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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE SAÚDE COLETIVA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA ERIK ASLEY FERREIRA ABADE A JUDICIALIZAÇÃO DA ASSISTÊNCIA MÉDICA SUPLEMENTAR: UM ESTUDO DE CASO EM PERNAMBUCO Salvador 2015

Diss Final. ERIK ABADE. 2015.pdf

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE SADE COLETIVA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE COLETIVA

    ERIK ASLEY FERREIRA ABADE

    A JUDICIALIZAO DA ASSISTNCIA MDICA SUPLEMENTAR: UM

    ESTUDO DE CASO EM PERNAMBUCO

    Salvador

    2015

  • 2

    ERIK ASLEY FERREIRA ABADE

    A JUDICIALIZAO DA ASSISTNCIA MDICA SUPLEMENTAR: UM

    ESTUDO DE CASO EM PERNAMBUCO

    Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao do Instituto de Sade Coletiva da Universidade

    Federal da Bahia como requisito para a obteno do grau de

    mestre em Sade Comunitria.

    Prof. orientador: Luis Eugnio Portela Fernandes de Souza.

    Salvador

    2015

  • 3

    A todos que lutam por um sistema nico e igualitrio de sade.

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    A Eunice, e ao seu ventre que me gerou, ao seu suor que me sustentou, ao seu corajoso e

    enorme corao que tantas flores plantou em meus jardins. Ao seu peito, que de to

    grande, fez-me livre. A todo seu amor, que por ser amor, invade e fim.

    A Allana, que com suas ccegas acalenta a minha pele e meu esprito. A fora e a doura

    com que passaste a caminhar pela vida inspiram-me. Bonito te ver crescer, porque se a

    vida por um fio, valeu para quem j viu seu jeito de tocar o corao.

    A Adilson, que com seus dias, ensina-me muitas lies sobre a vida e sobre esse tempo de

    guerreiros meninos, to fortes, to frgeis.

    Aos meus avs, V Z e V Zezinha, pelo incentivo de todos os dias. Pela estranha mania

    de ter f na vida. E a todos os meus familiares pelo carinho.

    A Matheus, que com o mar nos olhos enche-me de paz, pelos domingos enfeitados, por

    segurar em minha mo, pelos abraos e beijos demorados que me diziam a todo tempo

    para no me preocupar ter f e ver coragem no amor. Obrigado pela pacincia nesses

    dias de escrita, prometo gastar mais horas para te ver dormir.

    A Gisella por toda gentileza em movimento com que me acolheu entre o cho e os ares

    desta cidade. A Moiss por ajudar a desanuviar a alma das inteis poeiras. E aos dois pela

    forma especial com que constroem o cais, para gente que donde veio no tem mar.

    A Scrates, Fbio e Franklin, por no deixarem o samba morrer, por no deixarem o

    samba acabar. Serei eternamente grato, por todas as vezes que a gente parecia, protegido

    de todo mal, vocs deram cor e som aos meus dias, sem vocs, a minha Bahia no seria

    nem recncavo, nem reconvexo.

    A Michelle, Ana Clara, Poliana e Chandra, que entre tantas leituras e risos, mostraram um

    claro futuro de msica, ternura e aventura pro equilibrista em cima do muro. Agora, sem

    muros.

    Ao professor Luis Eugnio, por todos os ensinamentos. Sempre serei grato pela maneira

    generosa e paciente com que acolhestes as loucuras to sbrias, e as viagens to bvias de

    um iniciante.

    Aos demais professores, aos funcionrios e aos companheiros de mestrado do Instituto de

    Sade Coletiva, a cada dia vocs mostravam-me que sonhos no envelhecem em meio a

    tantos gases lacrimognios.

    Aos trabalhadores do SUS que compartilham comigo a lida na USF Yolanda Pires. Em

    especial, as enfermeiras Samantha, Dalila e Giovana, e ao gerente Alexandre. Sem o apoio

    de vocs no teria sido possvel construir tijolo com tijolo num desenho mgico esse

    trabalho.

    Aos amigos de Arapiraca, Jully, Izabela e Felipe que mesmo geograficamente longe,

    continuam apoiando e trazendo bons ventos para os meus dias, vocs sempre sero um

    bendito encontro.

  • 5

    Aos professores do curso de enfermagem da Universidade Federal de Alagoas - Campus

    Arapiraca, e aos amigos que encontrei por l. Permanecem comigo as lies que aprendi

    com todos vocs, isso de Deixa chegar o sonho, prepara uma avenida tem sido muito

    gratificante.

    Ao povo soteropolitano. Aos cabelos crespos, negritude, fora e sabedoria dessa gente.

    Aos mares, s ladeiras e aos sis de Salvador. Aos seus gritos de liberdade e dor, que desde

    o primeiro dia questionavam: Eu sou neguinha?

    Aos poetas e as poetizas, ao pr-do-sol, a todo carinho de tanta gente que encontrei nessa

    trajetria, to bonito quando a gente entende que a gente tanta gente onde quer que a

    gente v.

    E a Deus, que em cada amanhecer prova para todo mal h cura.

    .

  • 6

    O que foi feito, amigo,

    De tudo que a gente sonhou

    O que foi feito da vida,

    O que foi feito do amor

    Quisera encontrar aquele verso menino

    Que escrevi h tantos anos atrs

    Falo assim sem saudade,

    Falo assim por saber

    Se muito vale o j feito,

    Mais vale o que ser

    Mais vale o que ser

    E o que foi feito preciso

    Conhecer para melhor prosseguir

    Falo assim sem tristeza,

    Falo por acreditar

    Que cobrando o que fomos

    Que ns iremos crescer

    Ns iremos crescer,

    Outros outubros viro

    Outras manhs, plenas de sol e de luz

    O que foi feito dever Milton Nascimento.

  • 7

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ADI Ao Direita de Inconstitucionalidade

    AI Agravo de Instrumento

    AMS Assistncia Mdica suplementar

    ANS Agncia Nacional de Sade Suplementar

    CDC Cdigo de Defesa do Consumidor

    CF-88 Constituio Federal de 1988

    CID Classificao Internacional de Doenas e Problemas Relacionados Sade

    CONITEC Comisso Nacional de Incorporao de Tecnologias no Sistema nico de

    Sade

    CNJ Conselho Nacional de Justia

    CNSP Conselho Nacional de Seguros Privados

    CONSU Conselho Nacional de Sade Suplementar

    INPS Instituto Nacional de Previdncia Social

    INAMPS Assistncia Mdica da Previdncia Social

    MP Medida Provisria

    MS Ministrio da Sade

    OMS Organizao Mundial de Sade

    ONG Organizaes no governamentais

    RN Resolues Normativas

    STF Supremo Tribunal Federal

    STJ Superior Tribunal de Justia

    SUS Sistema nico Sade

    TJPE Tribunal de Justia de Pernambuco

  • 8

    LISTA DE TABELAS

    ARTIGO I

    Tabela 01. Caractersticas gerais das aes judiciais relativas assistncia mdica

    suplementar e julgadas no TJPE nos anos de 2012 e 2013.

    Pernambuco, 2015....................................................................................

    29

    Tabela 02. Indicador de litigncia de acordo com a modalidade das operadoras

    citadas nas aes judiciais relativas assistncia mdica suplementar e

    julgadas no TJPE nos de 2012 e 2013. Pernambuco, 2015......................

    30

    Tabela 03. Empresas citadas nas aes judiciais relativas assistncia mdica

    suplementar e julgadas no TJPE nos de 2012 e 2013. Pernambuco,

    2015.........................................................................................................

    31

    Tabela 04. Tema das aes judiciais relativas assistncia mdica suplementar e

    julgadas no TJPE nos de 2012 e 2013. Pernambuco, 2015......................

    35

    ARTIGO II

    Tabela 01. Legislao citada nos julgamentos relativos assistncia mdica

    suplementar no TJPE nos de 2012 e 2013. Pernambuco, 2015..................

    49

    Tabela 02. Utilizao do marco regulatrio nas sentenas relativas assistncia

    mdica suplementar julgadas no TJPE nos de 2012 e 2013. Pernambuco,

    2015...........................................................................................................

    56

    Tabela 03. Uso das normas da ANS segundo o tema das aes relativas assistncia

    mdica suplementar julgadas no TJPE nos anos de 2012 e 2013.

    Pernambuco, 2015........................................................................................

    63

  • 9

    LISTA DE FIGURAS E QUADROS

    ARTIGO II

    Quadro 01. Smulas citadas nas aes julgadas relativas assistncia mdica

    suplementar e no TJPE nos de 2012 e 2013. Pernambuco, 2015...........

    55

    Quadro 02. Normas da ANS citadas nas aes relativas assistncia mdica

    suplementar julgadas no TJPE nos de 2012 e 2013. Pernambuco,

    2015...........................................................................................................

    60

    Quadro 03. Normas anteriores criao da ANS citadas nas aes relativas

    assistncia mdica suplementar julgadas no TJPE nos anos de 2012 e

    2013. Pernambuco, 2015...........................................................................

    66

  • 10

    SUMRIO

    Apresentao ......................................................................................................... 11

    1. Introduo ......................................................................................................... 13

    2. Objetivos ................................................................................................................ 22

    2.1 Objetivo Geral .................................................................................................. 22

    2.2 Objetivos Especficos ...................................................................................... 22

    3. Artigo I ................................................................................................................... 23

    4. Artigo II ................................................................................................................ 45

    5. Consideraes Finais ............................................................................................. 72

    Referncias .............................................................................................................. 74

    Anexos .................................................................................................................... 77

  • 11

    APRESENTAO

    Este trabalho prope estudar a judicializao da assistncia mdica suplementar na

    regio Nordeste. A escolha da temtica baseia-se na necessidade de aprofundar a

    compreenso sobre a complexa articulao entre o publico-privado no sistema de sade

    brasileiro, que em seu processo recente de transformao apresenta dois fenmenos

    importantes: o crescimento do segmento da assistncia mdica suplementar e aumento da

    judicializao neste subsistema.

    A pesquisa acerca das aes judiciais tem se mostrado um importante campo de

    investigao na rea da sade coletiva, pois a anlise de seus aspectos polticos, sociais,

    ticos, jurdicos e sanitrios, pode trazer elementos para o aprimoramento das polticas de

    sade em curso, ou especificamente no caso da assistncia mdica suplementar, para a

    melhoria da regulao de um segmento que tem grande impacto na conformao do sistema

    de sade brasileiro.

    Os principais estudos sobre a judicializao da sade tratam predominantemente da

    garantia do acesso a medicamentos e outros insumos pelo Sistema nico de Sade. Ainda

    so poucos os trabalhos que se debruam sobre o mercado de planos e seguros privados de

    sade. Entre as principais contribuies desses trabalhos, est a anlise das negaes de

    coberturas por planos e seguros privados de sade na regio Sudeste do pas, notadamente

    nos estados de So Paulo e Rio de Janeiro.

    Esta pesquisa busca analisar as aes judiciais relativas assistncia mdica

    suplementar em Pernambuco, contribuindo no s para preencher a lacuna que permanece

    sobre a judicializao fora do eixo Rio-So Paulo, mas tambm, para avanar na discusso

    de questes centrais para o campo da sade coletiva como a segmentao do sistema, a

    regulao do mercado, a incorporao tecnolgica e as relaes entre atores polticos como

    os tribunais e os operadores do Direito, as empresas de planos e seguros, os profissionais de

    sade e a sociedade civil.

    Esta dissertao se apresenta sob a forma de dois artigos. No primeiro artigo, o recorte

    recai sobre as caractersticas gerais das aes judiciais estudadas, cumprindo a funo de

    descrever a realidade da judicializao do segmento suplementar em um estado do Nordeste.

    O segundo artigo representa um esforo de apreender e compreender a fundamentao

  • 12

    jurdica e argumentativa das decises judiciais, buscando identificar o uso do marco

    regulatrio da sade suplementar pelos tribunais.

    importante destacar, que a discusso aqui empreendida assume que a prtica terica

    costurada pelo movimento da Reforma Sanitria Brasileira que remete, em ltima instncia,

    estrutura social para compreender o sistema de sade, atual e vlida, com poder

    explicativo para tratar das questes aqui levantadas que perpassam diretamente pela relao

    entre o mercado e o Estado na conduo da poltica de sade.

    Nesse sentido, utilizam-se os termos articulao pblico-privada, assistncia

    mdica suplementar, planos e seguros privados de sade e clientes, pois, entende-se

    que estas so as palavras mais ajustadas para reduzir as nebulosidades e revelar os ns

    crticos de um sistema de sade que tem em sua base material um forte imbricamento entre o

    pbico e o privado.

  • 13

    1. INTRODUO

    Nos ltimos anos, tem aumentado significativamente o nmero de demandas judiciais

    envolvendo clientes e operadoras de planos e seguros privados de sade. A este fenmeno,

    convencionou-se dar o nome de judicializao da assistncia mdica suplementar, referindo-

    se busca por acesso a insumos e servios de sade por intermdio da Justia em face, no

    do Estado, mas das empresas que comercializam planos e seguros privados de sade.

    A judicializao da assistncia mdica suplementar uma das facetas da judicializao

    da sade que, por sua vez, se insere no mbito da judicializao da poltica. Santos et alli

    (1996) definem a judicializao como fenmeno scio-histrico, caracterizado pela

    ampliao da interferncia dos tribunais no mbito das relaes sociais e polticas, dotando o

    Poder Judicirio de um maior protagonismo. Verifica-se, assim, um alargamento da rbita

    de atuao do Poder Judicirio sobre espaos que deveriam ser ocupados pelas polticas

    sociais.

    O estudo da judicializao da sade tem abordado prioritariamente as aes que

    buscam do Sistema nico de Sade (SUS) o fornecimento de medicamentos, insumos e

    procedimentos. crescente, no entanto, o interesse em estudar o fenmeno das aes

    judiciais movidas contra as operadoras de planos e seguros privados de sade, que compem

    uma parcela importante do sistema de sade brasileiro: a assistncia mdica suplementar

    (SCHEFFER, 2013).

    O sistema de sade brasileiro formado por trs subsetores: o subsetor pblico, no

    qual os servios so financiados e providos pelo Estado, o subsetor privado (com fins

    lucrativos ou no), no qual os servios so financiados de diversas maneiras com recursos

    pblicos ou privados, e, por ltimo, o subsetor da assistncia mdica suplementar composto

    por diversas modalidades de planos e seguros privados de sade (PAIM et al., 2011).

    Trata-se, de um sistema de sade visivelmente contraditrio, uma vez que o sistema

    pblico, que se prope a garantir o acesso universal e integral como direito de cidadania,

    convive com um forte setor privado, sustentado pela compra estatal de servios, e um amplo

    segmento de assistncia mdica suplementar subsidiado pelo Estado (SANTOS; UG;

    PORTO, 2008; SESTELO; BAHIA, 2014; BAHIA, 2005).

    A assistncia mdica suplementar formada pelas empresas de autogesto, as de

    medicina de grupo, as seguradoras especializadas em sade, as cooperativas mdicas, as

  • 14

    administradoras de benefcios e as instituies filantrpicas. No ano de 2014, esse segmento

    atingiu a marca de mais 50 milhes de clientes, com uma taxa de crescimento de 2% no

    ltimo ano, variando de 5,6% a 2,0% na ltima dcada. As receitas de contraprestaes

    somaram, em 2013, 108.271.212.002 milhes de reais, para as mais de 886 operadoras

    mdico-hospitalares que atuam no comrcio de planos e seguros privados de sade (ANS,

    2014).

    A presena de planos e seguros privados de sade na prestao e organizao dos

    servios de sade no exclusividade do Brasil, em quase todos os sistemas de proteo

    social h convivncia entre o pblico e o privado. Nos EUA, o mercado de planos e seguros

    privados cobre os indivduos que so inelegveis ao seguro pblico, na Alemanha oferece

    cobertura para os indivduos que optam por retirar-se do programa de seguro pblico

    universal, no Reino Unido, caso semelhante ao brasileiro, h uma cobertura suplementar de

    servios coexistindo ao sistema pblico universal (SANTOS; UG; PORTO, 2008).

    Todavia, destaca-se no caso brasileiro a segmentao do sistema de sade, embora a

    universalizao esteja formalmente amparada pela legislao (BAHIA, 2005).

    Configurao esta que no fruto do acaso ou algo naturalizado no passvel de

    questionamento. Pelo contrrio, compreende-se que o extenso mercado de compra e venda

    de planos e seguros privados de sade fruto de um processo histrico, decorrente da

    relao estrutural entre o Estado e o mercado, que vem se modificando ao longo do tempo,

    na relao dinmica entre a lgica de acumulao capitalista e as relaes polticas entre

    classes e grupos heterogneos que disputam a hegemonia na sociedade brasileira (OCK-

    REIS, 2015, SESTELO, SOUZA, BAHIA, 2013, ACIOLE, 2003).

    O Estado tem sido o grande fomentador da expanso do setor privado, as polticas

    estatais praticamente configuraram um capitalismo sem risco, criando um modo de produzir

    e consumir os servios de assistncia mdica no Brasil, com forte base mercantil (ACIOLE,

    2003). As origens mais remotas desta postura privatizante datam da dcada 30, mas ,

    sobretudo, a partir dos anos 60, que as mudanas operadas no contexto da medicina

    previdenciria vo promover um largo crescimento da sade privada (OCK-REIS;

    ANDREAZZI; SILVEIRA, 2006; MENICUCCI, 2007).

    A ampliao da assistncia previdenciria, iniciada com a criao das caixas de

    aposentadorias e penses em 1923, passando pelo crescimento da cobertura com os vrios

  • 15

    Institutos de Aposentadorias e Penses a partir da dcada de 30, no se traduziu em

    ampliao correspondente da assistncia sade. Somente com a criao do Instituto

    Nacional de Previdncia Social (INPS), quando se concretiza a unificao previdenciria,

    que fica explicitada a disposio pblica de tornar a assistncia sade uma poltica

    governamental, dentro uma racionalidade claramente privatizante (MENICUCCI, 2007).

    A expanso do mercado de servios privados se deu por meio basicamente de duas

    estratgias convergentes: a compra de servios privados pelo Estado1 para prestar assistncia

    aos segurados do INPS e a transferncia da funo provedora para a iniciativa privada. A

    respeito desta segunda estratgia, os chamados convnios-empresa so a concretizao

    inicial desse movimento, como forma de transferir do Estado para o mercado a

    responsabilidade pela proviso de servios, criando as condies necessrias para o

    empresariamento mdico (ALMEIDA, 1998).

    Os convnios-empresa representam a gnese do atual mercado de planos e seguros

    privados de sade. Tiveram incio com a instalao das indstrias automobilsticas no

    perodo do governo Kubistchec (1956-1960), e a introduo de mecanismos de

    financiamento desvinculados da previdncia social, em que empresrios e trabalhadores

    custeavam a assistncia mdica sob a intermediao das empresas de medicina de grupo ou

    dos servios prprios de sade das firmas empregadoras (CORDEIRO, 1984).

    O modelo estatal-privatista adotado aps a criao do INPS, a partir de 1967 passou a

    adotar convnios entre empregadores e empresas mdicas mediados pelo INPS. Os

    convnios eram articulados entre os empregadores e o mercado de planos de sade, mas

    previa a restituio pelo INPS empresa, de um valor fixo mensal, por empregado,

    correspondente a 5% do maior salrio mnimo vigente e a empresa obrigava-se a dar

    atendimento integral aos funcionrios (ANDREAZZI, 1995).

    1 O fato de a Previdncia Social assumir a assistncia mdica como uma de suas atribuies no implicou

    necessariamente na instalao de uma infraestrutura prpria para a produo de servios de sade. Com a

    unificao dos institutos, a existncia de grande demanda reprimida, particularmente dos segurados originados

    de institutos menos prdigos, gerou uma presso muito grande sobre as unidades de sade incorporadas pelo

    INPS, sem condies de ser atendida de imediato na rede prpria previdenciria. Sem a existncia de uma

    poltica de ampliao dos servios prprios, era impossvel o atendimento imediato da demanda por meio da

    produo direta, dada a precariedade da rede pblica. A poltica previdenciria de assistncia sade passou a

    dar prioridade contratao de servios de terceiros em detrimento da ampliao dos servios prprios. Ao no

    se optar pela expanso da rede prpria, a poltica governamental ir favorecer a expanso da rede privada, e

    oportunizar a evoluo da assistncia mdica privada, hoje, articulada assistncia mdica suplementar

    (MENICUCCI, 2007).

  • 16

    A expanso de tais convnios intensificou-se com a ampliao dos subsdios tanto

    pelo lado da demanda quanto da oferta. Pelo lado da demanda, atravs da renncia de

    arrecadao fiscal, uma vez que as normas reformuladas para o custeio e homologao dos

    convnios-empresa entre 1974 e 1975 permitiam a deduo de todos os gastos das empresas

    com esta finalidade do imposto de renda, e pelo lado da oferta, atravs do financiamento a

    juros negativos para construo de hospitais privados e para compra de equipamentos via o

    Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social que acabou beneficiando tambm as empresas

    mdicas (BAHIA, 1990; WERNECK VIANNA,1998).

    Estimulados pela demanda do setor produtivo e legitimados pelo Estado, os grupos

    mdicos foram apresentando uma perspectiva empresarial mais slida, incluindo-se aqui

    tanto a medicina de grupo quanto as cooperativas mdicas. Simultaneamente, foram

    institucionalizadas e definidas as bases do sistema de seguros privados, delimitando as

    possibilidades de atuao empresarial dos grupos mdicos, das cooperativas e, mais tarde2,

    das seguradoras e da modalidade de autogesto, com a legislao que cria os sistemas

    fechados e abertos de previdncia complementar no final dos anos 70 (ALMEIDA, 1998,

    BAHIA, 1999).

    Nesse sentido, a interferncia estatal foi indispensvel ao fortalecimento do setor

    privado, uma vez que, dificilmente, a expanso e a manuteno da rede privada seriam

    viveis de forma independente do Estado, tendo em vista os baixos nveis salariais da

    populao e o aumento dos custos da assistncia mdica, fatores que inviabilizariam a

    compra direta de servios mdicos pela maioria da populao brasileira (MENICUCCI,

    2007).

    Por outro lado, importante destacar que mesmo estimulando, por meio de polticas

    explcitas, as parcerias com o setor privado, numa perspectiva privatizadora, o Estado

    abdicou das funes mediadora e reguladora, principalmente pela omisso. Permitiu que as

    relaes entre o pblico e o privado vigorassem sem uma robusta interveno, perdendo a

    capacidade de regul-las3. Essa ausncia de regras claras para o funcionamento do mercado

    e de mecanismos para fiscaliz-lo ainda repercute na atual poltica regulatria que incide

    sobre a assistncia mdica suplementar (ALMEIDA, 1998).

    2 Quando a SUSEP institui o seguro grupal de assistncia mdico-hospitalar.

    3 A regulao dos planos e seguros privados de sade s ocorrer em 1998.

  • 17

    Os efeitos perversos da lgica privatizante adotada logo comearam a ser sentidos, o

    que culminou na deteriorao dos servios previdencirios e na instaurao da crise do setor

    sade. Com o esgotamento da capacidade de financiamento da assistncia, e consequente

    queda da qualidade dos servios, instaurou-se uma insatisfao generalizada de clientes,

    segurados, usurios e prestadores (MENICUCCI, 2007). A chamada crise da sade

    previdenciria passou a reclamar por uma soluo nos mais diversos setores da sociedade,

    contexto que aliado s presses polticas decorrentes do processo de redemocratizao,

    criaria o ambiente propcio ao desenvolvimento de propostas de reforma do sistema de

    sade, as quais conduziriam universalizao setor (FARIAS; MALAMED, 2003).

    No enfrentamento da crise, o movimento da Reforma Sanitria foi o ator que

    conseguiu articular uma proposta coerente para se colocar como alternativa frente

    calamitosa situao. A Constituio incorporou a concepo de seguridade social como

    expresso dos direitos sociais inerentes cidadania, integrando sade, previdncia e

    assistncia e reconheceu o direito sade e o dever do Estado, mediante a garantia de um

    conjunto de polticas econmicas e sociais, incluindo a criao do SUS, um sistema

    universal, pblico, participativo, descentralizado e integrado (PAIM, 2013).

    Contudo, a mudana na orientao privatizante com a conquista da universalizao do

    direito sade, na Constituio, no foi suficiente para conter a expanso do mercado de

    planos e seguros privados de sade. No incio dos anos 904, momento de implantao do

    SUS, o mercado de planos e seguros privados de sade j apresentava sinais de

    consolidao, como: o aumento da clientela de planos individuais, a expanso de cobertura

    para funcionrios pblicos e a entrada de grandes seguradoras no ramo da sade (BAHIA,

    2005).

    A conjuntura dos anos 90 em nada contribuiu para reverter a situao. O ajuste da

    economia do pas s novas injunes do capitalismo mundial fez com que setores vitais,

    4 Ainda no final dos anos 80 a escassez dos recursos estatais no quadro de recesso econmica, faz com que o

    setor privado encontre dificuldades para dar continuidade ao seu processo de acumulao, uma vez que

    diminua a capacidade de absoro de sua produo por parte do Estado, seu principal comprador. As empresas

    mdicas, seguindo uma estratgia de autonomizao, passaram a estabelecer relaes diretas de venda de seus

    servios s empresas dos setores mais dinmicos da economia e a consumidores individuais que quisessem e

    pudessem contratar seus servios. As empresas mdicas passaram ento a absorver um grande nmero de

    profissionais de sade, clnicas e hospitais do setor privado, alterando-se o quadro a que esses prestadores

    encontravam-se submetidos, deixando o Estado de ser o comprador quase exclusivo de tais servios (FARIAS;

    MALAMED, 2003).

  • 18

    como a sade e a educao, assistissem a adoo de polticas segmentadas, focais e

    compensatrias, que restringiram o escopo de ao do Estado a um mnimo, enquanto se

    alargavam as bases de atuao do mercado. Realidade essa que se contrapunha

    consolidao de um modelo amplo, eficiente e universal de assistncia sade, ancorado no

    Estado e comprometido com a mudana das condies mdico-sanitrias da populao

    brasileira (ACIOLE, 2006).

    Durante sua implantao, o SUS no foi dotado de capacidade para conter o avano da

    assistncia mdica suplementar. O mercado de planos e seguros privados de sade

    continuou recebendo apoio do Estado especialmente pela deduo do imposto de renda,

    tanto no abatimento no Imposto de Renda sobre Pessoa Fsica dos gastos com planos e

    seguros privados de sade, como permitindo que as despesas operacionais das firmas

    empregadoras com assistncia mdica sejam reduzidas do montante do lucro lquido,

    diminuindo o total sob o qual incide o Imposto de Renda sobre Pessoa Jurdica (OCK-

    REIS; ANDREAZZI; SILVEIRA, 2006).

    Alm disso, a frouxa regulao, iniciada somente em 1998, ainda no foi capaz de

    garantir a comercializao de planos individuais de sade sem clusulas restritivas no

    tocante cobertura integral. Em que pese obrigatoriedade da oferta do plano-referncia,

    boa parte da ateno s doenas preexistentes, dos servios de alto custo e das cirurgias de

    alta complexidade continua sendo prestada pelo setor pblico. Por isso, o no ressarcimento

    ao SUS pelos servios prestados aos clientes de planos de sade desde que previstos nos

    contratos revela-se como mais um incentivo governamental destinado s operadoras

    (OCK-REIS; ANDREAZZI; SILVEIRA, 2006).

    O histrico de ressarcimento ao SUS mostra que, desde 1998, dos R$ 1,6 bilho

    cobrado das operadoras pela Agncia Nacional de Sade Suplementar (ANS) apenas 37%

    (cerca de 621 milhes) foram pagos. Enquanto isso, 19% (mais de R$ 331 milhes) foram

    parcelados e 44% (mais de R$ 742 milhes) no foram nem pagos nem cobrados. Isto , um

    percentual de 63% das dvidas ainda no foi quitado pelas operadoras. Como possvel

    observar, os valores no so baixos. Em 2014, por exemplo, a ANS arrecadou R$ 335,74

    milhes, o que corresponde, a quase todo oramento de vigilncia sanitria no mesmo ano

    (R$ 370.91 milhes) (BRASIL, 2015; IDEC, 2015; ANS,2015)

  • 19

    O que se verifica a sustentao, com recursos pblicos, dos planos e seguros

    privados de sade, num contexto onde a flutuao no volume de recursos destinados ao setor

    pblico e seu subfinanciamento, presentes desde a institucionalizao da universalizao na

    assistncia5, permanecem sendo a regra (ALMEIDA, 1998). Em resumo: o SUS no contou

    com financiamento estvel, enquanto os planos de sade contaram com pesados incentivos

    governamentais, favorecendo, a um s tempo, o crescimento do mercado e a estratificao

    da clientela (OCK-REIS, 2015).

    Uma consequncia importante dessa situao foi a limitao do SUS em atingir,

    regularmente, o polo dinmico da economia, cujos trabalhadores (setor privado e setor

    pblico) teriam, em tese, maior capacidade de vocalizao para lutar pela implantao da

    seguridade a exemplo da formao do Estado de bem-estar social europeu no sculo XX.

    O sistema brasileiro passou a funcionar claramente de forma duplicada e paralela, num

    processo de americanizao perversa 6

    da seguridade social (OCK-REIS, 2015).

    Se durante o regime militar, eram os anis burocrticos7 que garantiam o

    crescimento do setor privado, aps a redemocratizao, a forte influncia do mercado de

    planos e seguros privados permaneceu interferindo na definio de polticas e de leis no

    setor sade. Ao longo do perodo democrtico ps-regime militar, os grupos empresariais

    privados passaram a investir sistematicamente nos espaos de representao poltica para

    viabilizar suas demandas particulares. Ao mesmo tempo, permaneceram atentos a iniciativas

    de carter normativo emanadas do Poder Executivo. No por acaso, cavaram o front da

    disputa pela nomeao de seus representantes diretos em cargos da sade considerados

    estratgicos preservao e ampliao de seus negcios (BAHIA; SCHEFFER, 2011).

    5 O dispositivo constitucional protecionista (Constituio Federal, Disposies Transitrias, Art. 55), que

    vincula 30% do Oramento da Seguridade Social (exceto a parte destinada ao seguro-emprego) ao setor sade

    e no ao SUS transitou para o passado. Tal preceito teve vigncia por um ou dois anos, quando muito, pois

    estava condicionado promulgao da Lei de Diretrizes Oramentrias (LDO). 6 Termo cunhado por Werneck Vianna (1998) para caracterizar a orientao dada a seguridade social brasileira,

    que no avanou no sentido de fortalecer a lgica social, ao contrrio caminhou na direo do fortalecimento

    da lgica do contrato. O sistema pblico foi se especializando cada vez mais no (mau) atendimento dos

    muito pobres, ao mesmo tempo em que o mercado de servios mdicos, assim como o de previdncia,

    conquista adeptos entre a classe mdia e o operariado. 7 Expresso usada para designar durante o regime militar, as relaes entre os grupos econmicos e os

    ocupantes de cargos governamentais, que uniram os setores industriais exportadores, contratadores de obras e

    extrativo exportadores. O grande capital multinacional e o capital financeiro se articularam aos funcionrios do

    Estado (civis e militares) para garantir seus interesses e sustentar a nova etapa da acumulao e do crescimento

    econmico.

  • 20

    Dados parciais das eleies de 2014 mostram que R$ 8.382.850,00 foram doados a 30

    candidatos, sendo uma candidata a presidente, um candidato a senador, 15 candidatos a

    deputado federal e 13 candidatos a deputado estadual. Ao todo, 19 operadoras de planos de

    sade fizeram doaes a campanhas (BAHIA; SCHEFFER, 2014). Os resultados

    consolidados devem ser ainda maiores, j que, em 2010 o setor foi responsvel pela doao

    de R$ 12 milhes para 157 candidatos de 19 partidos, enquanto, em 2006, as empresas

    tinham repassado R$ 8,6 milhes; um acrscimo de 37,2%. Em relao s eleies de 2002,

    quando essas empresas destinaram R$ 1,3 milho, o aumento foi de 746,5% (BAHIA;

    SCHEFFER, 2011).

    A peculiar insero do mercado de planos e seguros privados de sade no sistema de

    sade brasileiro garante uma assistncia mdica supletiva com cobertura suplementar e

    duplicada, que compete com o SUS. O mercado contamina o SUS e ameaa sua base de

    sustentao poltica, muitas vezes capturada, seja por estratgia de sobrevivncia, seja por

    pragmatismo, ou ainda, por adeso pura e simples ao projeto liberal (PAIM, 2005;

    SANTOS; UG; PORTO, 2008).

    So diversos os efeitos nocivos dessa relao concorrencial: vo desde a deficiente

    regulao, at a reduo do financiamento pblico com a renncia fiscal e o boicote ao

    ressarcimento, passando pela dupla militncia dos profissionais de sade e pela presso do

    complexo mdico-industrial para a ampliao do consumo de produtos e procedimentos

    mdico-hospitalares. Como resultado final, h srios impasses para a igualdade no acesso,

    pois o segmento suplementar disponibiliza uma oferta de servios hospitalares e,

    principalmente, de equipamentos de alta custo muito superior do SUS (OCK-REIS;

    SOPHIA, 2009).

    Contudo, mesmo diante de um cenrio onde os nveis de utilizao e de oferta dos

    servios de sade, especialmente, internaes e atendimentos, so muito maiores para

    populao detentora de planos e seguros privados de sade do que para populao em geral

    (SANTOS; UG; PORTO, 2008), os clientes da assistncia mdica suplementar convivem

    com uma grande heterogeneidade nos padres de qualidade, alm, da fragmentao e

    descontinuidade da ateno, que comprometem a efetividade e a eficincia do sistema como

    um todo e so grandes produtores de aes judiciais.

  • 21

    Boa parte dos litgios entre clientes e operadoras deve-se ao prprio modo de operar

    do mercado de planos e seguros privados de sade, uma vez que segue uma radicalizao da

    seleo de risco- especialmente em relao s doenas pr-existentes, aos doentes crnicos

    e aos idosos - dada sua tendncia inexorvel de excluso para garantir a reproduo do

    capital, num contexto de custos e preos crescentes (OCK-REIS; SOPHIA, 2009).

    Nem mesmo a regulao da assistncia mdica suplementar, no final da dcada de 90,

    conseguiu resolver as principais tenses e reduzir a ocorrncia de litgios. Ainda que a Lei n

    9656 de 1998, que regulamenta os planos e seguros privados de sade, e a Lei n n 9961 de

    2000 que cria a ANS, tenham representado importantes avanos democrticos, questes

    centrais como a regulamentao dos planos coletivos e antigos e um efetivo ressarcimento

    ao SUS permanecem em aberto (BRASIL, 1998; BRASIL, 2000).

    Nesse sentido, a anlise das aes judiciais relativas assistncia mdica suplementar

    pode contribuir para a compreenso do funcionamento do sistema de sade brasileiro, uma

    vez que no s identifica o comportamento do Judicirio e sua conformidade com a

    legislao, mas tambm desvela os perfis das demandas e dos problemas de sade, as falhas

    da regulao e as disfunes do complexo sistema de sade vigente no Brasil (SCHEFFER,

    2013, PEPE, et al., 2011).

  • 22

    2. OBJETIVOS

    2.1 Objetivo Geral

    Analisar as aes judiciais relativas assistncia mdica suplementar julgadas no

    Tribunal de Justia de Pernambuco nos anos de 2012 e 2013.

    2.2 Objetivos Especficos

    Descrever as principais caractersticas das aes judiciais relativas assistncia

    mdica suplementar julgadas no Tribunal de Justia de Pernambuco nos anos de 2012 e

    2013.

    Analisar a fundamentao das sentenas judiciais relativas assistncia mdica

    suplementar proferidas no Tribunal de Justia de Pernambuco nos anos de 2012 e 2013.

  • 23

    3. ARTIGO I - Caractersticas gerais das sentenas judiciais relativas assistncia mdica

    suplementar proferidas no Tribunal de Justia de Pernambuco em 2012 e 2013.

    RESUMO

    Objetivo: Analisar as caractersticas gerais das sentenas judiciais relativas assistncia

    mdica suplementar julgadas no Tribunal de Justia de Pernambuco nos anos de 2012 e

    2013.

    Estratgia metodolgica: Pesquisa descritiva, que analisa as aes judiciais relativas

    assistncia mdica suplementar julgadas no Tribunal de Justia de Pernambuco nos anos de

    2012 e 2013. A busca foi realizada no site do tribunal, com os descritores: plano de sade,

    seguro-sade e sade suplementar. Os critrios de excluso foram: aes repetidas e que

    tratavam bens ou servios odontolgicos. Para a coleta de dados foi utilizado um roteiro

    semiestruturado e a anlise foi realizada atravs do clculo de frequncias absolutas e

    relativas e da anlise da fundamentao das aes. Como se trata de informaes de acesso

    pblico, no foi necessrio submeter o projeto de pesquisa ao Comit de tica em Pesquisa.

    Resultados: Das 326 aes judiciais estudadas, a maior parte das aes de autoria

    individual (95,71%), as operadoras que mais aparecerem so as medicina de grupo (55,52%)

    e as empresas de autogesto (26,69%). Os planos privados de sade coletivos esto

    presentes em 41,72% das aes e os planos antigos em 15,95%. O principal tema a

    negao de cobertura (55,8%), entre os e bens e servios mais citados esto: os

    medicamentos, as prteses e outros materiais, as cirurgias e os servios de homecare.

    Seguida pela negao de cobertura, est o reajuste devido faixa etria, a resciso unilateral

    de contrato coletivo, os benefcios legais em caso de demisso e o prazo de carncia. Em

    91.1% das aes a deciso foi favorvel aos clientes.

    Consideraes finais: O perfil das aes encontrado neste estudo demonstra que o

    aprimoramento da regulao Estatal, o avano no controle social sobre a assistncia mdica

    suplementar e a transparncia dos dados econmicos e financeiros do mercado de planos e

    seguros privados de sade so imperativos para a reduo dos litgios entre clientes e

    operadoras que chegam ao Poder Judicirio.

    Palavras-chaves: sade suplementar, planos de sade, Poder Judicirio.

  • 24

    ABSTRACT

    Objective: To analyze the general characteristics of court decisions relating to supplemental

    health judged in Pernambuco Court of Justice in the years 2012 and 2013.

    Methodological strategy: Descriptive research, which analyzes the lawsuits related to the

    supplementary health care judged in the Court of Justice of Pernambuco in the years 2012

    and 2013. The search for the lawsuits was held at the site of the court, with the descriptors:

    health insurance and supplemental health. Exclusion criteria were: repeated actions and

    dealing exclusively dental goods or services. For data collection it was used a semi-

    structured script. The analysis was performed by calculating absolute and relative

    frequencies and analysis of this reasoning in the judgment. Once it is public information, it

    was not necessary to submit the research project to the Research Ethics Committee.

    Results: Of the 326 judicial actions studied, most of the actions is individual authorship (

    95.71 % ) , operators that appear more are the group medicine ( 55.52 % ) and self-

    management companies ( 26.69 % ) . The private collective health plans are present in

    41.72% of actions and the old plans 15.95%. The main theme is the denial of coverage (55.8

    %), among the goods and services most frequently mentioned are: drugs, prosthetics and

    other materials, surgeries and homecare services. After denial of coverage, it is the

    readjustment due to age, the unilateral termination of collective contract, legal benefits in

    the event of dismissal and the grace period. In 91.1% of actions the decision was favorable

    to clients.

    Final Considerations: The profile of the actions found in this study shows that the

    improvement of State regulation, the advancement of social control on additional medical

    assistance and transparency of economic and financial data of plans, its market and private

    health insurance are imperative to reduce disputes between customers and operators who

    come to the courts.

    Keyword: supplemental health, prepaid health plans, judiciary.

  • 25

    INTRODUO

    A judicializao da sade um fenmeno que vem gerando discusses tanto no Poder

    Judicirio, como entre tcnicos, pesquisadores e gestores da rea da sade. No crescente

    nmero de aes judiciais que versam sobre o direito sade, no apenas o Sistema nico

    Sade (SUS) alvo dos litgios, mas tambm so cada vez mais expressivos os processos

    que dizem respeito assistncia mdica suplementar (AMS).

    A judicializao da sade configura-se como uma consequncia do fenmeno mais

    amplo da judicializao das relaes sociais e concretiza-se pelas demandas que chegam ao

    Judicirio e requerem a satisfao das necessidades no atendidas, quer seja pelo Estado,

    enquanto provedor ou regulador da sade, que seja pela iniciativa privada quando no papel

    de prestador de assistncia sade, especialmente no mercado de planos e seguros privados

    de sade.

    No por acaso8, a AMS tem angariado importante crescimento no cenrio da

    assistncia sade no Brasil. Dados da Agncia Nacional de Sade Suplementar (ANS) do

    conta que, ao fim do terceiro trimestre de 2014, o mercado de planos e seguros privados de

    sade contava com mais de 50 milhes de clientes, o que corresponde a uma cobertura de

    26,1% da populao brasileira. No Nordeste, esta cobertura chega a 13,43% da populao,

    somando 6.840.133 indivduos vinculados (ANS, 2014).

    A expanso de planos e seguros privados de sade convive com um grande nmero de

    aes judiciais que buscam a reparao de danos supostamente causados pela m qualidade

    ou pela ausncia de atendimento aos clientes. As excluses de coberturas, os aumentos

    abusivos, os longos perodos de carncia, as rescises unilaterais de contrato e as limitaes

    de internaes so os principais desencadeadores das aes judiciais (SOUZA et al., 2007;

    SCHEFFER, 2006; SCHEFFER, 2013; ALVES; BAHIA; BARROSO, 2009; OLIVEIRA;

    FORTES, 2013).

    De um modo geral, o mercado de planos e seguros privados de sade apresenta

    diversas caractersticas que favorecem a ocorrncia litgios, como o fato do consumidor no

    8 Historicamente, as polticas de sade sempre estimularam o setor privado no Brasil e promoveram a

    privatizao da ateno sade, seja por meio de credenciamento de consultrios mdicos, seja pela

    remunerao e criao de clnicas especializadas e hospitais ou, atualmente, pelos incentivos s empresas de

    planos e seguros de sade (PAIM et al., 2011). As origens mais remotas desta postura privatizante datam da

    dcada 30, mas sobretudo a partir da dcada de 60 que a poltica de sade brasileira favorecer a expanso do

    setor privado (MENICUCCI, 2007).

  • 26

    ter autonomia para decidir o momento em que consumir o servio comprado/segurado, a

    incompletude e a assimetria da informao do consumidor em relao ao prestador de

    servio, o risco moral9, a seleo adversa

    10 e a seleo de risco

    11 por parte das operadoras

    (CARVALHO; CECLIO, 2007).

    Alm das caractersticas inerentes ao setor, no perodo ps-constituinte, a incerteza

    presente nas relaes de mercado passa a conviver com as expectativas de justia social, em

    que a sade assume o statu de direito social e de um bem de relevncia pblica. Nesse

    contexto, negar atendimento de sade, independentemente da natureza do prestador de

    servio, implica em responsabilizao jurdica. A lei no probe obter lucro, atuando na rea

    da sade, mas nem por isso os valores por ela protegidos deixam de ser a vida e a dignidade

    da pessoa humana (SANTOS, 1997).

    A ausncia de interferncia estatal sobre o mercado de assistncia mdica suplementar

    por mais de 30 anos, aliada falta de regulao dos planos e seguros privados de sade no

    Brasil, restringe, sobremaneira, as informaes sobre as dimenses da assistncia sade, o

    funcionamento e os aspectos econmicos e financeiros do segmento mdico supletivo

    (SCHEFFER, 2006). Por isso, so indispensveis mais investigaes para elucidar questes

    ainda obscuras sobre a sade suplementar no Brasil, inclusive no que diz respeito sua

    judicializao.

    A quase totalidade dos estudos at ento desenvolvidos diz respeito ao universo de

    aes que tramitam nas regies Sudeste e Sul e no Distrito Federal, com uma concentrao

    de pesquisas no eixo Rio-So Paulo. O nico de abrangncia nacional est restrito anlise

    de aes contra uma operadora de autogesto. Nesse sentido, analisar a judicializao da

    assistncia mdica suplementar em um estado do Nordeste brasileiro imprescindvel para

    ajudar a preencher uma lacuna do conhecimento cientfico no campo da sade coletiva.

    Portanto, este artigo tem os objetivos de descrever e analisar as aes judiciais

    relativas assistncia mdica suplementar julgadas no Tribunal de Justia de Pernambuco.

    ESTRATGIA METODOLGICA

    Trata-se de uma pesquisa descritiva, em que so analisadas todas as aes judiciais, do

    tipo Agravo de Instrumento (AI), julgadas em segunda instncia no Tribunal de Justia de

    9 Mudana de comportamento do segurado em funo de no ter de suportar o custo total do atendimento.

    10 Tendncia do sistema de incorporar indivduos de maior risco.

    11 Barreiras impostas pelas seguradoras entrada de segurados no sistema, peneirando os de alto risco.

  • 27

    Pernambuco (TJPE) no binio 2012-2013 e que dizem respeito assistncia mdica

    suplementar.

    O TJPE foi escolhido como locus da pesquisa por ser Pernambuco o estado da regio

    Nordeste com a maior taxa de cobertura de planos e seguros de sade. Em 2014, a cobertura

    atinge 16,9% da populao do estado. Valores bem superiores so encontrados na regio

    metropolitana do Recife (31,9% de cobertura) e, na capital, quase metade da populao est

    coberta, alcanando 44,4% do total de habitantes da cidade (ANS, 2014).

    O AI um recurso contra uma deciso provisria, que ser julgado em segunda

    instncia por trs juzes. Sua utilizao na pesquisa deve-se tanto a disponibilidade na

    ntegra das aes julgadas em segunda instncia, como dos tipos de ao utilizados na

    judicializao da sade. Por se tratar de questes de sade e vida, h urgncia e o juiz de

    primeira instncia, onde o processo iniciado, concede a liminar ou a tutela antecipada

    tipos de decises provisrias para assegurar a imediata entrega do bem ou servio,

    enquanto o mrito discutido ao longo processo. A operadora , ento, obrigada a atender a

    imposio judicial, mas tem o direito de recorrer da deciso. Na hiptese de indeferimento

    da liminar ou da antecipao de tutela, o cliente tambm pode recorrer. Em ambos os casos

    o recurso utilizado na instncia recursal o AI (SCHEFFER; SALAZAR; GROU, 2005).

    A busca das aes foi realizada no perodo de setembro e outubro de 2014 no stio

    eletrnico do TJPE. Para tanto, foram eleitas como palavras-chaves: plano de sade,

    seguro-sade e sade suplementar e como filtros: o perodo de julgamento (2012-2013)

    e a classe da ao AI, o que resultou, no ano de 2013, num montante de 289 aes. Destas

    foram excludas: as aes repetidas; as que no tratavam da AMS; as que pleiteiem bens ou

    servios exclusivamente odontolgicos; e as que tratavam da assistncia mdica

    suplementar, mas que o recurso dizia respeito apenas s questes especficas do Direito,

    como o correto uso do Cdigo do Processo Civil ou os valores das multas para danos

    morais. Aps as excluses, o ano de 2013 totalizou 230 aes. No ano de 2012, foram

    identificadas 168, que, utilizando-se os mesmos critrios de excluso, foram reduzidas a 95

    aes. Dessa forma, o corpus final de anlise apresentou 326 aes.

    Para a coleta de dados foi utilizado um roteiro semi-estruturado (anexo 01) adaptado

    de dois instrumentos j validados por Scheffer (2006) e Alves et alii., (2009), dividido em

    03 dimenses: caractersticas da ao judicial (identificao dos acrdos, data do

  • 28

    julgamento, titularidade do autor da ao, tema da ao, modalidade da operadora, nome da

    operadora, forma e data de contratao do plano/seguro, resultado do processo), base legal

    (leis, smulas ou jurisprudncias utilizadas), e aspectos regulatrios (normas da ANS,

    normas anteriores criao da ANS publicadas por outros rgos, pareceres ou outras

    publicaes de associaes e entidades). Como tambm, foi feito o preenchimento de

    planilha (anexo 2) com os grifos da fundamentao dos juzes.

    A anlise dos dados foi realizada em duas etapas. Na etapa quantitativa utilizou-se o

    programa STATA verso 12 para o clculo de frequncias absolutas e relativas, para a

    anlise da distribuio dos tipos de operadoras nas aes judiciais foi calculado o indicador

    de litigncia, dividindo a populao litigante pela populao total de clientes de cada

    modalidade contabilizada pela ANS no perodo. Na etapa qualitativa empregou-se a Anlise

    de Contedo de Bardin (BARDIN, 1977).

    Como se trata de informaes de acesso pblico, no foi necessria a submisso do

    projeto de pesquisa ao Comit de tica em Pesquisa.

    RESULTADOS E DISCUSSO

    Das 326 aes analisadas nos anos de 2012 e 2013, 71,1% correspondem ao ano de

    2013, enquanto 28,9% datam de 2012, o que demonstra um aumento no nmero de aes ao

    longo do binio.

    No primeiro quesito analisado, a titularidade das aes, a autoria individual representa

    mais de 95% do total, os autores coletivos somam uma pequena parcela, apenas 4,3%, sendo

    as organizaes no-governamentais (ONG) as principais representantes deste grupo, como

    demonstra a tabela 01.

  • 29

    Tabela 01. Caractersticas gerais das aes judiciais relativas assistncia mdica

    suplementar e julgadas no TJPE nos anos de 2012 e 2013. Pernambuco, 2015.

    Titularidade das aes judiciais (N) (%)

    Individual 312 95,7

    Coletiva/ONG* 9 2,8

    Coletiva /MP* 3 0,9

    Coletiva/outros 2 0,6

    Tipo de contratao do plano

    Planos individuais 190 58.3

    Planos coletivos 136 41.7

    Data da contrao do plano

    Anteriores Lei n 9656/98 52 15.9

    Posteriores Lei n 9656/98 274 84,1

    Modalidade da operadora

    Medicina de grupo 181 55.5

    Autogestes 87 26.7

    Cooperativa Mdica 37 11,3

    Seguradora especializada em sade 21 6.5

    Resultado das aes judiciais

    Favorvel ao cliente 289 88,7

    Favorvel operadora 27 8,3

    Parcialmente favorvel ao cliente 8 2,4

    Parcialmente favorvel operadora 2 0,6 *ONG: Organizaes no-governamentais.

    * MP: Ministrio Pblico.

    A residual presena de autores coletivos j havia sido apontada por estudos realizados

    nos estados do Rio de Janeiro e de So Paulo, sendo as propores encontradas ainda

    menores, variando de 0,2% (SCHEFFER, 2006) a 0,4% (ALVES; BAHIA; BARROSO,

    2009) dependendo do perodo analisado. Ainda que apresentando um percentual bastante

    reduzido, nota-se uma maior proporo de aes com autores coletivos no tribunal

    nordestino.

    A explicao para a inexpressiva apario de autores coletivos pode estar ligada aos

    aspectos especficos dos processos judiciais sobre sade, em que o litgio geralmente

    corresponde a uma situao de urgncia, no limite da necessidade do usurio, que apresente

    a possibilidade de uma tramitao mais rpida quando arcada individualmente. Pode

    tambm ser devida ao fato da propositura de aes por associaes no ser to conhecida

  • 30

    pela populao ou ainda ocasionada pelo reduzido nmero de organizaes que atuam

    judicialmente no Brasil (ALVES; BAHIA; BARROSO, 2009).

    O maior nmero de aes de autores coletivos, com destaque para as ONG,

    encontrado neste trabalho em ano mais recente, pode estar revelando um fortalecimento da

    atuao da sociedade civil. Com efeito, as associaes de consumidores esto, aos poucos,

    se estruturando e se fortalecendo e so fundamentais, pois permitem contestar a legalidade

    de prticas e/ou clusulas contratuais abusivas, bem como ocupar espaos legtimos para a

    discusso do tema alm da Justia, trazendo impactos polticos significativos (ALVES;

    BAHIA; BARROSO, 2009). Vale a pena destacar que, no incio dos anos 90, a sociedade

    civil foi um importante elemento de tenso para a regulao dos planos e seguros privados

    de sade.

    Em relao aos rus - as operadoras de planos e seguros privados de sade -, os que

    mais aparecerem como alvos de litgios so as medicina de grupo, seguidas pelas empresas

    de autogesto, as cooperativas em terceiro lugar e, em menor escala, as seguradoras

    especializadas em sade. No estado de Pernambuco, em dezembro de 2013, a medicina de

    grupo somava a maior parte dos clientes: 622.302 no total. Seguidas por ela em ordem

    descrente, tinha-se: as cooperativas mdicas com 349.421 clientes, as seguradoras

    especializadas em sade aglutinando 252.975 clientes, e, por fim, as operadoras de

    autogesto com 147.278 de clientes (ANS, 2014).

    A anlise comparada demonstra que as operadoras de autogesto possuem o maior

    indicador, ao passo que as seguradoras especializadas em sade esto na ltima posio com

    um indicador de 0,14.

    Tabela 02. Indicador de litigncia de acordo com a modalidade das operadoras

    citadas nas aes judiciais relativas assistncia mdica suplementar e julgadas no

    TJPE nos de 2012 e 2013. Pernambuco, 2015.

    Modalidade (N) (%) Indicador de Litigncia

    Medicina de grupo 181 55.5 0,29

    Autogestes 87 26.7 0,59

    Cooperativa Mdica 37 11,3 0,24

    Seguradora especializada em sade 21 6.5 0,14

    A maior litigncia para as empresas autogesto apresentada neste estudo merece

    destaque, uma vez que, este o segmento com maior gasto e maior padro de cobertura

  • 31

    assistencial, logo contraditrio que apresente a maior litigncia. Segundo os dados da ANS

    as empresas de autogesto possuem maior taxa de sinistralidade, sendo de 92,7% em 2013,

    quase 10% a mais que a segunda colocada - as cooperativas mdicas - com 83,5%, e lideram

    a taxa de internao com 14,1%, e a taxa de consulta mdica em pronto-socorro por pessoa

    com 1,3 consultas para cada cliente (ANS, 2014).

    No estado de So Paulo (SCHEFFER, 2006) a participao proporcional, como rus,

    das operadoras de autogesto foi de apenas 1%, valor bem inferior ao do estado de

    Pernambuco. Na pesquisa de abrangncia nacional que analisou as coberturas assistenciais

    da Caixa de Assistncia dos Funcionrios do Banco do Brasil, um tipo de autogesto, os

    estados com maior nmero de litgios foram do Norte-Nordeste: Bahia (1,68), Roraima

    (0,94), Rio Grande do Norte (0,91), Maranho (0,88) e Pernambuco (0,86) (OLIVEIRA;

    FORTES, 2013).

    . Contudo, neste estudo o recorte temporal limitado a dois anos e o fato de uma nica

    empresa de autogesto congregar mais 50% das aes relativas a esta modalidade (das 87

    aes judiciais impetradas contra empresas de autogesto 44 dizem respeito a Caixa de

    Assistncia dos Funcionrios do Banco do Nordeste do Brasil) podem estar superestimando

    a litigncia para as operadoras de autogesto em Pernambuco. Novas investigaes que

    considerem o perfil de clientes das operadoras, as diferenas dos mercados de assistncia

    mdica suplementar entre as regies do Brasil e as caractersticas das aes judiciais so

    necessrias para avanar nesta questo.

    Ao analisar as operadoras nominalmente, percebe-se que apenas trs empresas

    congregam a metade das aes julgadas. Juntas, a Sul Amrica Seguros, a Caixa de

    Assistncia dos Funcionrios do Banco do Nordeste do Brasil e a UNIMED totalizaram

    50,31% das queixas que chegaram aos tribunais.

  • 32

    Com respeito s caractersticas dos planos e seguros privados de sade, dois aspectos

    so importantes para o estudo da judicializao: o tipo de contratao do plano - coletivo ou

    individual - e data da contratao do plano - antes ou depois da Lei n 9656/98, uma vez que

    os planos e seguros privados de sade contratados em data anterior da lei e aqueles

    Tabela 03. Empresas citadas nas aes judiciais relativas Assistncia Mdica

    Suplementar e julgadas no TJPE nos de 2012 e 2013. Pernambuco, 2015.

    Operadora (N) (%)

    Sul America S/A 83 25.46

    Caixa de Assistncia dos Funcionrios do Banco do Nordeste do

    Brasil

    44 13.50

    UNIMED 37 11.35

    Bradesco Sade S/A 23 07.06

    Golden Cross 22 06.75

    Excelsior Med S/A 16 04.91

    OPS Planos de Sade S/A 16 04.91

    Caixa de Assistncia dos Funcionrios do Banco do Brasil 14 04.29

    Hapvida Assistncia Mdica 12 03.68

    Operadora de Sade Amil/Medial 09 02.76

    Sistema de Assistncia a Sade dos Servidores de Pernambuco 09 02.76

    Operadora Ideal Sade LTDA 05 01.53

    Fundao de Seguridade Social GEAP 05 01.53

    Fundao Assistencial dos Servidores do Ministrio da Fazenda 04 01.23

    Fundao CHESF de Assistncia e Seguridade Social 03 00.92

    Caixa de Previdncia e Assistncia dos servidores da fundao

    Nacional de Sade

    02 00.61

    RECIPREV/SADE RECIFE 02 00.61

    PAME - Associao de Assistncia Plena em Sade 02 00.61

    ASL Assistncia sade 02 00.61

    VIVA PLANOS DE SADE 02 00.61

    SISTEL Fundao de Seguridade Social 01 00.31

    TELOS- Fundao Embratel de Seguridade Social 01 00.31

    Caixa de Assisncia dos Magistrados de Pernambuco CAMPE 01 00.31

    MMS Plano de Sade LTDA 01 00.31

    BB Seguro Sade Brasil Sade Companhia de Seguros 01 00.31

    Qualicorp solues em sade 01 00.31

    Omint Servios de Sade Ltda 01 00.31

    Intermdica sistema de sade S/A 01 00.31

    Grupo servios de medicina LTDA 01 00.31

    VIP Sade 01 00.31

    Caixa de Assistncia Oswaldo Cruz FIOSADE 01 00.31

    ITASEG SADE S/A 01 00.31

    Fundao Compesa de Previdncia e Assistncia COMPREV 01 00.31

    Petrobrs 01 00.31

  • 33

    coletivos ainda carecem de legislao capaz de dirimir os conflitos. Neste estudo, possvel

    observar que os planos coletivos esto presentes em 41,72% das aes. Os anteriores lei

    somam 15,95%.

    Os planos coletivos j representavam 78,9% do total de planos privados de sade

    ativos no pas (ANS, 2014). Este processo de coletivizao na adeso a planos privados de

    sade destacado na literatura como um efeito da regulao. Na medida em que o

    crescimento deu-se, basicamente, pela precificao excessiva dos planos individuais novos

    por parte das empresas, isso sob o discurso do risco regulatrio (no interrupo

    unilateral do contrato, limitao do reajuste por mudana de faixa etria e controle do

    reajuste anual), houve um crescimento dos planos privados coletivos por adeso, onde o

    risco individual fica diludo num grupo maior de indivduos (SANTOS; MALTA; MERHY,

    2008).

    Noutras palavras, os planos privados coletivos sofrem menor controle da ANS, que

    no atua em situaes de reajustes de preo e cancelamentos de contrato. Por conta disso, h

    resciso unilateral de contratos, imposio de aumentos no previstos em contrato, e a

    ocorrncia de reajustes por sinistralidade. O argumento da Agncia para no intervir na

    resciso unilateral de contratos est no fato de a Lei n 9.656/98 proibir textualmente a

    ruptura dos contratos individuais, mas no fazer qualquer meno aos coletivos. J para os

    reajustes, a ANS defende que, nos contratos coletivos, ocorre negociao entre duas pessoas

    jurdicas, com suposta paridade de foras, no sendo, portanto, necessria a sua atuao

    (IDEC, 2015).

    Os planos privados anteriores Lei n 9656/98, representaram 15,9% do total, nmero

    ainda expressivo, mesmo passada mais de uma dcada desde a regulamentao. A aprovao

    do marco regulatrio significou um grande divisor de guas, passando a existir os contratos

    regulamentados (planos novos) e contratos no regulamentados (planos antigos). Essa

    diviso foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da liminar na

    Ao Direta de Inconstitucionalidade n 193112

    , no ano de 2004, quando considerou

    inconstitucionais os dispositivos da lei dos planos de sade que regulamentavam contratos

    em curso, pois violava o direito adquirido e o ato jurdico perfeito (VIANNA, 2013).

    12

    Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) n 1931. O excelso Supremo Tribunal Federal concedeu

    liminar em 21.08.2003 suspendendo a eficcia do art. 35-E e de parte do 2. do art. 10 da Lei 9.656/98 por

    ofensa ao inciso XXXVI do art. 5. da Constituio Federal (ato jurdico perfeito), bem como julgou

    constitucional os demais dispositivos da citada legislao.

  • 34

    Contudo, a presena de planos novos e antigos tem sido um terreno frtil para a

    produo de litgios que envolvem a AMS. Especialmente, no que tange s coberturas

    mnimas estabelecidas pela ANS. Desde a edio da Lei n 9.656/98, em todas as normas

    seguintes da ANS, h previso expressa no sentido de que a respectiva norma aplicar-se-ia

    somente aos planos novos. Os planos antigos permaneceram regidos apenas pela legislao

    civil vigente poca de sua contratao e pelo Cdigo de Defesa do Consumidor (CDC).

    A primeira tentativa de atuar sobre esta problemtica foi a Lei n 10.85013

    de 2003,

    que criou meios para incentivar a adaptao e a migrao dos planos privados antigos de

    maneira que, mantendo o equilbrio contratual, esses consumidores passassem a ser

    beneficiados pela nova regulamentao do setor. A ANS editou o Programa de Incentivo

    Adaptao de Contratos14

    , que pela definio de prazo para que os consumidores

    manifestassem sua inteno, no obteve o xito desejado. Desta maneira, a ANS editou a

    RN n 254 de 2011 (alterada pela RN n 263 de 201115

    ), dispondo novamente sobre a

    adaptao e a migrao dos planos privados antigos, agora de forma permanente, ou seja,

    sem prazo (VIANNA, 2013).

    Apesar da ANS, do Poder Executivo e at do Poder Legislativo reconhecerem a

    celeuma que a diviso dos planos em antigos e novos tem gerado, esta ainda uma

    questo que permanece em aberto, necessitando de uma resoluo que contribua com a

    regulamentao dos planos antigos. No momento, a retroatividade do CDC e, em alguns

    casos, do Estatuto do Idoso que tem dado conta de elucidar os conflitos. A retroatividade da

    Lei dos planos e seguros privados de sade permanece como um obstculo a ser superado.

    Em relao ao tema da ao, o principal motivo que leva os beneficirios aos tribunais

    a negao de cobertura. No binio estudado, mais da metade das aes (55,8%) decorre de

    13

    A Medida Provisria (MP) n 148, de 2003, convertida na Lei n 10.850, de 25 de maro de 2004 [a]tribui

    competncias Agncia Nacional de Sade Suplementar - ANS e fixa as diretrizes a serem observadas na

    definio de normas para implantao de programas especiais de incentivo adaptao de contratos anteriores

    Lei n 9.656/98, de 3 de junho de 1998. 14

    RN n 64, de 22 de dezembro de 2003, alterada pela RN n 80, de 1 de setembro de 2004. 15

    De acordo com o art. 3 da RN n 254, ao consumidor contratante de plano de sade antigo garantido o

    direito de adaptar o seu contrato ao sistema previsto na Lei n 9.656/98, no mesmo tipo de contratao (plano

    individual ou coletivo) e na mesma segmentao (ambulatorial e/ou hospitalar, com ou sem obstetrcia), sem

    que haja nova contagem de carncias. Fazendo a adaptao, o consumidor estar sujeito a um ajuste no preo

    da mensalidade, de no mximo 20,59% (a depender de nota tcnica atuarial apresentada por cada operadora e

    aprovada pela ANS), e ter a seu favor, alm das coberturas previstas no contrato antigo, todas as regras da

    nova regulamentao dispostas na Lei n 9.656/98 e resolues da ANS.

  • 35

    diversos de tipos de coberturas no atendidas pelas operadoras de planos e seguros privados

    de sade. Os medicamentos, as prteses e outros materiais, as cirurgias e, por fim, homecare

    so os bens e servios que mais produziram conflitos entre empresas e clientes.

    Em seguida negao de cobertura, est o reajuste devido faixa etria isso para os

    planos contratados anteriormente a Lei n9656/98 , a resciso unilateral de contrato

    coletivo, os benefcios legais em caso de demisso e o prazo de carncia, como pode ser

    observado na tabela 04.

    Tabela 04. Tema das aes judiciais relativas Assistncia Mdica

    Suplementar e julgadas no TJPE nos de 2012 e 2013. Pernambuco, 2015.

    Tema das aes judiciais (n=326) (N) (%)

    Coberturas 182 55,8

    Reajuste/Faixa Etria 52 16,0

    Resciso unilateral do contrato/coletivo/empresaxoperadora 19 5.9

    Benefcio Legal /demisso 17 5.2

    Carncia 16 4.9

    Reajuste/Sinistralidade 8 2.5

    Resciso do contrato por falta de pagamento 5 1.5

    Benefcio Legal /aposentadoria 4 1.2

    Benefcio Legal/bito 4 1.2

    Reajuste/No especificado 2 0.6

    Descredenciamento de profissionais 2 0.6

    Resciso unilateral do contrato/Individual 1 0.3

    Resciso unilateral do contrato/coletivo/empresaxconsumidor 1 0.3

    Descredenciamento/outros 1 0.3

    Outros 12 3.7

    Tipo de cobertura negada (n=182) (N) (%)

    Cobertura/medicamento 34 18,6

    Cobertura/prteses e outros materiais 31 17,0

    Cobertura/cirurgia 24 13,2

    Cobertura/homecar 21 11,6

    Cobertura/tratamento/hospital e profissionais no credenciados 19 10,4

    Cobertura/obesidade mrbida 16 8,8

    Cobertura/diversas 10 5,5

    Cobertura/cncer 9 4,9

    Cobertura/urgncia e emergncia 9 4,9

    Cobertura/psiquitrico 7 3,9

    Cobertura/dilise 1 0,6

    Cobertura/tempo internamento 1 0,6

    A negao de cobertura por parte do setor suplementar j sabida, os primeiros

    estudos a respeito da judicializao da AMS se debruaram especificamente sobre esta

  • 36

    procela. As negativas aparecem em todos os inquritos como o principal objeto das aes,

    com porcentagens que variam de 46,2% at 65% do total (SOUZA, et al., 2007, ALVES;

    BAHIA; BARROSO, 2009).

    Outro tema que vem ganhando espao o reajuste de preos, no estado do Rio de

    Janeiro, passou de 3,4% para aes julgadas entre janeiro de 2003 e setembro de 2004, para

    29,5% no perodo de setembro de 2004 a agosto de 2005 (ALVES; BAHIA; BARROSO,

    2009). A ascenso dos litgios sobre reajuste pode estar associada ao envelhecimento da

    populao que possui planos antigos no regidos pela regulao. Com efeito, significativa

    a porcentagem de aes, neste estudo, que o Estatuto do Idoso (4,8%) como seu fundamento

    o que confirma a hiptese.

    Analisando mais detidamente os objetos alvos da negao de cobertura, observa-se, no

    TJPE, que os bens de alto custo (medicamentos, prteses, rteses e materiais) somam 35,6%

    do total, ao passo que os servios (homecare, cirurgia, dilise), em sua maioria de alta

    complexidade, e por isso tambm muito onerosos, totalizam 25,2%. Juntos os

    procedimentos de alta complexidade e os insumos de alto custo correspondem a 60,8% de

    todas as negativas.

    A forte presena de bens e servios especficos deve ser compreendida luz dos

    conflitos de interesse que se instauram entre a prtica da medicina e a indstria da sade.

    No h como negar, apesar de nem sempre prejudiciais, que a relao entre a indstria

    farmacutica e de insumos vem h anos modificando e condicionando a prtica mdica, seja

    de forma indireta pela publicidade e financiamento de eventos ou doaes de cortesias,

    como tambm, por transaes fraudulentas que no raras vezes se tornam escndalos do

    setor (BAHIA, 2015).

    O importante a considerar que, entre a cobertura negada e o prognstico, persiste

    uma caixa-preta16

    que diz respeito s prescries mdicas inadequadas, por vezes, mais

    baseadas em incentivos dados aos prescritores do que na melhoria da sade do indivduo.

    Essa situao impe regulao e pesquisa em sade uma melhor compreenso das

    condutas adotadas, uma discusso sria sobre a autonomia mdica e, acima de tudo, a

    16

    Toma-se o termo caixa preta baseado em Cohn (2011), onde define Caixa Preta para nomear a

    ignorncia que se tem sobre a lgica de acumulao do setor privado do complexo mdico hospitalar, de

    natureza filantrpica ou no, e do complexo mdico industrial da sade, e do papel que exerce essa articulao

    entre os dois subsistemas nesse processo. Em outras palavras, o grau de conhecimento atual sobre o setor

    privado da sade e, consequentemente, sobre sua articulao entre ambos os setores, extremamente escasso.

  • 37

    regulao das relaes entre a indstria e a prtica da medicina, que no se restringem

    AMS.

    A questo da prescrio mdica um tema de preocupao por parte do Judicirio.

    Dos 17 enunciados emitidos pelo Conselho Nacional de Justia (CNJ) que tratam da AMS,

    seis17

    referem-se diretamente a esta questo. Nos enunciados, ntida a preocupao do CNJ

    com a insuficincia da prescrio mdica como documento nico a embasar a deciso

    judicial, sendo recomendada a consulta a outros documentos de outras instncias, inclusive a

    Conitec, rgo responsvel pela incorporao de tecnologias ao SUS. Nesse aspecto, os

    Protocolos Clnicos e Diretrizes Teraputicas, podem ser uma importante ferramenta.

    imperioso reconhecer que as prescries mdicas podem sofrer influncias externas,

    estranhas ao atendimento das necessidades do paciente. A regulao estatal deve assumir o

    desafio de reduzir as influncias externas na prescrio de procedimentos e insumos, no no

    sentido de limitar a assistncia ou a autonomia mdica, mas sim de garantir estritamente o

    interesse do paciente.

    Contudo, apesar dos enunciados no CNJ, percebe-se nos argumentos dos juzes nas

    aes, que prescrio mdica o nico documento exigido para a tomada de deciso, o que

    produz, muitas vezes, uma deciso pouco crtica e, por muitas vezes, automatizada, sem a

    considerao, por exemplo, de qualquer tipo de conflito de interesse:

    Agravo de instrumento 01: Ressalta-se, contudo, que o tratamento a ser

    dispensado ao paciente no depende de juzo a ser exercido pela empresa

    administradora do seguro-sade. Em verdade, a competncia para estabelecer o

    tratamento de sade adequado para a patologia do paciente do profissional de

    sade e, no do plano de sade. notrio que o mdico o sujeito que detm a

    formao tcnica imprescindvel ao exerccio da profisso e, dessa forma, o

    indivduo apto a promover a elaborao do prognstico, inclusive com relao

    quantidade de medicamentos necessrios busca do saneamento da molstia

    Agravo de instrumento 02: Cabe operadora do plano de sade autorizar o

    procedimento cirrgico indicado, pois ela no livre para escolher o mtodo mais

    adequado para o tratamento da doena, por isso compete ao profissional da rea

    da sade. cabe ao mdico fazer a indicao de que a modalidade de cirurgia

    mais apropriada ao seu paciente e no ao plano de sade

    Agravo de instrumento 03: Visto que no cabe a agravante questionar o

    tratamento mais adequado ao segurado, pois o profissional apto a tal

    recomendao , indiscutivelmente, o mdico especializado escolhido pelo

    17

    Enunciados: 24, 26, 28, 29, 30, 33.

  • 38

    paciente em quem foi depositado o voto de confiana em momento de difcil e

    desgastante estado de sade

    Agravo de instrumento 04: A gravidade da enfermidade que acomete a

    agravada, somada ao conhecimento tcnico do mdico responsvel pelo paciente,

    so suficientes para que se confie no tratamento solicitado, mormente sendo ele

    uma das poucas possibilidades de manuteno da vida humana. Em que pesem as

    alegaes da agravante sobre a inexistncia de registro na ANVISA, deve

    prevalecer a confiana do mdico que acompanha a agravada no tratamento

    solicitado

    No mbito da negao de cobertura ainda se destaca a presena das negativas para o

    atendimento de urgncia ou emergncia que aparecem em 4,9% das aes, nmero que deve

    ser bem maior no universo da AMS, j que, nem todos os casos chegam justia, pois

    demandam para o paciente e seus acompanhantes a prestao de uma assistncia imediata,

    com grande possibilidade de ter sido oferecida pelos servios pblicos, sem produzir litgios

    que tenham como rus operadoras de planos e seguros privados de sade.

    J quanto negao de cobertura para obesidade mrbida e cncer, estes agravos

    apresentam porcentagens significativas de negao de tratamento em diversos estudos,

    sendo um importante motivo de disputa judicial. O grande nmero de aes motivadas pela

    negao de tratamento a estes dois agravos, no se explica apenas pelas altas prevalncias,

    mas tambm pela possibilidade de negativa por parte dos planos antigos que limitam a

    cobertura das chamadas doenas e leses preexistentes, e alguns at mesmo de doenas

    crnico-degenerativas, ou no caso dos planos novos valendo do Rol de Procedimentos da

    ANS, j que alguns procedimentos solicitados podem ser considerados estticos.

    Diferentemente dos casos da obesidade e do cncer, as coberturas psiquitricas, pela

    primeira vez, comparecem com alguma relevncia em estudos sobre a temtica da AMS,

    com valores prximos aos das negativas de atendimento de urgncias ou emergncias e de

    cncer. Esse fato gera enorme preocupao, pois os transtornos mentais correspondem a

    problemas de sade de alta prevalncia, com tendncia de aumento devido s modificaes

    na estrutura etria da populao, ao aparecimento de novas tecnologias em sade e ao

    processo de urbanizao.

    No cerne das excluses de cobertura pelos planos privados de sade dois aspectos

    precisam ser destacados. O primeiro a participao do SUS no atendimento daquilo que

    no foi coberto. Os dados acima apresentados sugerem que so vultosas as despesas arcadas

    pelo sistema pblico, no apenas pelo alto nmero de excluses, mas tambm pelo alto custo

    dos procedimentos, bens e servios negados. A quantificao da parcela de procedimentos

  • 39

    arcada pelo setor pblico e a ausncia de ressarcimento prevalecem como dois dos

    principais impasses da sobreposio entre o pblico e o privado na sade brasileira.

    Desde a CPI dos planos de sade em 2002, o ressarcimento ao SUS j colocado

    como uma das principais lacunas da regulao. Sendo as negaes de cobertura o principal

    objeto das aes, muito provavelmente os servios negados encontram em algum momento,

    ou em vrios, amparo do sistema pblico. Os gestores reclamam o ressarcimento desde os

    debates para a aprovao da Lei N 9.656, contudo os avanos ainda so pequenos. O

    ressarcimento um dos principais temas das disputas entre a regulao e as operadoras,

    sendo veementemente questionado por estas, inclusive chegando a ser alvo de uma ao

    direta de inconstitucionalidade18

    , que no foi acatada pelo STF (SANTOS, 2006).

    Uma questo importante que pode contribuir no avano do ressarcimento seu

    aprimoramento para torn-lo menos vagaroso. Desde 200519

    , todos os procedimentos

    previstos nos contratos dos planos privados de sade tornaram-se objeto de ressarcimento.

    Contudo, as principais negaes de cobertura so de alto custo e de alta complexidade,

    sobretudo eletivas e no-urgentes. Como estas excluses esto previstas em contrato ou no

    tm o respaldo da regulamentao inclui-se aqui os planos antigos - no so passveis de

    regulamentao nem tampouco essas informaes so registradas (SCHEFFER, 2006).

    As limitaes impostas pela lei e a postura das operadoras descrita anteriormente tm

    comprometido a efetividade do ressarcimento do ponto de vista financeiro e como

    mecanismo de uma maior transparncia na relao pblico-privada. A garantia do

    ressarcimento passa pelo conhecimento da totalidade da utilizao do SUS pelos clientes de

    planos privados de sade (identificao da utilizao ambulatorial), por uma mudana do

    seu marco legal, pelo reconhecimento da imbricao das redes assistenciais do SUS e da

    AMS, pelo estabelecimento de um ressarcimento per capita, pelo monitoramento rigoroso

    da utilizao da rede do SUS (definio de parmetros aceitveis) e pela punio das

    empresas que recorrem a esse expediente (SANTOS, 2006).

    O segundo aspecto refere-se aos limites da integralidade no universo da AMS,

    determinado principalmente pela estrutura da rede de servios, uma vez que, enquanto o

    SUS preconiza a hierarquizao da rede de servios, ordenando-a pela complexidade de suas

    aes, o foco dos servios da AMS se d na ateno secundria e terciria sade,

    18

    ADIN N 1931-98. 19

    Atualmente o ressarcimento regido pela Resoluo Normativa RN N 358, de 27 de novembro de 2014.

  • 40

    inexistindo, portanto, uma poltica que integre a oferta de servios demanda por cuidados

    sade nos trs nveis de ateno (GAMA, et al., 2002).

    Por fim, no que diz respeito deciso propriamente dita presente na sentena judicial,

    a resoluo da grande maioria dos litgios proferida favoravelmente aos clientes de planos

    e seguros privados de sade. Porcentagens semelhantes foram encontradas nos tribunais do

    Rio de Janeiro e de So Paulo, demonstrando que o Judicirio tem sido uma importante via

    para garantir a assistncia sade nesses casos. Nos tribunais paulistas, para as aes

    relativas cobertura assistencial julgadas em segunda instncia, no perodo de 1999 a 2004,

    os acrdos favorveis somaram 73,5% do total (SCHEFFER, 2006). Nos anos de 2009 e

    2010, esse nmero subiu para 88% (SCHEFFER, 2013). No Rio de Janeiro, nas aes do

    tipo tutela antecipada, julgadas entre os anos de 2003 a 2005, os valores variaram, na

    segunda instncia, de 72,8% a 78,2% em favor dos beneficirios (ALVES; BAHIA;

    BARROSO, 2009). importante destacar a tendncia de aumento de decises favorveis

    aos clientes ao longo do tempo.

    As altas porcentagens de decises favorveis aos clientes demonstram tanto que o

    avano do processo regulatrio permanece sem reduzir os principais conflitos, ao passo que

    Poder Judicirio tem se convertido num instrumento para o acesso a bens e servios, sendo

    hoje uma importante ferramenta garantidora de direitos para clientes da assistncia mdica

    suplementar.

    CONSIDERAES FINAIS

    Destaca-se, neste estudo, num primeiro plano, a importncia do reconhecimento das

    diferenas regionais para a compreenso do sistema de sade brasileiro, no que diz respeito

    assistncia mdica suplementar. As distintas coberturas, as variaes na concentrao de

    servios e profissionais, o nvel de desenvolvimento social das regies, alm das polticas

    locais de sade, tm afetado diretamente o imbricamento entre o pblico e o privado.

    Entre as diferenas, vale destacar, em Pernambuco, a grande proporo de empresas

    de autogesto citadas nas aes, com valores bem superiores proporo de aes

    impetradas nos tribunais do Sudeste que citam empresas de autogesto. Outra diferena a

    apario, pela primeira vez com algum destaque, das coberturas psiquitricas como fonte de

    litgio na assistncia mdica suplementar.

  • 41

    Persiste, neste estudo, a lacuna sobre o perfil dos autores das aes, condio limitante

    da anlise. O conhecimento do perfil dos autores de extrema importncia para o

    entendimento dos reais efeitos do Poder Judicirio na efetivao da assistncia sade,

    como tambm, da distribuio dos grupos sociais nos sub-sistemas (pblico, privado e

    suplementar) de sade. Ressalte-se que, em ltima instncia, o perfil dos autores indicar a

    capacidade de vocalizao dos interesses dos diversos grupos na organizao sistema de

    sade, perpassando pelos tribunais.

    Entretanto, no somente as diferenas foram destacadas, os dois grandes ns crticos

    da judicializao da assistncia mdica suplementar foram endossados nesta anlise: a

    coletivizao dos planos privados e os planos anteriores a Lei n 9656/98. importante

    sublinhar que ambos os fenmenos so resultados de respostas polticas, especialmente de

    omisso, no processo de disputas e tenses instalado com mais vigor a partir do marco

    regulatrio.

    Essa omisso em garantir uma regulao mais efetiva sobre os planos privados

    coletivos e a no retroatividade da Lei n 9656/98 mantm-se como verdadeiras leiras para

    conflitos entre clientes e operadoras, sendo do Judicirio a colheita final. No restam

    dvidas que a reduo de conflitos na assistncia mdica suplementar presume a superao

    destas duas barreiras. Para tanto, h a necessidade de aproximar a regulao dos planos

    privados dos iderios de justia social, o que inclui uma regulao democrtica e que

    considere a conformao dual ou segmentada do sistema de sade brasileiro.

    A cobertura permanece como a principal fonte de litgio, mas preciso destacar a que

    tipo cobertura se refere. Trata-se da cobertura de bens e servios de alto custo e tecnologias

    de alta complexidade, para os quais os interesses de restabelecimento da sade disputam

    espao com os interesses do mercado, dos profissionais e das operadoras. Isso tudo resulta

    numa complexa teia, ainda no elucidada, que no pode ser analisada de modo simplista, a

    fim de evitar o uso indevido dos tribunais para a garantia do lucro, em detrimento da sade

    da populao.

    Por fim, o perfil das aes identificado demonstra que o aprimoramento da regulao

    estatal, o avano no controle social sobre a assistncia mdica suplementar e a transparncia

    dos dados econmicos e financeiros do mercado de planos e seguros privados de sade so

    imperativos para a reduo das arbitrariedades cometidas por parte das operadoras, o que

    limitar a ocorrncia dos conflitos que chegam ao Judicirio na forma de aes judiciais, ou

  • 42

    ainda, a resoluo dos conflitos em espaos extrajudiciais, como a prpria agncia

    reguladora.

    Ainda que o Judicirio tenha se mostrado permevel s queixas dos clientes de planos

    e seguros privados de sade, o perfil das aes judiciais aqui encontrado luz da

    composio dual e competitiva do sistema de sade brasileiro, do aumento progressivo da

    cobertura estimulada pelas polticas governamentais, e das fragilidades da regulao,

    desenham um cenrio de acirramento da litigiosidade, se no forem adotadas polticas

    pblicas que revertam a forte estratificao social inerente assistncia mdica suplementar

    constituda no Brasil.

    REFERNCIAS

    AGNCIA NACIONAL DE SADE SUPLEMENTAR. Caderno de Informao da Sade

    Suplementar: Beneficirios, Operadoras e Planos. Rio de Janeiro, Mar. 2014. Disponvel

    em:< http://www.ans.gov.br/materiais-para-pesquisas/perfil-do-setor/dados-e-indicadores-

    do-setor>. Acesso em: 06 mar. 2014.

    ______. RN n 64, de 22 de dezembro de 2003. Dispe sobre o Programa de Incentivo

    Adaptao de Contratos de que trata a Medida Provisria n 148, de 15 de dezembro de

    2003. Dirio Oficial da Unio, Braslia, DF, 23 de dez. 2003.

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    sade no Brasil. Cad. Sade Pblica, Rio de Janeiro, v.25, n.2, p. 279-290, 2009.

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    ______. Doente superfaturado. Jornal O Globo. Disponvel em: <

    http://oglobo.globo.com/opiniao/doente-superfaturado-15081703 > Aceso em: 20 jan. 2015.

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    de Sade Suplementar - ANS e fixa as diretrizes a serem observadas na definio de normas

    para implantao de programas especiais de incentivo adaptao de contratos anteriores

    Lei n 9.656, de 3 de junho de 1998. Dirio Oficial da Unio 2004.

    http://www.ans.gov.br/materiais-para-pesquisas/perfil-do-setor/dados-e-indicadores-do-setorhttp://www.ans.gov.br/materiais-para-pesquisas/perfil-do-setor/dados-e-indicadores-do-setorhttp://oglobo.globo.com/opiniao/doente-superfaturado-15081703

  • 43

    ______. Lei n. 9.656, de 3 de junho de 1998. Dispem sobre os planos privados de

    assistncia sade. Dirio Oficial da Unio 1998.

    ______. Lei n. 9.961, de 29 de janeiro de 2000. Cria a Agncia Nacional de Sade

    Suplementar ANS e d outras providncias. Dirio Oficial da Unio 2000.

    ______. Lei n 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispe sobre a proteo do consumidor e

    d outras providncias. Dirio Oficial da Unio 1990.

    CARVALHO, E. B.; CECLIO, L. C. O. A regulamentao do setor de sade suplementar

    no Brasil: a reconstruo de uma histria de disputas. Cad. Sade Pblica, Rio de Janeiro,

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    COHN, A. Questionando conceitos: o pblico e o privado na sade no sculo 21. In: Gesto

    Pblica e relao pblico privado na sade. In: Gesto Pblica e relao pblico privado na

    sade. SA