência ┤

ACESSIBILIDADE utilização

pessoa ├ mobiliário

com mobilidade reduzida ┤

├edificações ┤espaço urbano

┬ autonomia

┬ segurança

├transporte

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211

Nota-se, neste DSD4, que o sentido de “aces-

sibilidade” é determinado por “pessoa portadora de

deficiência”, “pessoa com mobilidade reduzida”, por

“mobilidade”, “autonomia”, “segurança”, “utilização

de equipamentos, de comunicação, de informação”

e “utilização de mobiliário, edificações, transporte”;

por outro lado, é possível observar também que o

sentido de “acessibilidade” determina “espaço ur-

bano” e “ espaço digital/informacional pelo desliza-

mento de dois conjuntos de determinação que rece-

be o que está à direita no esquema do DSD proposto.

Nesse tear semântico, a relação que se estabe-

lece entre acessibilidade e mobilidade, neste enun-

ciado, é constitutiva à medida que o sentido de uma

complementa o sentido da outra. As análises permi-

tem perceber ainda que o sentido de acessibilidade

começa a se movimentar do espaço urbano físico-

-concreto (“mobiliário”, “edificações” e “transporte”)

para o espaço digital-informacional (“equipamen-

tos”, “comunicação”, “informação”). Isso nos leva

a retomar Lemos (2009), autor que considera que

o sentido de mobilidade articula-se a duas noções

complementares que estão diretamente relaciona-

das ao espaço urbano: extensionalidade e acessibi-

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212

lidade (KWAN, 2007). Para Lemos (2009), enquanto

a primeira diz respeito à capacidade de se mover, a

segunda se refere às condições e possibilidades de

deslocamento e de alcance de determinados pon-

tos sejam eles físicos, informacionais e/ou cogniti-

vos. As palavras do autor, além de confirmar as re-

lações de sentido entre acessibilidade e mobilidade

observadas na análise, apontam para o fenômeno

semântico que nos faz perceber a rede de significa-

ções que a palavra “acessibilidade” coloca em fun-

cionamento no enunciado em questão.

Assim, a partir da análise apresentada, pode-se

perceber que, se por um lado, o sentido de “aces-

sibilidade” apresentado pelos dicionários de língua

portuguesa6 apresenta uma descrição semântica

fechada e muito restrita, um sentido posto e en-

clausurado em si mesmo, sentido, por vezes, re-

produzido nas normas técnicas e textos oficiais que

regulamentam a questão da acessibilidade no país;

por outro lado, o modo como o sentido de “acessi-

bilidade” vem sendo construído na sociedade con-

temporânea aponta para um deslocamento semân-

tico à medida que coloca em funcionamento não

só a questão do acesso de pessoas com deficiência

6 Confira, por exemplo: acessibilidade: a.ces.si.bi.li.da.de; sf (lat. accessibilitate) 1 Facilidade de acesso, de obtenção. 2 Facilidade no trato. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portu gues-portu gues&palavra= acessibilidade>. Acesso em: 20 jun. 2013.

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213

a produtos e serviços do espaço urbano físico, mas

também à medida que possibilita o acesso ao uso

de aplicativos, redes e sistemas de comunicação

e informação da era digital a todas as parcelas da

população. Este deslocamento de sentido nos leva

pois a pensar na acessibilidade tecnológica em con-

formidade com os pressupostos da sociedade da in-

formação em rede.

De fato, como mostra a edição 199 da revista

Tema, a acessibilidade tecnológica, termo propos-

to pela ONU (2009), na Convenção da ONU sobre

os Direitos das Pessoas com Deficiência, ao mesmo

tempo que dá visibilidade a esta noção colocando-a

como uma questão de direitos humanos, representa

para o usuário

não só o direito de acessar a rede de infor-

mações, mas também o direito de elimina-

ção de barreiras arquitetônicas, de disponi-

bilidade de comunicação, de acesso físico,

de equipamentos e programas adequados,

de conteúdo e apresentação das informa-

ções em formatos alternativos (ACESSIBILI-

DADE..., 2009).

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Nota-se assim que a acessibilidade tem seu sen-

tido afetado, deslocado e ampliado à medida que

faz refletir também sobre a comunicação e o acesso

à informação a partir de outro lugar, o lugar alterna-

tivo e de direito dos sujeitos da diferença, pessoas

com deficiência.

Como vimos, ao longo desta reflexão, diver-

sidade e acessibilidade têm ocupado um lugar de

destaque nas discussões políticas, sociais e jurídicas

nas últimas décadas. No que concerne especifica-

mente à acessibilidade, nota-se que o sentido des-

ta palavra encontra-se em movimento, seu sentido

flui, desloca-se na direção dos direitos humanos, da

cidadania, da tecnologia. A convenção da ONU sem

dúvida contribuiu significativamente para que este

movimento acontecesse à medida que, além de tra-

tar de questões gerais de acessibilidade no espaço

urbano, este texto (em especial, o artigo 9) deu vi-

sibilidade à questão da acessibilidade tecnológica

que pretende assegurar a estes sujeitos a possibili-

dade de transpor as barreiras postas pelos artefatos

tecnológicos e inserir-se também no espaço digital,

na sociedade da informação do século XXI. Ao am-

pliar a discussão sobre “acessibilidade” nos discursos

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oficiais, a convenção dos Direitos das Pessoas com

Deficiência da ONU e a Lei da Acessibilidade do Bra-

sil dão a conhecer assim outras formas de acessi-

bilidade e, consequentemente, outros sentidos para

a palavra. Novas formas de dizer e de (re)significar

a acessibilidade contribuem (e apontam) para um

avanço do pensamento político e social em torno

da questão da diversidade. Avanço que certamen-

te, por um lado, ressignifica as políticas públicas da

diversidade, mas, por outro lado, traz à sociedade

a tarefa de romper com paradigmas tradicionais e

propor ações mais amplas que estejam de acordo

com as necessidades histórico-culturais dos sujeitos

implicados nestas práticas.

Enfim, a produção de outros (novos) sentidos

para a acessibilidade nos textos oficiais aponta para

uma nova configuração da sociedade que, pouco a

pouco, vai aprendendo a conviver com a diferença

e se movimentando para dar acesso a todos os su-

jeitos que a compõem.

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* Fonoaudióloga e Pedagoga. Doutora em Linguística pela UNICAMP. Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS).

renata ChryStina bianChi de barroS*

TRAÇO, CORPO, SENTIDO: SOBRE A ESCOLA, A CRIANÇA E A ESCRITA

No poemae nas nuvens

cada qual descobreo que deseja ver.

helena kolody

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223

1 INTRODUÇÃO

Para o estudo aqui pretendido objetivo realizar,

num recorte da linha da vida humana, o desloca-

mento do homem estabelecido por meio do corpo

humano biológico que escreve traçando linhas para

a representação do mundo; para esse corpo que

hoje chamo de corpo-sentido, que se inscreve por

meio do traço e do rabisco para os processos de

significação.

Para isso, opto focar esta investigação no perí-

odo da infância, recorte geralmente escolhido por

pesquisadores que se voltam para o estudo do pro-

cesso inicial de alfabetização, considerando que

para a criança os aspectos da estrutura da língua

serão ensinados formalmente no interior da escola.

Como corpus de análise, elegi dois documentos

governamentais que apresentam diretrizes e práticas

para o interior da educação infantil: a Resolução nº5,

de 17 de dezembro de 2009 (BRASIL, 2010), que ins-

titui diretrizes curriculares nacionais para a educação

infantil; e o Manual de orientação pedagógica “brin-

quedos e brincadeiras de creches” (BRASIL, 2012).

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A opção por analisar um recorte de cada um

desses documentos se deu por ter observado que

a prática pedagógica orientada nesses documentos

está inicialmente voltada à preparação do corpo,

com atenção e cuidados com a evolução e o desen-

volvimento do movimento do corpo infantil como

realizado desde a Idade Média.

O percurso de estudo realizado por Le Goff e

Truong (2012), pode auxiliar na compreensão da

indicação da proximidade entre as práticas com o

corpo da criança na educação infantil contempo-

rânea e as práticas com o corpo na Idade Média ao

longo do processo civilizatório humano.

Bloch (2012), na elaboração do prefácio do livro

de Le Goff e Truong (2012), parte da premissa de que

o corpo tem uma história. Para ele, os autores ela-

boram um estudo que reserva ao corpo um espaço

para sua historicização, ora numa dinâmica de com-

paração dicotômica, ora na elaboração de díades.

Para Bloch (2012, p. 11),

a dinâmica da sociedade e da civilização me-

dievais resulta de tensões: entre Deus e o ho-

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mem, entre homem e mulher, entre a cidade

e o campo, entre o alto e o baixo, entre a ri-

queza e a pobreza, entre a razão e a fé, entre

a violência e a paz. Mas uma das principais

tensões é aquela entre o corpo e a alma [...].

No modo como tais relações são estabelecidas,

convencemo-nos ao longo da leitura preliminar do

livro de Le Goff e Truong (2012) e, posteriormen-

te na própria produção dos autores que na história

da humanidade o corpo vem sendo chicoteado em

nome de uma estabilidade social sem pecados, e da

demanda social, domado em prol do desenvolvi-

mento social.

Para isso, cada sociedade elaborou “técnicas

do corpo”1 de modo que o homem pudesse seguir

servindo sob a adequação de determinadas regras

e convenções. Portanto, há o indicativo de que o

modo como o homem anda, nada, senta-se e deita-

-se tem haver com os processos pelos quais passou

uma determinada sociedade.

No mesmo sentido, em “a civilização dos cos-

tumes”, Elias (1994) ocupou-se não apenas de des-

1 Le Goff e Truong (2012) rememoram estudos da história, filosofia e sociologia na realização do seu estudo. A expressão “técnicas do corpo” é utilizada pelos autores a partir da construção de Marcel Mauss (2003), traduzida e publicada em 2003 no Brasil.

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crever, mas de entender como a prática do corpo

é representativa da história da sociedade. Como

exemplo, aponta para as proibições e para as auto-

rizações do comportamento à mesa, do compor-

tamento sexual e das vestimentas em ambientes

comuns, numa formalização de regras de conduta,

modelando inclusive a sensibilidade corporal.

Em tempo e lugar longínquos daqueles remeti-

dos por Le Goff e Truong (2012) a respeito do cor-

po na Idade Média, no ano de 2011, a sociedade da

América Latina, por meio de representantes do FO-

RUMADD/Argentina (grupo interdisciplinar contra a

patologização e medicalização da infância), e do Fó-

rum sobre Medicalização da Educação e da Socie-

dade/Brasil, organizou-se de modo a dar visibilidade

à sua preocupação quanto aos cuidados exacerba-

dos com o comportamento de crianças em idade

escolar, elaborando a “Carta Sobre a Medicalização

da Vida”2 no sentido de marcar o compromisso de

articulação profissional dos campos da educação e

da saúde.

Tal movimentação surgiu, dentre outras razões,

em reação às práticas medicalizantes de crianças

2 Disponível em: <http://medicalizacao.com.br/carta-sobre-medicalizacao-da-vida/>. Acesso em: 8 jun. 2013.

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que foram rotuladas como incapazes de se ade-

quarem ao modelo educacional vigente (BARROS,

2012a) sob práticas que envolvem a “docilização do

corpo” (FOCAULT, 2009) por meio de técnicas his-

tórica e ideologicamente estabilizadas.

Como sintoma, na escola atual todo e qualquer

comportamento desviante sofre intervenções de di-

ferentes naturezas para que o corpo esteja adequa-

damente adaptado aos espaços. Exemplo disso é o

grande número de crianças atualmente diagnosti-

cadas indiscriminadamente3 com TDAH (Transtor-

no do Déficit de Atenção e Hiperatividade), e que

atualmente fazem uso de metilfenidato, conhecida

como a “droga da obediência”.

Para nós, o TDAH é um transtorno fictício atri-

buído a crianças que expressam no seu comporta-

mento a fórmula da infância, e tratar clínica ou te-

rapeuticamente tal comportamento é manipular os

próprios sentidos da infância. Vejamos:

As crianças com TDAH, em especial os me-

ninos, são agitadas ou inquietas. Frequen-

temente têm apelido de “bicho carpinteiro”

3 Para saber mais acesse: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-07-14/conferencia-adverte-sobre-uso-indiscriminado-de-estimulantes-por-criancas-e-adolescentes>. Acesso em: 8 jun. 2013.

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ou coisa parecida. Na idade pré-escolar,

estas crianças mostram-se agitadas, mo-

vendo-se sem parar pelo ambiente, me-

xendo em vários objetos como se estives-

sem “ligadas” por um motor. Mexem pés e

mãos, não param quietas na cadeira, falam

muito e constantemente pedem para sair

de sala ou da mesa de jantar.

Elas têm dificuldades para manter atenção

em atividades muito longas, repetitivas ou

que não lhes sejam interessantes. Elas são

facilmente distraídas por estímulos do am-

biente externo, mas também se distraem

com pensamentos “internos”, isto é, vivem

“voando”. Nas provas, são visíveis os erros

por distração (erram sinais, vírgulas, acen-

tos, etc.). Como a atenção é imprescindível

para o bom funcionamento da memória,

elas em geral são tidas como “esquecidas”:

esquecem recados ou material escolar,

aquilo que estudaram na véspera da prova,

etc. (o “esquecimento” é uma das principais

queixas dos pais). Quando elas se dedicam

a fazer algo estimulante ou do seu interes-

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se, conseguem permanecer mais tranquilas

(ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DO DÉFICT DE

ATENÇÃO, 2013, grifo nosso).

A respeito disso, ocupa-se com o estudo da sen-

sibilidade do corpo na relação direta com os obje-

tos do mundo também Merleau-Ponty4 (2012), que

estabelece como campo teórico a fenomenologia,

compreendendo o uso físico do corpo como ma-

nifestação e produto da linguagem. Aproximando-

-se já dos estudos que referenciam o corpo à alma,

Merleau-Ponty (2012) organiza-se em torno de uma

“ideia nova de expressão e da análise dos gestos ou

do uso mímico do corpo” (LEFORT, 2012, p. 11).

Apesar de antemão haver o afastamento do

campo teórico que ocupo deste ocupado por Mer-

leau-Ponty (2012), interessa-me o que o autor es-

creveu em “a expressão e o desenho infantil”, capí-

tulo integrante do livro “a prosa do mundo”. Numa

narrativa encadeada num fôlego, Merleau-Ponty

debate criticamente a visão objetivista instalada no

homem adulto que compreende que a expressão

deve ser representativa do mundo. Diz Merleau-

-Ponty (2012, p. 240):

4 Vale destacar que o autor, durante a década de 1950, colocou-se a subverter a própria fenomenologia, produzindo seus manuscritos singularizando sua produção de modo a não mais constar do campo fenomenológico.

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Estamos convencidos de que o ato de expri-

mir, em sua forma normal ou fundamental,

consiste, dada uma significação, em cons-

truir um sistema de signos tal que a cada ele-

mento do significado corresponda um ele-

mento do significante, isto é, em representar.

Tomo de empréstimo o posicionamento de

Merleau-Ponty sobre esta visão objetivista. Para

mim, a exigência de objetividade no comportamen-

to do sujeito, excepcionalmente da criança, apaga

da sua vivência os contornos que não estão linear-

mente, ou “planimétricamente” (como escreveu o

autor) definidos.

É sobre esse contorno, engendrado no corpo,

que pretendo debater ao longo das próximas páginas.

2 A ESCOLA DE EDUCAÇÃO INFANTIL CONTEMPORÂNEA: A PEDAGOGIZAÇÃO DO CORPO

Inicio esta sessão convidando o leitor a me

acompanhar na descrição de acontecimentos hu-

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manizatórios do corpo partindo do desenvolvimen-

to organofuncional do ser-humano para que possa-

mos, mais à frente, remeter à relação do corpo com

a aprendizagem da escrita no processo inicial de al-

fabetização, conforme elaboro apoiada nos dispo-

sitivos teóricos e analíticos da Análise de Discurso.

Como profissional da ciência da saúde em íntima

relação com a ciência da linguagem, não nego a im-

portante existência do aparelho orgânico e funcional

do homem. Porém, investindo no estudo da lingua-

gem envolta por um aparato científico da Análise

de Discurso, como posto por Orlandi (1996, 2000,

2004) e Pêcheux (1997a, 1997b), não é possível não

considerar que o aparelho orgânico, que permite ao

homem especificidades quando comparado a outros

animais, está investido de sentidos no funcionamen-

to social. Assim, conhecer o corpo humano como

se apresenta é importante para a compreensão dos

mecanismos e dos modos como o homem se rela-

ciona no mundo e com seus pares, mas não se deve

perder de vista que este corpo significa.

No percurso do desenvolvimento humano, as-

sim como podemos apreender da leitura dos livros

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de Raff e Levitzkky (2011) e de Dangelo e Fattini

(2007), temos que no desenvolvimento do corpo o

homem nasce, cresce, envelhece e morre. Nessa li-

nha natural e social da vida, de modo específico, a

espécie humana precisa de mais tempo, comparado

a outras espécies animais, para que suas estruturas

físicas se desenvolvam numa relação de aprendiza-

gem de movimentos globais e específicos. Como

exemplo, no desenvolvimento evolutivo, o homem,

ao nascer, mantem-se deitado, sem controle volun-

tário dos movimentos corporais. Num estágio pos-

terior, é próprio desta espécie animal que o corpo

aprenda a rolar, arrastar e sentar para, somente após

estas etapas, iniciar o processo de locomover-se

abaixado na posição de quatro membros, levante-se

e passe para a marcha bípede ereta, posição deseja-

da para o corpo humanizado, social.

A capacidade de execução de atividades moto-

ras sociais, como andar e correr, alimentar-se com

o uso de talheres e utilizar-se de tecnologias como

o lápis e o computador é resultante da aprendiza-

gem junto a práticas do grupo social e cultural do

qual dois ou mais indivíduos da espécie são com-

ponentes.

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Quero apontar com este material que esta des-

crição permeia, ainda nos dias de hoje, a construção

do currículo da educação infantil no Brasil. Histori-

camente, a educação infantil origina-se voltada às

necessidades do cuidado a criança órfã e, nas pro-

ximidades dos anos 1930, ao cuidado da criança de

pais que precisaram inserir-se no mercado de tra-

balho em período integral (KUHLMANN JR., 2000;

OLIVEIRA, 1988). Desde então, até os dias atuais,

a educação infantil brasileira vem buscando supe-

rar a concepção educacional assistencialista que há

muito vem realizando. Porém, compreendo que os

esforços realizados vem provocando novos e peri-

gosos sentidos da prática daquilo que, anteriormen-

te, era realizado no período do “jardim da infância”.

A produção científico-acadêmica sobre a es-

cola contemporânea (ARAÚJO, 2002; BRIGHENTE;

MESQUIDA, 2011) revela que, de modo diferen-

te das práticas preparatórias para o aprendizado

da língua realizadas até os anos finais da década

de 1980 e início da década de 1990, em meio às

práticas da pedagogização do corpo, atualmente

a escola de educação infantil realiza práticas pre-

paratórias a fim da inibição de qualquer alteração

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do aspecto comportamental humano que possa

conturbar a linha imaginária do discurso pedagó-

gico, ou que imaginariamente enfraqueça as pos-

sibilidades do ensino e da aprendizagem no espa-

ço escolar, de modo que mais do que o ensino do

conhecimento de um campo do saber, professores

vêm questionando e transportando5 instrumentos

de disciplinas de áreas longínquas, como a neurop-

sicologia, sobre práticas humanizatórias do corpo,

solicitando a intervenção por meio de práticas que

visam organizar e disciplinar o sujeito para os ritu-

ais sociais e de trabalho.

Desse modo, crianças que apresentam com-

portamento diferente do que é autorizado institu-

cionalmente, são submetidas a práticas higienizató-

rias e humanizatórias para que haja padronização do

comportamento corporal.

Pude, em trabalho anterior (BARROS, 2012a),

debater sobre esta escola que, voltada para a pre-

paração de sujeitos capacitados para a nova ordem

mundial, constrói currículos que objetivam a forma-

ção para o mercado de trabalho em prol do desen-

volvimento nacional e aponto, apoiada por proces-

5 Para compreender as noções de transporte e transferência de sentidos de um discurso para o outro, ver Orlandi (2001, p. 153).

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235

sos analíticos discursivos, que a educação galgada

numa política perversa que negligencia os proces-

sos de constituição do sujeito, aloca-o num campo

de significação do fazer, mas não do saber.

Penso assim porque concordo com Orlandi

(2004, p. 149) sobre os motivos de a escola assim

significar e elaborar sua práxis: “a Escola significa

como significa porque está onde está, ou seja, faz

parte da cidade”, e por assim ser, “as relações de

sentido materializadas pela Escola dão indicações

de como, em sua textualização, ela significa o urba-

no” (ORLANDI, 2004, p. 152).

Considerando, no interior do campo teórico da

Análise de Discurso, que os processos de subjetiva-

ção são afetados pelas condições de produção (OR-

LANDI, 2000), tomo a linguagem funcionando na

relação ampla com a sociedade, estando a memória

discursiva (o interdiscurso) atravessando a forma-

-material (ORLANDI, 1996). Desse modo, a materia-

lidade do sujeito é marcada pelos acontecimentos

da escola contemporânea sob uma moldura dura de

um corpo humanizado em demasia, fadado ao apa-

gamento dele mesmo.

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236

O Estado, seguro sobre as proposições acerca

dos objetivos da Educação no Brasil, elabora a Lei

no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabe-

lece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a

partir da qual diversas outras resoluções foram es-

critas, como a Resolução nº 5, de 17 de dezembro

de 2009 (BRASIL, 2010), que institui diretrizes cur-

riculares nacionais para a educação infantil. Neste

documento, a educação brasileira funda a escola

como espaço de possibilidade de desenvolvimento

integral da criança, voltando as atividades escolares

na educação infantil para o desenvolvimento de es-

truturas cognitivas, preparando o corpo para o uso

da língua.

Como forma de aprofundamento, o Ministé-

rio da Educação e a Secretaria de Educação Bási-

ca formulam um manual de orientação pedagógica

voltado a orientar educadores para a prática junto

a crianças de 0 a 5 anos de idade. Chamado “brin-

quedos e brincadeiras de creches” (BRASIL, 2012), o

manual é construído de modo a fornecer estratégias

que viabilizem a experiência corporal da criança na

relação com objetos de conhecimento, conforme

privilegia a teoria sócio-interacionista.

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237

A feitura de resoluções, regimentos e manuais

que privilegiam as práticas corporais na escola apon-

tam para uma proposição: as práticas pedagógicas

com o corpo têm sido elaboradas para fins dos pro-

cessos educacionais, considerando o corpo um ins-

trumento das práticas didáticas, tendo-o como fim,

como apresentado nos documentos sobre os quais

me debruço. Seus autores elaboram atividades que

visam o desenvolvimento corporal para o movimento

adequado com o que, evolutivamente, é comum à

espécie humana, com apontamento de diretrizes que

se voltam para o desenvolvimento integral evolutivo

(Recorte 1), assim como, incluem especificações de

atividades que podem e devem ser realizadas com

crianças de determinadas faixas-etárias (Recorte 2).

Recorte 1 – Resolução no 5 – diretrizes curriculares nacionais

para a educação infantil

Fonte – Brasil (2010)

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Reconhecendo que a filiação teórica estabele-

cida para a elaboração dos documentos citados está

no interior do sócio-interacionismo, por uma questão

de base teórica, necessariamente, as atividades foram

pensadas para serem realizadas na articulação dos as-

pectos biológicos (fisiologia do corpo humano), psico-

lógicos (cognição, emoção e afeto) e antropológicos

(histórico, social, cultural e político) da espécie-huma-

na. Nesse sentido, apontam para uma suposição de

“integralidade” a ser assumida nos processos didáticos,

de modo sequencial e circular (Recorte 1) para que

todos os aspectos adjacentes ao ser-humano fossem

alçados visando o pleno desenvol-

vimento do indivíduo por meio da

aprendizagem (BARROS, 2004).

Recorte 2 – Manual de orientação

pedagógica – brinquedos e

brincadeiras de creche

Fonte – Brasil (2012)

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À esta articulação didática integralizadora dos

processos que envolvem o indivíduo para a sua hu-

manização, chamarei de “pedagogização do cor-

po” (ARAÚJO, 2002), por ser esta uma prática nor-

malizadora que visa a instrução e a reprodução do

conhecimento, e que vem ocorrendo por meio do

aproveitamento das possibilidades de articulação de

campos teóricos e práticos em nome da integrali-

dade no seio da teoria sócio-interacionista, com

a inclusão de conhecimentos recortados da neu-

ropsicologia, sob a máscara de auxiliar e facilitar o

desenvolvimento “e o funcionamento de recursos

cognitivos e às múltiplas conexões que o cérebro

tece através de uma rede complexa de neurônios

[...]” (VALLE; CAPOVILLA, 2011, p. 35).

Esquema 1 – Figura esquemática da articulação dos aspectos

humanos na teoria sócio-interacionista

 

Fonte – A autora 2013

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Os autores dos documentos governamentais

aqui em evidência relacionam as possibilidades de ati-

vidades corporais com o estudo do desenvolvimento

humano, que consiste em detectar os motivos que

favorecem o crescimento humano e como ele muda

durante a vida (FIGUEIRAS; SOUZA; RIOS; BENGUI-

GUI, 2005), incluindo, nos processos didáticos, técni-

cas que moldam e humanizam o corpo, preparando-

-o por meio do que chamam de atividades complexas

para o aprendizado da leitura e da escrita.

Conforme mostrado no Recorte 1, as atividades

complexas devem ser realizadas considerando “a

indivisibilidade das dimensões expressivo-motora,

afetiva, cognitiva, linguística, ética, estética e so-

ciocultural da criança”, assim como apontado por

Meur e Staes (1989) sobre os princípios da psico-

motricidade: Estrutura: desenvolvimento do seu

“eu” corporal; localização e orientação no espaço;

orientação temporal. Fundamentos: atividades mo-

toras: são as atividades globais, de todo o corpo;

atividades sensório-motoras: são as sensações/sen-

timentos relacionados a manipulação dos objetos;

atividades percepto-motoras: análise profunda das

funções mentais intelectivas (atenção, percepção,

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concentração e memorização) e motoras, tais como

a análise perceptiva, a precessão de representação

mental, determinação de pontos de referência.

É nesse lugar de possível intersecção entre os

campos teóricos e de atuação que a neuropsicolo-

gia adentra-se à escola, com a promessa da facili-

tação da pedagogização do corpo, com aparatos e

instrumentos que prometem a redução do fracasso

escolar com o avanço e a valorização de aspectos

neuropsicomotores. Tais aparatos teóricos e práticos

geralmente são lançados por meio do estudo da psi-

comotricidade, que se volta para o entendimento e

para a prática sobre a relação existente entre a mo-

tricidade, a mente e a afetividade visando facilitar a

globalidade do corpo humano (MEUR; STAES, 1989).

Para mim, tais promessas acabam por 1) negli-

genciar o que é próprio do homem – a linguagem;

2) e o que é próprio da educação escolar – dispor de

instrumentos para a aprendizagem do mundo pelo

homem.

A atividade de treino cognitivo disposta à edu-

cação num modelo biológico é o exemplo do que

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já apontamos com Merleau-Ponty (2012) e a objeti-

vidade do traço. É a pedagogização do corpo leva-

da ao extremo, num sufocamento do que permite a

linguagem ao homem – empenhar-se nos sentidos

circulantes do mundo.

É a pedagogia ditando negligentemente as per-

missões de comportamento do humano, uma vez

que negativa os próprios objetivos da educação.

Nesse sentido, no interior da escola, o uso de tec-

nologias como o lápis, o papel e a borracha; o com-

putador e as tecnologias digitais; a dança, a música

e o canto, limita-se a representar o mundo pelo de-

senho de linhas pré-definidas; pela objetividade me-

tálica e matemática dos computadores; da partitura

de um movimento, planimétricamente.

3 DO CORPO BIOLÓGICO AO CORPO-SENTIDO

No esforço de adequar o corpo da criança aos

processos didáticos escolares com a finalidade de

deixá-lo pronto para a execução de atividades que

demandarão maior potencial cognitivo, como pen-

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sam autores sócio-interacionistas e construtivistas,

a escola silencia o que permite a irredutibilidade do

humano à animalidade – a linguagem (HENRY, 1992).

Tomando a linguagem como o principal ele-

mento da especificidade do humano, devo consi-

derar os processos discursivos que o subjetivam e,

conforme elabora Orlandi (2012), a interpelação do

sujeito bio-psico pela língua e pela ideologia em uma

forma-sujeito histórica capitalista que, afetado pelo

Estado, identifica-se com uma formação discursiva

para individua(liza)r-se. A linguagem, que é o funcio-

namento dos sentidos na relação entre o dito e o não

dito, envolve o sujeito, a forma-material e o aconte-

cimento, transformando as condições de produção

de um espaço específico (BARROS, 2012a; ORLANDI,

2000; PÊCHEUX, 1997b). E é em espaços simbólicos

que se dão os processos de individua(liza)ção do su-

jeito para a forma sociopolítica. Sendo assim, tomo a

Escola como espaço simbólico para a consideração

de determinadas condições de produção.

A Instituição Escolar, construída sobre alicerces

políticos e ideológicos determinantes, marcada por

sentidos circulantes numa sociedade urbana capi-

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talista, constrói instrumentos e elabora a práxis pe-

dagógica voltada a uma ideia de que se tem sobre o

sujeito da escola. Nesse espaço6 estão em funciona-

mento os mecanismos de imaginário e de antecipa-

ção sobre a constituição dos sujeitos e dos proces-

sos discursivos.

Sendo o imaginário um mecanismo partícipe

de uma conjuntura social na relação com o modo

como as relações sociais se inscrevem na história

e são regidas por relações de poder, materializada

no mecanismo de antecipação, estabelece condi-

ções para que o sujeito aproxime-se de formações

discursivas sem que necessariamente identifique-se

com elas num movimento circular tal que, na cons-

trução pedagógica na escola de educação infantil

passa-se a estabelecer uma relação de organização

do comportamento, por força do Estado, afetan-

do tanto os sujeitos que elaboram (os professores)

quanto os sujeitos que são submetidos aos proces-

sos pedagógicos (os alunos) aos sentidos da capaci-

dade e da produção numa instância escola-sujeito-

-sociedade.

6 Como em todos os espaços

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245

Sobre a ideação do corpo, estrutura privilegiada

nesse modelo pedagógico de atuação na educação

infantil, passa despercebida a ideia de que ele é par-

te integrante de processos que demandam sentidos,

e que as temidas atividades de escrita, que têm no

corpo o movimento do traço, exigem tão ou mais

esforços simbólicos que as práticas de adequação

de movimento para a produção da letra.

O corpo em movimento, para mim, é elemen-

to constitutivo enquanto forma-material significan-

te, e que merece aprofundamento na elaboração

no modo de compreender o aprendizado da escri-

ta, enquanto possibilidade de se incluir a noção de

gesto discursivo elaborado no corpo, afetado pela

instituição educacional de ensino infantil.

Para a compreensão desse mecanismo simbó-

lico, incluo no debate um recorte (Recorte 3) que

aponta para uma regularidade nos documentos go-

vernamentais analisados, e que não somente em-

penha no corpo as práticas didáticas-pedagógicas,

mas especifíca os “processos de apropriação” dos

objetos de conhecimento pela percepção.

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Recorte 3 – Diretrizes curriculares nacionais para educação

infantil

Fonte – Brasil (2010, p. 18)

A educação infantil institucionalizada no Brasil,

tomando o corpo como lugar privilegiado para os

processos de ensino e de aprendizagem, apresen-

ta uma constância na elaboração de práticas para

o desenvolvimento das estruturas cognitivas através

do movimento corporal.

A escrita desses documentos leva em conside-

ração a história do desenvolvimento corporal hu-

mano, do nascimento à sua morte. Considera que

o homem percebe o mundo por meio da visão, da

audição, do tato e do paladar, e são esses os primei-

ros movimentos do sujeito para a “apropriação do

mundo e do conhecimento”.

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Nesses documentos encontramos uma aproxi-

mação entre “processos de apropriação” e órgãos da

percepção humana, numa relação de causa e efeito.

O corpo, ainda biológico, é um organismo posto em

relação com os objetos do mundo. Objetos de co-

nhecimento. Com o desenvolvimento organo-fun-

cional, o homem passa a realizar movimentos/gestos

para se relacionar com o mundo de modo que esses

movimentos serão significados por seus pares (fa-

miliares, professores, cuidadores) e, assim, tanto no-

vas estruturas cerebrais e mentais serão construídas

para a fixação da atenção e a construção da memória

(funções cognitivas), como os processos de signifi-

cação passarão a acontecer. Nesse lugar de interpre-

tação, processo de significação é processo cognitivo,

estabelecendo relação entre signo e significante num

movimento de representação direta do mundo.

Este modo de compreender o corpo, como já

disse anteriormente, está relacionado ao campo

teórico do sócio-interacionismo (BARROS, 2004)

no qual a história biológica do indivíduo está ligada

ao desenvolvimento de funções cognitivas como a

atenção, a capacidade de percepção e a memória,

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e o desenvolvimento de funções superioras como

o pensamento e a linguagem, compreendendo que

“o desenvolvimento psicológico dos homens é par-

te do desenvolvimento histórico geral da espécie”

(VIGOTSKY, 1996, p. 80).

Meu afastamento desse modo de pensar o ho-

mem no mundo não está em negar o aparato anáto-

mo-biológico do ser humano, mas de compreender

que a história do sujeito não tem origem localizada

no nascimento do corpo biológico e nem está pos-

ta em paralelo a processos psicológicos subjetivos.

Para mim, o homem conhece o mundo ao passo

que é parte do funcionamento da linguagem, en-

volto por processos de significação e do gesto do

corpo sobre as coisas.

Considero que o sujeito “é sempre já sujeito

porque é afetado pela língua, pela história e pela

ideologia. Este é o sujeito assujeitado, descentrado

do seu poder sobre os sentidos. É o sujeito do dis-

curso” (BARROS, 2012b, p. 88)7.

Compreendendo o sujeito no interior da Análise

de Discurso (AD), não é possível assumir fragmen-

7 Em leitura dos textos de Pêcheux (1997b) e Orlandi (2001).

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tos do corpo para a elaboração de análise ou para

a construção de práticas voltadas ao desenvolvi-

mento corporal puramente. Considerar o corpo do

sujeito na AD é pensar o corpo constituinte do ho-

mem, um Ser da linguagem (BARROS, 2012; HENRY,

1992), do simbólico e das relações; isto é, um corpo

que significa, qual denomino corpo-sentido (BAR-

ROS, 2012b).

Tomando o conceito de corpo-sentido como

um corpo que é investido de sentidos pelas con-

dições de produção mobilizando-se para significar

num gesto discursivo (BARROS, 2012b), penso que

o aprendizado da escrita perpassa pela significa-

ção do movimento do corpo enquanto conceito já

deslocado para o campo teórico do discurso como

objeto.

Considero que o gesto da escrita é material-

mente atravessado pela história e ideologicamen-

te interpelado pela língua e pela ideologia. E como

materialidade heterogênea da linguagem não pode

ser pensada fora da materialidade das condições de

produção e da conjuntura em que aparece (ORLAN-

DI, 2004).

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250

Meu percurso de análise e interpretação vem

mostrando a escola com suas práticas e entornos

teóricos balizada por fundamentos integralizado-

res do sujeito, o que instaura uma condição de

produção para o ensino da escrita voltado para a

pedagogização do corpo em torno da adequação

de movimentos preparatórios das vias perceptivo-

-cognitivas, esvaziados de sentidos, para um fazer

sem saber. Sob a feitura do ensino esvaziado pelo

movimento do corpo biológico, alarga-se uma po-

lítica educacional tecnicista, atrelando a pedagogia

à um modelo de ensino de adaptação do sujeito às

condições de um mercado de trabalho (PFEIFFER,

2010).

No lugar da prática pedagogizante do corpo

não há como considerar, conforme Orlandi (2001)

escreve, na sociedade contemporânea, que “a le-

tra é o traço da entrada [do sujeito]8 no simbólico.

Traço que marca o sujeito enquanto sujeito, em sua

possibilidade de autoria, frente a escrita” (ORLANDI,

2001, p. 204). O gesto do traço, da feitura do dese-

nho ou da linha da letra marca o espaço simbólico

da posição discursiva ocupada socialmente pelo su-

jeito, instaurando uma relação de valores sociais e 8 Inserção minha.

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políticos entre os sujeitos e os acontecimentos. E

marca com singularidade o corpo-sentido, instau-

rando possibilidades.

Nesse lugar, o gesto do traço pelo sujeito ins-

taura possibilidades de significação, e desloca o fa-

zer pedagógico para uma práxis que permite ao su-

jeito movimentar-se significar, passear por cadeias

de significação (interdiscurso).

4 O SUJEITO DA ESCOLA CONTEMPORÂNEA

Venho trabalhando há algum tempo com os

acontecimentos da escola contemporânea. A res-

peito disso, o que vem se avolumando de modo a

se sobrepor à estrutura e até mesmo aos processos

didáticos e pedagógicos, para mim, é o sujeito que

ocupa o interior da escola, essencialmente o sujei-

to-aluno.

Penso que isso acontece não apenas pela razão

de que a escola não existiria sem o aluno, mas prin-

cipalmente porque o aluno da escola contemporâ-

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nea não é o mesmo de há 10 anos. Para além do

sujeito disciplinado, pedagogizado, a escola con-

temporânea recebe e fabrica o sujeito medicaliza-

do, que sofre implicações médicas e terapêuticas

objetivando a constatação de alterações anátomo-

-biológicas e fisiológicas às dificuldades de apren-

dizagem apresentadas no processo de ensinagem e

de aprendizagem.

O sujeito medicalizado sofre a transformação

das suas condições de Ser-Humano em “coisas a

serem tratadas e terapeutizadas” como resultado da

busca de familiares voltados à adequação do com-

portamento dos filhos em razão de não se adapta-

rem às regras socialmente instauradas.

Geralmente, as queixas familiares e escolares

são circulares em torno do que apresentei, na intro-

dução desse texto, como características da TDAH:

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Quadro 1 – Quadro comparativo entre as características do

TDAH e as críticas ao transtorno fictício

Características do TDAH (Cf. ABDA, 2013)

Crítica ao transtorno fictício

São agitadas, inquietas. Característica comum à infância

Dificuldade para manter atenção em atividades muito longas, repetitivas ou que não lhes sejam interessantes.

O que geralmente não interessa não é capaz de manter a atenção.

Quando elas se dedicam a fazer algo estimulante ou do seu interesse, conseguem permanecer mais tranquilas.

É mais fácil manter atenção àquilo que é aprazível.

Fonte – Associação Brasileira do Défict de Atenção (2013)

Como se vê, é a instauração do estatuto clínico

na escola, deslocando os processos pelos quais de-

veriam funcionar a escola, com a subserviência da

prática clínica sobre o corpo.

Nesse sentido, elaboram-se manuais didáticos

de modo a adequar o corpo aos regimentos sociais.

Àquele que não se adequa está reservada a exclusão.

Ao afirmar isto, faço um atravessamento daquilo

que Pfeiffer (2001, p. 29) elabora a respeito do “su-

jeito urbano escolarizado” e sobre como

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o processo de escolarização e o de urba-

nização funcionam, ambos, como instru-

mentos, do Estado, de normatização, esta-

bilização, regulamentação dos sentidos do

sujeito e dos sentidos para o sujeito ocupar

a cidade.

Ao circularem os sentidos da normatização, da

estabilização e da regulamentação dos sentidos,

está posto em funcionamento pelas condições de

produção uma prática homogeneizante que implica

no apagamento dos sujeitos que não se adequam,

ou que não estão aptos por uma situação de defici-

ência (PFEIFFER, 2001).

Como solução, de modo falho e ainda mais

excludente, o Estado elabora novos projetos de lei

(PL) que visam à diminuição do número de alunos

que não conseguem se adaptar ao sistema ideo-

logicamente estabilizado. Exemplo disso é o PL no

7.081/2010 (GABRILI, 2010), que dispõe sobre o

diagnóstico e o tratamento do transtorno do défi-

cit de atenção e hiperatividade na educação básica,

aprovado recentemente (BRASIL, 2013) pela Câmara

dos Deputados.

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O referido projeto garante diagnóstico e trata-

mento à criança na escola, assim como, a formação

do professor para a realização da identificação de tais

transtornos. Conforme delibera, os sistemas de ensi-

no devem assegurar que as crianças assim diagnosti-

cadas tenham acesso aos recursos didáticos adequa-

dos ao desenvolvimento de sua aprendizagem.

Ora, o que há mais a ser feito se o que mais se

têm elaborado são manuais que visam à pedagogi-

zação do corpo em prol da adequação cognitiva para

o desenvolvimento da aprendizagem, em especial,

visando a totalidade de um sujeito bio-psico-social?

Patto (1990), há 23 anos já apontava para as

condições de produção escolares mal elaboradas,

que produziam (e produzem) a indisciplina, ou o

mau comportamento de crianças num sistema de

ensino que tinha (e tem) como foco a padronização

do ensino.

Meu estranhamento, mais do que saber que dife-

rentes estudos já apontavam para a situação que con-

temporaneamente vivenciamos na escola, está em

saber que o campo teórico sobre o qual está funda-

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mentada a educação básica no Brasil, como já apontei

anteriormente, apregoa que de modo cíclico o saber,

a aprendizagem e o desenvolvimento acontecem e se

elaboram de maneiras diferentes pelos sujeitos.

5 DO APRISIONAMENTO À SUBVERSÃO: CONSIDERAÇÕES FINAIS

O traço é um gesto de significação do corpo no

mundo. É a entrada do sujeito nos processos de sig-

nificação numa relação com o Estado.

Venho dissertando, ao longo desse texto, que

a escola é um espaço de significação onde estão

instauradas determinadas formas materiais e condi-

ções de produção, no qual circulam sujeitos que são

interpelados pela língua e pela ideologia.

Enquanto espaço simbólico singular para deter-

minados gestos do corpo sobre o próprio espaço,

sobre o próprio corpo e sobre os objetos de conhe-

cimento, a escola é espaço material, real, onde o

corpo encontra lugar para uma expressão possível.

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Porém, a escola atual, que tem no corpo a marca

da uma práxis pedagogizante do controle, da ade-

quação, da preparação de processos cognitivos para

o desenvolvimento da aprendizagem, pouco permi-

te ao sujeito se expressar. Como efeito, o corpo se

rebela, escapa, encontra brechas que apontam para

aquilo que está ali preso, contido. Para mim, esses

são gestos que quebram com a ordem totalizadora

da pedagogização do corpo, da ordenação, deixando

aparecer o que há muito vem sendo desconsiderado.

Se enquanto Seres Vivo o homem é classifica-

do como animal, e a respeito dele é desconsiderado

o que o retira da instância da animalidade – a lin-

guagem, é como “bicho” que ele se faz expressar.

Ou, como se tivesse bicho em seu corpo, como as

crianças que, “frequentemente têm apelido de “bi-

cho carpinteiro” ou coisa parecida” (ASSOCIAÇÃO

BRASILEIRA DO DÉFICT DE ATENÇÃO, 2013).

Assim como na descrição daquilo que, de modo

desavisado e descomprometido com o sujeito in-

sistem dizer da existência de um transtorno fictício,

como é o TDAH, a desconsideração da linguagem

e dos processos discursivos internos à língua pro-

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movem, pedagogicamente, o retorno do sujeito à

animalidade, tendo o corpo como princípio e fim da

aprendizagem.

É a linguagem que permite ao homem significar.

E penso que é no real da língua que se estabelecem

estas possibilidades. Como aponta Pêcheux (1997a),

a língua é relativamente autônoma, com leis inter-

nas próprias.

É, pois, sobre a base dessas leis internas que

se desenvolvem os processos discursivos, e

não enquanto expressão de um puro pen-

samento, de uma pura atividade cognitiva,

etc., que utilizaria “acidentalmente” os sis-

temas linguísticos (PÊCHEUX, 1997a, p. 91,

grifo do autor).

Nesse sentido, penso que tomar o corpo en-

quanto corpo-sentido é primordial para os proces-

sos de ensino e aprendizagem na esfera da educa-

ção infantil, elaborando-se uma práxis pedagógica

sobre um corpo que significa enquanto parte de

uma instância maior chamada sujeito, que se elabo-

ra em meio a processos discursivos.

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O traço marca o sujeito da contemporaneida-

de, de ser-homem-no-mundo-hoje em sociedades

que têm a letra como estatuto de civilidade. Toman-

do a singularidade das condições de produção do

espaço urbano, temos que na materialidade da lín-

gua escrita estão inscritos os processos sociais (OR-

LANDI, 2001a; SILVA, 1999). Ao apropriar-se dessa

materialidade, a cidade passa a estabelecer outras

relações com o sujeito, permitindo-lhe ocupar lu-

gares enunciativos enquanto posição-sujeito.

Isso porque, na perspectiva discursiva, a es-

crita especifica a natureza da memória, ou

seja, ela define o estatuto do interdiscurso

(o saber discursivo determina a produção

dos sentidos e a posição dos sujeitos), defi-

nindo assim, pelo menos em parte, os pro-

cessos de individualização do sujeito (OR-

LANDI, 1999, p. 8).

Isto posto, o traço passa a ser significado en-

quanto gesto, como parte da corporalidade da lin-

guagem (ORLANDI, 2001a), e não como efeito de

um movimento corporal. Enquanto gesto, dele e

sobre ele emanam sentidos, e marca uma posição.

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No traço, penso, ao sujeito está ofertada, no in-

terior da escola, a significação. Ao traçar inicialmen-

te de modo livre, na descoberta dos significados

latentes, o sujeito pode subverter àquilo que está

posto para ele no interior de uma instituição mar-

cada por uma língua, na prática de uma pedagogia

fadada à repetição, responsabilizada pela produção

da consciência de unidade nacional.

Certa vez, ainda no período da minha gradua-

ção em fonoaudiologia, enquanto eu desenhava e

pintava durante meu descanso na clínica-escola,

recebi uma provocação de uma querida e impor-

tante professora9, que me disse: – O que importa é

o relevo!

Encerro esse texto na ânsia de que os relevos

revelados por tantos alunos da educação infantil no

território nacional sejam adequadamente conside-

rados e interpretados para que, num gesto do cor-

po-sentido, possam expressá-los por meio do traço.9 A Professora a quem me refiro é a Fga. Dra. Ivone Panhoca, pela qual já há tantos anos venho nutrindo sentimentos de respeito e gratidão.

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* Doutora em Educação Física. Professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

eliana luCia Ferreira*

EDUCAÇÃO FÍSICA: EM BUSCA DE UMA NOVA A RE-SIGNIFICAÇÃO

Eu sou muitos, tem-se a impressão de que se trata da mesma

pessoa porque o corpo é o mesmo. De fato, o corpo é um, mas os “eus”

que moram nele são muitos. rubeM alveS

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1 INTRODUÇÃO

Introduziremos nossa reflexão sobre a questão

da inclusão nas aulas de Educação Física, formulan-

do algumas observações a respeito do espaço es-

colar e da relação corporal entre os sujeitos que a

praticam. Interessa-nos, sobretudo, pensar como

corpos materialmente diferenciados podem fazer

parte deste espaço marcado pela pluralidade cor-

poral que potencializa e valoriza sujeitos diferencia-

dos pelas (grandes) habilidades corporais.

A palavra inclusão traz o sentido de admitir, per-

mitir a quem chegou atrasado estar junto, passando

a ser compreendido/incorporado por um determi-

nado grupo já existente. Ao contrário da palavra in-

clusão tem-se presente a exclusão, que traz o senti-

do a priori de incompatível.

A primeira vista, ambos termos implicam ambi-

guidades de significações, mas por outro lado, eles

designam características em comum, pois inclusão

e exclusão, embora possuem usos diversos, ambos

invocam pertencimento social.

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Nesta perspectiva ao buscarmos o entendi-

mento da palavra inclusão escolar, percebe-se no

implícito que as pessoas com deficiência, que eram

consideradas incompatíveis socialmente, trazem

consigo o sentido da diferenciação. No entanto, é

explícito que é na diferença que o contexto social

tem apontado avanços indistintamente, resguar-

dando assim, o direito à diferença na igualdade de

direitos. O que está posto aqui, é que é necessário

Diferenciar, excluir para instituir, Incluir.

O processo de inclusão escolar está sendo defi-

nido num espaço/lugar resultante das articulações

e das desarticulações entre as multiplicidades cul-

turais e sociais. numa tensão/distensão emaranhada

de diferenças e semelhanças, disputas e alianças.

Ao longo da história, muitos dos espaços so-

ciais foram negados à pessoa com deficiência e,

entre eles, “o espaço escolar”. Entendendo a real

necessidade de mudança nesse quadro, a legis-

lação de atendimento educacional especializado

nos estabelecimentos de ensino norteada pela Lei

de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB

no 9.394/96) e pela Política Nacional da Educação

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Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (Por-

taria nº 555/2007), assim como pelas Leis no 10.048

e 10.098 de 2000, estabeleceu normas gerais e cri-

térios básicos para a promoção da acessibilidade e

da inclusão das pessoas com deficiência no âmbito

social, cultural e educacional.

Sendo assim, a presença de pessoas com defi-

ciência na rede de ensino é assegurada pelos direi-

tos à igualdade de oportunidades e à participação

social (AMARAL, et al, 1998, p.3). No entanto, não

se trata, incluir não é apenas, garantir estar junto, o

direito ao acesso escolar, nem tão pouco garantir

ou reconhecer o direito à igualdade de oportunida-

des, mas sim, assegurar e dar condições para que a

permanência dos alunos com deficiência na escola

aconteça com sucesso, num processo constitutivo

de respeito, equiparação e conhecimento.

No entanto, os conceitos e as concepções

equivocados sobre deficiência ainda fazem parte do

imaginário social, o que acarreta sérias atitudes de

exclusão (BISSOTO, 2013). Reside, aqui, uma segre-

gação social. Esta segregação muitas vezes passa a

fazer parte da identidade da pessoa com deficiên-

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cia, fazendo-o sentir-se impotente perante os me-

canismos sociais.

É fato que a proposta da inclusão escolar, em

muitos lugares, ainda, apresenta-se num espaço

abstrato, onde a ordem do conhecer encontra –se

em um momento de crise, rupturas, dissonâncias e

contradições em relação a ordem do fazer.

Fazer a inclusão escolar não é um aconteci-

mento singular e contingente, é pulverizar uma pro-

posta de mudança social em busca da legitimação

das mudanças culturais que se faz presente nesta

sociedade contemporânea que se sustenta e privile-

gia o diferente, o inédito, o espetacular.

Atualmente a quebra do unívoco social e a bus-

ca pelos corpos múltiplos abrem espaço para re-

pensar o espaço escolar, que esta tendo que se rein-

ventar, se reorganizar e se redefinir.

Nesta nova perspectiva, o espaço escolar das

aulas de Educação Física, estão se tornando um foro

para celebrar as diferenças corporais, oferecendo a

oportunidade de fortalecer e divulgar valores e ma-

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nifestações que perpetuam a expressão de identi-

dades, contribuindo para a promoção, valorização

e salvaguarda da cultura e do direito do cidadão se

manifestar corporalmente.

Se por um lado, tradicionalmente, as aulas de

educação física são organizadas e planejadas su-

pondo alunos homogêneos, o que deixa os alunos

com deficiência limitados no que tange aos seus di-

reitos de participação efetiva nas atividades propos-

tas (ECHEITA, 2009), onde as ações propostas ainda

estão muito determinadas pela concepção de mo-

vimento corporal padronizado.

Por outro lado a presença de corpos diferen-

ciados neste espaço antes reservado a perfeição

está suscitando implicações para uma nova propos-

ta do que seja efetivamente as atividades nas aulas

de Educação Física.

Vale ressaltar que os esportes paraolímpicos

tem se revelado como uma modalidade específi-

ca que aos poucos está se estabelecendo de forma

peculiar, como uma atividade que valoriza as desi-

gualdades corporais.

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Através dos esportes adaptados, as pessoas com

deficiência estão construindo uma nova identidade,

atrelada a uma história personificada dentro de uma

proposta coletiva, onde o preconceito, se não su-

perado é confrontado.

Sendo assim, estamos vivendo um momento em

que a sensibilidade individual, ou seja, o maior com-

prometimento dos professores de Educação Física

está estabelecendo um outro convívio coletivo, co-

laborando assim para a efetivação e participação dos

alunos com deficiência nas atividades curriculares.

Portanto, a inclusão de alunos com deficiência

nas aulas de Educação Física é uma realidade cada

vez mais marcante, mas estar junto somente no es-

porte não garante a efetivação da inclusão social.

Para que a Educação Física seja inclusiva é necessá-

rio que os professores preconizem que as atividades

corporais, são pertinentes a todos. É fundamental

que as atividades didáticas sejam dimensionadas e

para tal é essencial estabelecer objetivos coletivos.

Mas se, nesse primeiro momento social, ainda

se faz necessário desenvolver a inclusão a partir do

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já construído, proposto no projeto pedagógico tra-

dicional, faz-se necessário também, repensar a for-

ma de praticar estas atividades, buscando possibili-

dades de aprendizagem e participação empírica por

parte do aluno com deficiência, mobilizando assim,

outras formas de gestos corporais, contraponto di-

ferentes relações entre todos os alunos e com suas

memórias.

O certo é que as aulas de Educação Física não

podem ser improvisadas, necessitando desenvolver

uma prática refletida, buscando deslocar o sentido

de inocuidade e romper com o conceito de homo-

geneização das turmas escolares, almejando uma

escola que não apague a especificidade cultural dos

seus alunos, considerando os trabalhos de campo

avaliados e bem sucedidos.

Neste sentido, é importante estabelecer ativida-

des corporais que permitam e respeitem as diferen-

ças e os limites corporais individuais, incentivando

o desenvolvimento de ações motoras que levem

à participação efetiva dos alunos com deficiência,

reforçando as práticas sócio-culturais corporais,

buscando um programa exequível para fortalecer

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e expandir as vivências corporais necessárias, tanto

no meio escolar quanto no meio social. Para tal, é

necessário reunir recursos humanos, elaborar ma-

teriais que envolvam novos conhecimentos, utilizar

equipamentos tecnológicos e acessíveis e atuar em

parcerias com a comunidade escolar e familiar. Por-

tanto, é importante viabilizar o que se propõem.

É preciso ainda estabelecer, uma outra pro-

posta didática/metodológica, um eixo de direito

respeitando a diversidade como dupla estratégia de

apropriação de novos conceitos para detenção do

conhecimento, visando atender o que se determina

e projeta para o novo paradigma escolar. É preciso

então re-significar a própria educação física.

Mas, trabalhar com os conteúdos específicos da

Educação Física torna-se essencial nesta proposta

inclusiva, pois é necessário que todos os alunos te-

nham o conhecimento da base do movimento cor-

poral, da possibilidade individual de se movimentar e

das limitações de cada um. Conhecer as dimensões

corporais é conhecer o funcionamento do sujeito

(deficiente e não deficiente), deixando visível os pro-

cessos de constituição corporal de cada um e ao

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mesmo tempo, mostrando o modo que cada “um

significa corporalmente e como se significa”.

Por outro lado, o professor de Educação física

também precisa mobilizar diferentes formas de co-

nhecimento corporal a ser trabalhada, experimen-

tada e vivenciada, não só nas aulas escolares, mas

também na rotina do dia a dia do sujeito. Assim,

esse profissional não pode se ater, exclusivamen-

te, no conhecimento estabelecido e específico da

Educação Física. É preciso alargar sua compreensão

de movimento e de possibilidades corporais, pois os

problemas e soluções para uma aula inclusiva de-

pende da relação corporal que se constitui na “re-

lação” do sujeito com o seu corpo e com o corpo

dos demais.

Inegavelmente, nas aulas de Educação Física

pensadas para as pessoas com deficiência, há uma

dominância do saber sobre os esportes adaptados

em relação às demais atividades corporais. Isto de-

riva do fato de que, na década de 80 e 90, foram

constituídos muitos estudos e pesquisas sobre essa

temática. No entanto, atualmente há mais acesso à

informação e formação de novas práticas corporais,

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que estão cada vez mais difundidas e são essenciais,

além de serem o lugar de entrada para a compreen-

são de gestos corporais diferenciados, possíveis de

serem executados pelas pessoas com deficiência.

A proposta de uma escola inclusiva é absoluta-

mente necessária e precisa ser planejada em todas

as suas circunstâncias. Sabemos que não é possível

pensar em mudanças sem propor transformações e

isto se faz por re-significação, o que implica em di-

zer que, não basta propor uma escola inclusiva, mas

é necessário que os alunos “saibam e se sintam in-

cluídos”.

Por isso, as metas, objetivos e procedimentos

metodológicos nas aulas de Educação Física Inclu-

siva são fundamentais e decisivos para a busca de

uma sociedade pautada na diversidade.

Vale ressaltar que o conhecimento não é só um

conteúdo, mas um elemento estruturante do ser em

uma sociedade. Assim, a Educação Física quando

atende à manifestação e ao interesse de diferentes

alunos em terem acesso e participação efetiva nas

atividades práticas corporais, estabelece as especi-

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ficidades necessárias e as aulas ganham uma outra

dimensão que se define com mais autonomia num

sistema que permite que os alunos a “reconheçam e

se reconheçam”.

Portanto, faz-se necessário instituir uma Educa-

ção Física que reinvindica especificidades, mas rein-

vindica também, a possibilidade de ir além do que já

está padronizado. É fundamental investir, sistemati-

camente, em novas vivências corporais, buscando

historicizar uma outra cultura corporal, uma outra

discursividade.

Dessa maneira, a Educação Física se instituirá no

cenário escolar, como um dos pilares efetivos para a

Educação Inclusiva, participando e projetando sen-

tidos e ao mesmo tempo, projetando-se.

2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O acesso a um sistema educacional inclusivo

em todos os níveis pressupõe a adoção de medi-

das de apoio específicas para garantir as condições

de acessibilidade, necessárias à plena participação e

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autonomia dos estudantes com deficiência, em am-

bientes que maximizem seu desenvolvimento aca-

dêmico e social.

Com a constituição das escolas inclusivas, es-

tabeleceu-se um confronto social, educacional e

político que apresenta de um lado uma certa resis-

tência à diversidade social e por outro, uma estru-

tura de novas possibilidades de conhecimento. Essa

dualidade contraditória se faz presente no interior

das relações sociais, políticas e educacionais.

Sendo assim, o movimento da inclusão pode

ser compreendido como uma espécie de luta entre

duas vias, nos seus aspectos educacionais, individu-

ais, sociais, históricas e pragmáticas, estabelecendo

uma contradição constitutiva.

Entretanto, a inclusão escolar está longe de

cumprir o seu destino, pois ela é um “movimento

em movimento”, de ramificações em compromis-

sos individuais em prol de compromissos coletivos,

com a pretensão de resolver as insuficiências de um

sistema social, se posicionando como um desejo de

completude teórica\metodológica.

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Nesta linha de raciocínio, a Educação Física está

buscando um espaço concreto para celebrar as di-

ferenças corporais, propondo a oportunidade de

resgatar, fortalecer e divulgar valores e manifesta-

ções que perpetuem a expressão da identidade indi-

vidual, contribuindo para a promoção, valorização e

preservação da cultura e do direito do cidadão com

e sem deficiência.

Para tal, a Educação Física tem preconizado ou-

tro significado de corpo, incidindo, determinando,

prevalecendo em suas atividades, a busca de uma

Educação Física mais coletiva.

Por isso, a Educação Física (inclusiva) não pode ser

vista mais de forma unilateral, pois ela está buscando

ser desenvolvida na dinâmica do seu funcionamento.

E isto está sendo possível porque de um lado temos

o movimento corporal dizível, exequível, conhecido,

enquanto do outro temos a possibilidade da criativi-

dade do movimento que rompe com o estabelecido,

com o dominante, com o plausível. E nesta junção de

possibilidades se estabelece, se instaura, se instiga e se

promove a interlocução de “sujeitos e sentidos”, pon-

do em evidência o diferente, o impossível/possível.

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E a partir da consideração do impossível\possí-

vel, do individual\social, do exequível\criatividade e

dos interlocutores, novos conhecimentos podem se

tornarem (comuns) a todos, porém não (iguais).

E é nessa dicotomia, nas diferentes posições

do sujeito, na multiplicidade de objetivos, sentidos

e ilusões, que será possível instaurar o verdadeiro

significado da Educação Física Inclusiva, tornando-a

em conhecimento factual e tradicional, mensurável

para essa nova ordem social.

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