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Cachoeira Bahia Brasil, 21, 22 e 23 nov/2018 www3.ufrb.edu.br/eventos/4congressoculturas Disputas Simbólicas na Mídia: Análise da Cobertura do Portal de Notícias Alma Preta Durante a Copa do Mundo 2018 PINHEIRO, Jonas1 Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Brasil, < [email protected] > RESUMO O presente trabalho tem como objetivo fazer uma análise da cobertura da Copa do Mundo de Futebol da Fifa 2018 pelo portal de notícias Alma Preta, veículo de mídia negra que tem como foco a abordagem étnico/racial. No período que antecedeu, durante e após a Copa do Mundo, o veículo produziu 29 textos com uma proposta de abordagem diferenciada da mídia convencional, ao tratar, sobretudo, das seleções africanas e outras equipes que possuíam em seu plantel imigrantes ou diásporas oriundos da África. É objetivo deste artigo fazer uma análise de conteúdo das produções e levantar questões acerca do papel das mídias negras nas disputas discursivas e simbólicas com os meios de comunicação de massa. Palavras-chave: Mídia Negra, Alma Preta, Copa do Mundo 2018 1. Introdução No Brasil existe um histórico de imprensa negra e desde mesmo até antes do que é considerado oficialmente o surgimento da imprensa no Brasil, estima-se que os afro- brasileiros já se utilizavam deste mecanismo para se contrapor aos processos de subjugação pelos quais as populações negras eram submetidas no país. A historiadora Ana Flávia Pinto (2006), defende que os manuscritos espalhados pela cidade de Salvador BA, que deram origem a insurgência de base popular e negra conhecida como Revolta dos Búzios2, em 12 de agosto de 1798, seriam uma versão primária dos jornais murais, portanto, um marco do histórico da imprensa negra. Ao longo da história do país outras publicações deste segmento aparecem presentes como importante fator de resistência e luta do povo negro, não só durante a luta pelo fim da escravização, mas em outros diversos períodos. Tendo em vista que, o processo de Abolição, em 1888, não acabou com o racismo, nem tampouco com as desigualdades entre negros e 1 Mestrando em Comunicação Mídia e formatos narrativos - pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) - Graduado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela mesma instituição. 2 Conjuração Baiana e Revolta dos Alfaiates são outras terminologias utilizadas por historiadores.

Disputas Simbólicas na Mídia: Análise da Cobertura do Portal ......de acordo com o editorial, oferece assessoria de comunicação, design e programação. Em sua página na rede

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Cachoeira – Bahia – Brasil, 21, 22 e 23 nov/2018 www3.ufrb.edu.br/eventos/4congressoculturas

Disputas Simbólicas na Mídia: Análise da Cobertura do Portal de Notícias

Alma Preta Durante a Copa do Mundo 2018

PINHEIRO, Jonas1

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Brasil, < [email protected] >

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo fazer uma análise da cobertura da Copa do Mundo de

Futebol da Fifa 2018 pelo portal de notícias Alma Preta, veículo de mídia negra que tem como

foco a abordagem étnico/racial. No período que antecedeu, durante e após a Copa do Mundo,

o veículo produziu 29 textos com uma proposta de abordagem diferenciada da mídia

convencional, ao tratar, sobretudo, das seleções africanas e outras equipes que possuíam em

seu plantel imigrantes ou diásporas oriundos da África. É objetivo deste artigo fazer uma

análise de conteúdo das produções e levantar questões acerca do papel das mídias negras nas

disputas discursivas e simbólicas com os meios de comunicação de massa.

Palavras-chave: Mídia Negra, Alma Preta, Copa do Mundo 2018

1. Introdução

No Brasil existe um histórico de imprensa negra e desde mesmo até antes do que é

considerado oficialmente o surgimento da imprensa no Brasil, estima-se que os afro-

brasileiros já se utilizavam deste mecanismo para se contrapor aos processos de subjugação

pelos quais as populações negras eram submetidas no país. A historiadora Ana Flávia Pinto

(2006), defende que os manuscritos espalhados pela cidade de Salvador – BA, que deram

origem a insurgência de base popular e negra conhecida como Revolta dos Búzios2, em 12 de

agosto de 1798, seriam uma versão primária dos jornais murais, portanto, um marco do

histórico da imprensa negra.

Ao longo da história do país outras publicações deste segmento aparecem presentes

como importante fator de resistência e luta do povo negro, não só durante a luta pelo fim da

escravização, mas em outros diversos períodos. Tendo em vista que, o processo de Abolição,

em 1888, não acabou com o racismo, nem tampouco com as desigualdades entre negros e

1 Mestrando em Comunicação – Mídia e formatos narrativos - pela Universidade Federal do Recôncavo da

Bahia (UFRB) - Graduado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela mesma instituição.

2 Conjuração Baiana e Revolta dos Alfaiates são outras terminologias utilizadas por historiadores.

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brancos, desde os folhetins da Revolta dos Búzios até o momento atual, aparecem diversas

publicações que se caracterizam como imprensa/mídia negra. Um ponto em comum nas

publicações, que passam a ser mais que jornais de acordo com os avanços tecnológicos, é a

proposta de serem ferramentas de luta contra o racismo.

Referenciando-se neste histórico o portal de notícias Alma Preta surge em 2015

através do Coletivo Negro Kimpa, da Universidade Estadual Paulista (UNESP), em Bauru –

SP, município mais populoso do centro-oeste paulista e distante 326km da capital do estado,

São Paulo. Atualmente é formado por quatro jovens jornalistas negras e negros: Pedro

Borges, Solon Neto, Iacy Correia e Vinicius Almeida. O site surge de forma independente, e

seu nome deriva das discussões sobre branquitude que aconteciam no coletivo, onde os

integrantes esbarraram na ideia de “preto de alma branca”, por isso então, Alma Preta. A

atuação da agência acontece nos meios digitais e além de funcionar como portal de notícias,

de acordo com o editorial, oferece assessoria de comunicação, design e programação. Em sua

página na rede social Facebook, possui cerca de 44 mil seguidores. No seu site define-se

como uma “agência de jornalismo especializado na temática racial do Brasil”.

Em relação ao conteúdo, o site produz reportagens, coberturas, colunas, análises,

produções audiovisuais, ilustrações e divulgação de eventos da comunidade afro-brasileira. O

veículo tem como objetivo “construir um novo formato de gestão de processos, pessoas e

recursos através do jornalismo qualificado e independente”. Ao justificar a existência, o Alma

Preta utiliza como argumento as evidências de que o Brasil é um país racista. A falta de

representatividade e crítica à abordagem da “mídia tradicional” é outro fator citado para

justificar a iniciativa.

Dentro desta perspectiva, entre os dias 21 de maio e 18 de Julho de 2018 foi realizado

pelo site uma cobertura da Copa do Mundo de Futebol deste mesmo ano. O evento mais

importante da categoria foi o vigésimo primeiro organizado pela Federação Internacional de

Futebol (FIFA), e aconteceu entre os dias 14 de junho e 15 de julho de 2018 na Rússia. O

período escolhido para análise diz respeito à praticamente toda cobertura que o site produziu

acerca do evento, iniciado dias antes do início e se prolongando por mais alguns dias após o

fim. O site publicou 29 textos, entre reportagens, colunas de opinião e análises de jogos e

seleções. Este artigo se propõe a analisar os conteúdos destas produções e pensar questões

acerca das mídias negras no Brasil, refletindo sobre o espaço que este segmento midiático

ocupa nas disputas discursivas e simbólicas frente a outros segmentos de meios de

comunicação brasileiros.

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2. Passos que vêm de longe: breve histórico da Imprensa Negra

O primeiro jornal da imprensa negra no Brasil surge em 14 de Setembro 1833, na

Tipografia Fluminense do jornalista Francisco Paula de Brito, Rio de Janeiro, capital do

Império na época. O periódico durou cinco edições e circulou entre setembro e novembro do

mesmo ano, intitulado inicialmente como o “Homem de Côr”, a partir de sua terceira edição

passou a ser chamado “O Mulato ou o Homem de Côr”. Importante salientar que não eram

escravos, em sua maioria não alfabetizados, que redigiam os textos, mas sim os negros

libertos. “A virada do século XVIII para o XIX assistiu, dessa feita, a novas estratégias

forjadas por pessoas negras no intuito de se esquivarem dos tentáculos da ordem escravista”

(PINTO, 2006, p.19). É este contexto que possibilita o surgimento não só do Homem de Côr,

como de outros jornais da imprensa negra no Brasil.

No entanto, bem antes disso, e até mesmo daquele que foi considerado o ano do

surgimento da Imprensa no Brasil (1808), em Salvador 1798, pessoas negras utilizaram como

catalisador para a Revolta dos Búzios, a produção de boletins manuscritos colados em locais

estratégicos da cidade, “uma versão primária do contemporâneo jornal mural” (PINTO,

2006). Outras publicações do período que merecem destaque são: O Bahiano — pela

constituição e pela lei, (1828) na Bahia; Brasileiro Pardo; O Cabrito; O crioulinho mais ou

menos da mesma época no Rio de Janeiro. Na segunda metade deste mesmo século é possível

encontrar: O Homem- realidade constitucional ou dissolução social – (1876 – Recife); em

São Paulo: A Pátria – orgam dos homens de côr (1889) e O Progresso – orgam dos homens

de côr (1899) e em Porto Alegre O Exemplo, de 1892 (PINTO, 2006).

Durante o início do século XX, há um crescente número de jornais em São Paulo,

devido, sobretudo, à maior politização dos negros influenciada pela Abolição da Escravatura,

no final do século anterior (1888), período em que surgem as chamadas Associações dos

Homens de Cor. Seguindo os moldes dos clubes de imigrantes, as associações faziam circular

seus próprios jornais para informar acerca de suas atividades. Apesar de nascerem com este

intuito, constantemente denunciavam as condições em que se encontravam as pessoas negras,

além de se envolverem diretamente com a política (PIRES, 2006).

Estes jornais “circulavam em média por um ano, e as publicações não superavam três

ou quatro edições” (LIMA JÚNIOR, 2009), sendo assim é normal observar a descontinuidade

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e desaparecimento destes jornais ao longo da história3. Para Pires (2006), isso acontecia

devido ao fato de que a maioria dos jornalistas negros da época, não tinham nos jornais sua

principal profissão, além das dificuldades para manter um periódico naquele tempo, por conta

dos custos de produção. A década de 1960 é um período difícil para a imprensa em geral,

afetando também a imprensa negra. Os anos de ditadura Militar e repressão influenciam nas

publicações da imprensa negra, que sobrevive apenas através de pequenas publicações. O

cenário continua na década de 1980.

A atmosfera social e política resultante dos anos pós 1964 influi diretamente nos

acontecimentos após 1980, onde a imprensa negra subiste de pequenos jornais que

refletem em linha geral as posições ideológicas do Movimento Negro Unificado em

seus alvos principais, a desconstrução do mito da democracia racial e a busca de

alternativas para a montagem de estratégias anti-racistas. (LIMA JÚNIOR, 2009,

p.19)

É importante salientar que durante a história, importantes jornalistas negros como Luiz

Gama e Machado de Assis escreviam para jornais que não tinham qualquer ligação com a

chamada imprensa negra. Nem tampouco a imprensa abolicionista da década de 1880 “estava

necessariamente alinhada” com os jornais da imprensa negra. O que então, do ponto de vista

historiográfico, é categorizado como imprensa negra? Ana Flávia Pinto (2006, p.28) define

que:

A par das questões que definem a chamada imprensa negra brasileira, no que

concerne a seu conteúdo e sua linha de atuação, pode-se, então, dizer que essa

corresponde aos jornais que se inserem na luta contra a discriminação racial no

Brasil. De maneira distorcida, costuma-se indicar o “engajamento” de parte da

imprensa dominante no processo abolicionista como momento inaugural dessa

refrega.

A imprensa negra para autora é, portanto, a prática jornalística feita por pessoas negras que

buscam “controlar os códigos da dominação e subvertê-los”.

3. Apontamentos teóricos sobre o Alma Preta e as mídias negras

As discussões acerca das mídias negras levantam uma série de questões sobre sua

constituição. Ao mesmo tempo que há um “fio condutor” referenciado no histórico da

imprensa negra, as produções das mídias negras atualmente nos trazem uma série de

complexidades que possui relações com os diferentes contextos midiáticos. O que afinal,

caracterizariam estas mídias? Quais os seus processos constituidores? Longe de trazer

repostas simples a estas questões, neste tópico pretende-se enumerar alguns aspectos do ponto

3 Em sua dissertação (LIMA JÚNIOR, 2009, p.18) traz um quadro com lista de jornais da imprensa negra (de

1916 a 1963) e o período de circulação.

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de vista comunicacional que ajudem a pensar nas complexidades que a temática nos aponta.

Partindo do Alma Preta, o objeto em questão neste trabalho, um ponto chave para entender o

processo de constituição do site é o que o motiva enquanto estratégia de luta. Ao longo da

história, os jornais da imprensa negra sempre estiveram relacionados à resistência do povo

negro frente ao racismo, motivados por contextos históricos e sociais vivenciados nos seus

respectivos períodos.

Um aspecto presente no portal Alam Preta é a insatisfação com o que os meios de

comunicação convencional produzem. A mídia hegemônica é classificada de várias formas e

considerada racista. Portanto, uma das motivações é que estes meios de comunicação não

produzem algo que contemple as populações negras. Cabe então ao Alma Preta, nas palavras

do portal, combater a ideologia do mito da democracia racial que está presente nos meios de

comunicação hegemônicos e produzir algo que estes meios não produzem.

3.1 Alma Preta, uma mídia contra-hegemônica

Para Raymond Williams (1979) a hegemonia é um processo cultural em essência, não

totalizante, nem tampouco reducionista. O autor se utiliza do marxismo, segundo a leitura de

Antonio Gramsci para construir um conceito que vai além da noção de ideologia, apesar de

serem conceitos próximos pela concepção de abstração da consciência de determinada classe

dominante. Desta forma, hegemonia para Williams:

É todo um conjunto de práticas e expectativas, sobre a totalidade da vida: nossos

sentidos e distribuição de energia, nossa percepção de nós mesmos e nosso mundo.

É um sistema vivido de significados e valores – constitutivo e constituidor – que, ao

serem experimentados como práticas parecem confirmar-se reciprocamente. Constitui assim um senso da realidade para a maioria das pessoas na sociedade, um

senso de realidade absoluta, porque experimentada, e além da qual é muito difícil

para a maioria dos membros da sociedade movimentar-se, na maioria das áreas de

sua vida. Em outras palavras, é no sentido mais forte uma “cultura”, mas uma

cultura que tem também de ser considerada como o domínio e subordinação vividos

de determinadas classes (1979, p. 113).

Por considerar a hegemonia como um conjunto de práticas culturais, Williams nos

sugere o termo hegemônico e dominante, ao invés de hegemonia e dominação. Assim, nada

está disposto naturalmente, tudo é construído culturalmente e é fruto de processos

extremamente complexos resultados de uma correlação de forças não totalizantes e que

emanam de diversos pontos. Logo, faz parte do processo de construção do hegemônico o que

se contrapõe a esta expressão terminal de poder, uma espécie de hegemonia alternativa, ou

contra-hegemonia.

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Também sofre uma resistência continuada, alterada, desafiada por pressões que não

são as suas próprias pressões. Temos então de acrescentar ao conceito de hegemonia

o conceito de contra-hegemonia e hegemonia alternativa, que são elementos reais e

persistentes da prática. (...) A qualquer momento, formas de política e cultura

alternativas, ou diretamente opostas, existem como elementos significativos na

sociedade (WILLIAMS, 1979, p. 115-116).

O Alma Preta se apresenta como uma alternativa contra-hegemônica de uma mídia

racista e pouco representativa. O perigo disto, porém, é uma abordagem um tanto superficial

de que o veículo é compreendido pelo hegemônico e, nesta relação, se torne apenas parte do

processo, mesmo propondo o contrário. Sobre isto, Williams diz que por mais que em certa

medida as contra-hegemonias e as hegemonias alternativas façam parte da hegemonia, isto

não impede que existam de fato iniciativas sim alternativas, independentes e originais. Neste

caso a hegemonia trabalharia de forma que sua “função hegemônica decisiva é controlá-las,

transformá-las ou mesmo incorporá-las” (WILLIAMS,1979, p.116).

3.2 Representação e discurso nas mídias negras

Observando atentamente este contexto de complexidades, entender o espaço que

veículos como o Alma Preta ocupa se faz necessário. Stuart Hall (2016) ao discutir

representação, traz as concepções de Foucault sobre discurso e poder. Para Hall, o teórico

francês, em contraste com a dialética marxista e a semiótica, traz uma abordagem

construtivista e historicizante do conceito de representação. Na semiótica o sujeito parece ter

sido excluído do processo, algo que em Foucault, por mais que este seja atravessado pelo

discurso, não acontece. “Mesmo que a linguagem, de algum jeito, ‘fale sobre nós’ (como

Saussure tendia a argumentar), também é importante notar que em certos momentos históricos

algumas pessoas têm mais poder para falar sobre determinados assuntos do que outras (...)”

(HALL, 2016, p.78). Se levarmos em conta que por uma série de construções sociais o “não

se sentir representado” na mídia hegemônica é um dos pontos nas produções das mídias

negras, e em específico do Alma Preta, isto faz certo sentido. Logo, uma das coisas que o

veículo busca é ter esse poder de fala que é negado nos outros meios de comunicação, e desta

forma construir novas referências e representações que não estão no escopo do considerado

hegemônico. O que perpassa por representação, no entanto, vai além desta dimensão, existem

motivações e processos que dão origem e criam processos outros nas produções das mídias

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negras. O que os veículos buscam não é apenas representação, mas exercer uma potência

política que ultrapassa a ideia de apenas fazer “frente” ao hegemônico.

O grande mérito de Foucault, na visão de Stuart Hall, é justamente pensar

representação de acordo com os contextos a que estão atrelados o discurso e ao poder. Nada

ganha significado sozinho, tudo faz parte de formações discursivas, mesmo o que parece estar

externo ao discurso só ganha sentido através dele. Não existe, portanto, sentido ou verdade

fixa e absoluta.

(...) a análise do discurso, assim entendida, não desvenda a universalidade de um

sentido; ela mostra a luz do dia o jogo da rarefação imposta, com um poder

fundamental de afirmação. Rarefação e afirmação, rarefação, enfim, da afirmação e

não generosidade contínua do sentido, e não monarquia do significante.

(FOUCAULT, 1999, p.70).

Para entender o conceito de representação é necessário então, compreender que ela

está diretamente atrelada aos contextos culturais, sociais e históricos de determinada

sociedade. “Trata-se do processo pelo qual membros de uma cultura usam a linguagem

(amplamente definida como qualquer sistema que emprega signos, qualquer sistema

significante) para produzir sentido” (HALL, 2016, p.108). O sujeito neste processo tem papel

central. “Nós tomamos as posições indicadas pelo discurso, nos identificamos com elas,

sujeitamos nós mesmos aos seus sentidos e nos tornamos ‘sujeitos’” (HALL, 2016, p.100).

4. Copa do Mundo no Alma Preta

Durante o período de 21 de maio e 18 de Julho de 2018 o portal de notícias Alma Preta

publicou 29 textos sobre a Copa do Mundo de Futebol de 2018. As produções fizeram parte

da cobertura do veículo do evento esportivo, que diferentemente das coberturas tradicionais

possuíam enfoque étnico/racial. Todas as produções discutiam de diferentes formas a temática

do racismo, criando novas referências para o leitor, ou denunciando os casos de racismo

presentes na mídia hegemônica. Nos textos analisados observou-se os seguintes aspectos:

Vinte e seis dos 29 textos, se tratavam de diversos formatos jornalísticos, entre análises,

resenhas esportivas, perfil de jogadores e seleções, notícias e etc. Duas das produções se

tratavam de colunas de opinião, eram comentários acerca de algum acontecimento da Copa do

Mundo, e 1 destes textos era uma entrevista. Estes dados são importantes tendo vista que

existe uma tendência nas mídias que se propõem contra-hegemônicas, de uma produção maior

voltada para o gênero de textos de opinião. Os números demonstram que o Alma Preta possui

um expressivo volume de produções próprias de outros gêneros.

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No que concerne ao conteúdo dos textos foi observado que o enfoque dado à seleção

brasileira de futebol frente a produções que tinham como foco outras seleções do mundo foi

menor. A maioria do conteúdo está relacionado às seleções africanas e equipes europeias que

possuíam número expressivo de imigrantes africanos. Vale lembrar que a questão da

imigração foi uma temática bastante discutida durante todo o período da Copa, tendo em vista

as discussões que aconteciam nos países europeus acerca dos refugiados e ascensão da

xenofobia e nacionalismo. A competição foi vencida pela França, seleção cujos principais

jogadores eram imigrantes ou filhos de imigrantes. A disposição das temáticas dos textos

ficaram da seguinte forma:

SELEÇÕES ABORDADAS NA COBERTURA DA COPA DO MUNDO PELO ALMA

PRETA

SELEÇÃO BRASILEIRA 7 textos

OUTRAS SELEÇÕES DO

MUNDO

20 textos AFRICA EUROPA COLÔMBIA

11 8 1

FUTEBOL NUMA

PERSPECTIVA UNIVERSAL

2 textos

TOTAL 29

Algumas conclusões podem ser tiradas acerca destes dados, se por um lado a cobertura

perde espaço no que concerne à disputa midiática com a mídia hegemônica ao não focar na

seleção brasileira, ganha adeptos que se interessam pelas seleções africanas. Sendo assim, a

cobertura proposta pelo Alma Preta, aparentemente, ocupa uma lacuna deixada pelos meios

TIPOS DE TEXTO DA COBERTURA DO ALMA PRETA DA

COPA DO MUNDO

Diversos formatos jornalísticos 26

Opinião 2

Entrevista 1

Total 29

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de comunicação acerca das seleções africanas. Isso deixa transparecer uma perspectiva

política, presente também no site, onde os habitantes de África e pretos de todo mundo são

vistos como ‘iguais’ pela condição do ser negro. Uma das editorias do site é a Mama Àfrica,

que contém “notícias do continente africano de forma que exponha a complexidade de temas

e sua rica diversidade”. O dialogo com o continente e cultura africana não está presente

apenas na temática dos textos, mas também no conteúdo. No texto Até onde as seleções

africanas já chegaram em Copas do Mundo?, de Lívia Martins, é possível ler o seguinte

trecho: “A edição na Rússia aguarda ansiosamente para ser palco de mais histórias do império

africano. Quem será o próximo protagonista? As esperanças estão todas depositadas em

Senegal. Ubuntu, irmãos!”. Este e outros textos deixam transparecer a torcida do veículo pelas

seleções africanas e a aproximação da equipe com o continente africano através de outros

rastros, como a referência a filosofia africana Ubuntu4.

Outro traço presente nos textos é a crítica à mídia hegemônica, algo que também

aparece no editorial e nas produções do site em geral. No que diz respeito aos textos da Copa

do Mundo, os meios de comunicação tradicionais são chamados de “a mídia”, o que deixa

transparecer um movimento de ‘monitoramento’ das produções midiáticas convencionais. No

texto Por que chamamos Neymar de menino, de Thiago A. S. Soares, consta o seguinte

trecho: “A mídia não cola esta imagem apenas ao jogo, mas cola como um traço da

personalidade destes atletas. São vistos pela alegria que provocam, não pelo que de fato são”.

Críticas semelhantes a estas são encontradas em outros textos do veículo, destaque para o

texto RedeTV!, a emissora com mais diversidade, tem apenas 9% de negros entre os

apresentadores, de Ana Laura Moura, que tece críticas a pouca representatividade da mídia

hegemônica.

No texto O futebol é um meio de ascensão social para jovens negros? há outro tipo de

referência aos formatos hegemônicos, na reportagem Amauri Eugênio Jr escreve: “Apesar da

expectativa gerada durante a campanha da seleção brasileira (...), o hexa não veio - a Copa do

Mundo ficou com os negros maravilhosos franceses.”. A expressão “negros maravilhosos”

faz referência a fala do narrador da Rede Globo Luis Roberto, que na Copa do Mundo de

2014 usou o termo para se referir a seleção francesa, o bordão se popularizou e é repetido até

hoje pelo narrador, comentaristas esportivos e público em geral.

4 Ubuntu é uma filosofia de vida africana sem uma tradução para o português que em linhas gerais significa

“humanidade para com os outros”. Não há uma origem exata do termo, especula-se que venha do Egito Antigo,

apesar da corrente de pensamento ser associado a África Subsaariana. A filosofia também é um dos marcos na

luta contra o apartheid na África do Sul. Fonte: Geledés

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Apesar desta “preocupação” em monitorar a mídia convencional, há a criação de

referências dentro do jornalismo praticado pela equipe. No texto The Flash’ francês: Conheça

Kylian Mbappé de Lívia Martins, publicado em 06 de julho, um dos subtítulos é Da Ponte

Pra Cá, nome de uma música do popular grupo de rap brasileiro, Racionais MCs, banda que

em suas letras dialoga com as vivências periféricas do negro brasileiro. Outro subtítulo do

mesmo texto é o De quebrada em quebrada, demarcando mais uma vez este lugar de fala5.

Percebe-se aqui a intenção de promover um reconhecimento do público alvo do site, jovem

negro periférico, com as produções, essa aproximação fica evidente no último paragrafo da

reportagem:

Mbappé corre e é bonito ver a inteligência deste jovem em ação nos gramados do

mundo. Essa mesma correria é a mesma de outras tantas promessas em campinhos

de terra e em quadras esburacadas nas periferias do mundo. Eles correm atrás de

reverter 400 anos de prejuízos. Correm da polícia que confunde. Correm do governo

que extermina com ou sem arma. Qualquer semelhança é “mera coincidência”

Desta forma, para além de uma crítica a mídia hegemônica, o portal de notícias Alma

Preta cria uma série de novas referências em sua cobertura da Copa do Mundo, sobretudo no

que diz respeito a um leitor negro e periférico brasileiro. Ao mesmo tempo que há uma

demarcação de público, há por outro lado uma experimentação que tende a fazer com que

públicos que não o projetado pelo veículo, tenham acesso a este novo tipo de referência no

jornalismo. Este aspecto é possível de ser observado também em outro texto da jornalista,

Lívia Martins, Até onde as seleções africanas já chegaram em Copas do Mundo?, novamente

é utilizado uma música do gênero rap, desta vez do artista Emicida, como subtítulo, Todos os

olhos em nós, revelando um determinado padrão ao se tratar das temáticas ali abordadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As análises da cobertura da Copa do Mundo de Futebol Fifa pelo portal de notícias

Alma Preta nos permite apontar algumas questões acerca de como esta mídia negra age no

campo de disputas simbólicas dos meios de comunicação. No texto a “Centralidade da

5 De acordo com José Luiz Braga (1997) o lugar de fala refere-se à lógica criada pelo texto frente a uma situação

concreta, e deriva de uma articulação entre fala, textos disponíveis e situação. Em contraposição a totalidade de

uma perspectiva de visões universais de mundo, o lugar de fala possui um caráter local, imediato e específico,

não se trata do contexto, mas do lugar construído dentro deste contexto. Também difere do lugar de fala

sociológico do falante, apesar de em determinado nível estar relacionado a esta posição mais ampla de

determinados grupos sociais. Trata-se, portanto, de entender as estruturas significativas imediatas de uma fala, e

“não só nos seus aspectos de determinação pelo contexto, mas também enquanto esforço de ação e construção

sobre esse contexto.” (p,10)

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Cultural”, Stuart Hall (1997) chama atenção para este caráter de novas disputas simbólicas na

construção de discursos.

Por bem ou por mal, a cultura é agora um dos elementos mais dinâmicos — e mais

imprevisíveis — da mudança histórica no novo milênio. Não deve nos surpreender,

então, que as lutas pelo poder sejam, crescentemente, simbólicas e discursivas, ao

invés de tomar, simplesmente, uma forma física e compulsiva, e que as próprias

políticas assumam progressivamente a feição de uma ―política cultural (p. 4).

Para o autor, diferentemente das disputas ideológicas que assumiam caráter bélico e de uso da

força como aconteceu durante quase todo século XX, o século XXI aponta para disputas de

poder numa outra esfera, que é o campo simbólico. Nesta perspectiva, o que o Alma Preta e

outras mídias que se propõe negras e antirracistas buscam, é ocupar este campo de disputas

discursivas e simbólicas frente à mídia hegemônica.

Este processo de certa forma é alavancado pela internet, que por um lado possibilita

que veículos como o Alma Preta possam existir e disputar a audiência com meios de

comunicação tradicionais. Por outro lado, esta nova tecnologia parece demonstrar a cada dia

mais que tende a fortalecer o neoliberalismo e o capital empresarial. Até então “não há

qualquer evidência sustentável de que os meios de comunicação de massa possam perder o

seu lugar de controle da esfera de visibilidade pública. A internet, nesse caso, não lhes

representou uma ameaça, mas uma oportunidade (...)” (GOMES, 2005, p. 72). Por mais que

veículos e sites como o Alma Preta se propunham a disputar este terreno de construções

discursiva e simbólicas, seu poder ainda não é comparável à força que os meios de

comunicação hegemônicos possuem, tanto na esfera política quanto econômica.

Neste campo de disputas simbólicas um dos traços significativos observados na

cobertura feita pelo Alma Preta da Copa do Mundo foi o monitoramento da mídia

hegemônica, o que pode ser lido de algumas formas. Este monitoramento põe luz sobre erros

e racismos reproduzidos e propagados por estes meios de comunicação, por outro lado

reforçam ainda mais o hegemônico. Ao se preocupar em fazer uma crítica à mídia

hegemônica, o Alma Preta reforça também a força que estes meios possuem. Observa-se

então que o veículo tem maior efetividade no seus objetivos, quando se propõe a criação de

novas referências acerca das populações negras. O enfoque nos imigrantes, assunto latente nas

discussões em todo mundo, e nas seleções africanas geram uma outra narrativa em relação a

cobertura dos meios de comunicação de massa. Ao fazer essa cobertura e esforço para

aproximação com o público brasileiro há um ganho importante nas potências que este tipo de

narrativa propõe. Entretanto, ao focar pouco na seleção brasileira de futebol, há um déficit

para com o leitor, que precisará buscar nas mídias hegemônicas informações sobre a equipe.

Page 12: Disputas Simbólicas na Mídia: Análise da Cobertura do Portal ......de acordo com o editorial, oferece assessoria de comunicação, design e programação. Em sua página na rede

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Por fim, o que se observa na análise feita é que a relação com o público e a criação de

novas referências das populações negras é um importante aspecto da cobertura do Alma Preta

diante do terreno de disputas discursivas e simbólicas da mídia. O que eles se propõem a fazer

é a construção de um sistema de representação para “iguais” que sofrem diariamente com o

racismo e que não estão satisfeitos com o que é feito na mídia hegemônica. Para isso, se

debruçam na produção de novos sentidos utilizando códigos culturais já conhecidos, e

implodindo um imaginário construído sobre determinada cultura.

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culturais. In: ENCONTRO NACIONAL DA COMPÓS, 5. COMPÓS. São Paulo. I: 19 p.

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