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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP CLÁUDIO APARECIDO DUARTE Reflexões acerca da categoria trabalho na ontologia social de György Lukács MESTRADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2011

Dissertação Cláudio Duarte - TEDE: Página inicial · NETTO, J. O. G. Lukács, o guerreiro sem repouso, São Paulo: brasiliense, 1993. ... fenômeno da reificação. Logo, o conceito

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

CLÁUDIO APARECIDO DUARTE

Reflexões acerca da categoria trabalho na ontologia social de

György Lukács

MESTRADO EM FILOSOFIA

SÃO PAULO

2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

CLÁUDIO APARECIDO DUARTE

Reflexões acerca da categoria trabalho na ontologia social de

György Lukács

MESTRADO EM FILOSOFIA

Dissertação apresentada à Banca

examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de

São

Paulo, como exigência parcial para

obtenção

do título de Mestre em filosofia sob a

orientação do Prof. Doutor Antonio José

Romera Valverde

SÃO PAULO

2011

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DUARTE, C. A. Reflexões acerca da categoria trabalho em Para a on tologia do ser social

de György Lukács. Dissertação (Mestrado). São Paulo: PUC-SP, 2011.

ERRATA

Folha

06

07

09

Linha

13

12

13

Onde se lê

Entäussaerung

Entäussaerung

Entäussaerung

Leia-se

Entäusserung

Entäusserung

Entäusserung

09

10

11

12

02

17

28

25

LUKÁCS. ASSIM,

resultantes

apriori

analise

Lukács. Portanto será utilizada a

tradução de Ronaldo Vielmi Fortes

(FORTES, 2001)

resultante

a priori

análise

CAPA 04 trabalho na ontologia trabalho em para

FOLHA

DE

ROSTO

04 trabalho na ontologia trabalho em para

14 08 - (ARISTÓTELES, 1990)

21 20 ANDRESON ANDERSON

21 38 - MÉSZÁROS, 1989

22 18 “manuscritos de Paris” manuscritos de Paris

22 24 “História e Consciência De

Classe”

História e Consciência De Classe

25 01 necessariamente esta necessariamente, pois estaria

25 02 com o ao

25 02 histórico – social, aos histórico – social, e ainda

28 14 a alcance o alcance

32

34

30

24

“manuscritos de Paris”

(MARX, 2004, P. 93)

manuscritos de Paris

(MARX, 2004, P. 150-156)

39 25 Apriori a priori

42 27 Seriam seria

48 02 Vinculado vinculada

61 07 ela possibilitaria ela não possibilitaria

64 04 Eliminar fazer

65 40 o complexo, tem-se o complexo trabalho, tem-se

122 36 para ontologia para a ontologia

125 12 CATGORIAS CATEGORIAS

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139 38 nos limites limites nos

144 19 do trabalho do tempo de

148

165

16

05

postas pelo pela

__

pela

ANDERSON, P. Considerações

sobre o marxismo ocidental.

São Paulo: Brasiliense, 1989.

166 03 FORTES, R. V. TRABALHO E

GÊNESE DO SER SOCIAL NA

ONTOLOGIA DE GEORGE

LUKÁCS. (dissertação) Mestrado.

UFMG, 2007.

169 05 ___ G. LUKÁCS, O GUERREIRO

SEM REPOUSO

NETTO, J. O. G. Lukács, o

guerreiro sem repouso, São

Paulo: brasiliense, 1993.

166 _ FLIKINGER, M. G. MARX E

HEGEL: O PORÃO DE UMA

FISLOSOFIA SOCIAL. PORTO

ALEGRE: L&PM. Brasília CNPq,

1986.

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Banca examinadora

_______________________________

_______________________________

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A presente dissertação é especialmente dedicada ao

Prof. De Rose

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Agradecimentos

Aos meus pais Arlindo Vieira Duarte e Leonor Vieira Duarte pelo carinho

durante o caminho.

A Vivane Girardi, minha namorida, pelo apoio e pela doçura.

A Cybelle Fontes, diretora técnica da biblioteca da FOB – USP pela ajuda

inestimável com a bibliografia.

A Profª Michelle Di Flora pela ajuda nos momentos difíceis.

A Profª Maria Teresa Turtelli por sua generosidade em me ajudar no que fosse

possível com os textos em inglês e também na revisão em geral.

A Profª Maria Helena Catini Campagnucci pelo incentivo.

Ao Prof. Valverde, meu orientador no programa de estudos pós-graduados em

filosofia.

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RESUMO

O objeto do presente estudo se insere em uma reflexão acerca da categoria

trabalho na ontologia de György Lukács. Assim, como se situaria a categoria

trabalho em nível da concepção materialista da história? Tal é a situação

problema que se abordará nesse estudo. Pois, para o pensamento lukacsiano a

categoria modal do trabalho teria nessa concepção a gênese do ser social, assim

como todas as demais categorias. Destarte, é também fundamento das

teleologias primárias oriundas da relação direta do homem com a natureza à

medida que ele produziria as condições concretas de sua existência assim como

as teleologias secundárias, ou seja, sua consciência, ou aquilo que sua

consciência viria a produzir. Ao se estudar o complexo modal do trabalho, ainda

em Lukács, duas importantes categorias se fazem presentes, ou seja, a alienação

(Entäussaerung) e estranhamento (Entfremdung). Alienação (Entäussaerung)

enquanto exteriorização/objetivação, muito embora a objetivação seja distinta da

exteriorização ambos os conceitos seriam indissociáveis. Quanto ao

estranhamento (Entfremdung) em seu processo sócio-histórico diria respeito ao

modo de ser do gênero humano num momento específico do desenvolvimento

das forças produtivas. Assim sendo, o trabalho seria o eixo estruturador da obra

marxiana o que, fica evidente quando Lukács toma contato com os manuscritos

econômico-filosóficos e tal contato viria a transformar radicalmente seus estudos.

Destarte, o pensamento de Karl Marx estaria fundamentado, sobretudo em uma

dimensão necessariamente ontológica, ou seja, a partir da própria coisa, ou seja,

da essência ontológica da matéria tratada.

Palavras-chave: trabalho, ser social, teleologia, alienação, estranhamento.

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ABSTRACT

The object of this study falls in a reflection about György

Lukács ' work category in your ontology. Therefore, how would the

modal category work be situated according to materialist conception of History?

This is the situation that will be addressed on this study. According to the

lukacsian believe the modal category work would have in this conception the

genesis of social being as well other categories. Thus, also is the basis of primary

teleologies derived from the close relationship between man and nature as he

could produce concrete conditions of his existence as the secondary theologies,

which means, his conscience or what his conscience would produce. When

studying the complex modal work, still according to Lukács, there are three

important categories, in other words, alienation (Entäussaerung) And strangeness

(Entfremdung) Alienation (Entäussaerung). While exteriorization/objectification,

although the objectification is different of exteriorization both conceptions would be

inseparable. In regards to strangeness (Entfremdung) in its s social-historic process

it would involve how to be human in a specific moment of the development of

productive forces. Consequently, work would be the structural axis of Marxist work

what is evident when Lukács has contact with philosophical-economical

manuscripts and this contact would transform his studies drastically. Thus, Karl

Marx 's thoughts would be based mainly in a necessarily ontological dimension,

from the thing itself, the ontological essence of the matter treated.

Key Words: work, social being, teleology, alienation, strangerness

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................9

CAPÍTULO I

1.1 MANUSCRITOS de PARIS...............................................19

1.2 O PROCESSOALIENAÇÃO/ESTRANHAMENTO..........25

Capítulo II

2 TRABALHO E TELEOLOGIA NA ONTOLOGIA DE LUKÁCS

2.0 O Trabalho como gênese do ser social.............................39

2.1 Trabalho e valor.................................................................51

2.2 O trabalho como pôr teleológico........................................62

2.3 A dinamys aristotélica........................................................88

2.4 As categorias do dever-ser e valor..................................125

CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................158

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA..........................................166

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INTRODUÇÃO

O presente compêndio é uma reflexão sobre a da categoria do trabalho em

nível da ontologia de György Lukács. Assim, a análise se dará à medida que

buscará situar a categoria modal do trabalho em nível da concepção materialista

da história. Assim, para Lukács a categoria modal do trabalho teria nessa

concepção o caráter genético do ser social, e igualmente todas as demais

categorias. Portanto, é, além disso, embasamento das teleologias primárias que

teria como origem a relação direta do homem com a natureza à medida que ele

produziria as condições concretas de sua existência e, do mesmo modo, as

teleologias secundárias, ou seja, os produtos de sua consciência à proporção que

há um distanciamento da relação direta com a natureza.

Ainda em Lukács, a o se abordar o complexo modal do trabalho, duas

importantes categorias se fazem presentes, ou seja, a alienação (Entäussaerung)

e estranhamento (Entfremdung). É o será estudado no capítulo I. Assim, Lukács

recebe um impacto profundo quando entra em contato com os manuscritos

econômico-filosóficos (MARX, 2004) o que faz com que haja uma modificação

profunda em seu pensamento tanto em nível de sua estética quanto de sua

ontologia e também vai gerar um impacto profundo em todo o pensamento

marxista do século xx. Mészáros discípulo de Lukács faz uso do arcabouço

conceitual de seu mestre para fazer uma cáustica crítica aos que buscam fazer

ligações teóricas dos marxismos com ideólogos burgueses entre os quais está o

cientificismo, a teoria critica que, por sua vez tem sérias ilusões neohegelianas ao

passo que busca a erradicação da falsidade real pela autoconsciência racional

além de uma crença nas virtudes políticas; e a fenomenologia, também ao

existencialismo que, por sua vez, traz consigo a mediação com os manuscritos

econômico-filosóficos e ainda exerce sua critica aos discursos de fundamentação

Kantiana em particular ao pensamento Weberiano. Assim, tanto Lukács quanto

Mészáros vão fazer pesadas criticas ao modo cientificista em suas vertentes

econômica, política e histórica e ainda em relação à gnosiologia, ou seja, à lógica,

à epistemologia e à teoria do conhecimento. Assim, para o pensamento

lukacsiano os manuscritos econômico-filosóficos (MARX, 2004) também

conhecidos como manuscritos de paris ou manuscritos de 1844 acabam por

vincular os conceitos alienação/estranhamento presentes em Marx com o

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fenômeno da reificação. Logo, o conceito alienação/ estranhamento se revela

como tendência histórica e, assim sendo impossibilita o controle de tal processo

porque o telos não é uma categoria extática, pois as objetivações à medida que

se traduz em ação acabam por moldar o sujeito, ao passo que as atividades como

tal moldam as consciências individuais. Portanto, a conformação do trabalho em

seu processo histórico no capitalismo com sua interface entre homem/trabalho. A

sociabilidade em tal processo de humanização e complexificação social instauram

as objetivações sociais, assim há a concordância genética acerca do

desenvolvimento das subjetividades em nível dos atos singulares sedimentados.

Logo, a ação do sujeito sobre o objeto implica em uma posição teleológica, ao

passo que a relação homem/natureza implica a causalidade como tal e, assim

sendo, vão interferir na relação homem-homem. A sociabilidade histórica supõe

uma interatividade histórica entre homem e mulher, uma relação

individuo/geração e também um processo genético da sociedade como tal. Assim

sendo, o complexo alienação/estranhamento enquanto processo interior e exterior

das potencialidades humanas objetivadas em direção a realização do ser social é

resultantes de objetivações sociais. Pois, o trabalho como realidade objetiva tem

na atividade sua causa eficiente para o entendimento da problemática

homem/natureza, tais elementos são históricos e, assim sendo, fogem ao controle

do homem. Em Marx, o conceito de alienação, conceito esse obtido de Hegel,

está vinculado à noção de exteriorização e para que tal aconteça é preciso que

exista o consórcio entre a atividade, a natureza e a sociedade, tendo-se em vista

que a natureza independe das objetivações sociais, pois é uma realidade

orgânica. Já em Hegel há um distanciamento de tais categorias porque a razão

como tal se distancia do trabalho que é por si um fenômeno social. Para o

pensamento marxiano o homem é um ser-para-nós em que há uma sociabilidade

crescente à medida que há o confronto com a natureza por intermédio do

trabalho. Quanto ao estranhamento, segundo Marx, há o caráter histórico da

produção do excedente em que existe a forma característica da propriedade que

como tal é privada que, assim, possibilita a apropriação do trabalho. Porquanto, o

trabalho é o princípio constitutivo do fenômeno social. Assim, o estranhamento

pode ser verificado no feudalismo em que o servo segundo Marx é um acidente

da terra à medida que essa é propriedade privada fundiária. No capitalismo a

apropriação do trabalho tem seu momento mais desenvolvido, pois a propriedade

privada é resultante estranhada dessa forma de exteriorização que é o capital

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como trabalho acumulado e materialidade purgada do trabalho humano. Destarte,

o trabalho estranhado tem na divisão do trabalho, na propriedade privada e na

relação de troca com o trabalho, sua relação histórica fundadora. Logo, o

Capitalismo em seu apogeu radicaliza a identidade entre alienação e

estranhamento.

Precisamente no capitulo será estudado II o complexo trabalho igualmente a

categoria teleologia na ontologia de Lukács. Destarte, em Marx haveria uma

perspectiva ontológica preponderante, pois trabalho seria o complexo genético do

ser social e ainda seria o modelo das práticas sociais superiores, não obstante

ter-se-ia a impressão de uma aparente ausência de método em relação à prática

do homem, assim o conhecimento em sua efetividade na obra marxiana teria

uma fundamentação equivocada, ou seja, em bases lógico-epistemológica.

Lukács reconhece a originalidade da ontologia marxiana que, por sua vez procura

compreender o ser em suas conexões internas. Tais categorias daí oriundas se

revelariam em formas e determinações da existência seria a medida critica da

construção das abstrações em que o fato seria parte de um complexo dinâmico.

Na ontologia marxiana a dialética traduz a relação contraditória entre lei e fato, ou

seja, a oposição entre fenômeno e essência. Assim, Marx aprende com Hegel a

abordar as abstrações, no processo investigativo, como função metodológica. Por

outro lado, na economia clássica as conexões entre os fatos o que haveria seria o

silogismo o que, por sua vez levaria a falsas conexões.

Marx, entretanto, buscaria as reais conexões, os momentos do ser, por

intermédio das abstrações em seu processo de apreensão da realidade e a

dinâmica das conexões o que o leva a refutar, as duas grandes vertentes da

filosofia, ou seja, o empirismo e o racionalismo que teria por função hipostasiar os

conceitos e sobrepô-los à realidade e, assim sendo, seria o que se verifica em

nível do idealismo alemão. Em Hegel, o que se constata seria a dialética como

movimento real do ser, um método apriori que veria na historia e também na

ontologia uma coisa da lógica. Por outro lado Marx assimila a dialética hegeliana

a inverte e a transforma em parte de seu método investigativo da essência da

totalidade econômica que teria na abstração um instante de experimentação ideal,

assim a abstração viria a ser um procedimento investigativo da essência de

relações de seu objeto de análise, assim é que Lukács identificaria em Marx a

perspectiva ontológica.

Assim sendo, a seguir será estudado o complexo trabalho e a categoria valor.

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Portanto, a argumentação lukacsiana sobre a categoria valor baseia-se nos

estudos do Capital (Marx, 2003) de Marx em que verificaria no trabalho a gênese

da categoria valor, categoria essa central em todos os sistemas econômicos que,

por sua vez revelaria a complexidade da realidade em suas dimensões tanto

econômica propriamente dita quanto extra-econômica. Assim, a categoria valor

nos estudos de Marx se traduziria em suas conexões legais puras em sua

existência categorial complexa.

Destarte, os estudos de Marx apontam para o automovimento da categoria

valor, como substância, e assim sendo, em sua investigação analítica abstrativa

revelaria a economia como pressuposto preponderante da dimensão da produção

em que as formas efetivas são elementos em interação recíproca na totalidade do

ser social. Lukács, por sua vez ao estudar O Capital (Marx, 2003), encontraria na

gênese ontológica do processo de produção capitalista os nexos efetivos

existentes na realidade em suas múltiplas determinações, o processo de

desenvolvimento do ser social. Assim segundo Lukács, Marx identificaria na forma

mercadoria o valor determinante do modo de produção capitalista.

Segundo o pensamento lukacsiano, portanto, o trabalho seria o complexo de

categorias preponderante, ou seja, a centralidade do trabalho seria a gênese do

desenvolvimento do ser social. No capítulo O trabalho em “Para a ontologia do

ser social” (LUKÁCS, 1981) Lukács coloca o complexo trabalho como

pressuposto ontológico fundante da sociedade, ou seja, como determinação

genética do processo de desenvolvimento do ser social, procedimento esse que

isola abstratamente suas categorias, pois o que se busca seria a conexão entre

elas. Tal preponderância da centralidade do trabalho como forma originaria se faz

necessária, pois a analise de suas categorias intrínsecas revelaria suas conexões

decisivas, ou seja, como fundamento do processo interno da gênese do ser

social. Em sua forma primitiva, assim sendo, a atividade laboral como

manifestação, em perspectiva histórica, revelaria a determinação da identidade

abstrata das práticas sócias, ou seja, em sua forma originaria o trabalho produz

valor-de-uso e seria assim a base de toda realização humano-social. Igualmente,

a universalidade comum a toda a prática humana teria o caráter social objetivo e,

logo, o nexo ontológico seria o trabalho como condição necessária do ser social,

independente do período histórico, pois como tal o trabalho seria a dimensão

privilegiada para a compreensão dos processos humanos.

Logo, segundo os argumentos lukacsianos, a relação existente entre ser social

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e natureza relaria o processo de desenvolvimento do ser social e ainda

dimensionaria outras formas do ser porque a peculiaridade do trabalho seria a

forma reprodutiva dos seres, não obstante haja entre a gênese do ser social e a

natureza uma descontinuidade em seus respectivos processos reprodutivos.

Assim, haveria um salto (Sprung) qualitativo, conceito esse fundamental para o

pensamento lukacsiano, pois desvelaria o trânsito da dimensão da natureza para

a dimensão humana que teria nesse momento a gênese do complexo de ser que

se traduziria como o primeiro ato humano, ou seja, como ato não-natural.

Na seqüência será estudado o complexo trabalho em sua relação com o

teleológico. Assim sendo, Lukács ao abordar a Dialética da Natureza (ENGELS,

1985) concluiria que para Engels há uma distinção entre atividade animal e o

trabalho humano, e assim sendo, o animal utilizaria a natureza, por outro lado o

homem dominaria essa mesma natureza. Porém, tanto para Marx quanto para

Lukács o tema central residiria na análise do complexo trabalho, destarte, quando

o pensamento lukacsiano se depara com o capitulo V do livro O Capital (MARX,

2003) o resultado de suas análises revelaria o trabalho como categoria central,

pois seria em tal categoria que a posição teleológica se realiza em nível do seu

ser material.

Assim, uma nova objetividade se faria presente com a categoria trabalho, pois

dela adviria o modelo de toda a práxis social e também de outras posições sócio-

teleológicas, e assim sendo, o trabalho como pôr teleológico seria a gênese

dessas mesmas posições teleológicas. Logo, para a teleologia o trabalho seria

uma atividade consciente porque seria a dinâmica própria da transformação da

natureza, o que levaria ao reconhecimento, por parte da consciência, das

características das leis naturais. Assim, a prévia- ideação como apropriação por

parte da consciência dos nexos causais teria por função a transformação da

natureza à medida que a submete e se submete as leis naturais. Destarte, a

consciência como essência humana em seu processo genético de

desenvolvimento no interior do complexo trabalho se traduziria na concepção

materialista da história em que a consciência é gerada pelo ser social.

Igualmente, como complexo de leis e fenômenos naturais a causalidade

espontânea à medida que se transforma em causalidade posta pela atividade

humana tem na previa-ideação o eixo da analise de Lukács. Assim, o

espelhamento e também a previa-ideação como momento da atividade laboral

tem ai seu caráter ontológico inovador, ou seja, a particularidade do ser social.

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Assim sendo, os objetos concretos à medida que, pelo espelhamento, se

tornam realidade própria da consciência, pois as imagens se autonomizam são

por ela transformadas. Logo, o caráter pratico do espelhamento constatado pela

realização da finalidade, pois são objetivações humanas, possibilitam novas

combinações na natureza, destarte, não haveria um simples espelhar dos objetos

na consciência .

Precisamente, o estudo da dynamis num momento seguinte se faz necessário

para esclarecer a estrutura do método usado por Lukács para estudar a ontologia

do ser social. Destarte, Na metafísica de Aristóteles, Lukács encontra o conceito

de dynamis que, por sua vez determinaria a dinâmica das transformações da

natureza. Assim, segundo o pensamento lukacsiano a dynamis seria o principio

mediador em que se daria a passagem da potência ao ato em que a natureza

transformada pelo homem iria gerar o ser social. Igualmente, a dynamis seria o

principio do movimento, ou seja, condição tanto intrínseca quanto extrínseca de

transformação do objeto, e assim sendo, em sua condição intrínseca como

possibilidade de sofrer transformações em sua estrutura interna e em sua

condição extrínseca de conduzir algo a um bom fim. A dynamis seria também a

possibilidade da consciência em por em movimento os objetos da natureza e

ainda suas conexões em seu trânsito da potência ao ato.

Assim sendo, a partir da noção de dynamis é possível compreender a análise

do pensamento lukacsiano sobre o espelhamento da realidade como forma de

efetividade em nível de suas possibilidades objetivas. Portanto, o homem em seu

processo laboral teria diante de si tanto as alternativas quanto os nexos causais.

Do mesmo modo, as propriedades do objeto natural à medida que o

espelhamento elabora na consciência tanto as alternativas quanto a causalidade

acabaria por desenvolver o trabalho em suas formas tendencialmente mais

complexas. Logo, Lukács indica a importância do complexo

finalidades/espelhamento para a compreensão da gênese do ser social, pois a

passagem da potência ao ato e também a escolha entre alternativas e até mesmo

a dimensão da possibilidade técnica seria o fundamento do telos socialmente

estabelecido. Assim a prévia-ideação teria em si um conteúdo ontológico

caracterizado pela categoria da alternativa que, por sua vez acompanha a

dinâmica laboral. E assim sendo, existiria a preponderância da atividade ideal,

tendo-se em vista a primazia do complexo da objetividade representado pelo

trabalho, em relação à teleologia.

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Por conseguinte, o trabalho seria a gênese constitutiva do ser social e, assim,

fundamentaria as formas da prática social e ainda seria a base das formas

superiores da pratica social. Igualmente, o trabalho traria consigo a dinâmica da

autoformação do sujeito que trabalha. Pois, à medida que toda forma de prática

social humana seria uma forma de por teleológico, a atividade laboral seria a base

comum de formas qualitativamente distintas da prática social. Logo, a identidade

abstrata presente na dialética marxista, segundo o pensamento lukacsiano,

revelaria nas múltiplas determinações da realidade duas posições teleológicas.

Uma posição teleológica primária em que o homem age sobre a natureza e uma

secundaria que teria por objetivo a consciência dos homens cujo papel

preponderante incidiria sobre as relações sociais tendo em vista que haveria um

contato constante com a dimensão da produção e seria igualmente a gênese das

ações políticas e, além disso, seria a base para a compreensão dos fenômenos

ideológicos.

Sendo assim, a partir da atividade laboral haveria um crescente distanciamento

entre os espelhamentos, na consciência, intrínsecos ao processo de trabalho,

pois tais espelhamentos passariam a ter certa autonomia e, portanto, desvelariam

as leis gerais do movimento natural. Destarte, haveria tendências intrínsecas

presentes nos procedimentos próprios às atividades laborais e também à

dinâmica própria da estrutura do trabalho que seriam a gênese do pensamento

científico. Pois existiria uma dupla relação de ligação e independência na

formação do pensamento científico, ou seja, o vinculo necessário entre

conhecimento e prática, entre teoria e pratica. Do mesmo modo, teoria e prática

seriam categorias intencionadas porque são mediadoras do processo de

reprodução do conhecimento, logo, toda teoria teria por fundamento a

sociabilidade do homem. A ciência, por conseguinte, ocupar-se-ia de questões

ontológicas, à medida que as responderia ontologicamente, tenha ela ou não

consciência disso.

Assim sendo, a última parte do presente estudo é sobre as categorias dever-

ser e valor. Justamente, o caráter necessário da ação social humana residiria na

orientação do dever-ser e do valor, pois em tais categorias estaria o fundamento

de toda a sociedade e, portanto, do ser social. Igualmente, seria no valor que

revelaria a gênese tanto do movimento causal quanto da ação teleológica, e

assim sendo, as conexões causais transcenderiam o próprio valor porque ele

seria necessariamente social, ou seja, seria categoria do ser social. Igualmente,

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dever-ser e valor são inseparáveis do processo laboral, pois seriam momentos de

um mesmo complexo e, assim sendo, o valor seria o critério pratico para o dever-

ser e, do mesmo modo, fundamento teleológico do trabalho. Assim, seriam no

confronto com as leis naturais que se desvelariam os princípios constitutivos do

processo de construção da subjetividade em que se daria a realização humana.

Logo, na atividade laboral haveria a anterioridade dos fins que seriam uma

particularidade humano-social tendo em vista o momento ideal.

Igualmente, na pratica social a tarefa futura teleologicamente posta

determinaria a pratica em sua dimensão subjetiva em que as intencionalidades e

as alternativas estariam imbricadas. Por outro lado a espontaneidade da

causalidade na dimensão do ser biológico se estenderia a apenas até a

adaptação ao passado, aos fenômenos da natureza e, assim sendo não haveria

dever-ser. Portanto, em nível do ser social a posição do sujeito seria algo a ser

realizado e determinaria assim os passos da atividade à medida que o trabalho o

põe em movimento orientado por um dever-ser.

Sendo assim, as conseqüências para o homem em que a atividade laboral

estaria orientada para uma realização o adaptaria aos procedimentos dessa

mesma atividade e à medida que transforma o elemento natural transformaria

igualmente a si mesmo. Destarte, o domínio da inteligência sobre o ser biológico

levaria ao desenvolvimento de suas qualidades e, além disso, um maior domínio

sobre a relação com a natureza, pois as habilidades desenvolvidas no processo

laboral incidiriam sobre o próprio sujeito e o levaria a superação de sua

particularidade especifica. Logo, no trabalho o dever-ser é orientado a partir da

subjetividade e orientar-se-ia pela objetividade do processo da relação com o

objeto natural e, assim sendo, levaria ao desenvolvimento de habilidades

subjetivas. Portanto, a atividade laboral objetiva a si mesmo e, à medida que

constrói a si mesmo, constrói seu próprio mundo.

Precisamente, em sua forma originaria do trabalho a atividade humana à

proporção que seria objetiva seria parâmetro para o dever-ser, pois as posições

teleológicas secundárias como formas superiores da prática social levaria o

dever-ser a um maior grau de complexidade em que se revelariam as alternativas

morais. De tal modo que levaria outros homens a determinadas posições

teleológicas. Tendo-se em vista que as características da condição genética do

trabalho não seriam diretamente transpostas para as formas superiores da prática

social.

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De tal modo, Lukács para esclarecer a questão do dever ser em nível filosófico

iria analisar essa categoria segundo a perspectiva tanto do materialismo

mecanicista quanto do idealismo. O idealismo, segundo o pensamento

lukacsiano, seria incapaz de compreender as relações ontológicas, pois o método

usado seria a gnosiologia, ou seja, a lógica e a teoria do conhecimento e, assim

sendo, tal método levaria a uma antítese entre a gênese do ser social e as formas

evoluídas o que levaria a fetichização dos fenômenos superiores, uma vez que

nega seus fundamentos genéticos e, deste modo, a forma originaria do dever-ser.

Logo, em nível da relação homem/natureza haveria um caráter antitético em

relação às formas mais evoluídas. Em relação ao materialismo mecanicista, ele

seria por si só reducionista uma vez que aborda apenas aspectos secundários, ou

seja, as determinações biológicas do ser social o que levaria, assim sendo, a

fetichização do fenômeno social.

Justamente, a noção de modelo do complexo do trabalho desencadearia os

desdobramentos possíveis do desenvolvimento do ser social, porém não haveria

qualquer pré-determinação das formas superiores, pois a totalidade histórica do

ser social é compreendida post festum. Logo, entre o materialismo mecanicista e

o idealismo haveria o tertium datur que, por sua vez conteria o método dialético.

Destarte, em suas variantes mais complexas a noção de modelo estaria vinculada

a idéia de identidade abstrata em nível do conceito do complexo do trabalho. Do

mesmo modo, a noção de modelo em relação às práticas sociais superiores traria

a idéia de salto qualitativo (Aufhebung) em que a unicidade do valor poderia ser

verificada, em nível da identidade abstrata tanto nas formas primárias do ser

social quanto nas formas secundárias.

Logo, é possível apreender as características, ou seja, a universalidade de

categorias ou estruturas de todas as práticas sociais distintas umas das outras.

Assim, o valor-de-uso seria o parâmetro da prática no trabalho originário e o valor-

de-troca em suas formas superiores de relação com a produção que, por sua vez

seria a mediação para além da relação homem/natureza. Deste modo, o valor-de-

troca estaria presente na essência do trabalho à medida que não se encontraria

suas propriedades na realidade objetiva. Igualmente, o valor econômico sendo o

valor-de-troca haveria uma elevação qualitativa em relação ao valor presente na

atividade simples produtora de valor-de-uso e, assim sendo, o caráter do valor

econômico sua elevação à dimensão universal. Portanto, ter-se-ia o valor-de-uso

como fundamento do valor-de-troca, pois o valor-de-uso conteria as objetivações

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da relação orgânica entre sociedade e natureza.

Precisamente, o processo de desenvolvimento do ser social tanto em nível

objetivo quanto subjetivo traria consigo o caráter pernicioso do aumento da

produção e a conseqüente diminuição do tempo de trabalho necessário para a

produção da mercadoria. Assim, as formas superiores da prática social se

revelariam em alternativas típicas das posições teleológicas secundárias

vinculadas às posições de valores econômicos. E assim sendo, com o fim do

comunismo primitivo e conseqüente surgimento das classes sociais as decisões

dos indivíduos passariam a ser determinadas por sua classe, deste modo,

passariam a existir interesses antagônicos no interior de sua formação social.

Portanto, haveria nos valores uma objetividade histórica, porém tal objetividade

não independe dos indivíduos, ela se realiza por intermédio de suas posições

porque haveria em seu processo a unidade entre tendências globais, ou seja, no

conjunto de decisões dos indivíduos. Contudo, as tendências gerais em seu

processo global independem da vontade humana, pois as posições do valor no

processo do ser social direcionariam tal processo e, assim sendo, só seriam

racionalizáveis post festum. Logo, a totalidade do processo de desenvolvimento

do ser social supõe possibilidades entre alternativas, ou seja, escolha entre

valores contraditórios.

Portanto, a estrutura originária da prática laboral seria o fundamento necessário

da prática social humana em que as alternativas nas quais os homens tomariam

suas decisões são determinadas pela categoria valor à medida que é categoria

especifica do ser social. Assim para o pensamento lukacsiano, a análise

ontogenética revelaria o trabalho como modelo da pratica social e ainda

fundamentaria a estrutura e o processo de desenvolvimento do ser social. Logo, a

objetividade do processo seria criada pelos homens a partir de posições

alternativo-teleologicas em que a legalidade do processo de desenvolvimento do

ser social seria algo intrínseco ao homem.

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CAPÍTILO I

OS MANUSCRITOS DE PARIS

Lukács recebe um impacto profundo quando entra em contato com os

manuscritos econômico-filosóficos (MARX, 2004) o que faz com que haja uma

modificação profunda em seu pensamento tanto em nível de sua estética quanto

de sua ontologia e também vai gerar um impacto profundo em todo o pensamento

marxista do século xx. Mészáros, discípulo de Lukács, faz uso do arcabouço

conceitual de seu mestre para fazer uma cáustica crítica aos que buscam fazer

ligações teóricas dos marxismos com ideólogos burgueses entre os quais está o

cientificismo, a teoria critica que, por sua vez tem sérias ilusões neohegelianas ao

passo que busca a erradicação da falsidade real pela autoconsciência racional

além de uma crença nas virtudes políticas; e à fenomenologia, também ao

existencialismo que, por sua vez, traz consigo a mediação com os manuscritos

econômico-filosóficos e ainda exerce sua critica aos discursos de fundamentação

Kantiana em particular ao pensamento Weberiano. Igualmente, tanto Lukács

quanto Mészáros vão fazer pesadas criticas ao modo cientificista em suas

vertentes econômica, política e histórica e ainda em relação à gnosiologia, ou

seja, à lógica, à epistemologia e à teoria do conhecimento. Assim, para o

pensamento lukacsiano os manuscritos econômico-filosóficos (MARX, 2004)

também conhecidos como manuscritos de Paris ou manuscritos de 1844 acabam

por vincular os conceitos alienação/estranhamento presentes em Marx com o

fenômeno da reificação. Logo, o conceito alienação/ estranhamento se revela

como tendência histórica e, assim sendo impossibilita o controle de tal processo

porque o telos não é uma categoria extática, pois as objetivações à medida que

se traduz em ação acabam por moldar o sujeito, ao passo que as atividades como

tal moldam as consciências individuais. Por conseguinte, a conformação do

trabalho em seu processo histórico no capitalismo com sua interface entre

homem/trabalho. A sociabilidade em tal processo de humanização e

complexificação social instauram as objetivações sociais, assim há a

concordância genética acerca do desenvolvimento das subjetividades em nível

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dos atos singulares sedimentados. Logo, a ação do sujeito sobre o objeto implica

em uma posição teleológica, ao passo que a relação homem/natureza implica a

causalidade como tal e, assim sendo, vão interferir na relação homem-homem. A

sociabilidade histórica supõe uma interatividade histórica entre homem e mulher,

uma relação individuo/geração e também um processo genético da sociedade

como tal. Assim sendo, o complexo alienação/estranhamento enquanto processo

interior e exterior das potencialidades humanas objetivadas em direção a

realização do ser social é resultante de objetivações sociais. Pois, o trabalho

como realidade objetiva tem na atividade sua causa eficiente para o entendimento

da problemática homem/natureza, tais elementos são históricos e, assim sendo,

fogem ao controle do homem. Em Marx, o conceito de alienação, conceito esse

obtido de Hegel, está vinculado à noção de exteriorização e para que tal aconteça

é preciso que exista o consórcio entre a atividade, a natureza e a sociedade,

tendo-se em vista que a natureza independe das objetivações sociais, pois é uma

realidade orgânica. Já em Hegel há um distanciamento de tais categorias porque

a razão como tal se distancia do trabalho que é por si um fenômeno social. Para o

pensamento marxiano o homem é um ser-para-nós em que há uma sociabilidade

crescente à medida que há o confronto com a natureza por intermédio do

trabalho. Quanto ao estranhamento, segundo Marx, há o caráter histórico da

produção do excedente em que existe a forma característica da propriedade que

como tal é privada que, assim, possibilita a apropriação do trabalho. Porquanto, o

trabalho é o princípio constitutivo do fenômeno social. Assim, o estranhamento

pode ser verificado no feudalismo em que o servo segundo Marx é um acidente

da terra à medida que essa é propriedade privada fundiária. No capitalismo há a

apropriação do trabalho tem seu momento mais desenvolvido, pois a propriedade

privada é resultante estranhada dessa forma de exteriorização que é o capital

como trabalho acumulado e materialidade purgada do trabalho humano. Destarte,

o trabalho estranhado tem na divisão do trabalho, na propriedade privada e na

relação de troca com o trabalho, sua relação histórica fundadora. Logo, o

Capitalismo em seu apogeu radicaliza a identidade entre alienação e

estranhamento.

Os manuscritos de Paris (MARX, 2004), também conhecidos como

manuscrito de 1844 ou manuscritos econômico-filosóficos, exerceram uma

profunda influência sobre importantes teóricos do marxismo. Quando de sua

publicação na década de 1930, Anderson escreve acerca da impressão causada

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pelos manuscritos que imprimiu uma

[...] marca profunda e duradoura em três pensadores da época. Em seu

exílio em Moscou Lukács trabalhou sob a supervisão pessoal de

Ryazanov na decifração dos manuscritos, em 1931; a experiência

segundo ele mesmo afirmou, transformou para sempre sua interpretação

do Marxismo. Em Berlim, Marcuse saudou a publicação com um ensaio,

em 1932, no Die Gesellschaft, que começou com a retumbante

declaração de que eles (os manuscritos) colocavam ‘toda a história do

socialismo científico em um novo plano’ [...]. Em Paris, Lefebure foi

responsável pelas primeiras traduções dos manuscritos para uma língua

estrangeira, sua edição dos textos, preparada em colaboração com

Guterman, foi publicada em 1933 [...]. (Após a segunda guerra), na Itália

Della Volpe marcou sua entrada teórica para o materialismo histórico

com a primeira tradução para o italiano e a discussão dos novos textos

do jovem Marx [...]. Na França, foram os novos textos do jovem Marx

uma vez mais que atraíram Sartre e Merleau-Ponty para o marxismo [...],

a teoria positiva enunciada por Althusser, contestando as interpretações

anteriores de Marx baseadas nos manuscritos, permanecia em um plano

filosófico específico desconhecido antes de sua descoberta.

(ANDRESON, 1976, p. 76-78)

Destarte, os manuscritos de Paris (MARX, 2004) aqui analisados, sem

entrar na confrontação ou no mérito das interpretações de Marx, será verificar sua

posição central na estrutura interna do pensamento de lukacsiano, pois é o

próprio Lukács quem declara o seguinte acerca dos manuscritos:

Quando estive em Moscou, em 1930, Ryazanov me mostrou os textos escritos por Marx em Paris, em 1844. Vocês nem podem imaginar minha excitação, a leitura desses manuscritos mudou toda a minha relação com o marxismo e transformou minha perspectiva filosófica [...] pelos meus conhecimentos de filosofia, trabalhei determinando quais as palavras ou letras que despareceram; às vezes havia palavras começando com G e terminando com S e nós tínhamos de adivinhar o que havia no meio. Penso que a edição publicada saiu muito boa – sei por que colaborei nela. Ryazanov era o responsável por esse trabalho; não era um teórico, mas

um grande filólogo.( NEW LEFT REVIEW, 1968 Apud MARX, 2004. p. 8)1 Para Lukács, deste modo, o manuscrito de 1844 (MARX, 2004) representou uma

reviravolta decisiva em seu pensamento desde os fundamentos da estética nos anos 30 e

40 até sua ontologia até os fins da década de 1960. Do mesmo modo os manuscritos de

Paris exerceu uma poderosa influência em nível das posições estruturantes no que diz

respeito a conformação do marxismo do século XX.

István Mészáros, em o poder da ideologia, enfatiza em especial as ligações

teóricas dos marxismos com os ideólogos da burguesia à medida que também

pretende criticar a maledicência de Marx e enfatizar de maneira categórica a

1 Entrevista concedida à sucursal da New Left Review em Budapeste, em 1968, e publicada no 68, em 1971. Apud Marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos. Campinas: Boitempo, 2004. p. 8

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necessidade de superação do capital, e ainda se volta para as associações

indevidas do pensamento de Marx com elementos estranhos. Mészáros vai

criticar duramente, basicamente três tendências: o cientificismo dominante, a

teoria crítica e a vertente fenomenológica (MÉSZÁROS, 1989. Cap. I, III e IV), não

obstante a qual ao lado do existencialismo manter importante mediação nos

manuscritos econômico-filosoficos (MARX, 2004) tendo em vista sua relação com

Marx. Tais discussões se inserem no contexto mais amplo da exposição dos

marcos ideológicos, assim como na refutação dos discursos de justificativa e

naturalização da contemporaneidade, que se fazem presentes com a situação do

pós-guerra e de vínculos teóricos bem mais antigos como no caso do Kantismo.

Por outro lado, por mais que se diferenciem o cientificismo e a teoria critica e,

acabem por caminhos diversos, encontra-se segundo Mészáros um núcleo

comum que é a filosofia Kantiana, o neokantismo e também o pensamento

weberiano, assim, a implicação comum, neocriticismo e neopositivismo negam,

cada um a seu modo o caráter transitório e ainda a possibilidade de superação do

capitalismo e, assim sendo, expressam claramente sua aversão ao marxismo.

Como visto anteriormente, Lukács participa na preparação da edição dos

“manuscritos de Paris” (MARX, 2004) o que, se discutirá será sua importância na

história intelectual de Lukács, pois com o advento de tais manuscritos é possível

abordá-lo como um divisor analítico entre o jovem Lukács e o da maturidade, a

partir do período de 1930 até as formulações fundamentadas de seus últimos

anos de vida.

Lukács, sendo assim, ainda que ignorando os assim chamados ‘textos

juvenis’ de Marx reconstrói ele mesmo, em “Historia e Consciência de Classe”

(LUKÁCS, 2003), as inquietações filosóficas de Marx, sobretudo as

fundamentadas nos manuscritos econômico- filosóficos (MARX, 2004). É assim

que se daria o sentido entre alienação/estranhamento em Marx e o conceito

Lukacsiano de reificação. Precisamente, a base real do estranhamento se

encontraria no trabalho, em sua divisão e sua conseqüentemente apropriação

também na propriedade privada, tanto dos meios de produção quanto da

fundiária; como veremos a seguir. Assim, num primeiro momento o processo de

alienação (Entäusserung) revelaria uma determinada tendência histórica, à

medida que se desenvolve encontra sua culminância em seu momento genérico

na forma capitalista, tendo-se em vista que, em tal tendência está implícito o

desenvolvimento das formas de divisão do trabalho. A forma capitalista, assim,

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apresenta-se como um mecanismo de privação universal à medida que tem em si

o caráter da categoria estranhamento (Entfrendung), como um dispositivo de

reposição da omnilateralidade do homem por intermédio do trabalho. Logo, a

originalidade da problemática que coloca a questão da interação entre alienação e

estranhamento tem na impossibilidade de se controlar esse processo de

desenvolvimento de maneira extensiva e consciente, por dois motivos, num

primeiro instante a constituição da história como produto da formação objetiva e

subjetiva do homem, portanto uma criação proveniente de sua própria atividade

como tal; num segundo instante ela é simultaneamente fruto de um complexo de

ações cujo telos não é circunscrito enquanto categoria extática, definitiva ou

controlável nem mesmo por aqueles que têm o poder ou mesmo a consciência de

dirigir os rumos do movimento da reprodução social.

A partir das objetivações efetuadas numa ação de retorno que em si,

moldariam o sujeito que como tal é resultante de suas atividades que, por sua

vez, iria moldar as consciências individuais em seu grau específico. Por

conseguinte, a reprodução da sociedade tem nas necessidades a origem da

conformação do trabalho ligado a processos históricos existentes. (LESSA FILHO,

1994, p. 149 e ss.). Portanto, uma relação sujeito/objeto, ou seja, uma relação entre

homem e natureza repassada pela posição do telos do primeiro plasmado com a

causalidade do segundo. E assim sendo, a posições teleológicas dos homens

acabariam por interferir entre si porque tal interferência incide justamente na

relação homem-homem.

A sociabilidade humana, por conseguinte, não se limita à produção como

tal, ao contrário é na interatividade histórica entre os sexos, assim como as

relações entre os indivíduos e as gerações e, ao processo genético da sociedade,

assim escreve Marx:

A relação imediata, natural, necessária do homem como o homem é a

relação do homem com a mulher. Nesta relação genérica natural a relação do

homem com a natureza é imediatamente sua relação com o homem, assim

como a relação com o homem é imediatamente a relação dele com a natureza

própria determinação natural. Nesta relação aparece, portanto sensivelmente,

reduzido a um fato perceptível, até que ponto a essência humana do homem

tornou-se natureza ou natureza essência humana do homem, A partir desta

relação pode-se, portanto julgar o completo nível de formação do homem (die

ganze bildungsstufe) [...]. A essência humana da natureza está, em primeiro

lugar, para o homem social; pois é primeiro aqui que ela existe para ele como

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elo com o homem, como existência (dasein) sua para o outro e do outro para

ele; é primeiro aqui que ela existe como fundamento da sua própria existência

humana, [e] também como elemento vital da efetividade (wirklichkeit) humana.

É primeiro aqui que a sua existência natural se une tornou a sua existência

humana e a natureza [se tornou para ele homem. Portanto, a sociedade é a

unidade essencial completada (vollendete) do homem com a natureza, o

naturalismo do homem e o humanismo da natureza levados a efeito. (MARX,

2004, p. 104)

A atividade (MÁRKUS, 1974 p. 30), portanto, é o fundamento do indivíduo

em sua totalidade em nível de sua sociabilidade, ou seja, as esferas específicas

da atividade social em sua evolução histórica estão necessariamente situadas no

âmago do próprio processo imediato de trabalho, assim se renova a qualidade

das necessidades individuais à medida que se desenvolve a vida coletiva com a

sedimentação histórica de instituições sociais. As potencialidades físicas e

espirituais do trabalhador como atividade genérica é constituída por atividade

humana, pois o produto do trabalho faz com que ele, trabalhador se aproprie do

mundo a razão em que o objetiva, o que o torna individualidade e universalidade:

Para o homem em sociedade, a efetividade objetiva (Gegenständliche wirklichkeit) se torna por toda parte [...] efetividade das forças essenciais humanas (Menschlichne Wesenskräfte), efetividade humana por isso efetividade de suas próprias forças essenciais, tornando-se para ele todos os objetos [a] objetivação de si mesmo, objetos que realizam e confirmam sua individualidade enquanto objetos seus, isto é, ele mesmo torna-se objeto como se lhe tornam seus, depende da natureza do objeto e da natureza da força essencial que corresponde a ela, pois precisamente a determinidade desta relação forma o modo particular e efetivo da afirmação.(MARX, 2004, p. 110)

Assim, para que as atividades intelectuais sejam consciente-ideais é

preciso que tais atividades tenham sido num, primeiro instante, atividades prático-

material. Á proporção em que se modifica o caráter dessas mesmas atividades

que permitem, ainda que rudimentarmente, a reprodução cotidiana dos indivíduos,

pois responde a essa dimensão das necessidades mais imediatas. Portanto,

como conceitos (MARX, 2004, p. 41), os objetivos são sua representação mental,

porque os objetos transformar-se-iam, segundo a necessidade de compreensão

desse mesmo objeto, de elementar e estático-mecânico (MARX, 2004, p. 41) em

representações ideais dos objetos na mente dos homens.

É assim, desse modo, que se distinguem a produção intelectual do

pensamento cotidiano (MARX, 2004, p. 41-42) como na evolução da divisão do

trabalho em que são constituídos os sistemas autônomos de objetivação, pois

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estão além da mera representação mental que necessariamente está vinculada

com o desenvolvimento histórico-social, aos processos elementares da

linguagem, do trabalho e também da sociabilidade com tal. Tanto que em sua

instituição social enquanto forma da ciência, da arte, da religião, da política, da

ideologia, a realidade repousa em tais formas na medida em que é absorvida,

pois o caráter diferenciado de seu objeto estaria num primeiro momento ao

atendimento das necessidades antropogenéticas imediatas, ou seja, seria a partir

do trabalho em seu confronto homem-natureza que o homem efetivar-se-ia como

homem.

Porém, com a superação do comunismo primitivo e o surgimento da

propriedade privada, o homem veria seu trabalho e a si mesmo como algo

estranho. É o fenômeno alienação/estranhamento, como veremos a seguir.

1.2 O PROCESSO ALIENAÇÃO/ESTRANHAMENTO

O complexo alienação/estranhamento se constituiria como processo interior

e exterior às potencialidades humanas objetivadas, desse modo acerca da

realização do ser social em estágios históricos específicos, resultaria de produtos

de objetivações sociais, de tal forma que o processo alienação/estranhamento se

desenvolveria dentro da contraposição que ele mesmo concebe por quanto é o

trabalho que gera a realidade objetiva e a atividade como causa eficiente do

entendimento (ou intelecto, Verständ), pois seria somente com a problematização

da relação genética entre homem-natureza que seria possível entender a

realização de tais elementos históricos e sua conseqüente fuga ao controle do

homem. O entendimento, assim, do conceito de alienação é o instante em que se

diferencia o pensamento de Marx com o de Hegel no que tange a atividade

relativa à natureza e à sociedade (LUKÁCS, 1981, vol. I, p. 206), independe das

objetivações sociais por ser realidade orgânica, visto que, antes do advento

ontológico da razão, a razão, do mesmo modo, se deslocaria por completo do

trabalho humano. Pois, para Hegel a natureza seria uma posição do espírito, ou

seja, mais uma de suas alienações, seria o próprio espírito também responsável

pela formação do corpo social, conseqüentemente a natureza como tal seria

externa ao pensamento como produção sua; seria a perda de si do pensamento

abstrato que se revelaria ativo, realizado, por conseguinte apareceria como

pensamento abstrato exteriorizado, alienado. Em Marx (MARX, 2004, p. 84) o

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próprio homem transformar-se-ia num para-nós, numa sociabilidade crescente à

medida que o confronto homem-natureza se realizaria por intermédio do trabalho.

Se Marx corroborasse com a idéia de que a natureza seria uma exteriorização do

espírito que se aliena nos objetos, acabaria por anular a possibilidade de

reconhecimento de que a razão seria resultante da gênese material e, assim

sendo, não estaria sujeita às vicissitudes do processo humano-societário.

Marx (MARX, 2004, p.84) entenderia o trabalho como sendo aquilo

que forma e transforma o homem, de sua posição original que é em-si, e à

medida que se aliena de si mesmo tornar-se-ia para-si o conteúdo do trabalho.

Haveria no pensamento marxiano uma perspectiva que vai além da formação

progressiva da sociabilidade humana, assim a substância histórico-social em seu

devir seria perpassada pela expressão da alteridade que teria sua gênese na

forma trabalho, pois como tal faz mediação com a relação que se constituiria entre

homem e natureza. A partir do entendimento da objetivação material do homem

pelo próprio homem por intermédio de suas alienações:

É completamente plausível que um ser vive, natural, provido e dotado de

forças essenciais objetivas, isto é, materiais, tenha objetos efetivo-

naturais de seu ser, na mesma medida que sua auto-exteriorização

(selbstentäusserung) seja a posição (setzüng) de um mundo efetivo, mas

sob a forma da externalidade (Äusserlichreit), um mundo prepotente e

objetivo, não pertencente ao ser. [...] Quando o homem efetivo, corpóreo,

com os pés bem firmes sobre a terra, aspirando e expirando suas forças

naturais, pôe suas forças essenciais objetivas e efetivas como objetos

estranhos mediante sua exteriorização (Entäusserung) este [ato de] pôr

não é o sujeito; é a subjetividade de forças essenciais objetivas, cuja

ação, por isso, também que ser objetiva. O ser objetivo atua

objetivamente se não [estivesse] posto em sua determinação essencial o

objetivo (gegemstândliche). Cria, põe apenas abjetos, porque mediante

objetos [ o ser objetivo ] é posto, porque é desde a origem natureza (weil

es von haus natur ist). No ato de pôr [...] seu produto objetivo confirma

apenas sua atividade objetiva, sua atividade como atividade de um ser

natural e objetivo. (LESSA, 1994 Cap. II)

Marx contrapõe-se a Hegel à medida que este em sua filosofia

especulativa evidenciaria a supressão ou desobjetivação do sujeito cuja finalidade

é o retorno do espírito a si, já em Marx apareceria como realidade prático-ideal,

porém, não uma realidade material que busque a supressão do sujeito, muito ao

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contrário, uma realidade em que o sujeito seria o próprio homem em relação ao

próprio homem:

[...] processo que o idealismo Hegeliano concebe como gênese da

objetividade (e correspondentemente como anulação da objetividade no

sujeito) desenvolve-se na realidade, e segundo Marx, em um mundo já

desde a origem objetivo, como reação de entes reais, ou seja, objetivos,

à própria realidade primária, imprescindívelmente objetiva. A oposição

dinâmica do ser social com a natureza, da qual este se desenvolve

inteiramente e em interação, com a qual tem a possibilidade de existir,

não assume, por isso, o ponto de vista da posição da qual o homem, já

objetivo, mesmo enquanto mero ente natural progride no trabalho até

objetivar esta vida genérica na sua dinâmica consciente, na genérica

inter-relação com a objetividade da natureza Com a objetivação temos a

categoria fundamental do ser social, que expressa junta à identidade

ontológica a última de cada ser (objetividade em geral) a não-identidade

na identidade (objetivação no ser social versus mera objetividade no ser

natural. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 398-399)

Num complexo e constante interagir das objetivações, sua ação de retorno

resulta na sociabilidade que, por sua vez, teria nesse momento o verdadeiro

sentido da humanização, consoante as formas de sociabilidade que em seu

progresso deixariam de serem apenas estruturas simples e formadoras genéticas

de agrupamentos sociais, ainda que muito simples, as assim chamadas

sociedades igualitárias naturais. Assim, à proporção que o vir-a-ser se

determinaria em sua base material, o conjunto social o teria por embasamento o

que vai qualificar e estruturar a forma desse mesmo embasamento. No interior do

capitalismo há a apropriação generalizada do produto, não obstante, as formas

sociais anteriores a capitalista a apropriação do excedente não se poderia

consolidar ainda genericamente, economicamente. Destarte, à medida que o

homem seria um ser que necessita, obrigatoriamente encontra na diversidade de

tal apropriação um obstáculo acerca de sua irrealização genérica em suas

potencialidades. Num instante, assim, de produtividade limitada do trabalho, o

excedente se constitui como possibilidade de uma minoria que se apropria desse

mesmo excedente, minoria essa que não tem participação direta na produção,

logo, os produtores entram em conflito direto com a minoria apropriadora, o

desfecho de tal situação é a violência (LUKÁCS, 1990, p. 211) para que se garanta

a continuidade do equilíbrio.

É evidente que nenhuma sociedade, nem mesmo de complexidade

limitada, pode surgir sem a produção de alimentos básicos que exceda

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as exigências individuais dos trabalhadores. Mas é igualmente evidente

que a existência de um produto excedente não encerra qualquer

determinação econômica quanto à maneira de sua apropriação por um

grupo limitado de pessoas. Mas também pode ser distribuída com base

na mais rigorosa igualdade [...] para tornar estável a relação entre

produção e apropriação, quando o produto excedente agrícola surge

pela primeira vez, e para assegurar, dessa maneira, a acumulação da

riqueza e ao mesmo tempo aumentar o poder da sociedade, é

necessária uma determinação política do princípio fundamental regulador

da sociedade em questão. (Mészáros, 1981, p.125)

A desigualdade, assim sendo, tem sua raiz na carência não sobre a

abundância, pois num primeiro momento já na relação primitiva de propriedade

residiria um princípio relativo à produção, apropriação e distribuição em virtude de

um princípio de coesão social, por conseguinte, a alcance da apropriação do

trabalho na forma de seu excedente, e também de sua ininterrupção teria nessa

regulação elementar acima citada, sua garantia. O fundamento, pois de tal

princípio seria o caráter político de fixação da totalidade do trabalho à

propriedade, à apropriação, assim como da alocação de recursos. Uma

sociedade, por conseguinte, que se desenvolveria na propriedade e no trabalho

que se fixa na apropriação e na produção. Conseqüentemente, a determinação

política se funda na desigualdade originária e se institucionalizaria para existir a

continuidade de formações sociais novas a fim de que a acumulação do

excedente se reproduza.

A desigualdade, porém, não significaria necessariamente anulação do

potencial positivo do trabalho, pois a vinculação à negatividade estaria

relacionada às alienações que aconteceriam indefinidamente sob o jugo da

apropriação desigual. Ao contrário a negatividade como tal vista acima, estrutura-

se a partir do estranhamento (Entfrendung) que se efetivaria no desenvolvimento

das forças produtivas em especial nas formas sociais categóricas dessas últimas.

O que vale dizer que o estranhamento como tal deve essencialmente ser

vinculado a este caráter histórico de produção de excedente, apropriação do

trabalho e forma de propriedade uma vez que o binômio alienação/estranhamento

teria como princípio o trabalho e, assim sendo, como princípio constitutivo do

fenômeno social humano sob o ponto de vista genérico do ser humano em seus

pródromos de regulação do produto e divisão do trabalho:

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De fato, havíamos já destacado que a escravidão, primeira forma de

desigualdade fundada em terreno econômico-social e imposta aos

membros de uma determinada sociedade, tem sua base no fato de que o

escravo é capaz de produzir para além da necessidade da própria

reprodução e, portanto, que seu proprietário é socialmente posto na

condição de dispor de tal excedente de trabalho a fim de satisfazer as

próprias carências pessoais. Com isso, tem origem o estranhamento,

direta e claramente através do trabalho escravo (considerada

instrumentum vocale pelos romanos). Para o proprietário, a necessária

exigência do ser social provoca nele reações autênticas no que diz

respeito ao gênero. E do mesmo modo, por outro lado, desenvolve-se e

a plena história da sociedade de classes (a pré-história do gênero

humano, como diz Marx). O desenvolvimento das forças produtivas fez

emergirem, através de longas crises, a problematicidade destas

formações e de seu processo dissolutivo; a partir de sua crise fez nascer,

principalmente na Europa, novas formações mais evoluídas no plano

econômico-social, nas quais o problema do estranhamento do homem

aparece com o produto permanente de sua própria relação genérica. (

LUKÁCS, 1990, p. 209)

O estranhamento (Entfrendung), pois em sua relação determinante iria

além do capitalismo como tal:

Já na propriedade feudal, o domínio da terra aparece como um poder

estranho sobre os homens. O servo é um acidente (Accidenz) da terra.

Da mesma forma; pertence à terra o morgado, o primogênito. A terra o

herda em geral, o domínio da propriedade privada fundiária, que a sua

base. (MARX, 2004, p. 74)

Seria com o capital industrial que a determinação a partir da forma

capital se instaura com a apropriação do trabalho em forma abstrata que teria no

capitalismo seu momento mais desenvolvido. Nesse momento, assim, o

desenvolvimento completo das forças produtivas elevada à extensão da

unificação econômica poderiam ser efetivados. Por conseguinte, segundo o

entender de Marx seria apenas e tão-somente com a universalização do capital

em sua forma contemporânea que conseguiria fundar as bases materiais reais

para a revolução desta mesma base.

Todavia, a forma que subordina o trabalho no que pertence à

estrutura da propriedade privada deveria alterar-se em relação a seu estágio de

desenvolvimento e também à forma política de administração das forças

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produtivas. Sob o capitalismo, assim, a propriedade privada necessitaria tanto da

coesão social como da combinação entre produção e apropriação trasladada em

um nível em que a qualidade da mencionada necessidade teria penetração

universal, o que vale dizer que na substância social estaria amalgamada a

propriedade, o trabalho e o capital. Logo, a presença do capital estrutura a

relação entre propriedade privada e trabalho, o que num momento anterior o

binômio propriedade privada /trabalho se fundamentaria no interesse político, ao

passo que num instante posterior seria a instância econômica movida pelo capital

que consolidaria a totalidade social; assim, o capital traduziria o trabalho como

“essência subjetiva” da propriedade privada. Haveria, pois, um salto qualitativo

(Aufhebung), [Aufhebung enquanto conceito será abordado mais detalhadamente

no Cap. II] e a relação com a propriedade da terra que seria necessariamente

política (MARX, 2004, p. 70-71) passariam para uma relação de dimensão

econômica. Em seu tempo os fisiocratas possuíam uma noção positiva do

trabalho, sendo esse um momento específico da alienação em que o produto

estaria necessariamente vinculado à natureza na forma de propriedade territorial,

assim, o trabalho como forma de exteriorização se ligaria à agricultura como único

trabalho produtivo. (MARX, 2004, p.61)

Destarte, a base do domínio da propriedade privada seria a propriedade da

terra em suas conexões feudais, momento no qual o estranhamento se revelaria.

Conseqüentemente, a propriedade feudal seria a forma particular de

estranhamento, pois estaria centralizada nas mãos de poucos proprietários, à

proporção que privaria os homens em geral e a eles se opondo um poder

estranho. (MÉSZÁROS, 1981, p. 120) Igualmente, a agricultura no fim do feudalismo

revelar-se-ia como um momento de arranjo da propriedade privada em que os

fisiocratas foram incapazes de perceber porque a peculiaridade da agricultura

deveria dar um salto qualitativo e concernir à universalidade da indústria, ou seja,

a um momento posterior mais complexo de preponderância do capital, uma vez

que a submissão do trabalho ao capital, em sua forma real se daria no instante

em que a não-propriedade seria o outro extremo da relação, deste modo, a

absoluta contradição entre propriedade agrária e propriedade privada em sua

dinâmica não estaria totalmente desenvolvida. Marx escreve o seguinte a

respeito:

A oposição entre [ser] sem propriedade (Eigentumslosigkeit) e

propriedade é ainda indiferente, [enquanto] não tomada em sua relação

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ativa, sua relação interna, nem [tomada] como contradição, enquanto

não concebida como a oposição entre o trabalho e o capital. Também

sem o movimento avançado (Fortgeschrittne) da propriedade privada, na

Roma antiga, na Turquia, etc., pode esta oposição se expressar na

primeira forma (Erstengestalten). Assim ela ainda não aparece como

posta pela propriedade privada mesma. Mas o trabalho, a essência

subjetiva da propriedade privada enquanto exclusão da propriedade e o

capital, o trabalho objetivo enquanto exclusão do trabalho é a

propriedade privada enquanto sua relação desenvolvida da contradição,

por isso uma relação enérgica que tende à solução. (MARX, 2004,

p.103)

Destarte, para que se possa qualificar a propriedade privada em sua forma

madura a condição fundamental seria sua forma com o trabalho. Seria o trabalho

em sua forma estranhada que daria fundamento a propriedade privada e dessa

com o próprio trabalho igualmente com o capital. Conseqüentemente, a

combinação do estranhamento do trabalho de forma estruturada não poderia

conceber o capital como riqueza acumulada e, de tal modo, a apropriação privada

da propriedade. Tal desenvolvimento da forma propriedade privada seria

percebida em consonância com a gênese do capitalismo e, assim sendo, o êxito

de tal gênese estaria conectada em uma situação anterior que possibilitou uma

relação politicamente fixa com a propriedade e o trabalho, ou seja, possibilitou o

prosseguimento e o controle da produção “regulando a distribuição ou alocação

de todo produto excedente e possibilitando a acumulação” (MÉSZÁROS, 1981, p.

125) o que em sociedades igualitárias primitivas não aconteceria tal acumulação e

a sociedade como tal permanece numa situação estacionária. (MARX, 2004, p.125)

A propriedade privada se reestruturaria por causa da forma capital, pois, o

que haveria seria um salto qualitativo nesse momento histórico com a passagem

da relação propriedade privada e trabalho para a relação entre trabalho e capital.

Ter-se-ia, de tal modo a base sobre a qual se constituiria a propriedade privada

no modo de produção capitalista seria a relação capital/trabalho, visto que seria a

apropriação do trabalho na especificidade histórica como estranhamento que iria

definir o caráter da propriedade privada a partir da exteriorização (Entäusserung)

do trabalho:

A propriedade privada é [...] o produto, o resultado, a conseqüência

necessária do trabalho exteriorizado, a relação externa do trabalhador

com a natureza e consigo mesmo [...] [elas] surge, mediante análise, do

conceito de trabalho exteriorizado, de trabalho estranhado, de homem

estranhado [...]. Obtivemos certamente da economia política o conceito

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de trabalho exteriorizado (de vida exteriorizada) como resultado do

movimento da propriedade privada. Mostra-se, porém, a partir da análise

deste conceito, que se a propriedade privada aparece como fundamento,

como razão do trabalho exteriorizado [...] (MARX, 2004, p. 87 – 88)

Sob o capitalismo, deste modo, a propriedade privada como tal seria a

resultante estranhada de uma determinada forma de exteriorização da vida, ou

seja, exteriorização (Entäusserung) cujo caráter seria a afluência do trabalho

estranhado, assim, num primeiro instante ao tomá-lo como trabalho propriamente

dito, em seguida como capital, ou seja, como materialidade purgada do trabalho

humano, num terceiro momento, como relação entre o trabalho humano e o

capital como trabalho acumulado, embasamento derradeiro da constituição da

propriedade privada (FLICKINGER, 1986, p. 74); assim se revelaria a manifestação

pervertida da privação provocada pelo estranhamento (Entfrendung), de maneira

que o trabalho que geraria o produto, sua substância concreta, seria absorvido

pela propriedade como objeto dela, desse modo, a propriedade como tal é

também por causa dessa determinação inicial, a expressão reificada do trabalho

humano, à medida que agora seria capital. O capital seria, por conseguinte,

nestes três momentos, o componente dissociado do caráter genérico do trabalho.

Desvinculado do que haveria de humano no trabalhador e também caráter social

da produção. (FLICKINGER, 1986, p. 78)

Marx usa como recurso analítico para estudar e compreender a forma

através da qual se manifestaria e se sedimentaria a propriedade privada o modo

pelo qual ela se apropriariaria do trabalho humano. Porém, ainda não seria

explorada por Marx a gênese dessa relação de forma a investigar no objeto suas

contradições internas, posto que as categorias força de trabalho, valor e forma do

valor não se estruturariam a partir de seu próprio enredamento teórico-genético.

Ainda assim a identidade entre alienação (Entäusserung) e estranhamento

(Entfremdung) não seria aquela plasmada a partir da análise sustentada nessas

categorias desenvolvidas pelo Marx já maduro. A identidade entre alienação

(Entäusserung) e estranhamento (Entfremdung), nos “manuscritos de Paris”

(MARX, 2004) fundamentar-se-ia numa crítica feroz à insuficiência genérica, a

despeito das manifestações genéricas que dependeria em grande parte dos

obstáculos postos pelas relações de produção a sua elaboração, pois perpassaria

num primeiro momento por uma intuição teórica. Deste modo, a intuição de Marx

desvendaria que a relação da propriedade privada se fundamentaria em uma

contradição real, originada na dicotomia intrínseca existente entre trabalho-capital,

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relação essa que fundamentaria a manutenção ao longo do tempo a propriedade

privada a partir da mútua exclusão entre seus componentes reais:

A relação da propriedade privada é o trabalho, capital e a relação entre

ambos. O movimento que essa estrutura deverá percorrer é primeiro, a

unidade imediata ou media de ambos; capital e trabalho estão, ainda em

princípio, unidos; depois, separam-se e estranham-se, mas elevando-se

e preservando-se (Hebend und fördernd) reciprocamente enquanto

condições positivas contraposição mútua: excluem-se reciprocamente, e

o trabalhador reconhece o capitalista como sua não-existência

(Nichtdasein e vice versa; cada um procura arrancar do outro sua

existência (sein dasein). Contraposição de cada um contra si mesmo.

Capital = trabalho acumulado = trabalho. Enquanto tal dividi-se no

próprio capital e no seu juro, da mesma forma que este em juro e em

lucro. Sacrifício pleno do capitalista. Ele declina na classe trabalhadora

da mesma forma que o trabalhador – mas só excepcionalmente – se

torna capitalista. O trabalho como sendo um momento do capital, seus

custos, portanto, o salário, um sacrifício do capital. O trabalho

decomposto em si e no salário. O trabalhador mesmo como [sendo]

capital e mercadoria. Contraposição reciprocamente hostil. (MARX,

2004, p. 97 – 98)

Ou ainda como escreve Flickinger:

A relação da propriedade privada é mais do que a formula tradicional do

que se chama uma ‘contradição’, distinguindo-se desta por diferença

elucidativa: em comparação com uma contradição meramente lógico-

formal, que insiste em excluir uma tal situação para encontrar a verdade,

a contradição na análise de Marx apresenta-se de modo quase invertido,

afirmando uma contradição real no sentido de sublinhá-la como

característica e verdadeira determinação da verdade objetiva, isto é, da

constituição da realidade [...]. A contradição lógico-formal torna aceitável

a tese da permanência de uma contradição em virtude da verdade

pretensa, isto é, tem de excluir um dos momentos contraditórios da

relação. A contradição material da propriedade privada, em

contrapartida, inclui a oposição contraditória de seus momentos – o

trabalho enquanto tal e enquanto capital – com expressão verdadeira da

forma objetiva de socialização. (FLICKINGER, 1986, p. 78-79)

Destarte, como elemento imprescindível para a compreensão da relação

histórica fundadora do estranhamento (Entfremdung) que tem como seu princípio

constitutivo a divisão do trabalho, a propriedade privada e a troca em sua relação

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com o trabalho. No modo de produção capitalista, igualmente, a tríade homem-

trabalho-propriedade privada se completaria com o plasma propriedade privada –

troca – divisão do trabalho. Conseqüentemente, não seria apenas e tão somente

no interior do capitalismo, seria num primeiro instante no interior da divisão do

trabalho que alienação (Entäusserung) e estranhamento (Entfremdung) se

identificariam, tal como visto acima, ao abordar as questões relativas às formas

primitivas de propriedade. Todavia, seria com a divisão entre trabalho manual e

trabalho intelectual que tal divisão se revelaria como alienação (Entäusserung) e

estranhamento (Entfremdung) em sua forma mais ampliada, e que se traduz em

seu apogeu dentro do modo de produção capitalista e atinge, deste modo, o

trabalho em sua conformação genérica como forma decisiva e socializada à

proporção de sua divisão no interior do capitalismo:

A divisão do trabalho é a expressão econômica da sociabilidade

(Gesenllschaftlickkeit) do trabalho no interior do estranhamento. Ou [uma

vez] que o trabalho é somente uma expressão da atividade humana no

interior da alienação (Entäusserung), da manifestação de vida enquanto

alienação da vida (Lebensausserung als lebensentäusserung), também a

divisão do trabalho não é outra coisa que a posição (Setzen) estranhada,

alienada, da atividade humana enquanto real atividade genérica [...]

divisão do trabalho e troca são os dois fenômenos que fazem com que o

economista se prevaleça da sociabilidade de sua ciência enquanto, de

um só fôlego e inconscientemente, exprime a contradição dela: a

fundamentação da sociedade mediante o interesse particular e anti-

social. (MARX, 2004, p. 93)

No interior da desigualdade genérica o homem estruturaria sua

sociabilidade como tal, pois no interior de tal desigualdade estaria a acomodação

do homem ao gênero, ou seja, a posição histórica do estranhamento

(Entfremdung). A recorrência de Marx, ao longo dos manuscritos à percepção do

estranhamento (Entfremdung) revelar-se-ia para homem como sua realidade

efetiva ou ainda:

[...] por natureza, os seres humanos são perfeitamente capazes de

produção sensível, subjetiva, tanto quanto como de ter controle

consciente a respeito dos produtos de seu próprio trabalho. [...]

Concretamente, à medida que se toma o capitalismo como exemplo,

Marx evidencia porque há uma contradição entre possibilidades

individuais e sua realização efetiva. Ele especificou precisamente o

processo social como consiste a força do indivíduo dentro de tal

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contradição. Ele igualmente descreveu os embasamentos sobre os quais

isso pode ser enunciado; como acontece o estranhamento dos

indivíduos em face de seu estranhamento. (WALLIMANN, 1981, p. 89)

Para Marx, assim, o antagonismo entre capital e trabalhador se traduziria

como embasamento concreto de reprodução do processo social; em sua

perspectiva de análise especificava não apenas tal antagonismo em choque com

a natureza humana, ou seja, havia já a noção de positividade na concepção do

estágio acerca do capital que, por sua vez orientava-se para a real possibilidade

do homem como tal, noção essa ampliada em teoria segundo a qual os meios

para a recuperação do homem face ao estranhamento (Entfremdung) seriam sua

própria atividade, sendo tal atividade determinante histórica das formas humanas

de ser, igualmente de agir que estaria contida na categoria trabalho, essa “esfera

ontológica fundamental da existência humana e, portanto, a base última de todos

os tipos e formas de atividade”. (MÉSZÁROS, 1981, p. 83)

Destarte, seria através da atividade como tal que se inicia a noção segundo

a qual o trabalho seria o princípio que molda a totalidade dos atributos sociais do

homem, sendo assim, seria através da atividade como capacidade plasmadora

que desvendaria a realidade contraditória das formas de apropriação dos

resultados dessa mesma atividade ou por outra, o capital, o trabalho e a

propriedade privada em sua relação mútua, passa a ser compreendido de forma

clara, seria o que Marx escreve em toda extensão do terceiro dos manuscritos

(MARX, 2004, p. 99 e ss.) A partir da sua forma de apropriação, a propriedade

privada à medida que se fundaria no trabalho revelar-se-ia como expressão

histórica da forma de tratamento dado ao próprio trabalho como tal. Logo, o

estranhamento (Entfremdung) só passaria a existir no momento em que a divisão

do trabalho se submete a uma legalidade histórica de seu ser social que a produz

de forma involuntária, necessariamente. Marx, por conseguinte, entende o

trabalho como essência subjetiva da propriedade privada que agem em sua

metabolização às formas sociais de propriedade e apropriação histórica. Assim

sendo, para o salto qualitativo (Aufhebung) da propriedade privada como tal seria

necessário que ela estivesse liberta de seu estranhamento (Entfremdung). Marx

escreve o seguinte a respeito:

[...] a supressão (Aufhebung) positiva da propriedade privada enquanto

estranhamento-de-si (Selbstentfremdung) humano, enquanto

apropriação efetiva da essência humana pelo e para o homem por isso,

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trata-se do retorno pleno, tornado consciente e interior a toda riqueza do

desenvolvimento até aqui realizado, retorno do homem para si enquanto

homem social, isto é humano. Este comunismo [...] é a verdadeira

dissolução (Auflosung) do antagonismo do homem com a natureza e

com o homem; a verdadeira resolução (auflösung) do conflito entre a

existência e essência, entre objetivação e auto-afirmação

(seldsbentätigung), entre liberdade e necessidade, entre indivíduo e

gênero. É o enigma resolvido da história e se reconhece como esta

solução. (MARX, 2004, p. 105)

Conseqüentemente, por mais que se pretenda abordar a questão alienação

(Entäusserung)/estranhamento (Entfremdung) com algo exclusivo do modo de

produção capitalista não obstante o estranhamento (Entfremdung) tenha lugar de

destaque pela extensão de sua penetração, isso não significa que o

estranhamento(Entfremdung) seja algo exclusivo da sociedade capitalista:

Os elementos importantes da teoria marxista do estranhamento não são

as palavras ‘estranhamento’ ou ‘alienação’, ou qualquer derivativo delas,

mas a noção de divisão involuntária do trabalho. Esta noção remete a

análise marxista às formações sociais pré-capitalistas. (WALLIMANN,

1981, p. 137)

Sob a égide do capitalismo em seu apogeu é que se radicalizaria a

identidade da alienação (Entäusserung) como estranhamento (Entfremdung)

tendo-se em vista que ambos são conceitualmente distintos, visto que seria

apenas e tão somente a determinação histórica da alienação (Entäusserung) pelo

estranhamento (Entfremdung) que efetiva a identidade. Todavia, outra questão ao

se traduzir tanto Entäusserung quanto Entfremdung por alienação e chegar a

partir daí conclusões negativas, seria a característica específica da atividade,

embasamento necessário de toda existência (Dasein), que por si acaba por ficar à

margem do alcance da posição necessariamente humana do trabalho como tal.

Igualmente, a alienação (Entäusserung) em Marx seria elemento que se

faria presente necessariamente na atividade humana como tal. Em vista da

necessidade lógico-material da realização do capital, os processos pelos quais os

resultados da alienação (Entäusserung) repercutem diretamente sobre o modus

vivendi humano, tanto na estrutura do trabalho como tal e em seu processo

coercitivo, e ainda na assimilação desencadeada por tal processo que se faria

necessária à reprodução ao longo do tempo. A teoria elaborada por Marx sobre a

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alienação (Entäusserung) expõe a história material das objetivações, por outro

lado a história subjetiva das auto-objetivações. O que evidenciaria assim, em

Marx, a decomposição humana do homem.

A efetivação (Verwirklichung) do trabalho é sua objetivação. Esta

objetivação do trabalho aparece ao estado nacional-econômico como

desefetivação (Entwirklichung) do trabalhador, a objetivação como perda

do objeto e servidão ao objeto, a apropriação como estranhamento

(Entfremdung), como alienação (Entäusserung). (MARX, 2004, p. 80)

A negatividade se traduziria de tal modo, como estranhamento

(Entfremdung), entretanto, não a atividade em-si que, como tal, através da

determinação positiva da materialidade da composição trabalho-propriedade

submete a si o binômio trabalho-ser genérico. O trinômio homem-trabalho-

propriedade, portanto, nessa relação que seria historicamente determinada, seria

para a teoria marxiana um elemento determinante a respeito da distância que

haveria entre resultado da produção e a apropriação do processo de trabalho.

Marx deixa claro que sua argumentação estaria direcionada para a elucidação do

conceito de alienação (Entäusserung) como forma perpassada pelo

estranhamento (Entfremdung), ao contrário de Hegel, a alienação (Entäusserung)

como sendo o próprio estranhamento (Entfremdung). Do mesmo modo, o

estranhamento do trabalho como atividade que o trabalhador desenvolve e ainda

a própria alienação (Entäusserung) como estado de não-trabalhador:

[...] a relação do trabalhador com a sua própria atividade como uma

[atividade] estranha não pertencente a ele, a atividade como miséria, a

força como impotência, a procriação como castração. A energia espiritual

e física própria do trabalhador, a sua vida pessoal – pois o que a vida é

senão atividade – como uma atividade voltada contra ele mesmo,

independente dele, não pertencente a ele. (MARX, 2004, p. 83)

Poder-se-ia destacar, por conseguinte, nesses termos, que as formas de

exteriorização do trabalho, como manifestações históricas da forma de ser do

homem são formas estranhadas de exteriorização, de alienação (Entäusserung),

porque ao constituir-se assim deixariam de corroborar a discutida identidade entre

o que seja alienação (Entäusserung) e estranhamento (Entfremdung). Destarte, o

salário pago aos diferentes tipos de trabalho varia segundo todo tipo de

diversidade, contrariamente em relação capital morto que caminha

indiferentemente no mesmo passo. Marx acrescentaria ainda que “é preciso

observar, enfim que onde o trabalhador e o capitalista sofrem igualmente, o

trabalhador sofre em sua existência, e o capitalismo no ganho de seu mammon

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morto.” (MARX, 2004, p.25) Marx conclui: “O trabalhador não tem apenas de lutar

pelos seus meios de vida físicos, ele tem de lutar pela aquisição de trabalho, isto

é, pela possibilidade, pelos meios de efetivar sua atividade.” (MARX, 2004, p.25)

Haveria a distinção aqui entre meios de vida e meios de trabalho ou atividade que

seria de fundamental importância quando da análise sistemática da categoria

trabalho estranhado.

Precisamente, Lukács ao analisar a gênese social acabaria por concluir

que seria no complexo trabalho-causalidade-teleologia que se fundamentaria a

sociedade humana em todos os seus aspectos. Como veremos no capítulo

seguinte.

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Capítulo II

TRABALHO E TELEOLOGIA NA ONTOLOGIA DE LUKÁCS

1- O TRABALHO COMO GÊNESE DO SER SOCIAL

Em Marx haveria uma perspectiva ontológica preponderante, pois trabalho

seria o complexo genético do ser social e ainda seria o modelo das práticas

sociais superiores, não obstante ter-se-ia a impressão de uma aparente ausência

de método em relação à prática do homem, assim o conhecimento em sua

efetividade na obra marxiana teria uma fundamentação equivocada, ou seja, em

bases lógico-epistemológica. Lukács reconhece a originalidade da ontologia

marxiana que, por sua vez procura compreender o ser em suas conexões

internas. Tais categorias daí oriundas se revelariam em formas e determinações

da existência seria a medida critica da construção das abstrações em que o fato

seria parte de um complexo dinâmico. Na ontologia marxiana a dialética traduz a

relação contraditória entre lei e fato, ou seja, a oposição entre fenômeno e

essência. Assim, Marx aprende com Hegel a abordar as abstrações, no processo

investigativo, como função metodológica. Por outro lado, na economia clássica as

conexões entre os fatos o que haveria seria o silogismo o que, por sua vez levaria

a falsas conexões.

Marx, entretanto, buscaria as reais conexões, os momentos do ser, por

intermédio das abstrações em seu processo de apreensão da realidade e a

dinâmica das conexões o que o leva a refutar, as duas grandes vertentes da

filosofia, ou seja, o empirismo e o racionalismo que teria por função hipostasiar os

conceitos e sobrepô-los à realidade e, assim sendo, seria o que se verifica em

nível do idealismo alemão. Em Hegel, o que se constata seria a dialética como

movimento real do ser, um método apriori que veria na historia e também na

ontologia uma coisa da lógica. Por outro lado Marx assimila a dialética hegeliana

a inverte e a transforma em parte de seu método investigativo da essência da

totalidade econômica que teria na abstração um instante de experimentação ideal,

assim a abstração viria a ser um procedimento investigativo da essência de

relações de seu objeto de análise, assim é que Lukács identificaria em Marx a

perspectiva ontológica.

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Em Lukács, para que se situe o trabalho como complexo central da gênese do

ser social seria essencial que se argumente a favor de seu caráter de modelo das

praticas sociais superiores. Assim, se faria necessário levar em consideração dois

eixos nucleares do pensamento Lukacsiano. Num primeiro instante se faria

necessário abordar as razões que o motivaram, a começar pela definição do

trabalho como complexo genético do ser social. Num segundo momento o modo

segundo o qual Lukács efetuaria a análise do complexo trabalho. Assim, tais

questões estariam de intimamente ligadas de tal forma que, para fundamentar o

trabalho como complexo do ser social, em suas justificativas ele identificaria a

perspectiva ontológica presente no pensamento de Marx uma dimensão

preponderante. Em Marx, segundo Lukács, a dinâmica da investigação da

realidade traria consigo um caráter essencialmente distinto daqueles que se

encontrariam normalmente na historia do pensamento filosófico.

Tão logo se faça uma leitura mais cuidadosa da obra de Marx o que se nota

seria uma aparente ausência de abordagens, em seus textos, dos fundamentos

metodológicos da investigação cientifica, como temas independentes o que

diferencia profundamente a abordagem de Marx das questões relativas aos

procedimentos cognitivos. Porém, tal ausência não seria entendida por Lukács

como um processo próprio de sua dinâmica de investigação da realidade, não

obstante ele chame a atenção para o fato segundo o qual todo pensamento de

Marx sobre o conhecimento surge necessariamente no interior de uma reflexão

sobre um dado tipo de ser. Assim, segundo Lukács, não haveria uma teoria geral

do conhecimento no pensamento marxiano, conseqüentemente, toda a questão a

respeito da apreensão das categorias gnosiológicas se faz no campo da

ontologia.

Há uma originalidade em Marx ao se abordar tais problemas, deste modo, não

se poderia argumentar acerca de uma ausência de reflexões metodológicas,

tendo em vista que para o pensamento marxiano como tal existe a possibilidade

da reprodução ideal da lógica intrínseca ao objeto analisado à medida que seria

na relação prática do homem com o seu mundo que se daria o conhecimento em

sua efetividade. A respeito Lukács escreve o seguinte

[...] todo leitor sereno de Marx não pode deixar de notar que todos os

seus enunciados concretos, se interpretados impecavelmente, fora dos

preconceitos da moda, em última análise são apreendidos como

enunciados diretos sobre certo tipo de ser, são, conseqüentemente

puras asseverações ontológicas. (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 261)

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Precisamente, os equívocos e também a negligência a respeito do caráter

ontológico presente no pensamento de Marx teria sua origem numa perspectiva

lógico-gnosiológica cuja origem estaria em meados do séc. XVIII. A respeito

Lukács escreve o seguinte:

Após 1848, depois da queda da filosofia Hegeliana e, sobretudo quando

começa a marcha triunfal do Neokantismo e do positivismo, os

problemas ontológicos não são mais compreendidos. O Neokantismo

elimina da filosofia a incognoscível coisa-em-si, enquanto que para o

positivismo a percepção subjetiva do mundo coincide com a as

realidade. Não é de espantar, portanto, que a opinião pública científica

sob tais influências julgue a economia de Marx uma simples ciência

particular que na prática tal divisão do trabalho, termina por aparecer

metodologicamente inferior em relação ao modo a-valorativo

[axiologicamente neutro] de apresentar as coisas, isto é, em relação ao

modo burguês; não muito tempo depois da morte de Marx se acha

também sob o influxo desta corrente a enorme maioria de seus

seguidores declarados. (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 277-8)

Tais desvios da correta apreensão do conjunto da obra de Marx levou por vezes à

incompreensão da efetiva dimensão ontológica de seu pensamento o que

acarretou uma impossibilidade de compreender seu o pensamento, pois o que

havia era uma fundamentação equivocada, lógico-epistemológica, problema esse

oriundo da própria objetividade histórico-social que afasta qualquer indagação

ontológica. Logo, a obra de Marx foi abordada por um viés cientificista o que

acabou por limitar seu legado a postulações de disciplinas específicas (sociologia,

economia, historia, etc.) ou a simples discussões a respeito da teoria do

conhecimento no pensamento marxiano.

O enunciado de Lukács, portanto, segundo o qual a originalidade de Marx

estaria no modo com que são abordadas as abstrações, logo, o ponto crucial do

método em Marx diz respeito ao “tipo de abstrações, de experimentações ideais,

não são determinados a partir de pontos de vista gnosiológicos (e tanto menos

lógicos), porém a partir da própria coisa, ou seja, da essência ontológica da

matéria tratada” (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 302)

Tal enunciado seria antes de qualquer coisa o reconhecimento de uma

profunda reflexão do pensamento marxiano sobre o complexo de problemas que

atravessou séculos e assumiu as mais variadas formas em nível do pensamento

filosófico. O objeto da ontologia marxiana diferentemente da ontologia clássica e

subseqüente, seria investigar o ente com a preocupação de compreender o seu

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ser e encontrar os diversos graus e as diversas conexões em seu interior. Para

Lukács tal abordagem do ente revelar-se-ia sob as bases de uma nova

cientificidade que segundo ele

[...] é uma estrutura de caráter inteiramente nova: uma cientificidade que

no processo de generalização, nunca abandona este nível (existência

em-si) e que muito embora, em cada singular adequação aos fatos sem

cada reprodução ideal de um nexo concreto, examina consecutivamente

a totalidade do ser social e desse modo considera continuamente a

realidade bem como o significado de cada fenômeno singular; uma

consideração ontológico-filosófica da realidade existente em si que não

vaga por sobre os fenômenos a hipostasiar as abstrações, todavia, se

põe criticamente e autocriticamente no mais elevado nível de

consciência, só para poder tomar cada existente na completa forma de

ser que lhe é própria. Nós cremos que Marx criou assim uma nova forma

tanto de cientificidade geral quanto de uma ontologia, que é dedicada no

futuro a superar a constituição profundamente problemática, a despeito

de toda a riqueza dos fatos descobertos, da cientificidade moderna.

(LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 275)

Lukács extrairia tal caráter do enunciado marxiano segundo o qual as

“categorias são formas e determinações da existência”. O que implica

necessariamente que as categorias assim como as conexões do ser passariam a

ser a medida crítica na dinâmica da construção das abstrações, assim a

cientificidade teria como fundamento real suas concretas e efetivas conexões. Se

vistas rapidamente tal afirmação pareceria sinalizar às bases metodológicas do

empirismo, porém, segundo Lukács, a abordagem de Marx seria radicalmente

diferente do método empírico. Lukács escreve o seguinte: “[...] o início de todo

pensamento seriam as manifestações factuais do ser social. O que não implicaria,

todavia, em um empirismo, não obstante [...] também o empirismo possa ter

consigo uma intentio recta ontológica, mesmo que fragmentária. Muito embora,

todo fato deve ser visto como parte de um complexo dinâmico em interação com

os outros complexos, como algo que seria determinado, internamente e

externamente, por múltiplas leis. A ontologia marxiana do ser social se constitui

nessa unidade materialista-dialética (contraditória) de lei e fato (incluída

naturalmente suas relações e suas conexões). A lei se realiza no fato; o fato

recebe sua determinação e especificidade concreta a partir do tipo de lei que se

afirma na interconexão das interações.” (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 318) Assim, se

coloca a oposição e a conexão entre fenômeno e essência. O pensamento

Lukacsiano compreende em Marx que o fenômeno seria síntese das interações

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entre determinações e leis mais gerais e também as tendências particulares de

um dado contexto que seria, por sua vez, o resultado das múltiplas determinações

do real. Por conseguinte, a totalidade do ser social teria no fenômeno sua

dimensão determinante, portanto, seria um processo complexo em que essência

e fenômeno se converteriam ininterruptamente um no outro.

Para Lukács, grande parte de tais reflexões a respeito da relação

entre fenômeno e essência foram elaboradas por Hegel. No capítulo “A falsa e a

Verdadeira Ontologia de Hegel”, o filosófo húngaro analisa essa questão mais

detidamente. Escreve ele o seguinte: “Essência, aparência e fenômeno são,

assim sendo, determinações reflexivas na medida em que cada um deles

expressa essa relação; toda aparência ou fenômeno é essência que aparece,

toda essência aparece de algum modo, nenhuma das duas pode estar presente

sem essa relação dinâmica, contraditória; cada qual existe no momento ainda

que sem ininterrupções conserva e cede sua própria existência, no momento em

que se esgota nessa relação antitética” (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 232). Marx,

assim, no entendimento de Lukács, seria um herdeiro crítico dessas elaborações

hegelianas. Assim sendo, o ponto de partida da investigação seria o fato

imediatamente dado naquilo que Marx enuncia como o concreto que seria

“síntese de múltiplas determinações”; seria importante que se compreenda que

tais determinações não são da mesma grandeza ao passo que compete à

reflexão como tal determinar a natureza específica de cada complexo a partir do

próprio objeto e situá-la em sua real e concreta mobilidade histórica, para

identificar as leis e tendências de um dado processo, que podem, inclusive, incidir

sobre essas de um modo ativo e transformador, pois tais determinações poderiam

somente ser fundamentadas de um modo efetivo pela dimensão ontológica que

se dirige à totalidade do complexo do ser social.

A proposição empirista, segundo o ponto de vista de Lukács, por não

compreender a dimensão dinâmica da totalidade do processo do ser social,

acabaria por se limitar às formas fenomênicas, se atem a abordagem imediata

dos fatos, o que faz com que se negligenciem as decisivas conexões ontológicas

do ser, o que leva invariavelmente a noções como a posições que incorrem em

um “praticismo carente de conceitos” (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 350). Poder-se-ia

dizer que seria o próprio caráter praticista que, a bem da verdade verte tal caráter

no pragmatismo para a compreensão empírica do mundo porque leva

freqüentemente ao abandono das questões essenciais do ser. Em Marx tais

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problemas assumem uma perspectiva distinta:

[...] toda verificação de um fato, toda apreensão de um nexo, não são simplesmente fruto de uma elaboração crítica na perspectiva de uma correção fatual imediata; ao contrário, partem daí para ir além, para investigar ininterruptamente todo o âmbito do fatual na perspectiva do seu autêntico conteúdo de ser, de sua constituição ontológica. (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 272)

Na medida em que o pensamento estaria além dos laços do empirismo, à

proporção que se preocupa com as mediações últimas do ser, com as conexões e

leis que não necessariamente estariam presentes de um modo claro e

imediatamente dado em todas as manifestações. O pensamento enredar-se-ia

assim na dimensão própria da constituição ontológica. Tal procedimento de

análise que “pressupõe uma colaboração constante entre modo de trabalhar

histórico (genético) e modo de trabalhar abstrato-sistematizante”, o que vale dizer

que se deveria “examinar a incidência de determinadas leis de sua concretização,

modificação, tendenciosidade, de sua atuação concreta em concretas situações

determinadas, em determinados complexos concretos” (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p.

351) levando-se em conta as categorias do ser social em seu efetivo movimento

histórico, na recta intentio de determinar o conjunto de tendências e conexões

mais gerais e decisivas inerentes a sua dinâmica de desenvolvimento.

As considerações acerca da relação entre essência e fenômeno seriam

também importante distinguir entre a singularidade no vínculo existente nos

processos naturais e aquela própria ao ser social, tal distinção seria

desconsiderada no interior da perspectiva empirista. Em nível do ser social “as

leis só podem se afirmar através de uma rede intrincada de forças antitéticas,

num processo de mediação, em meio a infinitas acidentalidades” (LUKÁCS, 1981,

Vol. I, p. 349), o que torna, o caráter heterogêneo dos fatores postos nessa

situação mais complexo sob a consideração desse vínculo. Em nível do processo

investigativo, o primeiro dado relevante para compreender as características da

relação entre fenômeno e essência que surgiria com o advento do ser social seria

apresentado por Lukács por intemédio da noção de “experimento ideal.” Tal

noção diz respeito ao modo particular, próprio pelo qual as ciências naturais

desenvolveriam suas investigações e a singularidade própria do caráter cientifico

no âmbito do ser social, pois haveria a impossibilidade de se isolar, a partir de

experimentos laboratoriais ou práticos, determinados fenômenos ou “processos

singulares”, para verificar as tendências e as leis mais gerais que determinariam

os princípios de sua organização e movimento, assim sendo, tal assertiva seria

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corroborada pela passagem presente no prefácio à primeira edição de O Capital,

em que Marx afirma que “nem o microscópio nem os reagentes químicos podem

ser úteis para a análise das formas econômicas. A força da abstração deve

substituir a ambos”.

Para se abordar de forma efetiva esse complexo de questões, caracterizado

fundamentalmente pelo “predomínio do elemento histórico enquanto base e forma

de movimento do ser social” (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 357), assim, dever-se-ia ter

em mente que o modo de se abordar os complexos sociais não pode ser o

mesmo daquele empregado nas ciências naturais, pois

No domínio do ser social está ontologicamente excluída a possibilidade de isolar realmente os processos singulares através de experimentos de fato, aqui somente os experimentos ideais das abstrações permitem investigar teoricamente como determinadas conexões, relações, forças, etc. de caráter econômico atuariam se todas as circunstâncias que comumente limitam , freiam, transformam etc., a sua presença na realidade econômica caso fossem mentalmente eliminadas. (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 289)

No processo investigativo as abstrações desempenhariam uma função

metodológica no processo investigativo, pois o processo da experimentação ideal

consiste em isolar determinados elementos de modo a identificar, num primeiro

momento, aquelas categorias mais decisivas de uma dada dimensão específica

do complexo do ser social. Lukács designa as abstrações que surgiriam através

da experimentação ideal como “abstrações isoladoras” (“Isolierenden

Abstraktionen”); tais abstrações dizem respeito àqueles primeiros e mais

destacados conceitos que são apreendidos ao se abordar a realidade, no caso

supracitado, por exemplo, as conexões, relações, etc. Da economia, poder-se-ia

dizer, portanto, que as “abstrações isoladoras” remetem àquilo que os

economistas clássicos desenvolveriam em relação às categorias mais gerais da

economia. Nesse sentido, Lukács observaria que pensadores, anteriores a Marx,

da economia política foram capazes de isolar analiticamente, à medida que

fizeram uso de certo grau de abstração, várias categorias o que possibilitaria,

assim, a clara distinção assim como a descrição de categorias fundamentais da

esfera econômica. Para os pensadores da economia política o problema que se

coloca e que tornariam suas análises distintas da concepção marxiana, estaria no

procedimento relativo à decomposição ideal e a análise dos elementos assim

apreendidos. Portanto, seria necessário determinar em que consistiria o caráter

da experimentação ideal em Marx, já que o procedimento se de isolar e identificar

categorias centrais da dinâmica do desenvolvimento social não constitui uma

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novidade no pensamento filosófico e nem mesmo no pensamento científico. Far-

se-ia necessária aqui a referência aqui ao texto de Marx da “Introdução de 1857”

(MARX, 1978, p.103 e ss.) Nesse texto, Marx esclareceria o fato de que a

abordagem na economia política das categorias da produção, consumo,

distribuição e troca teriam suas conexões a partir de um silogismo e não

entendidas a partir do modo como efetivamente se articulam na realidade, ou

seja, como “elementos de uma totalidade, diferenciações no interior de uma

unidade.” (MARX, 1978, p.108) A forma necessariamente lógico-definitória com

que os economistas clássicos comumente lidaram com essas categorias levaria a

uma falsa hierarquização que, por sua vez, geraria quase sempre em falsas

conexões, pois “o aparato lógico que produz a forma silogística funda-se apenas

em traços superficiais, abstratos” (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 311). Lukács

reproduziria as palavras de Marx ao refutar tal procedimento com uma ironia:

“como se essa cisão não tivesse passado da realidade aos livros, mas ao

contrário, caído dos livros para a realidade, é como se aqui se tratasse de uma

conciliação dialética dos conceitos e não da compreensão de relações reais.”

(LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 311) Para o pensamento Lukacsiano, contrariamente a

tudo isso, quando Marx analisa as reais conexões existentes entre essas

categorias predomina o momento do ser:

Marx investiga as inter-relações reais a começar pelo caso mais complexo, o da relação entre produção e consumo. Aqui, como ainda nas demais investigações, o primeiro plano é igualmente ocupado pelo aspecto ontológico, segundo o qual essas categorias – muito embora apresentem entre si, mesmo que singularmente, inter-relações repetidamente muito intrincadas – são todas formas de ser, determinações da existência; e, enquanto tais, formam por sua vez uma totalidade, que só pode ser compreendidas cientificamente como elementos existentes dessa totalidade, como momento do ser. (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 311)

Entre Marx e os seus precursores a diferença estaria no caráter

fundamentalmente distinto com que as abstrações seriam elaboradas e

produzidas no processo de apreensão da realidade, as categorias tanto quanto

sua dinâmica, conexões e interações reproduzidas no pensamento não seriam

simples resultantes de operações lógicas, mas

[...] momentos reais de complexos reais em movimento real, e só a partir deste duplo caráter de ser (ser em interação e em conexão complexa e ser ao mesmo tempo no âmbito da sua peculiaridade específica) é que podem ser compreendidas em sua relação reflexiva. Na dialética materialista, na dialética da própria coisa, a articulação das tendências realmente existentes, freqüentemente heterogêneas entre si, apresenta-se como solidariedade contraditória do par categorial. Quando se afastam as determinações puramente lógicas e se volta a dar seu

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verdadeiro significado às determinações ontológicas, efetua-se, por conseguinte um imenso passo à frente no sentido da concretização desse complexo une e dúplice. (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 312)

A dinâmica das categorias sob tais aspectos não seria apreendida pelo

pressuposto de uma necessidade silogística de articulação entre os elementos e

categorias, ou seja, através de uma simples conciliação dialética dos conceitos.

Nem mesmo são construídas em nível de uma necessidade lógica interna de um

sistema regido pelo princípio de uma determinação reflexiva. Em Marx, as

categorias e suas conexões seriam articuladas e abstraídas do próprio modo

como se realizam no interior dos complexos do ser. Se, por um lado, o

procedimento marxiano, assim sendo, contrapor-se-ia ao empirismo quando

considera os elementos no interior de uma totalidade articulada, em seu efetivo

movimento do real, por outro, não se confunde com o tratamento dado às

categorias da abstração pelos clássicos da filosofia, em particular ao

racionalismo, que também refuta a construção apriorística enquanto método. O

racionalismo essa segunda vertente de suma importância para a história da

filosofia, Lukács se opõe ao afirmar que

[...] a ratio proporciona o perigo de ligar o percurso histórico ao conceito de modo muito direto (e a um conceito deformado pela abstração); e, por isso, não só de descuidar o ser-precisamente-assim de fases e etapas importantes, mas também – ao hiper-racionalizar o processo global – de atribuir-lhe uma linearidade hiperdeterminada, pelo que é possível que esse processo venha a adquirir um caráter fatalista e até mesmo teleológico. (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 351)

Por constituir uma posição radicalmente distinta vale mencionar, o

desenvolvimento desse problema no interior da filosofia hegeliana, não apenas

pelo fato de ser, no interior do idealismo alemão, a noção que segundo Lukács

mais se aproximaria da concepção marxiana, ou seja, a dialética como movimento

real do ser. Poder-se-ia falar, por conseguinte, do desenvolvimento de uma lógica

não adequada aos fatos, porém, em Hegel uma afirmação desse porte seria

injusta. No sistema filosófico hegeliano a forma pela qual tal problema se

apresenta é bem mais complexa. Lukács afirma que no pensamento hegeliano

existe na verdade uma

[...] uma indissolúvel unidade espiritual de lógica e ontologia. Por um lado as verdadeiras conexões ontológicas recebem em Hegel a sua expressão apropriada no pensamento tão-somente na forma de categorias lógicas; por outro, as categorias lógicas não são vistas como simples determinações do pensamento, todavia são entendidas como componentes dinâmicos do movimento essencial da realidade, como graus ou etapas na trilha do espírito para realizar a si mesmo. (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 181)

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Em Hegel, tal problema, ou seja, a dialética como movimento real do ser

apareceria vinculado fundamentalmente à sua idéia de sistema: “o sistema

enquanto ideal de síntese filosófica contém acima de tudo o princípio da

completude e da conclusividade, idéias que são a priori inconciliáveis com a

historicidade ontológica do ser e que em Hegel suscitam antinomias irresolúveis”

(LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 275). Assim, existe o risco de se reduzir a “riqueza e

variedade da estrutura dinâmica da realidade” a uma exclusiva conexão imposta

de forma eminentemente intrínseca de uma hierarquização das categorias no

interior do sistema. A esse respeito, segundo as palavras de Marx diretamente

citadas no texto de Lukács, em Hegel, “o momento filosófico não é a lógica da

coisa, mas a coisa da lógica. A lógica não serve para provar o Estado, mas seria

o Estado que serve para provar à lógica” (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 181)

Precisamente, segundo Lukács, adverso a esta forma de proceder, a

abordagem dos complexos humano-sociais presente em Marx,

[...] se move ao contrário, pelo fato de procurar as conexões da totalidade do ser social bem como procura colhê-la em todas as suas intrincadas e multíplices relações ao máximo grau possível de aproximação. Onde a totalidade não é um fato formal do pensamento, todavia constitui a reprodução neste do realmente existente, as categorias não são elementos de uma arquitetura hierárquica e sistemática, porém, são na realidade ‘formas de existir, determinações da existência’, elementos estruturais de complexos relativamente totais, reais, dinâmicos, cujas interconexões dinâmicas dão espaço a complexos consecutivamente mais abrangentes em sentido tanto extensivo quanto intensivo. (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 276)

“Desse modo, é a própria essência da totalidade econômica que preceitua a

trilha a seguir para conhecê-la” (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 285), complementa Lukács

para demarcar as diferenças a respeito do procedimento marxiano. Assim, não

haveria um método a priori que prescreveria o caminho seguro para que se

conheça a realidade dos complexos do ser, muito menos uma conexão

essencialmente lógica das categorias da realidade articuladas no interior de um

sistema filosófico como pretendia Hegel. Nesse sentido, para o pensamento

lukacsiano, “o conhecimento só pode abrir caminho para os objetos à medida que

se investiga os traços particulares de cada complexo objetivo.” (LUKÁCS, 1981,

Vol. I, p. 351)

Assim, Lukács afirma que

[...] é imperativo não esquecer que tais ‘elementos’ em seu formato generalizado, obtido por via de abstrações, são produtos do pensamento, do conhecimento. Do ponto de vista ontológico são, além disso, complexos processuais do ser, todavia de constituição mais simples e assim sendo

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mais fácil de apreender conceitualmente se tomarmos como comparação os complexos totais dos quais são ‘elementos’. É conseqüentemente da máxima importância esclarecer com a maior exatidão possível, em parte com observações empíricas, em parte com experimentos ideais abstrativos, o seu modo de funcionar em conexão a determinadas leis, ou seja, compreender bem como eles são em-si, como entram em ação – em sua pureza – suas forças internas, quais interconexões aparecem entre esses e outros ‘elementos’ quando são afastadas as interferências externas. (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 286)

A abstração como tal não implica necessariamente que haja perda, ainda que

provisória, do contato com a totalidade efetiva do complexo do ser social. A

experimentação ideal deveria ser entendida como um modo de abordagem que

separa e isola analiticamente aqueles elementos mais essenciais e decisivos

daqueles contingentes e particulares, tal seria o procedimento da experimentação,

para pôr a ênfase nas determinantes preponderantes do complexo em questão. O

que significa que assim considerada

A abstração, por um lado, não é mais parcial, ou seja, não é isolada por via abstrativa uma parte, um ‘elemento’, mas é todo o âmbito da economia que se apresenta em uma projeção abstrata, na qual, dada a provisória exclusão ideal de determinados nexos categoriais mais amplos, as categorias vindas assim ao centro do campo podem desenvolver-se em sua plenitude e sem interferência, e exibir assim a sua legalidade interna de forma pura. Contudo a abstração do experimento ideal, por outro lado, permanece em constante contato com a totalidade do ser social, inclusive as relações, as tendências, etc., que não entram na economia. (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 290)

A abstração funcionaria como um procedimento investigativo de modo a evitar

aquelas interferências presentes na realidade não diretamente vinculadas à

essência das relações em questão que, por sua vez desviam a recta

compreensão dos aspectos mais gerais e decisivos da realidade, sempre a

sublinhar que a exclusão ideal de determinados nexos categoriais seria sempre

realizada através do constante contato com a totalidade do ser social. No

processo das abstrações em todos os seus momentos, desse modo, se faria

necessário estabelecer os vínculos concretos existentes entre os elementos do

complexo, não sob o fundamento de construções lógicas ou sob a forma de uma

hierarquização lógico-sistemática presente na filosofia hegeliana, mas a partir da

própria matéria tratada. Seria nesse sentido, que se poderia afirmar que o ponto

de partida fundamental da compreensão ontológica lukacsiana seria o “ser em

interação e em conexão complexa e ser ao mesmo tempo no domínio da sua

característica específica.” (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 312) Para que se compreenda a

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totalidade do ser social dever-se-ia compreender o “ser-precisamente-assim” de

um dado complexo, sem perder de vista os vínculos existentes entre as

legalidades e determinações mais gerais e as determinações mais concretas e

particulares que a compõem. Assim, seria importante ter presente que na

perspectiva marxiana

A solidariedade ontológica dos processos heterogêneos no interior de um complexo, ou nas relações entre complexos, forma a base do seu isolamento (sempre sob reservas) no pensamento. Do ponto de vista ontológico, por conseguinte, trata-se de compreender o ser-precisamente-assim de um complexo fenomênico em conexão com as legalidades gerais que o condicionam e das quais, ao mesmo tempo, ele parece se desviar. (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 308)

No pensamento de Marx, Lukács identificaria a noção de “complexo”,

fundamental para o entendimento da perspectiva ontológica de seu pensamento.

O conceito de complexo seria o início da reflexão ontológica e não um dado

elemento ou categoria, pois nenhumas de suas categorias poderiam ser

adequadamente compreendidas se consideradas isoladamente de tal forma que

na realidade essas se encontrariam sempre em uma inter-relação necessária com

outras categorias. Em termos universais poder-se-ia desse modo dizer que não

haveria elemento sem interação, toda categoria encontrar-se-ia sempre em

interação dinâmica com outras categorias. Seria por isso que na consideração

das categorias que compõem um dado complexo

[...] não se deve diminuir o contraste entre ‘elementos’ e totalidade à simples antítese entre o que é simples e o que é composto. As categorias gerais do todo e de suas partes aqui se complicam ulteriormente, sem, todavia, serem suprimidas como relação essencial: todo ‘elemento’, toda parte, aqui é também um todo; o ‘elemento’ é sempre um complexo com propriedades concretas, qualitativamente específicas, um complexo de forças e relações várias que agem em conjunto. Tal complexidade, todavia, não elimina o caráter de elemento: as categorias autênticas da economia política são, na sua complicada, processual complexidade, efetivamente – cada uma a seu modo, cada uma em seu espaço – algo de ‘último’, algo ulteriormente analisável, no entanto não ulteriormente decomposto na realidade. (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 287)

O caráter relacional, assim, em todo elemento ou categoria apareceria como

um complexo de formas e relações diversas que agem em conjunto revelar-se-ia,

sendo assim, o contexto decisivo em que se afirma a objetividade, de toda

categoria no interior de um dado complexo e, dos complexos entre si, como a

propriedade primário-ontológica de todo ser; seriam sempre partes de um

complexo com propriedades concretas. Em Lukács, portanto, “só um complexo

pode ter história, já que os componentes constitutivos da história – como

estrutura, transformação estrutural, direção etc. – só são possíveis no domínio

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dos complexos.” (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 334)

Esse seria o sentido que Lukács indicaria quando afirma nas páginas iniciais do

capítulo die Arbiet

[...] basta uma olhada muito superficial sobre o ser social para ver o

emaranhado inextricável em que se encontram suas categorias

determinantes como trabalho, linguagem, a cooperação e a divisão do

trabalho, para ver que nele nascem novas relações da consciência com

a realidade e, conseqüentemente consigo mesma, etc. Nenhumas

destas categorias podem ser compreendidas adequadamente quando

avaliadas isoladamente [...] todo grau do ser, no conjunto e nos detalhes,

tem caráter de complexo, vale dizer, que as suas categorias, mesmo

aquelas mais centrais e decisivas, só podem ser compreendidas

adequadamente no interior e a partir da constituição global do grau de

ser de que se trata. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 11)

Explicitar o intrincado das inter-relações entre as categorias que comporiam o

complexo trabalho, essa seria a tarefa de investigação que tomaria também em

consideração os vínculos e as formas de conexão que ele possui com outros

complexos que compõem a totalidade do ser social. A totalidade do ser social, por

conseguinte, seria entendida como um complexo de complexos em interação e

conexão dinâmicas.

Assim, se faz necessário abordar a questão do valor como categoria que iria

embasar tanto o momento preponderante como sendo o fenômeno econômico

quanto as dimensões extra-econômicas, é o que será discutido a seguir.

2.1 Trabalho e Valor

Parte da argumentação lukacsiana sobre a categoria valor basear-se-ia nos

estudos do Capital (Marx, 2003) de Marx em que verificaria no trabalho a gênese

da categoria valor, categoria essa central em todos os sistemas econômicos que,

por sua vez revelaria a complexidade da realidade em suas dimensões tanto

econômica propriamente dita quanto extra-econômica. Assim, a categoria valor

nos estudos de Marx se traduziria em suas conexões legais puras em sua

existência categorial complexa.

Destarte, os estudos de Marx apontariam para o auto-movimento da categoria

valor, como substância, e assim sendo, em sua investigação analítica abstrativa

revelaria a economia como pressuposto preponderante da dimensão da produção

em que as formas efetivas são elementos em interação recíproca na totalidade do

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ser social. Lukács, por sua vez ao estudar O Capital (Marx, 2003), encontraria na

gênese ontológica do processo de produção capitalista os nexos efetivos

existentes na realidade em suas múltiplas determinações, o processo de

desenvolvimento do ser social. Assim segundo Lukács, Marx identificaria na forma

mercadoria o valor determinante do modo de produção capitalista.

Segundo o pensamento lukacsiano, portanto, o trabalho seria o complexo de

categorias preponderante, ou seja, a centralidade do trabalho seria a gênese do

desenvolvimento do ser social. No capítulo O trabalho em “Para a ontologia do

ser social” (LUKÁCS, 1981) Lukács colocaria o complexo trabalho como

pressuposto ontológico fundante da sociedade, ou seja, como determinação

genética do processo de desenvolvimento do ser social, procedimento esse que

isola abstratamente suas categorias, pois o que se busca seria a conexão entre

elas. Tal preponderância da centralidade do trabalho como forma originaria se faz

necessária, pois a analise de suas categorias intrínsecas revelaria suas conexões

decisivas, ou seja, como fundamento do processo interno da gênese do ser

social. Em sua forma primitiva, assim sendo, a atividade laboral como

manifestação, em perspectiva histórica, revelaria a determinação da identidade

abstrata das práticas sócias, ou seja, em sua forma originaria o trabalho

produziria valor-de-uso e seria assim a base de toda realização humano-social.

Igualmente, a universalidade comum a toda a prática humana teria o caráter

social objetivo e, logo, o nexo ontológico seria o trabalho como condição

necessária do ser social, independente do período histórico, pois como tal o

trabalho seria a dimensão privilegiada para a compreensão dos processos

humanos.

Logo, segundo os argumentos lukacsianos, a relação existente entre ser social

e natureza relaria o processo de desenvolvimento do ser social e ainda

dimensionaria outras formas do ser porque a peculiaridade do trabalho seria a

forma reprodutiva dos seres, não obstante haja entre a gênese do ser social e a

natureza uma descontinuidade em seus respectivos processos reprodutivos.

Assim, haveria um salto (Sprung) qualitativo, conceito esse fundamental para o

pensamento lukacsiano, pois desvelaria o trânsito da dimensão da natureza para

a dimensão humana que teria nesse momento a gênese do complexo de ser que

se traduziria como o primeiro ato humano, ou seja, como ato não-natural.

É a partir da categoria valor que se daria parte da argumentação lukacsiana,

argumentação essa realizada com base nos estudos realizados por Marx no livro

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“O Capital” (MARX, 2003, p. 57 e ss.) Segundo Lukács, não obstante a forma com

que tais questões são expostas no primeiro capítulo de O Capital (MARX, 2003.)

cause, num primeiro momento, a impressão de se tratar de um estudo lógico-

dedutivista da categoria do valor, tal impressão se deveria à forma com que Marx

elaborou o texto não ao processo da análise investigativa propriamente dita. A

gênese da categoria do valor, em sua determinação, na obra de Marx “não é nem

uma dedução lógica do conceito do valor nem uma descrição indutiva das

singulares fases históricas.” (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 293), mas o desvelamento de

uma categoria central no sistema econômico, que demarca com exatidão a

complexidade em que se encontra na realidade os aspectos decisivos em nível

tanto da esfera econômica quanto da esfera extra-econômica (o caráter de fetiche

das mercadorias, como determinação decisiva da relação entre os homens)

Esta centralidade da categoria do valor é um fato ontológico e não um

‘axioma’ tomado como ponto de partida para deduções simplesmente

teóricas ou lógicas. Entretanto, uma vez reconhecida, esta facticidade

ontológica leva por si mesma para além da própria facticidade; a sua

análise teórica mostra imediatamente que esse é o ponto focal das mais

importantes tendências de toda realidade social. (LUKÁCS, 1981, Vol.

I, p. 294)

Face ao conjunto do pensamento econômico, a forma de abstração em Marx

não partiria de uma categoria qualquer, mas uma categoria objetivamente central

do ponto de vista ontológico. O que Para Lukács, se apresentaria de um modo

renovador. A abstração, portanto, nesse caso é

[...] uma abstração sui generis: o seu embasamento é a efetiva lei essencial da circulação social das mercadorias, uma lei que em última análise se afirma sempre na realidade econômica, muito embora todas as oscilações dos preços, em um conjunto que funciona normalmente. Assim, essa não opera como uma abstração quando se trata de elucidar seja os nexos econômicos puros, seja as suas interconexões com os fatos e tendências extra-econômicos do ser social; portanto, toda a primeira parte do livro O Capital se revela como uma reprodução da realidade, e não como uma experimentação ideal abstrata. A razão habita, mais uma vez, no caráter ontológico dessa abstração: isso significa, nem mais nem menos, que ao isolá-la se pôs em evidência a lei essencial da circulação das mercadorias, a ela foi permitido agir sem interferências ou obstáculos, sem que fosse desviada ou modificada por outras relações estruturais e por outros processos, que em uma sociedade são, todavia, necessariamente operantes. Por isto, em tal redução abstrativa ao dado essencialíssimo todos os momentos – econômicos e extra-econômicos – revelam-se sem deformações; enquanto que uma abstração não fundada ontologicamente ou dirigida a aspectos periféricos leva sempre a deformar as categorias decisivas. (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 302)

Tal passagem forneceria os fundamentos daquilo que seria determinada como

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o processo de investigação de Marx. Fica assim a distinção entre forma expositiva

e o experimento ideal, isto é, à medida que Lukács afirmaria que os enunciados

marxianos sobre a categoria do valor não seriam são tomados como simples

experimentos ideais, pois revelaria com isto o fato de que Marx exporia de forma

genérica e pura as determinações mais decisivas da dimensão econômica

elaboradas em nível da categoria valor como célula fundamental dessa mesma

dimensão. A redução abstrativa ao dado essencialíssimo, sendo assim, não seria

uma simples abstração, mas uma análise que se atem aos elementos gerais mais

decisivos, ao “momento preponderante” (“Übergreifendes Moment”) que seria o

eixo central no interior do complexo econômico, às suas tendências gerais, ao

valor à proporção que seria a lei fundamental da circulação das mercadorias. A

categoria valor seria analisada como elemento primário sob a forma de “conexões

legais puras”. Para o estudo de um dado complexo ter-se-ia como pressuposto

ontológico que as determinações e categorias sejam operadas pelo caráter da

abstração que vai eliminar as interferências desnecessárias para que se

observem plenamente as determinações mais decisivas presentes no complexo o

que engendraria, à medida que seria um pressuposto ontológico, a existência de

outras categorias e complexos.

A categoria valor permearia todos os níveis do fenômeno social, à medida que

no mundo capitalista a categoria valor fundamentaria a produção e reprodução

humanas e, sendo assim, se traduz como a expressão acabada e decisiva da

forma com que os homens se relacionam entre si, pois seria a partir da

determinação do elemento ou categoria que funciona como “momento

preponderante” que determinaria de forma decisiva o modo como se

estabeleceria a dinâmica das interações no interior do complexo da economia.

Somente por isso que no valor, como categoria central da produção social, confluem as determinações mais essenciais do processo global, é que a exposição abreviada, reduzida aos fatos decisivos, das etapas ontológicas da gênese possui ao mesmo tempo o significado de fundamento teórico também das etapas econômicas concretas. (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 293)

Todo o estudo de Marx em nível da categoria do valor seria antes de tudo a

análise “das etapas teoricamente determinantes do automovimento dessa

categoria, desde os inícios necessariamente esporádicos e acidentais até sua

completa explicitação, quando a sua essência teórica chega a expressar-se em

forma pura” (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 293). Assim, a partir da investigação analítico-

abstrativa da economia enquanto complexo, buscar-se-ia determinar o

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pressuposto preponderante da estruturação assim como da dinâmica da

dimensão da produção. Pois efetuar generalizações tem por objetivo tanto

apreender as leis decisivas que determinariam as formas particulares de sua

configuração o que, corresponderiam ao primeiro passo do procedimento

investigativo quanto fundamentar os vínculos os necessários com as outras

dimensões da totalidade do ser social. Assim, a análise do momento

preponderante deveria ser acompanhada da identificação das formas efetivas de

sua interação com outros vínculos necessários do complexo, pelo simples fato de

que o “momento preponderante” estaria em interação recíproca com os outros

elementos da totalidade do ser social, o que não constituiria de modo algum o

único determinante dos processos sociais, porque para Lukács a construção do

livro de Marx iria do abstrato ao concreto, ou seja, em “O Capital” (MARX, 2003),

o que interessa para Marx, seria determinar a gênese ontológica do processo de

produção capitalista, e num segundo instante determinar os nexos efetivos

existentes na realidade, isto é, a complexidade efetiva das “múltiplas

determinações” com que se encontrariam formada os processos sociais. Tal fato

seria demonstrado por Lukács quando afirma que Marx, nos capítulos finais de “O

Capital” (MARX, 2003), realizaria o movimento em direção à realidade concreta.

Assim, da generalidade abstrativa, em que se determinariam as efetivas relações

que essa categoria guarda com as outras dimensões e complexos da totalidade

do ser social e demonstrar, assim, a partir da dinâmica de suas interações e

conexões decisivas a multiplicidade e reciprocidade de determinações que se

verificaria nas formas concretas da realidade.

Precisamente, assim como Marx identificaria na mercadoria, e por

conseqüência no valor, o determinante do modo de produção capitalista (MARX,

2003, p.57 e ss.), Lukács identificaria, por sua vez, no trabalho o complexo de

categorias preponderante que determinaria a peculiaridade ontológica do ser

social, assim é que em relação às formulações de Lukács em torno dos estudos

marxianos indica de forma concisa os princípios ontológicos determinantes sobre

os quais se fundamentaria a estrutura argumentativa que lhe permitiria afirmar a

centralidade do complexo trabalho na gênese e desenvolvimento do ser social.

A análise desenvolvida ao longo do capítulo O Trabalho (LUKÁCS, 1981, Vol. II,

p.17-101) procuraria “estudar as determinações do trabalho na máxima pureza

possível”, condição necessária, segundo o filósofo húngaro, para demarcar em

que sentido o complexo do trabalho seria compreendido como pressuposto

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ontológico fundante da sociabilidade. Portanto em relação ao método, isso

significa que o isolamento analítico do complexo trabalho das formas específicas

de suas configurações, permite tratar de forma genérica o conjunto de tendências

intrínsecas a esse complexo como determinante de toda atividade humano-social.

Revelar-se-ia desse modo o caráter decisivo da gênese do ser social, o que

permitiria afirmar com esse caráter da análise lukacsiana, a natureza marxiana de

seus estudos:

É necessário não esquecer nunca que, a considerar, assim sendo isoladamente o trabalho, se cumpre uma abstração. A sociabilidade, a primeira divisão do trabalho, a linguagem, etc., nascem igualmente do trabalho, entretanto não em uma sucessão temporal que seja bem determinável, todavia, quanto à sua essência, simultaneamente. É por isso uma abstração sui generis aquela que nós realizamos aqui; do ponto de vista metodológico tem um caráter semelhante àquela abstração que falamos difusamente ao abordar o edifício conceitual de O Capital de Marx. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 14-5)

Nas páginas iniciais do capítulo O Trabalho (LUKÁCS, 1981, Vol. II) encontrar-

se-ia considerações semelhantes àquelas feitas em relação à categoria valor, em

que Lukács esclareceria de forma antecipada a base do procedimento analítico-

abstrativo a ser realizado em relação à atividade laboral humana:

[...] decompor de maneira analítico-abstrativa o novo complexo do ser, para poder em seguida, pelo embasamento assim obtido, retornar ao complexo do ser social, não apenas enquanto dado e, por conseguinte simplesmente representado, todavia agora também concebido em sua totalidade real. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 11)

Na determinação da gênese e do processo de desenvolvimento do ser social, o

trabalho é analisado sob a forma de uma generalização em que deve ser

compreendida como um procedimento que “isola abstratamente” o complexo em

questão para através da elucidação de suas categorias tanto quanto da análise da

conexão entre elas. Desvelar-se-ia, suas leis e tendências assim como delinearia

o caráter decisivo que iria revelar a preponderância e a centralidade e desse

mesmo complexo como tal. O filósofo húngaro quando determina o trabalho em

sua “forma originária” da prática social referia-se à consideração abstrata do

complexo em que o trabalho analisado a partir de suas categorias intrínsecas

conforme conexões decisivas, de modo a descrever o fundamento e o processo

interno que instauraria a gênese do ser social. Sendo assim, a pretensão de

Lukács não sera o estudo das origens do trabalho e sim a determinação

ontogenética do complexo que viabiliza o surgimento do ser social. É importante,

pois, esclarecer que o termo forma originária do trabalho esteja se a referir-se

unicamente à forma primitiva da organização da atividade laboral humana. Vale

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advertir que as freqüentes recorrências à análise das configurações primitivas do

trabalho, a que Lukács se refere várias vezes em seu texto, teria a clara intenção

de evidenciar os elementos comuns existentes em qualquer forma concreta de

manifestação do trabalho em perspectiva histórica, para com isto desvelar as

características comuns e os aspectos ontológicos decisivos próprios a toda

atividade humana. Trabalhar-se-ia na dimensão da determinação de uma

identidade abstrata entre todas as atividades práticas sociais sem perder de vista

o aspecto fundamental das diferenças específicas existente entre elas.

Porém ao se explicitar, desse modo, ainda que sumariamente, os princípios

que norteiam a análise lukacsiana, cabem determinar os motivos que lhe

permitiriam colocar o trabalho como eixo de suas investigações sobre a ontologia

do ser social. O estudo que se apresenta procura esclarecer por quais razões

pode o trabalho ser compreendido como momento preponderante da gênese e do

processo desenvolvimento do ser social. Para tal questão poder-se-ia propor que

haveria um duplo caminho através do qual Lukács fundamenta a determinação do

trabalho. Num primeiro instante, o processo de desenvolvimento do ser social

com tal tornaria possível a identificação desse complexo como a forma originária

de toda prática social humana. Num segundo momento, tal complexo seria

colocado no centro das reflexões acerca da peculiaridade ontológica do ser social,

assim sendo, revelar-se-ia com clareza os traços gerais comuns a todas as

formas da prática social humana. Lukács apresenta para essa questão o seguinte:

[...] todas as outras categorias dessa forma de ser já tem por sua essência o caráter social; as suas propriedades e modos de operar se desenvolvem exclusivamente no ser social já constituído; o seu revelar, mesmo em um estágio extremamente primitivo, pressupõe sempre o salto como já realizado. Somente o trabalho possui por sua essência ontológica um caráter nitidamente intermediário; ele é na sua essência uma interconexão entre homem (sociedade) e a natureza, quer inorgânica (ferramentas, matéria prima, objeto do trabalho, etc.) quer orgânica. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p.13-4)

Precisamente, a forma originária do trabalho, à medida em produz de valor-de-

uso, como complexo que se encontraria eminentemente na base de toda

realização humano-social revelar-se-ia, assim, como uma universalidade comum

a toda prática humana pelo seu caráter socialmente objetivo. Portanto, não se

poderia perder de vista a dimensão ontológica essencial pela qual deveria ser

entendida tal determinação, porem, não se trata de um procedimento que deduz a

fórmula trabalho como fundamento da prática do ser social, mas de uma

afirmação que reconhece o caráter necessário desse nexo ontológico basilar. Tal

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enunciado fundamentar-se-ia em determinações contidas no texto marxiano,

particularmente na passagem em que Marx afirma o trabalho como condição sine

qua non para a existência do homem em toda e qualquer forma de sociedade e

período histórico:

O trabalho como formador de valores-de-uso, como trabalho útil, é uma condição de existência do homem, livre de todas as formas de sociedade, é uma necessidade natural eterna que tem a função de mediar a interação orgânica entre o homem e natureza, ou seja, a vida dos homens. (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 265)

Lukács entende que desse modo,

Nasce assim a única lei objetiva e generalíssima do ser social, que é tão ‘eterna’ quanto o próprio ser social, ou seja, trata-se também de uma lei histórica, na medida em que nasce simultaneamente com o ser social, mas que permanece ativa enquanto esse existir. Todas as demais leis são de caráter histórico já no interior do ser social. (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 340)

O trabalho seria uma condição eminente, necessária do ser social; estaria

presente em todas as formações sociais independente de seu período histórico.

Lukács, nesse momento, argumentaria sobre a existência de uma lei universal

presente no ato de nascimento do ser social, assim como em todos os momentos

históricos de seu desenvolvimento, isso significaria que, genericamente o homem

seria um ser que trabalha, em outros termos seria possível afirmar o trabalho

como o complexo central por ser uma condição necessária de toda e qualquer

fase do desenvolvimento histórico. Lukács irá analisar como tal atividade aparece

como lei universal, expressão geral de toda atividade social humana, como

veremos mais a frente. Alias, dever-se-ia também abordar o trabalho ocupa como

dimensão privilegiada na compreensão dos processos humanos com outras

dimensões do ser, pois se revelaria de modo imediato o vínculo necessário do

processo da relação do ser social com a natureza. Por conseguinte, o processo

de socialização do homem não poderia nem poderá mais prescindir das

dimensões do ser orgânico e inorgânico, que o processo de formação de si e de

seu mundo ocorre eminentemente sobre a base de sua relação ativa com a

natureza, tal determinação afirmaria a objetividade como propriedade primário-

ontológica do ser: o “ser em interação e em conexão complexa e ser ao mesmo

tempo no domínio da sua característica específica.” (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 312)

O trabalho revelar-se-ia, assim, como lei universal do processo de

desenvolvimento do ser social, também por ser o complexo que esclareceria e

ainda dimensiona as conexões do ser social com as outras formas de ser. A

expressão privilegiada da forma, portanto, como tais relações são estabelecidas,

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forma essa que especifica não apenas o nível de desenvolvimento atingido pelo

homem, consequentemente em nível histórico o trabalho plasmaria as etapas do

processo de desenvolvimento humano-social, tanto quanto o define como único

ser capaz de determinar uma relação de transformação consciente com o curso

espontâneo de modificações presente na dimensão da natureza.

Assim, evidenciar-se-ia a dupla face da gênese do ser social, a universalidade

do trabalho revelaria as intrincadas conexões em que se encontra o seu processo

de desenvolvimento com a natureza assim como especificaria a particularidade da

atividade eminentemente humana frente ao processo de reprodução da existência

que se encontra na natureza. O trabalho humano à proporção que revelaria a

dimensão do caráter objetivo do ser social, o ser em conexão com outros

complexos, aponta para a forma peculiar com que essas conexões entre os

complexos seriam estabelecidas nessas dimensões, ou seja, o eixo de tal reflexão

residiria nas diferenças entre o modo da reprodução da vida humana como tal e o

da natureza.

Lukács ilustra a peculiaridade do trabalho frente à atividade que caracteriza as

formas reprodutivas dos seres que comporiam a dimensão da natureza para que

a peculiaridade ontológica do ser social e também sua gênese seja evidenciada

na descontinuidade do processo reprodutivo humano com o processo de

reprodução natural, que seria identificada, segundo ele através dos elementos

característicos e específicos que se poderia encontrar no interior do complexo

trabalho. Com um exemplo, Lukács, analisa as diferenças que se observaria na

forma de organização de determinadas espécies da dimensão natural, as

diferentes funções desempenhadas por seus membros e a divisão do trabalho

existente no ser social:

[...] a chamada sociedade animal (e, além disso, a 'divisão do trabalho' em geral no reino animal) são diferenciações definidas biologicamente, como é possível ver com a máxima particularidade no 'Estado das abelhas'. Pela qual, qualquer que seja a origem de tal organização, essa não possui em si e por si nenhuma possibilidade imanente de ulterior desenvolvimento; não é outra coisa que um modo particular de adaptação ao próprio ambiente por parte de uma dada espécie de animal. Pois, quanto mais perfeito é o funcionamento de tal 'divisão do trabalho', quanto mais segura é a sua ancoragem biológica, tanto menores são estas possibilidades. Porem, a divisão gerada pelo trabalho na sociedade humana cria, como veremos, as suas próprias condições para reproduzir-se, em cujo domínio a simples reprodução do existente constitui só um caso limite em relação à reprodução alargada que lhe é típica. Isso não exclui naturalmente que podem apresentar no seu desenvolvimento becos sem saída; todavia as suas causas são sempre determinadas pela estrutura da respectiva sociedade e não pela constituição biológica de seus membros. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 18)

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Lukács demonstra seu argumento à medida que usa como exemplo o caso das

abelhas em que as funções desempenhadas pelos membros que comporiam a

colméia seriam postas por determinações essencialmente biológicas.

Determinações essas que, por sua vez, limitariam a possibilidade de qualquer

desenvolvimento posterior. O que se constata no reino animal em algumas

espécies uma maior capacidade de adaptação às mudanças do ambiente em que

vivem. A atividade humana implica maiores possibilidades sobre à reprodução de

sua própria existência, possibilidades essas não mais unicamente determinadas

pelo instinto animal presente em sua dimensão biológica. Assim, a reprodução no

âmago ser social se processaria sob determinações fundamentalmente distintas

do modo de reprodução própria à natureza; as determinações que constituiriam o

ser social seriam fundamentalmente auto-engendradas, postas socialmente.

Seria, pois, determinada pelo pôr consciente de uma finalidade e,assim sendo,

ter-se-ia aí o caráter radicalmente novo do ser social em que se daria a

transformação material da realidade. Fica, portanto, inadequado utilizar o conceito

de trabalho ou divisão do trabalho nas abordagens relativas às atividades

existentes no reino animal, o que significaria imprimir aspectos próprios da

atividade humana à atividade natural. A esse respeito Lukács argumentaria: “O

homem tornado social é o único ente existente que – cada vez mais – produz e

desenvolve ele mesmo as condições de seus intercâmbios com o ambiente.”

(LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 390)

Para que se compreendam os argumentos lukacsianos e, para compreendê-los

de um modo adequado dever-se-ia observar para outra noção fundamental que,

constitui o ponto de partida da análise lukacsiana do trabalho: o conceito de

“salto” (sprung). Tal conceito referir-se-ia de modo direto à determinação da

anterioridade do complexo em relação a seus elementos: dever-se-ia partir do

complexo já dado, da totalidade realizada do ser, à medida que, o que surge de

novo somente poderia surgir sob a forma de um complexo. Faz-se desse modo

abstração de todo o longo caminho que levaria ao nascimento dos elementos

diferenciadores entre a dimensão humana e a dimensão da natureza, à proporção

que se os toma, na sua forma já acabada de realização, como ponto inicial da

análise. Compreende-se a gênese do ser social como uma ruptura que

subentende

[...] ter sempre presente que todo salto implica uma modificação qualitativa e estrutural do ser, em que a fase inicial contém certamente em si determinadas premissas e possibilidades das fases sucessivas e

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superiores, todavia essas não podem se desenvolver a partir da fase inicial segundo uma simples e retilínea continuidade. É esta ruptura com a seqüência normal do desenvolvimento que constitui a essência do salto e não o nascimento, cronologicamente repentino ou gradual, da nova forma de ser. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 17-8)

Para Lukács, ainda que a ciência determine de forma precisa, em nível

biológico, o aparecimento de características propriamente humanas, ela

possibilitaria desvelar o fundamento sobre o qual se assentaria os atributos

especificamente humanos, como por exemplo, a consciência e,assim sendo,

quase nada seria revelada sobre a essência da consciência humana, pois à

medida que ela não poderia ser identificada de um imediato com a condição dada

biologicamente. Todavia dever-se-ia compreendê-la como a resultante de um

processo de desenvolvimento que seria eminentemente social. A problemática da

gênese do homem não coincidiria com a questão das condições biológicas

necessárias que levaria ao seu desprendimento da dimensão natural, tal questão

muito comum no campo das ciências naturais. Poder-se-ia dizer que tais questões

não são de grande relevância na determinação da peculiaridade ontológica do ser

social. A esse respeito o argumento de Lukács seria bastante simples: o

desenvolvimento da especificidade humana “se movimenta para frente sem que

sobrevenha qualquer outra modificação biológica específica.” (LUKÁCS, 1981, Vol.

I, p. 337) Não se trata de uma recusa em admitir que a estrutura orgânica geraria

as condições biológicas necessárias para a existência humana mas, assim ficaria

claramente reconhecido o fato de que os traços biológicos “podem esclarecer as

etapas de passagem” (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p.13) da origem do ser social. Busca-

se, portanto, demonstrar que quando tais condições são tomadas isoladamente

elas demonstrar-se-iam insuficientes de fornecer a caracterização daquilo que se

constituiria o ser social como tal. O processo de desenvolvimento e até a gênese

desse complexo de ser se estende a partir de princípios que não existem na

natureza como tal. Logo, o primeiro ato propriamente humano, por conseguinte,

seri na sua essência um ato não-natural e “todos os seus estádios são produtos

da auto-atividade do homem.” (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 13) A linha evolutiva dessa

forma de ser, pois, se caracterizaria essencialmente pelo afastamento das

barreiras naturais, a possibilidade de uma fundamentação unicamente naturalista

como base de explicação para o desenvolvimento do ser social estaria assim

vetada, já que isso seria algo que no instante do seu surgimento e posterior

desenvolvimento se constituiria uma dinâmica sempre crescente de

distanciamento com tudo aquilo que caracterizaria a dimensão da natureza, de tal

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forma que poder-se-ia “aduzir que as características biológicas do homem são,

em última análise, produzidas pela sociedade.” (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 336)

Poder-se-ia dizer que, a gênese do ser social fundamentalmente seria um

momento crucial, uma inflexão em relação às formas predominantes de

reprodução da existência próprias dos seres orgânicos. O trabalho como prática

originária do ser social, identificada como a atividade que criaria as condições

primeiras da peculiaridade da vida humana que iria gerar a “alteração material da

realidade em termos ontológicos algo radicalmente novo” (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p.

266), um processo de diferenciação radical em relação às formas predominantes

da atividade dos seres que comporiam a dimensão natural. A especificidade da

atividade humana fundamentaria a dinâmica do processo de diferenciação a partir

do complexo trabalho que, se põe então como gênese da peculiaridade ontológica

do ser social.

Portanto, como categoria ontológica do trabalho haveria uma posição

teleológica, ou seja, uma finalidade que poderia se traduzir como uma

objetividade, sendo o trabalho o modelo de toda a práxis social pois ele é sua

forma genética, é o que será analisado a seguir.

2.3 - O Trabalho como Pôr Teleológico

Lukács ao abordar a Dialética da Natureza (ENGELS, 1985) concluiria que

para Engels haveria á uma distinção entre atividade animal e o trabalho humano,

e assim sendo, o animal utilizaria a natureza, por outro lado o homem dominaria

essa mesma natureza. Porém, tanto para Marx quanto para Lukács o tema central

residiria na análise do complexo trabalho, destarte, quando o pensamento

lukacsiano se depara com o capitulo V do livro O Capital (MARX, 2003) o

resultado de suas análises revelaria o trabalho como categoria central, pois seria

em tal categoria que a posição teleológica se realizaria em nível do seu ser

material.

Assim, uma nova objetividade se faria presente com a categoria trabalho, pois

dela adviria o modelo de toda a práxis social e também de outras posições sócio-

teleológicas, e assim sendo, o trabalho como pôr teleológico seria a gênese

dessas mesmas posições teleológicas. Logo, para a teleologia o trabalho seria

uma atividade consciente porque seria a dinâmica própria da transformação da

natureza, o que levaria ao reconhecimento, por parte da consciência, das

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características das leis naturais. Assim, a prévia- ideação como apropriação por

parte da consciência dos nexos causais teria por função a transformação da

natureza à medida que a submete e se submete as leis naturais. Destarte, a

consciência como essência humana em seu processo genético de

desenvolvimento no interior do complexo trabalho se traduziria na concepção

materialista da história em que a consciência seria gerada pelo ser social.

Igualmente, como complexo de leis e fenômenos naturais a causalidade

espontânea à medida que se transformaria em causalidade posta pela atividade

humana teria na previa-ideação o eixo da analise de Lukács. Assim, o

espelhamento e também a previa-ideação como momento da atividade laboral

teria ai seu caráter ontológico inovador, ou seja, a particularidade do ser social.

Assim sendo, os objetos concretos à medida que, pelo espelhamento, se

tornariam realidade própria da consciência, pois as imagens se autonomizariam e

seriam por ela transformadas. Logo, o caráter pratico do espelhamento

constatado pela realização da finalidade, pois seriam objetivações humanas,

possibilitariam novas combinações na natureza, destarte, não haveria um simples

espelhar dos objetos na consciência .

A distinção entre a trabalho humano e atividade animal seriam extraídas por

Lukács de um debate voltado à discussão de aspectos pontuais da obra de

Friedrich Engels(ENGELS, 1979.). Poder-se-ia, assim, encontrar nas páginas

iniciais do capítulo O Trabalho, em que é afirmado o mérito de Engels de “colocar

o trabalho no centro da humanização do homem.” (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p.17)

Na “Dialética da Natureza” (ENGELS, 1979.) de Engels encontrar-se-ia

desenvolvida a noção de que o homem surge por intermédio de uma dinâmica de

diferenciação fundado basicamente pela peculiaridade de sua atividade laboral,

portanto, o trabalho “é a condição fundamental de toda a vida humana; e o é num

grau tão elevado que, num certo sentido, pode-se dizer: o trabalho, por si mesmo,

criou o homem” (ENGELS, 1979, p. 215)

Engels fornece, segundo Lukács, os enunciados decisivos para determinar os

principais lineamentos a respeito da ruptura do processo de reprodução entre

homem e natureza tal como seria elaborada por Lukács. Logo, a noção de salto

por sua vez, parece estar em certa medida em conformidade com o estudo de

Engels a respeito da descontinuidade entre o processo reprodutivo dos animais e

o processo reprodutivo humano. Não obstante, tal idéia remeteria também, como

visto anteriormente, à discussão da dinâmica investigativa dos complexos

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próprios do ser social; tal conceito não existiria nos textos engelsianos, todavia

seja necessário esclarecer que Lukács procede de forma distinta em seu estudo

do trabalho. Tal distinção seria fundamental para a perspectiva lukacsiana que

estaria em eliminar uma análise mais detalhada das considerações a respeito das

condições biológicas que possibilitariam o aparecimento do homem, igualmente

das novas funções desencadeadas pelo desenvolvimento do ser social, tal como

estudadas por Engels, em parte, em sua “Dialética da Natureza” (ENGELS,

1979.), e de modo mais enfático no manuscrito intitulado “Humanização do

Macaco pelo Trabalho”. Vale lembrar, que embora estudos dessa natureza não

sejam irrelevantes para Lukács, eles por si só seriam incapazes de descrever a

essência do ser social, revelariam apenas em termos biológicos gerais as

condições orgânicas que favoreceriam o surgimento da capacidade humana de

atuar de modo distinto frente às necessidades naturais. Mesmo que esse aspecto

não esteja ausente nas elaborações de Engels, nele não encontramos um

tratamento minucioso dos elementos constitutivos do trabalho, que revelariam a

verdadeira natureza do processo da gênese e do desenvolvimento do ser social.

Pois, segundo o pensamento lukacsiano, a verdadeira questão consistiria na

descoberta de que tanto a gênese como o desenvolvimento do ser social

deveriam ser compreendidos como uma dinâmica de autocriação humana, do seu

próprio mundo e também si mesmo que, se desdobraria mediante o surgimento

do trabalho. A análise de Engels a respeito da determinação segundo a qual o

trabalho constitui a diferença “essencial e decisiva” entre o homem e os demais

animais limita-se quase que totalmente em delimitar que “o animal apenas utiliza

a natureza, nela produzindo modificações somente por sua presença; o homem a

submete, pondo-a a serviço de seus fins determinados, imprimindo-lhe as

modificações que julga necessárias, isto é, domina a natureza” (ENGELS, 1979, p

215). De acordo com os estudos de Lukács, para compreender a verdadeira

natureza do trabalho como fundamento de uma nova forma de ser se faria

necessário especificar os seus momentos constitutivos e ainda demonstrar quais

seriam as suas categorias e em que consistiria sua inovação em relação aos

desdobramentos e processos comuns à dimensão da natureza. Aos estreitos e

bem delimitados contornos das análises de Engels, aqui colocados em evidência

são acrescentadas os delineamentos marxianos acerca do trabalho. Em Marx,

Para Lukács, poder-se-ia encontrar de forma precisa as justificativas que nos

permitem afirmar a centralidade do trabalho na dinâmica de autoconstrução do

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ser social. Após rápidas considerações que de certa forma dialoga com as

elaborações engelsianas, Lukács iniciaria sua análise do complexo trabalho a

partir de uma determinação de Marx, presente no Cap. V de sua obra O Capital:

Nós supomos o trabalho em uma forma pertencente exclusivamente ao homem. A aranha desempenha operações que se assemelham àquelas do tecelão, a abelha envergonha muitos arquitetos com a construção de sua colméia de cera. Mas o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato que ele construiu a colméia na sua cabeça antes de construí-la na cera. Ao fim do processo de trabalho emerge um resultado que já estava implícito desde o início na idéia do trabalhador, que já estava presente idealmente. Ele não opera somente uma transformação na forma do elemento natural; ele realiza no elemento natural, ao mesmo tempo, o próprio fim, de que tem consciência, que determina como lei o modo do seu operar, e ao qual deve subordinar sua vontade. (MARX, 2003, p. 211-2)

Lukács, não apenas no capítulo O Trabalho igualmente em outros momentos

de sua obra aborda essa passagem do texto de Marx, tamanha importância que

ele concederia a tais determinações ao comentar a essa passagem, ele afirmaria

que no texto marxiano seria posta em evidência

[...] a categoria ontológica central do trabalho: através dele uma posição teleológica se realiza no domínio do ser material como nascimento de uma nova objetividade. O trabalho revela-se, por conseguinte, o modelo de toda práxis social, onde de fato, mesmo que através de mediações que podem ser muito articuladas, são sempre traduzidas em realidade posições teleológicas, que ao seu término, aparecem como fins materiais. Naturalmente, como veremos mais à frente, não se deve ser esquemático e exagerar esse caráter de modelo do trabalho para o agir dos homens na sociedade; entretanto se mantivermos presente as diferenças, bastante importantes, veremos a essencial afinidade ontológica de como o trabalho pode servir de modelo para compreender as outras posições sócio-teleológicas, propriamente porque, quanto ao ser, ele é a forma originária. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 19)

Aqui seria determinado, assim sendo, de forma sucinta aquilo que seria o

caráter específico da atividade humana em relação à natureza, ou seja, o trabalho

como pôr teleológico e também o complexo trabalho como tal seria compreendido

como a gênese de toda prática humano-social, ou seja, como a gênese das

posições sócio-teleológicas. Seria com tais observações que, de tal modo, Lukács

desenvolve o eixo argumentativo de sua análise, ou seja, o estudo dos seus

fundamentos, a elucidação do processo da articulação das categorias que

compõem o complexo, tem-se, assim, o modelo (Modellcharakte) para a

compreensão da estrutura geral de toda prática social humana como tal.

Na análise da determinação do trabalho como pôr teleológico, o trabalho seria

considerado o modelo de toda qualquer prática social impõe-se, portanto, a tarefa

preliminar de analisar as categorias que compõem o complexo, pois assim se

tornaria possível identificar os traços comuns que em um nível mais elevado, em

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seus estudos, revelar-se-ia como uma identidade abstrata existente entre a forma

originária e as formas superiores da prática social. Lukács, por conseguinte, volta-

se essencialmente para a identificação do elemento diferenciador entre a

atividade transformadora humana e o processo de transformação presente na

natureza. Ter-se-ia neste instante a radicalidade da especificidade do homem em

relação à natureza, que seria identificado por ele no texto de Marx como “pôr

teleológico”. No trabalho, o pôr teleológico, constituir-se-ia como complexo

exclusivamente humano-social, pois haveria a ruptura do ser social com o ser

biológico. Portanto, seria necessário determinar precisamente o caráter específico

da atividade humana, à medida que se analisa por que o trabalho pode ser

compreendido como o único lugar em se poderia verificar com correção a atuação

da teleologia como categoria. A esse respeito à primeira consideração apareceria

com a descrição da diferença essencial da atividade laboral humana em relação à

atividade natural:

Tal novidade é a realização como êxito adequado, ideado e pretendido da posição teleológica. Na natureza existe somente realidade e um ininterrupto mudar da sua respectiva forma concreta, a cada vez em um ser-outro. É exatamente a teoria marxiana do trabalho entendido como única forma existente de um ente produzido por via teleológica que pela primeira vez dá fundamento à especificidade do ser social. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 33)

Portanto, o trabalho como pôr teleológico não seria abordado aleatoriamente,

ou seja, para fundamentar a distinção entre a dimensão do ser natural e o ser

social, Lukács traz para o interior de seus estudos o debate tradicional em nível

história da filosofia acerca da relação entre as categorias de causalidade e

teleologia. É por intermédio delas que seriam constituídas as distinções entre o

movimento de transformação próprio da natureza e aquele realizado pela

atividade humana. Para esclarecer as diferenças, Lukács afirma que

[...] enquanto a causalidade é um princípio de automovimento que repousa sobre si mesmo, que mantém esse seu caráter mesmo quando uma série causal tenha o próprio ponto inicial num ato da consciência, a teleologia, contudo, é por sua natureza uma categoria posta; todo processo teleológico supõe uma finalidade, e por isso uma consciência que põe um fim. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 20)

Em linhas gerais, o ordenamento que se encontraria na natureza, assim como

as relações entre os objetos e seres nela existentes seria o resultado não de

relações teleológicas em que haveria uma prévia ideação, mas fruto de uma

dinâmica causal espontânea que se estabeleceria na forma de inter-relações que

alcançam um determinado nível de fixação, o qual se chega a partir de um

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processo estritamente causal. Logo, o pensamento lukacsiano para tal definição

se caracterizaria essencialmente pela negativa em admitir qualquer princípio que

afirme a existência de finalidades na dimensão do ser natural, portanto, a

atividade, por assim dizer, existente na natureza deveria ser entendida como um

desdobramento espontâneo de nexos causais, fundada primordialmente em um

princípio de automovimento que repousa sobre si mesmo, como tal imanente. Na

natureza, compreendida aqui a partir de sua constituição relativa, não se poderia

encontrar algo que tenha se formado sob a orientação de um telos.

A teleologia apareceria, assim, não como o elemento peculiar na dinâmica

espontânea do desdobrar da malha causal dos entes naturais, o que significa que

seria no trabalho eminentemente humano que se encontraria uma dinâmica de

transformação da natureza orientada por um eixo extrínseco aos atributos e nexos

causais dos entes naturais, ou seja, por um telos; o trabalho seria, assim, a

unidade existente entre o pôr efetivo de certa objetividade e sua prévia ideação

voltada para a realização de uma dada finalidade. O trabalho humano, por

conseguinte, apareceria assim definido como uma atividade consciente, capaz de

reconhecer as características da dinâmica da legalidade natural, de assumi-los

na consciência por intermédio da prévia ideação dos nexos causais próprios aos

objetos, à proporção que transformaria o elemento natural em conformidade às

suas necessidades e carências, partir desses mesmos nexos. Assim, em nível da

natureza ter-se-ia a causalidade como princípio necessário e, em relação ao

homem, a capacidade humana de apreender idealmente a dimensão causal da

natureza e elaborar a possibilidade de transformação dessas em conformidade as

suas finalidades. A dinâmica da transformação da natureza, igualmente,

empreendida pelo homem traz consigo dois aspectos fundamentais, ou seja, à

medida que o homem, através do caráter inusitado de sua ação, submete à

natureza determinados movimentos a que ela por si mesma não realizaria, ele se

submete às leis naturais. Para o pensamento lukacsiano a superação da

heterogeneidade entre teleologia e causalidade que, são componentes de um

único processo, momentos específicos que se revelariam em seu interior em

determinação reflexiva, sendo assim, o trabalho humano apareceria então como

uma unidade entre a finalidade e sua atuação sobre os nexos causais presentes

na natureza, pois, no interior tal perspectiva, a posição teleológica, isto é, o pôr

consciente de um fim, não poderia ser compreendido como mera aspiração, um

desejo, mas o êxito adequado, o pôr efetivo de uma objetividade. O termo

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“posição” tem o sentido de uma efetiva realização de um telos e não a mera

intenção em realizar, em alemão Setzung tem esse significado tal como nos

esclarece Lukács

Pôr, em tal situação, não quer dizer meramente assumir na consciência, como acontece no caso de outras categorias, mormente da causalidade; entretanto, aqui a consciência com o ato de pôr dá início a um processo real, precisamente ao processo teleológico. O pôr, por conseguinte, tem nesse caso um necessário caráter ontológico. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 20)

Precisamente, seria o pôr teleológico como complexo de categorias da

atividade humana que, estabeleceria o meio pelo qual o homem se diferencia dos

limites regulares do movimento da natureza do determinismo da necessidade

natural. Portanto, o caráter ontológico da posição teleológica esclarece o aspecto

necessariamente realizador da atividade humana, ou seja, a realização

constituiria o elemento decisivo da prática humana. A realização do trabalho

traduz-se como síntese entre o movimento causal da natureza e o caráter

teleológico fundado na atividade do homem. Tanto que, o produto do trabalho

como tal seria a expressão da superação da distinção entre teleologia e

causalidade. O que vale dizer que na dimensão do ser social não existiria

teleologia, como categoria dessa forma de ser, sem uma causalidade que a

realize. Isso significaria que a correta compreensão da atuação da teleologia na

dimensão do ser social envolve a noção de um vínculo necessário indissociável

com a categoria da causalidade. Desse modo poder-se-ia falar da existência real

da teleologia como realização efetiva da finalidade. A dimensão da novidade que

Lukács atribui ao pensamento marxiano e também a resolução que nele se

verifica não seria a afirmação da teleologia como categoria específica do ser

social tão somente, porém, a demonstração de que o trabalho seria uma atividade

fundamentada por posições teleológicas que necessariamente põem em

movimento séries causais em que se constata a necessária relação entre as

categorias causalidade e teleologia. Lukács escreve o seguinte a respeito:

Quando ao invés, como em Marx, a teleologia é vista como categoria realmente operante exclusivamente no trabalho, tem-se inevitavelmente uma concreta coexistência real e necessária entre causalidade e teleologia. Estas permanecem seguramente contrapostas, todavia exclusivamente no interior de um real processo unitário, cuja mobilidade está fundada sobre a interação desses opostos e que, para se traduzir em realidade, tal intercâmbio faz com que a causalidade, sem, entretanto tocar sua essência se torne causalidade posta. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 24)

Sendo assim, enfatiza-se a categoria realização como critério necessário da

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atividade humana, pois, a supressão da posição teleológica implica a

impossibilidade de sua efetivação que, constitui desse modo em um mero fato da

consciência impotente em relação à natureza. De maneira que,

[...] uma posição em que esteja ausente o próprio objeto, continua uma posição, ainda que o juízo de valor que a ela concerne seja de falsidade ou talvez apenas de incompletude. Quando, porém, se põe ontologicamente a causalidade no complexo constituído por uma posição teleológica, esse deve apreender corretamente o seu objeto, senão não é, em tal contexto, uma posição. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 27)

É pressuposto necessário de toda atividade laboral, assim sendo, a apreensão

dos nexos causais pela consciência igualmente sua correta representação que,

alcança seu êxito na medida em que supera efetivamente no interior do complexo

do trabalho a heterogeneidade entre a finalidade humana e a causalidade da

natureza. Para que a finalidade, por conseguinte, se efetive como um verdadeiro

pôr teleológico se faria necessário que o conhecimento dos nexos naturais

alcance um nível adequado para sua realização. A especificidade da atividade

humana poderia ser determinada, portanto, como uma atividade cuja mediação

preponderante seria dada pela consciência; Seriam as funções e operações por

ela realizadas no processo do trabalho que demarcariam a radicalidade da ruptura

com as formas de reprodução da existência presentes na esfera natural. Contudo,

colocar a questão nesses termos requer certo cuidado. Quando se faz referência

à prática humana enquanto “pôr teleológico”, significaria dizer que a consciência

se fundaria e se desenvolve no interior do complexo do trabalho. Não seria, pois,

possível conceber a consciência como elemento exclusivo definidor da

essencialidade humana, já que o seu processo genético e de desenvolvimento

pressupõe sempre a existência simultânea desses momentos no interior do

trabalho. A consciência seria o produto da articulação necessária das categorias

que formam o complexo do trabalho. Ou seja, “não é a consciência dos homens

que determina o seu ser, mas ao contrário, é o seu ser social que determina sua

consciência.” (MARX, 1978, p. 130) O que significaria, portanto, que seria

impossível compreender o estatuto da consciência isoladamente, pois “sem

posição teleológica não existe nem percepção, nem reprodução da imagem, nem

consciência praticamente relevante do mundo objetivo.” (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p.

394) Segundo a perspectiva lukacsiana, dever-se-ia colocar que a consciência

como constituinte de um predicado decisivo do homem, porém, sua gênese e

ainda o seu desenvolvimento só poderia ser pensada como momentos no interior

do complexo da atividade prática humana, nesse caso do trabalho como tal.

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Somente assim seria possível compreender a consciência como possibilidade do

domínio do homem sobre a natureza e também de si mesmo.

Unicamente no trabalho, quando põe o fim e os seus meios, com um ato autodirigido, com a posição teleológica, a consciência passa a algo que não é um mero adaptar-se à natureza, referimos àquelas atividades dos animais que objetivamente, sem intenção, transformam a natureza, no entanto, é um realizar de transformações na própria natureza, que a partir dela, da natureza, seriam impraticáveis, ou melhor, inimagináveis. Quer dizer, no momento em que a realização se torna um princípio replasmador, neoformador da natureza, a consciência que deu a ela impulso e direção não pode mais ser ontologicamente um epifenômeno. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 35)

Tais enunciados cumpririam também a função de estabelecer a distinção entre

a consciência existente na atividade reprodutiva animal e a consciência humana.

Lukács afirmaria, sobre os animais que, “A consciência animal por natureza não

transpõe o horizonte de um melhor serviço à existência biológica e à reprodução,

destarte, considerada em termos ontológicos, é um epifenômeno do ser orgânico.”

(LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 35) Nos animais, assim sendo, a consciência seria um

efeito do ser orgânico, oriunda de estímulos necessariamente vinculados à

natureza, seria fruto da capacidade de adaptação do animal a determinadas

transformações e condições naturais igualmente do reconhecimento da

imediaticidade do ambiente em que vive. Assim seria que nos animais, a

consciência apareceria como momento do processo de reprodução do organismo,

o que não ultrapassa, assim, os limites “dos laços biológicos imediatos que

nascem espontaneamente das suas inter-relações vitais com o ambiente.”

(LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 387) Lukács esclarece que nos animais superiores esta

capacidade de adaptação não foi suficientemente desenvolvida para que a

consciência deixasse de ser epifenomênica, pois o caráter instintivo como veículo

propiciador de sua capacidade adaptativa, ou seja, a experiência acumulada seria

fixada sob a forma instintual e se move sempre no interior da dimensão das

necessidades biológicas, o que, no homem, revelar-se-ia de um modo diferente,

pois nele, “A adaptação não ultrapassa simplesmente o patamar do instinto para

aquele da consciência, todavia se desenvolve pelo contrário como adaptação a

circunstâncias, não criadas pela natureza, porém escolhidos, criadas

autonomamente.” (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 52) Nesse sentido,

[...] a ‘adaptação’ do homem que trabalha não tem estabilidade assim como estaticidade interna, como ocorre com os outros seres vivos – que reage via de regra continuamente da mesma maneira quando o ambiente não muda, nem é guiado de fora como nos animais domésticos. O movimento da criação autônoma não só transforma a natureza, que se modifica seja nos aspectos materiais imediatos seja nos resultados materiais de retorno sobre o homem; destarte, por

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exemplo, o trabalho fez com que o mar, primeiramente limite do movimento do homem, se tornasse um meio de contato consecutivamente mais intensificado. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 53)

Em nível do ser social, a adaptação desencadearia a noção do homem como

ser que responde, sendo assim, sua dinâmica diante da natureza estaria em criar

novas situações e também em responder a elas conscientemente. A atividade

consciente humana possui um caráter radicalmente diferente daquele que se

poderia encontrar nos animais, ela não seria uma resposta às determinações

naturais, mas encontrar-se-ia radicalmente destacada de tais determinações, à

medida que se desdobra sobre estruturas sociais fundadas por carências

igualmente por necessidades postas pelo homem. Segundo Lukács, toda ação

humana, pressuporia uma questão, questão essa que seria expressão primeira de

uma prévia ideação o que torna, diferente o modo de apropriação dos nexos

causais próprios à natureza. Assim, o filósofo húngaro salienta que “com o

trabalho a consciência do homem deixa, em sentido ontológico, de ser um

epifenômeno”. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 34) O eixo do estudo lukacsiano seria o

reconhecimento na obra de Marx da determinação do homem como único ser

capaz de objetivar um telos na dimensão do ser natural. Todas as noções aqui

destacadas acerca da diferenciação entre atividade da natureza e atividade

consciente humana são apresentadas por Lukács com o objetivo de esclarecer a

ruptura marxiana em relação às concepções vigentes na história da filosofia: a

categoria teleologia, compreendida como um momento no interior do complexo do

pôr teleológico seria determinado como uma especificidade do ser social.

O fato que Marx limite com exatidão e rigor ao trabalho (à práxis social) a teleologia, suprimindo-a de todos os outros modos de ser, não limita em nada seu significado; todavia, tanto maior resulta a sua importância ao se verificar que o mais alto grau do ser conhecido por nós, o ser social, se constitui como grau específico, se eleva do grau sobre o qual está fundamentado a sua existência, a vida orgânica, e se torna uma nova espécie de ser nesse instante, só porquanto nele existe esse operar real do teleológico. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 23)

Para Lukács seria decisiva, assim sendo, no pensamento de Marx, tal questão,

pois, estariam repletas de conseqüências tais concepções para a da história da

filosofia porque com essa determinação torna-se necessário desenvolver suas

conseqüências críticas em relação a abordagem como essa questão foi tratada a

longo da história da filosofia. Apontar criticamente para essa questão seria uma

tarefa de suma importância, pois

O mero fato de que no trabalho se realiza uma posição teleológica é uma experiência elementar da vida quotidiana de todos os homens, por isso ela se tornou um necessário componente de todo pensamento, desde

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discursos cotidianos até a economia e a filosofia; a questão que surge nesse ponto não é, por isso, o de se pronunciar a favor ou contra o caráter teleológico do trabalho, a questão real é antes submeter de novo a um exame ontológico verdadeiramente crítico a generalização quase ilimitada a partir da cotidianidade ao mito, à religião, à filosofia, desse fato elementar. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 19)

O mérito de Marx não estaria em ter sido o primeiro a chamar a atenção,

segundo Lukács, para o caráter teleológico do trabalho como tal. A originalidade

de seu pensamento estaria na delimitação da teleologia como uma categoria

específica do ser social. A resolução marxiana, à medida que restringe a

categoria da teleologia apenas para dimensão da atividade prática singular do ser

social, possibilitaria erradicar um conjunto de falsos problemas que ocuparam a

história da filosofia por um longo período o que, segundo o pensamento

lukacsiano, se faz necessário que se lance à crítica de pensadores como, por

exemplo, Aristóteles e Hegel, que contribuíram grandemente para a elucidação do

caráter teleológico do trabalho, todavia com o grave problema de expandir demais

a dimensão operativa da teleologia. Tal pensamento inviabilizaria a correta

compreensão do movimento da natureza e do processo de desenvolvimento do

ser social, e até impediria a delimitação do trabalho como o complexo

fundamental do processo de autoconstrução do ser social, pois em ambos os

autores encontrar-se-ia elevação da teleologia a uma categoria cosmológica

universal. Em Hegel, ela apareceria como o motor da história, ou seja, para Hegel

o espírito absoluto apareceria como teleologia do mundo orgânico e da história,

enquanto que na filosofia de Aristóteles encontrar-se-ia a noção de um finalismo

do mundo orgânico, ou seja, em seu sistema poder-se-ia verificar a atribuição de

“uma acepção central à teleologia objetiva da realidade” (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p.

20). Portanto, Lukács realizaria aqui, uma dupla negação crítica, ou seja, num

primeiro momento negaria a validade da teleologia como princípio existente na

natureza tanto quanto nega a existência de uma forma generalizada de teleologia

na sociedade e na história humana. Assim sendo, Lukács iria delimitar a validade

da teleologia aos atos singulares da ação humana.

Por conseguinte, ao demonstrar criticamente os aspectos problemáticos das

postulações de autores de fundamental importância para o pensamento filosófico,

Lukács nos induz também ao reconhecimento que “toda a história da filosofia é

atravessada por uma relação contraditória, de uma irresolúvel antinomia entre

causalidade e teleologia” (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 19). Segundo o pensamento

lukacsiano, o eixo de tal questão estaria na determinação de um telos à natureza

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como tal, ao cosmos, história, etc., o que faria com que passe a existir uma série

de contradições cuja origem descrita por ele assim:

Aquilo que faz nascerem tais concepções do mundo, não apenas nos filisteus fazedores de teodicéias do século XVIII, todavia ainda em pensadores lúcidos e profundos como Aristóteles e Hegel, é uma necessidade humana elementar e primordial: a necessidade de que a existência, o movimento do mundo, no fundo até os fatos da vida individual e, esses em primeiro lugar, tenham um sentido. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 20)

A necessidade de sentido fundamentaria na própria existência cotidiana dos

homens a justificativa para os fenômenos de ordem não especificamente social,

por exemplo, a morte, que seria um fato acima de tudo biológico e também para

os acontecimentos mais imediatos da vida, para os quais os indivíduos buscam

encontrar respostas. Lukács não se referiria, assim, a uma necessidade

psicológica, todavia a uma necessidade prática, que ele caracterizaria como uma

tentativa de formulação de respostas às condições oriundas de necessidades

postas pela vida cotidiana por intermédio da atribuição de sentido à natureza, ao

cosmos igualmente à história humana, o que se traduziria, por conseguinte, como

relevante seria a sua funcionalidade prática. Assim sendo, dar um sentido tanto à

dimensão subjetiva quanto à objetiva seria uma necessidade de elaboração ideal

da realidade que possibilitaria estabelecer uma relação prática com o curso de

sua própria vida. Da formulação filosófica do problema finalístico à questão

formulada a respeito da essência em nível da vida cotidiana o que, sendo assim,

perpassa a idéia de que o homem necessita compreender mundo diante de si,

para então, para transformá-lo e desse modo reproduzir sua própria existência, o

que se verifica seria uma dificuldade de uma ruptura com a dimensão da

teleologia na natureza, na vida, etc., como a permanência no cotidiano, por

exemplo, da necessidade religiosa, Lukács a esse respeito seria bastante enfático

na denúncia do fundamento da concepção religiosa do mundo:

Idear teleologicamente a natureza e a história implica, por conseguinte, não só que elas tenham um fim, são dirigidas para um escopo, entretanto também que sua existência e seu movimento, enquanto processo global e nos detalhes, devam ter um autor consciente. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 20)

Assim, segundo Lukács a própria idéia de Deus como criador do mundo seria

uma transposição da atividade laboral humana que estabelece um telos à

natureza, assim sendo, o homem como ser que se autopõe, remete a noção de

um ser supremo esse seu atributo essencial. Portanto, escreveria Lukács: “cada

pedra, cada mosca, seria uma realização do 'trabalho' de Deus, do espírito do

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mundo, etc., do mesmo modo que as realizações delineadas pelas posições

teleológicas dos homens” (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 33). Tal questão também se

apresenta naqueles pensadores em que se poderia encontrar de forma clara a

não admissão de uma teleologia na natureza, mesmo essa negativa não deixa de

gerar problemas, entretanto, tais problemas não se resolveriam pela negativa da

presença da teleologia na natureza. O exemplo dado por Lukács para expor o

eixo de tal incompreensão seria a filosofia de Kant. Sua crítica iniciar-se-ia

quando ressalta o mérito de Kant ao definir a vida na dimensão dos seres

orgânicos como uma “finalidade sem escopo”, tal assertiva seria tida como

correta, pois, segundo Lukács, seria eliminada a noção de seus antecessores

para os quais

[...] satisfazia que uma coisa fosse útil a outra para ver nisso a realização de uma teleologia transcendente. Ele [Kant] abre assim a estrada para o conhecimento correto desse domínio do ser, na medida em que tornam possível demonstrar como que conexões necessárias somente em termos causais (e, conseqüentemente acidentais) dão lugar a construções do ser em cuja mobilidade interna (adaptação, reprodução do indivíduo e da espécie) opera legalidades que possam com razão ser chamadas objetivamente de finalistas para os complexos em questão. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 21)

Todavia, se Kant nesse ponto seria referendado pelo pensamento lukacsiano, o

mesmo já não acontece quando ele direciona a negativa para o conhecimento,

pois a abordagem do problema em Kant se daria tão somente no campo

gnosiológico. Lukács escreve que Kant “se limita a expor que na ciência da

natureza as explicações causais e teleológicas se excluem mutuamente”

(LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 23): “a questão da causalidade e da teleologia se revela

na forma de uma incognoscível – para-nós – coisa em si.” (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p.

22)

Fica, assim sendo, bloqueada no plano gnosiológico qualquer ordenação

teleológica da dinâmica própria à dimensão da natureza como tal, o que, no

entanto não impediria que não se considerasse ontologicamente para esses

problemas a possibilidade de resoluções especulativas transcendentes, pois nega

exclusivamente a teleologia da natureza no plano da teoria do conhecimento.

Porém não a existência da teleologia no mundo natural, ou seja, a negação de

uma teleologia na natureza se limita ao plano de sua acessibilidade ao

conhecimento. Desse modo,

[...] a mais proeminente conseqüência da tentativa de Kant de impostar e resolver em termos gnosiológicos as questões ontológicas é a de que a questão propriamente ontológica continua no fim não resolvida; o pensamento é bloqueado num determinado limite 'crítico' do seu campo

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operativo, sem que a questão possa auferir, no quadro da objetividade, resposta positiva ou negativa. Assim sendo é deixada aberta a porta para especulações transcendentes, e em última análise se admite a possibilidade de soluções teleológicas, embora Kant as refute no domínio da ciência. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 22)

A concepção kantiana, portanto, conceberia a separação entre teleologia e

causalidade, em nível de uma dimensão estritamente gnosiológica, estabeleceria

uma separação radical entre o homem e a natureza, ou seja, entre a causalidade

a finalidade o que, impossibilitaria a compreensão dos reais processos práticos do

ser social o que, implicaria uma relação necessária com os processos naturais.

Sobre a filosofia da natureza Kant compreenderia a questão da causalidade

natural sob uma perspectiva basicamente mecanicista o que, o impede de admitir,

muitas vezes, na dimensão das ciências orgânicas, o mesmo estatuto científico

da física e da matemática. Igualmente refutaria a noção de uma teleologia na

dimensão do mundo orgânico e, sendo assim, a concepção de causalidade

kantiana influenciada pelo mecanicismo newtoniano, o impediria de determinar os

princípios causais que ordenam os processos da natureza orgânica. De modo que

há uma passagem da Critica do Juízo, em que Kant preconiza que, “é

humanamente incoerente[...] esperar que um dia possa surgir um Newton que

possibilite compreender a produção de grãos de trigo segundo leis naturais não

ordenadas por uma intenção”. Há, assim uma série de questões não superadas

pelo pensamento kantiano em relação a autêntica dinâmica existente entre a

causalidade e teleologia o que, comprometeria a compreensão de questões vitais

a respeito da operacionalidade da teleologia na dimensão do ser social. Lukács

observa como Darwin, superaria as expectativas kantianas a esse propósito à

medida que lança as bases necessárias para a compreensão dos processos

causais da natureza orgânica. Segundo o pensamento lukacsiano seria por isso

que quando Kant

[...] estuda a prática humana, direciona o olhar unicamente para aquela forma altíssima, sutilíssima, extremamente mediada em relação à sociedade, que é a moral pura, que por esse motivo, não surge nele dialeticamente através da atividade da vida (da sociedade), todavia se acha em substancial e necessária oposição a esta. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 23)

Quando se afirmaria a teleologia, portanto, negar-se-ia a causalidade como tal,

por outro lado à medida que se afirmaria a causalidade negar-se-ia, assim, a

operatividade da teleologia. Tanto que, Lukács ao dimensionar com tais exemplos

os pólos opostos da problemática filosófica ressalta a irresolubilidade, na história

da filosofia, na compreensão do vínculo existente entre essas duas categorias

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como determinante da atividade prática humana. O idealismo filosófico, assim

sendo, à proporção que proclamou a superioridade da teleologia sobre a

causalidade hiperdimensionou o papel da teleologia transpôs a sua operatividade

à história, ao mundo, etc. o materialismo (pré-marxista), por sua vez pela

intransigência com que abordou a contestação da concepção transcendente do

mundo, acabou por negar a possibilidade de uma teleologia como tal, ou seja,

uma teleologia realmente operante. Lukács esclareceria, assim, a natureza dos

equívocos e recoloca as questões sobre outros patamares o que, se torna

possível a partir do pensamento marxiano. À medida que acentua os traços

críticos tanto em relação ao idealismo e também materialismo, o pensamento

lukacsiano pretenderia desvelar a verdadeira fonte dos problemas, ou seja, à

determinação ontológica das questões relativas à dimensão do ser social porque

o problema da relação entre teleologia e causalidade seria colocado em termos

totalmente distintos:

[...] Marx, fora do trabalho (da práxis humana), nega a existência de alguma teleologia. A admissão da teleologia no trabalho é, em Marx, algo que vai além das tentativas de solução propostas por seus predecessores, ainda que importantes como Aristóteles e Hegel, já que para Marx o trabalho não é uma das tantas formas fenomênicas da teleologia em geral, todavia o único ponto em que é ontologicamente demonstrável a presença de um verdadeiro pôr teleológico como momento real da realidade material. Esse correto reconhecimento da realidade explica, em termos ontológicos, toda uma série de questões. Antes de tudo, a característica real decisiva da teleologia, ou seja, que essa pode somente adquirir realidade quanto é posta, recebe um embasamento simples, evidente, real: não é preciso repetir o que diz Marx para entender como qualquer trabalho seria impossível se não fosse precedido por um tal pôr, com a finalidade de determinar o processo em toda as suas etapas. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 23)

E em outro contexto, ele conclui:

[...] teleologia e causalidade não são, como aparecia até aquele momento na análise gnosiológica ou lógica, princípios que se excluíam mutuamente no curso do processo, no existir e no ser-assim da coisa, entretanto, princípios reciprocamente heterogêneos, que, contudo, muito embora a sua contraditoriedade, só em comum, em uma coexistência dinâmica indissociável, constituem o embasamento ontológico de determinados complexos dinâmicos, complexos que são ontologicamente possíveis somente no domínio do ser social; é esta ativa coexistência que forma a característica primeira desse grau do ser. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 62)

Conseqüentemente, apenas na atividade humano-social, segundo Lukács, a

única “relação filosoficamente correta entre teleologia e causalidade” somente

poderia ser encontrada na “estrutura dinâmica do trabalho”, assim do ponto de

vista ontológico a oposição necessária entre teleologia e causalidade haveria um

aspecto heterogêneo que seria superado à medida que o processo final do

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trabalho se efetiva, isso significaria que na dimensão do complexo do trabalho,

causalidade e teleologia, estariam eminentemente na constituição de um

processo homogêneo (o pôr teleológico); a transformação da natureza deixaria

de ser, assim, um desdobramento de nexos causais, para então ser posta em

movimento por um princípio que seria extrínseco ao seu modo de operar, como

tal, a teleologia. Na atividade laboral essas duas categorias constituiriam uma

homogeneidade no interior do complexo. Portanto, segundo Lukács: “Natureza e

trabalho, meio e fim atingem, conseqüentemente de tal modo algo que é em si

homogêneo: o processo laboral e, ao final, o produto do trabalho.” (LUKÁCS, 1981,

Vol. II, p. 27)

Sendo assim, Lukács define o resultado final do trabalho como uma

causalidade posta, uma causalidade que seria posta em movimento e que tal

movimento tende a um objetivo humanamente configurado. O pôr teleológico

como causalidade posta constitui o caráter ontológico do processo de

determinados complexos próprios ao homem. A teleologia, por sua vez, seria uma

categoria existente somente na dimensão do ser social onde se encontraria em

nível do trabalho, na concreta relação entre a teleologia e a causalidade. Em

outros termos, a natureza teria na causalidade o princípio geral de seu movimento

e, sendo assim, seria no processo do trabalho que ela passa a ser mediada pela

consciência para que se realize uma determinada finalidade impõe-se, portanto,

novos direcionamentos à medida que os nexos causais próprios à natureza

desdobram-se em formas a que nunca poderiam chegar por si mesmos. Por

conseguinte, compreende-se o pensamento marxiano determinado como o ponto

de chegada, momento de profunda e radical inflexão com a produção filosófica

precedente. É no interior dessa perspectiva que Lukács caracteriza o pensamento

de Marx como um tertium datur fadado a superar as contradições presentes tanto

no materialismo que o antecede quanto no idealismo. Lukács crê ser possível,

assim, vislumbrar no interior do pensamento marxiano uma contraposição crítica

fundamental que colocaria sobre novas bases grande parte dos problemas que se

tornariam insolúveis na trajetória do pensamento filosófico ocidental. O

pensamento marxiano contrapõe-se às posições dessas duas correntes do

pensamento filosófico o que, Lukács caracteriza como a “virada ontológica”

promovida por ele que por si seria uma tarefa decisiva para nosso autor. Tanto é

assim que, em vários momentos de seus escritos tal noção seria retomada para

caracterizar precisamente, em que consiste a inovação presente no pensamento

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Marx, que freqüentemente seria apresentado como um pensamento que supera

dialeticamente tais contradições. Essa recorrente oposição entre idealismo e ao

velho materialismo constituiria um dos eixos centrais da forma expositiva da

ontologia lukacsiana. Assim, é que o texto lukacsiano seria interpolado pelo

confronto direto com as filosofias que precederam Marx, por constituir-se, para

nosso autor, a contraposição entre a fundamentação gnosiológica e a perspectiva

ontológica marxiana. Na clivagem com grandes nomes da história do pensamento

filosófico particularmente com Hegel, Aristóteles, Hartmann, Lukács, encontraria

os aspectos que elucidariam o fundamento teleológico do trabalho, à proporção

que não abandonaria a crítica oriunda de Marx sobre as extrapolações da posição

de fim para além da dimensão específica do ser social. Assim sendo, a análise

das elaborações desses autores teria a vantagem de oferecer de um modo mais

preciso as categorias e conexões internas abstratas do complexo do trabalho; o

que em Marx apareceria sempre conectado ao estudo das formas efetivas do

trabalho existentes em qualquer sociedade. Assim, abordar de um modo abstrato

a categoria trabalho teria a peculiaridade da abstração isoladora, que objetiva

analisar o complexo em sua máxima pureza possível, sem a intervenção das

determinantes particulares que na realidade se poriam em uma irredutível relação

com as leis e tendências mais gerais do complexo em questão. Vale ressaltar que

com isso Lukács não pretenderia se distanciar de Marx, ao contrário, ele

compreende que as características mais gerais do complexo do trabalho estariam

necessariamente sempre conectadas às formações sociais concretas por que se

realizam na particularidade histórica de uma determinada época.

Precisamente, diversas determinações a respeito do trabalho seriam recolhidas

de pensadores como Aristóteles e Hegel, que seriam em grande medida,

assimiladas como conceitos essenciais do pensamento lukacsiano. À proporção

que se reconhece complexo central que estrutura a dinâmica do desenvolvimento

do ser social, cabe demonstrar a forma com a qual seus elementos se articulam

entre si, para então determinar a sua especificidade. Lukács reconhece em

Aristóteles o primeiro pensador na história da filosofia a tratar de forma precisa a

particularidade da atividade produtiva humana. Assim é que para ele, Aristóteles

determinaria a existência no interior do trabalho dois momentos necessários: o

pensar e igualmente o produzir. O pensamento lukacsiano destaca na obra de

Marx o pôr teleológico como algo específico presente tão somente na

singularidade da prática humana e também através de uma postura crítica oriunda

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de tal determinação e, volta-se assim, para o estudo da obra de outros

pensadores que abordaram o mesmo problema. Lukács chama, por conseguinte,

a atenção para o fato de que em relação ao pensar e ao produzir, “[...] com o

primeiro é definido o fim e são investigados os meios para realizá-lo, com o

segundo a finalidade almejada alcança a realização.” (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 24)

Primeiramente isso significa que o homem como tal projeta em seu pensamento

aquilo que pretende produzir, o modo como deve fazer, à medida que seria uma

prévia ideação que antecede a atividade produtiva.

Tal essência de fato incide nisto: um projeto ideal antecede o atuar materialmente, uma finalidade pensada transforma a realidade material, deposita na realidade alguma coisa de material que, na confrontação com a natureza, apresenta algo qualitativamente e radicalmente novo. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 25)

Porém, compreender-se-ia tal precedência pela afirmação de que seria no

trabalho que o ato da produção pressupõe a busca dos meios como momento de

prévia-ideação, à proporção que o processo produtivo não “pode deixar de

implicar o conhecimento objetivo do sistema causal dos objetos.” O pensar seria,

assim, anterior ao pôr em movimento dos materiais no processo do trabalho, logo,

tal tratamento a essa questão pelo pensamento lukacsiano é necessário, pois não

se poderia perder a noção fundamental de complexo, portanto seria necessário

observar que tal separação seria apenas didática, pois esses dois pólos, não

obstante sejam distintos entre si, sempre estariam na dimensão de uma unidade

por que na realidade encontrar-se-iam necessariamente conectados e somente

poderiam ser separados à medida que se os aborda para efeito de estudo. A

primeira constatação, portanto, por parte da análise lukacsiana seria de que a

existência ontológica de um depende da existência ontológica do outro, não

obstante, essas primeiras determinações revelar-se-iam tão somente sua

superfície e não eixo da questão que se apresentaria, ou seja: em que sentido

poder-se-ia afirmar o produto da atividade humana como algo radicalmente novo

no confronto com a natureza? Ou por outra, verificar-se-ia que o trabalho como

unidade entre o momento material, i.e, a atividade produtiva propriamente dita e o

momento ideal, ou seja, a prévia ideação, ou atividades preparatórias ideais, seria

para Lukács o fundamento daquilo a que se poderia caracterizar como a produção

de formas de objetividade necessariamente distintas daquelas encontradas na

natureza. A resposta a essa questão o pensador húngaro a encontra no próprio

pensamento aristotélico. Segundo Lukács Aristóteles, apreenderia, “a índole de tal

objetividade, inimaginável a partir da ‘lógica’ da natureza.” (LUKÁCS, 1981, Vol. II,

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p. 25) Porém essa determinação seria apenas o ponto de partida em que se

reconhecem os traços gerais da distinção da atividade do homem em relação

àquela existente na natureza, num segundo instante a questão seria demonstrar

por que esse complexo poderia ser definido como critério que fundamentaria a

especificidade dos produtos da atividade do ser social. Lukács referir-se-ia

diretamente um famoso exemplo dado por Aristóteles em sua Metafísica sobre a

construção de uma casa, e conclui a respeito:

A casa é qualquer coisa de materialmente existente tanto quanto a pedra, a madeira, etc. E, todavia a posição teleológica faz surgir uma objetividade completamente distinta em relação aos elementos primitivos. Do simples ser-em-si da pedra ou da madeira nenhum desenvolvimento imanente das suas propriedades, das legalidades e forças operantes nelas, pode fazer derivar uma casa. Para fazê-lo é preciso o poder do pensamento e da vontade humana que fatual e materialmente ordenam tais propriedades em uma conexão inteiramente nova em seu princípio. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 25)

Poder-se-ia propor que as propriedades dos elementos naturais à medida que

seriam combinadas entre si conteriam a possibilidade de tornar-se uma casa,

todavia tais desdobramentos tão somente se realizariam à proporção que são

postos, somente por intermédio da intervenção da atividade consciente humana é

que podem vir a se realizar. É nesse momento que se traduz a particularidade da

produção humano-social, ou seja, o elemento natural possuiria a possibilidade de

ser transformado, porém isoladamente em-si, não seria capaz de desdobrar-se

em uma casa e do mesmo modo em outro objeto humanamente necessário.

Assim, seria conditio sine qua non a intervenção ativa do homem para a

realização efetivação de determinadas formas de existência, por conseguinte o

objeto produzido seria antes de tudo o produto do pensamento e da vontade do

homem, de uma atividade que estabeleceriam novas conexões os atributos da

natureza. Constatar-se-ia, assim, o caráter preponderante do momento ideal na

dimensão do processo laboral, pois a prévia ideação teria uma dupla função no

processo laboral:

[...] por um lado põe à mostra o que em-si, independente de toda consciência, conduz os objetos em questão; por outro descobre neles as novas combinações, as novas possíveis funções, que sozinhas, quando são postas em movimento, tornam realizável o fim teleologicamente posto. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 26)

À vontade na esfera processo teleológico teria como critério de sua eficácia a

objetividade dos elementos naturais com os quais lida diretamente na sua

atividade, de modo que a descoberta de novas possibilidades seria um ato do

homem que dominaria a malha causal que governa os objetos, que elabora

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idealmente e descobre combinações possíveis dos atributos da natureza, o que o

levaria a novas formas de objetividade condizentes com suas necessidades.

Entretanto, seria necessário observar que essa relação nada tem de arbitrária em

nível de uma unilateralidade subjetiva sobre as determinantes desse processo,

assim sendo, a subjetividade em conformidade às suas finalidades submete a

natureza na exata medida em que, ao mesmo tempo, submete-se a seus atributos

por que as propriedades do objeto funcionariam como limite e possibilidade da

configuração de novas objetividades. Lukács esclareceria que toda essa relação

que se põe como necessária para a atividade humana seria ilustrada com um

exemplo que acrescentaria na seqüência destas determinações:

No ser-em-si da pedra não existe nenhuma desígnio, nem mesmo um indício, de um possível uso como faca ou machado. Essa pode adquirir tal função de ferramenta somente quando suas propriedades objetivamente presentes, existente-em-si, são capazes de sofrer uma combinação tal que torna isso possível. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 26)

Não obstante, o outro lado dessa relação, o papel subjetivo na produção de

novas formas de objetividades seja posto em evidência através de outro

significativo exemplo apresentado por Lukács nas páginas do cap. III, “O

Momento Ideal e a Ideologia”, quando considera uma atividade que se encontraria

diretamente vinculada aos primórdios da humanidade, Lukács afirma que

[...] nem o fogo contém na sua imediaticidade a capacidade de cozinhar ou assar, nem a carne ou a erva possuem a tendência de serem cozidas ou assadas; as ferramentas para realizar esse processo devem ser apropriadamente criadas pelo homem trabalhador. A sua combinação é, por conseguinte uma síntese de elementos heterogêneos, os quais devem ser plasmados convenientemente por essas funções. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 384)

Basta, assim, apenas observar que, para o pensamento lukacsiano, o caráter

inovador da atividade humana não seria a transformação dos atributos naturais,

porém a descoberta de “possibilidades imanentes” nos elementos naturais,

irrealizáveis sem a atuação humana. Tal perspectiva ficaria mais clara nas

referências que Lukács faz à análise hegeliana do trabalho. Segundo Lukács,

Hegel

[...] vê bem os dois lados desse processo; por um lado, a posição teleológica ‘simplesmente’ emprega a atividade própria da natureza; por outro lado, a transformação de tal atividade faz dela o contrário de si mesma. Quer dizer, essa atividade natural transforma-se, sem que se modifiquem em termos ontológico-naturais os seus embasamentos, em uma atividade posta. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 26-7)

Tais lineamentos do pensamento de hegeliano a respeito do trabalho

encontrar-se-iam fundamentalmente em seus escritos de juventude, em Lições de

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Iena 1805-1806, em que para Lukács já estariam presentes de forma embrionária

aquilo que se tornará mais tarde um dos conceitos centrais do pensamento

hegeliano: “a astúcia da razão”. O fundamento da atividade humana tanto quanto

seu caráter diferencial face ao ordenamento da natureza seria exposto por Hegel

com toda precisão: a legalidade natural permanece tal como é em-si; a ação

humana não transforma seus atributos, mas se utilizaria deles para produzir os

objetos de suas necessidades, o que faz com que a atividade natural se torne

diferente do que era por que seu movimento, a forma da combinação de seus

atributos, etc., seria decisivamente posto e orientado pela finalidade humana.

Portanto, a racionalidade humana seria capaz de pôr fins, de desenvolver novas

funções a fenômenos totalmente indiferentes e heterogêneos aos interesses e

necessidades humanas (ex: o mar, que antes era um limite espacial para o

homem, torna-se veículo para a conquista de novos territórios). Importa destacar

que, para Lukács, nos textos hegelianos encontrar-se-ia esclarecido elucidado o

reconhecimento daquilo que constituiria a especificidade da atividade humana, ou

seja, a transformação da atividade natural em uma “atividade posta”.

Hegel descreveu destarte um lado ontologicamente determinante do papel que a causalidade natural tem no processo de trabalho: sem sofrer nenhuma transformação interna, dos objetos, da força da natureza surge alguma coisa de completamente nova; o homem que trabalha pode inserir a sua propriedade, a lei do seu movimento, em combinações inteiramente novas, atribuir suas funções, maneiras de operar totalmente novas. Mas dado que isto somente pode ocorrer no interior de uma ontológica insuprimibilidade das leis da natureza, a única transformação das categorias naturais pode consistir no fato que essas – em sentido ontológico – são postas; o seu ser-posto é a sua subordinação à mediação determinante da posição teleológica, por intermédio da qual no instante da inter-relação posta entre causalidade e teleologia, se tem um objeto, processo etc., unitariamente homogêneo. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 27)

Nos termos empregados por Lukács, a causalidade espontânea da natureza

tornar-se-ia uma “causalidade posta” pela atividade humana. Poder-se-ia afirmar,

assim que os produtos do trabalho não seriam objetos naturais, contudo formas

de objetividade humano-social. O que foi apropriado pelo Homem inserido no

elemento natural seriam antes de tudo as novas combinações igualmente as

destinações dadas aos elementos da natureza, que seria assim penetrada por um

princípio extrínseco ao espontaneísmo, ou seja, por um telos. Portanto, para o

detalhamento do caráter radicalmente distinto entre a forma reprodutiva natural e

a humana, se faz necessário evidenciar a dualidade de fundo que aparece como

a determinante da especificidade da atividade humana frente à atividade

espontânea da natureza. E para tanto seria necessário reconhecer

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[...] a precisa separação que intercorre entre objeto, que existe de forma independente, e o sujeito, que pode reproduzi-lo em uma aproximação mais ou menos apropriada mediante atos de consciência, que pode transformá-lo em sua própria possessão espiritual. Esta separação tornada consciente entre sujeito e objeto é um produto necessário do processo de trabalho e também a base para o modo de existência especificamente humano. Se o sujeito, enquanto destacado na consciência do mundo objetivo, não fosse capaz de observar o objeto, de reproduzi-lo no seu ser-em-si, aquela posição de fim que é o embasamento do trabalho, ainda no nível mais primordial, não poderia ter surgido. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 36-7)

O destacamento do sujeito seria, assim sendo, a condição necessária da

atividade vital humana, “é com essa dualidade que o homem se retira do mundo

animal” (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 38) Tal processo relacional existente entre sujeito

e objeto constituir-se-ia o eixo do problema ontológico da formação humana de

seu mundo e de si mesmo. A nova estrutura de fundo que surge a partir do

trabalho implicaria necessariamente uma separação do homem com a natureza

ao seu redor que, se manifestaria no confronto entre o sujeito e o seu objeto na

dimensão da prática laboral.

Na medida em que todos os procedimentos do homem [...] são sempre necessariamente posições teleológicas, a relação sujeito-objeto, enquanto relação típica do homem com o mundo, com o seu mundo, é uma inter-relação na qual se tem uma ação inovadora, transformadora, permanente do sujeito sobre o objeto e do objeto sobre o sujeito, no qual nem um nem outro componente pode ser concebido isoladamente, separado do par opositivo, ou seja, como autônomo. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 402)

O momento ideal constituir-se-ia o eixo da análise lukacsiana sobre o pôr

teleológico, pois, seria propriamente nessa atividade ideal que se poderiam

encontrar os elementos necessários que iriam fundamentar os princípios

diferenciais que delimitariam a particularidade ontológica do ser social. Portanto, a

atividade ideal como espelhamento do mundo necessitaria ser abordado para que

se determine em que medida ela poderia ser considerada critério fundamental da

especificidade da prática social-humana. O caráter ontológico inovador de tal

processo de diferenciação estaria eminentemente no fato de que o destacamento

do homem do seu ambiente cria as condições necessárias para que na

consciência surja nos termos de Lukács, o espelhamento, ou seja, a prévia

ideação daquelas propriedades dos objetos diretamente vinculadas à atividade

laboral. Tal conceito introduzido pelo pensamento lukacsiano, estaria vinculado à

capacidade de abstração humana, à apropriação ideal das propriedades

pertencentes aos entes. O estudo de Lukács acerca do espelhamento começaria

da seguinte forma:

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No espelhamento da realidade a reprodução se destaca da realidade reproduzida, se coagula em uma ‘realidade’ própria da consciência. Colocamos entre aspas a palavra realidade, porque essa na consciência é apenas reproduzida; nasce uma nova forma de objetividade, todavia não uma realidade, e – propriamente em sentido ontológico – não é possível que a reprodução seja da mesma natureza daquilo que ela reproduz, tanto menos que seja idêntica a ela. Entretanto, no plano ontológico o ser social se subdivide em dois momentos heterogêneos, que do ponto de vista do ser não apenas se encontram um diante do outro como heterogêneos, porém são diretamente opostos: o ser e o seu espelhamento na consciência. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 38)

Quando apropriado, assim, idealmente pela consciência, o objeto real revelar-

se-ia sob a forma de uma imagem relativamente autônoma “se coagula em uma

realidade própria da consciência”, ou seja, apareceria na consciência a forma de

uma imagem correspondente, todavia, autônoma em ralação àquilo que seria

reproduzido. E assim sendo, à medida que a imagem do objeto se coloca na

consciência, tal imagem poderia ser tomada separadamente daquelas situações

práticas que a geraram. Na dimensão da relação entre sujeito e objeto verificar-

se-ia, pois o surgimento de uma dinâmica em que se constataria uma “duplicação

do mundo dos objetos” (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 396). Num primeiro momento os

objetos concretos que independeriam da consciência, de outro, as imagens

formadas a partir de tais objetos que, ao serem reproduzidos na consciência

passam a existir de forma relativamente “autônoma e independente”. No entanto,

isso não significa que, a reprodução ideal seja abordada como algo constituído a

partir de um ordenamento necessariamente subjetivo, assim seria que, para

Lukács, o problema colocar-se-ia além da questão gnosiológica acerca de como

seria dado conhecer as coisas. Trata-se, pois, do reconhecimento ontológico da

gênese desse processo de apropriação mental das características naturais dos

objetos em que se poderia constatar que o êxito da atividade laboral; o adequado

pôr em movimento dos nexos causais naturais tem por pressuposto seu correto

espelhamento na consciência. O caráter prático do espelhamento seria verificado

post festum pela realização da finalidade. Logo, a consciência realiza atos de

análise e síntese no processo de trabalho, todavia, para realizar algo na natureza

seria necessário para que o espelhamento correspondesse em seus aspectos

decisivos às leis gerais do movimento daquele dado complexo que se tenta

transformar. Ter-se-ia aqui o primado da objetividade no espelhamento dos

objetos na consciência:

Quando nós atribuímos uma prioridade ontológica a uma categoria em relação à outra, entendemos simplesmente isto: a primeira pode existir sem a segunda, enquanto o contrário é ontologicamente impossível. É algo similar à tese central de todo materialismo segundo a qual o ser tem

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uma precedência ontológica em relação à consciência. Do ponto de vista ontológico isso significa somente que o ser pode existir sem a consciência, enquanto a consciência deve ter como pressuposto, como embasamento, alguma coisa que é. (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 288)

A questão central seria saber como se constituiria a possibilidade da realização

das objetivações especificamente humanas, i.é, o que torna possível a descoberta

de novas combinações na natureza. Para essa questão a resposta de Lukács

estaria na determinação decisiva da autonomia da consciência frente à natureza

e, sendo assim, o reconhecimento de que a posse do objeto na consciência não

seria um ato contemplativo e, portanto passivo, porém, o papel da subjetividade

nesse processo desempenha um papel decisivo, na medida em que a realização

da atividade implica que a consciência teria posto em movimento aqueles

atributos dos objetos correspondentes ao seu ser. Em relação ao espelhamento,

assim sendo, poder-se-ia verificar que esta primazia do material sobre o ideal

revelar-se-ia necessariamente no êxito da realização da finalidade pretendida por

que o primeiro pressuposto da realização seria que os atos teórico-práticos, as

observações, elaborações, procedimentos, etc., tenham efetivamente atuado de

forma eficaz sobre os nexos presentes nos objetos mais imediatamente

vinculados à atividade fim do trabalho. Os espelhamentos, por conseguinte,

receberiam determinação da objetividade natural igualmente da posição de um

fim, o que faria que com que eles sejam “sempre determinados pelas finalidades,

ou seja, em termos genéticos, pela reprodução social da vida, originariamente

pelo trabalho” (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 39), o que faria com que ocorra, assim,

uma dupla determinação na formação do conhecimento. O que vale dizer que o

espelhamento se orientaria àquelas características do objeto que estariam

vinculados diretamente à realização dos produtos que poderiam vir a satisfazer as

necessidades do homem como tal. Seria exatamente a orientação teleológica do

espelhamento “a fonte da sua fecundidade, da sua contínua tendência em

descobrir coisas novas” (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 39). Em sua obra “Ontologia”,

Nicolai Hartmann postula a formulação, retomada por Lukács no contexto de tais

elaborações, que subdivide o pensar como tal em dois momentos atos: Num

primeiro instante a posição do fim, aqui vista apenas como finalidade ideada e a

seleção dos meios. Lukács observa a esse respeito que “o primeiro ato contém

em si um endereçar-se do sujeito em direção ao objeto (apenas pensado),

enquanto o segundo é uma ‘determinação que retrocede sobre ele’, na medida

em que são construídos retrocedendo, a partir do novo objeto planificado, os

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passos que a ele conduzem.” (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 348) A elaboração ideal do

objeto que precederia o atuar sobre o material seria constituída sob a forma de

um complexo de múltiplas determinações, em sua formação atua tanto o

reconhecimento da objetividade no seu “ser-precisamente-assim”, como dele

também participa a finalidade e, sendo assim, ambos em sua unidade fornecem a

dimensão sobre a qual se desenvolve a atividade produtiva humana. O momento

ideal seria, no interior dessa prática originária do trabalho, a unidade indissolúvel

existente entre a finalidade e o espelhamento daquelas características

imediatamente vinculadas à atividade exercida pelo sujeito. Por isso, para Lukács

Unicamente a posição teleológica orientada a usar, a transformar o mundo objetivo determina aquela seleção entre a infinidade extensiva dos objetos e processos naturais, que torna possível um comportamento prático nos seus confrontos. Naturalmente o ser-em-si continua a ser imutável, todavia não existe nenhum comportamento prático do homem em relação ao mundo dos objetos cuja intenção se atenha a esta imutabilidade. A posição teleológica não apenas provoca uma delimitação e uma seleção no ato de reproduzir a imagem, porém no seu domínio, e para além de tal domínio provoca ainda uma orientação através daqueles momentos do existente-em-si, que, por seu meio, devem e podem ser colocados na relação desejada, na conexão projetada, etc. Esta orientação, enquanto modo concreto de comportar-se, é diversamente organizada nas diversas posições teleológicas e não apenas naquilo que concerne ao conhecimento intelectual, pelo qual tal posição atinge seu ápice no quadro da consciência, entretanto em toda percepção, em toda observação os resultados são elaborados e recolhidos pela consciência pensante e ponente, em conjunto, na unidade da posição. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 394)

Não haveria, portanto, uma reprodução nesse sentido, mecânica da realidade,

o simples espelhar do objeto na consciência; porém haveria uma reprodução dos

nexos causais posta em evidência pelas finalidades da atividade. A assimilação

ideal dos objetos, de suas características é nos graus mais variados, mediada

pelas finalidades do homem. Na dinâmica de apropriação ideal, não apenas a

totalidade do objeto é percebida, mas também determinadas características

próprias do objeto trabalhado, aqueles atributos mais importantes para a

realização do pôr teleológico que seriam assim reproduzidas com maior precisão.

As possibilidades dadas pela totalidade dos atributos do objeto reproduzidas

pela consciência que, em sua heterogênea inter-relação, se apresentariam como

a condição para a realização de novas formas objetivas. Assim, aquilo que seria

reconhecido pelo homem na natureza não seria apenas a satisfação de suas

necessidades mais imediatas, mas possibilidades de novas combinações das

propriedades dos elementos da natureza, pois, compreender que para Lukács as

leis, os nexos causais que governariam os elementos da natureza não seriam um

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determinismo absoluto; em verdade, formam um par indissolúvel com a

possibilidade à medida que, no confronto com a consciência, apareceriam como

um campo de possíveis transformações realizações do objeto natural. Sendo

assim, quando se fala de uma orientação necessariamente teleológica da prévia

ideação ou de autonomização da imagem na consciência, devemos lembrar que

Tal autonomizar-se não se fundamenta, como é óbvio, na autonomia do ato de consciência em relação ao objeto de sua intenção, dos objetos da natureza, das suas leis, dos tipos de procedimento objetivamente possíveis para o sujeito na prática. Entretanto, e um lado esses objetos estão à frente do sujeito na dura imobilidade do seu ser-em-si, de outro lado o sujeito da prática deve submeter-se às suas condições (do ser-em-si), a tentar conhecê-lo de forma mais livre possível dos pré-juízos subjetivos, das projeções da subjetividade no objeto, etc. Propriamente por esta via ele descobre no objeto momentos até aquele ponto desconhecidos que possibilitem sua transformação em meio ao objeto do trabalho, que dão vida ao intercâmbio orgânico entre homem (sociedade) e natureza, e também, sobre seu fundamento, à produção do novo em geral. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 393)

Presentes no capítulo “O Momento Ideal e a Ideologia”, as citações acima

estariam vinculadas às noções que Lukács introduz no capítulo “O Trabalho”, pois

seriam esclarecedoras à medida que caracteriza a dinâmica própria da

reprodução ideal dos nexos objetivos do ser natural:

[...] o espelhamento tem nesse sentido uma característica disposição contraditória; por um lado é o exato oposto de todo ser, justamente porque é espelhamento não é ser; por outro lado e simultaneamente é veículo através do qual surgem novas objetividades no ser social, por intermédio do qual tem lugar a sua reprodução ao mesmo ou a um mais alto grau. De maneira que a consciência que espelha a realidade adquire certo caráter de possibilidade. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 39)

É um pressuposto necessário a autonomização da imagem para que a

consciência possa apoderar-se do objeto, e também das potencialidades

presentes no em-si do objeto e, assim sendo, transformar a natureza conforme

suas necessidades; essa forma particular de reprodução dos objetos na

consciência seria necessária como componente primordial para a produção das

formas de objetividade sociais por que a possibilidade latente existente no

elemento natural seria conduzida, mediante o trabalho, para a dimensão da

realidade. Portanto, a “característica disposição contraditória” seria antes de tudo

o caráter contraditório que a prévia ideação do objeto assume na consciência do

homem, ou seja, por um lado poder-se-ia dizer que o espelhamento não seria ser,

por outro, dever-se-ia salientar que nem por isso seria uma simples umbra do

objeto e, não seria por que o espelhamento como premissa decisiva para a

posição de séries causais apresenta-se como momento preponderante da

possibilidade de transformar a natureza. A última frase da citação acima é vital

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para a compreensão do pensamento lukacsiano acerca desse problema, ou seja,

“a consciência que espelha a realidade adquire certo caráter de possibilidade.”

Logo, para que se aborde em sua estrutura o complexo do trabalho-

causalidade-teleologia, se faz necessário analisar acuradamente o princípio geral

do movimento, ou seja, o trânsito da potência ao ato; é o que será analisado a

seguir.

2.3 A dynamis aristotélica

Na metafísica de Aristóteles, Lukács encontraria o conceito de dynamis que,

por sua vez determinaria a dinâmica das transformações da natureza. Assim,

segundo o pensamento lukacsiano a dynamis seria o principio mediador em que

se daria a passagem da potência ao ato em que a natureza transformada pelo

homem iria gerar o ser social. Igualmente, a dynamis seria o principio do

movimento, ou seja, condição tanto intrínseca quanto extrínseca de

transformação do objeto, e assim sendo, em sua condição intrínseca como

possibilidade de sofrer transformações em sua estrutura interna e em sua

condição extrínseca de conduzir algo a um bom fim. A dynamis seria também a

possibilidade da consciência em por em movimento os objetos da natureza e

ainda suas conexões em seu trânsito da potência ao ato.

Assim sendo, a partir da noção de dynamis seria possível compreender a

análise do pensamento lukacsiano sobre o espelhamento da realidade como

forma de efetividade em nível de suas possibilidades objetivas. Portanto, o

homem em seu processo laboral teria diante de si tanto as alternativas quanto os

nexos causais. Do mesmo modo, as propriedades do objeto natural à medida que

o espelhamento elabora na consciência tanto as alternativas quanto a

causalidade acabaria por desenvolver o trabalho em suas formas tendencialmente

mais complexas. Logo, Lukács indica a importância do complexo

finalidades/espelhamento para a compreensão da gênese do ser social, pois a

passagem da potência ao ato e também a escolha entre alternativas e até mesmo

a dimensão da possibilidade técnica seria o fundamento do telos socialmente

estabelecido. Assim a prévia-ideação teria em si um conteúdo ontológico

caracterizado pela categoria da alternativa que, por sua vez acompanha a

dinâmica laboral. E assim sendo, existiria a preponderância da atividade ideal,

tendo-se em vista a primazia do complexo da objetividade representado pelo

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trabalho em relação à teleologia.

Por conseguinte, o trabalho seria a gênese constitutiva do ser social e, assim,

fundamentaria as formas da prática social e ainda seria a base das formas

superiores da pratica social. Igualmente, o trabalho traria consigo a dinâmica da

autoformação do sujeito que trabalha. Pois, à medida que toda forma de prática

social humana seria uma forma de por teleológico, a atividade laboral seria a base

comum de formas qualitativamente distintas da prática social. Logo, a identidade

abstrata presente na dialética marxista, segundo o pensamento lukacsiano,

revelaria nas múltiplas determinações da realidade duas posições teleológicas.

Uma posição teleológica primária em que o homem age sobre a natureza e uma

secundaria que teria por objetivo a consciência dos homens cujo papel

preponderante incidiria sobre as relações sociais tendo em vista que haveria um

contato constante com a dimensão da produção e seria igualmente a gênese das

ações políticas e, além disso, seria a base para a compreensão dos fenômenos

ideológicos.

Sendo assim, a partir da atividade laboral haveria um crescente distanciamento

entre os espelhamentos, na consciência, intrínsecos ao processo de trabalho,

pois tais espelhamentos passariam a ter certa autonomia e, portanto, desvelariam

as leis gerais do movimento natural. Destarte, haveria tendências intrínsecas

presentes nos procedimentos próprios às atividades laborais e também à

dinâmica própria da estrutura do trabalho que seriam a gênese do pensamento

científico. Pois existiria uma dupla relação de ligação e independência na

formação do pensamento científico, ou seja, o vinculo necessário entre

conhecimento e prática, entre teoria e pratica. Do mesmo modo, teoria e prática

seriam categorias intencionadas porque seriam mediadoras do processo de

reprodução do conhecimento, logo, toda teoria teria por fundamento a

sociabilidade do homem. A ciência, por conseguinte, ocupar-se-ia de questões

ontológicas, à medida que as responderia ontologicamente, tenha ela ou não

consciência disso.

Há uma extensa referência presente no texto de Lukács à Metafísica de

Aristóteles (ARISTÓTELES, 1991) em que seria enfatizado o conceito de

dynamis estabelecido pelo filósofo grego. Tal conceito embasa efetivamente a

análise da dinâmica das transformações da natureza que surgiriam com o

advento do ser social. Em Aristóteles, a dynamis seria o “princípio, em geral, do

movimento ou da transformação que poder-se-ia residir tanto em outro ser como

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também no próprio ser. Seria também a possibilidade de ser transformado ou

movido por outro ser, ou por si mesmo” (ARISTÓTELES, 1991,p. 191)

Segundo Lukács, Aristóteles aborda, ao tratar da categoria da dynamis como

princípio mediador necessário da passagem da potência ao ato, a questão do

advento do ser social à medida que a natureza é transformada pelo homem; a

potência seria o princípio do movimento que poderia ser uma condição tanto

extrínseca quanto intrínseca de transformação de um dado objeto. Assim, em seu

sentido extrínseco a dynamis seria definida como “a faculdade de conduzir a um

bom fim uma dada coisa e de realizá-la segundo a própria intenção”, (ARISTÓTELES

Apud LUKÁCS,1981, Vol. II, p. 41) já o sentido intrínseco diria respeito à capacidade de

um dado objeto de sofrer determinadas transformações conforme sua estrutura

interna. Quando Lukács toma, por conseguinte, as definições aristotélicas reitera,

sobretudo o sentido da possibilidade extrínseca da transformação do objeto, sem

desconsiderar entretanto a necessária potência do objeto de sofrer tais

transformações, visto que compreender-se-ia a dynamis necessariamente como a

possibilidade da consciência de pôr em movimento, realizar, determinadas

conexões presentes nos objetos da natureza. À proporção que se considera tais

aspectos, Aristóteles esclareceria que nada na natureza levaria à idéia de casa,

essa seria uma construção humana realizada a partir da natureza, ao afirmar que

“a arte de construir é uma potência que não reside na coisa construída”

(ARISTÓTELES, 1991,p. 191), assim, Aristóteles seria o primeiro a ressaltar, com

precisão os limites da natureza à medida que estenderia essas determinações

para a dimensão da própria natureza como tal. Revelar-se-ia, assim sendo, a

inadequação em buscar compreender os fenômenos naturais através de noções

tais como “conduzir a um bom fim” ou “realizar segundo a própria intenção”.

Também nesse caso, para Lukács, a dynamis deveria ser definida como uma

categoria específica do ser social. e aqui não importa os limites de suas

determinações, a nova forma que a categoria da possibilidade assume no interior

da atividade do ser social. Aristóteles seria, pois, o primeiro a ressaltar a forma

que a categoria possibilidade assumiria na dimensão da atividade do ser social,

ou seja, dever-se-ia propor que algo só “é”, só se torna um existente, à medida

que seria efetivada, portanto, que o espelhamento seria a condição de

possibilidade para a existência de objetos necessariamente distintos daqueles

formados pela natureza, que, por sua vez, seriam irrealizáveis se deixadas a

mercê de suas próprias tendências. Os objetos contém em si, por conseguinte,

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tão somente a possibilidade de serem transformados, pois, caberia à consciência

a condição de possibilidade para desenvolvimento do que seria imanente aos

objetos da natureza.

Segundo Lukács, todavia, Aristóteles não esclareceria “a necessidade desta

constelação de coisas tão bem descrita”, apenas revelaria a estrutura ontológica

da posição teleológica, pois, esse problema se esclareceria adequadamente

quando se constata que, ao abordar a natureza com o propósito de satisfazer

suas necessidades, o homem encontrar-se-ia diante de escolhas baseadas nos

fins que busca realizar assim como nas possibilidades postas pelos objetos

naturais.

O esclarecimento da questão do trânsito da potência ao ato, ou seja, o trânsito

do espelhamento da realidade ao pôr de uma nova forma de efetividade

compreender-se-ia eminentemente pelo caráter das possibilidades objetivas que

apareceriam diante do homem trabalhador no interior do processo laboral. Assim,

toda ação do trabalhador na dimensão da dinâmica laboral deveria ser decidida

através do correto manuseio daqueles nexos causais necessários à realização do

fim para que as conexões e também as propriedades do objeto natural apareçam

diante da consciência como alternativas. Impõem-se, sendo assim, ao indivíduo a

escolha entre os procedimentos que postos em movimento levariam a realização

da finalidade. Isso significaria que para trabalhar o homem, mediante o

espelhamento e a sua elaboração na consciência, identificaria as propriedades do

objeto que o torna apto à atividade previamente ideada; o que implicaria escolher

entre as variações possíveis de combinações e ainda as propriedades que

compõem a matéria na qual o indivíduo age, sendo assim, ele deveria,

reconhecer as possibilidades imanentes à causalidade que favorecem a

realização da finalidade previamente ideada. No interior do trabalho, por

conseguinte, toda ação corresponde a uma decisão entre alternativas. É o caráter

alternativo que definiria de forma mais rigorosa aquilo que o conceito de dynamis

aristotélico indica, ou seja, a efetiva capacidade de realização humana

necessariamente se revelaria através do “caráter alternativo de todo pôr no

processo de trabalho” (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 42). Lukács, nesse sentido

esclarece: “O acesso do espelhamento como forma particular de não-ser ao ser,

ativo e produtivo, do pôr de nexos causais proporciona uma forma desenvolvida

da dynamis aristotélica, que nós podemos indicar como caráter alternativo de todo

pôr no processo de trabalho.” (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 42)

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Precisamente, a alternativa seria definida como categoria mediadora que

expressa à dinâmica causal da natureza à proporção que são postos em

movimento pela atividade humana, expressão essa que se estabeleceria em nível

do confronto entre a posição do fim igualmente do reconhecimento dos atributos

imanentes dos objetos. Para o pensamento lukacsiano, “A alternativa, também ela

é um ato da consciência, é a categoria mediadora em virtude da qual o

espelhamento da realidade torna-se veículo da posição de um existente.”

(LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 45)

A causalidade aparece na consciência, por conseguinte, sempre como

alternativas, por intermédio das quais as escolhas dos indivíduos determinam

aqueles nexos e possíveis combinações que virão se efetivar no decurso da sua

atividade. Assim sendo, todo produto da atividade humana seria o resultado de

movimentos dos processos causais da natureza, não obstante sua gênese, a

causa preponderante de sua efetiva existência seja sempre as decisões humanas

diante do reconhecimento das possibilidades dos objetos da natureza. Logo, é

necessário observar que

De fato, conquanto todos os produtos do pôr teleológico surjam de modo causal e operem de modo causal, com o que sua gênese teleológica parece desaparecer no ato de sua efetivação, eles têm, todavia, a peculiaridade puramente social de se apresentarem com o caráter de alternativa; e não só isso, entretanto também os seus efeitos, quando se referem ao homem, têm, por sua própria natureza, a característica de abrirem alternativas. (LUKÁCS, 1981, Vol. I, p. 323)

Lukács, para esclarecer a complexidade da dinâmica da atividade laboral,

referir-se-ia à atividade humana da escolha de uma pedra para a confecção de

uma ferramenta e, assim sendo, a partir de tal exemplo busca demonstrar como

A escolha de uma pedra, ato esse muito simples e unitário quando observado de fora, é na sua estrutura interna bastante complexa e plena de contradições. Temos de fato duas alternativas heterogêneas entre si. Primeiro: é correto ou errado escolher aquela pedra para o fim posto? Segundo: o fim posto é correto ou errado? Isto é: uma pedra é um instrumento realmente adequado para esta finalidade? É fácil ver como ambas as alternativas podem desenvolver-se somente a partir de um sistema dinamicamente que operante e dinamicamente organizado de espelhamentos da realidade (ou seja, um sistema de atos não-existentes-em-si). (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 43)

Sendo assim, tanto na determinação do fim quanto na execução da atividade

estariam sempre presentes escolhas a respeito do que deveria realizar e ainda

como deveria ser realizado, com vistas nas finalidades preestabelecidas. Isso

significaria que na dinâmica laboral as alternativas não seriam todas do mesmo

tipo e também não possuiriam a mesma importância para a efetivação do

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trabalho, revelariam, assim, as características que as decisões entre alternativas

poderiam assumir na dimensão do trabalho. Poder-se-ia identificar a primeira de

tais alternativas na própria finalidade do trabalho que se mostra à medida que

inicialmente em sua atividade o trabalhador se questionaria a respeito da

adequação da pedra como o melhor material para a execução de sua ferramenta;

enfim sobre a possibilidade de o material ser adequado para tal finalidade. Num

segundo momento, a alternativa se revelaria na escolha das características mais

adequadas em cada pedra para a realização da finalidade. O que vale dizer que a

escolha de um conjunto de objetos e, no interior desse conjunto aquele objeto

específico que estaria mais apto às exigências necessárias para a realização do

fim. Com o desenvolvimento do trabalho, como não poderia deixar de ser,

surgiriam formas mais complexas de alternativas. Tal complexidade de

alternativas elevar-se-ia a graus bem maiores à proporção que tanto os objetos

como os procedimentos para sua produção recebem uma posterior elaboração e

se aprimoram. Desse modo, poder-se-ia falar que

[...] quando o trabalho é executado em um sentido ainda mais próprio, a alternativa revela com clareza ainda maior a sua verdadeira essência: não se trata de um único ato decisório, mas de um processo, de uma ininterrupta cadeia temporal de alternativas sempre novas. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 43)

Lukács referir-se-ia a tal complexificação à medida que demonstra que em

seus fundamentos a estrutura do trabalho originário, em nível de sua relação com

a causalidade, se mantém igualmente válida nas formas mais evoluídas da

atividade laboral:

É necessário ressaltar que este existente no trabalho é sempre alguma coisa de natural e que sua constituição natural não pode nunca ser inteiramente suprimida. A posição teleológica de causalidade no processo laboral produz efeitos transformadores, todavia por mais relevantes que estes sejam, a barreira natural pode apenas afastar-se, nunca desaparecer inteiramente; e isso vale tanto para o machado de pedra quanto para o reator atômico. Para acenar somente para uma das possibilidades, as causalidades naturais são assim submetidas àquelas postas no trabalho, porém, uma vez que todo objeto natural possui em si uma infinidade intensiva de propriedades como suas possibilidades, elas não deixam de operar nunca completamente. Dado que o seu operar é totalmente heterogêneo em relação à posição teleológica, em muitos casos acabam por ter conseqüências que vão em sentido oposto, que por vezes a perturbam (corrosão do ferro, etc.). Daí se segue que a alternativa continua a permanecer em função como vigilância, controle, reparação, etc., depois a consumação do processo concreto de trabalho e tais atividades de prevenção multiplicam necessariamente as alternativas nas posições de fim e nas suas realizações. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 45)

Tais considerações são fundamentais para que se compreendam corretamente

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as múltiplas determinações que ocorreriam no interior do complexo trabalho,

assim, seria necessário que se esclareça que a dimensão da atividade humana

aparece desse modo definida como complexo de momentos heterogêneos em

que não apenas envolve a inteligibilidade da malha causal e o domínio dos

procedimentos necessários para o seu adequado pôr em movimento, porém

incluiria o ato da decisão humana. Portanto em toda realização humana não tão

somente ter-se-ia a possibilidade técnica da produção, mas a decisão do

indivíduo, ou de um conjunto de indivíduos que, responde às necessidades do

campo social no se qual vive. Logo, necessário destacar que “[...] o grau de

adiantamento da técnica, mesmo que elevado (sustentado por uma série de

ciências), nunca será o único motivo de escolha da alternativa.” (LUKÁCS, 1981,

Vol. II, p. 46) A excelência técnica, não obstante seja um critério imprescindível,

não seria o fundamento necessário da decisão pela realização de um dado

projeto.

Um projeto ainda que complexo e definido com base em espelhamentos corretos, todavia que seja recusado permanece um não-existente, conquanto esconda em si a possibilidade de tornar-se um existente. Em resumo, por conseguinte, apenas a alternativa da pessoa (ou do coletivo de pessoas) que é chamada a pôr em movimento o processo da realização material, pode atuar esta transformação da potencialidade em existente. [...] Estes limites não dependem de fato do nível do pensamento, da sua exatidão, de sua originalidade, etc. da racionalidade imediata. Os momentos intelectuais do projeto de uma finalidade laboral são naturalmente importantes, em última análise, na escolha da alternativa; entretanto significaria fetichizar à racionalidade econômica ver nela o motor único do salto da possibilidade à realidade no campo do trabalho. [...] Isso implica em primeiro lugar que a racionalidade depende da necessidade concreta que o produto deve satisfazer. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 47)

Tal complexo seria constituído por finalidades e espelhamentos que, traria

consigo o fator decisivo das escolhas entre alternativas que os homens assumem

à medida que se desenvolve o processo de trabalho. E, sendo assim, Lukács

acrescenta ao que Aristóteles compreende sobre tal assunto, ou seja, a

importância da gênese social das necessidades e também das realizações

humanas. À questão que aqui se apresentaria acerca do momento da decisão

pela realização ou produção de um dado objeto, a passagem da potência ao ato,

a escolha entre alternativas teria por fundamento um telos socialmente

estabelecido, ou seja, surgido a partir da dimensão social em que os indivíduos

vivem e trabalham.

Para compreender realmente essa questão é necessário não esquecer que a alternativa, de qualquer lado que a olhamos, só pode ser uma alternativa concreta: a decisão de uma pessoa concreta (ou de um grupo

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de pessoas) a respeito das condições concretamente melhores para realizar uma finalidade concreta. Isso quer dizer que toda alternativa (e toda cadeia de alternativas) no trabalho não pode nunca referir-se à realidade em geral, todavia é uma escolha concreta entre estradas cuja meta (em última analise a satisfação de uma necessidade) é produzida não pelo sujeito que decide, porém pelo ser social em que ele vive e opera. O sujeito pode somente assumir como objeto da própria finalidade, da própria alternativa, a possibilidade determinada pelo terreno e por obra deste complexo de ser, que existe independentemente dele. E, entretanto é evidente que também o campo das decisões é delimitado por este complexo de ser; mesmo que tenha importância a amplitude, a capacidade, a profundidade, etc. que caracterizam a correção do espelhamento da realidade, isso não impede que o pôr de séries causais no interior da posição teleológica seja, mediatamente e imediatamente, determinado em última análise pelo ser social. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 48)

Tanto a finalidade como o produto do trabalho seriam, em suma, fenômenos

sociais.

É precisamente o processo social real, em que emergem tanto as finalidades quanto o encontro e a aplicação dos meios, que determina, e delimita concretamente, o espaço das possíveis perguntas e respostas, das alternativas que podem realmente ser traduzidas na prática. Na totalidade os componentes determinativos estão delineados com força e caráter concreto ainda maior do que em cada ato posicional considerado isoladamente. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 48-9)

As alternativas com as quais o homem se defronta no decorrer do processo

laboral seriam sintetizadas na relação necessária existente entre a teleologia,

espelhamento e causalidade. Assim, a escolha entre as alternativas responderia a

estas duas dimensões existentes no interior do processo do trabalho, a dimensão

da possibilidade técnica e também a finalidade posta socialmente, ou a unidade

entre o momento ideal e o momento material que compreenderia

simultaneamente o pôr teleológico, o produto da atividade social humana, como

unidade entre a teleologia e a causalidade. Faz-se necessário, porém, esclarecer

que por si só a atividade adequada aos atributos próprios aos seres naturais não

forneceria a especificidade da estrutura e dinâmica da nova forma de reprodução

da vida em que surgem com o trabalho. A ênfase em tais determinações seria

necessária, pois, à medida que se tomaria a estrutura aqui descrita em termos

gerais e abstratos, verificar-se-ia que na natureza também a relação dos

organismos com o seu ambiente pressupõe sua adequação aos princípios

causais naturais e, assim sendo, uma atividade capaz de atuar de um modo

adequado à necessidade causal. O elemento diferenciador da atividade

necessariamente humana deve ser compreendido como a unidade entre atividade

ideal e material que, por sua vez, compreende a particularidade do complexo do

trabalho. A esse respeito, pois, Lukács se expressa nos seguintes termos:

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Vimos que a nova categoria determinante, a que conduz à passagem da possibilidade à realidade, é justamente a alternativa. Contudo qual é o seu conteúdo ontológico essencial? Num primeiro momento soará talvez um pouco surpreendente se dissermos que nela o momento determinante é constituído pelo seu predominante caráter cognitivo. Obviamente o primeiro impulso para a posição teleológica é dado pela vontade de satisfazer uma necessidade. Todavia isso é ainda um traço comum à vida tanto humana quanto animal. A estrada começa a dividir-se quando entre necessidade e satisfação é inserido o trabalho, a posição teleológica. E já neste fato, que implica o primeiro impulso ao trabalho, se exprime com evidência a sua natureza eminentemente cognitiva, já que é sem dúvida uma vitória do comportamento consciente sobre a simples espontaneidade do instinto biológico o fato que entre a necessidade e satisfação imediata seja introduzido como mediador o trabalho. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 50)

A prévia ideação em seu momento cognitivo acompanha toda a dinâmica

laboral e constituiria assim condição necessária que delimita o “ser-propriamente-

assim do trabalho.” Assim, o “conteúdo ontológico necessário” da categoria da

alternativa seria a atividade ideal. Muito embora no reino animal o primeiro

impulso seja também uma ação orientada para satisfação de uma determinada

necessidade, o que diferencia sua atividade, da forma tipicamente humana seria

que na dimensão da natureza o confronto com seu ambiente limita-se a responder

de modo imediato situações concretas, a reagir aos impulsos instintivos de seu

organismo. Assim sendo, seria importante observar que a diferenciação

necessária entre a dinâmica da transformação natural e humana seria dada

necessariamente pelo determinante que a atividade ideal desempenha no

processo de transformação da natureza. Por outro lado, o fato de um leão caçar

um determinado animal e não outro, não poderia ser visto como algo semelhante

às decisões humanas, tal opção deveria ser compreendida como epifenômeno do

ser biológico, que se mantém sempre restrita a esse plano. Deste modo não

provocaria nenhuma transformação posterior na atividade daquele animal e

também na espécie que desenvolve a ação, assim sendo, não se poderia falar de

alternativas na dimensão da natureza, pois, os efeitos das decisões entre

alternativas, quando se referem ao homem, possuiriam por sua própria natureza,

a característica de abrirem alternativas. O homem seria um ser necessariamente

prático e, portanto, ao responder às alternativas que seriam impostas a ele pelas

necessidades tanto quanto pelas possibilidades sociais próprias de sua época,

satisfaria suas necessidades à proporção que abre novas alternativas para a

produção das condições concretas de sua existência.

O elemento cognitivo forma um complexo em inter-relação necessária com os

outros objetos do trabalho e constituir-se-ia, assim, no interior da atividade

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humano-social o momento preponderante, tal preponderância poderia ser notada

por sua presença necessária em todos os momentos da atividade laboral, assim

sendo, as finalidades propriamente humanas seriam por si só de extrema

relevância, mas seria necessário lembrar que o pôr em movimento dos nexos

causais envolve necessariamente a atuação em conjunto com a atividade ideal,

conforme escreve próprio Lukács:

O momento ideal pode ter este papel na posição teleológica não apenas porque nele a posição do fim é largamente concretizada, mas porque todos os modos reais para traduzi-la em realidade devem ser fixados no pensamento antes de poder tornar-se ação prático-material na real atividade material do homem que efetiva o trabalho. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 386)

Por conseguinte, seria nesse sentido que Lukács afirma como caráter

necessário da atividade humana o fato de que,

[...] uma das premissas objetivas, ontológicas, do trabalho é que somente um espelhamento correto da realidade como é em-si, independentemente da consciência, pode conduzir à realização da causalidade natural, que de heterogênea e indiferente em relação à finalidade é transformada em causalidade posta, a serviço da posição teleológica. A alternativa concreta do trabalho supõe, por conseguinte, em última análise, seja na determinação do fim seja na execução, consecutivamente uma escolha entre certo e errado. Nisso está a sua essência ontológica, o seu poder de transformar toda vez em uma atuação concreta da dynamis aristotélica. Este primário caráter cognitivo das alternativas do trabalho é por isto um fato necessário exatamente o ontológico ser-propriamente-assim do trabalho [...]. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 51)

Com tais determinações seria muito provável que Lukács reencontra a citação

de Marx que identificada como ponto de partida de sua análise, à medida que

acentua o caráter necessariamente humano como a unidade existente entre o

momento ideal e material; a realização de finalidades a partir da efetiva

transformação da natureza, na gênese e também na dinâmica do

desenvolvimento do ser social. Marx, portanto, como dito anteriormente afirmaria

que, o que

distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato que ele construiu a

colméia na sua cabeça antes de construí-la na cera. Ao fim do processo

de trabalho emerge um resultado que já estava implícito desde o início

na idéia do trabalhador, que já estava presente idealmente. Ele não

opera somente uma transformação na forma do elemento natural; ele

realiza no elemento natural, ao mesmo tempo, o próprio fim, de que tem

consciência, que determina como lei o modo do seu operar, e ao qual

deve subordinar sua vontade. (Marx, 2003, p. 211-2)

Vale repetir que desse modo pronunciar-se-ia a favor da primazia do complexo

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da objetividade representado pelo trabalho e no interior deste complexo o papel

preponderante da atividade ideal em relação à teleologia. Tal parentesco entre os

resultados de ambos os autores deveria ser destacada, pois, ao defender a

mesma tese Lukács acaba por caminhos não diretamente tratados nos textos

marxianos principalmente acerca da análise cuidadosa das categorias da

teleologia e da causalidade que, ele endossa em suas conclusões a perspectiva

marxiana em seus aspectos positivos. Assim, a determinação do trabalho como

complexo central na dinâmica de autoformação do homem. Por outro lado ele

também aborda os aspectos negativos em que se opõe criticamente aos desvios

da compreensão filosófica sobre essa determinação do trabalho.

Precisamente, categoria da alternativa envolve a presença tanto do momento

ideal como do momento material (síntese entre causalidade, espelhamento e

teleologia) como visto acima e ainda revelar-se-ia expressão primordial da

particularidade da atividade prática humana. Assim sendo, ela seria o elemento

diferenciador que destaca o modo necessariamente distinto da reprodução da

vida do ser social daquele que comumente seria encontrado na dimensão da

natureza. A análise lukacsiana, muito embora plena de referências diretas a Marx,

Aristóteles, Hartmann e Hegel, filósofos que segundo Lukács seriam basilares

para a compreensão do complexo da atividade laboral humana, possui a sua

própria particularidade frente a eles. É o que se nota na ênfase que Lukács

concederia à categoria da alternativa que, se constituiria em algo peculiar apenas

em seu pensamento. Tal complexo de questões poderia ser resumido pela

relevância que a categoria da alternativa desempenharia na prática social, pois

revelar-se-ia como uma determinação fundamental no interior do pensamento

lukacsiano, logo, conexão análoga em toda atividade humana estaria presente

uma tomada de decisão entre alternativas. Portanto, esse seria um fato tanto para

as posições originárias do processo laboral igualmente para as formas mais

desenvolvidas da prática social. Assim, as decisões entre alternativas contidas na

atividade humana de polir uma pedra seriam escolhas entre alternativas. O

trabalho como complexo necessário da particularidade ontológica do homem, por

sua anterioridade frente às outras práticas mais evoluídas e complexas da

sociedade, revelar-se-ia como estrutura de toda prática social que, sendo assim,

surge no processo de desenvolvimento do do ser social modelo(modell) termo

esse assim traduzido, pois aqui é endossado o argumento de Ronaldo Vielmi

Fortes em sua dissertação de mestrado, escreve ele o seguinte:

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[...] a partir da noção do trabalho como protoforma, o que a nosso ver pode levar a confusões na medida em que não faz a devida distinção entre a idéia de “modelo” (Modell) e a idéia de “forma originária” (Urform). Até onde pude constatar, o termo mais adequado a esta tradução é Urform (forma originária, forma primeira) que, como vimos, é utilizado por Lukács para definir o trabalho como a forma genética da prática social. Entretanto, penso que o seu uso pode causar a impressão de estarmos lidando com uma forma arcaica, rudimentar, que remeteria a formação do trabalho nos tempos remotos da humanidade. O mais correto traduzir Urform por “forma primária” ou “forma abstracta”, pois o sentido dado ao termo por Lukács não possui um caráter simplesmente cronológico, mas sim de uma consideração abstracta que toma na máxima “pureza” possível as determinações e articulações mais gerais existentes entre as categorias que compõem o complexo trabalho enquanto pressupostos de toda e qualquer forma da prática social humana. Outro termo próximo que igualmente poderia ser pretensamente traduzido por “protoforma” é Urbild - “arquétipo”, “protótipo”, “modelo”, “exemplo” (na tradução italiana aparece como: “prototipo” [“protótipo”]). Porém, vale lembrar que Lukács em nenhum momento utiliza no capítulo Die Arbeit, a palavra Urbild, isso acontece somente ao final do cap. sobre Hegel, mesmo assim uma única vez (p. 555 da ed. alemã).” (FORTES, 2001, p. 111)

Precisamente assim, o trabalho mostrar-se-ia como o princípio de

humanização do homem que, por sua vez, funda a explicitação das categorias

que definiriam a particularidade ontológica do seu modo de ser. Logo, seria com o

trabalho que se iniciaria dinâmica de superação da natureza e também ter-se-ia

nele o eixo de desenvolvimento das faculdades eminentemente humanas, assim,

verificar-se-ia a afirmação segundo a qual a objetividade e igualmente a

subjetividade são resultados de uma dinâmica que teria como gênese o complexo

da atividade laboral humana, identificado como pôr teleológico. Sendo assim, na

perspectiva lukacsiana o

[...] trabalho se mostra como o veículo do autocriar-se do homem como homem. Enquanto ente biológico ele é um produto do desenvolvimento natural. Com o seu auto-realizar-se, que obviamente implica ainda um afastamento das barreiras naturais, mesmo que não possa nunca conduzir a um desaparecimento, à superação total dessas, ele entra em um ser novo, autofundado: o ser social. (LUKÁCS, 1981, Vol. II, p. 54)

Destacar-se-ia, portanto, o caráter eminentemente prático do homem que

transforma a natureza à medida que responde às suas necessidades

transformariam em perguntas suas necessidades e as possibilidades de satisfazê-

las. O mundo humano revelar-se-ia, assim, como conjunto de perguntas e

respostas formuladas no decorrer de sua dinâmica de desenvolvimento para

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superar as urgências de seu ser social. Nas elaborações de Lukács tal enunciado

seria de fundamental importância e, no intuito de enfatizá-la ele novamente cita de

“O Capital”, para explicitar que em Marx o homem realizaria o domínio sobre meio

natural, o que faria com que, através do trabalho, além de transformar a natureza

“transforma ao mesmo tempo sua própria natureza. Desenvolve as potências que

nela estão adormecidas e as sujeita ao jogo das suas forças ao seu próprio

poder.” (MARX, apud LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 52) Haveria nessa citação um

lugar de destaque para determinar a dinâmica de desenvolvimento dos aspectos

subjetivos do ser social:

Isto significa antes de tudo, como já dissemos ao analisar o trabalho do lado objetivo, que há um domínio da consciência sobre o elemento instintivo puramente biológico. Considerado do lado do sujeito, isso implica uma continuidade sempre renovada de tal domínio, e uma continuidade que se apresenta em cada singular movimento laboral como novo problema, como nova alternativa, que toda vez, afim de que o trabalho tenha êxito, deve acabar com a vitória da visão correta sobre o elemento simplesmente instintivo. [...] O homem deve pensá-los (os processos causais da natureza) apropriadamente para aquele determinado trabalho e executá-lo em luta eterno contra aquilo que existe nele mesmo de meramente instintivo, contra si mesmo. (LUKÁCS. Vol. II,1981, p. 52)

Haveria, assim, um distanciamento do caráter instintivo do trabalho para

objetivar na natureza a transformação desejada, logo, o sujeito do trabalho deve

necessariamente ter um domínio sobre todos os atos e procedimentos no interior

da dinâmica do trabalho. Assim, Lukács esclarece essa dinâmica intrínseca ao

trabalho do seguinte modo:

Cada um que trabalha deseja o sucesso da sua atividade. Todavia ele só pode obtê-lo quando, seja na posição de fim seja na escolha dos seus meios, constantemente é direcionado a colher o objetivo ser-em-si de tudo aquilo que tem que lidar com o trabalho e a comportar-se em direção a esse, em direção ao fim e em direção aos meios de maneira adequada ao seu ser-em-si. Aqui temos não somente a intenção de atingir a um espelhamento objetivo, porém também a tendência a expulsar tudo aquilo que seja meramente instintivo, sentimental, etc. e que poderia perturbar a visão objetiva. Nasce justamente assim o predomínio da consciência sobre o instintivo, do cognitivo sobre aquilo que é unicamente emocional. (LUKÁCS. Vol. II.1981, p. 51)

O trabalho, por conseguinte, desdobrar-se-ia como gênese da dinâmica

constitutiva do ser social, tanto de seu mundo objetivo, tal constituição

estabeleceria a base para as formas superiores da prática social. A estrutura do

trabalho, destarte, incide sobre sujeito que trabalha e promove, à medida que

desenvolve os atributos particularmente humanos, o aprimoramento de suas

faculdades. Assim, concomitante à dinâmica de transformação da natureza

haveria igualmente uma dinâmica de autoformação do próprio sujeito que

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trabalha, essas seriam as primeiras justificativas segundo as quais, para Lukács,

o trabalho deveria ser compreendido como a base originária das formas mais

complexas da prática social, ele escreve o seguinte a respeito:

[...] o caráter das novas categorias, emerge também quando examinamos as transformações que o trabalho provoca no próprio sujeito, já que as mutações ulteriores do sujeito, ainda que extremamente importantes, são certamente produtos de estádios mais evoluídos, mais superiores do ponto de vista social, contudo tem como premissa ontológica a sua forma originária no trabalho. (LUKÁCS. Vol. II.1981, p. 50)

Destaca-se com tal assertiva essa dinâmica do trabalho como complexo que

fundamentaria a gênese do ser social ao mesmo tempo em que promove o

desenvolvimento das categorias sociais. Haveria outro sentido através do qual se

compreenderia a afirmação do trabalho como premissa ontológica das formas

superiores da prática social. Esse segundo sentido seria elucidado à proporção

que o pensamento lukacsiano se reporta à relação entre homem e natureza a o

afirmar que o trabalho

[...] é propriamente na sua estrutura decisiva, o modelo de todo tipo de atividade humana, porque a sua combinação dos momentos reais e ideais se conserva nos seus embasamentos ontológicos, quaisquer que sejam as diversidades por estes manifestadas, nos estágios evoluídos. (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 384)

Haveria, portanto, duas esferas através das quais Lukács atribuiria ao trabalho

o caráter de complexo preponderante e, assim sendo, necessário da dinâmica de

autoconstrução do ser social: num primeiro instante, compreender-se-ia o trabalho

seria como gênese e ainda fundamento da dinâmica autoformativa do homem.

Num segundo momento, o complexo genético, constituiria o fundamento sobre o

qual se estruturam as formas superiores das práticas sociais. O trabalho seria,

assim sendo, o “modelo” necessário das práticas sócio-teleológicas superiores à

medida que nele encontrar-se-ia a estrutura geral das formas como se

organizariam toda prática social humana. A unidade, conseqüentemente, entre o

ideal e material que se estabeleceria, conforme visto anteriormente, no interior do

pôr teleológico revelar-se-ia desse modo como determinação válida para toda

forma da prática social humana; especificamente, toda prática humana seria uma

forma de um pôr teleológico. Portanto, a questão estaria em saber em que sentido

poder-se-ia afirmar a identidade entre práticas tão diversas que surgem em

dinâmicas mais desenvolvidas das formações sociais superiores, ou seja, em que

sentido poder-se-ia ver na atividade laboral uma base comum necessária para

formas qualitativamente distintas da prática social? Tal identidade poderia ser

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estabelecida a partir de uma dimensão em que se consideraria o grau de

abstração apenas para aqueles traços comuns a todas as formas da prática

social. Assim, haveria uma identidade abstrata entre as múltiplas determinações

das manifestações práticas sociais.

Segundo Lukács, portanto, nos termos da dialética hegeliana, termos esses

que, seriam assumidos, guardadas as devidas proporções, pela dialética

marxiana, essa identidade deve ser entendida como “identidade de não-

identidade”. Desse modo, não seria a questão de se anularem em nível teórico as

diferenças necessárias existentes entre as diversas formas da prática social,

todavia reconhecer o caráter comum a todas elas que, traduzir-se-ia aqui como

categorias gerais constitutivas do pôr teleológico. Basicamente em que consistiria

a diferença necessária, portanto, essencial das formas do pôr teleológico? Quanto

à caracterização em Lukács das posições teleológicas do trabalho amplas

considerações a respeito foram feitas anteriormente, cabe tão somente reafirmar

que: “O trabalho, na acepção originária e mais restrita, seria um processo entre

atividade humana e natureza: os seus atos tendem a transformar alguns objetos

naturais em valor-de-uso.” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 55)

Basicamente a diferença entre as duas posições, ou seja, as primárias e as

secundárias referir-se-iam ao objeto sobre o qual exerceriam sua ação. As

posições teleológicas da atividade laboral denominada primária agiriam de forma

imediata sobre um dado objeto da natureza, à medida que as posições

teleológicas secundárias teriam como objetivo a consciência de outros homens

por que visa levar outros homens a assumir determinadas posições teleológicas

concretas:

O objeto de tal finalidade secundária, por conseguinte, não é mais um elemento da natureza, contudo a consciência de um grupo humano; a posição do fim visa não mais transformar um objeto natural, porém, fazer com que surja uma posição teleológica, que por sua vez tenha como objetivo algum objeto natural; os meios, do mesmo modo, não são mais intervenções imediatas sobre objetos da natureza, todavia intencionam provocar estas intervenções por parte de outras pessoas. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 56)

Assim sendo,

Junto às formas sucessivas e mais evoluídas da prática social surgem prevalentemente em primeiro plano a ação sobre os outros homens, que visa em última instância, contudo somente em última instância, mediar a produção de valores-de-uso. Ainda neste caso o embasamento ontológico estrutural é constituído por posições teleológicas e por séries causais que estas colocam em movimento. O conteúdo essencial da posição teleológica, nesse momento por falar em termos gerais e abstratos, é a tentativa de induzir outra pessoa (ou grupo de pessoas) a cumprir uma posição teleológica concreta. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 55-

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6)

O meio necessário para a realização da finalidade surgiria, desse modo, da

posição teleológica que tem por objetivo levar cada indivíduo do grupo a um

comportamento adequado, ou seja, que execute com a maior precisão possível as

ações que lhes foram atribuídas, os objetivos se voltariam, assim no interior de tal

ação à consciência dos indivíduos que compõem o grupo. Todavia, não se

poderia afirmar que as posições teleológicas secundárias constituem fato novo,

algo que apareceria apenas com os processos superiores da prática social. O

desenvolvimento do trabalho pela dinâmica e também pelas tendências internas

necessárias à execução do trabalho, faria com que surgisse, em suas formas

mais complexas da atividade prática humana, as posições secundárias. Por

exemplo, essas posições poderiam ser observadas na caça do período

paleolítico, em que a periculosidade dos animais a serem caçados tornaria

necessária a cooperação de um grupo de homens, sendo assim, o que faria com

que eles necessariamente dividissem entre si as diversas funções a serem

cumpridas para que o resultado fosse bem sucedido. Assim, para o pensamento

lukacsiano já nos períodos remotos da prática laboral “[...] deveria existir uma

posição teleológica precedente que determinava o caráter, o papel, a função, etc.

das particulares posições concretas e reais cujo objetivo era um objeto natural.”

(LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 56)

Na verdade haveria no trabalho primitivo, um momento subordinado às

necessidades de organização da dinâmica laboral, tal princípio mostraria a

diferença necessária entre a posição teleológica primária e a secundária por que

com o desenvolvimento da sociedade as posições teleológicas secundárias

passariam a ter um papel preponderante na determinação das relações sociais.

Sendo assim, nas práticas mais avançadas as posições teleológicas secundárias

revelar-se-iam mais abstratas, à medida que não se encontram mais vinculadas à

atividade laboral, não obstante permaneçam em constante contato com a

dimensão da produção. Também denominadas posições sócio-teleológicas

superiores, tais posições que, num momento posterior dariam origem à moral, à

ética, etc., portanto, também nas formas mais primitivas do trabalho as duas

posições já se encontrariam. No entanto, as posições cujo objeto seria a

consciência dos homens, no momento da prática social humana, elas estariam

em um segundo plano no interior do processo de trabalho. Logo, as posições

secundárias não se manifestariam nas origens independentemente da ação

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imediata sobre qualquer ente natural; seria preciso esclarecer essa idéia para que

se tenha dimensão exata das formulações de Lukács em relação à diferença

entre as formas superiores com a forma originária da prática social por que seria a

partir delas que se poderia determinar a gênese das ações políticas e igualmente

as bases para se compreender o conjunto dos fenômenos ideológicos.

Justamente, a questão não poderia ser elaborada normalmente da mesma

forma entre as práticas sociais de tipo superior e as que se encontrariam em um

tempo mais primitivo da dimensão sócio-histórica humana que, via de regra,

baseia-se na noção de uma aleatoriedade ou ainda de uma descontinuidade das

formas superiores em relação à base originária. Assim, sobre as formas

superiores observar-se-ia uma autonomia de determinadas dinâmicas intrínsecas

ao complexo originário porque realizam por intermédio de uma crescente

diferenciação com a estrutura originária. Tal distanciamento, contudo, não implica

necessariamente a negação ou ainda uma separação da base originária, pois

compreeende-se aqui a relação necessária entre homem e natureza, também

seria necessário compreender que segundo o pensamento lukacsiano a crescente

diferenciação ocorreria sempre sobre essa base à medida que transforma as

formas com que seriam estabelecidas essas relações, as tornaria mais complexas

e mais socialmente mediadas. Escreve Lukács a respeito:

Como já vimos, o traço mais importante destes desenvolvimentos é que as categorias específicas do novo grau do ser vão assumir nos novos complexos uma supremacia sempre mais acentuada em relação aos graus inferiores, nos quais, todavia continuam apoiando materialmente a sua existência. Assim ocorre na relação entre natureza orgânica e inorgânica, e destarte acontece quanto à relação entre o ser social e os dois graus do ser natural. Tal alargamento das categorias intrínsecas a um grau do ser tem lugar sempre mediante uma crescente diferenciação, já que estas se tornam sempre mais autônomas, entretanto em sentido relativo – no interior dos respectivos complexos de um tipo de ser. (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 58)

À proporção em que se esclareceriam os traços gerais que poderiam ser

identificados como o processo de desenvolvimento do ser social, as posições

teleológicas primárias no interior do complexo do trabalho remeteriam quase que

diretamente à referência anterior acerca do caráter de modelo do trabalho como

uma “identidade de não-identidade”:

Na medida em que o trabalho pouco a pouco vai se desenvolvendo, introduz séries inteiras de mediações entre o homem e o fim imediato que ele em última análise persegue. No trabalho se tem destarte uma diferenciação, presente já em seu início, entre finalidades imediatas e finalidades mais mediadas. [...] Uma prática social é possível apenas quando tal comportamento tornou-se realidade geral na sociedade. É óbvio que nesta expansão das experiências laborais surgem relações e

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estruturas totalmente novas, entretanto isso não muda a coisa quanto ao fato que tal distinção entre fatos imediatos e mediados, mesmo na sua existência simultânea que implica uma necessária ligação, uma ordem, uma preeminência, uma subordinação, etc., nasceu do trabalho. (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 103)

Contudo, seria preciso que se tenha cautela, pois, num instante mais imediato

poderia parecer que, desse modo, o pensamento lukacsiano reduziria toda prática

social à simples derivação da forma originária do trabalho, todavia não é isso que

acontece. Para esclarecer a determinação do trabalho como modelo e complexo

preponderante da dinâmica de desenvolvimento do ser social seriam necessários

que se reporte a duas idéias que Lukács consideraria fundamentais no

pensamento de marxiano, ou seja, a idéia de “determinação reflexiva” e à noção

de “momento preponderante” (Übergreifendes Moment) como conexão decisiva

das categorias no interior do complexo. Assim, seria afirmado diretamente o

trabalho como pressuposto dos desdobramentos alcançados nas fases

posteriores da dinâmica de desenvolvimento humano, por conseguinte, também

se afirma o trabalho como complexo que estabeleceria, pela sua própria dinâmica,

a gênese de uma série de outras categorias que se revelariam no processo

histórico de desenvolvimento do ser social. Sendo assim, o aprimoramento de

tendências intrínsecas à sua dinâmica constituir-se-ia em grande medida no

caráter geral das formas superiores da prática social que, determinaria ao

trabalho a gênese ontológica das categorias necessárias do ser social. Destarte, o

trabalho se apresentaria como o “complexo preponderante” tanto da gênese

quanto da sua dinâmica de desenvolvimento. Para que se compreenda, assim,

com maior precisão o sentido do trabalho como modelo das práticas sociais,

tomemos como exemplo o estudo de Lukács a respeito da origem da linguagem e

do pensamento conceitual a partir do complexo do trabalho:

Vimos como a posição teleológica desempenhada conscientemente provoca uma distância no espelhamento da realidade enquanto essa distância faz nascer a relação sujeito-objeto no verdadeiro sentido do termo. Ambas levam simultaneamente ao surgimento da compreensão conceitual dos fenômenos da realidade e à sua adequada expressão por intermédio da linguagem. Para entender corretamente no plano ontológico a gênese dessa complicadíssima e intrincadíssima interação, seja durante a própria gênese como no seu ulterior desenvolvimento, devemos ter presente antes de tudo que, onde quer que tenhamos que lidar com autênticas transformações do ser, o contexto total do complexo em questão é sempre primário em relação a seus elementos. Estes podem ser compreendidos somente a partir do seu respectivo co-agir no interior do complexo do ser, por conseguinte seria esforço em vão querer idealmente reconstituir o complexo movendo-se a partir de seus elementos. Por tal via se chegaria a pseudo-problemas como aquele do horrível problema escolástico em que se pergunta se a galinha é – ontologicamente – anterior ao ovo. É um problema que hoje poderíamos

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tomar quase como um erro, contudo é necessário não esquecer que a questão de saber se a palavra surgiu primeiro que o conceito, ou vice versa, não é sequer um milímetro próxima da realidade, ou seja, racional. De fato palavra e conceito, linguagem e pensamento conceitual são elementos solidários do complexo que se chama ser social, de forma que somente podem ser compreendidos na sua verdadeira essência pelo vínculo ontológico com este, por intermédio do reconhecimento das reais funções que exercem no interior desse complexo. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 57)

Poder-se-ia falar, portanto, de uma sincronia em relação ao aparecimento

dessas categorias em relação ao trabalho porque o pôr teleológico, como visto

anteriormente, criaria a base para a existência de tais categorias e ainda do

distanciamento entre sujeito e objeto, entre espelhamento e a realidade, num

primeiro instante e, a linguagem e o pensamento conceitual num segundo

momento. De tal modo que se desenvolveriam com a própria dinâmica laboral e,

assim sendo, linguagem e pensamento conceitual seriam compreendidos

corretamente à proporção que seriam pensados no interior de um complexo

maior, pois ambos apareceriam como elementos intrínsecos a esse mesmo

complexo. Noção essa apresentada, por conseguinte, no início do capítulo “O

Trabalho” (LUKÁCS, 1981), onde se afirma que “o contexto total do complexo em

questão é sempre primário em relação a seus elementos.” Aqui, destarte, seria

fundamentada uma necessária inter-relação entre essas categorias o que poderia

também ser aplicado a relação dessas com o complexo do trabalho.

Conseqüentemente,

Deduzir geneticamente a linguagem ou o pensamento conceitual a partir do trabalho é sem dúvida possível, uma vez que a execução do processo laboral põe ao sujeito do trabalho exigências que podem ser satisfeitas somente à medida que se reestrutura simultaneamente em termos de linguagem e pensamento conceitual, as faculdades e possibilidades psicofísicas até aquele momento presentes; destarte a linguagem e o pensamento conceitual não podem ser compreendidos em termos ontológicos nem em si mesmos, se não se pressupõe a existência de exigências nascidas a partir do trabalho, nem tão pouco como condições que fazem surgir o processo laboral. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 57-8)

Com o processo de desenvolvimento do ser social, a linguagem se colocaria

como vinculo imediato com a sua base genética, o trabalho, e acabaria por

desencadear uma dinâmica de desenvolvimento relativamente autônoma; porém,

não se estaria diante de uma contradição com o que foi afirmado acima, ou seja,

que a linguagem se autonomizaria radicalmente da base originária, o fato seria

que tal autonomia seria sempre relativa. Em Lukács, assim sendo, a linguagem

seria determinada como “base indispensável” do ser social realizada pela pré-

condição posta pelo trabalho, e, num segundo instante ele afirmaria que a

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linguagem é “dotada de vida própria” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 101), ainda segundo

Lukács tais categorias são inerentes ao complexo global do ser social e, estariam

em uma interação de recíproca determinação. Por conseguinte, não importaria o

grau de distanciamento com que a autonomia poderia se apresentar em dadas

circunstâncias, o que importa seria o fato de que ela mantém sempre, em última

análise, um vínculo necessário com a base real da atividade prática humana:

[...] uma vez surgidos a linguagem e o pensamento conceitual por necessidades do trabalho, o seu desenvolvimento se apresenta como ininterrupta, necessária ação recíproca, e o fato que o trabalho continue a ser o momento preponderante não só não suprime esta interação, todavia a reforça e intensifica. Da qual segue necessariamente que no interior de tal complexo o trabalho influi continuamente sobre a linguagem e o pensamento conceitual, e vice versa. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 58)

A diferença, por conseguinte, entre esses momentos do complexo estaria no

modo como se realizariam as conexões entre esses elementos no interior da

totalidade do ser social. Assim, nenhuma dessas duas categorias oriundas das

condições engendradas a partir do trabalho poderia ser atentada como

epifenômeno desprovidos de qualquer poder sobre a estrutura e a dinâmica que

as engendra. Logo, seria partes constitutivas importantes nos desdobramentos

dos processos específicos da totalidade do ser social o que significaria que tais

elementos agem de forma decisiva sobre estrutura geral do trabalho. Segundo

Lukács, conseqüentemente,

[...] em todo sistema de interação no interior de um complexo existente, destarte como em toda interação, existe um momento preponderante. Esse caráter é adquirido pelo simples perfil ontológico, por prescindir de qualquer hierarquia de valor. Em inter-relações deste tipo os momentos singulares podem condicionar-se reciprocamente, como no caso antes citado da palavra e do conceito, em que nenhum dos dois pólos pode estar presente sem o outro, ou se tem um condicionamento em que um momento é o pressuposto para que o outro venha à vida, sem que essa relação seja invertida. Essa última é a relação que se institui entre o trabalho e os outros momentos do complexo constituído pelo ser social. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 57)

Compreender-se-ia o “momento preponderante” como o nexo que

estabeleceria a direção da dinâmica do desenvolvimento do ser social complexo

esse que, por sua vez, possui a primazia na determinação de um dado ser.

Haveria, portanto, a existência de dois níveis possíveis de interação entre as

categorias, que seriam determinados a partir das particularidades das conexões

com que tais categorias se poriam no interior de tal complexo. Existe, assim, uma

anterioridade do trabalho em relação aos demais complexos que, não deveria ser

entendida como uma anterioridade temporal apenas, não obstante essa também

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seja uma atribuição necessária, porém, haveria necessariamente uma prioridade

ontológica. O maior destaque, conseqüentemente, seria aquele em que uma

determinada categoria revelar-se-ia como conditio sine qua non para a existência

das demais, ou seja, um momento cuja anterioridade se constituiria como

condição necessária para a sua gênese tanto quanto de sua existência. No caso o

trabalho em relação ao complexo do ser social. Lukács seria conclusivo ao

intercalar sinteticamente a relação existente entre determinação reflexiva e

momento preponderante:

[...] a interação tem muitos aspectos e se articula de diferentes modos; entretanto é também claro que, nessa relação entre determinações reflexivas tão ricamente articuladas, revela-se com toda proeminência o traço fundamental da dialética materialista: nenhuma interação real (nenhuma real determinação reflexiva) existe sem momento preponderante. (LUKÁCS, Vol. I,1981, p. 312)

Precisamente, a definição lukacsiana esclareceria a categoria do trabalho como

modelo das práticas sociais superiores do mesmo modo da gênese das

categorias do ser social. Assim sendo, compreender-se-ia esse complexo no

interior da perspectiva da categoria do trabalho como modelo das práticas sociais,

à medida que determinaria o conjunto articulado de categorias que se

determinariam entre si, pois seria estruturado por uma dada categoria que atuaria

como momento preponderante em seu interior. Logo, não se compreenderia o

complexo trabalho como uma simples transposição de categorias próprias à

atividade laboral para outras dimensões da prática social. A estrutura originária

do trabalho seria, na verdade, a fundamentação efetiva da dimensão de possíveis

desdobramentos do ser social, ou seja, somente a estrutura forneceria a lógica

que viabilizaria sua dinâmica. Não se deveria, assim, entender tal formulação de

um modo determinista como uma argumentação acerca da existência de uma

necessidade absoluta no interior do complexo do trabalho que iria pré-determinar

mecanicamente os desdobramentos específicos da dinâmica de desenvolvimento

do ser social. Lukács esclarece quando afirma que

O caráter dialético do trabalho como modelo da prática social aparece aqui exatamente no fato desta última nas suas formas mais evoluídas apresentar muitos desvios em relação ao próprio trabalho. [...] Precisamente por isso é necessário sublinhar continuamente que os traços específicos do trabalho não devem ser transferidos de qualquer modo para formas mais complexas da prática social. A identidade de identidade de não-identidade, a que chamamos a atenção várias vezes, que na sua forma estrutural remete, destarte nós acreditamos, ao fato que o trabalho realiza materialmente a relação radicalmente nova da inter-relação orgânica com a natureza, enquanto que nas formas mais complexas de prática social, na maior parte das vezes esse intercâmbio orgânico com a natureza, esse embasamento da reprodução do homem

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na sociedade, o pressupõem. (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 65-6)

Lukács desenvolveria o eixo principal de sua tese à proporção esclareceria que

as formas posteriores da prática social teriam sua origem na determinação da

estrutura básica do complexo do trabalho. Elas se desenvolveriam, portanto, sob

uma lógica imanente em que a estrutura poderia ser apreendida na medida em

que se considerariam as relações gerais existentes entre os elementos que

constituem esse complexo. Por intermédio, conseqüentemente, da dimensão

ontológica descoberta por Marx, compreender-se-ia o trabalho como complexo

modelo de toda prática social na medida em que a atividade laboral revelar-se-ia

como pressuposto de toda dimensão humano-social em que os estágios

superiores do desenvolvimento do ser social “tem como premissa ontológica a

forma originária no trabalho” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 50). Haveria, por

conseguinte, a partir do trabalho formas de cada vez mais sociais de mediação

das relações originárias, não obstante sem que se perca o vínculo necessário

com a base natural, da qual a dimensão primeira seria o complexo do trabalho em

cuja dinâmica o homem se realizaria. Lukács demonstraria a veracidade dessas

assertivas por intermédio da questão da relação entre conhecimento e prática na

forma originária do trabalho igualmente nas formas superiores da prática social à

medida que discute a gênese da ciência a partir do trabalho, e ainda da

determinação da gênese das categorias do dever-ser e do valor. Através dessas

análises seriam esclarecidas com mais precisão a dimensão da importância

daquilo que o pensamento lukacsiano denominaria como a compreensão

“ontológico-genética” das categorias do ser social.

Nas fases superiores a dinâmica de desenvolvimento do complexo do ser

social fundamentar-se-ia um conjunto de categorias presentes na forma originária

do trabalho. O Pensamento lukacsiano analisaria por intermédio de postulações a

respeito da gênese do conhecimento no homem e ainda na forma de seu

desenvolvimento para alcançar, assim, níveis mais complexos até as formas

eminentemente científicas do conhecimento, para então, afirmar a validade do

trabalho como modelo das formas sociais superiores. A ciência, sendo assim, à

medida que se verificaria sua importância em nível das práticas sociais superiores

não se eximiria dessa regra, pois, também a sua gênese seria compreendida

como desenvolvimento de tendências inerentes ao complexo trabalho em sua

forma originária. Lukács escreve o seguinte a respeito: “É, conseqüentemente, da

intrínseca tendência da busca dos meios em fazer-se autônoma, durante a

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preparação e execução do processo laboral, que se desenvolve o pensamento

orientado cientificamente e que mais tarde dá origem às diversas ciências

naturais.” (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 32)

O caráter mais pontual dessa gênese se apresenta nos seguintes termos:

[...] é preciso ainda enfatizar que a busca dos objetos e processos naturais que na criação dos meios precede a posição da causalidade está constituída em sua essência por verdadeiros atos cognitivos, mesmo que durante muito tempo não se tenha tido consciência disso, e, desse modo, contêm em si o início, a gênese da ciência. [...] Aqui podemos apenas observar provisoriamente que toda experiência e emprego de nexos causais, ou seja, toda posição de uma causalidade real, no trabalho figura sempre como meio para um fim singular, todavia possui objetivamente a propriedade de ser aplicável a outro, mesmo em algo que a primeira vista pareça completamente heterogêneo. Embora por muito tempo se tivesse disto somente um conhecimento prático, o emprego com êxito em um novo campo significa que de fato foi realizada uma abstração correta, que na sua objetiva estrutura interna já contém em si alguns traços importantes do pensamento científico. (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 30)

Posto que ainda restritas às práticas voltadas à dinâmica laboral seriam, assim

sendo, enquanto aponta para a existência da tendência à generalização do

conhecimento no interior da pratica laboral humana, que constituiria, segundo

Lukács, a gênese do pensamento científico. O desenvolvimento do complexo do

trabalho leva a uma crescente autonomia das praticas que antecedem o trabalho

que, se caracterizaria pela fixação conhecimentos específicos aplicáveis a outras

práticas, circunstâncias, etc., e também por uma separação sempre crescente

entre o conhecimento e a atividade prática. Lukács determinaria com maior

precisão sua linha de raciocínio desenvolvida acima, na seguinte passagem:

O fato de que, em conexão com um dado trabalho concreto, somente um espelhamento concreto de relações causais colocadas em questão pelo objetivo do trabalho pode fazer com que essas se transformem como é absolutamente necessário, em relações causais postas, não leva apenas a um constante controle e aperfeiçoamento dos atos espelhados, contudo ainda à sua generalização. Na medida em que a experiência de um trabalho concreto é utilizada em outro trabalho, se produz gradualmente uma relativa autonomização, ou seja, são generalizadas e fixadas determinadas observações, que não são mais referidas de modo exclusivo e direto a um procedimento singular, todavia adquirem certo caráter de generalidade enquanto observações que concernem a eventos da natureza em geral. São essas generalizações que põem os germens da futura ciência, como por exemplo, para a geometria e a aritmética, cujos inícios se perdem nas notas do tempo. Mesmo por não haver uma clara consciência, algumas destas generalizações iniciais contêm já princípios decisivos das sucessivas ciências realmente autônomas. (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 59)

A partir da atividade laboral em se verificaria o distanciamento sempre

crescente entre os espelhamentos dos “procedimentos singulares” intrínsecos ao

processo de trabalho. Tais espelhamentos que daí decorreriam assumem uma

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certa autonomia perante a prática imediata e, sendo assim, adquiriria “um certo

caráter de generalidade” porque desvelariam leis gerais do movimento natural e

ainda desenvolvem procedimentos válidos às diversas atividades laborais. Esses

procedimentos primários oriundos do processo do trabalho seriam os germens

daquilo que com o seu posterior aprimoramento, iriam formar os princípios gerais

da constituição do pensamento científico. Para o pensamento lukacsiano,

portanto, a idéia de quantidade ou proporção seria uma abstração que advém de

experiências das diversas atividades laborais empreendidas pelo homem que, por

sua vez se destacaria dos procedimentos singulares do trabalho. De outra forma,

a partir da experiência laboral, a quantidade e igualmente a proporcionalidade

presentes nos objetos se caracterizariam na consciência como generalidade

capaz de se orientar às mais variadas atividades com o quais o homem lida na

sua prática.

Portanto, a dinâmica causal deveria ser conhecida da “forma mais livre possível

dos pré-juízos subjetivos, das projeções da subjetividade no objeto, etc.”

(LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 393) Assim, em tais generalizações, para o pensamento

lukacsiano seriam os “germens das futuras ciências”, poder-se-ia encontrar outro

aspecto que seria por si um princípio necessário à ciência, ou seja, a

desantropomorfização que, seria como tal um atributo necessário à atividade

prática humana; assim sendo, o homem em sua atividade laboral capturaria da

forma mais precisa possível os nexos causais necessários à realização de sua

finalidade, nexos esses que atuariam regidos por leis que independeriam

completamente da consciência dos homens, uma vez que seriam leis naturais.

Lukács exemplificaria tal condição quando se refere ao trabalho sobre uma pedra

e observa que mesmo nessa atividade rudimentar

[...] cada movimento singular no processo de afilamento, raspagem, etc., deve ser pensado corretamente (deve se apoiar sobre um correto espelhamento da realidade), corretamente orientado à finalidade, corretamente executado com as mãos, etc. Se isso não se verificar, a causalidade posta cessará a cada instante de operar, e a pedra retornará à sua condição de mero ente natural, sujeito à causalidade natural, que não tem mais nada em comum com os objetos e os meios do trabalho. (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 44)

Portanto, o desenvolvimento das tendências intrínsecas à dinâmica interna

própria à estrutura do trabalho poderia ser determinado como sendo a gênese do

processo de formação do pensamento científico. Tais princípios intrínsecos à

dinâmica do trabalho, à generalização do conhecimento e a

desantropomorfização dos espelhamentos, desenvolvem o que o pensamento

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lukacsiano afirmaria como características fundamentais da ciência. Porém, tais

princípios em sua forma originária apresentariam características qualitativamente

distintas das formas científicas, todavia, isso não impediria de se considerar o

desenvolvimento de tais princípios como a gênese necessária do pensamento

científico. Logo, na atividade laboral o homem transformaria o mundo na medida

em que o conhece; assim teria a configuração ainda que resumida da dinâmica de

instauração do pensamento científico que, surgiria a partir das tendências e

processos originários próprios do trabalho.

O aperfeiçoamento dos espelhamentos, sendo assim, levaria a um

desenvolvimento tal que em um dado momento o próprio conhecimento se

desdobraria em algo autônomo, o que Lukács, por sua vez, designaria em alguns

momentos como processo de auto-reprodução da consciência. Considerar-se-

iam, assim, aqui as configurações mais desenvolvidas do a que se encontraria na

própria atividade laboral em que a relativa autonomia de desenvolvimento do

conhecimento, não obstante exista, seria algo ainda um vislumbre se comparada

às formas superiores, como a, por exemplo, presente na ciência.

Em nível da ontologia lukacsiana, afirmar a existência de um processo de auto-

reprodução do conhecimento não significaria atestar uma contradição ou ainda

uma diferenciação com o que foi analisado a respeito da atividade laboral, em que

se encontraria o vínculo entre a formação do conhecimento e a prática, ou seja, o

fundamento prático do conhecimento; não se trata de uma afirmação, portanto,

que abordaria o processo de conhecimento científico como algo independente da

prática, todavia de uma dinâmica que estabeleceria uma forma distinta dessa

relação. A respeito Lukács escreve o seguinte:

Tudo que temos observado nos basta para revelar a situação paradoxal pela qual, vinha a existir no trabalho, para o trabalho e por intermédio do trabalho, a consciência do homem empreende a marcha da própria auto-reprodução. Podemos dizer assim: a autonomia do espelhamento do mundo externo e interior é um pressuposto indispensável para que nasça e se desenvolva o trabalho. E, por conseguinte, a ciência, a teoria como figura auto-operante e independente das originárias posições teleológico-causais do trabalho, mesmo quando chega ao máximo grau de desenvolvimento, não pode mais romper completamente essa ligação de última instância com a própria origem. (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 60)

Assim sendo, haveria uma “dupla relação de ligação e independência” que,

segundo Lukács se estabeleceria nessa dinâmica de desenvolvimento que se

estende das tendências relativas ao trabalho até a formação do pensamento

científico, não obstante encontrar-se-ia nele refletido “um importante problema

que a reflexão, a consciência e a autoconsciência da humanidade no curso da

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história continuamente propuseram resolver: o problema da teoria e da prática”

(LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 60). Poder-se-ia dizer que a ciência torna-se independente

das “posições teleológico-causais do trabalho”, mas manteria com elas um vínculo

necessário particularmente acerca da estrutura geral da relação entre

conhecimento e prática. Precisamente, aqui a identidade se referiria a essa

estrutura geral que remete à questão da relação entre a teoria e a prática. A

questão seria saber como essa relação se coloca na dinâmica laboral e quais

transformações que a relação entre teoria e pratica sofre à medida que surge a

atividade científica.

Dever-se-ia, por conseguinte, observar o fato de que, pela própria dimensão

ontológica o trabalho, a relação entre a prática e a teoria seria colocada em nível

de uma determinação recíproca entre o espelhamento e o pôr dos nexos causais.

Assim, para a análise dessa questão partir-se-ia do trabalho; nele a teoria e

prática se revelaria como dimensões interligadas, ou seja, como elementos de

uma única dinâmica. Tal questão teria uma profunda relação com o que foi

analisado a respeito da determinação recíproca existente entre teleologia e

causalidade:

Pela coexistência ontológica entre teleologia e causalidade na conduta laboral (prática) do homem, e apenas aqui, no plano do ser, teoria e prática são, dada a sua essência social, momentos de um único complexo do ser, aquele social, vale dizer que só se pode compreendê-las adequadamente partindo desta relação recíproca. (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 63)

Sobre a relação entre conhecimento e prática no interior da dinâmica laboral,

poder-se-ia afirmar que a “[...] estrutura originária do trabalho tem o seu correlato

no fato que a realização das séries causais postas fornece o critério para

estabelecer se pô-la foi correto ou errado. Isto é, no trabalho, tomado em si

mesmo, é a prática que dá o critério absoluto da teoria.” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p.

66)

A prática poderia, assim, ser determinada como critério para os espelhamentos

que acompanham a atividade laboral, a que segundo Lukács seria descrito pela

assertiva de que a prática se revelaria como “critério absoluto da teoria”, o pôr em

movimento das séries causais, no trabalho, estabeleceria o critério para afirmar se

os espelhamentos dos nexos dos objetos seriam corretos ou não. O que vale

dizer que os atos da atividade laboral são afirmados da forma mais simples, ou

seja, pela contraposição entre falso e verdadeiro, pelo fato de “todo erro cognitivo

concernente à causalidade existente-em-si no processo do pôr conduz

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inevitavelmente à ruína de todo o processo laboral.” (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 63)

Destarte, nas formas primeiras do trabalho teria lugar uma relação quase imediata

entre teoria (espelhamento) e prática. Tal determinação é justificada mediante a

seguinte caracterização:

[...] no trabalho o que conta é colher de modo correto um fenômeno natural concreto quando a sua constituição está em ligação necessária com o fim laboral teleologicamente posto. Acerca dos nexos menos diretos o trabalhador pode até ter as idéias mais errôneas; basta que haja um espelhamento correto daqueles mais imediatos, ou seja, que as idéias não perturbem o bom resultado do processo de trabalho (relação entre trabalho e magia). (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 64)

Assim sendo, poder-se-ia afirmar que a teleologia influiria decisivamente no ato

do pôr, assim como o espelhamento da realidade desempenha, desse modo, um

papel preponderante na dinâmica de formação do conhecimento durante o

trabalho. Logo, nas posições laborais originárias, a relação entre teoria e prática

estaria posta na sua forma imediata, em que “o caráter cognitivo do ato se

revelaria com mais pureza.” Conseqüentemente, no trabalho os espelhamentos

produzidos nessa dinâmica seriam determinados pelas finalidades imediatas de

sua atividade e ainda estariam em estreita relação com a produção de

determinados objetos, pois, a teleologia teria na estrutura prática dos

espelhamentos um papel decisivo, de forma que “no trabalho o homem se

encontra afrontado com o seguimento parte do ser-em-si da natureza que está em

ligação direta com o fim do trabalho” (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 64) O critério de

validade, no entanto, das representações que guardariam uma relação direta

com os nexos causais necessários à realização da finalidade ao se considerar os

objetivos do próprio trabalho, nesse caso os espelhamentos estariam diretamente

ligados a ele o que deixa em segundo plano a presença de falsas

representações. À medida que essas representações não intervenham no

processo e seu resultado se torne inviável. Precisamente por implicar uma relação

direta com o pôr teleológico de um dado objeto, em nível da dinâmica própria do

trabalho, os espelhamentos poderiam conter falsas representações juntamente

com o correto conhecimento de determinadas conexões específicas do complexo

da natureza; a relação entre a magia e o trabalho, nesse sentido, seria

significativa. Nas sociedades antigas a relação entre espelhamentos e uma série

de rituais que não guardavam nenhuma relação direta com a recta apreensão

como efetiva ação sobre os nexos naturais.

Pouco importa neste momento se os homens que a pensaram e usaram compreendessem ou não sua essência real. O intrincado desses

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conceitos com as idéias mágicas e míticas, que continua na história por muito tempo, mostra como que na consciência dos homens o agir finalisticamente necessário, a sua verdadeira preparação no pensamento e sua execução, podem suscitar continuamente formas superiores de prática por misturar-se com idéias falsas acerca de coisas que não existem, entendidas como verdadeiras, como embasamento último. (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 59)

Para o pensamento lukacsiano, “toda posição teleológica é em última análise

socialmente determinada e a do trabalho o é de modo bastante explícito mediante

a necessidade.” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 64) Do mesmo modo, a determinação

teleológica na dinâmica de construção do conhecimento, em nível de uma

estrutura geral permaneceria atuante nas formas superiores. Não obstante, a

representação dos nexos da realidade e também dos procedimentos necessários

para a ação laboral acolhe em seus conteúdos e necessidades nascidas na

sociedade em que tais indivíduos vivem e, conseqüentemente, faria com que o

pôr teleológico estivesse orientado para a satisfação de um conjunto de

necessidades, não apenas de natureza biológica, mas basicamente social.

Destarte, em nível do espelhamento se faria presente concepções diretamente

vinculadas de tais representações sociais mais gerais, ou seja, conteúdos mais

diretamente ligados à forma da organização social e não diretamente vinculadas

aos nexos causais voltados à dinâmica necessária à transformação do objeto.

Sendo inevitável, portanto, que em nível da orientação prática do pôr teleológico

estivessem presentes traços de intenções sociais que não possuem nenhuma

relação necessária com espelhamento da realidade natural. Tais traços poderiam

ser os mais díspares, ou seja, poderiam ir desde a presença de falsas idéias,

como no caso da magia nas sociedades primitivas, até categorias que visam

suscitar nos outros homens atitudes específicas, ou seja, posições teleológicas

secundárias.

Tais mediações, em nível do trabalho não prejudicariam a efetivação das

finalidades postas pela atividade humana, e nessa medida, todavia apenas nessa

medida, manteriam como válido a prática como critério de julgamento para os

espelhamentos corretos da realidade. Por conseguinte, os interesses sociais na

dinâmica própria de construção do conhecimento seriam válidos tanto para as

posições teleológicas presentes no trabalho quanto para as existentes nas formas

superiores da prática social:

Nas posições de causalidade de tipo superior, ou seja, mais sociais, é, por conseguinte inevitável uma intervenção, um influxo do pôr teleológico sobre as reproduções espirituais. Mesmo quando o ato é constituído como ciência, como fator relativamente autônomo da vida social, é uma

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ilusão, se considerarmos a coisa em termos ontológicos, crer que se possa obter uma reprodução completamente imparcial do ponto de vista da sociedade, das cadeias causais aí imperantes e, por esse meio, também das cadeias naturais. É uma ilusão crer que se possa alcançar uma forma tão direta e exclusiva de confronto entre natureza e homem mais pura que a existente no próprio trabalho. (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 64)

O conhecimento em relação à prática, com desenvolvimento da produção

científica à medida que se autonomizariam, as categorias “ontologicamente

intencionadas” apareceriam como mediadoras do processo de reprodução do

conhecimento tanto que adquiririam certo predomínio acerca da relação entre

homem e natureza. Em nível da ciência, em que tais conhecimentos atingiriam um

grau mais elevado de generalização, não existiria a possibilidade da ausência de

“categorias ontologicamente intencionadas” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 64). Haveria,

portanto, o reconhecimento de que toda teoria teria por base a sociabilidade do

homem, assim como as idéias que eles constroem em torno da natureza e de si

mesmos seriam historicamente determinadas por que essas uma vez constituídas

deixariam necessariamente de influenciar a dinâmica própria do conhecimento.

Entretanto, tal afirmação não poderia ser entendida em sentido simplificador, ou

seja, de caráter reducionista que abordaria as formas de produção científica como

conhecimento voltado aos interesses de dominação de uma dada classe social

sobre as outras. O que não impediria a motivação individual em determinado

momento de se colocar em certa posição de indiferença em face de tais

interesses sociais, tanto que, isso não significaria afirmar que representação seja

uma construção subjetivista muito menos se aproximaria de uma afirmação que

nega a possibilidade de se conhecer o “ser-precisamente-assim” dos fatos

naturais. Por outro lado seria possível que em dadas situações a posição de

maior objetividade na dinâmica própria de produção do conhecimento seja uma

exigência histórico-social porque teria que ser plenamente condizente com os

próprios interesses predominantes em uma dada sociedade.

Justamente, à medida que se fala de um conhecimento ou do caráter

desantropomorfizante da ciência como posição de indiferença em relação aos

interesses, seria fundamental esclarecer que tal indiferença não seria da mesma

envergadura que a que se encontraria na natureza em relação às finalidades

humanas:

A mesma eventual indiferença dos homens nos confrontos das intenções desse tipo tem apenas o nome em comum com a indiferença citada anteriormente sobre o material natural. Referida à natureza, a indiferença é apenas uma metáfora com que se quer indicar a sua perene,

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imodificável, totalmente neutra heterogeneidade a respeito das finalidades humanas, enquanto a indiferença dos homens para com estas intenções é um modo concreto de se posicionar, que tem motivações sociais e individuais concretas e que em dadas circunstâncias é modificável. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 63-4)

Para Lukács, a afirmação da prática como critério da teoria seria válida tanto

para o trabalho quanto para toda atividade em que “a prática humana se encontra

confrontada exclusivamente com a natureza”, como seria, assim sendo, o caso

dos experimentos nas ciências naturais. Para se explicitar tal afirmativa se faz

necessário retornar à questão da relação entre teoria e prática existente no

trabalho porque seria com as formas superiores que se poderia esclarecer algo

acerca do modo como os “interesses sociais” se revelariam na dinâmica própria

de formação do conhecimento científico. Tal forma da atividade científica possui

um caráter muito próximo daquele que se encontraria na atividade laboral porque

é através do pôr em movimento de determinados objetos que se procura

descobrir se determinadas conexões causais seriam válidas e se poderiam ser

válidas para outras formas da prática social-humana:

Neste caso não apenas os critérios que comparecem no próprio trabalho permanecem válidos no imediato, contudo adquirem até uma forma mais pura: o experimento pode fornecer o juízo sobre o certo ou errado com a mesma clareza do trabalho, ou melhor, o elabora em um mais alto nível de generalização, aquele de uma interpretação formulável matematicamente dos nexos quantitativos fatuais que definem esse complexo fenomênico. (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 67)

Haveria desse modo, uma profunda relação entre tais procedimentos, a ponto

de os experimentos científicos à proporção que seria desenvolvido, por sua

proximidade com a prática laboral, influenciar decisivamente para o

aprimoramento dos procedimentos do trabalho. Assim, o que haveria seriam

generalizações nesses procedimentos em que o critério de validade seria dado

pela verificação prática e, por outro lado tal verificação prática seria passível de

ser formulada em termos matemáticos. Não obstante, a aplicabilidade dos

avanços científicos nos processos do trabalho e ainda a similaridade da validade

do critério prático para o desenvolvimento do conhecimento, eles se diferenciam

muito acerca dos objetivos a serem alcançados. Em relação aos experimentos da

ciência, assim sendo, Lukács indica para o fato de que

[...] quando usamos o seu resultado para aperfeiçoar o próprio processo laboral, não há problema em assumir a prática como critério da teoria. A questão torna-se mais complicada quando se quer usar o dado cognitivo assim obtido para ampliar o conhecimento como tal. Nesse caso, não se trata simplesmente de saber se um determinado nexo causal concreto esteja apto a favorecer em uma dada constelação ao mesmo tempo concreta e determinada, uma determinada e concreta posição

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teleológica, todavia se quer também obter uma ampliação geral, um aprofundamento, etc., do nosso conhecimento da natureza em geral. (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 67)

O experimento seria realizado na ciência, sendo assim, à medida que se

buscaria uma generalização, ou seja, daria lugar a um processo de auto-

reprodução do próprio conhecimento. Lukács esclarece que no trabalho o

espelhamento se encontraria em conexão aos objetos que facilitariam à

efetivação da finalidade, motivo esse que faz com que as falsas representações

em certa medida não interfiram de forma direta na atividade laboral, posto que,

elas se revelariam mescladas com os espelhamentos válidos. “[...] a ciência põe

no centro do próprio espelhamento desantropomorfizante da realidade a

generalização do nexo. Vimos que isso não se encontra, diretamente, na essência

ontológica do trabalho, acima de tudo não se encontra na sua gênese [...].”

(LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 64) Para a ciência, por conseguinte, o resultado

alcançado por intermédio da experimentação

[...] deve ser compreendido na especificidade real do seu ser material, e a sua essência, assim apreendida, deve ser posta de acordo com os outros modos de ser já cientificamente obtidos. No imediato isto significa que a formulação matemática do resultado experimental deve ser integrada e completada por uma interpretação química ou biológica, etc. O que desemboca essencialmente independentemente da vontade das pessoas que o fazem em uma interpretação ontológica. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 67)

Para a experimentação científica, os procedimentos seriam executados à

proporção que se queira obter um conhecimento mais amplo acerca dos

fenômenos da natureza. Aqui Lukács explicita outra questão, ou seja, a ciência

não poderia se eximir das questões de cunho ontológico, pois se proporia a uma

compreensão mais geral acerca da natureza das coisas. Assim, os dados obtidos

através da experimentação deveriam ser considerados com outros aspectos mais

amplos da ciência, o que faria com que se ultrapassasse dessa maneira o próprio

dado ou o nexo causal obtido pela experimentação porque, assim sendo,

necessariamente levaria à questões ontológicas. O critério de validade, portanto,

não poderia se basear na prática imediata do experimento, mas necessariamente,

dever-se-ia considerar a dimensão que essas aquisições experimentais teriam na

totalidade das conquistas científicas. Lukács, por conseguinte, propõe que a

discussão acerca da verdade científica deveria ser procurada na “totalidade da

concepção física do mundo.”

A ciência não se eximiria e de receber as influências das concepções gerais

que os homens constroem acerca da natureza e igualmente de si mesmos,

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influências essas que se traduziriam questões relativas à ontologia em seus

múltiplos aspectos, porque tais questões ultrapassariam a dimensão vinculada à

relação prática imediata com a natureza. Assim, a relação entre teoria e prática, e

ainda suas conexões com as formas em que predominaria os interesses sociais,

não se apresentaria como no caso do trabalho de uma forma imediata, ainda que,

essa relação apareça de modo mais complexo porque sua característica básica

seria uma multiplicidade de mediações no interior da dinâmica de conhecimento.

A prática, pois, constituiria a base de ambas as formas de conhecimento, não

obstante mudariam radicalmente a dimensão e o caráter das indagações relativas

à natureza à medida que muda de caráter o papel da prática na dinâmica própria

de construção da teoria. Tal aconteceria uma vez que

No que diz respeito à natureza, essas questões no seu genuíno ser-em-si são completamente alheios em relação à sociedade e suas necessidades, são totalmente neutros em seus confrontos, e, contudo a ontologia que está presente na consciência não será mais indiferente em relação a nenhuma prática social, no sentido mais mediato descrito acima. A estreita ligação entre teoria e prática implica necessariamente que esta última, na sua concreta forma social de apresentar-se, sofre em grau bastante elevado o influxo das idéias ontológicas que os homens constroem acerca da natureza. A ciência, pois, quando tenta seriamente compreender de modo adequado a realidade, não pode evitar tais questões ontológicas; que isso ocorra conscientemente ou não, que a pergunta e a resposta sejam certas ou erradas, que essa negue a possibilidade de responder de maneira racional a tal pergunta, nesse nível aparece sem nenhuma importância, pois esta mesma negação, de um modo ou de outro, opera ontologicamente no interior da consciência social. E já que a prática social se desenvolve sempre em um ambiente espiritual feito de representações ontológicas, seja na cotidianidade, seja no horizonte da teoria científica, o estado de coisa por nós indicado permanece fundamental para a sociedade. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 65)

Logo, a ciência ocupar-se-ia com questões ontológicas e responderia a elas

ontologicamente, alheia ao fato de ter ou não consciência disso. É necessário,

portanto, que se aborde a profundidade da análise lukacsiana, ou seja, a própria

negação dos aspectos ontológicos operaria ontologicamente “no interior da

consciência social.” A ancoragem da ciência sobre uma base necessariamente

ontológica seria o que se poderia destacar em seus conteúdos as influências dos

interesses sociais, pois

[...] por prescindir do grau de consciência, todas as representações ontológicas dos homens são largamente influenciadas pela sociedade, e pouco importa qual o componente predominante, se a vida cotidiana, a fé religiosa, etc. Essas idéias têm na prática social uma grande presença, e chegam até mesmo a se coagular em poderes sociais. [...] Daí, derivaram, por vezes, lutas abertas entre concepções objetivamente e cientificamente constituídas e outras apenas ancoradas no ser social. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 68)

Ter-se-ia, assim que a indagação e o posicionamento ontológicos seriam

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inevitáveis para a ciência, pois seriam construídas, o que significaria que

poderiam ser “cientificamente e objetivamente fundadas” e receber influxos de

formas específicas de interesses sociais ao passo que aqui encontrar-se-ia a

afirmação da existência de posturas radicalmente distintas que as idéias

ontológicas poderiam assumir no interior da prática social. Lukács, assim,

iluminaria a questão da falsa consciência, que seria por ele compreendido como

forma de interferência de interesses socialmente postos que iriam mascarar a

verdadeira compreensão do ser. Tal questão seria ressaltada com a citação

abaixo, pois abordaria a diferença histórica da base de formação das falsas

representações das idéias ontológicas e também a questão da desigualdade da

validade da prática como critério de avaliação acerca da veracidade ou não de

diversas concepções em diferentes momentos em nível da história do

pensamento humano:

É verdade que por longo tempo o atraso no conhecimento da natureza e os limites dentro dos quais se exercia o domínio sobre ela, contribuíram muito para fazer com que a prática se apresentasse como critério no interior de formas limitadas ou distorcidas de falsa consciência. Todavia as formas concretas da falsa consciência e, sobretudo o seu influxo, difusão, poder, etc., foram sempre determinados pelas relações sociais, naturalmente em ação recíproca com o estreito horizonte ontológico característico de tais épocas. Hoje, em que o grau de desenvolvimento efetivo das ciências tornaria objetivamente possível uma ontologia correta, é, além disso, mais evidente como a falsa consciência ontológica no campo científico e seu influxo espiritual estão arraigados em necessidades sociais dominantes. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 69)

Assim, alicerçada basicamente nos limites da relação humana com a natureza,

para tais conhecimentos haveria uma motivação. Portanto, por um longo período

da história seria necessária tão somente que algumas idéias fossem postas frente

a frente com experimentos específicos para se colocar abaixo todo um conjunto

de falsas concepções a respeito da dinâmica da natureza. Para o pensamento

lukacsiano em dadas circunstâncias haveria a oposição entre concepções

científicas e interesses sociais, pois o próprio método da ciência que faria com

que os processos científicos devidamente fundamentados sejam também

seguidos de idéias religiosas, isso seria para ele uma característica de nosso

tempo. Destarte, o processo que emerge com o surgimento da ciência colocaria

novas questões para a validação da prática como critério da teoria à proporção

que ela se torna cada vez mais complexa. O que geraria tal situação paradoxal,

porém justificável porque se compreende que o método de manipulação das

ciências, termina por privilegiar esse estado de coisas que, se verifica

particularmente nos dias atuais. Escreve Lukács a respeito:

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Para tal obra de sustentação, contribui abundantemente o método manipulatório presente nas ciências, na medida em que destrói o senso crítico nos confrontos do ser real, por abrir deste modo o caminho para uma necessidade religiosa que permanece puramente subjetiva, outro lado, enquanto determinadas teorias elaboradas pela ciência moderna que sofrem o influxo do neopositivismo, por exemplo, a teoria sobre o espaço e o tempo, sobre o cosmos, etc. favorecem uma conciliação intelectual com as categorias ontológicas extraídas da religião. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 69)

À medida que a ciência se volta à manipulação de fenômenos e não se

preocupa com a compreensão das leis ontológicas do ser natural, ficaria, assim,

aberta a possibilidade de uma ontologia de base religiosa e, sendo assim,

subjetivista. A questão da relação entre conhecimento e interesses sociais,

portanto, apareceria nas formas superiores não apenas como uma contraposição

entre a ontologia cientificamente fundada e idéias radicadas nas projeções e

necessidades essencialmente sociais que, por sua vez, ficaria atenuada, mas

permitiria ao mesmo tempo também a coexistência entre ciência e uma ontologia

de base religiosa. Tal coexistência se torna possível “porque os novos nexos

conhecidos, mesmo quando encontramos suspensa qualquer decisão ontológica

a respeito, pode ser desfrutada na prática.” (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 68) Igualmente

ao considerar como não científica “toda referência ao ser em sentido ontológico,

por fazer valer como critério da verdade científica unicamente o desenvolvimento

da aplicabilidade prática” (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 69), o positivismo ao refutar toda

questão de caráter ontológico na dimensão da ciência, daria margem à ontologias

de natureza religiosa; seria o que se constataria a partir da prevalência do método

positivista no âmbito da ciência.

Tal discussão extrapola a dimensão de uma teoria do conhecimento, pois, seria

uma questão relativa à ontologia do ser social, ou seja, seria uma questão

necessariamente ontológica por se tratar da determinação social do pensamento.

Assim, seria superficial, resolver o problema da “contradição que comparece no

trabalho, originária do fato de que a prática é o critério da teoria, reconduzindo-a

simplesmente a concepções gnosiológicas, lógico-formais, ou epistemológicas.”

(LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 69) Logo, em nível da formação do conhecimento seria

preciso contrapor-se “à admissão direta, absoluta, acrítica, da prática como

critério da teoria”, admissão essa que se poderia considerar válida em

circunstâncias muito pontuais da prática humana tanto quanto em determinados

contextos históricos. Para se afirmar a prática como critério da teoria seria preciso

que, a partir de uma crítica ontológica que teria como função a garantia de uma

intentio recta, Lukács escreve o seguinte a respeito:

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Se for verdade que este critério [a prática] é válido no próprio trabalho e, em parte no experimento, todavia é ainda verdade que, quando a coisa se torna mais complexa, deve entrar em campo uma consciência crítica ontológica, se não se quer comprometer o estatuto fundamentalmente verdadeiro desta função de critério que a prática possui. Vimos, de fato, a isso já referimos muitas vezes, e não faltará ocasião para retornar a essa questão, como na intentio recta, seja da vida cotidiana, seja da ciência e da filosofia, pode ocorrer que o desenvolvimento social crie situações e direcionamentos que deslocam esta intentio recta, que a desviam da compreensão do ser real. A crítica ontológica que nasce a partir desta exigência, deve por isto ser absolutamente concreta fundada na respectiva totalidade social, orientada pela totalidade social. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 70)

Assim,

A crítica ontológica deve por isso ter como ponto de referência a totalidade diferenciada da sociedade, diferenciada concretamente em termos de classes, e as interconexões entre os tipos de comportamento que são conseqüências delas. Somente desse modo pode haver um uso verdadeiro da função, decisiva para todo desenvolvimento espiritual, para toda prática social, da prática como critério da teoria. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 70)

Caberia, desse modo, à filosofia a crítica dos desvios da intentio recta, porque

para o conhecimento obtido através da investigação científica à proporção que

visa um maior aprofundamento acerca dos fenômenos naturais ou sociais,

propicia, assim, que se estabeleça uma ontologia em bases objetivas. Para

Lukács, pois, seria necessário que se construísse uma cientificidade que, teria por

fundamento uma crítica à ontologia que aborde a totalidade do ser social, para

que então se reconheça as determinações que captariam a partir do objeto a

dimensão de suas categorias. E, assim sendo, diferenciar daquelas ontologias em

que suas determinações não estejam objetivamente orientadas, porém postas à

medida que se verifica a presença de necessidades sociais que distorcem a recta

compreensão de um dado complexo de ser. Assim, o que haveria seriam

basicamente ontologias contrapostas entre si, “daquela que vê, em um pólo, o

verdadeiro conhecimento do ser através do progresso científico da posição causal

e, no outro pólo, o limitar-se a nua manipulação prática dos nexos causais

conhecidos concretamente.” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 69)

Para ontologia de Lukács a questão do conhecimento não seria algo autônomo

em relação às demais categorias relativas à prática humana porque não se

desenvolve em nível de esquemas lógicos ou epistemológicos, porém, se realiza

de sorte que seja uma expressão ideal da realidade estabelecida na clivagem

entre os atributos relativos ao objeto. Assim, à medida que ela se constituiria na

relação prática do homem com seu meio, não desconsideraria as relações que os

homens desenvolveriam entre si em nível sócio-histórico. Relação essa que seria

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um complexo de múltiplas determinações em que além dos nexos causais dos

objetos naturais com os quais os homens lidam na sua prática, tanto laboral

quanto científica, também as dimensões humano-sociais que comporiam a

totalidade do ser social em um determinado contexto histórico. Igualmente, a

questão da relação entre sujeito e objeto deveria ser formulado e resolvido na

dimensão da ontologia e, fundamentar-se-ia a natureza do conhecimento na

relação prática do homem com o seu meio, de compreender a gênese da

consciência a partir da relação de reciprocidade necessária com as propriedades

naturais. Nesse sentido, a relação de conhecimento que o homem estabeleceria

em relação à natureza ocorre sempre no interior da totalidade do ser social. E

ainda assim, as indagações feitas pelos homens seriam sempre uma busca de

respostas para as questões concretas do meio em que esses mesmos os homens

vivem.

O ser social é a único domínio da realidade em que a prática assume o papel de condição sine qua non para a manutenção e movimento da objetividade, para a sua reprodução e para o seu desenvolvimento. E por causa desta função original na estrutura e dinâmica do ser social a prática é ainda subjetivamente, gnosiologicamente, o critério determinante de todo conhecimento verdadeiro. (LUKÁCS, Vol. I,1981, p. 6)

Lukács acrescenta que “essa função da generalização filosófica não diminui a

exatidão científica das análises teórico-econômicas singulares, mas

‘simplesmente’ as insere nas concatenações que são indispensáveis para

compreender adequadamente o ser social em sua totalidade.” (LUKÁCS, Vol. I,

1981, p. 297) Porém, entre ontologia e ciência, haveria algumas passagens do

capítulo sobre Marx que ao analisar o caráter do pensamento econômico de Marx,

Lukács afirma que “à filosofia cumpre ‘tão somente’ operar um controle e uma

crítica contínuos, a partir de um ponto de vista ontológico e, aqui e ali, fazer

generalizações no sentido de uma ampliação e um aprofundamento.” (LUKÁCS,

Vol. I,1981, p. 296) Mais adiante ao referir-se explicitamente a economia marxiana,

Lukács escreve que

As análises econômicas, mantidas num plano científico rigoroso e exato, abrem continuamente perspectivas fundadas, de tipo ontológico, sobre a totalidade do ser social. Nessa unidade, manifesta-se a tendência marxiana de fundo: desenvolver as generalizações filosóficas a partir dos fatos verificados pela investigação e pelo método científico,ou seja, a constante fundação ontológica das formulações tanto científicas quanto filosóficas. (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 301-2)

Compete, por conseguinte, à filosofia que faria uma abordagem crítica da

existência para fundamentar a compreensão acerca da totalidade do ser social e,

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nesse sentido explicitar os fenômenos estudados pela ciência e, assim sendo,

diferenciar o necessário do contingente. Uma vez que, em Marx, o sentido da

filosofia, refuta a antinomia tão desgastada na história da filosofia, entre

racionalismo e empirismo:

A elaboração puramente ideal pode, por conseguinte, facilmente cindir aquilo que no plano do ser forma um todo unitário, por atribuir a uma de suas partes uma falsa autonomia. Isso pode ocorrer seja em termos empírico-históricos seja em termos abstrato-teóricos. Somente uma ininterrupta e atenta crítica ontológica de tudo o que é reconhecido como fato ou conexão, como processo ou lei, pode, quando chegamos a este ponto, reconstituir no pensamento a verdadeira inteligibilidade dos fenômenos. A economia burguesa sempre sofreu do dualismo produzido pela rígida separação destes dois pontos de vista. Em um pólo, surgiu uma história econômica puramente empirista, na qual desaparece a verdadeira conexão histórica do processo global; no outro pólo, da teoria da utilidade marginal até as singulares pesquisas manipulatórias de hoje, se tem uma ciência que de maneira pseudoteórica faz desaparecer as conexões autênticas, decisivas, mesmo quando, acidentalmente, em casos particulares é capaz de apreender relações reais ou seus resultados. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 287)

A estrutura, pois, da posição teleológica seria válida para a ciência como um

conjunto de tendências que formariam uma identidade abstrata entre tais

procedimentos que são distintos entre si. O trabalho, assim, determinaria a

gênese de conexões que poderiam ser encontradas em formações superiores do

pensamento científico, ou seja, a relação existente entre os interesses sociais e a

necessidade de um conhecimento válido dos processos causais da natureza.

Conseqüentemente, o trabalho poderia ser considerado o modelo da prática

social tanto pela constatação de que a generalização dos nexos estaria posta

como tendência na estrutura trabalho. Destarte, sua dinâmica de aprofundamento

possibilitaria o desenvolvimento do pensamento cientifico e, assim sendo, a

relação existente entre teoria e prática seria eminentemente determinada pela

relação entre causalidade e teleologia, ou seja, “é justamente aqui, o trabalho

como modelo pode ajudar de um modo esclarecedor” (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 63)

para a compreensão da relação existente entre ciência e ontologia nas formas

superiores da prática social. Todavia, se faz necessário esclarecer que as

características próprias do trabalho não deveriam ser transpostas diretamente

para as formas superiores da prática social, pois, para que se tenha uma

compreensão correta de como a análise do complexo do trabalho pode iluminar a

compreensão das formas superiores da organização social, seria necessário

observar que essa relação deveria ser constituída sempre em nível de uma

identidade de identidade de não identidade. Seria possível, assim, determinar

tendências necessárias para as práticas futuras, nesse caso, a ciência, que,

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contudo, nas formas superiores, se revelariam mais socialmente mediadas,

porque trariam consigo diferenças profundas a respeito da forma genética. Assim,

haveria sempre uma “continuidade na descontinuidade”, com a noção de uma

identidade abstrata entre a forma originária e as formas superiores decorrentes

dela. Lukács analisa acuradamente as relações existentes entre a forma originária

e as formas superiores da prática social. Tese essa central do para seu

pensamento.

Assim, se faz necessário analisar as categorias dever-ser e valor como

fundamento da sociedade humana, pois segundo Lukács ambas as categorias

seriam momentos de um único complexo, ou seja, o trabalho, como veremos a

seguir.

2.4 AS CATGORIAS DEVER-SER E VALOR

O caráter necessário da ação social humana residiria na orientação do dever-

ser e do valor, pois em tais categorias estaria o fundamento de toda a sociedade

e, portanto, do ser social. Igualmente, seria no valor que revelaria a gênese tanto

do movimento causal quanto da ação teleológica, e assim sendo, as conexões

causais transcenderiam o próprio valor porque ele seria necessariamente social,

ou seja, seria categoria do ser social. Igualmente, dever-ser e valor são

inseparáveis do processo laboral, pois seriam momentos de um mesmo complexo

e, assim sendo, o valor seria o critério pratico para o dever-ser e, do mesmo

modo, fundamento teleológico do trabalho. Assim, seria no confronto com as leis

naturais que se desvelaria os princípios constitutivos do processo de construção

da subjetividade em que se daria a realização humana. Logo, na atividade laboral

haveria a anterioridade dos fins que seriam uma particularidade humano-social

tendo em vista o momento ideal.

Igualmente, na pratica social a tarefa futura teleologicamente posta

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determinaria a pratica em sua dimensão subjetiva em que as intencionalidades e

as alternativas estariam imbricadas. Por outro lado a espontaneidade da

causalidade na dimensão do ser biológico se estenderia a apenas até a

adaptação ao passado, aos fenômenos da natureza e, assim sendo não haveria

dever-ser. Portanto, em nível do ser social a posição do sujeito seria algo a ser

realizado e determinaria assim os passos da atividade à medida que o trabalho o

põe em movimento orientado por um dever-ser.

Sendo assim, as conseqüências para o homem em que a atividade laboral

estaria orientada para uma realização o adaptaria aos procedimentos dessa

mesma atividade e à medida que transformaria o elemento natural transformaria

igualmente a si mesmo. Destarte, o domínio da inteligência sobre o ser biológico

levaria ao desenvolvimento de suas qualidades e, além disso, um maior domínio

sobre a relação com a natureza, pois as habilidades desenvolvidas no processo

laboral incidiriam sobre o próprio sujeito e o levaria a superação de sua

particularidade especifica. Logo, no trabalho o dever-ser seria orientado a partir

da subjetividade e orientar-se-ia pela objetividade do processo da relação com o

objeto natural e, assim sendo, levaria ao desenvolvimento de habilidades

subjetivas. Portanto, a atividade laboral objetiva a si mesmo e, à medida que

construiria a si mesmo, construiria seu próprio mundo.

Precisamente, em sua forma originaria do trabalho a atividade humana à

proporção que seria objetiva seria parâmetro para o dever-ser, pois as posições

teleológicas secundárias como formas superiores da prática social levaria o

dever-ser a um maior grau de complexidade em que se revelariam as alternativas

morais. De tal modo que levaria outros homens a determinadas posições

teleológicas. Tendo-se em vista que as características da condição genética do

trabalho não seriam diretamente transpostas para as formas superiores da prática

social.

De tal modo, Lukács para esclarecer a questão do dever ser em nível filosófico

iria analisar essa categoria segundo a perspectiva tanto do materialismo

mecanicista quanto do idealismo. O idealismo, segundo o pensamento

lukacsiano, seria incapaz de compreender as relações ontológicas, pois o método

usado seria a gnosiologia, ou seja, a lógica e a teoria do conhecimento e, assim

sendo, tal método levaria a uma antítese entre a gênese do ser social e as formas

evoluídas o que levaria a fetichização dos fenômenos superiores, uma vez que

nega seus fundamentos genéticos e, deste modo, a forma originaria do dever-ser.

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Logo, em nível da relação homem/natureza haveria um caráter antitético em

relação às formas mais evoluídas. Em relação ao materialismo mecanicista, ele

seria por si só reducionista uma vez que aborda apenas aspectos secundários, ou

seja, as determinações biológicas do ser social o que levaria, assim sendo, a

fetichização do fenômeno social.

Justamente, a noção de modelo do complexo do trabalho desencadearia os

desdobramentos possíveis do desenvolvimento do ser social, porém não haveria

qualquer pré-determinação das formas superiores, pois a totalidade histórica do

ser social seria compreendida post festum. Logo, entre o materialismo

mecanicista e o idealismo haveria o tertium datur que, por sua vez conteria o

método dialético. Destarte, em suas variantes mais complexas a noção de modelo

estaria vinculada a idéia de identidade abstrata em nível do conceito do complexo

do trabalho. Do mesmo modo, a noção de modelo em relação às práticas sociais

superiores traria a idéia de salto qualitativo (Aufhebung) em que a unicidade do

valor poderia ser verificada, em nível da identidade abstrata tanto nas formas

primárias do ser social quanto nas formas secundárias.

Logo, seria possível apreender as características, ou seja, a universalidade de

categorias ou estruturas de todas as práticas sociais distintas umas das outras.

Assim, o valor-de-uso seria o parâmetro da prática no trabalho originário e o valor-

de-troca em suas formas superiores de relação com a produção que, por sua vez

seria a mediação para além da relação homem/natureza. Deste modo, o valor-de-

troca estaria presente na essência do trabalho à medida que não se encontraria

suas propriedades na realidade objetiva. Igualmente, o valor econômico sendo o

valor-de-troca haveria uma elevação qualitativa em relação ao valor presente na

atividade simples produtora de valor-de-uso e, assim sendo, o caráter do valor

econômico sua elevação à dimensão universal. Portanto, ter-se-ia o valor-de-uso

como fundamento do valor-de-troca, pois o valor-de-uso conteria as objetivações

da relação orgânica entre sociedade e natureza.

Precisamente, o processo de desenvolvimento do ser social tanto em nível

objetivo quanto subjetivo traria consigo o caráter pernicioso do aumento da

produção e a conseqüente diminuição do tempo de trabalho necessário para a

produção da mercadoria. Assim, as formas superiores da prática social se

revelariam em alternativas típicas das posições teleológicas secundárias

vinculadas às posições de valores econômicos. E assim sendo, com o fim do

comunismo primitivo e conseqüente surgimento das classes sociais as decisões

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dos indivíduos passariam a ser determinadas por sua classe, deste modo,

passariam a existir interesses antagônicos no interior de sua formação social.

Portanto, haveria nos valores uma objetividade histórica, porém tal objetividade

não independe dos indivíduos, ela se realizaria por intermédio de suas posições

porque haveria em seu processo a unidade entre tendências globais, ou seja, no

conjunto de decisões dos indivíduos. Contudo, as tendências gerais em seu

processo global independem da vontade humana, pois as posições do valor no

processo do ser social direcionariam tal processo e, assim sendo, só seriam

racionalizáveis post festum. Logo, a totalidade do processo de desenvolvimento

do ser social suporia possibilidades entre alternativas, ou seja, escolha entre

valores contraditórios.

Portanto, a estrutura originária da prática laboral seria o fundamento necessário

da prática social humana em que as alternativas nas quais os homens tomariam

suas decisões são determinadas pela categoria valor à medida que é categoria

especifica do ser social. Assim para o pensamento lukacsiano, a análise

ontogenética revelaria o trabalho como modelo da pratica social e ainda

fundamentaria a estrutura e o processo de desenvolvimento do ser social. Logo, a

objetividade do processo seria criada pelos homens a partir de posições

alternativo-teleologicas em que a legalidade do processo de desenvolvimento do

ser social seria algo intrínseco ao homem.

Precisamente, o caráter necessário de toda ação social humana, desde sua

forma originária, residiria na dimensão segundo a qual toda atividade prática

estria orientada sempre por um dever-ser e também pela posição de um valor.

Assim é que, Lukács, conferiria a tais categorias, ou seja, “dever-ser e valor o

status de fundamento de toda sociedade humana.” Portanto, o pensamento

lukacsiano estaria voltado à determinação da especificidade dessas categorias

como elementos pertencentes exclusivamente ao ser social. Assim sendo, o

objeto possuiria valor por sua existência não ser simples resultado de relações

causais da natureza, porém, fruto de um movimento causal posto pela ação

teleológica dos homens estabelecida com um objeto que transcenderia a

dimensão de meras conexões causais naturalmente constituídas. Por

conseguinte, são necessariamente sociais. Logo, o valor como tal constituiria uma

categoria particular do ser social: “a presença efetiva de valor [...] na realidade é

limitada ao ser social.” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 91) Para Lukács, a discussão a

respeito da gênese das categorias do dever-ser e do valor e ainda a determinação

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de ambas fundamentadas no processo de desenvolvimento do ser social,

deveriam ser abordadas conjuntamente, pois tais categorias seriam

necessariamente inseparáveis no interior do processo laboral:

[...] o dever-ser enquanto fator determinante da prática subjetiva no processo de trabalho pode desenvolver essa função específica somente porque aquilo a que tende tem valor para o homem, destarte o valor não poderia traduzir-se em realidade se não fosse capaz de colocar ao homem que trabalha o dever-ser de sua realização como critério da prática. Todavia tal íntima conexão, que à primeira vista parece quase uma identidade, o valor deve ser discutido à parte. Essas duas categorias estão tão intimamente ligadas entre si porque são momentos de um mesmo complexo. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 79)

Para Lukács, sendo assim, haveria uma ligação necessária entre as duas

categorias por serem momentos de um mesmo complexo que seria, por sua vez,

o trabalho. Portanto, a existência da categoria do dever-ser implica a existência

da categoria do valor. O valor põe para o trabalhador, deste modo, o dever-ser de

sua realização, de maneira que o dever-ser apresentar-se-ia como critério

eminentemente prático que orienta todo o processo laboral. Para constituir-se em

um valor para o homem seria preciso que o produto seja efetivado como objeto

útil ao final do processo de trabalho. Portanto, tais categorias mesmo em sua

íntima conexão têm a aparência de uma identidade, desempenham funções

particulares por que "[...] o valor influi, sobretudo sobre a posição de fim e é o

princípio segundo o qual se avalia o produto realizado, enquanto o dever-ser

funciona mais como regulador do processo enquanto tal [...]" (LUKÁCS, Vol. II,

1981, p. 79)

Na forma originária do trabalho, assim, poder-se-ia reconhecer um grupo de

categorias e de tendências que poderiam ser determinadas como a gênese e

modelo das formações mais desenvolvidas do ser social, na análise dos

processos da atividade prática laboral, teleologia e causalidade ocupam um lugar

também central no interior dessas reflexões, pois para Lukács, “o novo que nasce

no sujeito é resultado deste complexo categorial” (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 71) que

adviria do trabalho. Tratar-se-ia de determinar, a partir do fundamento “teleológico

do trabalho”, caracterizado pelo confronto necessário com as leis naturais, os

princípios constitutivos que integrariam decisivamente o processo de construção

da subjetividade.

Precisamente, a realização humana fundamentar-se-ia em uma anterioridade

dos fins em relação à sua atividade laboral tanto que se poderia afirmar que essa

só se torna possível em sua particularidade humano-social pela preexistência do

momento ideal. Quanto à categoria do dever-ser seria possível observar que os

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produtos da atividade do ser social não seriam obtidos por processos

espontâneos, porém, de processos que surgiriam como resultados de um pôr

consciente de nexos causais. Poder-se-ia, assim, verificar que o resultado dessa

atividade, o produto de sua dinâmica, seria algo necessariamente gerado por

finalidades, ou seja, por uma prévia-ideação dos meios e fins que, por sua vez,

precedem a realização. Sendo assim, a subjetividade no interior da atividade

laboral teria por função uma prática orientada por um dever-ser:

Quando, conseqüentemente, observamos que o ato decisivo do sujeito é a própria posição teleológica e a realização dessas, podemos rapidamente verificar como o momento categorial determinante desses atos implica o comparecimento de uma prática caracterizada pelo dever-ser. O momento determinante imediato de cada ação intencionada como realização não pode deixar de se apresentar como dever-ser porque, pois cada passo adiante na realização é decidido por estabelecer se e como essas favorecem o cumprimento do fim. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 71)

Na prática social humana, “não é o passado na sua espontânea causalidade

que determina o presente, todavia, a tarefa futura teleologicamente posta é o

princípio determinante para qual tende a sua prática.” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 78)

Assim, a dimensão subjetiva seria uma intencionalidade que teria diante de si

alternativas que, por sua vez, receberiam a determinação decisiva da finalidade

que pretende realizar, pois, entre a dimensão natural e a do ser social, a

elucidação das categorias específicas do ser social seria efetuada a partir de sua

diferenciação com o processo de reprodução natural. A referência ao passado e

ao movimento espontâneo da causalidade indicaria que na dimensão do ser

biológico constata-se que o fundamento de seu processo de reprodução seria

determinado necessariamente por propriedades de adaptação que o passado do

organismo produziu, que nele reagem às transformações do meio no qual ele

vive. A respeito dos fenômenos da natureza, pois, não se poderia falar de um

“dever-ser em relação” ao que ocorre na natureza em que o passado seria

determinante, no ser social seria a posição de um algo a ser realizado que iria

determinar os passos da atividade necessariamente humana.

Ao trabalhar, portanto, o homem se poria em movimento em direção a um

dever-ser objetivo, o que traria conseqüências importantes para a sua

subjetividade, sendo assim, seria revelado o duplo aspecto do dever-ser que

envolve a noção de uma atividade orientada para a realização de uma finalidade

determinada e igualmente a noção de uma adaptação dos procedimentos do

sujeito no interior do trabalho. Consequentemente no decorrer da prática laboral

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[...] todas as faculdades do homem que são mobilizadas devem estar sempre orientadas substancialmente em direção ao exterior, em direção à dominação efetiva e à transformação material do objeto natural por intermédio do trabalho. Quando o dever-ser, como é inevitável, apela para determinados aspectos da interioridade do sujeito, as suas demandas tendem a fazer com que as mudanças no interior do homem forneçam um veículo para melhor dominar a relação orgânica com a natureza. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 77)

Portanto, o trabalho à medida que transforma o elemento natural transforma o

próprio sujeito que trabalha o que significaria que o homem transformaria a sua

própria natureza ao transformar a natureza diante de si. Sendo assim, haveria o

“crescente domínio da inteligência sobre as inclinações espontâneas biológicas”

(LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 77), que se se desenvolveriam em novas qualidades no

sujeito que favorece um maior domínio sobre a relação com a natureza, o que

implica um disciplinamento de seus atos que, deveriam responder efetivamente

não apenas à finalidade, mas também aos próprios nexos e leis que regem os

objetos naturais com os quais lida no decorrer do processo laboral por que o

trabalho seria assim considerado a dimensão em que estariam dados os primeiros

passos para o desenvolvimento da subjetividade:

[...] a essência ontológica do dever-ser no trabalho age sobre o sujeito que trabalha e determina o comportamento laboral, contudo não ocorre apenas isso, essa determina também o seu comportamento em direção a si mesmo enquanto sujeito do processo de trabalho. (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 77)

As habilidades que se desenvolveriam no interior do processo laboral incidem

sobre a vida do sujeito o que acabaria por determinar uma dinâmica de

desenvolvimento que supera a dimensão específica de sua atuação no trabalho.

A disciplina do homem revelar-se-ia necessariamente a partir do dever-ser

presente no processo laboral, uma vez que a subjetividade seria “regulada e

guiada pela objetividade desse processo.” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 77)

A dinâmica laboral levaria necessariamente a um desenvolvimento das

categorias eminentemente sociais e ao desenvolvimento das faculdades

humanas, “todavia estas mudanças no sujeito não implicariam, pelo menos não

imediatamente, a totalidade da pessoa; poderiam funcionar muito bem, no

trabalho sem alterar o restante da vida do sujeito. Existiria grande possibilidade

que isso aconteça, mas só a possibilidade.” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 77) Porém, a

disciplina a que o sujeito se vê envolvido e até o desenvolvimento das faculdades

humanas que ocorreriam no interior do processo laboral não necessariamente

influem sobre a vida do sujeito em sua totalidade.

A relação do objeto natural com a subjetividade estabeleceria os nexos causais

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com a intenção de impor suas pretensões à medida que adequaria o material à

sua vontade adequaria às exigências necessárias dos atributos do elemento

natural. Tal regulação posta pela objetividade do processo laboral seria condição

necessária para a efetivação da finalidade e tornar-se-ia, assim, critério para o

desenvolvimento de suas habilidades subjetivas. O homem, sendo assim, à

proporção que transforma a natureza através da atividade laboral objetivaria as

coisas no mundo e objetivaria a si mesmo, constrói a si mesmo e igualmente ao

seu próprio mundo. Haveria, portanto, a coincidência entre a produção humana de

seu mundo e o processo de formação de si mesmo. Seria importante esclarecer

que para Lukács a subjetividade seria apenas e tão somente corretamente

considerada em sua inter-relação com a objetividade. Por conseguinte, o dever-

ser teria a objetividade como função regulativa, seria o alerta que Lukács nos faz

e do mesmo modo para o fato de que o trabalho originário revelar-se-ia

diretamente ligado à relação orgânica entre homem e natureza, sendo tal

determinação válida fundamentalmente para essa situação originária da prática

social. O cerne, portanto, de tais determinações reside no fato de que seria na

forma originária do trabalho que toda atividade humana teria na objetividade seu

conteúdo basilar e também seria parâmetro do dever-ser.

As posições teleológicas secundárias em suas formas superiores da prática

social o dever-ser assume um maior grau de complexidade à medida que se

apresenta sob a forma uma prática voltada diretamente para alternativas morais,

etc., em que a finalidade seria aquela de levar outros homens a determinadas

posições teleológicas. Logo, todo o movimento que se efetivaria na esfera do ser

social e em toda atividade humana seria sempre um dever-ser que

necessariamente envolve decisões entre alternativas concretas, sejam de caráter

social ou natural. Porém, os caracteres inerentes em sua condição genética não

poderiam ser diretamente transferidos para as formas superiores da prática social,

não poderiam ser contrapostas como simples antíteses, como formas excludentes

entre si. Tais posições aqui refutadas coincidiriam segundo Lukács com os

enunciados tanto do materialismo mecanicista quanto do idealismo. Acerca do

idealismo, Lukács afirma que

A incapacidade do pensamento idealista em compreender as relações ontológicas mesmo que mais simples e evidentes deriva, em última análise, sobre o plano do método, do fato de ele se limitar a analisar em termos gnosiológicos ou lógicos os modos mais evoluídos, mais espiritualizados, mais sutis, em que as categorias se apresentam. Estas não são apenas consideradas parcialmente, contudo são totalmente ignorados aqueles complexos de problemas que na sua gênese indicam

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a direção ontológica. Por isso são levadas em consideração somente as formas mais longínquas da relação orgânica da sociedade com a natureza; não apenas são desconsiderados os atos das mediações, freqüentemente intricados, que as ligam à sua forma originária, todavia até mesmo são construídas antíteses entre esses e as formas evoluídas. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 73)

Lukács, por isso, designaria como a fetichização dos fenômenos superiores da

prática social, à proporção que seria negada a correta compreensão dos

fundamentos genéticos que as formas superiores possuiriam com a forma

originária do dever-ser, ou seja, seria colocada em relevo a omissão do ser em

seu processo, de um procedimento parcial configuração do fenômeno, nos termos

do autor, que termina em uma “fetichização objetivista-coagulante que sempre se

verifica quando os resultados de um processo são considerados apenas em sua

forma definitiva e acabada, e não também em sua gênese real e contraditória”

(LUKÁCS, Vol. I, 1981, p. 352)

Em nível do processo de desenvolvimento de complexos parciais próprios à

esfera do ser social seria, pois, incorreto tomar as formas diretamente vinculadas

à relação homem/natureza como antitéticas às formas mais desenvolvidas da

prática humana. Assim, a determinação da gênese das categorias, a forma do

dever-ser que se poderia determinar como estrutura originária do trabalho

indicaria a possibilidade de fundamentar as diferenças específicas entre as

formas possíveis de sua configuração e possibilitaria fundamentar os atos de

mediação que tornam qualitativamente distintas as formas superiores da forma

primária. Logo, o princípio essencial para que levaria à correta compreensão

acerca do sentido em que o trabalho poderia ser tomado como modelo de toda

prática social. Por conseguinte, no trabalho compareceriam determinados

complexos parciais que em sua gênese indicariam a direção ontológica do

processo de desenvolvimento do ser social.

Para o pensamento lukacsiano, o velho materialismo “ignora o papel do dever-

ser no ser social, tentando interpretar toda esta esfera a partir do modelo da pura

necessidade natural” (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 73). Seu fundamento seria

reducionista, pois compreenderia a gênese das categorias do ser social como

meros resultados ou simples efeitos de determinações naturais, ou seja, seria

determinista. Tais apontamentos orientam a crítica lukacsiana em nível da

abordagem dada pelo idealismo à categoria do dever-ser e ainda tornaria possível

expor os limites do materialismo mecanicista em relação a essa mesma questão.

Segundo Lukács,

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O velho materialismo faz o caminho ‘de baixo’ perder todo o crédito, porque pretende entender os fenômenos mais complexos, a estrutura mais elevada, como algo que nasce diretamente daqueles inferiores, como seu simples produto (a famigerada dedução com que Moleschott fazia nascer da química do cérebro o pensamento, ou seja, como mero produto natural. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 78)

Sendo assim, tanto o materialismo poderia ser identificado em seus

fundamentos com a análise do idealismo, pois se trata igualmente de uma

tematização estabelecida na “fetichização do fenômeno.” Se, por um lado, o

idealismo aborda as formas abstratas, moral, etc., como tendo um caráter

universal, o materialismo mecanicista, por sua vez, reduziria toda a questão à

mera naturalidade na medida em que colocaria em relevo os aspectos

ontologicamente secundários das determinações biológicas do ser social, o que

obscureceria assim a compreensão do movimento humano de transformação da

natureza e de seu eminente processo de autoconstrução, que em suas

proposições revelar-se-iam como uma resposta humana às determinações

naturais. Há, assim, uma convergência entre o procedimento analítico do

materialismo vulgar com o idealismo, sem que coincidam suas conclusões, ou

seja, tanto idealismo quanto materialismo acabariam por tomar fenômenos

particulares de manifestação de uma dada categoria como um aspecto isolado e

decisivo, o que acaba por definir a forma posta no cerne da análise como critério

para a determinação da realidade de dadas categorias.

Para não incorrer, assim, no mesmo erro, seria necessário que se desfaça a

noção de um determinismo da base laboral na configuração das formas

superiores da prática social, pois a compreensão da relação entre a forma

originária e as formas superiores não implicaria necessariamente uma dedução

direta das formas superiores a partir da forma genética. Nesse sentido, ainda em

relação à categoria do dever-ser, Lukács acrescenta que

[...] é errôneo pretender deduzir logicamente do dever-ser do processo laboral as suas formas mais complexas, do mesmo modo que é falso o dualismo, a contraposição presente na filosofia idealista. O dever-ser, como vimos, no processo laboral possui possibilidades diversas, objetivas e subjetivas. Quais e de que modo estas se tornam realidade social é uma coisa que depende do respectivo desenvolvimento concreto da sociedade, e, sabemos também isto, que somente é possível compreender as concretas determinações desse desenvolvimento de maneira adequada post festum. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 78-9)

De outra maneira Lukács retoma sua determinação em que afirmaria que “os

traços específicos do trabalho não devem ser transferidos de qualquer modo para

formas mais complexas da prática social” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 65). Assim,

para assimilar essa questão não basta citar o princípio de uma “identidade de

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identidade e não-identidade”, porém compreender que a noção de modelo

conteria em si a idéia do complexo do trabalho como dimensão de possíveis

desdobramentos do processo de desenvolvimento do ser social.

Consequentemente, não se poderia falar em uma pré-determinação das formas

superiores e também de um desenvolvimento a partir da forma originária, todavia,

dever-se-ia compreender tal determinação como um complexo de possibilidades

presentes na estrutura originária do trabalho. Seria assim que poderia ser

afirmada qualquer análise relativa ao processo de desenvolvimento do ser social,

os processos e ainda as configurações na totalidade histórica do ser social,

somente poderiam ser compreendidos post festum. O enunciado que se

constituiria como um tertium datur face às concepções idealista e do materialismo

vulgar que teria como orientação crítica a afirmação de que entre “o modelo e as

suas variantes sucessivas, muito mais complexas, existe uma relação de

identidade entre identidade e não identidade.” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 76)

Muito embora, o pensamento lukacsiano acerca da categoria do dever-ser não

esclareceria totalmente sua problemática, assim se limitariam a apresentá-la

como prática humana, tanto em suas características originárias e até mesmo

naquelas mais espiritualizadas, pois possuiriam uma base comum que se

conservaria até mesmo nas atividades humanas de constituição totalmente

distintas do trabalho. Lukács prossegue à análise dos aspectos subjetivos do

processo laboral, à medida que dirige sua atenção para a categoria do valor, com

tal análise iniciar-se-ia um esclarecimento detalhado da relação que haveria entre

a forma valor-de-uso e as formas mais evoluídas do valor, sem deixar a noção

que teria por base a determinação essencial de que as diferenças entre elas não

eliminariam de modo algum a estrutura básica de sua gênese ontológica. A

introdução de tal problemática não seria uma ruptura com a análise até então

desenvolvida por Lukács, pois a determinação da gênese da categoria do valor

estaria necessariamente ligada à análise ontogenética do dever-ser.

Haveria, portanto, uma continuidade da linha crítica fundamentada em relação

àquelas posições teóricas que cindem momentos específicos do processo de

desenvolvimento das categorias do ser social. Na história da filosofia segundo o

pensamento lukacsiano, também no caso da categoria do valor, encontrar-se-ia

vários exemplos em que

[...] são julgados privados de validade ou irrelevantes sistemas de valores que são socialmente reais, para atribuir uma validade autônoma somente a valores ou sutilmente espiritualizada ou imediatamente

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materiais. O fato de que, em todos os dois sistemas são rechaçados valores do mesmo nível, contudo de conteúdos diversos (exemplo: a recusa de Santo Agostinho no confronto com o maniqueísmo), não modifica a coisa. De fato, em ambos os casos o que se quer negar é a unicidade última do valor como fator real do ser social, não levando em conta as suas mudanças de estrutura, mudanças qualitativas extremamente importantes, que se verificam no curso do desenvolvimento social. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 83)

Em termos lukacsianos falar em unicidade implicaria sustentar o valor como

atributo necessário de toda prática humana, pois implica também que as formas

que surgiriam no processo de desenvolvimento do ser social fundamentar-se-iam

em uma única base originária, não haveria, assim, formas contrapostas ou

excludentes, mas modos estrutural e qualitativamente distintos de alternativas

que, por sua vez, estariam presentes em toda prática humana. Logo, de que

modo poder-se-ia afirmar a validade de tais fundamentos originários do valor

como uma universalidade? E se essa base comum se manteria, de que modo

permanece, isto é, que mudanças estruturais e qualitativas poderia se verificar na

dinâmica do desenvolvimento social? A estrutura genética do complexo do

trabalho apresentaria determinações que seriam válidas para todas as formas do

valor, seja ele econômico, moral, estético, etc.? Para responder tais indagações

seria preciso considerar o que para Lukács surgiria como a alternativa dialética de

superação da dicotomia gerada por essas posições extremas:

O tertium datur a respeito desses dois extremos pode advir somente com o método dialético. Somente no domínio desse método é possível elucidar como na gênese ontológica de uma nova espécie de ser já estava presente a sua categoria determinante, como o seu nascimento implica um salto no desenvolvimento, e como tal categoria, no início, existia somente em-si, enquanto que o desenvolvimento do em-si para o para-si compreende sempre um longo, desigual e contraditório processo histórico. Esta Aufhebung do em-si mediante sua transformação em um para-si contém as complexas determinações do anular, conservar e elevar a um nível superior, que sobre o plano lógico-formal parecem se excluir mutuamente. Por isso, ainda no caso do valor, quando confrontamos a forma primitiva com aquela mais evoluída, é necessário ter sempre presente esse caráter complexo da Aufhebung. (LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 83)

Para que se compreenda o sentido e também o modo em que o trabalho ou as

categorias originárias nele presentes poderiam ser entendidos como modelo para

as práticas sociais superiores, envolve esta noção de “Aufhebung”, em que

estaria implícita a unicidade do valor que, nessa medida, envolve o conceito de

identidade abstrata já vista anteriormente, assim sendo, esse termo referir-se-ia à

universalidade de dadas categorias ou estruturas. Logo, tratar-se-ia de apreender

as características comuns a todas as práticas sociais, todavia, sem desconsiderar

que seriam formas qualitativamente distintas, planos práticos de alternativas

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humanas totalmente distintas umas das outras. Lukács compreende o caráter

processual e histórico do desenvolvimento de uma dada categoria, subentenderia,

assim, a possibilidade da contradição, da desigualdade, da continuidade na

descontinuidade como momentos no interior do desdobramento do complexo do

ser social.

Far-se-ia presente, assim, em Lukács um confronto direto com a questão

axiológica da fundamentação objetiva ou subjetiva do valor que, por sua vez

visaria à negação de ambas as posições unilaterais na tentativa de superar suas

dificuldades. E, assim sendo, procuraria encontrar o termo exato da efetiva

relação existente entre a subjetividade e a objetividade em nível do processo de

formação do valor em sua forma originária e as formas superiores mais evoluídas

do valor. Por conseguinte, se faria presente a questão: “o valor é uma propriedade

objetiva de uma coisa que no ato avaliativo do sujeito simplesmente é

reconhecida, ou surge como resultados desses atos avaliativos?” (LUKÁCS, Vol.

II,1981, p. 79) Tal questão encontrar-se-ia em profunda relação uma com a outra.

Assim, o valor revelar-se-ia em uma relação direta com as propriedades objetivas

dos elementos naturais, assim diretamente referidos à capacidade do objeto de

satisfazer necessidades humanas, ou seja, um objeto possuiria valor, seria útil,

somente se ele for capaz de suprir determinadas necessidades. Sendo assim,

pelo caráter da análise ontológico-genética lukacsiana seria necessário iniciar a

determinação da gênese da categoria do valor a partir do seu modo de

apresentação mais elementar, ou seja, no instante da passagem do ser natural ao

ser social em que apareceria como “ineliminavelmente ligado à existência natural”

(LUKÁCS, Vol. II,1981, p. 80), na forma de um valor-de-uso, de um bem produzido

no trabalho. Lukács esclarece que “[...] no trabalho como produtor de valor-de-uso

(bem) a alternativa entre utilizável e não utilizável para a satisfação de uma

necessidade, ou seja, a questão da utilidade apareceria como componente ativo

do ser social.” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 84)

Um determinado objeto, assim sendo, para satisfazer uma necessidade, não

dependeria da subjetividade como seriam suas propriedades efetivamente

existentes, que constituem pela necessidade humano-social sua utilidade. A

questão em sua forma originária, o trabalho validaria por si só os argumentos para

a refutação da posição que teria no valor um caráter essencialmente subjetivo,

uma vez que o valor-de-uso de um determinado objeto revelar-se-ia no trabalho

originário como uma utilidade objetiva, pois o objeto deveria possuir propriedades

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que satisfaçam as necessidades do homem, necessariamente, assim, “O valor-

de-uso, destarte, não surgiriam como simples resultado de atos subjetivos,

valorativos, entretanto, esses se limitam a trazer à consciência a utilidade do

valor-de-uso; é a natureza objetiva do valor-de-uso que prova a sua validade ou

falsidade, não o contrário.” (LUKÁCS, Vol. II, 1981 p.79)

Lukács refuta, por conseguinte, ambos os pólos da questão axiológica, e ainda

não deixaria de ver como problemática a afirmação de objetos essencialmente

valiosos por si mesmos. Assim, o valor não poderia ser identificado como algo

totalmente intrínseco ao objeto, uma vez que tal categoria não existe na natureza,

não obstante o valor-de-uso não possa ser afirmado imediatamente uma vez que

seria refutada a posição contrária. Sendo assim, Lukács, novamente esclareceria

que “[...] nenhum objeto natural contém em si, enquanto prossecução de suas

propriedades, de suas leis internas, a propensão a ser utilizável (ou não utilizável)

por finalidades humanas como meios de trabalho, matéria-prima, etc.” (LUKÁCS,

Vol. I,1981, p. 342)

Também seria possível constatar ao se considerar na dinâmica econômica, em

que o valor, como valor-de-troca revelar-se-ia como algo necessariamente não

natural, assim há trecho do livro “O Capital” em que Marx observa que “até então

nenhum químico descobriu valor-de-troca na pérola ou diamante” (MARX, apud

LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 79). Logo, “não é possível extrair valor por via direta a

partir da propriedade natural de um objeto” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 79), já que o

valor seria algo essencialmente não-natural; seria o que se verifica quando se

observa as formas superiores do valor, os valores mais evoluídos como seria o

caso da estética, ética, etc.

O valor, por conseguinte, se revelaria necessariamente em relação às

atividades desenvolvidas pelos homens que almejam a satisfação de suas

necessidades concretas. Assim, a objetividade do valor-de-uso estaria em relação

às propriedades objetivas do elemento natural com as necessidades sociais

porque em sua forma originária necessariamente vinculada à prática laboral

humana, o valor se fundamentaria na utilidade ou não de dado objeto, ele “define

como válido ou não-válido o produto final de um dado trabalho”. (LUKÁCS, Vol. II,

1981, p.79) porque só haveria valor em algo em relação a um pôr teleológico, ou

seja, sempre em relação a uma prática humana: “De fato a utilidade unicamente

em alusão a um pôr teleológico pode determinar o modo de ser de um objeto

qualquer, apenas no interior de tal relação faz parte da essência desse último

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apresentar-se como um existente que é útil ou não útil.” (LUKÁCS, Vol. II,1981,

p.81)

Seria através do caráter objetivante da posição teleológica que no objeto se

reconheceria a existência de um valor, pois o valor não seria uma propriedade

natural do objeto, porém essa propriedade revelar-se-ia em sua relação ao pôr

teleológico.

Daí decorre que no valor-de-uso podemos ver uma forma objetiva de objetividade social. A sua sociabilidade é instituída no trabalho: a grande maioria dos valores-de-uso surgem mediante o trabalho, mediante as transformações dos objetos, das circunstâncias, do modo de agir, etc. naturais, e esse processo, enquanto afastamento das barreiras naturais, com o desenvolvimento do trabalho, com a sua socialização, se desenvolve sempre mais, seja em extensão, seja em profundidade. .”(LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 80)

O objeto, portanto, não seria simplesmente um objeto natural porque ele seria

produzido com a finalidade de desempenhar uma “função social” específica. Seria

a dinâmica laboral que iria determinar a maneira pela qual o ser do objeto como

algo útil. Quanto ao pleonasmo, “forma objetiva de objetividade social”, seria para

caracterizar o aspecto dual da existência do objeto, num primeiro instante ele

seria tomado em sua dimensão interna, ou seja, ele estaria em relação aos

processos causais da natureza, às suas propriedades físico-químicas, e ainda se

constituiria como algo que, posto pela atividade humana teria sua dinâmica a

partir dos nexos causais que lhes são próprios. Num segundo instante, porque

produzido pelo homem, ele seria também uma objetividade social.

Os objetos, assim sendo, até mesmo quando não são produtos da atividade

humana, o valor-de-uso seria algo que se estabeleceria como utilidade sempre

em relação a um pôr teleológico porque tais elementos funcionariam como

fundamento a realização dos produtos do trabalho. Assim sendo, são muitas

vezes matérias-primas acerca das quais ações dos homens se efetivam, portanto

esses elementos naturais se revelariam como valores não na forma de objetos

que teriam valor em si mesmo, porém através da relação efetiva que esses

mesmos objetos possuiriam com a atividade prática do homem. Portanto, poder-

se-ia afirmar que as características naturais dos objetos, que formariam o

fundamento necessário do valor, se revelariam como algo que teria valor apenas

potencialmente, pois para que os objetos da natureza venham a constituir-se

efetivamente como valores em ato seria preciso que estivessem em uma relação

prática com as necessidades sociais. Muito embora se constate que mesmo nas

atividades mais primitivas em que seria possível verificar casos nos limites quais

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os valores-de-uso não seriam atributos derivados do trabalho, todavia seriam

objetos formados naturalmente, como por exemplo, a terra, a água, o ar, a lenha

colhida nos bosques, etc.

Conseqüentemente, não se trata de um objeto natural, porém uma forma de

existência posta basicamente por mediação humano-social. Seria somente no

interior de tal relação prática que algo poderia possuir um determinado valor.

Poder-se-ia, assim, afirmar com segurança que “os objetos do ser social são

todos, não simplesmente objetividades, mas sempre objetivações.” (LUKÁCS, Vol.

II, 1981, p.384). Assim é que no ato da coleta já estariam presentes, ainda que de

forma embrionária, as categorias subjetivas e objetivas do trabalho. Lukács

conclui:

Neste sentido o valor que nasce no trabalho, enquanto processo que reproduz valor-de-uso, é sem dúvida algum objetivo. Não exclusivamente porque o produto pode ser medido pela posição teleológica, contudo ainda porque a própria posição teleológica pode ser demonstrada e comprovada como existente objetivamente, como válida, na sua relação de ‘se... então’, com a satisfação da necessidade. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, Vol. II, p. 84-5)

Porém não se poderia entender a objetividade independente da subjetividade.

Pela análise do valor-de-uso, verificar-se-ia à medida que o valor não pode existir

independente dos objetos, não seria possível igualmente existir fora da relação

com o sujeito. As reflexões de Lukács a respeito do valor acompanhariam a

mesma dinâmica verificada na análise da gênese do dever-ser, em que haveria

uma maior importância acerca do papel de regulação da objetividade no processo

de autoformação do ser social.

Precisamente, para a realização de todas as formas de valor seria necessária a

objetividade como fundamento primeiro da processualidade do ser social, ou seja,

como fundamento de sua prática seria a objetividade do valor “no interior do ser

social que estabelece se são corretas ou erradas as posições alternativas que

visam o valor”. (LUKÁCS, Vol. II, 1981 p. 91); porque toda ação subjetiva seria

necessariamente uma resposta objetiva a processos igualmente objetivos, assim

sendo, não seriam atribuições subjetivas de juízos de valor. De tais afirmações,

logo, a respeito da forma originária do valor extrair-se-iam as conseqüências da

generalidade das formas superiores da prática social, e ainda se demonstraria a

peculiaridade da dimensão em que elas se realizariam desse modo se

demonstraria o fato de que os valores, nos níveis mais altos da sociedade,

assumiriam formas mais espirituais o que não elimina o significado básico dessa

gênese ontológica. Para a análise do valor na esfera da economia, por

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conseguinte, a primeira característica de tal continuidade poderia ser observada

pela relação necessária que haveria entre essas formas qualitativamente distintas

do valor, ou seja, o valor seria a unidade entre valor-de-uso e valor-de-troca.

Segundo Lukács com valor econômico não desapareceria o fundamento primeiro

do valor sob a forma de valor-de-uso, pois haveria uma universalidade comum a

toda formação social precisamente por ser a expressão primordial da relação

orgânica existente entre homem e natureza: “A objetividade do valor econômico

está fundada na essência do trabalho enquanto relação orgânica entre sociedade

e natureza e, contudo, a realidade objetiva do seu caráter de valor remete para

além deste nexo elementar.” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 89)

A diferença entre o caráter imediato do valor-de-uso como parâmetro da

prática no trabalho originário e o valor-de-troca em que se poderia constatar que

nas formas superiores a relação com a produção de um dado valor não seria

imediata, ou seja, surgiriam mediações que se estabeleceriam para além da

dimensão própria da relação homem/natureza, isto é, tal relação receberia uma

influência sempre crescente de uma maior mediação social em seu processo de

efetivação.

O valor-de-troca se fundamentaria, assim, na essência do trabalho, todavia a

realidade objetiva do seu caráter de valor possui propriedades que não seriam

encontradas na forma originária do valor, ou seja, conteria elementos que o

tornariam distinto do valor que estão na gênese do trabalho.

No valor econômico se verifica deste modo uma elevação qualitativa em relação àquele valor que era já imanente na atividade simples, produtora de valor-de-uso. Tem-se de tal modo um movimento dúplice e contraditório: por um lado o caráter de utilidade do valor sofre elevação no universal, na autoridade sobre toda a vida, e isso ocorre simultaneamente ao tornar-se sempre mais abstrata a utilidade, na medida em que o valor-de-troca sempre mediado, elevado à universalidade, em si contraditório, assume a função de guia nas relações sociais entre os homens. Aqui é necessário não esquecer que o pressuposto para que o valor-de-troca possa ter curso é o seu fundar-se sobre o valor-de-uso. O elemento novo é, destarte, um desenvolvimento contraditório, dialético, das determinações originárias, já presentes na gênese, não a sua negação abstrata. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 89)

Observar-se-ia, assim, o caráter complexo do valor-de-troca através da relação

de independência ou não com o valor-de-uso, o que se traduziria em sua

especificidade contraditória, ou seja, o valor econômico não poderia se realizar

sem se fundamentar sobre um valor-de-uso, todavia, concomitantemente

assumiria o caráter de uma universalidade e ainda determinaria de forma decisiva

o próprio modo da produção dos valores-de-uso:

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[...] os valores-de-uso, ou bens, representam uma forma de objetividade social, que se distinguem das outras categorias econômicas somente porque, sendo estas objetivações da relação orgânica entre a sociedade com a natureza, estabelecem um dado característico de todas as formações sociais, de todos os sistemas econômicos, não sendo, considerada na sua universalidade, sujeita a nenhuma transformação histórica; todavia naturalmente transformam continuamente os seus modos concretos de apresentar-se, até mesmo no interior de uma mesma formação social. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 80)

Vale, destarte, dizer que aqui iremos tratar daquela noção anteriormente

referida, “Aufhebung”, pela qual se compreenderia a existência de formas

qualitativamente distintas de uma dada categoria, mas que, entretanto guardariam

entre si uma relação de identidade sobre determinados traços decisivos que

poderiam ser identificadas na análise de sua forma originária.

A objetividade e também o critério de sua utilidade como determinante de sua

definição se manteria na forma dos valores-de-troca, contudo sofreriam a

complexificação da prática social-humana uma, por assim dizer, elevação à

dimensão de sua universalidade e, perde, assim, seu aspecto de uma prática

singular ligada a necessidades sociais específicas e terminaria, por conseguinte,

por se estender por todas as dimensões da vida em sociedade.

O caráter complexo do valor na dimensão da economia possibilitaria fazer os

apontamentos necessários para refutar qualquer orientação de fundamentação

subjetivista. A descrição dessa generalidade do valor-de-troca, e igualmente a

refutação da fundamentação subjetivista seria formulada da seguinte maneira:

A economia, mesmo aquelas mais complexas, é resultante das posições teleológicas particulares e das suas realizações, ambas na forma de alternativas. Naturalmente o movimento global das cadeias causais que essas criam, produzem, por intermédio, das suas interações mediatas e imediatas, um movimento social cujas determinações últimas se solidificam em uma totalidade processual. Essa por sua vez, de certo nível em diante, não mais é apreensível por parte dos sujeitos econômicos particulares, que operam as posições e decidem entre as alternativas, com tal imediaticidade de forma que as suas decisões possam orientar-se por um valor, com absoluta segurança, como ocorria no trabalho simples criador de valor-de-uso. Na maior parte dos casos, os homens dificilmente conseguem acompanhar suas próprias decisões. Como poderiam então [os homens] criar o valor econômico com as suas posições de valor? Pelo contrário, é o valor mesmo que existe objetivamente e é exatamente a sua objetividade que determina, ainda que objetivamente não com a certeza adequada e subjetivamente não com consciência adequada – as posições teleológicas singulares orientadas por um valor. (LUKÁCS, Vol. II, 1981 p. 86)

Portanto, à medida que tal processo teria origem nas posições teleológicas

singulares dos indivíduos porque determinariam por intermédio de suas escolhas

imediatas sua orientação em nível desse mesmo processo seriam também

determinados pela totalidade do complexo do ser social desse modo

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desenvolvida. Segundo o pensamento lukacsiano, assim, a complexidade que

teria lugar nas práticas superiores, igualmente teria sua origem nos atos

singulares dos indivíduos, que ao optarem entre alternativas postas poriam, por

sua vez em movimento uma cadeia de outras determinações sociais, que

transcenderiam o aspecto imediato de suas decisões, logo, produziria

“alternativas de estrutura análoga e fazem surgir séries causais cuja legalidade

termina por ir além das intenções contidas nas alternativas.” (LUKÁCS, Vol. II, 1981

p. 327) Por conseguinte, as leis gerais e ainda as tendências da economia

revelar-se-iam como a resultante “de uma ineliminável concomitância operativa

entre o homem singular e as circunstâncias sociais em que atua” (LUKÁCS, Vol. II,

1981, p. 327), pois seriam a síntese das inumeráveis posições teleológicas

singulares efetivadas no processo histórico em que a humanidade se

desenvolveria.

Precisamente, as sociedades mais avançadas em que a produção revelar-se-ia

na sua relação em uma complexidade tal que impossibilitaria ao sujeito que

produz o valor, uma compreensão daquilo que efetivariam em suas posições

singulares. Assim sendo, o sujeito responderia à sua prática imediata, todavia tal

prática basear-se-ia em alternativas que iriam além da singularidade de seus atos

e que, assim sendo, estabeleceria uma dinâmica tal que poria em movimento um

conjunto de nexos que, por sua vez criariam novas alternativas, acerca das quais

ele possuiria acidentalmente consciência. Assim, o valor não se sustentaria como

algo subjetivo, pois os sujeitos raramente dariam seguimento à repercussão de

seus atos singulares na formação de tais valores. As alternativas dos valores da

economia se manteriam em nível de sua objetividade ontológica independente

das intenções conscientes dos indivíduos, todavia, seriam suas posições

singulares que realizariam o valor econômico, pois estariam alinhadas com as

tendências mais gerais das leis econômicas. Assim é que do trabalho e ainda na

“prática econômica as alternativas são orientadas sobre valores que não

constituem de nenhum modo resultados, sínteses, etc., de valores singulares

subjetivos, mas ao contrário é a sua objetividade no interior do ser social que

estabelece se são corretas ou erradas as posições alternativas que visam ao

valor.” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 91) Portanto, A formação do valor econômico não

se fundamentaria como no trabalho originário em que a posição do valor revelar-

se-ia diretamente como o dever-ser da prática laboral.

A questão do valor em nível do modo de produção capitalista, ou seja, quanto

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tempo seria socialmente necessário para a produção de um dado bem ou valor-

de-uso, revelar-se-ia como tendência geral determinante à medida que se

colocaria como critério necessário que põe a necessidade de sua realização como

alternativa objetiva para as posições singulares. Lukács endossa a afirmação do

próprio Marx segundo a qual assim

[...] como a sociedade deve repartir seu tempo de forma planificada para

conseguir uma produção adequada às suas necessidades globais, assim

o indivíduo singular deve repartir justamente o seu tempo para obter

conhecimento em proporção adequada ou para satisfazer as variadas

exigências da sua atividade. (MARX, apud LUKÁCS, Vol. II, 1981, p.

86)

A objetividade de lei econômica residiria na imediaticidade da vida de cada

sujeito porque “[...] os efeitos causais dos diversos fenômenos se sintetizam

exatamente nessa lei, por essa via retroagem depois sobre os atos singulares,

determinando-os, e o singular deve, sob a ameaça da ruína, adequar-se a tal lei

[...]” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 87); seria o que se verifica em toda sua amplitude à

medida que se considera o desenvolvimento econômico da humanidade seria

possível observar que o crescente aumento da quantidade de valores produzidos

implicaria a diminuição do trabalho socialmente necessário para a sua produção.

A partir tanto do desenvolvimento da riqueza quanto do aumento da produção,

ambos promoveriam paralelamente o domínio humano sempre crescente sobre

as forças da natureza, em nível da chamada natureza objetiva, quanto sobre as

da sua própria natureza. O pensamento lukacsiano afirmaria que “o que na lei do

valor, entendida em geral, se expressa como diminuição quantitativa do tempo de

trabalho socialmente necessário na produção de mercadorias é apenas um lado

da conexão global, cujo elo integrativo é formado pelo desenvolvimento das

faculdades humanas.” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 86) Tal lei se colocaria como uma

necessidade para as práticas singulares dos sujeitos, pois daria fundamento ao

processo de desenvolvimento tanto em nível objetivo quando subjetivo do ser

social. Assim, a ação de retroagir sobre os atos singulares dos sujeitos não

possuiria apenas esse caráter pernicioso porque à medida que o aumento da

produção e a conseqüente diminuição do tempo de trabalho necessário para sua

execução se efetiva, a sociabilidade humana se revelaria, pois haveria o recuo

das barreiras naturais.Tal dinâmica que é imanente às próprias tendências

econômicas realizariam, ainda que os homens não tenham a exata consciência

desse fenômeno, o desenvolvimento das faculdades humanas. O

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desenvolvimento das capacidades produtivas humanas, sendo assim apareceria,

por si só como um valor, ou seja, como um processo que em si mesmo

promoveria o desenvolvimento das categorias específicas dessa forma de ser,

mesmo que de um modo contraditório o ser social realizaria a si mesmo no

interior de tal processo. Tanto que no processo formativo das faculdades

humanas que se iniciaria em seu fundamento original o trabalho não se encerraria

com o surgimento das formas superiores do valor econômico, ele se conservaria

cada vez mais mediado, subjugado às leis do valor da economia que fariam com

que os sujeitos desenvolvam suas faculdades humano-sociais, e, assim, ampliem

tanto sua capacidade de dominar a natureza e igualmente realizariam seu próprio

mundo.

A prática econômica é obra dos homens, mediante atos alternativos, a sua totalidade, contudo forma um complexo dinâmico objetivo, cujas leis ultrapassam a vontade de cada homem particular, se contrapõe a eles como sua realidade social objetiva, com toda a dureza característica de toda realidade, e, porém na sua objetiva dialética processual produzem e reproduzem em níveis sempre mais elevados o homem social; mais precisamente: produzem e reproduzem seja aquelas relações que tornam possíveis o imediato desenvolvimento do homem, seja no homem mesmo aquelas faculdades que transformam em realidade tais possibilidades. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 88)

O processo de desenvolvimento diante da singularidade teria a total

independência avaliativa dos homens, pois ai residiria o caráter objetivo do valor

econômico e também das tendências decorrentes de sua explicitação. A esse

respeito Lukács esclarece que

A relação real, objetiva, autônoma da consciência, que designamos aqui com o termo ‘valor’, é efetivamente, sem prejuízo dessa sua objetividade, em última análise, todavia tão somente em última análise, o embasamento ontológico de todas a relações sociais que chamamos de valores; e, por isso, ainda o veículo de todos os tipos de comportamento socialmente relevantes que são chamadas de avaliações. (LUKÁCS, Vol. I, 1981, p. 326)

A prática dos homens na medida em que corresponde à legalidade econômica

imanente tornar-se-ia efetiva capaz de realizar valor, seria capaz de incidir sobre

ela mesma e a partir de sua própria objetividade transformá-la efetivamente, seria

a questão transformação radical da sociedade, ou seja, da revolução. Muito

embora o desenvolvimento do ser social, em seu processo específico, seria dado

pelo caráter dual de sua determinação, ou seja, seria uma “simultânea

dependência e independência dos seus produtos e processos específicos em

relação aos atos individuais que, imediatamente, os fazem surgir e prosseguir.”

(LUKÁCS, Vol. I, 1981, p. 323-4) Explicitar-se-ia, assim, a perspectiva de Marx

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segundo a qual “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como

querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com

que se defrontam diretamente legadas e transmitidas pelo passado” (MARX,

1978, p. 329)

O que equivale dizer que esta totalidade processual não poderia ser tomada

como algo transcendente às próprias individualidades, como totalmente

independente das ações dos homens, mas pelo contrário, deveria ser vista como

a resultante das posições teleológicas singulares, que na sua totalidade

retroagem sobre os próprios indivíduos provocando neles conseqüências e

desdobramentos que explicitariam formas cada vez mais sociais de mediação de

suas relações com a natureza e entre si mesmos e, promoveriam, assim, tanto o

desenvolvimento de suas capacidades humano-sociais, quanto gerariam uma

série de alternativas que extrapolam o campo da esfera econômica propriamente

dita. Tais afirmações levariam à compreensão acerca da objetividade do processo

que se entenderia como a resultante sintética do movimento singular e do

processo global. Os valores econômicos, portanto, revelar-se-iam como

momentos reais, constituídos no processo histórico do ser social que, por sua vez,

atuariam objetivamente na formação e configuração de seu processo de

desenvolvimento. Outra questão essencial diz respeito ao fato de que, a

economia apareceria como “momento preponderante” da realização dos

momentos do ser social, porém, seria importante esclarecer que “não podem

existir atos econômicos privados de uma intenção” (LUKÁCS, Vol. I, 1981, p. 90)

que, consequentemente, seriam independentes dos sujeitos que a realizam

através suas finalidades mais imediatas.

Tratar-se-ia, logo, de fundamentar os nexos gerais daquilo que seria como uma

continuidade da base material da sociedade em relação às formas mais evoluídas

da prática social. Assim, na relação existente entre forma do valor-de-uso e valor-

de-troca, a economia e ainda nas práticas sociais superiores, haveria um vínculo

estrutural entre essas formas de valores. A estrutura que seria identificada como a

gênese da categoria do valor, a relação que foi estabelecida entre ela e as formas

do valor econômico, esclareceriam outras dimensões da prática social, como a

estética, a ética, moral, o direito, etc. Assim, é que à medida que as posições da

dimensão econômica se realizem seria preciso que essas posições teleológicas

se apresentem diretamente voltadas à forma de organização dos homens no

interior de uma dada sociedade. Precisamente, expor nesse momento a

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problemática axiológica não se oporia ao pensamento lukacsiano, porque à

medida que se coteja as formas primárias da prática social com as formas

superiores poder-se-ia constatar que a

[...] diferença determinante entre alternativas originárias do trabalho endereçado exclusivamente ao valor-de-uso e aquelas do trabalho em um nível superior, provém do fato de que o primeiro contém posições teleológicas que transformam a própria natureza, enquanto no segundo o fim é primordialmente agir sobre as consciências de outros homens para induzi-los às posições teleológicas desejadas. O campo da economia socialmente desenvolvida contém posições de valor de ambos os tipos, variadamente intrincadas, entretanto tal complexo, mesmo aquele do primeiro tipo, sem perder a sua essência originária, sofre transformações que o tornam distinto. De forma que, no domínio da economia isto produz uma maior complexidade do valor e das posições de valor. Quando depois, nós passamos à esfera não econômica, nos encontramos de frente questões ainda mais complexas, de qualidades diversas. Isso não significa de modo algum que a continuidade do ser social não exista e não opere mais. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 91)

Nas formas superiores da prática social seria possível encontrar as alternativas

típicas das posições teleológicas secundárias em que estariam envolvidos valores

que estão indiretamente vinculados com a posição de valores econômicos,

todavia guardariam uma relação com esse complexo específico da totalidade do

ser social, pois, à medida que se observa as formações superiores do ser social

em sua totalidade se verificaria que as alternativas presentes não são apenas de

conteúdo eminentemente econômico, porém, seriam formadas por um conjunto

interconectado de alternativas econômicas e extra-econômicas. De modo que os

valores existentes na dimensão, por exemplo, do direito não seriam um código de

convenções produzidas pelos juristas, contudo responderiam as alternativas

postas pela totalidade da prática social a partir de um plano de decisões não mais

diretamente fundamentado na posição de valores econômicos, não obstante

viessem à regular aspectos específicos da dimensão econômica.

A relação entre a dimensão jurídica e a dimensão econômica seria

compreendida como o conteúdo das inter-relações existentes entre as instâncias

distintas das formações sociais superiores. O direito no curso da história, que

assumiu uma forma de relativa independência em relação à dimensão econômica,

todavia, sua origem seria uma forma de mediação orientada a uma melhor

regulação da reprodução social. A complexificação da produção material

promove o surgimento do direito como necessidade de ordenar e regulamentar

atividades materiais decisivas; ou, nos termos de Lukács, a regulamentação

jurídica, “não entra na produção material em si; todavia, essa última, a certo

estágio, não poderia mais se desdobrar de forma ordenada sem uma regulação

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jurídica da troca, dos contratos, etc.” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 477) Ou seja, são

dimensões que se encontrariam na realidade em determinação reflexiva. “É

propriamente a objetiva dependência da esfera do direito da economia e ao

mesmo tempo a sua heterogeneidade, assim produzida no confronto com esta

última, que na sua simultaneidade dialética determinam a especificidade e

objetividade social do valor.” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 92)

Na medida em que as leis e normas do direito, por conseguinte, regulariam o

caráter das alternativas da dimensão econômica, e necessariamente interagem

entre si de modo que atuariam decisivamente na própria realização dos valores

econômicos. Logo, prioridade do momento econômico seria o reconhecimento de

sua anterioridade no interior deste processo de inter-relação. Assim sendo, um

não se realizaria sem o outro, pois são momentos que se revelariam como uma

unidade em nível do complexo do ser social, todavia a dimensão do direito se põe

por uma necessidade da dimensão econômica uma vez que anterioridade e

igualmente a preponderância seria da economia. O direito teria por base o mesmo

conjunto de alternativas concretas postas pelo pela necessidade histórico-social,

não obstante afirmar a existência de um fundamento comum, ou seja, o processo

histórico social, não implicaria abordar as formas de alternativas extra-

econômicas como reflexos passivos da dimensão econômica; ambas surgiriam

por necessidade ontológica e ainda constituiriam uma determinante necessária

para o desenvolvimento do processo histórico.

Demonstrar, entretanto, a objetividade das grandezas que iriam além da

dimensão econômica propriamente dita que, estariam assim, em nível axiológico.

Seria, portanto, uma tarefa necessária para se confirmar a tese da continuidade

entre as formas de valores mais imediatas à relação homem/natureza abordar o

valor econômico como fundamento da reprodução social e aquelas mais

evoluídas. Logo, à medida que se aborda a questão do direito como categoria que

estaria em uma relação mais imediata com a dinâmica reprodutiva da vida social

a continuidade entre ambas as dimensões revelar-se-ia com mais clareza. A

situação seria mais complexa quando se considera os valores em que alternativas

se poriam quase sempre de um modo heterogêneo às tendências econômicas

necessárias ao processo de reprodução.

Sob a perspectiva ontológica, todavia seria necessário reconhecer que a

origem, tanto dessa heterogeneidade quanto do antagonismo entre valores, seria

dada pela dinâmica do processo de desenvolvimento do ser social. É próprio do

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fundamento dos valores nas formas superiores da prática social, revelarem-se

também em um antagonismo com as alternativas e ainda com as tendências da

própria base econômica da sociedade.

Pelo fato de que o desenvolvimento que se cumpre na economia não é, por observar a sua totalidade, um desenvolvimento teleologicamente posto, muito embora tenha o seu fundamento nas singulares posições teleológicas dos homens particulares, entretanto consiste ao invés em uma cadeia causal espontaneamente necessária, propriamente por isto os modos fenomênicos historicamente e concretamente necessários podem dar lugar às mais ásperas antíteses entre progresso econômico objetivo [...] e as suas conseqüências sobre os indivíduos. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 92)

As posições singulares dos indivíduos, sendo assim, não acompanhariam de

um modo imediato a homogeneidade dos valores da economia, o que poderia

levar a assumir a forma de uma reação a essas tendências que se colocariam

como uma necessidade causal e, portanto, legal. Lukács Adverte que, “a

contraditoriedade aqui é apenas um importante momento de sua recíproca

integração.” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 92) Assim, a objetividade e igualmente a

legalidade dinâmica do ser social estaria necessariamente vinculada às decisões

entre alternativas dos indivíduos, todavia, em sua totalidade processual,

possuiriam uma delimitação social que se verificaria em nível dos atos singulares.

Nesta medida, mesmo que degenerescentes no plano das virtudes humanas,

essas reações tornar-se-iam verdadeiras potências sociais e contribuiriam de

modo não desconsiderável para a dissolução da sociedade “gentílica sem classe”.

O antagonismo, por conseguinte, demonstraria, em sua contraditoriedade tanto o

desenvolvimento humano quanto a degenerescência humano-moral quanto à

forma não linear que esse processo poderia assumir. Logo, não haveria um cisma

entre categorias díspares da prática social, porém uma continuidade mediatizada

pelo hic et nunc histórico-social. Lukács, para esclarecer os aspectos de tal

contradição não linear existentes entre valores econômicos e valores morais cita

Engels, que na introdução à obra de Marx “Miséria da Filosofia” (MARX, 1976)

expõe como a dissolução do comunismo primitivo aparece como uma dinâmica

progressiva do processo do ser social, porém que tal processo conduz no nível

mais imediato ao surgimento dos mais mesquinhos interesses no plano moral, ou

seja, avareza, rapina, violência, traição, etc. Lukács, em suas considerações

acerca do fundamento comum de tais valores contraditórios faz referência às

utopias:

Toda utopia é por seu conteúdo e destinação determinada por aquela sociedade que ela repudia; cada uma das suas contra-imagens histórico-

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humanas se refere a um determinado fenômeno do hic et nunc histórico-social. Não existe questão humana que não seja, em última instância, aberto e [...] determinado pela prática real da vida da sociedade. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 92)

Assim, seria possível estabelecer com certa facilidade a distinção entre

alternativas econômicas e extra-econômicas. A situação ficaria mais complexa à

medida que as alternativas estabeleceriam decisões que deveriam ser assumidas

pelos indivíduos entre valores que sejam antagônicos. Pois, nas formas

superiores da prática social em que

[...] não somente o conteúdo das alternativas vai além da relação orgânica da sociedade com a natureza, todavia se abre um espaço para fenômenos conflituosos. As alternativas cujos objetivos são a realização de valores assumem rapidamente a forma de irresolúveis conflitos entre deveres. O conflito não se desenvolve simplesmente entre o reconhecimento de um valor como ‘que coisa’ e o ‘como’ da decisão, porém se apresenta na prática como conflito entre valores concretos, concretamente em vigor; a alternativa está na escolha entre valores que se contestam mutuamente. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 94)

Tal antagonismo entre valores poderia reforçar a noção da fundamentação

subjetiva dos valores, pois na medida em que são contraditórios, pareceriam

sempre referidos às decisões individuais. De modo que não se encontraria uma

rígida separação entre formas de valor, todavia haveria valores que se referem

diretamente a mesma esfera de realizações, porém são contrapostos. Tais

posições são passíveis de realizar valor, a alternativa se daria, logo, em qual valor

realizar. No entanto contrariamente a isso Lukács esclarece que:

A legalidade imanente da economia não somente produz estes antagonismos entre a essência objetiva do próprio processo e as concretas formas que esses tomam na vida do homem, contudo faz do antagonismo um dos embasamentos ontológicos do próprio desenvolvimento global: por exemplo, depois que o comunismo primitivo foi suplantado pela necessidade econômica da sociedade de classes, as decisões de cada membro da sociedade relativa à sua vida vem a ser fortemente determinada pelo fato de pertencer a uma classe e pela sua participação na luta entre as classes. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 94)

A origem de tais alternativas antagônicas, assim, postas às individualidades

seria resultado das contradições presentes na própria estrutura do processo

social. Não se poderia, portanto, afirmar que essas alternativas entre valores

divergentes teriam sua gênese em atribuições subjetivas, todavia seriam

estabelecidas pelas reais condições do hic et nunc histórico social em que vivem

os indivíduos. Poder-se-ia verificar o sentido que essa complexidade assume nas

formas superiores da prática social. Com o fim, portanto, do comunismo primitivo

e o surgimento da sociedade de classes, as decisões dos indivíduos passariam a

ser determinadas por sua classe e também pela luta entre as classes com

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interesses antagônicos no interior da sua formação social. Destarte essas

afirmações refutam a tese subjetivista quando vê na objetividade do processo

econômico a base dos antagonismos entre valores. Lukács critica as diversas

formas que a concepção relativista dos valores poderiam assumir, ao afirmar que

[...] nelas, não existe a realidade, entretanto, de um lado, o permanecer fechado na imediaticidade com que o fenômeno se apresenta, de outro, um sistema hiper-racionalizado, logicizado, hierárquico de valores. Estes dois extremos igualmente falsos, se postos em funcionamento por si mesmos, levam ou a um empirismo relativista ou a uma concepção racionalista não aplicável em termos adequados à realidade; quando relacionados um ao outro, nasce a aparência de que a racionalidade moral é impotente perante a realidade. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 94)

Somente a refutação dessa concepção poderia acontecer à medida que a

questão seria confrontada com a perspectiva ontológica fundamental que

abordaria a substancialidade do ser sob em um nível totalmente distinto:

A substância é aquilo que no eterno mudar das coisas, por mudar a si mesma, é capaz de conservar-se na sua continuidade. Este dinâmico conservar-se não é necessariamente conexo a uma ‘eternidade’: as substâncias podem nascer ou morrer, sem que por isso deixe de ser substância porque se mantêm dinamicamente no período de tempo da sua existência. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 95)

A substância seria aquilo que permanece em sua transformação, portanto, o

movimento e a transformação da sua essência fariam parte do seu ser; a

substância seria o próprio movimento, ela é em-si mesmo movimento. Assim, pelo

fato de o processo social revelar-se em uma forma de complexidade antagônica

entre valores que deveriam compreender esse antagonismo como fruto do

movimento incessante em seu processo. Logo, à proporção que se atem ao

fenômeno perder-se-ia a dimensão da dinâmica mobilidade da essência do ser

social e, assim sendo, haveria a inversão em que o fenômeno seria visto como

essência, por conseguinte, “o conteúdo e a forma sofrem continuamente radicais

modificações qualitativas.” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 351) Lukács acrescenta que

Todo valor autêntico é, por conseguinte, um momento importante naquele complexo fundamental do ser social que nós chamamos prática. O ser do ser social se conserva como substância no processo de reprodução; este último, porém, é um complexo e uma síntese de atos teleológicos, os quais de fato se ligam à aceitação ou recusa de um valor. Em todo pôr prático está intencionado, positivamente ou negativamente, um valor, e isso pode levar a pensar que os valores não são outra coisa senão a síntese social de tais atos. Disso a única coisa certa é que os valores não poderiam adquirir uma relevância ontológica na sociedade se não se tornassem objeto de tais posições. Entretanto esta condição que deve intervir a fim de que o valor se realize não é idêntica à sua gênese ontológica. A fonte verdadeira de tal gênese é, contudo, a ininterrupta transformação da estrutura do ser social, é de tal transformação que surge diretamente às posições que realizam o valor. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 95)

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Na prática singular, entretanto, as posições do valor se encontrariam

diretamente vinculadas às intenções do indivíduo que, por sua vez, se realizaria

pela aceitação ou recusa de dados valores, não obstante os valores se ligarem na

sua prática imediata a alternativas objetivamente existentes no complexo social

de reprodução. Assim, o conjunto das tendências ao desenvolvimento do

processo social revelar-se-ia em uma unidade necessária com o conjunto de

tendências particulares de uma dada época, formar-se-ia, assim, uma unidade

indissolúvel em nível da imediaticidade da prática singular, em que os sujeitos

tomariam suas decisões entre as alternativas sem terem a exata noção da

dinâmica causal que eles poriam, assim sendo, em movimento. Portanto, recusa

ou a aceitação de determinados valores poderiam interferir socialmente, contudo

em referência necessariamente às condições históricas sociais existentes. Logo,

o conjunto de tais decisões revelar-se-ia nos mais diversos contornos, poderiam,

assim, “dirigir-se ao essencial ou ao contingente, àquilo que leva adiante ou que

freia” (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 98), todavia são sempre respostas às alternativas

concretas postas pelas reais possibilidades do processo de desenvolvimento do

ser social. O que esclareceria, pois, a natureza das decisões humanas, ou seja,

se são necessárias ou contingentes, não seriam as decisões em si mesmas, não

obstante a efetividade de suas posições diante das possibilidades existentes na

dinâmica de desenvolvimento do ser social. Consequentemente, para que um

valor seja realizado seria necessário que ele seja assumido como posição nos

atos singulares dos indivíduos, contudo sua origem não seria da mesma ordem

dessas decisões singulares. Assim, em nível da imediaticidade da prática dos

indivíduos, os valores teriam a aparência da síntese social de suas decisões

alternativas singulares. “Os homens respondem por si, mais ou menos

conscientemente, mais ou menos justamente, às alternativas concretas que lhes

são postas a cada momento pelas possibilidades do desenvolvimento social.”

(LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 95)

Os valores possuem, assim, uma objetividade histórica, que eles sempre

correspondem ao hic et nunc histórico social, “os valores, portanto, são objetivos

porque são partes moventes e movidas do desenvolvimento social global.”

(LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 97) Pois, a gênese de tais valores residiria na ininterrupta

transformação da estrutura do ser social, ou seja, a objetividade dos valores seria

necessariamente antes uma objetividade histórica. O que não se trataria de um

relativismo histórico dos valores, todavia no fato de as alternativas a que esses

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sujeitos respondem em sua prática social estaria vinculada ao movimento

histórico do processo desenvolvimento do ser social.

Lukács esclareceria que, “essas relações, processos, etc. objetivos, mesmo por

continuar a existir e a agir independentemente das intenções dos atos humanos

individuais, só emergem a condição de ser como realizações desses atos e

unicamente por retroagir sobre novos atos humanos individuais podem

ulteriormente desenvolver-se.” (LUKÁCS, Vol. I, 1981, p. 326) Ou seja, os valores

não são entes existentes em-si, porém, formas objetivas de objetividade social,

formas de objetividade humanamente formadas no processo de desenvolvimento.

Assim, à medida que a importância seria colocada na objetividade dessa

totalidade processual face às decisões singulares dos sujeitos, não se negaria a

importância dos aspectos subjetivos na definição desse processo. Por outro lado

haveria em tais determinações a idéia de um determinismo da base econômica

sobre as decisões dos indivíduos. Como o próprio autor nos adverte:

Nós sublinhamos fortemente este momento de independência para dar o justo relevo ao caráter do ser, ontológico-social, do valor. Esta é uma relação social entre fim, meios e indivíduo, e por isso possui um ser social. Em verdade este ser contém ao mesmo tempo um componente de possibilidade, já que em si determina exclusivamente o campo da resolubilidade das alternativas concretas, o seu conteúdo social e individual, as direções que podem vir a serem resolvidas as questões que estão presentes nele. O desenvolvimento deste ser-em-si, o seu crescimento até um verdadeiro para-si, o valor o experimenta nos atos que o realizam. Todavia característico das situações ontológicas que ora temos diante de nós, é que tais realizações, inevitáveis para que o valor tenha enfim realidade, permanecem na prática humana indissolúvel com o próprio valor. É o valor que dá à sua realização as determinações que lhe são próprias, não o contrário. Isso, entretanto, não deve ser entendido no sentido de que a partir do valor possa ser ‘deduzida’ idealmente sua realização, que a sua realização seria simplesmente o seu ‘produto laboral’ humano. As alternativas são embasamentos necessários da prática humano-social e somente abstratamente, nunca realmente, podem ser destacadas das decisões do indivíduo. Contudo o significado que essas soluções entre alternativas assume para o ser social depende do valor, ou melhor, do processo concreto das possibilidades reais de reagir praticamente à problematicidade de um hic et nunc histórico-social. Por isso aquelas escolhas que realizam na forma mais pura estas possibilidades reais, por afirmar ou negar os valores, assumem em cada fase do desenvolvimento uma exemplaridade positiva ou negativa. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 292)

A objetividade não independeria, portanto, dos indivíduos, bem ao contrário, ela

só se realizaria através de suas posições. Destarte, as coisas não se

transformariam por si mesmas, ou seja, não se estaria frente a uma dinâmica

espontânea que poria a si mesma, todavia de um processo que seria dado pela

unidade entre as tendências globais do complexo e o conjunto de decisões

tomadas pelos indivíduos em resposta a alternativas objetivas, ou seja, os

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valores, existentes na sociedade em que vivem. Seria a escolha entre os valores

que poderiam ser realizados e os valores efetivamente postos como realidade que

daria o direcionamento do processo, não obstante tais possibilidades sejam dadas

objetivamente pelo processo histórico do desenvolvimento do ser social. Por

conseguinte, o valor daria à sua realização as determinações que lhe seriam

próprias, contudo elas só se efetivariam através da ação e igualmente das

decisões entre as alternativas assumidas pelos indivíduos em sua prática.

Quando se fala, assim, em alternativas se lida sempre com a unidade do ser

social em uma relação necessária com a objetividade. Assim, Lukács

compreenderia a dinâmica da prática social mediante o homem como ser prático

que optaria entre alternativas objetivas postas pelo hic et nunc histórico-social.

Tais determinações em seus lineamentos gerais em nível do processo

autoconstitutivo humano, seriam esclarecidos na passagem que se segue:

A alternativa de uma dada prática não consiste unicamente em dizer ‘sim’ ou ‘não’ a um determinado valor, todavia ainda na escolha do valor que forma a base da alternativa concreta e nos motivos pelos quais se toma aquela posição nos seus confrontos. Sabemos que o desenvolvimento econômico dá a espinha dorsal do progresso efetivo. Os valores determinantes, que no processo se conservam, são por isto sempre, conscientemente ou não, imediatamente ou com mediações bastante amplas, referidas a ele; porém objetivamente faz grande diferença quais momentos da totalidade deste processo são objeto das intenções e das ações daquela alternativa concreta. É por esta via que os valores se conservam na totalidade do processo social consecutivamente renovado, por esta via, a seu modo, tornam-se partes integrantes reais do ser social no seu processo de reprodução, elementos do complexo chamado ser social. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 98)

Sendo assim, as tendências gerais em seu processo global, independeriam da

vontade humana, pois seriam o fundamento de todas alternativas do ser social,

todavia entender-se-ia tal fundamento como possibilidade objetiva, não como uma

necessidade fatal, que por sua vez determinaria tudo antecipadamente; logo, o

modo de sua ação e as posições do valor predominantes no processo do ser

social, que dariam o direcionamento do processo só seria racionalizáveis post

festum. Assim, a totalidade do processo de desenvolvimento do ser social revelar-

se-ia em de possibilidades de alternativas, que implicariam escolhas entre valores

contraditórios. Portanto, todo ato humano seria necessariamente feito de posições

alternativo-teleológicas, pois estariam associados a condições objetivas

existentes no meio social. Para o pensamento lukacsiano a estrutura objetiva do

caráter íntimo de tais alternativas situar-se-ia no plano quase exclusivo das

decisões pessoais das alternativas sociais, pois prova a validade da estrutura

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originária, ou seja, a continuidade do critério alternativo objetivo de toda prática

social humana. Lukács, acerca da objetividade dos valores espiritualizados,

conclui que

[...] ainda nestes casos, em que a alternativa no imediato já se tornou puramente íntima, o embasamento das intenções e das decisões são sempre objetivamente determinações da existência social, por conseguinte os valores realizados na prática não podem deixar de possuir um caráter socialmente objetivo. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 89)

Todo ato efetivo humano seria, por conseguinte, um pôr teleológico, o que

implicaria necessariamente tomada de decisão entre alternativas. Assim, a

distinção fundamental entre o homem e as demais formas de vida no reino animal

seria que haveria animais que decidem entre possibilidades, todavia o homem

optaria entre alternativas de produzir ou não valor. A continuidade da estrutura

originária do valor acerca do caráter alternativo das decisões humanas em face

de determinações objetivas, tanto na questão da objetividade presente no valor-

de-uso quanto na objetividade em nível do valor econômico, continuaria válida

também para a dimensão dos valores jurídicos, morais, éticos, estéticos, etc. A

atividade propriamente humana

[...] não consiste na mera escolha entre duas possibilidades, qualquer coisa do gênero acontece também na vida dos animais superiores, todavia na escolha entre aquilo que possui valor e aquilo que não possui valor, e, eventualmente (em estágios superiores), entre duas espécies diversas de valor, entre complexos de valores, propriamente porque não se escolhe entre objetos de um modo biologicamente determinado, com uma definição estática, contudo, se decide em termos práticos, ativos, se e como determinadas objetivações podem ser realizadas. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 354)

A estrutura originária, assim, da prática laboral representaria o ponto de partida

das formas sucessivas e ainda expressaria os fundamentos gerais necessários de

toda prática social humana. Seria nesse momento que se daria a distinção das

escolhas no reino dos animais superiores e as alternativas sobre as quais os

homens tomam suas decisões, ou seja, seria pela determinação do valor como

categoria específica do ser social que o complexo formado pelo trabalho

determinaria a ruptura com o modus operandi da natureza, pois em nível do ser

social o que haveria seria a formação de valores, não apenas a satisfação de

necessidades naturais. Tal condição adviria pela primeira vez com o trabalho e

permaneceria válida, para toda prática humano-social. Assim é que para o

pensamento lukacsiano na forma originária estariam contidos os lineamentos

gerais, a identidade abstrata presente nas formas qualitativamente distintas

posteriores, todavia seria necessária a especificação dos complexos e também de

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suas efetivas conexões históricas.

Naturalmente isto significa que a especificidade da gênese se conserva em termos extremamente gerais e, conseqüentemente abstratos. Conteúdo e forma sofrem consecutivamente radicais transformações qualitativas e, destarte, não se pode nem se deve simplesmente ‘deduzi-las’ da forma originária, entendê-las como meras variantes. Porém o fato de que esta forma originária, não obstante todas transformações, de um modo ou de outro, permaneça presente, é um sinal que se trata de uma forma elementar e fundamental do ser social, do mesmo modo como, por exemplo, a reprodução do organismo, mesmo com todas mudanças qualitativas, permanece analogamente uma forma permanente da natureza orgânica. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 351-2)

Haveria, por conseguinte, uma identidade abstrata entre formas

qualitativamente distintas de alternativas e práticas sociais, contudo, a

peculiaridade de cada alternativa em sua real instância de realização, em que se

poderiam determinar seus traços comuns revelaria o caráter geral de toda prática

social humana. Logo,

[...] colocar claramente a estrutura originária que representa o ponto de partida para as formas sucessivas, o seu necessário embasamento, contudo ao mesmo tempo também tornar visíveis as diferenças qualitativas que no curso do sucessivo desenvolvimento social comparecem com espontânea inelutabilidade e necessariamente modificam de maneira decisiva a estrutura originária do fenômeno. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 111-2)

Precisamente, a análise ontogenética, nesse momento, revelaria duas

considerações fundamentais na determinação lukacsiana do trabalho como

modelo da prática social: num primeiro instante a afirmação segundo a qual tais

fundamentos analíticos permitiriam determinar com precisão o ponto de ruptura

com o processo de reprodução natural remeteria à compreensão das

características do comportamento especificamente humano como algo que adviria

a partir do trabalho, assim é que o trabalho por sua estrutura própria, levaria ao

desenvolvimento de processos que remetem para além dele mesmo,

necessariamente. Num segundo momento a afirmação de que através

determinação ontológica da gênese do ser social, poder-se-ia se eliminar mal

entendidos que desviariam a recta compreensão dos fenômenos das formações

superiores da prática social, portanto, o trabalho não seria apenas o fenômeno

basilar de toda prática econômica, seria também o complexo que fundamentaria a

estrutura e o processo de desenvolvimento do ser social. Assim sendo, poder-se-

ia afirmar que todas as “manifestações do comportamento especificamente

humano, mesmo que através de amplas mediações, surgem do trabalho e por

isso, sob o plano ontológico-genético, devem ser entendidas a partir dele”

(LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 335)

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Com esta visão ontológica fundamental, são ainda dados o endereço e o método com que se deve mover para perceber no interior deste domínio de ser o desenvolvimento genético das categorias superiores (mais complexas, ulteriormente mediadas), sejam aquelas mais contemplativas, sejam aquelas mais práticas, tanto aquelas mais simples, como aquelas mais fundadas. É rechaçada deste modo, toda ‘dedução lógica’ do edifício, do ordenamento das categorias (neste caso o valor) por partir do seu conceito geral considerado em abstrato. Neste procedimento, os nexos e as características, cuja especificidade são estabelecidas ontologicamente, realmente, na sua gênese histórico-social, aparecem ao invés como pertencentes a uma hierarquia conceitual-sistemática, pela qual, dada a discrepância entre o ser autêntico e o pretenso conceito determinante, a sua essência concreta e a sua concreta interação resultam falsificadas. Deve-se rejeitar igualmente a ontologia vulgar-materialista que entende as categorias mais complexas como simples produtos mecânicos daqueles elementares, fundativos. Isso faz com que ela impeça a si mesma a compreensão da especificidade da forma originária, por um lado, e, por outro, cria uma falsa hierarquia, que se pretende ontológica, segundo a qual apenas às categorias elementares pode ser atribuído propriamente um ser. (LUKÁCS, Vol. II, 1981, p. 90)

A objetividade de tal processo seria criada pelos próprios homens quando eles

poriam em movimento a totalidade do processo a partir de suas posições

alternativo-teleológicas singulares, e mesmo as diretamente vinculadas a sua

necessária relação com a natureza, ou ainda, por intermédio das alternativas de

níveis mais evoluídos típicos das formas superiores da prática social. Pois,

através do fundamento ontogenético seria possível compreender a estrutura das

formas superiores, e até mesmo esclarecer o princípio ontológico fundamental do

processo de desenvolvimento do ser social como um crescente distanciamento

das barreiras naturais e a conseqüente complexificação social do intercâmbio das

relações entre os homens e dos homens com a natureza. Enfim, determinar a

objetividade de tal processo de desenvolvimento como algo fundado a partir dos

próprios complexos sociais. A legalidade do processo de desenvolvimento do ser

social não seria algo extrínseco ao próprio homem, mas fruto de um “movimento

interno, imanente, legal próprio”. (LUKÁCS, Vol. I, 1981, p. 340)

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Considerações finais

A procedência de todo presente estudo encontra-se, destarte, na importância do

trabalho como categoria constitutiva da extensão sócio histórica do homem e, por

conseguinte, como fundamento genético da práxis social. Assim, para Lukács, após

Marx, o trabalho seria o tema de análise para que se compreendam as demais categorias

específicas do ser social como o próprio trabalho, o dever-ser, a alternativa, o

estranhamento, a alienação e, assim sendo, ele dedicaria a esses temas grande parte da

sua obra “Para a Ontologia do Ser Social”. ( LUKÁCS, 1981)

Precisamente, o trabalho seria a categoria essencial da vida social dos homens,

os complexos estruturadores da sua práxis são desse modo, o reflexo de como se

constituiriam as relações de produção no trabalho. Por conseguinte, Lukács aceitaria ao

lado de Marx, que no modo de produção capitalista, em que se manifestaria o trabalho

estranhado, fetichizado, fundamentado no valor-de-troca, as relações humanas tornar-se-

iam também reificadas, e, geraria conseqüentemente uma sociabilidade estranhada. Tal

posição seria o resgate que Lukács faz da teoria de Marx. Todavia o pensamento

lukacsiano se aprofunda muito mais à medida que esclareceria com maiores detalhes a

ontologia do homem enquanto ser social. A sua contribuição maior residiria no

esclarecimento e também no lugar privilegiado conferido por ele e à posição teleológica

dos homens como lugar de ideação no domínio das suas atividades e na possibilidade de

sua realização. Deste modo, o comportamento do homem em sua práxis social tem

extensas interposições, contudo seriam originadas a partir do trabalho, portanto, em sua

dimensão ontogenética deveriam ser compreendidas a partir dele.

Lukács considera que não existiria uma teleologia na natureza, entretanto apenas

na extensão da atividade do homem que, por sua vez transforma a causalidade natural

em causalidade posta, e, fundamentaria, assim sendo, uma relação dialética entre

teleologia e causalidade. Seria nesse momento que se desenvolve o ser social. Tal

desenvolvimento se iniciaria com o por teleológico cuja gênese estaria necessariamente

no trabalho, lugar onde se situariam as teleologias primárias cuja realização resultaria em

nexos causais que, por sua vez dariam origem a uma nova objetividade social. O objeto

criado transforma, deste modo, por um lado tanto a individualidade quanto a objetividade.

O trabalho, assim sendo impele o indivíduo a desenvolver ações, habilidades,

pensamentos e relações sociais etc., que estariam além da atividade produtiva.

Mormente, ganha importância a partir daqui uma nova dimensão que seriam as

teleologias secundárias que, por sua vez teriam por objetivo influenciar os homens em

suas escolhas de alternativas a serem adotadas e executadas por eles. Seria a dimensão

da superestrutura em que se revelariam os complexos da vida social como, a política, a

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religião, a ética, etc.

Precisamente, as noções que atuariam na consciência humana, dos indivíduos e

até mesmo as circunstâncias presentes, tais pólos, subjetividade e objetividade, seriam

os elementos fundamentais do processo de posição e também de realização da

teleologia, ou seja, do processo de objetivação/alienação como exteriorização porque

seria uma síntese desse processo.

Justamente, a objetividade à medida que é social resultaria das ações humanas,

não obstante possa por vezes parecer completamente autônoma. No processo do

trabalho, por conseguinte, não haveria somente a ação do homem sobre a natureza,

todavia haveria também a ação dos homem sobre homem. São, assim sendo, as

teleologias primárias e secundárias, que por sua vez teriam uma essencial relação entre

si e ainda uma relativa autonomia. De tal modo que as relações sociais passariam a ter

uma autonomia tão extensa, que num primeiro momento pareceriam alheios a ação

humana, e se traduziriam, como diria Lukács, em uma segunda natureza. As teses de

Lukács, desse modo, analisadas à medida que compreende as categorias fundamentais

da vida social dos homens proporcionaria uma teoria do desenvolvimento do homem e

também nos proveria uma reconstrução sistematizada da ontologia marxiana. Mormente,

sobre a gênese do estranhamento no capitalismo que seria por sua vez o fetichismo da

mercadoria ao lado dos estranhamentos resultantes de tal fetichismo surgiriam em outros

domínios da vida do homem, ou seja, em nível social, pessoal, político, educacional, etc.

Lukács explica a gênese do estranhamento ao analisar o processo histórico da

vida social dos homens em que ocorreria o desenvolvimento de suas capacidades,

todavia tal desenvolvimento não atinge necessariamente a personalidade humana,

adversamente a degrada o que faria surgir o estranhamento, que seria um fenômeno

histórico-social, pois passaria a existir em nível das relações sociais, e assim sendo,

repercutiria sobre o próprio homem. A explicação para tal fenômeno residiria no fato de

que a objetivação em nível do processo do trabalho se orientaria à aquisição do objeto

que, por sua vez iria incidir sobre o sujeito da posição teleológica, o que consistiria em

sua alienação como exteriorização. A questão que se coloca seria que o homem não

conhece totalmente o resultado da posição teleológica porque no processo de sua

realização além da complexidade das relações sociais haveria também as múltiplas

determinações da realidade. Lukács, por conseguinte, argumentaria que o resultado só

seria conhecido post-festum. Deste modo, o objeto estabelecido altera a totalidade, pois

desencadearia nexos causais também imprevisíveis para consciência no momento da

prévia-ideação, e isso com maior intensidade no plano das teleologias secundárias. É

aqui o instante em que ocorre o problema do estranhamento.

Deste modo seria somente o homem que deve combater os estranhamentos

gerados pelo próprio homem porque não obstante o sistema capitalista mais recente

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provoque um alheamento por outro lado geraria até mesmo um “inconformismo

conformado.” Seria necessário que cada indivíduo compreendesse a gravidade de sua

ação para a formação da sociedade, não obstante as condições objetivas acabariam por

bloquear a realização de um dado intento. Contudo, não se deveria ficar submerso nas

determinações sociais porque o resultado das posições teleológicas, ainda que seja

inesperado, levaria necessariamente o homem a uma contínua adaptação e, assim

sendo, estabeleceria novas teleologias, etc. Seria o instante em que as múltiplas

alternativas que compreende a liberdade de escolha e de ação em que os homens

poderiam alterar tanto a causalidade quanto os nexos causais gerados por eles próprios,

pois a objetividade social seria a síntese das múltiplas determinações da realidade dos

indivíduos. O sujeito, nesse sentido, influenciaria e seria influenciado pelo processo, e

assim sendo, também transforma a si mesmo ao produzir o novo, por conseguinte ele

imprime seu caráter e ainda subordina a sua vontade ao fim proposto na posição

teleológica à medida que levaria em conta a causalidade natural para que o processo se

realize, todavia sempre a procurar os melhores meios para a obtenção da finalidade.

Assim, no final do processo, tanto objeto criado quanto seu criador tornaria-se

progressivamente social, e o homem tenderia cada vez mais para o seu ser genérico.

Contudo segundo Lukács, o efeito do processo de objetivação/alienação como

exteriorização sobre os indivíduos poderia provocar o estranhamento, diante dos

bloqueios à plena explicitação do gênero humano em que ocorresse esse processo. Tais

pressupostos lukacsianos indicariam a distinção ontológica entre os termos alienação

(Entaüsserung) e estranhamento (Entfremdung), pois proporcionaria um esclarecimento

mais eficaz sobre a conexão entre atividade teleológica dos indivíduos e as

determinações causais objetivas porque indica a independência dos homens de qualquer

determinismo ou de um ser transcendente e, por conseguinte, afirma sua

autodeterminação como sujeito da construção do estranhamento, todavia também de sua

superação e até mesmo da emancipação humana. Logo, à medida que não se leva em

consideração a distinção ontológica dos termos acima citados, tender-se-ia a abordar

unicamente o aspecto negativo da objetivação, pois se tenderia a confundi-la com a

objetividade em geral, e, acabar-se-ia por perder de vista as possibilidades de superação

do estranhamento. Prontamente, seria a partir das múltiplas ações dos indivíduos

singulares que se poderia chegar a uma dimensão coletiva, dirigida ao para-si, para que

o homem possa realizar as possibilidades latentes de superação do estranhamento

predominante na atualidade.

Contudo, é possível intuir que haveria, ainda que de uma forma não sistemática,

em sua obra “Para a Ontologia do ser do ser social” (LUKÁCS, 1981) uma sustentação

teórica capaz de auxiliar a compreensão sobre as principais formulações éticas de

Lukács. Desse modo seriam dois os conceitos fundamentais para se aproximar de tais

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formulações éticas, ou seja, o conceito do valor e do dever-ser. Destarte, dever-ser e

valor ofereceriam aspectos diferentes, não obstante isso não elimine a conexão entre

ambos no processo de desenvolvimento do ser social, ou seja, o dever-ser referir-se-ia à

ação em direção a um fim determinado nas posições teleológicas tanto primárias quanto

secundárias, assim sendo, haveria no fim proposto um valor atribuído pelo indivíduo da

posição teleológica. Ambos seriam, por conseguinte categorias sociais, a distinção

residiria em que o dever-ser se diferenciaria como regulador do processo, e o valor

influiria na posição do fim como critério de avaliação do produto ou de uma ação

realizada. O que tornaria claro para seu caráter histórico-social e ainda a interação

dialética entre ambos porque eles seriam constituídos na posição teleológica dos homens

e também desenvolvem o eixo condutor que orientam a sua realização e, deste modo,

tornar-se-iam componentes centrais da práxis social dos homens, segundo Lukács.

Assim sendo, o agir voltado para o dever-ser do fim iria requerer um domínio sobre os

afetos, para se determinar, nas teleologias primárias, o comportamento laboral. A

liberdade de escolha, conseqüentemente, entre as alternativas possíveis permitiriam os

indivíduos movimentar-se de seu particularismo e dirigir-se ao para-si, ou seja, para a

seleção de valores humano-genéricos. Os complexos sociais daí decorrentes acerca das

teleologias secundárias, a autotransformação do sujeito tornar-se-ia o objeto imediato

cujo conteúdo também seria um dever-ser. E, assim sendo, entrariam aí as qualidades do

sujeito que trabalha e o dever-ser do trabalho agiria sobre ele e o modificaria, e

igualmente poderia provocar nele até mesmo mudanças subjetivas.

Contudo, os valores poderiam ser postos de forma positiva ou negativa, pois

através de sua dimensão histórica e social não se retiraria o valor diretamente dos

atributos naturais do objeto, do mesmo modo não se poderia extraí-lo do nada; seria

necessária a intervenção da consciência do homem que por meio do processo de atos

individuais cujo caráter teleológico teria sua origem nos próprios homens. Logo, dever-ser

e o valor seriam momentos fundamentais para a determinação das escolhas e do mesmo

modo das posições teleológicas dos homens. Destarte, seria principalmente pelo

predomínio da dimensão do trabalho como valor de troca não obstante não se perca a

sua dimensão de valor-de-uso que passa a assumir a função de guia das relações

humanas. Diante dessa posição Lukács romperia com o marxismo vulgar que acaba por

fetichizar o dever-ser ao considerá-lo como uma necessidade simplesmente natural, do

mesmo que modo superaria a posição transcendente-abstrata de Kant que considera o

dever-ser como algo absoluto, separado das alternativas colocadas pela realidade

concreta do homem. Do mesmo modo, o estranhamento que predomina no capitalismo,

ou seja, o fetichismo da mercadoria contamina a vida social por influenciar as ações dos

indivíduos tanto no trabalho quanto fora dele, pois repercute em sua vida pessoal quanto

social. Por outro lado seria certo que a práxis econômica coopera para o

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desenvolvimento das capacidades humanas, todavia, o progresso econômico e o

progresso moral não necessariamente coincidem.

A saída do sujeito do seu particularismo seria a premissa decisiva da objetivação

autêntica, pois tal aconteceria à medida que o indivíduo teria consciência de sua

dimensão genérica e queira combater os estranhamentos Contudo, essa objetividade

estranhada poderia ser alterada pelo próprio homem, pois a sociedade capitalista origina

tais formas de estranhamentos, entretanto ao mesmo tempo, desenvolveria as

possibilidades para a sua superação, à proporção que potencializaria a abrangência do

para-si. Destarte, seria preciso levar em conta a unidade ontológica entre a

alienação/exteriorização como expressão da interioridade e a objetivação como

materialização no tecido social, pois estariam implícitas em tais conceitos as dimensões

da intenção e das conseqüências, caso contrário gerar-se-ia uma aporia, à proporção que

se leva em conta só a intenção, desconsideram-se os seus resultados e o dever-ser seria

posto como algo independente da realidade histórico-social não obstante o

estranhamento seja um obstáculo ao alcance do homem genérico. Para Lukács o dever-

ser tem sua origem em uma síntese dialética que unificaria em si tanto a intenção como

as conseqüências, pois leva uma ação superior que por sua vez proporcionaria a

mudança qualitativa da estrutura social.

Por conseguinte, se o valor da ação seria avaliado exclusivamente pelas

conseqüências, não se leva em conta a intenção dos indivíduos, perder-se-ia, pois de

vista a subjetividade e também a ação dos indivíduos se submeteria de forma parcial a

uma codificação moral, econômica, jurídica, etc. Todavia, não se deve esquecer que

conquanto o estranhamento seja um fenômeno ideológico a sua superação só poderia

ocorrer por obra da práxis do homem que organiza as próprias normas tanto políticas

quanto sociais, para que se faça coincidir os interesses pessoais e coletivos. Logo, tal

tendência seria necessária, pois depende das decisões alternativas em meio às ações

dos homens porque as séries causais colocadas em movimento em nível das posições

teleológicas poderiam se tornar fatores objetivos desencadeantes de grandes

transformações, inclusive a possibilidade de superação dos estranhamentos. Igualmente,

outra questão que se põe seria que os estranhamentos independeriam da vontade do

indivíduo singular estranhado e de quem o estranha, contudo quando o seu emergir seria

imposto pelas qualidades características do capitalismo ficaria, assim, manifesto que um

grupo de indivíduos age intencionalmente quanto aos seus resultados. Assim sendo, o

estranhamento seria teleologicamente posto, do contrário o aparato ideológico do

capitalismo não se manteria. Conseqüentemente, haveria vários motivos que causam as

diversas formas de estranhamento, ou seja, por falta de consciência da situação, etc.

Todavia não se deve perder de vista que tudo isso provém do fetichismo econômico do

capitalismo. Trata-se, por conseguinte de obstáculos socialmente postos pelo próprio

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homem em seu processo de autoconstrução. Pois, tanto Marx quanto Lukács admitem

que deveria existir uma transformação do sistema capitalista e igualmente admitem as

possibilidades para tal transformação, de tal modo que, Lukács salvaria os homens de

um determinismo simplesmente econômico e ainda abriria espaço para a superação dos

estranhamentos.

Precisamente, Lukács realizaria suas análises a partir do trabalho à medida que

buscaria esclarecer a gênese dos complexos sociais e, assim sendo, tornaria inteligíveis

os fundamentos sócio-históricos do fenômeno do estranhamento e até mesmo a

necessidade de sua superação Contudo, em “Para a Ontologia do Ser Social”, (LUKÁCS,

1981) Lukács tentou elaborar uma teoria da emancipação humana, cuja condição basilar

seria a superação da simples singularidade na acepção do individualismo burguês.

Portanto, a questão não seria apenas afastar a barreira natural, o que a ciência

conseguiu, pois atingiu progressos intensos, porém de superar as barreiras socialmente

construídas pelo próprio homem, o que favorece a sua elevação ao para-si, ainda que o

caminho a ser percorrido seja cheio de empecilhos. Quando Lukács escreve que as

posições teleológicas secundárias ganhariam uma autonomia relativa das primárias, ou

seja, do econômico e que o dever-ser se encontraria no domínio das secundárias, deixa a

inferência de que seria possível a superação do estranhamento e que a transformação da

atual estrutura capitalista já se inicia nela mesma, do contrário ter-se-ia numa superação

inoperante.

A forma como Lukács trataria a questão do dever-ser relacionada ao

desenvolvimento do gênero humano, permitiria assim, desdobrar a sua aplicação no

âmbito da educação em geral para a superação dos estranhamentos atuais. Por

conseguinte a educação em sentido amplo teria a sua gênese no processo laboral e

ainda se desenvolve para além dele e se objetiva, assim em instituições formais e

informais. Haveria uma intenção, portanto, voluntária dos indivíduos, segundo Lukács, em

realizar em si mesmos as características do gênero humano, assim para que se faça

emergir a peculiaridade da educação ele chama a atenção para o fato de que o não agir,

o abster-se e a conformação com o status quo social implicaria a aceitação dessa

estrutura estranhada e, além disso, a negação da transformação. Não obstante a

conciliação dos interesses individuais e coletivos demandaria a constituição de uma

consciência crítica como componente ontológico do processo de

objetivação/exteriorização, ou seja, como componente da humanização do homem. Logo,

a educação em seu sentido amplo e igualmente no estrito à medida que se que se

objetiva em instituições seria uma atividade mediadora da práxis dos homens, ela do

mesmo modo seria social e historicamente situada numa determinada sociedade.

Enfim, O pensamento lukacsiano viria a preencher uma lacuna do marxismo, pois

Marx não tinha uma teoria sistematizada sobre a ontologia do ser social, nem tampouco

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sobre a ética, muito embora os escritos marxianos tenham sido a força propulsora para o

pensamento moderno de Lukács.

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