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Cachoeira – Bahia – Brasil, 21, 22 e 23 nov/2018 www3.ufrb.edu.br/eventos/4congressoculturas
Disputas Simbólicas na Mídia: Análise da Cobertura do Portal de Notícias
Alma Preta Durante a Copa do Mundo 2018
PINHEIRO, Jonas1
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Brasil, < [email protected] >
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo fazer uma análise da cobertura da Copa do Mundo de
Futebol da Fifa 2018 pelo portal de notícias Alma Preta, veículo de mídia negra que tem como
foco a abordagem étnico/racial. No período que antecedeu, durante e após a Copa do Mundo,
o veículo produziu 29 textos com uma proposta de abordagem diferenciada da mídia
convencional, ao tratar, sobretudo, das seleções africanas e outras equipes que possuíam em
seu plantel imigrantes ou diásporas oriundos da África. É objetivo deste artigo fazer uma
análise de conteúdo das produções e levantar questões acerca do papel das mídias negras nas
disputas discursivas e simbólicas com os meios de comunicação de massa.
Palavras-chave: Mídia Negra, Alma Preta, Copa do Mundo 2018
1. Introdução
No Brasil existe um histórico de imprensa negra e desde mesmo até antes do que é
considerado oficialmente o surgimento da imprensa no Brasil, estima-se que os afro-
brasileiros já se utilizavam deste mecanismo para se contrapor aos processos de subjugação
pelos quais as populações negras eram submetidas no país. A historiadora Ana Flávia Pinto
(2006), defende que os manuscritos espalhados pela cidade de Salvador – BA, que deram
origem a insurgência de base popular e negra conhecida como Revolta dos Búzios2, em 12 de
agosto de 1798, seriam uma versão primária dos jornais murais, portanto, um marco do
histórico da imprensa negra.
Ao longo da história do país outras publicações deste segmento aparecem presentes
como importante fator de resistência e luta do povo negro, não só durante a luta pelo fim da
escravização, mas em outros diversos períodos. Tendo em vista que, o processo de Abolição,
em 1888, não acabou com o racismo, nem tampouco com as desigualdades entre negros e
1 Mestrando em Comunicação – Mídia e formatos narrativos - pela Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia (UFRB) - Graduado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela mesma instituição.
2 Conjuração Baiana e Revolta dos Alfaiates são outras terminologias utilizadas por historiadores.
2
brancos, desde os folhetins da Revolta dos Búzios até o momento atual, aparecem diversas
publicações que se caracterizam como imprensa/mídia negra. Um ponto em comum nas
publicações, que passam a ser mais que jornais de acordo com os avanços tecnológicos, é a
proposta de serem ferramentas de luta contra o racismo.
Referenciando-se neste histórico o portal de notícias Alma Preta surge em 2015
através do Coletivo Negro Kimpa, da Universidade Estadual Paulista (UNESP), em Bauru –
SP, município mais populoso do centro-oeste paulista e distante 326km da capital do estado,
São Paulo. Atualmente é formado por quatro jovens jornalistas negras e negros: Pedro
Borges, Solon Neto, Iacy Correia e Vinicius Almeida. O site surge de forma independente, e
seu nome deriva das discussões sobre branquitude que aconteciam no coletivo, onde os
integrantes esbarraram na ideia de “preto de alma branca”, por isso então, Alma Preta. A
atuação da agência acontece nos meios digitais e além de funcionar como portal de notícias,
de acordo com o editorial, oferece assessoria de comunicação, design e programação. Em sua
página na rede social Facebook, possui cerca de 44 mil seguidores. No seu site define-se
como uma “agência de jornalismo especializado na temática racial do Brasil”.
Em relação ao conteúdo, o site produz reportagens, coberturas, colunas, análises,
produções audiovisuais, ilustrações e divulgação de eventos da comunidade afro-brasileira. O
veículo tem como objetivo “construir um novo formato de gestão de processos, pessoas e
recursos através do jornalismo qualificado e independente”. Ao justificar a existência, o Alma
Preta utiliza como argumento as evidências de que o Brasil é um país racista. A falta de
representatividade e crítica à abordagem da “mídia tradicional” é outro fator citado para
justificar a iniciativa.
Dentro desta perspectiva, entre os dias 21 de maio e 18 de Julho de 2018 foi realizado
pelo site uma cobertura da Copa do Mundo de Futebol deste mesmo ano. O evento mais
importante da categoria foi o vigésimo primeiro organizado pela Federação Internacional de
Futebol (FIFA), e aconteceu entre os dias 14 de junho e 15 de julho de 2018 na Rússia. O
período escolhido para análise diz respeito à praticamente toda cobertura que o site produziu
acerca do evento, iniciado dias antes do início e se prolongando por mais alguns dias após o
fim. O site publicou 29 textos, entre reportagens, colunas de opinião e análises de jogos e
seleções. Este artigo se propõe a analisar os conteúdos destas produções e pensar questões
acerca das mídias negras no Brasil, refletindo sobre o espaço que este segmento midiático
ocupa nas disputas discursivas e simbólicas frente a outros segmentos de meios de
comunicação brasileiros.
3
2. Passos que vêm de longe: breve histórico da Imprensa Negra
O primeiro jornal da imprensa negra no Brasil surge em 14 de Setembro 1833, na
Tipografia Fluminense do jornalista Francisco Paula de Brito, Rio de Janeiro, capital do
Império na época. O periódico durou cinco edições e circulou entre setembro e novembro do
mesmo ano, intitulado inicialmente como o “Homem de Côr”, a partir de sua terceira edição
passou a ser chamado “O Mulato ou o Homem de Côr”. Importante salientar que não eram
escravos, em sua maioria não alfabetizados, que redigiam os textos, mas sim os negros
libertos. “A virada do século XVIII para o XIX assistiu, dessa feita, a novas estratégias
forjadas por pessoas negras no intuito de se esquivarem dos tentáculos da ordem escravista”
(PINTO, 2006, p.19). É este contexto que possibilita o surgimento não só do Homem de Côr,
como de outros jornais da imprensa negra no Brasil.
No entanto, bem antes disso, e até mesmo daquele que foi considerado o ano do
surgimento da Imprensa no Brasil (1808), em Salvador 1798, pessoas negras utilizaram como
catalisador para a Revolta dos Búzios, a produção de boletins manuscritos colados em locais
estratégicos da cidade, “uma versão primária do contemporâneo jornal mural” (PINTO,
2006). Outras publicações do período que merecem destaque são: O Bahiano — pela
constituição e pela lei, (1828) na Bahia; Brasileiro Pardo; O Cabrito; O crioulinho mais ou
menos da mesma época no Rio de Janeiro. Na segunda metade deste mesmo século é possível
encontrar: O Homem- realidade constitucional ou dissolução social – (1876 – Recife); em
São Paulo: A Pátria – orgam dos homens de côr (1889) e O Progresso – orgam dos homens
de côr (1899) e em Porto Alegre O Exemplo, de 1892 (PINTO, 2006).
Durante o início do século XX, há um crescente número de jornais em São Paulo,
devido, sobretudo, à maior politização dos negros influenciada pela Abolição da Escravatura,
no final do século anterior (1888), período em que surgem as chamadas Associações dos
Homens de Cor. Seguindo os moldes dos clubes de imigrantes, as associações faziam circular
seus próprios jornais para informar acerca de suas atividades. Apesar de nascerem com este
intuito, constantemente denunciavam as condições em que se encontravam as pessoas negras,
além de se envolverem diretamente com a política (PIRES, 2006).
Estes jornais “circulavam em média por um ano, e as publicações não superavam três
ou quatro edições” (LIMA JÚNIOR, 2009), sendo assim é normal observar a descontinuidade
4
e desaparecimento destes jornais ao longo da história3. Para Pires (2006), isso acontecia
devido ao fato de que a maioria dos jornalistas negros da época, não tinham nos jornais sua
principal profissão, além das dificuldades para manter um periódico naquele tempo, por conta
dos custos de produção. A década de 1960 é um período difícil para a imprensa em geral,
afetando também a imprensa negra. Os anos de ditadura Militar e repressão influenciam nas
publicações da imprensa negra, que sobrevive apenas através de pequenas publicações. O
cenário continua na década de 1980.
A atmosfera social e política resultante dos anos pós 1964 influi diretamente nos
acontecimentos após 1980, onde a imprensa negra subiste de pequenos jornais que
refletem em linha geral as posições ideológicas do Movimento Negro Unificado em
seus alvos principais, a desconstrução do mito da democracia racial e a busca de
alternativas para a montagem de estratégias anti-racistas. (LIMA JÚNIOR, 2009,
p.19)
É importante salientar que durante a história, importantes jornalistas negros como Luiz
Gama e Machado de Assis escreviam para jornais que não tinham qualquer ligação com a
chamada imprensa negra. Nem tampouco a imprensa abolicionista da década de 1880 “estava
necessariamente alinhada” com os jornais da imprensa negra. O que então, do ponto de vista
historiográfico, é categorizado como imprensa negra? Ana Flávia Pinto (2006, p.28) define
que:
A par das questões que definem a chamada imprensa negra brasileira, no que
concerne a seu conteúdo e sua linha de atuação, pode-se, então, dizer que essa
corresponde aos jornais que se inserem na luta contra a discriminação racial no
Brasil. De maneira distorcida, costuma-se indicar o “engajamento” de parte da
imprensa dominante no processo abolicionista como momento inaugural dessa
refrega.
A imprensa negra para autora é, portanto, a prática jornalística feita por pessoas negras que
buscam “controlar os códigos da dominação e subvertê-los”.
3. Apontamentos teóricos sobre o Alma Preta e as mídias negras
As discussões acerca das mídias negras levantam uma série de questões sobre sua
constituição. Ao mesmo tempo que há um “fio condutor” referenciado no histórico da
imprensa negra, as produções das mídias negras atualmente nos trazem uma série de
complexidades que possui relações com os diferentes contextos midiáticos. O que afinal,
caracterizariam estas mídias? Quais os seus processos constituidores? Longe de trazer
repostas simples a estas questões, neste tópico pretende-se enumerar alguns aspectos do ponto
3 Em sua dissertação (LIMA JÚNIOR, 2009, p.18) traz um quadro com lista de jornais da imprensa negra (de
1916 a 1963) e o período de circulação.
5
de vista comunicacional que ajudem a pensar nas complexidades que a temática nos aponta.
Partindo do Alma Preta, o objeto em questão neste trabalho, um ponto chave para entender o
processo de constituição do site é o que o motiva enquanto estratégia de luta. Ao longo da
história, os jornais da imprensa negra sempre estiveram relacionados à resistência do povo
negro frente ao racismo, motivados por contextos históricos e sociais vivenciados nos seus
respectivos períodos.
Um aspecto presente no portal Alam Preta é a insatisfação com o que os meios de
comunicação convencional produzem. A mídia hegemônica é classificada de várias formas e
considerada racista. Portanto, uma das motivações é que estes meios de comunicação não
produzem algo que contemple as populações negras. Cabe então ao Alma Preta, nas palavras
do portal, combater a ideologia do mito da democracia racial que está presente nos meios de
comunicação hegemônicos e produzir algo que estes meios não produzem.
3.1 Alma Preta, uma mídia contra-hegemônica
Para Raymond Williams (1979) a hegemonia é um processo cultural em essência, não
totalizante, nem tampouco reducionista. O autor se utiliza do marxismo, segundo a leitura de
Antonio Gramsci para construir um conceito que vai além da noção de ideologia, apesar de
serem conceitos próximos pela concepção de abstração da consciência de determinada classe
dominante. Desta forma, hegemonia para Williams:
É todo um conjunto de práticas e expectativas, sobre a totalidade da vida: nossos
sentidos e distribuição de energia, nossa percepção de nós mesmos e nosso mundo.
É um sistema vivido de significados e valores – constitutivo e constituidor – que, ao
serem experimentados como práticas parecem confirmar-se reciprocamente. Constitui assim um senso da realidade para a maioria das pessoas na sociedade, um
senso de realidade absoluta, porque experimentada, e além da qual é muito difícil
para a maioria dos membros da sociedade movimentar-se, na maioria das áreas de
sua vida. Em outras palavras, é no sentido mais forte uma “cultura”, mas uma
cultura que tem também de ser considerada como o domínio e subordinação vividos
de determinadas classes (1979, p. 113).
Por considerar a hegemonia como um conjunto de práticas culturais, Williams nos
sugere o termo hegemônico e dominante, ao invés de hegemonia e dominação. Assim, nada
está disposto naturalmente, tudo é construído culturalmente e é fruto de processos
extremamente complexos resultados de uma correlação de forças não totalizantes e que
emanam de diversos pontos. Logo, faz parte do processo de construção do hegemônico o que
se contrapõe a esta expressão terminal de poder, uma espécie de hegemonia alternativa, ou
contra-hegemonia.
6
Também sofre uma resistência continuada, alterada, desafiada por pressões que não
são as suas próprias pressões. Temos então de acrescentar ao conceito de hegemonia
o conceito de contra-hegemonia e hegemonia alternativa, que são elementos reais e
persistentes da prática. (...) A qualquer momento, formas de política e cultura
alternativas, ou diretamente opostas, existem como elementos significativos na
sociedade (WILLIAMS, 1979, p. 115-116).
O Alma Preta se apresenta como uma alternativa contra-hegemônica de uma mídia
racista e pouco representativa. O perigo disto, porém, é uma abordagem um tanto superficial
de que o veículo é compreendido pelo hegemônico e, nesta relação, se torne apenas parte do
processo, mesmo propondo o contrário. Sobre isto, Williams diz que por mais que em certa
medida as contra-hegemonias e as hegemonias alternativas façam parte da hegemonia, isto
não impede que existam de fato iniciativas sim alternativas, independentes e originais. Neste
caso a hegemonia trabalharia de forma que sua “função hegemônica decisiva é controlá-las,
transformá-las ou mesmo incorporá-las” (WILLIAMS,1979, p.116).
3.2 Representação e discurso nas mídias negras
Observando atentamente este contexto de complexidades, entender o espaço que
veículos como o Alma Preta ocupa se faz necessário. Stuart Hall (2016) ao discutir
representação, traz as concepções de Foucault sobre discurso e poder. Para Hall, o teórico
francês, em contraste com a dialética marxista e a semiótica, traz uma abordagem
construtivista e historicizante do conceito de representação. Na semiótica o sujeito parece ter
sido excluído do processo, algo que em Foucault, por mais que este seja atravessado pelo
discurso, não acontece. “Mesmo que a linguagem, de algum jeito, ‘fale sobre nós’ (como
Saussure tendia a argumentar), também é importante notar que em certos momentos históricos
algumas pessoas têm mais poder para falar sobre determinados assuntos do que outras (...)”
(HALL, 2016, p.78). Se levarmos em conta que por uma série de construções sociais o “não
se sentir representado” na mídia hegemônica é um dos pontos nas produções das mídias
negras, e em específico do Alma Preta, isto faz certo sentido. Logo, uma das coisas que o
veículo busca é ter esse poder de fala que é negado nos outros meios de comunicação, e desta
forma construir novas referências e representações que não estão no escopo do considerado
hegemônico. O que perpassa por representação, no entanto, vai além desta dimensão, existem
motivações e processos que dão origem e criam processos outros nas produções das mídias
7
negras. O que os veículos buscam não é apenas representação, mas exercer uma potência
política que ultrapassa a ideia de apenas fazer “frente” ao hegemônico.
O grande mérito de Foucault, na visão de Stuart Hall, é justamente pensar
representação de acordo com os contextos a que estão atrelados o discurso e ao poder. Nada
ganha significado sozinho, tudo faz parte de formações discursivas, mesmo o que parece estar
externo ao discurso só ganha sentido através dele. Não existe, portanto, sentido ou verdade
fixa e absoluta.
(...) a análise do discurso, assim entendida, não desvenda a universalidade de um
sentido; ela mostra a luz do dia o jogo da rarefação imposta, com um poder
fundamental de afirmação. Rarefação e afirmação, rarefação, enfim, da afirmação e
não generosidade contínua do sentido, e não monarquia do significante.
(FOUCAULT, 1999, p.70).
Para entender o conceito de representação é necessário então, compreender que ela
está diretamente atrelada aos contextos culturais, sociais e históricos de determinada
sociedade. “Trata-se do processo pelo qual membros de uma cultura usam a linguagem
(amplamente definida como qualquer sistema que emprega signos, qualquer sistema
significante) para produzir sentido” (HALL, 2016, p.108). O sujeito neste processo tem papel
central. “Nós tomamos as posições indicadas pelo discurso, nos identificamos com elas,
sujeitamos nós mesmos aos seus sentidos e nos tornamos ‘sujeitos’” (HALL, 2016, p.100).
4. Copa do Mundo no Alma Preta
Durante o período de 21 de maio e 18 de Julho de 2018 o portal de notícias Alma Preta
publicou 29 textos sobre a Copa do Mundo de Futebol de 2018. As produções fizeram parte
da cobertura do veículo do evento esportivo, que diferentemente das coberturas tradicionais
possuíam enfoque étnico/racial. Todas as produções discutiam de diferentes formas a temática
do racismo, criando novas referências para o leitor, ou denunciando os casos de racismo
presentes na mídia hegemônica. Nos textos analisados observou-se os seguintes aspectos:
Vinte e seis dos 29 textos, se tratavam de diversos formatos jornalísticos, entre análises,
resenhas esportivas, perfil de jogadores e seleções, notícias e etc. Duas das produções se
tratavam de colunas de opinião, eram comentários acerca de algum acontecimento da Copa do
Mundo, e 1 destes textos era uma entrevista. Estes dados são importantes tendo vista que
existe uma tendência nas mídias que se propõem contra-hegemônicas, de uma produção maior
voltada para o gênero de textos de opinião. Os números demonstram que o Alma Preta possui
um expressivo volume de produções próprias de outros gêneros.
8
No que concerne ao conteúdo dos textos foi observado que o enfoque dado à seleção
brasileira de futebol frente a produções que tinham como foco outras seleções do mundo foi
menor. A maioria do conteúdo está relacionado às seleções africanas e equipes europeias que
possuíam número expressivo de imigrantes africanos. Vale lembrar que a questão da
imigração foi uma temática bastante discutida durante todo o período da Copa, tendo em vista
as discussões que aconteciam nos países europeus acerca dos refugiados e ascensão da
xenofobia e nacionalismo. A competição foi vencida pela França, seleção cujos principais
jogadores eram imigrantes ou filhos de imigrantes. A disposição das temáticas dos textos
ficaram da seguinte forma:
SELEÇÕES ABORDADAS NA COBERTURA DA COPA DO MUNDO PELO ALMA
PRETA
SELEÇÃO BRASILEIRA 7 textos
OUTRAS SELEÇÕES DO
MUNDO
20 textos AFRICA EUROPA COLÔMBIA
11 8 1
FUTEBOL NUMA
PERSPECTIVA UNIVERSAL
2 textos
TOTAL 29
Algumas conclusões podem ser tiradas acerca destes dados, se por um lado a cobertura
perde espaço no que concerne à disputa midiática com a mídia hegemônica ao não focar na
seleção brasileira, ganha adeptos que se interessam pelas seleções africanas. Sendo assim, a
cobertura proposta pelo Alma Preta, aparentemente, ocupa uma lacuna deixada pelos meios
TIPOS DE TEXTO DA COBERTURA DO ALMA PRETA DA
COPA DO MUNDO
Diversos formatos jornalísticos 26
Opinião 2
Entrevista 1
Total 29
9
de comunicação acerca das seleções africanas. Isso deixa transparecer uma perspectiva
política, presente também no site, onde os habitantes de África e pretos de todo mundo são
vistos como ‘iguais’ pela condição do ser negro. Uma das editorias do site é a Mama Àfrica,
que contém “notícias do continente africano de forma que exponha a complexidade de temas
e sua rica diversidade”. O dialogo com o continente e cultura africana não está presente
apenas na temática dos textos, mas também no conteúdo. No texto Até onde as seleções
africanas já chegaram em Copas do Mundo?, de Lívia Martins, é possível ler o seguinte
trecho: “A edição na Rússia aguarda ansiosamente para ser palco de mais histórias do império
africano. Quem será o próximo protagonista? As esperanças estão todas depositadas em
Senegal. Ubuntu, irmãos!”. Este e outros textos deixam transparecer a torcida do veículo pelas
seleções africanas e a aproximação da equipe com o continente africano através de outros
rastros, como a referência a filosofia africana Ubuntu4.
Outro traço presente nos textos é a crítica à mídia hegemônica, algo que também
aparece no editorial e nas produções do site em geral. No que diz respeito aos textos da Copa
do Mundo, os meios de comunicação tradicionais são chamados de “a mídia”, o que deixa
transparecer um movimento de ‘monitoramento’ das produções midiáticas convencionais. No
texto Por que chamamos Neymar de menino, de Thiago A. S. Soares, consta o seguinte
trecho: “A mídia não cola esta imagem apenas ao jogo, mas cola como um traço da
personalidade destes atletas. São vistos pela alegria que provocam, não pelo que de fato são”.
Críticas semelhantes a estas são encontradas em outros textos do veículo, destaque para o
texto RedeTV!, a emissora com mais diversidade, tem apenas 9% de negros entre os
apresentadores, de Ana Laura Moura, que tece críticas a pouca representatividade da mídia
hegemônica.
No texto O futebol é um meio de ascensão social para jovens negros? há outro tipo de
referência aos formatos hegemônicos, na reportagem Amauri Eugênio Jr escreve: “Apesar da
expectativa gerada durante a campanha da seleção brasileira (...), o hexa não veio - a Copa do
Mundo ficou com os negros maravilhosos franceses.”. A expressão “negros maravilhosos”
faz referência a fala do narrador da Rede Globo Luis Roberto, que na Copa do Mundo de
2014 usou o termo para se referir a seleção francesa, o bordão se popularizou e é repetido até
hoje pelo narrador, comentaristas esportivos e público em geral.
4 Ubuntu é uma filosofia de vida africana sem uma tradução para o português que em linhas gerais significa
“humanidade para com os outros”. Não há uma origem exata do termo, especula-se que venha do Egito Antigo,
apesar da corrente de pensamento ser associado a África Subsaariana. A filosofia também é um dos marcos na
luta contra o apartheid na África do Sul. Fonte: Geledés
10
Apesar desta “preocupação” em monitorar a mídia convencional, há a criação de
referências dentro do jornalismo praticado pela equipe. No texto The Flash’ francês: Conheça
Kylian Mbappé de Lívia Martins, publicado em 06 de julho, um dos subtítulos é Da Ponte
Pra Cá, nome de uma música do popular grupo de rap brasileiro, Racionais MCs, banda que
em suas letras dialoga com as vivências periféricas do negro brasileiro. Outro subtítulo do
mesmo texto é o De quebrada em quebrada, demarcando mais uma vez este lugar de fala5.
Percebe-se aqui a intenção de promover um reconhecimento do público alvo do site, jovem
negro periférico, com as produções, essa aproximação fica evidente no último paragrafo da
reportagem:
Mbappé corre e é bonito ver a inteligência deste jovem em ação nos gramados do
mundo. Essa mesma correria é a mesma de outras tantas promessas em campinhos
de terra e em quadras esburacadas nas periferias do mundo. Eles correm atrás de
reverter 400 anos de prejuízos. Correm da polícia que confunde. Correm do governo
que extermina com ou sem arma. Qualquer semelhança é “mera coincidência”
Desta forma, para além de uma crítica a mídia hegemônica, o portal de notícias Alma
Preta cria uma série de novas referências em sua cobertura da Copa do Mundo, sobretudo no
que diz respeito a um leitor negro e periférico brasileiro. Ao mesmo tempo que há uma
demarcação de público, há por outro lado uma experimentação que tende a fazer com que
públicos que não o projetado pelo veículo, tenham acesso a este novo tipo de referência no
jornalismo. Este aspecto é possível de ser observado também em outro texto da jornalista,
Lívia Martins, Até onde as seleções africanas já chegaram em Copas do Mundo?, novamente
é utilizado uma música do gênero rap, desta vez do artista Emicida, como subtítulo, Todos os
olhos em nós, revelando um determinado padrão ao se tratar das temáticas ali abordadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As análises da cobertura da Copa do Mundo de Futebol Fifa pelo portal de notícias
Alma Preta nos permite apontar algumas questões acerca de como esta mídia negra age no
campo de disputas simbólicas dos meios de comunicação. No texto a “Centralidade da
5 De acordo com José Luiz Braga (1997) o lugar de fala refere-se à lógica criada pelo texto frente a uma situação
concreta, e deriva de uma articulação entre fala, textos disponíveis e situação. Em contraposição a totalidade de
uma perspectiva de visões universais de mundo, o lugar de fala possui um caráter local, imediato e específico,
não se trata do contexto, mas do lugar construído dentro deste contexto. Também difere do lugar de fala
sociológico do falante, apesar de em determinado nível estar relacionado a esta posição mais ampla de
determinados grupos sociais. Trata-se, portanto, de entender as estruturas significativas imediatas de uma fala, e
“não só nos seus aspectos de determinação pelo contexto, mas também enquanto esforço de ação e construção
sobre esse contexto.” (p,10)
11
Cultural”, Stuart Hall (1997) chama atenção para este caráter de novas disputas simbólicas na
construção de discursos.
Por bem ou por mal, a cultura é agora um dos elementos mais dinâmicos — e mais
imprevisíveis — da mudança histórica no novo milênio. Não deve nos surpreender,
então, que as lutas pelo poder sejam, crescentemente, simbólicas e discursivas, ao
invés de tomar, simplesmente, uma forma física e compulsiva, e que as próprias
políticas assumam progressivamente a feição de uma ―política cultural (p. 4).
Para o autor, diferentemente das disputas ideológicas que assumiam caráter bélico e de uso da
força como aconteceu durante quase todo século XX, o século XXI aponta para disputas de
poder numa outra esfera, que é o campo simbólico. Nesta perspectiva, o que o Alma Preta e
outras mídias que se propõe negras e antirracistas buscam, é ocupar este campo de disputas
discursivas e simbólicas frente à mídia hegemônica.
Este processo de certa forma é alavancado pela internet, que por um lado possibilita
que veículos como o Alma Preta possam existir e disputar a audiência com meios de
comunicação tradicionais. Por outro lado, esta nova tecnologia parece demonstrar a cada dia
mais que tende a fortalecer o neoliberalismo e o capital empresarial. Até então “não há
qualquer evidência sustentável de que os meios de comunicação de massa possam perder o
seu lugar de controle da esfera de visibilidade pública. A internet, nesse caso, não lhes
representou uma ameaça, mas uma oportunidade (...)” (GOMES, 2005, p. 72). Por mais que
veículos e sites como o Alma Preta se propunham a disputar este terreno de construções
discursiva e simbólicas, seu poder ainda não é comparável à força que os meios de
comunicação hegemônicos possuem, tanto na esfera política quanto econômica.
Neste campo de disputas simbólicas um dos traços significativos observados na
cobertura feita pelo Alma Preta da Copa do Mundo foi o monitoramento da mídia
hegemônica, o que pode ser lido de algumas formas. Este monitoramento põe luz sobre erros
e racismos reproduzidos e propagados por estes meios de comunicação, por outro lado
reforçam ainda mais o hegemônico. Ao se preocupar em fazer uma crítica à mídia
hegemônica, o Alma Preta reforça também a força que estes meios possuem. Observa-se
então que o veículo tem maior efetividade no seus objetivos, quando se propõe a criação de
novas referências acerca das populações negras. O enfoque nos imigrantes, assunto latente nas
discussões em todo mundo, e nas seleções africanas geram uma outra narrativa em relação a
cobertura dos meios de comunicação de massa. Ao fazer essa cobertura e esforço para
aproximação com o público brasileiro há um ganho importante nas potências que este tipo de
narrativa propõe. Entretanto, ao focar pouco na seleção brasileira de futebol, há um déficit
para com o leitor, que precisará buscar nas mídias hegemônicas informações sobre a equipe.
12
Por fim, o que se observa na análise feita é que a relação com o público e a criação de
novas referências das populações negras é um importante aspecto da cobertura do Alma Preta
diante do terreno de disputas discursivas e simbólicas da mídia. O que eles se propõem a fazer
é a construção de um sistema de representação para “iguais” que sofrem diariamente com o
racismo e que não estão satisfeitos com o que é feito na mídia hegemônica. Para isso, se
debruçam na produção de novos sentidos utilizando códigos culturais já conhecidos, e
implodindo um imaginário construído sobre determinada cultura.
REFERÊNCIAS
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1997.
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Dissertação (Mestrado em Educação), Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo,
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PINTO, Ana Flávia Magalhães. De pele escura à tinta preta - a imprensa negra no século
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