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 UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS INSTITUTO DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA GÊNESE E ESTATUTO DO “FACTUM DA RAZÃO”: K ANT E O PROBLEMA DA JUSTIFICAÇÃO DA LEI MORAL NA “ANALÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA PURA”  LUCIANO DUARTE DA SILVEIRA PELOTAS, M AI O DE 2011

Diss Lucianosilveira[1]

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS INSTITUTO DE SOCIOLOGIA E POLTICA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

GNESE E ESTATUTO DO FACTUM DA RAZO: KANT E O PROBLEMA DA JUSTIFICAO DA LEI MORAL NA ANALTICA DA RAZO PRTICA PURA

LUCIANO DUARTE DA SILVEIRA

PELOTAS, MAIO DE 2011

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LUCIANO DUARTE DA SILVEIRA

GNESE E ESTATUTO DO FACTUM DA RAZO: KANT E O PROBLEMA DA JUSTIFICAO DA LEI MORAL NA ANALTICA DA RAZO PRTICA PURA

Dissertao apresentada ao programa de psgraduao em filosofia da Universidade Federal de Pelotas, rea de concentrao Filosofia moral e poltica, linha de pesquisa Fundamentao e crtica da moral, como requisito parcial para a obteno do grau de,

Mestre em Filosofia

Orientador: Prof. Dr. Carlos Adriano Ferraz (UFPel)

2011

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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao: Bibliotecria Daiane Schramm CRB-10/1881

S587g

Silveira, Luciano Duarte da Gnese e estatuto do Factum da razo: Kant e o problema da justificao da lei moral na Analtica da razo prtica pura / Luciano Duarte da Silveira; Orientador: Carlos Adriano Ferraz. Pelotas, 2011. 180f.Dissertao (Mestrado em Filosofia) Programa de Ps-Graduao em Filosofia. Instituto de Sociologia e Poltica. Universidade Federal de Pelotas.

1. Factum. 2. Lei Moral. 3. Autonomia. 4. Liberdade. 5. Justificao. I. Ferraz, Carlos Adriano, orient. II. Ttulo. CDD 100

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Banca examinadora

Aprovada em: _________________________________________________

Prof. Dr. Carlos Adriano Ferraz (UFPel) (Orientador)

Prof. Dr. Denis Coitinho Silveira (UFPel)

Prof. Dr. Andr Nilo Klaudat (UFRGS)

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Agradecimentos

Agradeo inicialmente a Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal em Nvel Superior (CAPES) pela bolsa integral de mestrado cujo suporte financeiro foi essencial para a realizao deste projeto. Sou imensamente grato ao professor Carlos Adriano Ferraz pela orientao profissional, sria, competente e comprometida com o teor filosfico do trabalho. Por sua amizade, confiana, companheirismo, pacincia e disponibilidade irrestrita para todas as dvidas suscitadas no decorrer do trabalho, e, sobretudo, pelas inmeras, sinceras e relevantes crticas s minhas pretenses neste projeto, do qual o isento de todos os possveis deslizes cometidos no mesmo, e, pelos quais, assumo inteiramente a reponsabilidade. Sou grato aos professores Denis Coitinho Silveira e Andr Nilo Klaudat pelo aceite e disponibilidade em participar desta banca. Sou grato aos professores Robinson Santos e Joosinho Beckenkamp, pela apreciao do texto na banca de qualificao. Sou imensamente grato ao professor Christian Viktor Hamm pelo suporte e disponibilidade irrestritos s dvidas em relao s eventuais tradues efetuadas do idioma alemo. Sou grato a todos os professores do departamento de filosofia da UFPel irrestritamente, no sentido de que todos colaboraram, certa forma, para minha formao acadmica. Sou grato secretaria do PPG em Filosofia na pessoa da Sr. Mirela Terezinha Bandeira, pela irrestrita disposio para as dvidas burocrticas envolvidas no processo de toda minha formao nesta instituio. Sou grato a meus colegas acadmicos pelas inmeras discusses filosficas, as quais de uma forma ou de outra, refletir-se-o neste trabalho. Sou grato infinitamente aos meus familiares, pelo apoio e suporte emocional, necessrios tanto ao amadurecimento pessoal quanto acadmico.

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Epgrafe De facto, o pensamento kantiano constitui o horizonte inevitvel, a referncia necessria, a presena iniludvel de qualquer estudo e ocupao filosficos. No se pode praticar o filosofar em qualquer das suas etapas, desde as mais iniciais e preparatrias at as mais criativas, sem que se imponham aluses obra de Kant. at lcita a pergunta: haver alguma obra de clara inteno filosfica em que se no mencione o grande pensador de Knigsberg? Poder-se-ia, inclusive, aventurar uma interrogao mais atrevida: ser realmente filosfica uma reflexo que, de uma ou de outra maneira, se no veja obrigada nalgum momento a ter em conta Kant? E mesmo se no encontramos o nome de Kant no ndice onomstico de uma obra filosfica stricto sensu, estar nela ausente todo e qualquer eco do seu pensamento? A tentao est clara: sentimo-nos provocados a declarar, quase

irrefletidamente, que depois de Kant todo o filosofar inclui, em maior ou menor medida e pelo menos nalguma das suas fases, um dilogo com Kant.

Oswaldo Market in: Kant e a recepo da sua obra at os alvores do sculo XX, p.XV. In: MARKET, Oswaldo (Org.). Recepo da Crtica da razo pura: Antologia de escritos sobre Kant (1786-1844). Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1992.

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RESUMO: O Factum der Vernunft (Factum da razo) considerado como um dos mais controversos e difceis problemas na Kritik der praktischen Vernunft (1788), especificamente em sua primeira parte. Contudo, a presente dissertao prope-se a um estudo exegtico e sistemtico da segunda crtica de Immanuel Kant, na perspectiva de estabelecer a gnese e o estatuto do Factum der Vernunft mediante a reconstruo de sua fundamentao moral. A possibilidade da justificao em filosofia moral est intimamente vinculada necessria justificao da prpria lei moral. O Factum consiste em um elemento imprescindvel para o estabelecimento da prova da existncia da prpria liberdade como sendo objetiva. Neste sentido, procederemos a uma reconstruo sistemtica da filosofia moral de Kant a partir da Kritik de reinen Vernunft (1781) e da Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (1785), assim como outras obras de Kant. Tambm procuraremos apoio em alguns autores cuja pesquisa considerando este tema relevante, tentando delinear a possibilidade de uma slida justificao em filosofia moral. PALAVRAS-CHAVE: Factum, Lei moral, Autonomia, Liberdade, Justificao.

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ABSTRACT: The Factum der Vernunft (Fact of reason) is considered one of the most controversial and difficult issues in Kants Kritik der praktischen Vernunft (1788), specifically in its first part. Therefore, the current masters thesis intends to be an exegetical and systematic study of Immanuel Kants second Critique, in a perspective which aims to establish the genesis as well as the statute of the Factum der Vernunft by means of the reconstruction of his moral foundation. The possibility of justification in moral philosophy is intimately connected by a necessary justification of the moral law properly. The Factum consists in a necessary element in order to establish the proof of the existence of an objective freedom. In this sense, we will proceed to a systematic reconstruction of Kants Moral Philosophy since the Kritik der reinen Vernunft (1781) and the Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (1785), as well as other Kants works. We will also look for support to some representative scholars whose research regarding this theme is relevant to the delineation of possibility of a solid justification in moral philosophy. KEY-WORKS: Factum, Moral law, Autonomy, Freedom, Justification.

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Sumrio

Introduo Nota preliminar: Acerca da especificidade do aspecto histrico-filolgico-filosfico na utilizao do termo Factum em sua forma latina (um apelo estilstico com pretenses filosficas)_______ a. Do aspecto histrico b. Do aspecto filolgico c. Do aspecto filosfico 1 Da Kritik der reinen Vernunft Grundlegung zur Metaphysik der Sitten: a problemtica em torno da liberdade e da lei moral 1.1 - A terceira antinomia da razo pura e o problema acerca da lei natural e da liberdade transcendental 1.2 A nona seo das antinomias da razo pura: a dupla via de causalidades possveis e a especificidade negativa da liberdade transcendental 1.3 Da nica possibilidade de um cnone da razo pura e a necessidade do empreendimento de um uso prtico desta razo 1.4 Do conceito de liberdade como chave de explicao para a autonomia da vontade 1.5 Acerca da necessria pressuposio universal da liberdade: a lei moral e o problema da impossibilidade da deduo do princpio supremo da moralidade 1.6 Do interesse da razo em seu uso prtico e das ideias da moralidade 1.6.1 O problema acerca do Crculo vicioso 2 Investigao da Die Analitik der reinen praktischen Vernunft: Acerca da gnese do Factum der Vernunft 2.1 Da proposta fundamental da Kritik der praktischen Vernunft e sua relao para com a Grundlegung zur Metaphysik der Sitten

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2.1.2 Da inverso metodolgica na estrutura da Kritik der praktischen Vernunft 2.2 Das proposies fundamentais da razo prtica pura lei fundamental da razo prtica pura e a especificidade da virtude moral 2.3 Acerca do problema da deduo da lei moral no mbito da Analytik der reinen praktischen Vernunft 2.4 Da razo em sua possvel ampliao no uso prtico diversamente de seu uso especulativo 2.5 Sobre o conceito de um objeto da razo prtica pura 2.6 Acerca do carter semntico do termo Triebfeder: da ideia de um mbil da razo prtica pura 3 Die Analitik der reinen praktischen Vernunft: acerca do estatuto do Factum der Vernunft 3.1 Consideraes acerca do princpio moral e seu aspecto paradoxal como princpio de deduo da faculdade prtica pura da razo 3.2 Do estatuto do Factum der Vernunft na filosofia moral kantiana e a justificao da lei moral Consideraes finais Referncias bibliogrficas

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Lista de abreviaturasAnthropologie Anthropologie in pragmatischer Hinsicht, 1798; Antropologia de um ponto de vista pragmtico.

Beobachtungen

Beobachtungen ber das Gefhl des Schnen und Erhabenen, 1764; Observaes sobre o sentimento do belo e do sublime.

Dilucidatio

Principiorum primorum cognitionis metaphysicae nova dilucidatio, 1755; Nova elucidao dos primeiros princpios do conhecimento metafsico.

Dissertatio

De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis, 1770; Dissertao: Sobre a Forma e os Princpios do Mundo Sensvel e Inteligvel.

Gemeinspruch

ber den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht fr die Praxis, 1793. Sobre a expresso corrente: Isso pode ser correto em teoria, mas nada vale na prtica.

Grundlegung ou GMS.

Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 1785; Fundamentao da metafsica dos costumes.

KpV.

Kritik der prak tischen Vernunft, 1788; Crtica da razo prtica.

KrV.

Kritik der reinen Vernunft, 1781; Crtica da razo pura.

KU.

Kritik der Urteilsk raft, 1790; Crtica da faculdade do juzo.

Logik

Logik , 1800; Lgica.

Met.Nat.

Metaphysische Anfangsgrnde der Naturwissenschaft, 1786; Princpios fundamentais metafsicos da cincia natural.

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MS.

Metaphysik der Sitten, 1797; Metafsica dos costumes.

Rechtslehre

Metaphysische Anfangsgrnde der Rechtlehre, 1797; Princpios fundamentais metafsicos da doutrina do direito.

Tugendlehre

Metaphysische Anfangsgrnde der Tugendlehre, 1798; Princpios fundamentais metafsicos da doutrina da virtude.

Prolegomena

Prolegomena zu einer jeden k nftigen Metaphysik , die als Wissenschaft wird auftreten k nnen, 1783; Prolegmenos a toda a metafsica que se pretenda como cincia.

Preisfrage

Welches sind die wirk lichen Fortschritte, die die Metaphysik seit Leibnitzens und Wollf, 1804; Quais so os verdadeiros progressos que a metafsica realizou na Alemanha, desde os tempos de Leibniz e Wolff.

Preisschrift

Untersuchungen ber die Deutlichk eit Theologie und der Moral, 1764;

der Grundstze der natrlichen

Investigaes sobre a clareza dos princpios da teologia natural e da moral.

Raum

Von dem ersten Grunde der Unterschiedes der Gegenden im Raum, 1768; Sobre o Primeiro fundamento da distino de direes no espao.

Religion

Die Religion innerhalb der Grenzen der bloen Vernunft, 1793; A religio dentro dos limites da mera razo.

Trume

Trume eines Geistersehers, erutert durch Trume der Metaphysik , 1766; Sonhos de um visionrio explicados pelos sonhos da metafsica.

ZeF

Zum ewigen Frieden: Ein philosophischer Entwurf, 1795; Para a paz perptua: um projeto filosfico.

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Obs: As citaes sero feitas a partir da Die Immanuel Kants Werkausgabe in zwlf Bnden Herausgegeben von Wilhelm Weischedel. Frankfurt: Suhrkamp / Insel Verlag, 1968. Para as citaes das obras de Kant utilizaremos a seguinte notao. Kant; abrev. da obra; referncia na obra, n do volume; e respectiva pgina no volume. As citaes traduzidas mantero a notao e abreviao acima exposta, porm, traro o ano e pgina da traduo referente. Outros escritos de Kant no contidos na Suhrkamp Werkausgabe sero devidamente referenciados. Os demais textos seguiro as regras de notao da ABNT.

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Introduo1

A discusso acerca da expresso Factum der Vernunft

consiste certamente

em um ponto nodal no que se refere justificao no mbito da filosofia prtica de Immanuel Kant (1724-1804). Kant se utiliza desta expresso como resoluo para o problema acerca da justificao da lei moral (moralische Gesetz) e tambm da liberdade (Freiheit). O papel central exercido pelo Factum especificamente desenvolvido na Analtica da razo prtica pura, que corresponde primeira parte da sua segunda Crtica, a KpV. Entretanto, j na primeira Crtica, a saber, a KrV que Kant apresenta-nos a liberdade enquanto uma ideia transcendental

(transzendentale Idee) que pode to somente ser pensada pela razo. Na Grundlegung Kant investiga o princpio supremo da moralidade (obersten Prinzips der Moralitt) e para tanto, apresenta-nos entre outros elementos fundamentais, a frmula pela qual se expressa tal princpio moral. Esta frmula consiste no imperativo categrico (kategorische Imperativ) e seus desdobramentos, necessrios em decorrncia da dupla constituio humana, a saber, sensvel e dotada da capacidade do uso de sua racionalidade. Apesar de seus esforos na Grundlegung, em decorrncia de Kant no ter fornecido a to esperada deduo da lei moral, ou seja, no ter chegando a derradeira demonstrao do princpio moral, apresentanos, entretanto, a formulao pela qual este princpio se expressa, e esta corresponde a formulao do imperativo categrico. Por fim, na KpV o autor acredita ser capaz de provar a realidade objetiva da liberdade (KpV, A9), e tambm a efetividade da razo pura enquanto prtica mediante a lei moral (KpV, A72) utilizando-se para tal da figura controversa do Factum. No obstante, as afirmaes de Kant em inmeras passagens da Analtica causam inicialmente certo

estranhamento na leitura de sua filosofia moral. A afirmao da objetividade da razo pura como prtica demonstrada mediante um Factum inexplicvel (KpV, A74),1

Factum da razo - A escolha pela manuteno do termo latino Factum, bem como sua especfica grafia utilizada neste texto, ser explicitada na nota preliminar ao texto imediatamente a seguir desta introduo.

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causa uma discusso acirrada entre muitos comentadores de sua obra em relao as possveis interpretaes acerca do uso deste termo. Dentre os comentadores de Kant esta discusso complexa e no encontra uma soluo comum e definitiva entre os mesmos. H significativas abordagens acerca do assunto como a empreendida por Dieter Henrich sobre a teoria do Factum der Vernunft, na qual o autor utiliza-se, para tratar do problema, da assim chamada sittliche Einsicht (intuio / conhecimento moral), termo tambm controverso por sua possvel aproximao com a ideia de um moral sense, tese notadamente do empirismo britnico; entretanto, a abordagem de Henrich apresenta nuances que merecem consideraes mais acuradas, algo que empreenderemos no decorrer do desenvolvimento do texto em relao no s a Henrich, mas a todos os outros autores mencionados nesta introduo. Lewis White Beck apresenta uma

interessante e significativa proposta no sentido de buscar solucionar este problema em seu importante comentrio acerca da segunda Crtica. Beck prope uma nova semntica na interpretao do sentido do genitivo alemo der na expresso Factum der Vernunft, assim, se (der = for) seria traduzido por fact for reason (fato para a razo) correspondendo a um aporte subjetivista, se (der = of) seria traduzido como fact of reason (fato da razo) e assim assumiria um aspecto objetivista em relao filosofia prtica (BECK, 1984, p.168). Henry Allison destaca que a posio de alguns autores em relao segunda Crtica foi bem menos entusiasta que em relao infrutfera terceira seo da Grundlegung. Est ltima, no entanto, para o consenso geral ao menos aparentava estar no caminho correto (ALLISON, 1980, p.230). Allison apresenta sua reciprocity these (tese da reciprocidade) na abordagem do texto Kantiano na perspectiva de afirmar a consistncia no s da possvel, mas necessria coexistncia entre liberdade e lei moral. Christian Hamm afirma que inicialmente a posio de Kant pareceu ser insuficiente para aqueles que, desde o desenvolvimento da argumentao da Grundlegung, esperavam no mnimo uma deduo transcendental de tal

possibilidade (HAMM, 1998, p.57). Importante tambm o tratamento dado ao problema por Guido Almeida, que aponta para o surgimento do problema na argumentao de Kant quando, ao abandonar a necessidade da deduo transcendental, que seria a prpria efetivao do que ele realmente pretendera dentro da Grundlegung, qual seja encontrar o princpio supremo da moralidade; ao assumir o Factum como princpio justificacional moral o autor teria aparentemente

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deixado de lado um programa muito mais completo de fundamentao em troca de uma mera exposio da frmula como este princpio se apresenta. Ou seja, Kant aparentemente no teria levado a cabo o processo da passagem da mera demonstrao da frmula (imperativo categrico e seus desdobramentos) exposto na segunda seo da Grundlegung, para um momento superior de crtica (ALMEIDA, 1999, p.59), onde se daria a fundamentao propriamente dita. A pretenso inicial da introduo da Grundlegung, a saber, um procurar (Aufsuchung) e, logo aps, um estabelecer (Festsetzung) o princpio supremo da moralidade, parece ter sido abandonada por Kant absolutamente (ALMEIDA, 1999, p.59). Para uma melhor compreenso acerca da problemtica envolvendo a expresso Factum der Vernunft, necessrio adentrarmos profundamente na obra de Kant em passagens especficas, no sentido de melhor compreender a acepo acerca dos elementos constitutivos de sua fundamentao moral. Na KrV, onde Kant empreende uma virada copernicana em filosofia, alicerado agora em sua perspectiva epistemolgico-transcendental, ele oferece na terceira antinomia da razo pura elementos basilares para a posterior investigao moral que empreender, como a distino entre causalidade natural e causalidade por liberdade. Estes so aspectos fundamentais e necessrios para o prprio delineamento do limite que a razo pura no uso especulativo pode alcanar, j que as ideias de liberdade, Deus e imortalidade da alma, so preocupaes para as quais a razo em seu uso especulativo no pode responder satisfatoriamente, embora no possa deixar de pensa-las; bem como, explicita j neste momento inicial de sua investigao crtica, que o arbtrio humano mesmo sensivelmente afetado, no necessariamente determinado, mas pode vir a agir por causa livre. Portanto, urge esclarecer a necessidade de uma esfera prtica, onde o uso prtico da razo se torna necessrio. Daqui decorre a ideia de que a razo no se desdobra em duas razes, mas to somente em dois usos da mesma razo. A Grundlegung, embora receba crticas constantes acerca de seu aspecto formalista, no obstante empreende uma profunda investigao acerca da

necessidade explcita do imperativo categrico, exatamente em decorrncia de o homem encontrar-se nesta bifurcao paradoxal, qual seja, membro de um mundo sensvel que o afeta inevitavelmente, mas que, no entanto, no o determina necessariamente. Neste sentido, Kant estabelece de forma concisa, ainda que nem sempre reconhecida por grande parte de seus crticos, o porqu a idealidade do

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substantivo dever (Pflicht) que diz respeito a uma necessitao (Ntigung), tem de ser abordada (enquanto relacionada a uma vontade imperfeita, caso dos seres humanos), como verbo dever (Sollen) no sentido de uma obrigao (Verbindlichkeit). Esta obrigao, entretanto, no consiste em uma heteronomia, pois os seres, enquanto fazem uso de sua capacidade racional so capazes de representar leis a si prprios e empreender aes segundo uma legislao autnoma. A Analtica da razo prtica pura, e a Grundlegung constituem-se como peas-chave na argumentao de Kant acerca do fundamento tico, pois assentam as bases para o fechamento de seu sistema moral representado propriamente pela MS. A Analtica da segunda Crtica, em sua estrutura e elaborao, apresenta elementos no menos controversos do que aqueles criticados j na Grundlegung. O mais significativo certamente consiste no enigmtico Factum, que permite que se reconhea agora a realidade objetiva da lei moral, e, por conseguinte, tambm da liberdade. Apresenta tambm uma lei fundamental da razo prtica pura (Grundgesetz der reinen praktischen Vernunft) que de certa forma identifica-se com o imperativo categrico (aspecto este que ser devidamente desenvolvido no decorrer deste trabalho). Na terceira seo da Grundlegung, Kant mencionou acerca da necessidade de o homem se pensar ao mesmo tempo como membro de um mundo inteligvel (intelligibilen Welt) e tambm de um mundo sensvel (Sinnenwelt), distino esta que o autor l, apresentou como parte da soluo para o suposto crculo vicioso (Zirkel). Na KpV, o mundo inteligvel (natura archetypa - urbildliche) e o mundo sensvel (natura ectypa nachgebildete) tambm figuram como importantes elementos, inclusive, o mundo inteligvel passa a receber agora uma determinao positiva do Factum, permitindo que conheamos dele (mundo inteligvel) aquilo que lhe prprio, a saber, a lei moral mesma. Kant tambm tece consideraes acerca do sentimento moral (moralische Gefhl), que no se trata absolutamente de um sentimento patolgico, mas, pela conscincia da lei moral, se manifesta no respeito por esta lei mesma. Este sentimento moral, embora no figure como fundamentao da lei, nem do juzo a ela referente, torna possvel a aceitao da mesma como princpio efetivamente vlido para seres que so finitos e imperfeitos. Isto esclarece ainda mais a noo de que virtude moral algo que somente pode ser atribudo propriamente aos homens enquanto fazendo uso de sua racionalidade prtica pura.

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Esta sucinta abordagem buscou introduzir os principais elementos a partir dos quais se constituir nossa argumentao no momento em que nos propomos, no presente trabalho, a um estudo exegtico e sistemtico da Analtica da segunda Crtica de Kant. Mediante este enfoque, pretendemos elucidar alguns pontos especficos, no sentido de estabelecer a gnese e o estatuto do termo Factum, e, por conseguinte da expresso Factum der Vernunft, mediante a reconstruo da argumentao do autor em relao a sua fundamentao moral. Como resultado desta reconstruo, buscamos explicitar de que forma podemos afirmar a possibilidade de uma justificao em filosofia moral mediante a justificao da prpria lei moral. Com efeito, em tal argumentao, Kant parece trazer a figura do Factum como um elemento imprescindvel para que se possa estabelecer a prova da existncia da prpria liberdade como sendo objetiva, bem como a validao tambm objetiva das demais ideias da razo, a saber, Deus e imortalidade da alma. Para tanto, buscar-se- tambm sustentao textual a partir da literatura disponvel dos principais tericos acerca do tema tratado.

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Nota preliminar

Acerca da especificidade do aspecto histrico-filolgico-filosfico na utilizao do termo Factum em sua forma latina (Um apelo estilstico com pretenses filosficas)

Na investigao acerca da enigmtica expresso Factum der Vernunft (Factum da razo), parece-nos ser muito especfica a utilizao do termo Factum em sua forma latina, empreendida por Kant na primeira edio da KpV, editada por Johann Friedrich Hartknoch em Riga, 1788 2. Em decorrncia desta especificidade, pensamos ser no mnimo prudente oferecer algum esclarecimento acerca de nossa escolha em utilizar, neste trabalho, o termo Factum como Kant o utilizou naquela primeira edio, j que a mesma contou com a aprovao do prprio autor. Em verdade, tal insistncia em seguir o texto original kantiano poderia sugerir uma escolha meramente estilstica, visto que no alemo standard (Hochdeutsch) ou mesmo na nova ortografia (Neue Rechtschreibung) contempornea a palavra vernacular Faktum foi, e tem sido utilizada nas edies mais respeitadas das obras de Immanuel Kant, que se esclarea desde j, sem nenhum nus para a compreenso das mesmas. Alm das consagradas edies da Kniglich

Preuischen Akademie der Wissenschaften, conta-se tambm com outras edies igualmente consagradas como as edies da Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Suhrkamp / Insel Verlag, Felix Meiner Verlag, Philipp Reclam ou ainda Knemann Verlagsgesellschaft; sendo que, em todas as mencionadas edies, o uso do termo2

Johann Friedrich Hartknoch (1740-1789) iniciou seu trabalho como editor por volta de 1761, com Johann Jacob Kantner (1738-1786) em Knigsberg. Foi diretor da editora de Kantner em Mitau em 1762, e comeou seu prprio negcio aproximadamente em 1765, fixando-se em Riga no ano de 1767. Foi responsvel pela edio das mais importantes obras de Kant, entre elas: Trume eines Geistersehers, erutert durch Trume der Metaphysik (1766), Sonhos de um visionrio explicados pelos sonhos da metafsica, [sendo editada ao mesmo tempo por Johann Jacob Kanter (1738-1786) em Knigsberg, e por Hartknoch em Riga e Mitau; Kritik der reinen Vernunft (1781) 1ed; Prolegomena zu einer jeden k nftigen Metaphysik , die als Wissenschaft wird auftreten k nnen (1783), Prolegmenos a toda a metafsica futura que se pretenda como cincia, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (1785), Metaphysiche Anfangsgrnde der Naturwissenschaft (1786), Primeiros princpios metafsicos da cincia da natureza; Kritik der reinen Vernunft (1787) 2ed.; e ainda a Kritik der prak tischen Vernunft 1ed.(1788).

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Faktum corrente e correto de acordo com a gramtica contempornea alem. Mas ento, qual a pretenso em mantermos a grafia do termo nesta forma j em desuso e superada pelas reformas ortogrficas da lngua alem? Como pretendemos esclarecer imediatamente a seguir, a escolha em manter a forma latina original Factum carrega consigo no uma pretenso arbitrria, menos ainda meramente estilstica, mas busca apontar para uma perspectiva filosfica de tal uso, o que implica em um apelo estilstico com pretenses filosficas. Para o esclarecimento acerca desta escolha, h que se apontar para trs aspectos relevantes acerca do termo Factum, bem como, o observar a partir destes aspectos, no sentido de podermos definir tanto sua gnese quanto tambm seu estatuto. Os trs aspectos so: O aspecto histrico, o filolgico e o filosfico.

a. Do aspecto histrico

Christian Hamm chama-nos a ateno para o que ele aponta como sendo o aspecto crucial no que se refere ao uso especfico de conceitos na obra kantiana, qual seja de que, ao perodo intelectual de Kant, precedeu-se uma intensa movimentao no sentido de uma emancipao da lngua latina. O latim era a lngua corrente nos meios acadmicos da poca, como facilmente observamos em autores anteriores Kant como, por exemplo, Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), e o jurista Christian Thomasius (1655-1728) 3, tambm Christian von Wolff (1679-1754) e Alexander Gottlieb von Baumgarten (1714-1762), e ainda nos prprios escritos pr-crticos de Kant 4. Alis, parece-nos tambm pertinente considerar o fato de que, os escritos destinados especificamente ao mbito acadmico, notadamente suas dissertaes como, Meditationum quarundum de igne succinta delineatio (De Igne)3

Cf. Hffe Kant no escreve no idioma acadmico internacional dos doutos, o latim, mas sim como j fizeram, em parte, G.W. Leibniz, Thomasius e Wolff em claro alemo (HFFE, Otfried. Immanuel Kant. 2005, p.7). 4 Cf. Hamm Outro aspecto crucial do problema do uso dos conceitos em Kant e, ao mesmo tempo, fonte de muitos erros, ambiguidades e confuses nas tradues das suas obras para o portugus reside no fato histrico conhecido de que, nos tempos de Kant, o discurso cientfico-filosfico estava passando por um processo de emancipao lingustica do latim, at ento a lngua franca do mundo erudito europeu, encontrando-se, portanto, ainda em vias de construo. Os predecessores imediatos (como, p.ex., Wolff ou Baumgarten) e tambm boa parte dos contemporneos de Kant tinham publicado suas obras em latim, e at as chamadas obras pr-crticas do prprio Kant foram escritas, em parte, em lngua latina (HAMM, Christiam V. A fuso de campos semnticos: o exemplo de einsehen, verstehen, begreifen. 2009, p.56).

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(1755)

5

, sua Habilitationsschrift intutulada Principiorum primorum cognitionis

metaphysicae nova dilucidatio (1755) 6, Metaphysicae cum geometria iunctae usus in philosophia naturali, cuius specimen I. continet monadologiam physicam (1756) 7 e sua Dissertatio De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis (1770)8

foram todas escritas em latim. Distintamente, seus escritos de alcance no restritamente acadmicos, publicados em peridicos de circulao mais ampla na poca, foram em sua totalidade, escritos em alemo, como por exemplo, Rezension von Silberschlags Schrift: Theorie der am 23. Juli 1762 Philanthropin (1776) Politische Zeitungen12 11 10 9

(1764), ber das Dessauer

ambos publicados no Knigsbergische Gelehrte und

; alm dos mais importantes opsculos tardios de Kant aps a Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbrgerlichen13

primeira Crtica, como Absicht (1784)

, Beantwortung der Frage: Was ist Aufklrung? (1784)14

, ambos

publicados no peridico Berlinische Monatsschrift Allgemeine Literatur-Zeitung 15.

; entre outros publicados no

Embora este fator histrico seja significativamente representativo no que respeita ao mbito filolgico acadmico ao qual Kant evidentemente prestou tambm seus servios (mediante o exerccio docente em Knigsberg)16

, devemos avanar

na busca dos motivos mais fundamentais, que no nosso entender, motivaram Kant em sua escolha deste termo to especfico; o que, dada a acurada escrita filosfica5

Esboo sucinto de algumas meditaes sobre o fogo (tambm conhecida como, Dissertao sobre o fogo). 6 Nova elucidao dos primeiros princpios do conhecimento metafsico. 7 O Emprego na Filosofia Natural da Metafsica Combinada Com a Geometria, Cujo Espcime I Contm a Monadologia Fsica. 8 Sobre a forma e os princpios do mundo sensvel e inteligvel Dissertao de 1770. 9 Teoria do globo de fogo aparecido em 23 de Julho de 1762. 10 Sobre a filantropia de Dessau. 11 Editado por Johann Jakob Kanter (at 1796) e tambm por Friedrich Nicolovius (1768-1836). 12 Ideia de uma histria universal de um ponto de vista cosmopolita. 13 Resposta a pergunta: o que o esclarecimento?. 14 Editado por Friedrich Gedike (1754-1803) e Johann Erich Biester (1749-1816). 15 Editado por Christian Gottfried Schtz (1747-1832) e Gottlieb Hufeland (1760-1817). 16 Cf. Caygill Com efeito, Kant no s ampliou a traduo de Christian Wolff da terminologia filosfica latina para o vernculo, mas, tambm a cotejou com reas de experincia previamente excludas da filosofia. Reinventou a linguagem filosfica ao introduzir nela termos e conceitos oriundos de domnios estranhos filosofia, assim como redefiniu deliberadamente muitos dos tradicionais. A matriz dessa transformao lingustica e conceitual reside nas aulas que deu ao longo de mais de quatro dcadas sobre uma vasta gama de assuntos. Nelas explicou os conceitos filosficos tradicionais dos compndios oficialmente recomendados por meio de matrias extradas da cincia natural do seu tempo, jornais, romances e poesia, assim como de livros de medicina e de viagens (Introduo: Kant e a linguagem da filosofia; in: CAYGILL, Howard. Dicionrio Kant. 2000, p.IX).

22

de Kant

17

, no permite que o especfico uso do termo seja compreendido como uma

escolha simplesmente gramatical 18.

b. Do aspecto filolgico

Na leitura da carta de Kant endereada a Christian Gottfried Schtz (17471832) datada de 25 de Junho de 1787 lemos,Meu editor tem a traduo latina da segunda edio de minha Crtica encomendada ao Sr. Professor Born em Leipzig. Foi muita generosidade sua em oferecer-se para revisar a traduo por ele elaborada, caso ela lhe fosse enviada em fascculos, para adaptar-lhe o estilo que talvez tenha se preocupado em excesso com a elegncia mais que correo e preciso escolstica, se bem que no to 19 latina clssica (KANT, Briefwechsel. 1912, p.353) .

Na passagem acima transcrita da carta, escrita por Kant em decorrncia da iminente reedio da KrV, portanto, um ano antes da primeira edio da KpV, na qual o prprio Kant menciona o louvvel empenho de Friedrich Gottlob Born (17431807) na disponibilidade em traduzir a segunda edio da primeira Crtica para o latim, possvel perceber a reivindicao de Kant ao Sr. Schtz, de que estava preocupado com a integridade escolstica dedicada aos seus escritos mais do que com o mero apelo estilstico empreendido aos mesmos. exatamente em decorrncia deste ponto de vista, e no que tange especificamente ao uso do termo Factum, que seguiremos a edio de Hartknoch.17

Cf. Hamm ...o uso que Kant faz de conceitos filosficos tanto aqueles tirados da linguagem corrente da poca como os termos tcnicos da prpria disciplina foi de extrema meticulosidade e, em geral, tambm de grande homogeneidade. Isso significa que vemos s muito raras vezes que um termo, uma vez introduzido por Kant no seu discurso filosfico, muda o seu significado ou vem sendo substitudo, conforme ao contexto, por outro termo supostamente melhor, mais preciso ou mais elegante (HAMM, 2009, p.55). 18 Cf. Rohden A importncia da manuteno da unidade terminolgica de Kant deve-se a que Kant, de um lado, beneficiou-se diretamente das inovaes da terminologia filosfica introduzidas por Christian Wolff na lngua alem. Num papel semelhante ao de Ccero, que latinizou a terminologia filosfica grega, Wolff foi o pai da terminologia filosfica alem, traduzindo-a de suas fontes latinas (...) De outro lado, porm, Kant deu um grande passo alm de Wolff, reintroduzindo na terminologia filosfica alem uma srie de palavras e conceitos gregos que haviam cado em desuso, como categoria, autonomia, antinomia e etc (in: CAYGILL, 2000, pXI). 19 Mein Verleger hat die bersetzung der zweiten Edition meiner Kritik ins Lateinische bei Hrn. Prof. Born in Leipzig bestellt. Sie waren so gtig, sich dazu zu offerieren, die von ihm verfertigte bersetzung, wenn Sie Ihnen heftweise zugeschick t wrde, durchzusehen, um den Stil, der vielleicht zu sehr auf die Eleganz angelegt sein mchte, mehr der scholastischen, wenngleich nicht so altlateinischen Richtigk eit und Bestimmtheit anzupassen.

23

As edies de Hartknoch prezaram pela nomenclatura latina utilizada por Kant em sua argumentao. o caso tambm, de outro termo utilizado por Kant na Dialtica de sua primeira Crtica, a saber, o termo Canon20

. Tanto a KrV quanto a

Grundlegung nas edies posteriores s de Hartknoch, passaram a utilizar a forma germanizada Kanon, obviamente em perfeita conformidade com as reformas ortogrficas da prpria lngua germnica21

. No entanto, as disparidades acerca do

termo Canon so irrelevantes em relao ao termo Factum que especificamente o foco de nosso estudo aqui. Alm do que, no caso de Canon no se verificou a princpio nenhum contraste na contextualizao posterior, distintamente do que parece nos proporcionar o estudo do uso do termo Factum. Em relao a este ltimo, as incongruncias nas tradues so maiores, tal termo parece assumir uma significao muito mais especfica (o que no parece ser o caso de Canon), o problema torna-se mais delicado, e o trabalho desta dissertao pretende, mediante uma discusso propriamente filosfica, oferecer alguns apontes sobre tal

problemtica.20

Este aparece na primeira edio da KrV, de 1781, bem como na segunda, de 1787 respectivamente nas passagens A 795; B 823; Der Canon der reinen Vernunft, e permanece nas edies da mesma forma por no mnimo dez anos seguidos ltima edio empreendida pelo prprio Hartknoch, que veio a falecer em 1789, dois anos aps ter editado a segunda edio da primeira Crtica, e um aps a primeira edio da segunda Crtica. No que respeita afirmao acima mencionada, estamos alicerados na intitulada 5 Auflage da primeira Crtica datada de 1799. (KANT, Immanuel. Critik der reinen Vernunft. Fnfte Auflage. Leipzig, bei Johann Friedrich Hartknoch, 1799). O mesmo verifica-se que nas primeiras edies da Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (1786) editadas por Hartknoch que mantiveram tambm a forma latina Canon; no prefcio da segunda edio vemos ...ein Canon fr den Verstand (KANT, Immanuel. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. Zweite Auflage. Riga, bei Johann Friedrich Hartknoch, 1786). 21 Importante ressaltar que, tais problemas surgem apenas na exegese do texto original em alemo e a comparao entre suas edies mais antigas e mais recentes. No caso especificamente do termo Canon, as tradues em idiomas de radicais neo-latinos no divergem dos originais de Hartknoch, bem como no divergem entre si, obviamente em decorrncia da prpria raiz latina que est na base tanto do francs, italiano, espanhol e tambm do idioma portugus. Ainda a respeito do Canon, as nicas excees talvez sejam as tradues em ingls, que embora no seja radicalizada no latim, tambm respeitam a forma latinizada. Para melhor compreenso comparar as edies: Em francs Critique de la raison pure. (Trad. De J. Tissot) [em dois tomos]. Paris: Librairie Philosophique de Ladrange, 1845; tambm Critique de la raison pure (par Alexandre J.-L. Delamarre et Franois Marty). Paris: Gallimard, 1980, partir da traduo de Jules Barni. [em dois tomos]. Paris: Ernest Flammarion, sd; em italiano: Critica della ragion pura. (Trad. G. Gentile; G. Lombardo Radice). Laterza, 2005; Em portugus: Crtica da razo pura. (Trad. Valrio Rohden e Udo Baldur Moosburger). So Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleo Os Pensadores). Crtica da razo pura. (Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujo). 5ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001. Em espanhol: Crtica de la razn pura. (Trad. Manuel Garcia Morente). Madrid, Librera General de Victoriano Surez, 1928. em ingls Critique of pure reason. (Trans. F. Max Mller). London: Macmillan and Co., 1881; Critique of pure reason. (Trans. J.M.D. Meiklejohn). London: George Bell and Sons, 1890. Critique of pure reason (Trans. Paul Guyer). Cambridge: Cambridge University Press, 1998.

24

Em relao especificamente ao Factum, nossa escolha assemelha-se a de Valrio Rohden em sua traduo da KpV para o portugus, Crtica da razo prtica, pela editora Martins Fontes no ano de 2003, e, certa forma, tomamos esta como modelo. Na edio acima mencionada, Rohden mantm o termo Factum no original utilizando-o na pgina espelhada original em minsculo, diferindo, portanto, de nosso uso, pois a manteremos em maisculo como no texto original alemo. Concordamos com Rohden no sentido de sua traduo estar em acordo com o apelo do prprio Kant exposto na carta acima mencionada, um ideal que o prprio tradutor destaca como sendo uma conditio sine qua non 22. O termo Factum aparece na Analtica da razo prtica pura em oito passagens especficas: estas so, A 9, A 56, A 72, A 74, A 81, A 96, A 163 e A 187. Na edio de Hartknoch, em todas as referidas passagens, a grafia do termo Factum aparece em latim e substantivado (com a primeira letra em maisculo), o que corrobora ainda mais a ideia do destaque pretendido por Kant deste termo j que substantiva o mesmo. Em nosso trabalho, citaremos o Factum em latim sempre em itlico e com a primeira letra em maisculo, mantendo a grafia do texto original da primeira edio no sentido de destacar o carter substantivado do mesmo, bem como ressaltar a importncia deste termo como elemento fundamental no que concerne fundamentao moral kantiana propriamente dita23

. Como antes

mencionado, as edies impressas aps 1788 apresentam o termo j em sua forma germanizada corrente, com K, portanto, Faktum. necessrio, entretanto, atentarmos para o correlato vernacular germnico de Faktum, neste caso, Tatsache,22

Cf. Rohden - A presente traduo tenta mais a correo e preciso escolstica do que a elegncia de uma traduo independente de sua forma original. Certamente se deve procurar combinar ambos os ideais, mas concretizando o seguindo em decorrncia do primeiro, que sua conditio sine qua non (ROHDEN, 2003, p.XXXV). ROHDEN, 2003 corresponde a referncia introduo que o Vlrio Rohden escreveu para a sua traduo da KpV para o portugus; Crtica da razo prtica. (Edio Bilngue). So Paulo: Martins Fontes, 2003. Entretanto, discordamos de seu ponto de vista em relao traduo do termo Triebfeder por motivo, exposto no terceiro captulo da Analtica da razo prtica pura. Pensamos, como melhor traduo para este termo contextualizado nesta passagem, o uso da palavra mbil. Para esta abordagem, nos serviremos dos estudos de Christian Hamm. Na passagem KpV, A 126, Valrio Rohden utilizou-se do termo motivo para traduzir Triebfeder, que cremos ser necessrio, nesta passagem, traduzido por mbil. A exposio completa deste problema encontra-se na seo intitulada - Acerca do carter semntico do termo Triebfeder: Da ideia de um mbil da razo prtica pura, (Cap.II, 2.7). 23 Cabe ressaltar que, no desenvolvimento do trabalho faremos men o s outras obras em que este termo aparece e sua relao com a segunda Crtica.

25

ou, especificamente, um fato emprico; ainda que em alguns dicionrios no se faa tal distino24

.

c. Do aspecto filosfico

Conforme Rohden, e neste sentido concordamos com sua interpretao, o uso do Factum em latim e em maisculo consiste exatamente em efetuar a distino entre Factum (ato da razo) e Tatsache (fato emprico)25

. Tal distino permite que

Kant efetue um ajuste sutil, porm, significativo na linguagem dos juristas dos quais se utizava em suas aulas, pelo fato de que, em alguns casos, permitiam aqueles uma sinonmia entre ato e fato abarcados indistintamente pelo termo Factum27 26

.

Interpretao semelhante parece ser a de Guido Almeida, para o qual, tambm se torna clara a distino pretendida por Kant entre Factum e Tatsache28

. Portanto, fica

estabelecido ab initio, no se estar aqui, a tratar de um fato no sentido emprico do termo24

. Neste nterim, o uso de Factum em latim parece bastante pertinente e em

Faktum como Tatsache in: WEIGANG, L.K. Deutsches Wrterbuch, 1909, p.493 Faktum; n. (-s, PI. Fakta): Tatsache. Das lat. factum, s. o. 1703 im Zeitungslex; VITOR, Wilhelm Deutsches Aussprachewrterbuch, 1921, p.119 - Faktum (Tatsache) faktum ; -ta -ta; KLEINPAUL, Rudolf Deutsches Fremdwrterbuch, 1920, p.61 - Faktum, Partizipium Passivi von facio, die Tatsache. WESSELY, Emmanuel. Thieme-Preusser dictionary of English and German languages, 1909, p.1057 (187). 25 Cf. Rohden Emprega-se, como o fez Kant excepcionalmente com letra maiscula na KpV - , a forma latina factum, para distingui-la de Tatsache, fato em seu sentido emprico. A forma germanizada Fak tum, adotada posteriormente, no de Kant (ROHDEN, 2003, p.15). 26 Cf. Henrich We must now turn to question about the argumentative form of a juridical deduction. They have been discussed by the theoreticians of natural law, and the first to come up with a definition of what a deduction consists in was Christian Wolff. The basic distinction between types of rights is between innate and acquired rights. In J.S. Ptter and G. Achenwall (the authors of Kants textbook), these are called absolute and hypothetical rights, respectively. Hypothetical rights originate in a "fa ct" (factum, meaning both "fact" and "action"), which must exist before the right in question can come into being - mostly from an action by virtue of which the right is "acquired". Innate or absolute rights, conversely, are inseparable from a human being as such. Humans by their very nature posses such rights (HENRICH, D. Kants notion of a deduction and the methodological background of the first Critique. 1989, p.34). 27 Guido Almeida esclarece que a escolha de Kant parece procedente, pois utiliza Factum em detrimento da vernacular palavra alem Tatsache e diz: Em latim, Factum no tem, pois, o significado que o derivado facto tem nas lnguas romnticas, e a palavra que, em alemo, corresponde ao substantivo Factum Tat. A escolha da expresso latina Factum pode ser tomada, ento, como pelo menos um indcio de que Kant a entendia no sentido de Tat. Num segundo momento ainda menciona: ...a palavra Factum usada nos tratados de filosofia moral e do direito da poca de Kant para designar o acto ou ao imputvel (ALMEIDA, Guido. Kant e o facto da razo Cognitivismo ou decisionismo moral? 1998, p.58). 28 Alguns dicionrios, mesmo que se tratando da grafia Fak tum, o colocam como um ato, e mesmo como um fato, este como sendo um fato para o qual no se tem uma manifestao notria. o caso de: SCHULZ, Hans. Deutsches Fremdwrterbuch, 1913, p.201 - ...in der gerichtssprache Geschehnis

26

acordo com o pensamento de Kant e sua ideia de que o Factum consiste, sim, em um ato da prpria razo, mediante o qual a objetividade da razo prtica pura se prova por um ato, sem que necessitemos demonstrar algo de emprico como prova. Neste sentido uma nova abordagem semntica em relao ao termo dever ser empreendida29

.

O objetivo em analisar rigorosamente os aspectos anteriormente citados, na pretenso da manuteno do termo Factum como no original parece implicar na necessidade de uma mais acurada pesquisa acerca do entendimento do termo aliada a considerao filosfica a partir da abordagem do texto a ser desenvolvido a seguir, e possibilita a abertura para uma discusso acerca da real inteno de Kant em fazer uso to especfico de tal termo, sendo que para tal, tambm ser necessria a apreciao de outas obras de Kant concomitantemente30

. Entretanto,

necessrio esclarecer que no h descrdito algum nas edies em que o termo grafado Faktum, desde que se compreenda no se tratar de um fato emprico, o que, certamente, implicaria num conflito interno em relao teoria do conhecimento desenvolvida por Kant na sistemtica de sua primeira Crtica. Delineados de forma geral os aspectos principais relacionados ao Factum, passemos ento a uma apreciao mais filosfica do mesmo. No que respeita ao texto original, e no que tange especificamente ao termo Factum, seguiremos, pois, a edio de Hartknoch. Para a anlise do texto da segunda Crtica, comparada edio de Hartknoch, bem como em relao a todas as outras obras de Kant neste trabalho citadas, seguiremos a Suhrkamp Taschenbuch Verlag editada por Wilhelm Weischedel. Kants Werke in zwlf Bnden. Frankfurt: Suhrkamp / Insel Verlag, 1968; concomitantemente cotejando as vrias tradues que nos foram disponveis para consulta. Faremos meno s traduesHandlung; bes.auch Delikt (Vgl.faktisch). Belege: Lauterbeck 1559 Regentenbuch s.157b da der Trabant das Faktum leugnete. Dorneck 1576 Practica n. Proze s.4b wo das faktum an im selbst nicht notorium oder offenbar. 29 Corroboram certa forma, nesta perspectiva: GEORGES, Karl Ernst. Lateinisch Deutsches Handwrterbuch, 1843, p.1438 - i, n. (v.o, factus, a, um), 1) Das Gemachte;...das Geschehene, die That, Handlung, meum factum. No sentido de um Factum originrio: KRUG, Wilhelm Traugott. Allgemeines Handwrterbuch der philosophischen Wissenschaften, 1838, p.395 Factor und Factum Zusatz: Factorum ist neugebildet durch zusammenziehung aus qui facit totum. i.e. factor primarius. Em alguns dicionrios de Latim-Ingls tambm encontramos o termo no sentido de uma a o. o caso de: CROOKS, G.R. A new Latin-English, 1867, p.352 i,n. [parti of facio]; anything done, a deed, an action. ...a form placed at the commencement of official decrees and edicts. 30 Cf. Rohden ...tradutores no familiarizados com a doutrina kantiana tendem a confundir desde uma perspectiva de linguagem ordinria, Verstand (entendimento), Vernunft (razo) e Urteilskraft

27

e edies utilizadas no decorrer do texto, bem como, encontrar-se-o as mesmas devidamente referenciadas na bibliografia ao final deste trabalho.

(faculdade de juzo) como se fossem sinnimos. Mas neste caso, no se justificaria a elaborao de trs diferentes Crticas (ROHDEN, Valrio. Razo prtica pura. 1997, p.69).

28

1 Da Kritik der reinen Vernunft Grundlegung zur Metaphysik der Sitten: a problemtica em torno da liberdade e da lei moral 1.1 A terceira antinomia da razo pura e a investigao acerca da lei natural e da liberdade transcendental31

Em sua obra KrV, na seo das antinomias

da razo pura, especificamente

em sua terceira antinomia, Kant engendra uma investigao acerca do determinismo ou no determinismo, ou seja, entre liberdade e determinao. Esta seo representa, portanto, um momento extremamente significativo que suscita

importantes questes ainda no completamente esclarecidas ao final de todo o desenvolvimento dos captulos antecedentes Dialtica da primeira crtica. Esta parece ser no s a perspectiva na anlise de Klaus Dsing, para quem a terceira antinomia representa uma distinta e fundamental posio na Dialtica32

, mas,

parece ser tambm a posio de Otfried Hffe, que em sua abordagem coloca a terceira antinomia como ponto fulcral, onde, a partir de tal esclarecimento, Kant agora poder engendrar as bases inclusive para a derradeira fundamentao da31

Kant utilizou a forma das antinomias na KrV como o fez posteriormente na dialtica tanto da KpV, como tambm na KU, contrapondo teses opostas que, no entanto, so igualmente justificveis. Kant parece julgar que ...tais inferncias assinalam uma ampliao ilegtima da razo humana finita para alm de sua verdadeira jurisdio (CAYGILL, 2000, p.28). Esta perspectiva de Caygill merece uma considerao mais atenta. Na antiguidade o termo antinomia j era utilizado nas escolas megrica e estica, e l recebia tambm o nome de paradoxo como tambm dilema. Porm, na filosofia antiga, o termo estava diretamente ligado ao mbito da lgica (ABBAGNANO, Nicola. Dicionrio de filosofia. 2003, p.63). A partir da perspectiva de Marcus Fabius Quintilianus (35-100) jurista, fillogo e retrico, em sua obra monumental intitulada Institutio Oratoria (12 Vols) (95), as antinomias se tornam uma forma retrica para uso na esfera jurdica. Kant parece utilizar as antinomias neste sentido, pois, a maneira de dispor as proposies, lado a lado, idntica a de Quintilianus (ver Immanuel Kants Werke, Band III. Berlin: Walter de Gruyter, 1968, p.308). Kant muito provavelmente foi influenciado pelo perodo imediatamente anterior ao seu, pois, como lembra Gaygill A forma foi largamente usada na jurisprudncia do sculo XVII (...) para assinalar as diferenas entre leis decorrentes de choques entre jurisdies legais (CAYGILL, 2000, p.28). 32 Cf. Dsing - O extraordinrio propriamente dito da metafsica constitui a resistncia das ideias cosmolgicas. onde a metafsica se despedaa por si em posies contraditrias, que podem ser formuladas em teses e antteses e ser providas de comprovaes igualmente consistentes. J essas antinomias comprovam a Kant que tal metafsica carece de consistncia, No entanto, ele no fica nesse ceticismo referente a esta metafsica, mas alcana novos e positivos resultados na soluo das antinomias. (...)...com base na terceira antinomia, que, para Kant, a mais importante e aquela que estabelece a relao com a filosofia prtica (DSING, Klaus. Immanuel Kant: Iluminismo e crtica. 2000, p.250).

29

prpria tica

33

. R.M. Wenley nos chama a ateno para uma perspectiva bastante34

intrigante, e certa forma ainda pouco abordada atualmente, esta diz respeito questo acerca do aspecto orgnico implcito na discusso da terceira antinomia .

Entretanto, cabe a advertncia de que este problema acerca do organismo, o qual necessariamente traz pauta a questo sobre a teleologia, objeto de profunda reflexo de Kant, e que segundo Timothy Lenoir o coloca juntamente de Friedrich Blumenbach (1752-1840) como assumindo papel fundamental na biologia da Alemanha pr-romntica, somente vem a lume em escritos posteriores segunda edio da KrV, a saber, entre os anos de 1787 e 1788 35. Na terceira seo das antinomias, h uma postura crtica sob a qual Kant agora analisa os problemas filosficos partindo da argumentao exposta nas sees anteriores Dialtica, a qual ele denomina como filosofia transcendental33

36

.

Cf. Hffe - ...a terceira antinomia refere-se oposio entre liberdade e determinao plena e , por isso, decisiva para a fundamentao da tica (HFFE, 2005, p.153). 34 Cf. Wenley The Antinomy of Relation (third). Here we are on somewhat different ground. The foregoing antinomies may be termed mathematical they deal with dead things; but here we come to consider the organic. This antinomy chiefly concerns casual relation (WENLEY, R.M. An outline introductory to Kants Critique of practical reason. 1897, p.75). 35 Cf. Lenoir One of the most interesting and previously unexplored chapters in the history of German biology is the role of Immanuel Kant in helping to shape the theoretical foundations of the life sciences between 1790 and the late 1840s. There are numerous indications that the new physiology which emerged during this period was indebt to Kant for many of its central methodological insights (LENOIR, Timoty. Kant, Blumenbach, and vital meterialism in German biology. Isis, 1980, p.77). Neste sentido, para uma melhor compreenso acerca do assunto organismo ou mesmo, do problema teleolgico que o envolve, importantes leituras sero as obras de Kant: ber den Gebrauch teleologischer Prinzipien in der Philosophie, 1788, Sobre o uso de princpios teleolgicos em filosofia, obra publicada no Der Deutsche Merk ur, Weimar, Janeiro e Fevereiro de 1788, a Dialtica da KpV, 1788, e a segunda parte da KU, 1790. Ver tambm: BARTUSCHAT, W. Zum systematischen ort von Kants Kritik der Urteilskraft. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1972; LENOIR, T. The strategy of life teleology and mechanics in nineteenth century german biology. Chicago: Chicago University Press, 1989. FERRAZ, C.A. Do juzo teleolgico como propedutica teologia moral em Kant. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. Ainda EISLER, Rudolf. Kant Lexikon. 2008, p.404. 36 O sentido do uso do termo transcendental em Kant difere do uso deste termo por parte dos medievais onde o mesmo caracterizava principalmente os atributos extra-categoriais dos seres: unidade, verdade, bondade e beleza (CAYGILL, 2000, p.311). Na introduo KrV Kant chama a ateno para a necessidade no da elaborao de um sistema doutrinrio de conhecimento, mas antes, de uma propedutica que pudesse respectivamente determinar e delimitar as fontes e limites da razo pura, isto consistiria, portanto, na sua filosofia transcendental. Kant ento afirmar: Chamo transcendental a todo o conhecimento que em geral se ocupa menos dos objetos, que do nosso modo de os conhecer, na medida em que este deve ser possvel a priori (KANT. KrV, A 12, B 25; 2010, p.53). Para alm da distino em relao aos medievais, e, consequentemente, de maior significao para a filosofia de Kant, ser o avano e a possibilidade que esta nova perspectiva transcendental lhe propiciar na investigao de problemas com os quais Kant h muito se via envolvido desde sua primeira obra Gedank en von der wahren Schtzung der lebendingen Krfte (1746), Pensamentos para uma verdadeira avaliao das foras vivas . Naquele momento, Kant tentava contribuir com o debate moderno que, por um lado buscava fundamentos na perspectiva da geometria fsica de Ren Descates (1596-1650), e na matemtica indutiva de Sir Isaac Newton (1643-1727), sendo que, tais perspectivas juntas, ...undermined both the concepts and methods of the old Aristotelianism (BEISER, Frederick. C. Kants intelectual development: 1746-1781. 1999, p.27); bem como, por outro lado, a perspectiva de Gottfried Wilhelm Von Leibniz (1646-1716) e seu

30

Kuno Fischer aponta como possvel, a partir desta perspectiva, operar a distino entre realismo e idealismo na obra de Kant37

. Neste sentido, a terceira antinomia

fomenta uma discusso fundamental acerca dos limites da possibilidade de se afirmar o conhecimento ou no, da existncia da liberdade. Ou ainda, concordantes com o prprio Kant, nos apontam Whitney & Fogel, ao menos mostrar que a possibilidade da liberdade no um absurdo38

. Segundo as palavras de Eric

Watkins, a resoluo do conflito suscitado nesta passagem parece depender necessariamente de uma tomada de posio concordante com o idealismo transcendental39

. Sendo que, este distinto idealismo, que na perspectiva de Roger40

Scruton urge como uma pergunta no mnimo intrigante

, do ponto de vista de Karl

maior entusiasta, a saber, Christian Wolff (1646-1716) tambm eram enormemente cultuadas. A chamada escola wolffiana, porm, recebeu crticas severas em relao a sua elaborao sistemtica da filosofia de Leibniz, Kant empreende tal crtica na sua Dilucidatio, em conformidade com o pensamento de Christian August Crusius (1715-1775), tambm entusiasta de Leibniz, mas crtico de Wolff (HFFE, 2005, p.9). Porm, Segundo Paul Guyer, no mbito prtico Kant took the side of Leibnizian compatibilism between free will and determinism rather than the radical incompatibilism of the anti-Wolffian Pietist philosopher Christian August Crusius (GUYER, Paul. Introduction: The starry heavens and the moral law. 1999, p.6). Neste nterim, a proposta filosfica de Kant consistiu num avano que permitiu a ele transformar a pergunta fundamental da metafsica para Como o conhecimento sinttico a priori possvel?. Neste sentido, Roger Scruton nos esclarece, Kant comparava sua resposta a essa pergunta qual ele deu o vvido nome de idealismo transcendental revoluo copernicana em astronomia, porque, como Coprnico, ele se afastara da viso fechada, que v uma coisa como central, para uma viso mais ampla, a partir da qual essa coisa (nesse caso as capacidades do entendimento humano) pode ser examinada e criticada. (SCRUTON, Roger. Uma breve histria da filosofia moderna: de Descartes Wittgenstein. 2008, p.180). 37 Cf. Fischer The knowableness of the world consists in its ideality, i.e., in its being through and through capable of representation in thought, and in its being so represented. This characteristic the Critical philosophy, as Transcendental idealism, teaches and establishes. The reality of the world consists in that which underlies all phenomena - since it underlies all ideas and all faculties of thought - and which is designated by the Critique as "thing-in-itself." In this sense the doctrine of phenomena may be called the Kantian Idealism, the doctrine of things-in-themselves the Kantian Realism (FISCHER, Kuno. A critique of Kant. 1888, p.36). 38 Cf. Witney & Fogel Kant believes that the third of the antinomies seems particularly significant on this account, for in its solution one can point out that the antithesis does at least not disprove the possibility of the thesis. In other words, that while the possibility of freedom can not be proved, yet it can be proved that freedom is not impossible (WITNEY, G.T. & FOGEL, P.H. An introduction to Kants critical philosophy. 1914, p.193). 39 Cf. Watkins - Thus, in the case of the Third Antinomy, the Thesis and Antithesis argue for and against freedom in the world, while the Resolution contends that only Transcendental Idealism can keep this conflict from arising (WATKINS, Eric. Kant and the metaphysics of causality. 2005, p.305). 40 Roger Scruton nos chama a ateno para o fato de que o termo idealismo transcendental em Kant, adverte para um limite da razo ao qual Berkeley parece no ter tido em conta: O que Kant quer dizer, referindo-se a sua filosofia como uma forma de idealismo (ainda que transcendental)? Esta uma das perguntas mais intrigantes da exegese kantiana, em particular uma vez que Kant expressamente rejeita a filosofia de Berkeley (que rotula de idealismo emprico), afirma que idealismo transcendental uma forma de realismo emprico, e acrescenta segunda edio da Crtica um captulo chamado A refutao do idealismo (...) Parte do significado da expresso idealismo transcendental est contida, ento, nessa robusta nfase no emprico como a legtima esfera do conhecimento, e na impossibilidade de se conhecer um noumeno ou a coisa em si mesma (SCRUTON, 2008, p.185).

31

Ameriks exatamente aquilo para o que a discusso da terceira antinomia oferece suporte41

.42

Na tese da terceira antinomia da razo pura, intitulada Terceiro conflito das ideias transcendentais fenomnico, ou seja, , surge a proposio de que a composio do mundo o mundo na perspectiva de sua43

totalidade,

no

necessariamente deriva da causalidade segundo leis da natureza44

, em decorrncia

do que necessitamos pressupor uma causalidade mais especfica, qual seja a causalidade pela liberdade . No obstante, a prova para a tese da terceira

antinomia nos revela uma preocupao de Kant para com a impossibilidade do alcance de certa completude (Vollstndigkeit) das sries causais que no estiverem sob a lei da causalidade natural 45. Isto em decorrncia direta da exigncia intrnseca a este tipo de causalidade natural, a saber, de que os acontecimentos tm necessariamente41

de

ocorrerem sendo

precedidos

por outro

acontecimento

Cf. Ameriks - ...at the most it is noted that Kant's discussion of the antinomies in cosmology can be seen as offering support for the doctrine of transcendental idealism. AMERIKS, Karl. The critique of metaphysics: Kant and traditional ontology. 1999, p.249. 42 Dritter Widerstreit der transzendentalen Ideen (KANT. KrV, A 444, B 472; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.426, 427). 43 ...Kausalitt nach Gesetzen der Natur... (KANT. KrV, A 444, B 472; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.426). O pensamento de Kant se insere dentre as correntes tipicamente modernas que pretendiam superar aquela concepo aristotlica acerca da causalidade (material, formal, eficiente e final). No entanto, respeitante ao uso terico da razo no perodo pr-crtico, portanto, anterior ao texto da KrV, Kant encetou distintas concepes de causalidade. Isto transparece no tratamento dado causalidade em obras como a Dilucidatio, tambm em Trume. Nestes dois momentos, as posies defendidas demonstraram certa medida, uma dogmtica letargia por parte de Kant (CAYGILL, 2000, p.54). importante que se atente para o fato de que, embora somente nos Prolegomena, Kant assuma explicitamente sua admirao pela reflexo de David Hume, pois, este representou um avano em relao a outros autores na modernidade, o que fica claro nas passagens Desde as tentativas de Locke e Leibniz, ou mais ainda, desde a criao da metafsica , por mais longe que remonte a sua histria, no houve acontecimento algum que fosse mais decisivo em relao ao destino desta cincia do que a ofensiva levada a efeito por David Hume contra ela; mesmo que provisrio, na viso de Kant, Ele no trouxe luz a esta espcie de conhecimento, mas despertou uma centelha (KANT. Prolegomena, A 7; 2008, p.7), ou ainda, na categrica afirmao, Confesso francamente: a lembrana de David Hume foi justamente o que h muitos anos interrompeu pela primeira vez meu sono dogmtico e deu s minhas pesquisas no campo da filosofia especulativa uma direo completamente nova (KANT. Prolegomena, A 13; 2008, p.17), j na KrV o lugar onde Kant v no ceticismo de David Hume como que uma antecmara para a reflexo do pretenso conhecimento no mais que dogmtico adquirido antes da crtica, especificamente expresso na passagem Assim, o ceticismo um lugar de descanso para a razo humana, onde esta pode refletir sobre o caminho dogmtico percorrido e esboar o esquema da regio onde se encontra, para poder de ai em diante escolher o caminho com maior segurana; mas no um lugar habitvel para morada permanente (KANT. KrV, A 762, B 790; 2010, p.610). 44 ...Kausalitt durch Freiheit... (KANT. KrV, A 444, B 472; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.426). 45 A opo de traduo em relao ao termo Vollstndigk eit por completude na passagem da KrV, A 446, B 474, seguiu a escolha feita na traduo de Valrio Rohden e Udo Baldur Moosburger para a Crtica da razo pura, Nova Cultural, 1996, p.294; por sua melhor adequao ao texto kantiano nesta passagem. Outra possvel e recorrente traduo para o termo consiste em integridade, como assim o procedem, Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujo em sua traduo portuguesa Crtica da razo pura, Calouste Gulbenkian, 2010, p.406.

32

anteriormente existente. E este, por sua vez, respeitando tambm a uma causalidade natural, ter de ser sustentado por outra instncia anterior e assim in infinitum. Kant, no entanto, constata que, deste modo h como se verificar apenas um comeo subalterno, porm, jamais um legtimo primeiro comeo46

.

Ora, se a lei da natureza caracteriza-se por ter no fundamento de sua existncia nada mais que uma causalidade suficiente determinada a priori, torna-se necessrio aceitar outra espcie de causalidade, sendo que esta dever caracterizar-se imprescindivelmente por uma espontaneidade absoluta de suas causas47

. Assim, esta causalidade consistiria em leis necessrias, que mediante a48

liberdade transcendental (transzendentalen Freiheit)

forneceriam agora um

princpio ao curso da natureza efetivamente primordial, que, certa forma apresenta, a partir de ento, a possibilidade de uma completude serial em relao aos fenmenos e suas causas, j que no impede a causalidade natural em manter-se na sua necessria vinculao a uma rede de causas anteriores, mas dentre elas, fornece-lhe um princpio. Esta espontaneidade d incio a uma srie totalmente nova de fenmenos que, em suas particularidades, no deixaro de estar, a partir de ento, tambm sob (ou existirem segundo) leis naturais. Na anttese da terceira antinomia Kant aponta para o fato de que podemos pensar a possibilidade de uma proposio diversa da exposta na tese, ou seja, pensar a inexistncia da liberdade, sendo que as leis da natureza so as nicas pelas quais os acontecimentos no mundo se regulariam em sua totalidade prova da anttese Kant inicialmente supe a49

. Para a

existncia de tal liberdade

transcendental, que em sua particularidade caracteristicamente espontnea, seria uma causalidade originria produzindo assim uma nova sria consequente. Esta faculdade seria de tal modo, absoluta, e determinaria a srie consequente sem necessitar para tanto, do concurso de causas anteriores. Kant denomina este princpio de primeiro comeo dinmico46 47

50

. Este princpio absoluto careceria, segundo

KANT. KrV, A 446, B 474; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.428. ...absolute Spontaneitt... (KANT. KrV, A 446, B 474; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.428). 48 Esta liberdade transcendental, que nesta passagem diz respeito apenas a possibilidade de uma desvinculao da necessria pressuposio de uma instncia anterior, caracterstica das leis fsicas naturais, no que concerne ao arbtrio humano capaz de racionalidade, tem apenas um sentido negativo. Este ponto ser desenvolvido posteriormente neste trabalho. 49 ... nach Gesetzen der Natur (KANT. KrV, A 445, B 473; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.427). 50 ...dynamisch erster Anfang... (KANT.KrV, A 447, B 475; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.429). O sentido do termo dinmico utilizado por Kant nesta passagem, no difere substancialmente daquele que apresentado posteriormente na obra Met.Natur., qual seja, enquanto anlise do movimento (que nesta obra est relacionada qualidade prpria da matria), a dinmica vem a representar uma

33

a proposio apresentada na anttese, da possibilidade de uma unidade de experincia51

.

Consequentemente

constata-se,

muito

claramente,52

que

a

independncia mediante a liberdade dentro de uma srie causal segundo leis naturais, implica necessariamente em uma libertao da coao , porm,

concomitantemente apresentaria ao conhecimento certa restrio ou limitao, no momento em que constatamos que a mencionada libertao tambm se d em relao ao fio condutor de todas as regras53

. Seria, portanto, incua toda e qualquer

tentativa em se pretender a totalidade das sries causais no mundo como sendo regidas agora por uma lei da liberdade, ou seja, apenas por uma nica causa originria e primordial. Tambm, se tornaria implausvel que esta ltima tomasse o lugar das leis naturais pelo tcito motivo de que a liberdade no figura como determinao mediante leis naturais, bem como neste caso, intervindo no curso das causalidades do mundo, a liberdade figuraria to somente como mera natureza, pois estaria tambm sob a determinao das leis da natureza. No que respeita a natureza e sua dependncia condicional para com a explicao de suas causas fundamentais, recorre imprescindivelmente ao entendimento (Verstand) 54 para tal.fora originria de propulso, l-se na Lehrsatz 1, nas palavras do prprio Kant A matria enche um espao, no pela sua simpes existncia, mas em virtude de uma fora motriz (KANT, Met.Natur. A 33; 1990, p.44). Michael Friedman, na introduo a sua traduo para o ingls desta obra (Metaphysical foundations of natural science) chama a ateno para o interessante fato de que os problemas da fsica com os quais Kant lidava no perodo pr-crtico, ainda continuam perenes em seu pensamento, porm, agora sob a tica crtica de sua obra monumental, a saber, a KrV. Friedman afirma, The appearance of this work in 1786 shows, more specifically, that the deep (and in part extraordinarily innovative) concerns with fundamental questions in the natural science and natural philosophy of the time characteristic of Kants precritical period were also very salient in the critical period. In particular, the Metaphysical Foundations continues, and also attempts to integrate, two separate lines of thought from the precritical period: the extension of Newtonian gravitational astronomy to cosmology first suggested in the Theory of the Heavens, and the further development of a dynamical theory of matter as first sketched in the Physical Monadology. At the same time, however, Kant now frames both developments within the radically new context of his critical philosophy . (FRIEDMAN, 2004, p.X). 51 ...Einheit der Erfahrung... (KANT. KrV, A 449, B 477; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.431). 52 ...Befreiung vom Zwange... (KANT. KrV, A 447, B 475; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.429). 53 ...Leitfaden aller Regeln... (KANT. KrV, A 447, B 475; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.429). 54 No que tange ao entendimento (Verstand) como faculdade, o primeiro referencial anterior a Kant remonta primeiramente Toms de Aquino em sua obra De unitate intellectus contra Averroistas (1269-1270), e l, enquanto intellectio estava intimamente ligado ao sentido de iluminao divina ou atos do entendimento (CAYGILL, 2000, p.111). Na modernidade propriamente dita, o conceito de entendimento recebeu tratamento tanto de Descartes em suas Mditations Mtaphisiques (1641), como na controvrsia acerca deste mesmo conceito, entre Leibniz em seus Nouveaux Essais sur l'entendement humain (1703), e Locke em seus Essay Concerning Human Understanding (1690). A viso de Kant em relao ao entendimento (Verstand) apresenta certos resqucios da filosofia wolffiana, ao menos no que tange a compreenso do conceito de entendimento como dada fora de juzo, ou seja, de representao em geral. Na KrV l-se, Assim, o conhecimento de todo o entendimento, pelo menos do entendimento humano, conhecimento por conceitos, que no intuitivo, mas discursivo... (...) Os conceitos fundam-se, pois, sobre a espontaneidade do

34

O

entendimento

abarca

a

natureza

em

sua

conformidade

a

leis

(Gesetzmigkeit), ou seja, em sua caracterstica regularidade. Mediante esta subordinao as suas prprias leis, o entendimento fornece natureza uma unidade que consta como universal em relao ao plano da experincia, alm do que, esta unidade encontra-se completamente em conformidade com a legislao natural. Neste nterim, portanto, o entendimento faculdade no s de juzos, mas das regras, que em sua objetividade so responsveis pela legislao que regulamenta a natureza55

. Na nota tese, Kant afirma que a chamada ideia transcendental de

liberdade constitui to somente o contedo da espontaneidade absoluta da ao, e este contedo caracterstico exatamente aquilo que figura como o fundamento prprio da imputabilidade desta mesma ao56

. A ideia transcendental de liberdade

no mbito da primeira Crtica no consiste de forma alguma em algo de emprico, e propriamente (e to somente) uma ideia, ou ainda, para a filosofia representa, como Kant mesmo a denomina, a pedra de escndalo 57. A historicamente imemorvel, e ao mesmo tempo to buscada soluo ao problema da liberdade (causalidade por liberdade), segundo Kant um problema meramente transcendental, notoriamente apresenta para com a questo acerca da causalidade natural um problema comum e radical. Este consiste no fato de que a dificuldade principal em relao liberdade, que corresponde exatamente tentativapensamento, tal como as intuies sensveis sobre a receptividade das impresses. O entendimento no pode fazer outro uso destes conceitos a no ser, por seu intermdio, formular juzos (KANT. KrV, A68, B94; 2010, p.102). Ou ainda, Podemos, contudo, reduzir a juzos todas as aes do entendimento, de tal modo que o entendimento em geral pode ser representado como uma faculdade de julgar (KANT. KrV, A 69, B 94; 2010, p.103). 55 Para tal afirmao necessrio explicitar a distino especfica entre o que seja o entendimento, e o que seja a sensibilidade. Kant ento afirma, Definimos atrs o entendimento de diversas maneiras: como uma espontaneidade do conhecimento (em oposio receptividade da sensibilidade), como uma faculdade de pensar, ou tambm uma faculdade dos conceitos, ou ainda de juzos e essas definies, uma vez explicadas, reduzem-se a uma s. Podemos agora caracteriz-lo como a faculdade de regras. (...) A sensibilidade d-nos formas (da intuio), mas o entendimento regras. Este se encontra sempre ocupado em espiar os fenmenos com a inteno de lhes encontrar quaisquer regras. As regras, na medida em que so objetivas (por conseguinte pertencendo necessariamente ao conhecimento do objeto), chamam-se leis (KANT, KrV, A 126; 2010, p.168). As minuciosas distines que Kant operou em sua filosofia crtica no ficaram isentas das crticas das mais diversas escolas e autores. Especificamente em relao a distino efetuada entre entendimento e sensibilidade, foram crticos do texto kantiano tanto Johann Georg Hamann (17301788) quanto Johann Gottfried von Herder (1744-1803). importante mencionar que, em relao distino entre entendimento e razo, dois significativos representantes do idealismo ps -kantiano o criticaram, a saber, Johann Gottlieb Fichte (1762-1814) e o autor do sistema ps-kantino mais completo em filosofia, Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). 56 transzendentale Idee der Freiheit... (...) ...Eigentlichen Grund der Imputabilitt... (KANT. KrV, A 448, B 476; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.430). 57 ...Stein des Antoes fr die Philosophie,... (KANT. KrV, A 448, B 476; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.430).

35

de verificar a possibilidade de tal faculdade efetiva e espontnea, tambm se aplica em parte, a questo da possibilidade da prpria causalidade natural. Neste caso, dado que ao entendimento possvel alcanar uma unidade da prpria experincia, em decorrncia de sua regularidade em conformidade com as leis naturais, resta saber ainda, qual a justificao da vinculao causal necessria a este mbito, ou seja, como explicar que a uma dada instncia deve necessariamente se seguir outra, ou ainda, porque isto necessrio? Kant procura dar j um tratamento a esta questo quando coloca o problema acerca da liberdade como sendo relativo to somente ao momento em que se pretendesse chegar a uma origem do mundo, um primeiro princpio originrio, o que nada influenciaria o mundo em sua causalidade natural de continuar acontecendo segundo sua conformidade segundo leis da natureza58

. No entanto, seria

precipitada toda e qualquer proposio que pretendesse afirmar a completa impossibilidade de haver um incio que ao mesmo tempo consiste em absoluto e originrio59

, isto em decorrncia de que se apresenta aqui, apenas o princpio em60

relao causalidade

. Conforme avana o desenvolvimento da argumentao de

Kant nesta nota tese da terceira antinomia possvel verificar que no h incompatibilidade em se pensar a causalidade por liberdade conjuntamente causalidade natural. Todo e qualquer movimento (ou ao) que opere em causa livre, portanto de forma absolutamente espontnea, no exclui de maneira alguma o curso natural da causalidade por leis naturais. Esta causalidade livre, ao gerar uma srie totalmente nova, cessa a causalidade natural com relao a si prpria, porm, a causalidade natural continua existindo e regendo esta nova srie de

conseqncias derivadas da espontaneidade livre. Segundo Kant, este evento pode ser depreendido daquela causalidade natural, porm, no como resultado de sua rede de conexes causais anteriores e necessrias, mas que esta espontaneidade aps iniciar uma srie totalmente nova desenvolve-se, a partir de ento, segundo a causalidade natural. exatamente em decorrncia deste fator que devemos58 59

KANT. KrV, A 450, B 478; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.430. Esta precisamente a questo que nos prope Alisson Since both parties to the antinomical dispute assume the exclusive reign of mechanistic causality within the world, the point at issue is whether it is also necessary, or even possible, to appeal to the other mode of causality (transcendental freedom) in order to conceive a first beginning of the world. In other words, the question is whether or not there can be a first cause or prime mover; and this is surely a cosmological question, distinct from the question of the reality of human freedom (ALLISON, Henry. Kants transcendental idealism An interpretation and defense. 1983, p311). 60 KANT. KrV, A 451, B 479; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.430.

36

entender esta espontaneidade como um primeiro comeo somente em relao causalidade e no tambm em relao ao tempo (Zeit nach). Na nota escrita para a anttese, Kant expe que, para uma fisiocracia transcendental, ou seja, a defesa de uma onipotncia da natureza apresentaria esta, uma proposio completamente restritiva doutrina da liberdade. A necessidade, em relao causalidade, de se aceitar a liberdade como algo dinamicamente primeiro em relao s causas mostraria, certa forma, a inadmissibilidade de algo matematicamente primeiro em relao ao tempo61

. A experincia seria, neste caso,

a nica maneira pela qual se disporia para chegar ao chamado primeiro termo, que no mbito de uma causalidade natural, corresponde a prpria condio de possibilidade de existncia de tudo o mais mediante a legislao natural, ou seja, tal primeiro termo seria a instncia anterior a outra instncia e assim por diante62

. A

maior dificuldade aqui seria admitir como princpio primeiro das causas naturais, algo que consiste no mais do que elemento extrnseco ao mundo, este seria inadmissvel em decorrncia da impossibilidade de ser dado por uma experincia, que obviamente deveria poder contar com o concurso da intuio e percepo possveis, o que dificultaria apreender do vnculo que une a multiplicidade sensvel do mundo segundo leis causais naturais63

. Aps esta exposio sucinta da terceira

antinomia, parece-nos bastante bvia a concluso em que resulta a investigao que Kant na referente passagem, a saber, que em certa medida, no devemos considerar como impossibilitada a concomitncia de duas causalidades di stintas, vejamos a seguir de que maneira Kant pensa ser possvel tal proposta.

1.2 A nona seo das antinomias da razo pura: a dupla via de causalidades possveis e a especificidade negativa da liberdade transcendental

A nona seo das Antinomias da razo pura destaca-se por apresentar em sua terceira soluo, a nica possibilidade aceita por Kant no que tange a questo da causalidade no momento em que se deve necessariamente pressupor, concomitantemente determinao e liberdade para pensar a totalidade do mundo.61

...matematisch Erstes der Zeit nach... (KANT. KrV, A 449, B 477; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.431). 62 KANT. KrV, A 449, B 477; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.431.

37

Esta totalidade, no entanto, jamais dever ser pensada como constitutiva, mas to somente como um princpio regulativo64

.

No entanto, a razo em seu uso transcendental, faz-se a nica capaz de, mediante tal uso, fornecer uma totalidade absoluta (absolute Totalitt). importante que se tenha em mente, aqui, a caracterstica intrnseca da razo humana, sendo que esta sempre tende a ultrapassar sua capacidade, como claramente exposto no prefcio primeira edio da KrV65

. Por este motivo, a preocupao em relao

quilo que Kant chama de magnitude absoluta das sries causais regidas por leis naturais no mundo dos sentidos (Sinnenwelt) deve ser tomada no na equvoca pretenso em determinar se uma srie causal torna-se, em certo momento, limitada (begrenzt) ou ilimitada (unbegrenzt), mas, sim, como urge a proposta crtica da filosofia kantiana, pretende especificamente determinar os limites da regresso emprica para a determinao desta limitao (ou ilimitao). Como possvel inferir a partir desta perspectiva, Kant no est a falar de um princpio constitutivo do mundo, mas trata-se apenas de um princpio regulativo. Um princpio que Kant aceita como vlido sob o aspecto de uma regra da razo de um ponto de vista transcendental66

. Antes de passar a exposio da terceira soluo, se faz pertinente

mencionar que, j a primeira soluo da nona seo das antinomias apresenta importantes elementos para uma reflexo acerca da necessidade de se pensar a possibilidade de uma dupla causalidade. Kant expe, neste momento, a proposio que acaba por fundamentar o prprio princpio que regula a razo, que consiste no seguinte,Na regresso emprica no possvel encontrar-se nenhuma experincia de um limite absoluto e, por conseguinte, nenhuma experincia de qualquer condio que, como tal, seja do ponto de vista emprico, absolutamente incondicionada. A razo disso que tal63 64

KANT. KrV, A 449, B 477; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.431. Conforme podemos inferir do prprio texto kantiano, o principio regulativo um princpio anlogo, no pode ser dado na prpria constituio do mundo. Isto seria dizer que um dado princpio estaria sob a dependncia de uma causalidade anterior, pois, tudo o que constitutivo da matria deve assim ser compreendido, ou seja, precedido por algo, ...a analogia no a igualdade de duas relaes quantitativas, mas de relaes qualitativas, nas quais, dados trs membros, apenas posso conhecer e dar a priori a relao com o quarto, mas no esse prprio quarto membro; tenho, sim, uma regra para o procurar na experincia e um sinal para o encontrar. Uma analogia da experincia ser pois apenas uma regra, segundo a qual a unidade da experincia (no como a prpria percepo, enquanto intuio emprica em geral) dever resultar das percepes e que, enquanto princpio a aplicar aos objetos (aos fenmenos), ter um valor meramente regulativo, no constitutivo (KANT. KrV, A 180, B 223; 2010, p.210). 65 KANT. KrV, A VII; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.III, p.11. 66 KANT. KrV, A 516, B 544; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.477.

38

experincia deveria conter uma limitao dos fenmenos pelo nada, ou pelo vcuo, em que a regresso continuada pudesse embater, mediante uma percepo, o que impossvel (KANT. KrV, A 518, B 67 546; 2010, p. 453) .

Por meio desta proposio fica instituda a impossibilidade de se chegar

experincia de uma limitao absoluta de uma srie causal dada empiricamente, em decorrncia do fato de que por mais que se leve adiante a regresso de uma srie causal, haver sempre a necessidade de perguntar-se por uma instncia que lhe d sustentao e lhe condicione indiferentemente da possibilidade de um conhecimento especulativo de tal, ou no. Porm, importante notar que Kant destaca que em relao a esta totalidade, possvel obt-la unicamente mediante um conceito, porm, jamais por intermdio de uma intuio69 68

. Isto acaba por revelar o motivo em

decorrncia do qual s se poder afirmar no que tange a um regresso emprico, um regresso ao infinito sendo que, uma instncia neste regresso sempre estar70

subordinada a outra anterior, mas nunca determinvel em si. Ao contrrio de um regresso indeterminavelmente continuado , onde no h a pretenso em

determinar a magnitude de um objeto dado em si, mas unicamente, e to somente, fornecer a regra que determinar o limite de tal regresso. Na Esttica transcendental da primeira Crtica, a elaborao da filosofia transcendental estava ancorada naqueles elementos fundamentais e

imprescindveis, e que neste momento Kant acaba por retomar dois deles. Tais elementos fundamentais e necessrios, dizem respeito condio de possibilidade de qualquer experincia, e no pode haver propriamente conhecimento de algo se no por intermdio deles. Estes elementos so, a saber, as intuies puras a priori de espao (Raum) 71 e Tempo (Zeit) 72.67

...da im empirischen Regressus k eine Erfahrung von einer absoluten Grenze, mithin von k einer Bedingung, als einer solchen, die empirisch schlechthin unbedingt sei, angetroffen werden k nne. Der Grund davon aber ist: da eine dergleichen Erfahrung eine Begrenzung der Erscheinungen durch Nichts, oder das Leere, darauf der fortgefhrte Regressus vermittelst einer Wahrnehmung stoen k nnte, in sich enthalten mte, welches unmglich ist (KANT. KrV, A 518, B 546; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.478). 68 KANT. KrV, A 519, B 547; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.479. 69 ...Rck gang ins Unendliche (regressus in infinitum)... (KANT. KrV, A 518, B546; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.478). 70 ...unbestimmbar fortgesetzter Regressus (regressus in indefinitum). (KANT. KrV, A 518, B546; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.IV, p.479). 71 Na Esttica transcendental da KrV, Kant considera o espao como uma forma a priori da intuio. Esta nova perspectiva de Kant em relao noo de espao dirigida tanto viso cartesiana de espao, como uma extenso substancialmente material, de matiz nitidamente platnica, contendo

39

extenso em comprimento, largura e profundidade (Descartes Apud CAYGILL, 2000, p.118), como tambm relacionada s antigas disputas entre newtonianos e leibnizianos sobre ...on the nature of space, While the mathematicians insisted upon the absolute status of space to ensure a priori certainty to their theorems, the Leibnizians maintained that space consists only in the assemblage of all real and possible distances between things (BEISER, 1999, p.29). No perodo pr-crtico, especificamente entre 1740 e 1750, Kant esteve vinculado as perspectivas tanto de Descartes quanto de Leibniz (CAYGILL, 2000, p.119). Leibniz, especificamente, defendia a idealidade e relatividade do espao. Ainda que mesmo por um curto espao de tempo, Kant esteve vinculado tambm as ideias de Newton acerca do espao absoluto (CAYGILL, 2000, p.120). Importante mencionar, Kant foi instigado pelo fsico e matemtico suo Leonhard Euler (1707-1783) a rever as teses de Newton acerca do espao real absoluto, empreendimento que Kant levou a cabo em Raum. Kant parece, nesta obra, muito sutilmente indicar uma nova tomada de posio em relao a este tema quando afirma, ...ein evidenter Beweis zu finden sei, da der absolute Raum unabhngig von dem Dasein aller Materie und selbst als der erste Grund der Mglichkeit ihrer Zusammensetzung eine eigene Realitt habe... (KANT. Raum; Suhrkamp Werkausgabe, Bd.II, p.994). Enfim, na Dissertatio, Kant apresenta uma inovadora tese do espao como sendo algo que precede a prpria experincia possvel, O conceito de espao no abstrado das sensaes externas. (...) Por conseguinte, a possibilidade das percepes externas, enquanto tais, no produz, mas antes supe, o conceito de espao; (...)...o espao mesmo no pode ser captado pelos sentidos (KANT. Dissertatio, 15; 2004, p.56, 57); Porm, a verso definitiva de sua proposta apresenta-se de forma completa e clara somente na esttica transcendental da primeira Crtica. No pargrafo 2 da primeira seo, na exposio metafsica do conceito de espao, Kant afirmar categoricamente: O espao no um conceito emprico abstrado de experincias externas. (...) Logo, a representao do espao no pode ser tomada emprestada, mediante a experincia, das relaes do fenmeno externo, mas esta prpria experincia externa primeiramente possvel s mediante referida representao (KANT. KrV, A 23, B 37; 2010, p.64). Ainda na exposio transcendente do c onceito de espao no pargrafo 3 ele dir: ...essa intuio tem que ser encontrada em ns a priori, isto , antes de toda a percepo de um objeto, portanto, tem que ser intuio pura e no emprica (KANT. KrV, B 41; 2010, p.66). Ao se referir ao espao como disposio formal (formale Beschaffenheit) do sujeito, o que lhe permite uma representao imediata (unmittelbare Vorstellung) dos objetos, conclui que sua perspectiva transcendental acaba por fundamentar a possibilidade da prpria geometria (KANT. KrV, B 41; 2010, p.67). Roger Scruton complementa: ...a idia de um mundo experimentado inseparvel da ideia de espao (SCRUTON, 2008, p.185). 72 A concepo kantiana de tempo passou quase que pelas mesmas t