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1 MARIANA OLIVEIRA DO NASCIMENTO TEIXEIRA Dissertação de Mestrado Área: História da Filosofia Contemporânea Orientador: Prof. Dr. Marcos Severino Nobre Razão e reificação: Um estudo sobre Max Weber em História e Consciência de Classe, de Georg Lukács UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas IFCH – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Filosofia Campinas, 2010

Razão e Reificação - Weber Em Lukacs

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    MARIANA OLIVEIRA DO NASCIMENTO TEIXEIRA

    Dissertao de Mestrado rea: Histria da Filosofia Contempornea

    Orientador: Prof. Dr. Marcos Severino Nobre

    Razo e reificao: Um estudo sobre Max Weber em Histria e Conscincia de Classe,

    de Georg Lukcs

    UNICAMP Universidade Estadual de Campinas IFCH Instituto de Filosofia e Cincias Humanas

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia

    Campinas, 2010

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

    Bibliotecria: Ceclia Maria Jorge Nicolau CRB n 3387

    Ttulo em ingls: Reason and reification: a study on Max Weber in History and Class Consciousness, by Georg Lukcs

    Palavras chaves em ingls (keywords) :

    rea de Concentrao: Histria da Filosofia Contempornea

    Titulao: Mestre em Filosofia

    Banca examinadora:

    Data da defesa: 24-03-2010

    Programa de Ps-Graduao: Filosofia

    Reification Rationalization Marxism

    Marcos Severino Nobre, Luiz Srgio Repa, Josu Pereira da Silva

    Teixeira, Mariana Oliveira do Nascimento T235r Razo e reificao: um estudo sobre Max Weber em Histria e

    Conscincia de Classe, de Georg Lukcs / Mariana Oliveira do Nascimento Teixeira. - - Campinas, SP : [s. n.], 2010.

    Orientador: Marcos Severino Nobre. Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.

    1. Lukcs, Georg, 1885-1971. 2. Weber, Max, 1864-1920. 3. Reificao. 4. Racionalizao. 5. Marxismo. I. Nobre, Marcos Severino. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo.

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    Agradecimentos

    Em primeiro lugar, agradeo minha famlia e especialmente aos meus pais, Hayde

    e Bernardo, pelo apoio incondicional minha formao, em todos os sentidos (e por terem me ensinado, cada um sua maneira, a no ser hipotrlica). Agradeo tambm Laura, minha irm, pelo estmulo, pelo carinho e pela ajuda na formatao deste trabalho.

    Ao Caio Pedrosa, devo a possibilidade de compartilhar momentos extraordinrios e de aprender muito. Obrigada pelo companheirismo, pelo humor e pela trilha sonora. No

    posso deixar de agradecer tambm sua famlia (em especial Beth e seus quitutes), que me acolheu nas minhas frequentes idas a So Paulo.

    Ao orientador deste trabalho, o professor Marcos Nobre, agradeo todo o apoio e a confiana neste projeto, alm da oportunidade de ter contato com o pensamento de Georg Lukcs e de poder me aprofundar em alguns dos aspectos mais fecundos de sua obra. Gostaria de acrescentar aqui um agradecimento especial ao professor Marcos, j que foi ele o responsvel pelo meu interesse pelo curso de filosofia quando, quase que acidentalmente, assisti s suas aulas sobre como so possveis os juzos sintticos a priori na disciplina de Teoria do Conhecimento no incio de 2003. Sem as suas elucidativas interpretaes, o caminho at aqui teria sido muito mais tortuoso.

    Ao professor Sergio Silva devo minha introduo leitura da obra de Max Weber e a percepo do seu potencial esclarecedor e crtico. No tenho dvidas de que foi nas aulas noturnas de Sociologia de Weber, tambm em 2003, que surgiram as primeiras sementes deste trabalho. A interpretao da teoria weberiana aqui presente tambm teve a contribuio das aulas e leitura rigorosa do professor Fernando Antnio Loureno.

    Aos professores que participaram do exame de qualificao, Ricardo Ribeiro Terra (USP) e Josu Pereira da Silva (UNICAMP), devo sugestes preciosas, que procurei incorporar na verso final. Agradeo a ambos pela leitura atenta. Agradeo tambm banca

    de defesa: novamente o professor Josu e o professor Luiz Srgio Repa (UFPR), que aceitaram discutir os resultados desta pesquisa e cujas crticas e sugestes me fizeram refletir sobre diferentes aspectos deste trabalho.

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    Esta pesquisa no teria sido possvel sem o acesso s obras de Weber e Lukcs no original, pelo que agradeo a todos os meus professores de alemo, notadamente os grandes

    amigos Ilse Hainz Valillo e Thomas Johnen. Agradeo tambm ao DAAD (Deutscher Akademischer Austausch Dienst) pela oportunidade de participar do curso de inverno de alemo na Universidade Duisburg-Essen (Alemanha), entre janeiro e fevereiro de 2009. Agradeo aos colegas e professores do curso e especialmente ao professor Andreas Westerhoff.

    A participao nos encontros do Ncleo Direito e Democracia, do CEBRAP (Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento) me proporcionou o acesso a uma grande quantidade de leituras e discusses muito interessantes e valiosas. Agradeo a todos os membros do

    NDD, especialmente ao Z Rodrigo (pelas dicas acadmicas e de boa msica), o Jonas (que tambm acha importante ler Histria e Conscincia de Classe), a Nathalie, o Rica, o Rrion e o Joaquim.

    Diversos amigos foram muito importantes durante a minha formao e a realizao dessa pesquisa; entre eles esto: Elisa, Arthur, Jeremias, Dalmoro (que me obrigou a ler Lukcs pela primeira vez); os amigos da graduao em Cincias Sociais Ju, Ricardo Floc, Andri, Marcelo Martinha; os amigos da graduao em Filosofia Adriano, Anita, Fbio Florence, Fernanda, Rafael Barros, Raphael Concli, Bee; os amigos do mestrado em Filosofia Fbio Nolasco, Lucas, Luciano, Fabiano, Rodrigo e Maria Cludia; e todos que ajudaram a construir o Projeto de Educao Popular Machado de Assis.

    Ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Unicamp, agradeo por toda a estrutura cedida para a realizao desta pesquisa; e Snia Cardoso, da secretaria do

    referido programa, pela eficincia e ateno em todas as etapas deste trabalho. Por fim, FAPESP (Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo),

    agradeo a bolsa concedida para a realizao deste projeto (processo nmero 2007/56948-1).

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    Resumo

    O livro Histria e Conscincia de Classe, publicado por Georg Lukcs em 1923, foi objeto de intensos debates ao longo do sculo XX por conta da originalidade com que o filsofo hngaro abordou um tema candente na produo terica marxista: a questo em torno da conscincia. Um dos pontos polmicos da abordagem lukcsiana desse problema a combinao da teoria de Marx com elementos de outras matrizes metodolgicas. Este estudo pretende apresentar a anlise de um caso desse tipo de combinao: a apropriao feita por Lukcs de elementos presentes na obra de Max Weber. Nos centramos, mais precisamente, no modo pelo qual Lukcs articula a temtica weberiana da racionalizao do mundo na elaborao do conceito de reificao, que o conceito central de Histria e Conscincia de Classe. Procuramos esclarecer o carter dessa articulao, de forma a responder s seguintes perguntas: a obra de Lukcs constitui um quadro terico ecltico,

    em que tradies conceituais distintas (a de Marx e a Weber) se justapem de maneira fortuita ou contingente? A partir de que ponto de vista Lukcs combina essas orientaes tericas? Para tanto, analisamos as aproximaes e os distanciamentos entre os conceitos em tela, identificando quais aspectos da obra de Weber sobre a racionalizao esto presentes no conceito lukcsiano de reificao, e quais aspectos foram por Lukcs descartados. Nossa concluso a de que Lukcs realiza uma apropriao da temtica weberiana da racionalizao a partir de um ponto de vista especfico a sua leitura da teoria de Marx como uma teoria que parte da perspectiva da totalidade. Lukcs confere,

    assim, um novo estatuto a essa temtica weberiana e cria a sua prpria e original estrutura terica, em que a racionalizao permite a generalizao do fetichismo e da alienao para

    as diferentes reas da vida cultural.

    Palavras-chave: Lukcs, Georg (1885-1971); Weber, Max (1864-1920); Reificao; Racionalizao; Marxismo Weberiano.

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    Abstract History and Class Consciousness, a book published by Georg Lukacs in 1923, was

    the subject of intense debates throughout the twentieth century because of the originality with which the Hungarian philosopher dealt with a hot topic in Marxist theory: the issue of consciousness. One of the controversial aspects of Lukcs approach to this problem is the combination of Marxs theory with elements of different methodological frameworks. This study aims to assay a case of this kind of combination: the appropriation made by Lukacs of elements present in the work of Max Weber. We focus more precisely on the way Lukcs articulates the Weberian thematic of the rationalization of the world in the developing of the concept of reification, which is the central concept of History and Class Consciousness. We seek to clarify the nature of this relationship in order to answer the following questions: is the work of Lukacs an eclectic theoretical framework in which different conceptual

    traditions (those of Marx and Weber) are juxtaposed in a fortuitous or contingent way? From what point of view Lukacs combines these theoretical orientations? To answer these questions, we analyze the approaches and the detachments between the focused concepts, identifying the aspects of Webers work on rationalization which are present in the lukacsian concept of reification, and what aspects were discarded by Lukacs. The conclusion reached here is that Lukacs appropriates the Weberian theme of rationalization from a specific point of view his reading of Marxs theory as a theory that some of view of totality. Lukacs grants this Weberian theme thereby a new status and creates his own and

    original theoretical structure, in which rationalization enables the generalization of fetishism and alienation for the different areas of cultural life.

    Key-words: Lukcs, Georg (1885-1971); Weber, Max (1864-1920); Reification; Rationalization; Weberian Marxism.

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    SUMRIO

    Introduo ........................................................................................................................... 13

    Captulo 1: A trajetria da reificao em Histria e Conscincia de Classe - Uma apresentao do ensaio A reificao e a conscincia do proletariado ........................ 25

    1.1 O fenmeno da reificao ........................................................................................... 30 1.2 As antinomias do pensamento burgus ...................................................................... 41 1.3 O ponto de vista do proletariado ................................................................................. 58 Sistematizao final .......................................................................................................... 85

    Captulo 2: A interpretao lukcsiana da obra de Marx .............................................. 89 2.1 O ponto de vista da totalidade .................................................................................... 94 2.2 Alienao e Fetichismo ............................................................................................ 112

    Captulo 3: A apropriao lukcsiana de teorias no marxistas - O caso de Max Weber e a crtica da racionalizao do mundo .............................................................. 135

    3.1 A racionalizao em Weber ...................................................................................... 140 3.2 Razo e Reificao ................................................................................................... 157 3.3 Debates sobre a apropriao lukcsiana de Weber ................................................... 186

    Consideraes Finais ........................................................................................................ 203

    Referncias Bibliogrficas ............................................................................................... 213

    Sumrio detalhado ............................................................................................................ 225

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    Introduo

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    Social theory is also a social activity which would lend itself to social explanation if only we could be freed, as theorists, from an unreflective practice of reflection on society

    Andrew Feenberg (Lukcs, Marx and the Sources of Critical

    Theory)

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    A pesquisa

    Todo debate que diga respeito ao campo do marxismo torna-se polmico com muita fcilidade. De imediato, surge um sem nmero de interpretaes distintas: questionamentos, elogios, acusaes, defesas, reprovaes e reverncias todos igualmente apaixonados, embora uns sejam mais profcuos que outros. O caso de Georg Lukcs filsofo hngaro que tem uma extensa e variada produo intelectual, e que trilhou, por vezes simultaneamente, caminhos muito diversos (dentro e fora do marxismo), alm de ter tido uma intensa porm inconstante atividade poltica especialmente representativo desse difcil dilogo. Uma srie de reviravoltas, condenaes, autocrticas e reabilitaes marca a sua conturbada trajetria.

    O objeto desta dissertao um dos momentos que consideramos mais interessantes nesse movimento intelectual: o livro Histria e Conscincia de Classe, que tido como o ponto de transio de Lukcs para o marxismo. Talvez justamente por fazer parte de um momento de transio, essa obra permite a convivncia certamente no tranquila de diversas tradies de pensamento: alm de Marx, esto presentes no livro de maneira

    patente pensadores como Hegel, Max Weber, Georg Simmel, Schiller, Wilhelm Dilthey, Lenin, Emil Lask e Rosa Luxemburgo, entre outros. Todos eles entram no quadro terico

    de Lukcs e participam, em maior ou menor medida, no seu intento de realizar uma crtica radical do capitalismo e, mais do que isso, de procurar os meios para a sua superao. Isso no torna esse livro, contudo, necessariamente um conjunto ecltico ou um amlgama contraditrio (como viria a ser chamado posteriormente pelo prprio autor). A partir da lgica interna de Histria e Conscincia de Classe, possvel compreender o papel que esses autores exercem na teoria de Lukcs isso foi o que pudemos constatar, pelo menos no caso de um deles, nesta pesquisa.

    O subttulo deste trabalho, Um estudo sobre Max Weber em Histria e Conscincia de Classe, j indica que nossa ateno incide, aqui, sobre a presena do importante socilogo alemo que, alis, foi professor e amigo de Lukcs nas pginas dessa complexa obra. Mas necessrio delimitar mais precisamente o mbito desse estudo: Razo e Reificao indica que no pretendemos abarcar toda forma pela qual Weber se faz presente no livro; h, pelo contrrio, um eixo definido de anlise a importncia das

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    ideias de Weber acerca de um tipo especfico de razo ou racionalizao para a construo do conceito lukcsiano de reificao.

    O eixo escolhido restringe tambm a anlise de Histria e Conscincia de Classe ao seu ensaio central: A reificao e a conscincia do proletariado, no qual Lukcs apresenta e desenvolve em detalhes o seu conceito de reificao. Diversas outras formas de relao entre o pensamento weberiano e a obra de Lukcs so, portanto, deixadas de lado, como a presena weberiana em outros ensaios de Histria e Conscincia de Classe (especialmente marcante em Conscincia de Classe, por exemplo, por meio da utilizao que Lukcs faz do conceito de possibilidade objetiva), ou em obras anteriores de Lukcs (como A Teoria do Romance, escrita durante o perodo em que ele conviveu diretamente com Weber em Heidelberg). Tivemos que deixar de lado tambm as obras posteriores de Lukcs em que ele prprio reflete (mais explicitamente, inclusive, e com um olhar bastante crtico) sobre os escritos weberianos, como Marx e o problema da decadncia ideolgica (escrito em 1938 e publicado em Problemas do Realismo, de 1948) e notadamente A Destruio da Razo (1953), alm de todos os demais documentos cartas, entrevistas, passagens de livros e manuscritos que seriam fundamentais para compreender, em seu conjunto, toda a trajetria dessa relao instvel entre Lukcs e a obra de Weber.

    O objetivo deste trabalho muito mais modesto. Ele pode parecer at modesto demais: compreender o papel de uma ideia (formulada por um certo pensador) na criao de um determinado conceito (elaborado por outro) pode ser visto como algo importante simplesmente para um estudo de biografia intelectual ou no mximo para a caracterizao da atmosfera cultural e terica de um dado perodo. Acreditamos, ao contrrio, que um tal

    estudo sobre a relao entre dois pensadores (que, adicionalmente, so tidos em geral como membros de correntes totalmente diversas da teoria social) pode ter outros interesses.

    Em primeiro lugar, alm de nos dizer algo sobre o perodo em que se deu essa relao

    e sobre os prprios autores, essa anlise nos traz elementos para compreender os prprios objetos de estudo desses autores uma vez que, para entender a lgica do seu pensamento, somos levados a investigar a sua viso sobre esses objetos e a refletir sobre eles: coisa que, possivelmente, no faramos em outra situao. E isso mesmo quando no concordamos necessariamente com as interpretaes e concluses de nossos autores. No caso de Weber e Lukcs, temos a oportunidade de refletir criativamente ainda que isso no seja tematizado

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    diretamente no prprio estudo sobre assuntos que vo das relaes de trabalho e das formas de conscincia sob o capitalismo at a conexo entre as condutas religiosas e

    mentalidades econmicas, passando pela separao da razo em esferas de valor autnomas e as cises antinmicas da filosofia clssica alem, entre outros. Analisar o pensamento desses autores inseparvel de pensar sobre a modernidade e o capitalismo, de pensar sobre o mundo nossa volta.

    Em segundo lugar, esse estudo nos leva a refletir agora sim, de maneira direta e explcita na pesquisa sobre formas de apropriao intelectual e de dilogo entre matrizes tericas consideradas como impermeveis uma outra. Nos leva a pensar sobre o que existe de verdadeiro na teoria que consideramos a mais falsa, sobre a flexibilizao de

    rgidas categorias tidas como imutveis, e sobre o significado mais complexo do que parece ser uma simples contradio em suma, nos leva a abrir o leque das contribuies

    possveis para a compreenso do real. Isso significa refletir sobre o prprio ato de fazer teoria, sobre o que fazemos todos os dias na Universidade. nesse sentido que entendemos o trecho do livro de Andrew Feenberg que serve de epgrafe a esta Introduo: A teoria social tambm uma atividade social que se prestaria explicao social, se pudssemos ser libertados, como tericos, de uma prtica irrefletida de reflexo sobre a sociedade.

    claro que este trabalho e as posies aqui defendidas esto inseridos numa disputa em torno do livro de Lukcs, em particular, e em torno da relao do marxismo com outros campos tericos, em geral. O que consideramos aqui (juntamente a diversos outros estudiosos) como um posicionamento terico extremamente interessante e frutfero o posicionamento de no descartar como mera iluso ou ideologia toda e qualquer teoria

    que parta de fora do quadro do marxismo por outros pensadores tido como uma atitude altamente nociva e que pe a perder todos os avanos alcanados por Marx.

    Nosso objetivo, contudo, no refutar os argumentos apresentados nesse tipo de censura analisando-os minuciosamente, mas, antes, mostrar como o esforo terico empreendido por Lukcs no anulado por conta da apropriao de contribuies das chamadas cincias burguesas, uma vez que, a partir da lgica do texto de Lukcs, faz sentido e no contraditrio o dilogo com essas cincias e mesmo a sua apropriao. A hiptese que procuramos defender neste trabalho consiste em que Lukcs interpreta a teoria marxista como um mtodo dialtico que confere primazia ao ponto de vista da totalidade, e

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    isso o que permite a ele compreender a teoria de Weber (e outras teorias que se encontram fora do mbito do marxismo) como um momento do conhecimento verdadeiro isto , como um momento parcial que precisa ser superado num ponto de vista mais elevado: justamente a perspectiva da totalidade.

    Isso significa, para Lukcs, conectar as anlises weberianas sobre os aspectos negativos do processo de racionalizao do mundo (racionalizao como prevalncia da calculabilidade que resulta na perda de liberdade) aos seus fundamentos materiais, vale dizer, ao contexto geral da sociedade produtora de mercadorias. Procuramos, ento, mostrar neste trabalho que, de acordo com Lukcs, Weber compreendeu com perspiccia uma parcela importante da realidade histrica, mas a apropriao de suas ideias somente se torna

    fecunda quando se d a partir de um ponto de vista que as recoloque no quadro dinmico da totalidade concreta.

    As etapas

    Esta dissertao est divida em trs captulos. No primeiro (A trajetria da reificao em Histria e Conscincia de Classe uma apresentao do ensaio A reificao e a conscincia do proletariado), reconstrumos o ensaio de Lukcs sobre a reificao, procurando obedecer sua lgica interna. Essa apresentao tem como objetivo esclarecer as diferentes etapas da argumentao de Lukcs e serve como base para as anlises ulteriores.

    No segundo captulo feita uma discusso, com o auxlio de outros ensaios do livro de Lukcs, sobre A interpretao lukcsiana da obra de Marx. Procuramos mostrar, inicialmente, que essa interpretao equipara a teoria de Marx ao mtodo dialtico, que parte do ponto de vista da totalidade (o qual, por sua vez, somente acessvel ao proletariado, estando vedado conscincia burguesa por conta das posies que cada classe ocupa no processo de produo). Para Lukcs, essa a perspectiva da totalidade que permite tanto diferenciar a cincia burguesa do conhecimento correto quanto, ao mesmo tempo, explicar a apropriao que este faz daquela. a partir dessa interpretao, ento, que Lukcs pode integrar no seu conceito de reificao a crtica weberiana da racionalizao do mundo.

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    Na segunda parte desse captulo buscamos mostrar que o ncleo central do conceito de reificao se baseia em uma articulao entre fetichismo e alienao. Nessa articulao,

    ao fenmeno do fetichismo (enquanto inverso por meio da qual as relaes entre as pessoas aparecem como o que realmente so, isto , como relaes entre coisas) integrada a perspectiva focada no sujeito presente na alienao (enquanto desumanizao do homem mediante a separao dele de sua atividade criadora, do produto dessa atividade e, consequentemente, de si mesmo e dos outros homens).

    Essa articulao s se torna completa, entretanto, com a introduo da temtica da racionalizao, que abordada no captulo seguinte.

    No terceiro captulo (A apropriao lukcsiana de teorias no marxistas o caso de Max Weber e a crtica da racionalizao do mundo), passamos anlise da descrio de Weber sobre o processo de racionalizao e da medida em que ele tem um papel

    constitutivo na teoria da reificao. Na primeira parte do captulo, apresentamos os aspectos da racionalizao weberiana que so mais importantes para entender a sua apropriao por Lukcs. Seguimos, para tanto, a interpretao que Habermas faz da racionalizao em dois eixos: a perda de sentido e a perda de liberdade. Por um lado, a tese da perda de liberdade, entendida como o predomnio crescente da racionalidade instrumental com respeito a fins, mostra grande importncia para a crtica que Lukcs faz do carter formal, calculador e abstrato da conscincia reificada. Por outro lado, entretanto, a tese da perda de sentido, entendida como a total impossibilidade de encontrar um sentido unitrio para as esferas da

    vida cultural, constitui um obstculo para a tentativa de superao desse estado de coisas. A segunda parte desse captulo dedicada anlise da presena desses elementos

    weberianos no ensaio de Lukcs. O primeiro passo para isso a identificao e o exame das ocasies em que o filsofo hngaro refere-se diretamente a Weber. Podemos perceber, a partir desse exame, que a racionalizao como perda de liberdade central na apropriao

    lukcsiana de Weber; o mesmo fica atestado na anlise, realizada em seguida, do papel que a racionalizao exerce na estrutura do conceito de reificao para alm dos trechos em que

    Weber aparece nomeadamente. Terminamos essa segunda parte indicando o principal limite dessa apropriao: a

    recusa de Weber da possibilidade de uma perspectiva da totalidade que supera a tese da

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    perda de sentido e permite entrever uma soluo prtica que leve emancipao. Lukcs, claro, no pode compartilhar essa recusa.

    Na terceira e ltima parte desse captulo procuramos discutir e sintetizar, a partir de tudo o que foi analisado nos captulos precedentes, o carter da apropriao feita por Lukcs da crtica weberiana da racionalizao. Conclumos que tal apropriao toma a teoria weberiana como um momento parcial do conhecimento correto da realidade como totalidade e que, ao articul-la no quadro das anlises (baseadas em Marx) da sociedade capitalista, Lukcs deixa de lado os pressupostos weberianos que no so compatveis com o seu mtodo dialtico. As ideias de Weber ganham, assim, um novo estatuto nesse contexto e isso que parecem no levar em conta os pensadores que avaliam

    negativamente Histria e Conscincia de Classe como um livro contaminado pelas cincias burguesas, especialmente pelo pensamento de Weber. Apresentamos ento duas

    dessas avaliaes crticas e procuramos respond-las com base nos argumentos expostos. Por fim, apontamos que algumas complementaridades entre Marx e Weber

    colaboraram para a articulao lukcsiana de ideias desses pensadores em Histria e Conscincia de Classe (por exemplo, a abstrao que fundamental para entender tanto o fetichismo da mercadoria quanto a racionalidade formal). Mas salientamos tambm que, ao realizar essa articulao, Lukcs (mesmo que a sua interpretao de Marx permanea sempre a sua referncia central), d um passo importante para alm de ambos: liga a racionalizao weberiana ao fundamento econmico da sociedade capitalista e, ao mesmo

    tempo, expande a anlise marxiana do fetichismo e da alienao para mbitos da vida social que no so tematizados por Marx.

    Nas consideraes finais, reforamos a ideia de que a teoria de Weber apropriada por Lukcs a partir de um ponto de vista especfico (sua interpretao de Marx) e que, portanto, tal teoria ganha assim uma nova configurao. A partir dessa ideia, delimitamos o

    sentido em que o termo marxismo weberiano, difundido por Maurice Merleau-Ponty em As aventuras da dialtica, proveitoso para referir-se ao livro de Lukcs e sua teoria da reificao.

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    Nota sobre as tradues utilizadas No caso de Lukcs, citamos, em geral, a recente traduo brasileira de Histria e

    Conscincia de Classe. Em alguns momentos, contudo, foi necessrio alterar certos trechos dessa traduo, para o que consultamos a obra no seu idioma original (Geschichte und Klassenbewutsein), bem como as tradues portuguesa, francesa, inglesa e em espanhol (ver a indicao completa em Referncias Bibliogrficas). Nos casos em que foi necessrio alterar a traduo brasileira, o indicamos em nota de rodap, juntamente com a pgina correspondente na edio alem.

    Quanto s obras de Weber, utilizamos as tradues mais tradicionais para o portugus (ou o espanhol), cotejando, quando necessrio, com as edies originais em alemo. Mais informaes sobre os livros de Lukcs e Weber (e tambm de Marx), suas edies e as tradues utilizadas se encontram ao longo do texto.

    Os textos dos comentadores que se encontram em outra lngua que no o portugus foram por ns traduzidos nas citaes ao longo do texto e os trechos correspondentes no idioma original (ou na traduo utilizada) foram reproduzidos em nota de rodap.

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    Captulo 1

    A trajetria da reificao em Histria e Conscincia de Classe

    Uma apresentao do ensaio A reificao e a conscincia do proletariado

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    Et se tournant vers lui: - De quoi toccupes-tu au juste? Je ne sais pas bien. - De la rification, rpondit Gilles. - Cest une grave tude, ajoutai-je. - Oui, dit-il. - Je vois, observa Carole admirative. Cest un travail trs srieux, avec de gros livres et beaucoup de papiers sur une grande table. - Non, dit Gilles, je me promne. Principalement, je me promne.

    Michele Bernstein (Tous les chevaux du roi)

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    Histria e Conscincia de Classe um livro composto de diversos textos, escritos at 1922, que versam sobre questes que, embora tambm diversas, mostram sempre a preocupao do autor em refletir sobre as dificuldades e as possibilidades de uma revoluo no Ocidente e a nvel mundial.1 Lukcs aborda, por exemplo, questes sobre a conscincia de classe do proletariado, como no artigo Conscincia de Classe. Qual o papel dessa conscincia no processo objetivo? Quais as dificuldades colocadas por esse processo objetivo emergncia da conscincia revolucionria e como super-las? Est presente tambm a reflexo sobre o materialismo histrico como arma de classe do proletariado e qual seria a sua funo aps a consumao da revoluo e o fim do capitalismo (em A mudana de funo do materialismo histrico) e sobre as formas de organizao da classe trabalhadora revolucionria (em Observaes metodolgicas sobre a questo da organizao), entre outros. Essa preocupao com a possibilidade da revoluo sintetizada por Andrew Arato como a procura pelo sujeito revolucionrio, aquele que seria capaz de romper as amarras da reificao e de todas as relaes capitalistas e de conduzir a sociedade da era da necessidade era da liberdade.2

    Tendo em vista os objetivos dessa pesquisa expostos na Introduo, nosso primeiro passo aqui a reconstruo interna do conceito de reificao (Verdinglichung), tal como Lukcs o apresenta em Histria e Conscincia de Classe ou, mais precisamente, no principal ensaio do livro, A reificao e a conscincia do proletariado.3 Este primeiro captulo segue a diviso feita por Lukcs: procuramos expor o contedo e desenvolvimento

    de cada seo, seguindo de perto o prprio texto lukcsiano.4

    1 A maioria dos artigos, se no foi escrita em 1922, foi revista e modificada neste ano (ver Lwy, Pour une

    sociologie des intellectuels rvolutionnaires, pp. 202 ss). 2 Arato, Georg Lukcs: The Search for the Revolutionary Subject. Por mais que haja essa preocupao

    comum nos ensaios, necessrio, entretanto, evitar generalizaes que terminem por homogeneizar o conjunto do livro, escrito num perodo de transio intelectual do jovem Lukcs e que reflete algumas tenses. 3 Doravante abreviado como HCC.

    4 Chamamos de seo as trs partes nas quais Lukcs divide o seu ensaio (O fenmeno da reificao, As

    antinomias do pensamento burgus e O ponto de vista do proletariado). Cada seo, entretanto, tem subdivises numeradas, a que demos o nome de itens. O prprio Lukcs no deu ttulos a estes itens; os ttulos que constam neste trabalho foram por ns acrescentados a fim de facilitar a compreenso do objetivo central de cada item.

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    1.1 O fenmeno da reificao

    1.1.1 Pressupostos e objetivos da teoria lukcsiana da reificao Lukcs inicia o primeiro item de O fenmeno da reificao apresentando seus

    pressupostos e objetivos, de onde parte e onde quer chegar. Retomemos seu pargrafo inicial:

    A essncia da estrutura da mercadoria j foi ressaltada vrias vezes. Ela se baseia no fato de uma relao entre pessoas tomar o carter de uma coisa e, dessa maneira, o de uma objetividade fantasmagrica que, em sua legalidade prpria, rigorosa, aparentemente racional e inteiramente fechada oculta todo trao de sua essncia fundamental: a relao entre os homens. [...] Nosso objetivo somente chamar a ateno pressupondo as anlises econmicas de Marx para aqueles problemas fundamentais que resultam do carter fetichista da mercadoria como forma de objetividade, de um lado, e do comportamento do sujeito submetido a ela, de outro. Apenas quando compreendemos essas questes conseguimos ter uma viso clara dos problemas ideolgicos do capitalismo e do seu declnio (HCC, pp. 194-195).5 Esse pequeno trecho nos fornece informaes importantes e muito significativas sobre

    a teoria desenvolvida por Lukcs: o autor considera a estrutura fundamental da mercadoria como o ponto de partida bsico para a compreenso da sociedade atual, e que essa estrutura aparece aqui como o transformar-se, sob o capitalismo, das relaes entre pessoas em relaes entre coisas. Vale notar tambm que Lukcs busca compreender no s o aspecto objetivo do capitalismo como modo de produo que d origem a tal fenmeno, como tambm a atitude dos sujeitos que vivem sob esse sistema. E essa anlise tem tambm um outro aspecto duplo: seu objetivo, ao buscar responder [...] em que medida a troca de mercadorias e suas consequncias estruturais so capazes de influenciar toda a vida exterior e interior da sociedade,6 no somente conhecer a realidade da sociedade capitalista, como tambm apontar para a sua superao, como fica claro ao final do trecho citado anteriormente.

    Alm disso, um importante passo para compreender o problema da reificao reconhecer sua singularidade histrica: ela especfica do que Lukcs chama de capitalismo moderno. Aqui, a argumentao de Lukcs acompanha a de Marx presente em Para a Crtica da Economia Poltica e no Capital: ambos os pensadores apontam que, embora tenha havido a troca de mercadorias em pocas histricas anteriores, a forma

    mercadoria (ainda) no havia sido estendida e generalizada de tal forma que passasse a

    5 Em todas as citaes, os grifos constam no original, salvo indicao contrria. Esta citao foi cotejada com

    a edio portuguesa do livro de Lukcs (pp. 97-98); no original: Geschichte und Klassenbewutsein (doravante: GKb), pp. 257-258. 6 HCC, pp. 194-195.

  • 31

    influenciar decisivamente todas as formas de manifestaes vitais da sociedade. A troca de mercadorias, a relao de tipo mercantil era algo episdico, apenas uma entre as muitas

    outras formas do metabolismo social dos homens.7 Assim, se antes, nas sociedades ditas primitivas, os objetos so produzidos em funo

    de seu valor de uso, e somente se tornam mercadorias ao serem trocados quando excedem a quantidade necessria ao consumo, agora, no contexto do capitalismo, os objetos so j produzidos como mercadorias, em funo no do consumo, de seu valor de uso, mas sim da troca, de seu valor de troca. Toda a atividade produtiva se organiza em funo da mercadoria, e no se liga a ela de maneira apenas exterior, como anteriormente. Assim, somente quando a mercadoria compreendida como a categoria universal de todo o ser

    social que podemos compreender sua essncia autntica.8 Nesse processo que as relaes sociais passam a ser cada vez mais encobertas pelas relaes entre as coisas, e a reificao

    torna-se cada vez mais dominante.9 Um fenmeno fundamental que Lukcs observa ao tratar da reificao o surgimento

    de um mundo de coisas acabadas e de relaes entre coisas que tem leis que parecem poderes intransponveis, que se exercem a partir de si mesmos,10 sem que o indivduo possa, por meio de sua prpria atividade, exercer sobre elas uma influncia transformadora. A atividade do homem tornada mercadoria submete-se a uma objetividade estranha aos homens, a leis sociais naturais.11 Lukcs ressalta o papel da abstrao do trabalho humano nesse processo: a forma mercadoria s se torna possvel porque iguala, equipara e

    permuta objetos qualitativamente diferentes, o que s pode ocorrer por meio da abstrao de suas qualidades, de seu contedo particular. O princpio de tal igualdade formal dos

    objetos tornados mercadorias funda-se como produto do trabalho humano abstrato e, portanto, tambm formalmente igual.

    Nesse desenvolvimento do processo de trabalho, Lukcs identifica algumas

    tendncias que contribuem de maneira notvel para o avano da reificao. Em primeiro lugar, e isso nos ser muito valioso nesta pesquisa, Lukcs identifica uma racionalizao

    7 J vemos, aqui, que, apesar de Lukcs utilizar a terminologia weberiana (capitalismo moderno), a sua

    caracterizao diverge do contedo desse conceito em Weber. Voltaremos a isso mais adiante (ver especialmente p. 190 deste trabalho). 8 HCC, p. 198.

    9 HCC, p. 197.

    10 HCC, p. 199.

    11 HCC, p. 199.

  • 32

    continuamente crescente, uma eliminao cada vez maior das propriedades qualitativas, humanas e individuais do trabalhador.12 Isso se expressa em dois processos: por um lado, a

    racionalizao do trabalho implica em sua fragmentao/dilacerao cada vez maior,13 de maneira tal que o trabalhador passa a repetir mecanicamente apenas uma operao parcial do produto total, perdendo o contato com ele. Por outro lado, esse aumento da racionalizao permite que o clculo do perodo de trabalho socialmente necessrio no mais seja feito a partir do tempo mdio e emprico, concreto; ele , agora, uma quantidade de trabalho [...] objetivamente calculvel, que se ope ao trabalhador sob a forma de uma objetividade pronta e estabelecida.14

    O aspecto da privao do ser humano de seu papel fundamental no processo produtivo

    (o verdadeiro agente, sujeito desse processo) novamente sublinhado por Lukcs um pouco mais adiante, quando ele trata da transformao da atividade ativa do trabalhador em uma

    atitude contemplativa, que justamente aquela atitude de um sujeito que se tornou um mero espectador passivo dos acontecimentos e de suas prprias aes e que, por isso, no merece mais ser chamado de sujeito num sentido forte da palavra. Os processos se desenrolam mecanicamente diante dele, como que independentemente da conscincia e sem a possibilidade de qualquer influncia da atividade humana, como um sistema acabado e fechado.

    muito importante ressaltar que esse tipo de atitude contemplativa descrita originalmente no contexto da produo de mercadorias generalizado posteriormente para

    o conjunto das relaes sociais dos homens, para alm da fbrica. Diz o autor: Mas a forma interior de organizao da empresa industrial no poderia ter semelhante efeito

    mesmo no seio da empresa , se no se revelasse nela, de maneira concentrada, a estrutura de toda sociedade capitalista.15 Da mesma maneira que, para Marx, na estrutura da mercadoria j est contido o funcionamento do modo de produo capitalista, na empresa industrial encontra-se, para Lukcs, o prottipo das formas de relaes sociais de toda a sociedade, o que s possvel com a universalidade da categoria da mercadoria.

    12 HCC, p. 201.

    13 Lukcs utiliza geralmente o termo alemo Zerreiung (e seus derivados), traduzido na edio brasileira por

    fragmentao. Preferimos utilizar dilacerao, que parece manter de maneira mais prxima a ideia de fora e violncia contida na palavra alem (ver, por exemplo, GKb, pp. 321, 322, 350). Agradecemos ao professor Marcos Nobre por essa indicao. 14

    HCC, p. 201. 15

    HCC, p. 206.

  • 33

    1.1.2 A reificao da conscincia, sua radicalizao e seus limites

    Neste segundo item da primeira seo, Lukcs comea a tratar da reificao da conscincia. Segundo o filsofo, o processo de reificao intensificado medida que as relaes que o homem estabelece com os objetos como objetos vitais no curso de sua atividade social forem mediadas: a conscincia reificada, diz Lukcs, toma essas mediaes como dados imediatos e no procura superar essa imediatidade mas, pelo contrrio, acaba por [...] estabelecer e eternizar tal imediatidade por meio de um aprofundamento cientfico dos sistemas de leis apreensveis.16 Assim, a teoria econmica dita burguesa, por exemplo, cria leis cientficas para descrever a realidade, mas se mantm sempre na imediatidade das relaes sociais e econmicas; ela no consegue, segundo Lukcs, apreender o fenmeno da reificao porque a sua prpria conscincia est reificada. Mesmo que pensadores burgueses consigam apreender em algum nvel o fenmeno da reificao, tais pensadores, por estarem condicionados pelo seu ponto de vista que permanece na superfcie, acabam concebendo-o de maneira a-histrica, separando-o do seu fundamento econmico a realidade especfica do capitalismo e assim acabam por considerar a

    reificao como um fenmeno eterno e intransponvel; nas palavras de Lukcs: Mas, desse modo, [esses pensadores] no vo alm da simples descrio, e seu aprofundamento do problema gira em torno de formas exteriores de manifestao da reificao.17

    Lukcs procura, ento, mostrar que outras esferas o Estado, o direito, a burocracia encontram-se organizadas de maneira adaptada estrutura reificante do desenvolvimento capitalista. O autor cita Weber para mostrar como a empresa capitalista, por um lado, e o Estado moderno com seu aparto legal, por outro, tm uma estrutura fundamental muito semelhante, que pode ser resumida grosso modo no fato de ambos terem uma base no clculo, ou melhor, na calculabilidade racional das variveis em jogo. Uma empresa capitalista, por exemplo, exige, para existir, uma justia e uma administrao que propiciem previsibilidade e calculabilidade.

    Para Lukcs, fundamental ressaltar que essa sistematizao racional que permite a previso e o clculo exatos constitui-se de tal maneira que aparece aos indivduos como

    16 HCC, p. 211. Optamos por traduzir o termo Unmittelbarkeit (GKb, p. 268) sempre por imediatidade, no

    lugar de imediatismo, como consta da traduo brasileira, tendo em vista o sentido errneo que tal palavra pode sugerir. A traduo portuguesa tambm utiliza o termo imediatidade. 17

    HCC, p. 213.

  • 34

    diferentes sistemas fechados, prontos e acabados, que funcionam sob o comando de leis determinadas, tambm fechadas e prontas.18 Aqui fica claro o carter contemplativo da

    atitude do sujeito frente a essa forma de objetividade racionalizada em sistemas rgidos e fechados das atividades e estruturas sociais, anloga estruturalmente ao comportamento do operrio em relao mquina, [...] que ele serve e observa, e cujo funcionamento ele controla enquanto contempla.19

    Lukcs estende essa viso para a anlise da burocracia, que ele considera a [...] intensificao ainda mais monstruosa da especializao unilateral da diviso do trabalho, que viola a essncia humana do homem e que [...] se encontra extraordinariamente prxima do simples servio da mquina e, muitas vezes, chega a super-la em vacuidade e

    uniformidade.20 Vale dizer: Lukcs identifica, no trabalho burocrtico, o mesmo processo que incide sobre o operrio na fbrica, processo por meio do qual o trabalhador no mais se

    reconhece no seu trabalho, na sua atividade produtiva, a qual transformada numa coisa, um objeto que ele vende no mercado. Existe, contudo, uma diferena: enquanto no caso do operrio apenas uma faculdade ou conjunto de faculdades que se destaca do complexo da personalidade do trabalhador e, ao se apresentar como uma mercadoria, uma coisa, se ope a esse complexo, no caso do burocrata, ao contrrio, toda a sua personalidade englobada pela diviso do trabalho, de tal forma que ele acredita ser em nome de sua prpria honra e seu senso de responsabilidade que ele se submete totalmente a um sistema de relaes entre coisas.

    A anlise que Lukcs faz da burocracia nos permite entrever que, no capitalismo moderno, tanto o operrio quanto o burgus esto condicionados pelo fenmeno da

    reificao e, mais do que isso, que a conscincia burguesa encontra-se ainda mais intensa e profundamente reificada.21

    A reificao aparece, assim, como fenmeno universal e global de toda a sociedade. E

    isso acontece de tal forma que parece vedada qualquer possibilidade de alternativa real a um tal estado de coisas. Lukcs afirma isso de maneira categrica quando diz que, assim

    18 HCC, p. 218.

    19 HCC, p. 219.

    20 HCC, p. 220.

    21 claro que, para Lukcs, no h somente uma variao de intensidade com a qual a conscincia do

    operrio e a do burgus so reificadas: h a tambm uma diferena qualitativa, que determinada pela posio de cada um no processo produtivo, e que os coloca em diferentes pontos de vista possveis. Ver HCC, p. 220, nota 22; e, neste trabalho, a apresentao da terceira seo (a partir da p. 58).

  • 35

    como a relao de mercadoria transforma em mercadoria todo objeto destinado satisfao das necessidades humanas,

    Ela imprime sua estrutura em toda a conscincia do homem; as propriedades e as faculdades dessa conscincia no se ligam mais somente unidade orgnica da pessoa, mas aparecem como coisas que o homem pode possuir ou vender, assim como os diversos objetos do mundo exterior. E no h nenhuma forma natural de relao humana, tampouco alguma possibilidade para o homem fazer valer suas propriedades fsicas e psicolgicas que no se submetam, numa proporo crescente, a essa forma de objetividade (HCC, pp. 222-223, grifos nossos).22 Se Lukcs terminasse aqui seu texto, entretanto, sua anlise em muito pouco se

    diferenciaria das anlises realizadas por outros pensadores, burgueses, que se

    preocuparam com os problemas envolvidos no fenmeno da reificao. O que diferencia Lukcs desses pensadores uma perspectiva crtica que o faz avanar para alm de um

    simples diagnstico da situao presente. A perspectiva da superao dessa situao, colocada pelo autor j no incio do texto, o leva a procurar as brechas, as contra-tendncias de seu prprio diagnstico. nesse contexto que assume uma importncia decisiva o carter histrico dos fenmenos analisados. Somente a partir da sua historicizao, da ideia bsica de que tais fenmenos no so constituintes essenciais da existncia humana, que possvel se colocar no ponto de vista da sua superao.

    E ento, aps essa aparente radicalizao total do fenmeno da reificao, que Lukcs nos apresenta pela primeira vez o limite desse fenmeno. Nas palavras do autor:

    No entanto, essa racionalizao do mundo, aparentemente integral e penetrando at o ser fsico e psquico mais profundo do homem, encontra seu limite no carter formal de sua prpria racionalidade (HCC, p. 223). A racionalizao total da vida limitada, portanto, pelo seu carter formal. O que

    Lukcs quer dizer com essa afirmao? O filsofo indica no seu texto ainda que o capitalismo criara uma estrutura de conscincia formalmente unitria para o conjunto da sociedade.23 O que se esconde por detrs desse carter formal da racionalizao e da conscincia reificada?

    Esse carter formal significa o desprezo pelo contedo, pelo elemento concreto da realidade que, assim, parece constituir um sistema unitrio ao qual se adaptam facilmente a racionalizao dos elementos isolados da vida e o conjunto de leis formais dela resultante. Isto : os elementos da vida so racionalizados em sistemas parciais e isolados e so ento

    22 Preferimos sempre traduzir, como a tradutora portuguesa, o termo Gegenstndlichkeitsform (GKb, p. 276)

    por forma de objetividade, no lugar de forma de objetivao, como consta na edio brasileira do livro. 23

    HCC, p. 221.

  • 36

    descobertas (criadas) as leis gerais que regem o funcionamento desses sistemas. Tais leis parecem constituir, ento, um sistema geral e unitrio. Mas ele o apenas formalmente. Pois, ao se abandonar uma viso superficial e passar a conferir importncia ao contedo mesmo de tais leis gerais, percebe-se a [...] incoerncia efetiva do sistema de lei, [o] carter contingente da relao dos sistemas parciais entre si e [a] autonomia relativamente grande que esses sistemas parciais possuem uns em relao aos outros.24

    A suposta racionalidade segundo a qual se organizam os sistemas particulares se mostra, ento, na realidade, incoerente e contraditria. Isso se manifesta de maneira mais evidente, segundo Lukcs, nas pocas de crise,

    [...] cuja essncia vista do ngulo de nossas presentes consideraes consiste justamente no fato de que a continuidade imediata da passagem de um sistema parcial a outro se rompe, e de que sua interdependncia e o carter contingente de suas inter-relaes se impem subitamente conscincia de todos os homens (HCC, p. 224). Entretanto, a estrutura da crise no mais que uma intensificao do quotidiano da

    sociedade burguesa. Pois, se a coeso daquelas leis gerais pode ser rompida abruptamente nos momentos de crise, tal s possvel porque [...] mesmo no caso do funcionamento mais normal, a relao dos seus elementos e dos seus sistemas parciais entre si algo de contingente.25 Lukcs afirma, ento, com Engels, que as leis naturais da economia capitalista (e do todo social) so as leis da contingncia: cada parte isolada dominada por uma lei racional especfica, particular o que torna possvel, alis, o clculo racional

    necessrio ao funcionamento de uma economia de mercado , mas a relao entre todas as partes isoladas no pode ser expressa numa lei geral realmente racional, mas somente numa lei da contingncia.

    A essa irracionalidade do sistema de leis que regula a sociedade, Lukcs relaciona, como produto e condio, a diviso capitalista do trabalho. Como condio para esse sistema de leis gerais contingentes, a diviso do trabalho j foi apresentada.26 No entanto, esse surgimento de um sem nmero de leis parciais e particulares adequadas aos diferentes setores isolados, formando um conjunto incoerente e contraditrio, tem como consequncia, por sua vez, um reforo ou uma intensificao da diviso capitalista do

    24 HCC, pp. 223-224. Vale ressaltar que a ideia do surgimento de sistemas parciais com legalidades prprias

    tambm um tema weberiano apropriado por Lukcs. 25

    HCC, p. 224. 26

    J se ressaltou que essa diviso do trabalho desloca todo processo organicamente unitrio da vida e do trabalho, decompe-no em seus elementos, para fazer com que essas funes parciais e artificialmente isoladas sejam executadas por especialistas adaptados a elas psquica e fisicamente (HCC, p. 227).

  • 37

    trabalho que lhe deu origem inicialmente. Isso porque cada funo parcial, isolada e racionalizada, se torna cada vez mais autnoma e tende a perseguir seu desenvolvimento de

    uma maneira prpria e segundo a lgica de sua especialidade, independentemente das outras funes parciais a sociedade. Essa tendncia aumenta medida que se intensificam cada vez mais os interesses profissionais e de status dos especialistas, que se tornam os portadores de tal tendncia. Lukcs finaliza esse item apresentando um exemplo desse movimento divergente entre os setores produzidos pela diviso social do trabalho (o exemplo, fornecido por Engels, o da relao entre o direito e a economia).

    1.1.3 As cincias particulares e o conhecimento reificado da reificao

    O terceiro e ltimo item dessa seo inicia-se com a seguinte constatao: Com a especializao do trabalho, perdeu-se toda imagem da totalidade.27 No entanto, segundo Lukcs, permanece a necessidade da apreenso da totalidade, necessidade que leva a uma crtica da cincia a qual, como as demais esferas que j foram apresentadas, permanece, segundo Lukcs, na imediatidade e divide-se em diversas reas e sub-reas cada vez mais

    especializadas. A crtica ingnua culpa a cincia por ter [...] despedaado a totalidade da realidade [e] perdido o sentido da totalidade por fora da especializao.28 A crtica assim formulada ingnua e, portanto, equivocada, porque, nas palavras de Marx, [...] considera que os manuais imprimem essa separao na realidade, e no que a realidade a imprime nos manuais.29

    Diferentemente do que postula a crtica ingnua da fragmentao no campo da cincia, esse fenmeno, de conformidade com Lukcs, no a causa da perda de toda imagem da totalidade, mas antes um de seus sintomas constituintes, cuja origem, como vimos, se d no curso do desenvolvimento do fenmeno de universalizao da categoria mercadoria e a consequente reificao da resultante, com a diviso do trabalho e a racionalizao crescentes que lhe so caractersticas.

    Como exemplo, Lukcs nos remete economia poltica e sua incapacidade de investigar, por exemplo, o valor de uso. Ele menciona a teoria da utilidade marginal, que,

    27 HCC, p. 228. O conceito de totalidade fundamental para compreender o ensaio de Lukcs, como veremos

    na anlise da terceira seo (O ponto de vista do proletariado). 28

    HCC, pp. 228-229. 29

    Marx (Para a crtica da economia poltica) apud Lukcs, HCC, p. 229.

  • 38

    segundo ele, falha j na formulao do seu objetivo: construir um sistema de leis abstrato como o centro de toda a teoria.

    A abstrao formal desse sistema de leis transforma continuamente a economia num sistema parcial fechado que, por um lado, no capaz nem de penetrar em seu prprio substrato material, nem de encontrar a partir dele a via para o conhecimento da totalidade social, e, por outro, compreende essa matria como um dado imutvel e eterno. Com isso, a cincia perde a capacidade de compreender o nascimento e o desaparecimento, o carter social de sua prpria matria, bem como as possveis atitudes a seu respeito e a respeito do seu prprio sistema de formas (HCC, pp. 230-231). A crise, lembra Lukcs, constitui uma barreira intransponvel para a compreenso da

    economia burguesa. Ora, a prpria economia burguesa quem cria essa barreira

    metodolgica ao [...] racionalizar integralmente a economia, metamorfose-la num sistema de leis formal, abstrato e matematizado ao extremo.30 Nesse contexto, torna-se realmente

    impossvel compreender as crises, caracterizadas por Lukcs como perodos em que o ser qualitativo das coisas, negligenciado pela teoria formal e abstrata das leis econmicas, parece voltar a ter importncia decisiva, ocasionando a paralisao do funcionamento daquelas leis, o que redunda num caos para o qual o entendimento reificado no est em condies de encontrar um sentido.

    Vale lembrar que, para Lukcs, se a irracionalidade e a incompreensibilidade da crise econmica so consequncia da situao e dos interesses da classe burguesa, so tambm, formalmente, a consequncia necessria do seu mtodo econmico.31 Assim, Essa

    incapacidade de penetrar no substrato material real da cincia no imputvel a indivduos. Ela , antes, algo que se torna cada vez mais evidente na medida em que a cincia evolui e

    trabalha com maior coerncia a partir de suas prprias premissas.32 Lukcs nos apresenta ento outro exemplo: o do direito. Assim como a economia

    poltica no capaz de compreender a crise, o direito (em sua concepo crtica e histrica) incapaz de apreender juridicamente o surgimento e o desaparecimento do prprio direito, buscando a soluo em outras disciplinas. O direito parece ser apenas um

    sistema formal de clculo, [...] com o auxlio do qual podem ser calculadas as consequncias jurdicas necessrias de aes determinadas (rebus sic stantibus) com a mxima exatido.33 A relao do direito com as outras disciplinas, afirma Lukcs, poderia ser proveitosa se com isso se encontrasse a soluo para o problema do surgimento do

    30 HCC, p. 231.

    31 HCC, pp. 231-232.

    32 HCC, p. 234.

    33 HCC, p. 236.

  • 39

    direito e se a partir dessa explicao do seu surgimento fosse revelada a essncia do direito. Dessa forma, o surgimento do direito e o fundamento real de sua origem ficam encobertos e

    inapreensveis para a prpria teoria jurdica. Lukcs passa, ento, parte final do terceiro item, e, portanto, tambm dessa primeira

    seo do texto. Ele analisa, aqui, os esforos da filosofia em constituir uma cincia unificadora dos demais conhecimentos especializados, que renunciam conscientemente tentativa de abarcarem a totalidade na medida em que se distanciam do substrato material do seu aparato conceitual.34 impossvel, diz Lukcs, que a filosofia assuma esse papel, a no ser que:

    [...] a filosofia rompesse as barreiras desse formalismo mergulhado na fragmentao colocando a questo segundo uma orientao radicalmente diferente e orientando-se para a totalidade material e concreta do que pode ser conhecido, do que dado a conhecer. Para isso, no entanto, seria preciso revelar os fundamentos, a gnese e a necessidade desse formalismo; desse modo, as cincias particulares especializadas no poderiam estar ligadas mecanicamente numa unidade, mas ser remodeladas, inclusive interiormente, pelo mtodo filosfico interiormente unificador (HCC, p. 238). Mas, continua o autor, claro que a filosofia da sociedade burguesa incapaz

    disso, porque uma modificao radical do ponto de vista impossvel no solo da sociedade burguesa.35

    Em que consiste, ento, o desenvolvimento filosfico que se d no solo da sociedade burguesa? Sua tendncia fundamental fazer com as cincias particulares o que elas

    fazem em relao realidade emprica, isto , reconhecer os resultados e os mtodos das cincias particulares como necessrios, dados, e justificar a base da validade dos conceitos assim formados. Essa conceituao formalista das cincias particulares torna-se para a filosofia, assim, um substrato imutavelmente dado, e, quanto mais isso ocorre, mais se afasta, [...] definitivamente e sem esperana, toda possibilidade de revelar a reificao que est na base desse formalismo.36

    A concluso tirada por Lukcs a de que o mundo reificado aparece definitivamente

    como o nico possvel, o nico conceitualmente apreensvel para o pensamento que se d no solo da sociedade burguesa. Diz o autor:

    Ao limitar-se a estudar as possveis condies da validade das formas nas quais se manifesta seu ser subjacente, o pensamento burgus fecha a via que leva a uma maneira de colocar os problemas claramente, s questes relativas ao surgimento e ao desaparecimento, relativas essncia real e ao substrato dessas formas (HCC, p. 239).

    34 HCC, p. 238.

    35 HCC, p. 238.

    36 HCC, p. 239.

  • 40

    O pensamento burgus, portanto, no capaz nem mesmo de formular as perguntas certas, ou melhor, perguntas que apontem para alm dos limites impostos pela reificao da

    conscincia, os limites da mera descrio e justificao da realidade imediata.

  • 41

    1.2 As antinomias do pensamento burgus

    Na segunda seo de seu ensaio, Lukcs parte para uma anlise justamente daquele tipo de pensamento que, por estar to profundamente envolto pela reificao, incapaz de apreender esse fenmeno: o racionalismo moderno, tendo como ponto culminante a filosofia clssica alem. Talvez surja o questionamento, nesse momento, da razo pela qual seria necessrio ou mesmo interessante para Lukcs se adentrar nos labirintos da filosofia

    que ele considera o produto da reificao da conscincia. Aqui cabe o esclarecimento de que esse conhecimento, essa filosofia (em seus diferentes matizes) no representa simplesmente um conhecimento falso da realidade, pura iluso ou falsificao: na sua falsidade, as expresses filosficas da conscincia reificada nos revelam muito a respeito da sociedade no seio da qual tais expresses foram geradas e vieram luz. Assim sendo, o caminho traado por Lukcs ao longo da trajetria da filosofia burguesa permite que ele reconhea nela os principais traos da sociedade capitalista e da forma de conscincia que lhe corresponde (a conscincia reificada).

    Nessa seo, portanto, Lukcs analisa os caminhos da filosofia burguesa, mostrando (1.2.1) a busca dessa filosofia por construir um sistema racional de conhecimento e a impossibilidade de um tal projeto, concomitante ao reconhecimento (conscientemente formulado) dos limites impostos pela irracionalidade, (1.2.2) o fracasso da filosofia crtica ao buscar a soluo na prtica, (1.2.3) a tentativa tambm frustrada de se reconstruir (em pensamento), por meio da arte, o sujeito que foi dilacerado, e, por fim, (1.2.4) a possibilidade da unidade a partir da separao: a descoberta da dialtica e as limitaes desse mtodo na sua verso hegeliana (notadamente o problema da supresso da histria).37

    37 Vale lembrar que Lukcs afirma no pretender nem ao menos esboar uma histria da filosofia moderna,

    mas sim [...] descobrir de maneira indicativa o elo entre os problemas fundamentais dessa filosofia e o fundamento ontolgico do qual se destacam suas questes e ao qual se esforam por voltar para compreend-los (HCC, p. 243).

  • 42

    1.2.1 A tentativa de criar um sistema racional do conhecimento e a formulao consciente dos limites impostos pela irracionalidade

    Lukcs inicia a seo com uma afirmao de impacto sobre o que ele considera um momento decisivo na histria da filosofia: A filosofia crtica moderna nasceu da estrutura

    reificada da conscincia. Nessa estrutura, tm origem os problemas especficos dessa filosofia, que se distinguem da problemtica das filosofias anteriores.38 A referncia para

    essa distino a chamada revoluo copernicana aplicada ao conhecimento, como a formula Kant no prefcio segunda edio da Crtica da Razo Pura. Lukcs cita o prprio Kant:

    At agora, admitiu-se que todo o nosso conhecimento deveria orientar-se de acordo com os objetos [...]. Tentemos, pois, por um momento, ver se no progrediramos melhor nas tarefas da metafsica, admitindo que os objetos devem orientar-se de acordo com o nosso conhecimento [...] (Kant [Crtica da Razo Pura] apud Lukcs, HCC, p. 241, supresses de Lukcs). Essa revoluo, ento, significa que a filosofia moderna prope-se a considerar o

    mundo como o prprio produto do sujeito do conhecimento, e no mais como algo que surgiu independentemente dele: trata-se de [...] apreender o conhecimento racional como um produto do esprito.39 Apesar de essa ideia atingir a sua formulao mais precisa nas palavras de Kant, esse processo no se iniciou, sublinha Lukcs, com o filsofo de Knigsberg [...] que se limitou a tirar suas concluses de maneira mais radical que os seus predecessores40 , mas desde Descartes Lukcs v um desenvolvimento guiado pela [...] ideia de que o objeto do conhecimento s poder ser conhecido por ns porque e na medida em que criado por ns mesmos.41

    O que Lukcs aponta como decisivo nesse processo que tal forma de conhecimento racional, formal, matemtico foi identificada com a essncia mesma da nica forma do

    entendimento humano em geral, de maneira a-histrica e como um dado evidente. Essa equivalncia no evidente, mas a razo pela qual ela passa a vigorar no questionada, no emerge, e tambm ela tida como dada.

    38 HCC, p. 240.

    39 HCC, p. 241.

    40 HCC, pp. 241-242.

    41 HCC, p. 242. Isso leva, afirma Lukcs, a que os mtodos da matemtica, da geometria e depois da fsica

    matemtica isto , mtodos da construo, da criao do objeto a partir de condies formais de uma objetividade em geral tornem-se o padro e o critrio da filosofia, do conhecimento do mundo como totalidade (HCC, p. 242). Sobre isso, tambm afirma o filsofo: [...] todo esse desenvolvimento filosfico efetuou-se em constante interao com o desenvolvimento das cincias exatas, e este, por sua vez, interagia produtivamente com uma tcnica que se racionalizava cada vez mais e com a experincia do trabalho na produo (HCC, p. 244).

  • 43

    Voltemos s peculiaridades da filosofia moderna que a diferenciam dos modelos a ela anteriores. Lukcs aponta que o racionalismo, que ele define ento como um [...] sistema formal (Formsystem) cuja unidade se orientava na direo daquele aspecto do fenmeno que pode ser apreendido, produzido e, portanto, dominado, previsto e calculado pelo entendimento,42 existiu de fato em diversas pocas e sob diferentes formas; h, entretanto, em cada poca, diferenas fundamentais que se referem ao contedo (ou matria) sobre o qual se aplica esse racionalismo, e ao papel que lhe conferido no sistema de conhecimentos. O racionalismo, portanto, no deve ser visto como supra-histrico, ligado de maneira essencial ao pensamento humano. E o que diferencia o racionalismo moderno dos anteriores o fato de que:

    [...] ele reivindica para si e sua reivindicao vai crescendo ao longo do desenvolvimento a descoberta do princpio da ligao entre todos os fenmenos que se opem vida do homem na natureza e na sociedade. Em contrapartida, todos os racionalismos anteriores nunca passaram de sistemas parciais (HCC, p. 245). A diferena entre uma forma de racionalismo que figura como categoria universal (o

    racionalismo moderno) e outra aplicada na organizao de sistemas parciais isolados (o exemplo apresentado por Lukcs o mtodo de ascese hindu)43 uma diferena qualitativa e se torna bastante interessante quando se pensa a relao que cada forma estabelece com o campo do irracional. Segundo Lukcs, existe a necessidade, para todo sistema racional formal, de confrontar-se com um limite ou com uma barreira de irracionalidade (eine Grenze oder Schranke der Irrationalitt); isso no causa, contudo, nenhum problema metodolgico para os sistemas que se propem como parciais desde o incio, j que o que racional, nesse caso, o meio para atingir um fim o qual, de fato, no racional, mas representado como algo independente do sistema racional parcial.

    Justamente porque pretende tudo abarcar, por outro lado, o sistema racional do racionalismo moderno se desintegra ao se deparar com uma irracionalidade irredutvel. O racionalismo moderno coloca, ao mesmo tempo, a necessidade e a impossibilidade de um sistema total. Para exemplificar sua afirmao, Lukcs recorre a Kant e especialmente ao

    seu sistema crtico (neste momento, Lukcs refere-se Crtica da razo pura): a coisa-em-si e seu significado mltiplo expressam emblematicamente essa questo. Apesar de todas

    42 HCC, pp. 244-245.

    43 Para dar esse exemplo, Lukcs baseia-se na obra Gesammelte Aufstze zur Religionssoziologie, de Max

    Weber. Voltaremos discusso desse trecho no Captulo 3, p. 162.

  • 44

    as suas variaes, este conceito representa, em todas as sua acepes, o fundamento unitrio de [...] um limite ou uma barreira faculdade humana, abstrata, e formal e racionalista da cognio.44 Esse limite, estabelecido pela separao radical entre nmeno e fenmeno presente na dialtica transcendental kantiana, reserva razo humana a possibilidade de conhecer somente o contedo por ela mesma criado e s pode conhec-lo na medida mesma em que ela o criou. Por outro lado, fica absolutamente excluda a possibilidade de acessar questes relativas ao problema da totalidade e da substncia ou dos objetos ltimos do conhecimento (os quais seriam necessrios para integrar os diversos sistemas parciais numa totalidade). O conceito de coisa-em-si , portanto, segundo Lukcs, um conceito negativo e tem, na obra de Kant, duas funes limitadoras que esto

    intimamente conectadas: a impossibilidade de apreender (a) a totalidade a partir dos conceitos formados nos sistemas racionais parciais e (b) a irracionalidade dos contedos particulares dos conceitos. Na realidade, Kant exclui essas questes afirmando que elas so falsamente formuladas e no constituem questes propriamente ditas.

    A irracionalidade da coisa-em-si (nos dois sentidos enunciados acima), entretanto, algo que se contrape prpria ideia racionalista de sistema, tal como o define Lukcs. Vejamos essa definio:

    Pois o sistema no sentido do racionalismo e outro sistema seria uma contradio em si s pode ser o de uma coordenao ou, antes uma supra-ordenao e uma subordinao dos diversos sistemas parciais das formas (e no interior desses sistemas parciais, das formas particulares), onde essas relaes podem sempre ser pensadas como necessrias, isto , como sendo visveis a partir das prprias formas, ou pelo menos a partir de seu princpio de constituio, como produzidas por elas (HCC, p. 251). O reconhecimento de um contedo que deve ser aceito como facticidade (porque no

    pode ser derivado por princpio da forma) no pode ser conciliado com o princpio da sistematizao. Desse modo, afirma Lukcs,

    [...] o racionalismo como mtodo universal faz nascer, necessariamente, a exigncia do sistema, mas, ao mesmo tempo, a reflexo sobre as condies da possibilidade de um sistema universal. Dito de outro modo, a questo do sistema, se formulada conscientemente, mostra a impossibilidade de satisfazer a exigncia assim colocada (HCC, p. 251).

    preciso, ento, renunciar ao sistema como sistema: [...] ele apenas um registro to completo e uma descrio to bem ordenada quanto possvel dos fatos, cuja coeso, contudo, no mais racional, no pode mais, portanto, ser sistematizada, mesmo que as formas de seus elementos sejam racionais (HCC, pp. 253-254).

    44 HCC, p. 247.

  • 45

    A tentativa de construir um sistema racional a despeito da irracionalidade do contedo do conceito (que reconhecida e mantida como tal) constitui, nas palavras de Lukcs, a grandeza, o paradoxo e a tragdia da filosofia clssica alem.45 Nessa construo, ela leva ao extremo a oposio lgica entre forma e contedo e tenta, no obstante, transcend-la.

    Quando esse hiato irracional (nas palavras de Fichte), esse limite imposto pela irracionalidade do contedo do conceito e da relao entre os sistemas parciais no reconhecido, temos, de conformidade com Lukcs, uma poca de dogmatismo filosfico em que o pensamento da classe burguesa identifica suas formas de pensamento com a prpria realidade que o seu pensamento pretende abarcar. Posteriormente a esse perodo de dogmatismo filosfico, a doutrina da irracionalidade, nas palavras de Lukcs, que surge

    do reconhecimento do problema da irracionalidade acima mencionado, implica na renncia em super-lo e conduz recusa de toda metafsica (no sentido de cincia do ser), e a estabelecer [...] como objetivo a compreenso dos fenmenos de setores parciais, particularizados e altamente especializados, com o auxlio de sistemas parciais, abstratos e de clculo que lhes sejam perfeitamente adaptados, sem, a partir disso, tentar sequer dominar de maneira unitria a totalidade do saber possvel o que constituiria uma tentativa no cientfica e dogmtica.46 O que resta, ento, so as cincias particulares, especializadas e isoladas, cuja preciso ou exatido repousa justamente na sua operao em um sistema fechado tornado metodologicamente puro por meio de categorias racionais que no se aplicam mais ao substrato material, mas antes numa matria

    inteligvel.47 A filosofia, de forma consciente, no interfere nesse trabalho das cincias particulares. Ela chega at a considerar essa renncia como um progresso crtico. Seu papel se limita, assim, ao estudo das condies formais de validade das cincias particulares, que no sofrem interferncias nem correes (HCC, pp. 257-258). Assim, para Lukcs, a filosofia no pode mais fornecer a soluo para os problemas

    contornados por essas cincias e nem ao menos formul-los pois, [...] assim que feita a tentativa de uma sistematizao, o problema no resolvido da irracionalidade manifesta-se no problema da totalidade.48 Essa tendncia, diz Lukcs, se expressa no fato de que, apesar

    45 HCC, pp. 252-253.

    46 HCC, p. 257.

    47 Ibidem.

    48 HCC, p. 258.

  • 46

    dominar cada vez com maior preciso os pormenores detalhes de sua existncia, a sociedade burguesa afasta-se da possibilidade de apreender a sociedade como totalidade.

    A importncia da filosofia clssica alem reside, para Lukcs, em que ela nasce num perodo (do desenvolvimento da classe) no qual esses problemas so levados conscincia como problemas em que pese aparecerem como problemas puramente intelectuais e filosficos.

    1.2.2 A busca da soluo na prtica: o fracasso da virada crtica

    Entretanto, mesmo no plano do puro pensamento, a filosofia clssica encontra uma barreira (Schranke) intransponvel. Lukcs segue Hegel ao criticar Kant pela manuteno de certos pressupostos como dados no questionados:

    [...] a filosofia clssica, que dissipou impiedosamente todas as iluses metafsicas da poca precedente, tinha de proceder em relao a alguns dos seus prprios pressupostos com a mesma falta de crtica e de maneira to metafsica e dogmtica como suas predecessoras (HCC, p. 260). Assim, Lukcs procura denunciar a aceitao dogmtica do modo de conhecimento

    formalista e racional como a nica maneira possvel (para ns) de apreender a realidade. H na filosofia crtica, assim, como Lukcs apontou no item anterior, um esforo para

    dominar a totalidade como produo de si mesmo, obedecendo quela ideia de que o pensamento pode compreender apenas o que produziu; mas tal esforo se detm na barreira intransponvel do dado, da coisa-em-si. O caminho para no renunciar totalidade s poderia ser o caminho da interioridade: [A filosofia clssica] Deveria tentar descobrir um sujeito do pensamento, cuja existncia pudesse ser pensada sem hiatus irrationalis, sem a coisa transcendental em si como algo que seu produto.49 O pensamento , assim,

    levado pela filosofia clssica a procurar ultrapassar a mera aceitao e reflexo sobre as condies de possibilidade da realidade dada, direcionando-se para a superao da simples contemplao. Mas, ao mesmo tempo, essa mesma filosofia impede a [...] descoberta do princpio verdadeiramente oposto e que suplanta de fato a contemplao, o princpio da prtica.50 Vejamos como Lukcs articula esse argumento.

    Lukcs cita Fichte para mostrar o surgimento, na filosofia clssica, da exigncia de se descobrir um nvel de objetividade em que seja possvel a superao da dualidade entre

    49 HCC, p. 260.

    50 HCC, p. 261.

  • 47

    sujeito e objeto que existe no plano emprico isto , descobrir o sujeito-objeto idntico. Essa unidade justamente a atividade (Ttigkeit), ou prtica (Praktische), que assim o princpio oposto contemplao e que de fato a suplanta. Kant o reconhece, diz Lukcs, na Crtica da razo prtica, e Fichte pe [...] a ao, a prtica, a atividade [Praktische, Handeln, Ttigkeit] no centro metodolgico do conjunto da filosofia unificada.51

    A filosofia crtica, contudo, no consegue resolver suas oposies e antinomias tambm neste campo. E isso porque, segundo Lukcs, apesar de ser somente no ato tico (e, portanto, prtico) que essa relao do sujeito com seu objeto pode ser real e concretamente descoberta,

    [...] a dualidade intransponvel entre a forma autoproduzida, mas totalmente voltada para o interior (forma mxima da tica em Kant), e a realidade estranha ao entendimento e ao sentido, o dado, a experincia, impem-se de maneira ainda mais abrupta conscincia tica do indivduo que age do que ao sujeito contemplativo do conhecimento (HCC, p. 264). Lukcs afirma, portanto, que a tentativa da filosofia crtica de solucionar os

    problemas tericos que emergiram na teoria do conhecimento por meio de uma virada em direo prtica no s no tem sucesso, como tambm aprofunda o elemento contemplativo do sujeito. Isso acontece, segundo Lukcs, porque Kant permanece no nvel de interpretao filosfica crtica dos fatos ticos na conscincia individual, o que faz com que (1) o fato se mantenha como simples facticidade no produzida; (2) a liberdade supostamente descoberta na esfera tica seja reduzida liberdade do ponto de vista de que se parte para julgar os fatos interiores,52 os quais se encontram, por sua vez, submetidos totalmente ao mecanismo fatalista da necessidade objetiva; (3) a separao entre nmeno e fenmeno no s no seja superada, como agora transportada para o prprio sujeito; e (4) a tica seja assim puramente formal, sem contedo: se [...] todos os contedos que nos so dados pertencem ao mundo da natureza e, por conseguinte, esto submetidos incondicionalmente s leis objetivas do mundo fenomnico, a validade das normas prticas s pode se referir s formas da ao interior em geral.53

    Somos, assim, reconduzidos ao problema metodolgico da coisa-em-si, que ainda no foi superado e se mantm sob a forma do problema da relao entre forma e contedo. Para resolver o problema da irracionalidade da matria e do carter irredutvel da facticidade,

    51 HCC, p. 263; GKb, p. 301.

    52 HCC, p. 264.

    53 HCC, p. 265.

  • 48

    ento, no basta a tentativa de ir alm da atitude contemplativa. A prpria prtica tem que ser entendida de forma distinta: no mais como uma tica formal, como os postulados da

    razo prtica, e indiferente em relao a todo contedo material, mas, pelo contrrio, O princpio da prtica como princpio da filosofia s encontrado realmente, portanto, quando se indica ao mesmo tempo um conceito de forma, cuja validade no tenha mais como fundamento e condio metodolgica essa pureza em relao a toda determinao de contedo, essa pura racionalidade. O princpio da prtica, enquanto princpio de transformao da realidade, deve ento ser talhado na medida do substrato material e concreto da ao, para poder agir sobre ele quando entrar em vigor (HCC, p. 267). A ideia de prtica presente no idealismo alemo, ao contrrio, apresenta uma

    contradio entre, por um lado, a essncia dos sistemas formais modernos e racionalistas o fato de serem por ns produzidos e, por outro, sua irredutvel objetividade, sua necessidade fatalista, impostas externamente ao homem.

    Como apontamos no incio da exposio dessa segunda seo (p. 28), contudo, tal contradio no se trata de uma mera falsidade e, pelo contrrio, ela pode lanar nova luz sobre as dificuldades da questo e talvez para sua soluo, Pois a contradio no reside na incapacidade dos filsofos em analisar de maneira unvoca os fatos diante dos quais eles se encontram; , antes de tudo, a expresso em pensamento da prpria situao objetiva que eles tm como tarefa compreender.54 A contradio constatada [...] apenas a formulao lgica e metodolgica da situao da sociedade moderna.55 Na sociedade moderna, diz

    Lukcs, apesar de os homens terem dissolvido e abandonado os elos naturais e irracionais que eram efetivos nas sociedades tradicionais, eles ao mesmo tempo criam

    uma nova realidade, por eles mesmos produzida, mas que exerce o poder de uma segunda natureza, to necessria e inelutvel quanto os poderes naturais irracionais de outrora. Lukcs utiliza as palavras de Marx: Seu [dos homens] prprio movimento social possui para eles a forma de um movimento de coisas que os controlam em vez de ser controlado por eles.56

    O tipo de ao que possvel nesse contexto em que se impem leis necessrias como uma segunda natureza no uma ao com o sentido de transformao da realidade, ela no estabelece relao com o substrato material e qualitativo. Nas palavras de Lukcs: Pois

    54 HCC, p. 271. Preferimos, como a tradutora portuguesa, traduzir o termo gedanklich (GKb, p. 307) por em

    pensamento, no lugar de intelectual, como consta na edio brasileira (mantivemos a traduo aqui indicada no restante das citaes). 55

    HCC, p. 271. 56

    Marx (O Capital) apud Lukcs, HCC, p. 272.

  • 49

    essa ao (Handeln) consiste em calcular com a maior antecedncia possvel o efeito provvel dessas leis e no fato de o sujeito da ao adotar uma posio em que esses efeitos ofeream as melhores oportunidades para seus fins.57 nesse sentido que a atitude do sujeito torna-se puramente contemplativa.

    A concluso desse item , portanto, que a virada da filosofia crtica em direo prtica fracassa como tentativa de resolver as antinomias que ela havia encontrado na teoria. Mais que isso, a filosofia crtica acaba tornando tais antinomias eternas. Na antinomia entre liberdade e necessidade, que surge da impossibilidade de compreender (e produzir) concretamente a conexo entre forma e contedo, temos uma espcie de esvaziamento de ambos os plos do problema, em que nem a liberdade capaz abalar ou

    mesmo conferir um sentido necessidade dos dados sensoriais que esto presentes no sistema do conhecimento e s suas leis naturais necessrias, e nem o mundo conhecido pela

    razo cognitiva pode mais emprestar vida s determinaes meramente formais da liberdade.58 Nas palavras de Lukcs:

    A regularidade eterna e inflexvel do devir do processo natural e a liberdade puramente interior da prxis moral e individual aparecem, no final da Crtica da razo prtica, como fundamentos separados e inconciliveis da existncia humana, mas, ao mesmo tempo, dados irrevogavelmente em sua separao (HCC, p. 282). Ele termina esse item, ento, da seguinte maneira: A grandeza da filosofia de Kant

    consiste em no ter ocultado, em ambos os casos, o carter insolvel do problema com uma

    deciso arbitrariamente dogmtica em qualquer sentido que seja, mas salientando abrupta e asperamente esse carter insolvel.59

    1.2.3 A dilacerao do sujeito e a tentativa de recri-lo em pensamento por meio da arte

    Lukcs procura, nesse item, mostrar que todos esses problemas que ele vem abordando e que foram temas do racionalismo moderno no so meros problemas de pensamento. Mas justamente como meros problemas do pensamento que as teorias burguesas procuram solucion-lo. Isso , contudo, para Lukcs, resultado da posio do homem burgus no processo de produo capitalista. Assim, como consequncia dessa

    57 HCC, p. 274. Podemos dizer, utilizando o vocabulrio weberiano, que a ao dos sujeitos se limita ao

    racional com respeito a fins, e fica excluda qualquer possibilidade de investigao sobre esses fins mesmos. 58

    HCC, p. 281. 59

    Ibidem.

  • 50

    situao surge uma mirade de equvocos e confuses (essenciais e inevitveis) no que tange aos conceitos que o homem burgus utiliza para compreender a si mesmo e sua

    relao com o mundo. Lukcs mostra a confuso que existe, por exemplo, em torno do conceito de natureza, que adquire um sentido muito ambguo. Em primeiro lugar, a natureza adquire a conotao do conjunto do sistema de leis, tal como aparece em Kepler e Galileu e que foi mais claramente formulado por Kant. Trata-se do carter conforme lei, calculvel, abstrato e formal da sociedade burguesa (em contraposio, por exemplo, arbitrariedade tpica do perodo feudal e do absolutismo). Em segundo lugar, porm, temos uma concepo de natureza diametralmente oposta (presente, por exemplo, em Rousseau) que expressa as tendncias interiores que agem contra a mecanizao, a privao da alma

    e a reificao crescentes.60 Essa concepo ento se refere quilo que teve um crescimento orgnico, isto , no foi criado pelo homem, em oposio artificialidade da

    civilizao humana.61

    Surge, assim, no entanto, em conexo com os conceitos anteriores, um terceiro

    conceito de natureza: o aspecto do homem que permaneceu como natureza e no foi tomado pela reificao,

    [...] o ser humano autntico, a essncia verdadeira do homem, liberada das formas sociais falsas e mecanizantes, o homem enquanto totalidade acabada, que superou ou supera interiormente a ciso entre teoria e prxis, entre razo e sensibilidade, entre forma e matria. Para esse homem, a tendncia a criar a prpria forma no uma racionalidade abstrata que deixa de lado contedos concretos. Para ele, a liberdade e a necessidade coincidem (HCC, p. 286). Assim parece, diz Lukcs, que, com esse conceito de natureza, em que claramente se

    manifesta a tendncia a superar a problemtica da existncia reificada, se chega (sem querer) justamente no ponto que se estava procurando mas cujo caminho havia sido desviado pelas antinomias e rgidas oposies do racionalismo moderno e especialmente da

    filosofia crtica. E tal superao que parece termos alcanado s pode se dar se a atitude desse homem que cria a prpria forma sem deixar de lado os contedos concretos

    possuir um campo concreto e real de realizao.62 A arte foi por alguns filsofos considerada esse campo de realizao, e essa concepo que Lukcs passa a analisar:

    60 HCC, p. 285.

    61 HCC, pp. 285-286. Lukcs ressalta, em nota (a de nmero 88), o quanto essa concepo, especialmente a

    ideia de crescimento orgnico como oposio reificao, adquire um significado na histria cada vez mais reacionrio. 62

    HCC, p. 287.

  • 51

    Trata-se aqui da importncia terica, sistemtica e ideolgica que o princpio da arte assume [a partir do sculo XVIII].63

    Tal princpio prev, a partir de uma concepo da forma orientada justamente para o contedo concreto do seu substrato material e da consequente dissoluo da contingncia da relao dos elementos com o todo, a possibilidade da criao de uma totalidade concreta. Rigorosas oposies, como aquela entre necessidade e contingncia, aparecem doravante como meras aparncias. Para Kant, por exemplo, diz Lukcs, esse princpio tem (na Crtica do juzo) essa funo mediadora, de acabamento do sistema, mas esse ponto em que o sistema poderia ser acabado visto somente de maneira programtica. Para seus sucessores, contudo, esse o ponto fundamental. A funo metodolgica que ao princpio da arte deve

    ser atribuda foi expressa posteriormente, menciona Lukcs, por Fichte (segundo o qual a arte que conclui o postulado de explicao do mundo da filosofia transcendental) e por Schiller (que procura extrapolar o princpio da arte para alm da esttica e procura nele a soluo do problema do sentido da existncia social do homem).

    O princpio da arte caso ele seja de fato um princpio formal que no despreze o contedo e, assim, resolva o problema da irracionalidade, da relao entre forma e contedo traria a possibilidade, ento, para que o mtodo superasse o racionalismo formal e pudesse [...] propor o mundo pensado como sistema acabado, concreto, pleno de sentido, produzido por ns, e que alcana em ns o estgio de autoconscincia.64 O princpio da arte (nas suas diferentes formulaes ao longo do desenvolvimento da filosofia clssica), de fato nos revela, afirma o autor, que essa filosofia clssica reconhece, primeiramente, que o ser social aniquilou o homem enquanto homem,65 o dilacerou e o dividiu em sistemas

    parciais. Entretanto, tendo reconhecido esse aniquilamento do homem pelo ser social, a filosofia clssica procura mostrar o princpio da arte como o princpio por meio do qual esse homem dilacerado pode ser reconstrudo intelectualmente, em pensamento.

    Essa empresa, acrescenta Lukcs, apesar da perspectiva fecunda que seu mtodo projeta no futuro, deve necessariamente fracassar. O fracasso dessa tentativa necessrio porque, segundo Lukcs, tanto a colocao da questo quanto a resposta a ela esto limitadas ao plano do puro pensamento. A atitude fundamental permanece nos moldes do

    63 HCC, p. 287.

    64 HCC, p. 289.

    65 HCC, p. 290.

  • 52

    racionalismo, mantendo intacto o dogma da racionalidade e reduzindo novamente o sujeito mera contemplao de um mundo doravante estetizado.

    Lukcs finaliza este item apresentando o que ele considera o nico caminho para a superao dessa dilacerao do sujeito em partes autonomizadas: [...] no h outra via seno a da produo dessa dilacerao [Zerrissensein], dessa disperso [Auseinanderfallen] a partir de um sujeito concreto total.66 Por outras palavras, no o caso de produzir uma realidade dada como em Kant ou Spinoza mas, dando mais um passo, [...] trata-se de deduzir a unidade no dada dessa forma de produo que se desintegra como sendo o produto de um sujeito produtor. Em ltima anlise, portanto, trata-se de produzir o sujeito do produtor.67

    1.2.4 Unidade a partir da separao: a dialtica (e os limites da dialtica hegeliana: a supresso da histria)

    Lukcs inicia esse item lembrando que no estamos mais no nvel da pura teoria do conhecimento, que [...] apenas tentou investigar as condies de possibilidade daquelas formas do pensamento e da ao que haviam sido dadas em nossa realidade.68 A prpria filosofia clssica reconheceu o homem como dilacerado e tenta de fato unific-lo, isto , o

    problema da reificao penetrou de maneira profunda na prpria conscincia (o que, contudo, no significa que sua resoluo seja assim, facilitada). O que acontece ento que, a partir de Hegel, O restabelecimento da unidade do sujeito e a salvao do homem no plano do pensamento tomam conscientemente o caminho da dilacerao e da desintegrao [Zerrissenheit und Zerstcklung].69 Em termos hegelianos, Lukcs afirma que, no caminho para o restabelecimento da unidade do homem, as figuras da desintegrao so agora tomadas como etapas necessrias que se dissolvem e se tornam dialticas na sua relao com a totalidade.

    Isso significa que, para Hegel, a totalidade s pode ser alcanada a partir da separao absoluta.70 So importantes, portanto, as oposies insolveis e antinomias com que se

    66 HCC, p. 293; GKb, p. 321.

    67 HCC, p. 293; GKb, p. 322. Alteramos ligeiramente a traduo da edio brasileira.

    68 HCC, p. 294.

    69 HCC, p. 294; GKb, p. 322.

    70 Nas palavras de Hegel: [...] a evoluo necessria um fator da vida que se forma na eterna oposio: e a

    totalidade na vida mais intensa s possvel por meio de uma vida nova, a partir da mais absoluta separao (Hegel [Diferena Entre os Sistemas Filosficos de Fichte e de Schelling] apud Lukcs, HCC, p. 295).

  • 53

    deparavam o racionalismo moderno e a filosofia crtica. Assim, a incurso pela filosofia burguesa que Lukcs realiza nessa segunda seo tem uma justificao mais efetiva: todo o caminho da filosofia clssica que foi traado at agora se