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Matheus Dias Bastos O problema da akrasia no Protágoras de Platão Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Danilo Marcondes de Souza Filho Rio de Janeiro Fevereiro de 2016

Dissertação de Mestrado - DBD PUC RIO · Ao meu orientador Danilo Marcondes, pela constante dedicação, paciência e grande incentivo ao meu trabalho. À professora Maura Iglésias,

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Matheus Dias Bastos

O problema da akrasia no Protágoras de Platão

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Filosofia.

Orientador: Prof. Danilo Marcondes de Souza Filho

Rio de Janeiro Fevereiro de 2016

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Matheus Dias Bastos

O problema da akrasia no Protágoras de Platão

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Danilo Marcondes de Souza Filho Orientador

Departamento de Filosofia - PUC-Rio

Profa. Maura Iglésias Departamento de Filosofia - PUC-Rio

Prof. Fernando Décio Porto Muniz Universidade Federal Fluminense - UFF

Profa. Denise Berruezo Portinari

Coordenador Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de janeiro, 26 de fevereiro de 2016

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Todos os direitos reservados. É proibida a

reprodução total ou parcial do trabalho sem

autorização da universidade, do autor e do

orientador.

Matheus Dias Bastos

Graduou-se em Filosofia na Universidade Federal

Fluminense (UFF) em 2013. Atua na área de

Filosofia, com especial interesse sobre Filosofia

Antiga.

Ficha Catalográfica

CDD: 100

Bastos, Matheus Dias

O problema da akrasia no Protágoras de Platão / Matheus Dias Bastos; orientador: Danilo Marcondes de Souza Filho. – 2016.

154 f. ; 30 cm

Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia, 2016.

Inclui bibliografia

1. Filosofia – Teses. 2. Problema. 3. Formulação. 4. Akrasia. 5. Platão. 6. Protágoras. I. Souza Filho, Danilo Marcondes de. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Título.

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Agradecimentos

Aos meus pais, Adalberto Parra Bastos e Elizabeth Pessoa Dias, por todo o apoio

que sempre me deram.

Ao meu orientador Danilo Marcondes, pela constante dedicação, paciência e

grande incentivo ao meu trabalho.

À professora Maura Iglésias, por ter aceitado gentilmente fazer parte da minha

banca.

Ao professor Fernando Muniz, pela tutoria em todos os passos de minha carreira

acadêmica e, acima de tudo, pela amizade.

À minha amada Maria Adriana, por sempre estar presente em todos os momentos,

os mais alegres e os mais difíceis.

A Wellton da Silva, Lauro Augusto e Gabriela Guedes, pelo auxílio concedido nas

fases decisivas do meu trabalho.

A André Luiz e Mariana Pinheiro, sua amizade e apoio foram muito importantes

para mim durante esse período.

A André Stock, Camila Lima, João Gabriel, Luiz Eduardo e Rhamon Oliveira,

pelas discussões filosóficas e pelo companheirismo.

Aos colegas e professores do NUFA, especialmente à Irley Franco e Luísa

Buarque pelas críticas e sugestões à minha pesquisa, embora queira agradecer

também a Antônio Queirós e Carlos Monteiro.

Ao CNPq e à PUC-Rio, por viabilizar o prosseguimento desta pesquisa.

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Resumo

Bastos Dias, Matheus; Souza Filho, Danilo Marcondes de. O problema da

akrasia no Protágoras de Platão. Rio de Janeiro, 2016. 154 p. Dissertação

de Mestrado – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro.

Essa dissertação pretende analisar de que modo o fenômeno, denominado

de akrasía pela tradição grega posterior, se constitui como um problema filosófico

no Protágoras de Platão. O problema da akrasía envolve a determinação de uma

formulação apropriada do fenômeno no diálogo. Por meio da discussão dos

personagens, o filósofo mostra a necessidade de avaliar as inconsistências da

descrição da akrasía da opinião dominante grega de sua época e propõe uma

reformulação dessa experiência. O personagem Sócrates apresenta a tese da

refutação da akrasía e a substitui por ignorância. A refutação da akrasía é uma

tese controversa para os intérpretes de Platão e alguns deles apontaram problemas

na formulação oferecida por Sócrates. Para a maioria desses intérpretes, a

principal falha dos argumentos do personagem seria desconsiderar a intervenção

dos desejos não racionais sobre a ação humana. Em oposição a tal tendência

interpretativa, o presente trabalho demonstrará que a refutação da akrasía não é,

como os intérpretes supõem, uma rejeição da influência exercida por esses

desejos. A reformulação do fenômeno por Sócrates oferece uma explicação

consistente da deliberação humana além de integrar uma parte fundamental das

discussões presentes no Protágoras.

Palavras-chave

Problema; formulação; akrasía; Platão; Protágoras.

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Abstract

Bastos Dias, Matheus; Souza Filho, Danilo Marcondes de (Advisor). The

problem of akrasia in Plato’s Protagoras. Rio de Janeiro, 2016. 154 p.

MSc. Dissertation – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro.

This dissertation intends to analyze how the phenomenon, entitled akrasia

by the posterior greek tradition, constitutes itself as a philosophical problem in

Plato’s Protagoras. The akrasia’s problem involves the determination of an

appropriate characterization phenomenon in the dialogue. Through the character’s

discussion, the philosopher states the need to evaluate inconsistencies of akrasia’s

description in the greek public opinion of that time and he proposes a

reformulation of this experience. Socrates’ character introduces the akrasia’s

refutation thesis and replaces it by ignorance. The akrasia’s refutation is a

controversial thesis for Plato’s interpreters and some of them pointed problems in

the formulation offered by Socrates. For most interpreters, the main flaw of the

character’s arguments would be the disconsideration of the intervention of non-

rational desires upon the human action. Opposing the so-called trend, the present

work demonstrates that akrasia’s refutation is not, as it is supposed by

interpreters, a rejection of inflicted influence by those desires. The reformulation

of the phenomenon made by Socrates offers a consistent explanation of human

deliberation besides integrating a fundamental part of present discussions in

Protagoras.

Keywords

Problem; formulation; akrasia; Plato; Protagoras.

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Sumário

1 Introdução 10

2 O surgimento do problema da akrasía no Protágoras - A possibilidade

do ensino da virtude 20

2.1 O problema da akrasía no contexto do diálogo 20

2.2 A refutação da descrição tradicional da akrasía e a unidade entre

virtude e conhecimento 24

2.3 A necessidade do ensino da virtude para Protágoras 29

2.4 A reciprocidade das virtudes 42

2.5 Considerações finais da integração entre a discussão do

hedonismo e da akrasía e a tese do ensino das virtudes 51

3 A descrição tradicional da akrasia 52

3.1 A etimologia da palavra akrasía 54

3.2 A akrasía segundo a opinião dominante (hoi polloí) no Protágoras

(352d-e): Sócrates quer negar a influência dos desejos não racionais? 56

3.3 As raízes da crença da opinião dominante sobre o fenômeno da

akrasía 70

3.4 A proposta de reformulação da descrição tradicional do fenômeno

no Protágoras 83

4 O argumento hedonista e a redução ao absurdo da descrição

tradicional da akrasía 85

4.1 A relação entre a opinião dominante e Protágoras: as teses acerca

do prazer e a descrição tradicional da akrasía 85

4.2 O argumento hedonista 90

4.3 A redução ao absurdo da descrição tradicional da akrasía 101

4.4 A necessidade de uma descrição alternativa para a akrasía 106

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5 A refutação da descrição tradicional da akrasía 107

5.1 O desafio da refutação da descrição tradicional do fenômeno 107

5.2 O poder da aparência (toû phaynoménou dýnamis) e a técnica da

medida (metretikè téchne) 111

5.3 As divergências interpretativas 115

5.3.1 Interpretação de Gosling, Taylor e Irwin – Distinção temporal de

prazeres 115

5.3.2 Interpretação de Rudebusch e Nussbaum – Preservação da

comensurabilidade 120

5.3.3 Interpretação de Brickhouse e Smith – Desejo racional e desejo

não racional 132

5.3.4 Uma proposta interpretativa 139

5.3.5 Problemas remanescentes 143

6 Considerações finais 145

7 Referências bibliográficas 150

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“Se pudesse, seria mais sã; mas me arrasta uma nova

força, involuntária; a paixão me leva para um lado, a

mente me exorta para outro: vejo o melhor, aprovo, sigo o

pior.

Ovídio, Metamorfoses, VII (18-21)

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1 Introdução

O termo grego ‘akrasía’, usado para designar um fenômeno específico,

inaugurou um problema filosófico que tem grande repercussão ainda hoje. A

relevância da experiência da akrasía depende, fundamentalmente, da tradição

filosófica grega responsável por transformá-la em um problema filosófico.

Embora tenhamos conhecimento da clássica abordagem de Aristóteles sobre a

akrasía apresentada na Ética a Nicômaco, é propriamente no diálogo Protágoras

de Platão que encontramos o problema filosófico circunscrito em sua formulação1.

Dessa forma, uma investigação das origens filosóficas do problema da akrasía

deve se concentrar sobre a primeira obra filosófica a tratá-lo dentro da tradição

grega (KAHN, 1996, p. 253). Com esse propósito, nossa dissertação se propõe a

investigar a análise filosófica do fenômeno da akrasía elaborada no Protágoras de

Platão.

No Protágoras de Platão, encontramos a controversa refutação da akrasía,

defendida pelo personagem Sócrates durante a discussão com o sofista Protágoras.

Para analisarmos essa refutação no diálogo, devemos levar em conta dois

problemas que serão imprescindíveis para o desenvolvimento de nosso exame: (1)

o que é a akrasía, e como o fenômeno pode ser encarado como um problema

filosófico? A polêmica em torno da tese sustentada pelo filósofo remete, mais

especificamente, à refutação de uma formulação específica da akrasía, o que

designaremos nesta dissertação de ‘descrição tradicional’ do fenômeno. Dessa

maneira, precisamos avaliar de que maneira a akrasía pode ser tratada como um

problema filosófico a partir da ‘descrição tradicional’ explicitada no diálogo; e (2)

a tese da refutação da akrasía é derivada dos argumentos elaborados entre

Sócrates e seus interlocutores, ou seja, não é apenas uma tese elaborada

diretamente pelo filósofo. Por outro lado, a refutação da akrasía é desenvolvida a

partir da discussão entre Sócrates, Protágoras e a opinião dominante grega acerca

desse fenômeno e do prazer. Sendo assim, devemos analisar alguns aspectos da

1 De qualquer modo, devemos ressaltar que a palavra akrasía não aparece no Protágoras de

Platão. A ausência do termo, no entanto, não significa que o fenômeno, designado posteriormente

por esse termo, não seja discutido no diálogo pelos interlocutores. Na sequência, observaremos

apenas algumas indicações significativas sobre isso.

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forma dialógica da obra platônica com o objetivo de determinar, especificamente,

um procedimento adequado para identificar o posicionamento de Sócrates (talvez

o mais reconhecido ‘porta-voz’ das teses platônicas) e de seus interlocutores, em

relação aos argumentos apresentados na discussão sobre a akrasía e o prazer. Na

sequência, vamos oferecer uma caracterização geral do problema filosófico que

envolve a própria formulação da akrasía.

Embora a maneira mais comum de iniciar uma discussão sobre um tema

em filosofia seja partir de uma hipótese de definição geral do objeto, qualquer

proposta de definição do fenômeno da akrasía já consiste, por si mesma, no

problema filosófico a ser analisado. O problema da akrasía consiste, portanto, em

uma análise do grau de correspondência entre um determinado tipo de formulação

e o fenômeno em si mesmo. De forma geral, as formulações propostas dependem,

fundamentalmente, dos tipos de casos de akrasía que estamos considerando. Com

efeito, a experiência da akrasía adquire o nível de um problema filosófico à

medida que as formulações sugeridas implicam em dificuldades para a explicação

da ação humana, tanto em desdobramentos psicológicos como também em

desdobramentos éticos.

Para esclarecer o problema da akrasía a partir do próprio Protágoras,

vamos utilizar a formulação típica do fenômeno apresentada no texto e refletir

sobre algumas de suas implicações filosóficas. A análise filosófica da akrasía

apresentada no diálogo Protágoras dirige-se à formulação atribuída à opinião

dominante grega da época, o que designamos de ‘descrição tradicional’ do

fenômeno. De acordo com a descrição tradicional da akrasía, um homem realiza

uma ação contra o que considera ser melhor porque é submetido pelos impulsos.

Nesse sentido, a akrasía depende de um conflito entre uma aspiração do agente

pelo que é melhor a si mesmo e um impulso orientado pela satisfação imediata. A

formulação corrente da akrasía, tal como apresentada no diálogo, implica em

alguns problemas que devem ser considerados. Afinal, o que motivou a ação

errada, o impulso ou a deliberação? Se a ação foi causada pelo impulso, será que

ainda poderíamos dizer que o agente é responsável pelo que se sucedeu? Se a

deliberação é a causa da ação, que tipo de mudança ocorreu nas crenças do

agente? Em que medida o agente tem responsabilidade pela ação errada? De fato,

essas questões colocam em xeque a descrição tradicional da akrasía e nos levam a

buscar uma formulação do fenômeno que possa contornar os problemas

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apresentados. De outro lado, acompanhamos, no próprio diálogo, que o

personagem Sócrates apresenta a refutação da descrição tradicional por seu

interesse em preservar a superioridade do conhecimento. Nesses termos, o filósofo

propõe a reformulação da akrasía por ignorância. Embora a reformulação

socrática da akrasía ofereça mais consistência que a descrição tradicional,

precisamos reconhecer que a tese do filósofo é controversa para a tradição grega,

como é possível testemunhar por Aristóteles.

A polêmica em torno dessa tese é explicitada, sobretudo, por Aristóteles

no livro 7 da Ética a Nicômaco. Realmente, o próprio filósofo faz referência

explícita à negação da akrasía encontrada no Protágoras para sua análise do

fenômeno (1145b20-32; 1147b6-19). Como mostra Irwin (2008, p. 32-34), embora a

negação da akrasía seja atribuída a um determinado ‘Sócrates’ na Ética, que

poderíamos associar ao Sócrates histórico, é notável que o vocabulário da própria

tese reproduza, fielmente, as palavras do personagem homônimo do Protágoras2.

Dessa forma, não apenas acreditamos que o personagem Sócrates do Protágoras

esteja engajado em discutir o fenômeno designado por akrasía, como também

julgamos que é plausível atribuir a negação da akrasía a ele. Durante esta

dissertação, portanto, entendemos que seja apropriado designar o fenômeno

discutido pelo personagem de akrasía para nos mantermos fiéis à história do

problema filosófico que identifica no Protágoras a primeira discussão acerca

desse tema.

A refutação da descrição tradicional da akrasía apresentada no

Protágoras, efetivamente, resulta em uma grande controvérsia dentro da história

da filosofia. Diante disso, uma análise da discussão sobre o fenômeno, encontrada

nesse diálogo, é imprescindível para um entendimento do problema filosófico da

akrasía em sua gênese. Para isso, no entanto, precisamos examinar os argumentos

na forma dialógica em que eles foram concebidos por Platão, através de um

procedimento que seja adequado ao seu estilo filosófico. Dessa forma, teremos

que contextualizar, brevemente, o Protágoras dentro do corpus das obras

2 Segundo Irwin (2008 p. 33), existem três aspectos que podem ser associados ao Sócrates do

Protágoras: (1) a negação da concepção dominante de que o conhecimento pode ser ‘dominado’

ou ‘arrastado’ por outras forças como um ‘escravo’ (352b-c); (2) a akrasía descrita como simples

ignorância (357c-d); e (3) o paradoxo ‘ninguém age contra o que pensa ser melhor’ que implica a

negação da concepção tradicional da akrasía (358c-d).

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platônicas e, em seguida, sugerir um método específico para lidarmos com o

desafio interpretativo oferecido pelo próprio diálogo.

Em contraste com a teoria hedonista e a refutação da akrasía presentes no

Protágoras, encontramos, em diálogos mais conhecidos de Platão, como Górgias,

Fédon ou República, uma posição extremamente crítica ao prazer3 e o

reconhecimento da impotência do conhecimento em relação aos impulsos. De um

lado, a avaliação negativa do prazer vem, geralmente, acompanhada de uma

profunda análise psicológica do desejo: no Górgias, a turbulência dos apetites

corporais leva Sócrates a negar a identidade entre ‘bem’ e ‘prazer’ (497d), em

aparente oposição à teoria hedonista apresentada no Protágoras (351c)4; no

Fédon, os prazeres do corpo representam um entrave para a aquisição de

conhecimento (65a-67b), além disso, Sócrates rejeita explicitamente o cálculo de

prazer e dor para a ação virtuosa (69a), algo que ele parece sustentar em relação à

técnica da medida em Protágoras (357b). Por outro lado, conforme observa Kahn,

a preocupação de Sócrates em analisar a akrasía não é encontrada em nenhum

outro diálogo platônico (p. 253-257). De fato, na própria República, encontramos

uma formulação da submissão aos impulsos de certo Leôncio (439e-440b) que

corresponde a um caso clássico de akrasía. Em qualquer perspectiva, as teses

desenvolvidas no Protágoras estão em oposição às posições do filósofo nos

outros diálogos. No Protágoras, especialmente, encontramos uma grande

preocupação em estabelecer a suficiência do conhecimento para a virtude, o que

parece se refletir na discussão sobre o prazer e a akrasía durante o diálogo.

Ao contrário do Górgias, do Fédon e da República, o diálogo Protágoras

pertence, provavelmente, a uma fase anterior do pensamento platônico, caso

aceitemos a cronologia tradicional dos Diálogos5. Existem provas contundentes

para inserir o Protágoras dentro da fase socrática do pensamento de Platão.

3 Gosling e Taylor, no livro The Greeks on Pleasure, elaboram uma grande análise da influência

e também da rejeição de Platão às doutrinas de sua época. É fundamental a observação inicial de

seu livro (1982, p. 09): “Com a possível exceção de Demócrito, nenhum escritor grego antes de

Platão parece ter feito do prazer um tópico central de discussão”. (tradução nossa) 4 Para alguns comentadores, como Rudebusch (1999a), Gosling e Taylor (1982), o hedonismo

exposto no Protágoras não é negado no Górgias. No entanto, outros comentadores, como Irwin

(1995) e Zeyl (1980), acreditam que o Sócrates do Górgias refuta a tese hedonista apresentada no

Protágoras. 5 Devemos ressaltar que aceitamos a cronologia estabelecida por Cornford que insere o

Protágoras dentro do grupo dos primeiros diálogos denominados de ‘socráticos’: Apologia,

Críton, Cármides, Laques, Lísias, Eutifron, Hípias Menor e Maior, Protágoras, Alcibíades I,

Górgias, Eutidemo, Íon, Mênon, Fédon, Menexeno, Crátilo, República, Banquete, Fedro,

Parmênides, Teeteto, Sofista, Político, Timeu, Crítias, Filebo, Leis.

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Primeiramente, os primeiros diálogos de Platão discutem a natureza das diferentes

virtudes. O diálogo, aqui analisado, aborda a natureza da virtude e sua identidade

com o conhecimento. Desse modo, a obra parece desenvolver, um pouco mais

adiante, as discussões elaboradas nos primeiros Diálogos. Por outra perspectiva,

não há nenhuma menção à teoria das Formas ou algum sinal dos dualismos

corpo/alma ou sensível/inteligível que marcam as obras da fase madura do

pensamento de Platão (MUNIZ, 2011, p. 49). Como observamos, o Protágoras se

diferencia dos diálogos supracitados na medida em que não contém nenhuma

teoria a respeito da natureza da alma (GOSLING; TAYLOR, 1982, p. 61).

Devemos reconhecer, com Guthrie, que o diálogo pode ser classificado, de

maneira razoável, como “o último dos diálogos socráticos” (1975, p. 214). Essa

classificação é fundamental para identificarmos uma conexão entre as teorias

presentes no Protágoras e as teses apresentadas no grupo dos primeiros diálogos

de Platão. No entanto, precisaremos elaborar um método apropriado para

investigar os argumentos do Protágoras, tendo em conta o caráter dialógico do

texto platônico.

A análise investigativa dos argumentos enunciados pelos diferentes

personagens de Platão, em seus Diálogos, evidencia a necessidade de utilizar uma

estratégia hermenêutica apropriada para a leitura das obras do filósofo. É um

procedimento comum tomar Sócrates como porta-voz das teses de Platão e, na

maioria dos diálogos, ele realmente parece desempenhar este papel. No entanto,

isso é insuficiente para analisar a estrutura dialógica que fundamenta os

argumentos dos personagens platônicos nos Diálogos. Convém ressaltar, o leitor

deve ter em mente que Sócrates nem sempre desempenha um papel significativo

no diálogo e, por vezes, ele não enuncia diretamente nenhuma tese. Nos primeiros

diálogos, como no próprio Protágoras, Sócrates apresenta seus argumentos a

partir do exame das crenças de seus interlocutores sem sustentar, no entanto,

nenhuma posição aparente de suas próprias opiniões. De qualquer maneira,

Sócrates efetivamente desempenha um papel central na orientação da discussão e

na análise da consistência dos argumentos. Por outro lado, a estrutura

argumentativa do diálogo é fundamental para compreender a fundamentação das

teses apresentadas pelos personagens, e não podem ser desvinculadas da análise

das teorias identificadas nas obras de Platão. Nessa perspectiva, devemos ter

atenção ao encadeamento dos argumentos no diálogo desenvolvido entre os

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interlocutores, assim como as ferramentas dramáticas utilizadas pelo filósofo para

orientar diferentes reconstruções dos argumentos discutidos. Assim, é preciso

identificar as teses defendidas e as posições rejeitadas durante o diálogo entre os

personagens centrais para compreendermos o posicionamento que Platão

realmente quer que tenhamos em face às teses apresentadas. Esses procedimentos

são fundamentais ao tratarmos do Protágoras, uma vez que testemunhamos nessa

obra grande parte do estilo filosófico de Platão.

O diálogo entre os personagens presentes no Protágoras é marcado por

elementos dramáticos que, frequentemente, parecem estabelecer desvios da

discussão central. Durante o diálogo desenvolvido, em grande parte por Sócrates e

Protágoras, existem interrupções abruptas da argumentação, protestos e

performances do sofista6; e até mesmo um estranho episódio da longa análise dos

interlocutores acerca do poema de Simônides (339a-347a). Com efeito, a potência

dramática do diálogo Protágoras já foi ressaltada por alguns comentadores de

Platão (GUTHRIE, 1975, p. 215; KAHN, 1996, p. 210). Dessa forma, só

conseguiremos reconstruir a continuidade entre os diversos tópicos discutidos

pelos interlocutores do diálogo se ultrapassarmos a aparente descontinuidade dos

argumentos demarcada pelos elementos dramáticos com o auxílio das diretrizes

estipuladas anteriormente. Na medida em que levamos em conta que o diálogo

empreendido é, em grande parte, motivado pelas teses de Protágoras sobre o

ensino e a natureza da virtude, reconheceremos o fio condutor das diferentes

discussões presentes no diálogo. Além disso, devemos nos atentar, também, para

as diferenças de perspectiva de Sócrates e Protágoras em relação ao próprio

objetivo do diálogo. Essa estratégia de análise é fundamental especialmente na

discussão sobre o prazer e a akrasía na passagem 351b-358d.

A discussão sobre o prazer e a akrasía presente no Protágoras causa

polêmica, tanto pela forma abrupta em que ela é iniciada, quanto pela

incompatibilidade das teses apresentadas por Sócrates nessa passagem e nos

outros diálogos platônicos. De um lado, a passagem 351b-358d é marcada por

diversas interrupções e retomadas que perpassam a discussão. Durante o diálogo,

o tópico de discussão passa do prazer para a akrasía ao mesmo tempo em que

Protágoras é substituído pela opinião dominante personalizada por Sócrates. De

6 Cf. 331d-e, 333c, 334a-c, 334d-335a, 338e, 348b-c, 350c-351b.

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outro lado, a tese hedonista e a refutação da akrasía parecem estar em conflito

com as posições de Sócrates no Górgias, no Fédon e na República, como dito

anteriormente. Em virtude desses fatos, muitos intérpretes questionam se Sócrates

realmente se compromete com a tese hedonista ou com a refutação da akrasía

derivada dessa posição durante sua discussão com Protágoras e a opinião

dominante. A tradição interpretativa se divide em duas correntes: para a primeira,

Sócrates defende o hedonismo em própria pessoa; para a segunda, Sócrates não se

compromete com o hedonismo, mas apenas dirige o argumento contra as crenças

de seus interlocutores para sustentar a unidade entre conhecimento e virtude em

que ele realmente acredita7. Por conta do espaço dessa dissertação, não teremos

como nos alongar sobre essa controvérsia interpretativa. Para nossos propósitos, é

suficiente apenas salientar a posição de Julia Annas em seu apêndice ao livro

Platonic Ethics, Old and New. Conforme sugere a intérprete, a controvérsia acerca

da posição de Sócrates, em relação ao hedonismo no Protágoras, não pode ser

tratada de uma forma exclusiva, mas deve levar em conta o método de diálogo

através do qual se expressa o filósofo, defendido abertamente durante a discussão

com o sofista (1999, p. 170-171)8. Sendo assim, Sócrates defende,

prioritariamente, o diálogo durante a discussão, isto é, o exame dos argumentos

apresentados pelos interlocutores (Ibidem, p. 168). Durante grande parte do

diálogo, o filósofo mostra que sua preocupação central é analisar os argumentos

oferecidos por Protágoras acerca do ensino e da natureza da virtude e eliminar as

inconsistências de suas posições. Nesse sentido, apesar da discussão sobre o

7 Segundo a tradição interpretativa do diálogo, é controverso se Sócrates realmente defendeu o

hedonismo apresentado ou se ele o defendeu como um argumento ad hominem, isto é, apenas para

refutar as posições defendidas por Protágoras, os sofistas ou a opinião dominante. No primeiro

grupo, denominado de ‘hedonistas’, encontramos Gosling e Taylor (1982), George Rudebusch

(1999), Martha Nussbaum (1992), Terence Irwin (1995) e Fernando Muniz (2011). No segundo

grupo, denominado de ‘anti-hedonistas’, os intérpretes se dividem quanto ao comportamento de

Sócrates em relação a seus interlocutores, se ele é irônico ou simplesmente insincero. Como

defensores dessa corrente, podemos citar Gregory Vlastos (1969), W. K. C. Guthrie (1975),

Charles Kahn (1996), Donald Zeyl (1980), Roslyn Weiss (2006) e, recentemente, o próprio Taylor

(2008) que revisou seu ponto de vista e agora critica sua posição hedonista. Com efeito, a controvérsia é extensa entre os comentadores platônicos. Ambas as correntes

ofereceram problemas tanto para a proposta hedonista quanto para a proposta anti-hedonista.

Dentro da corrente anti-hedonista, alguns comentadores, como Kahn e Weiss, colocam em xeque

mesmo a refutação da akrasía sob a alegação de que a tese é utilizada apenas contra as crenças de

seus interlocutores e não tem validade em si mesma. Como isso parece desconsiderar a força da

refutação da akrasía no diálogo, rejeitamos fundamentalmente essa corrente interpretativa. Na

verdade, sustentamos, com Julia Annas (1999), que essas correntes interpretativas são limitadas

porque desconsideram o método explicitado por Sócrates no próprio diálogo. 8 Cf. 331c-d, 333c-d

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prazer e a akrasía não conter uma vinculação explícita com a discussão central

sobre o ensino e a natureza da virtude derivados das teses de Protágoras, ela

efetivamente preserva uma continuidade que está implícita. A tese do hedonismo

e a refutação da akrasía, portanto, não são sustentadas diretamente pelo filósofo,

mas emergem do exame dos argumentos construído com o sofista.

Sendo assim, precisamos analisar a discussão do prazer e da akrasía

levando em conta os temas discutidos durante o diálogo, se quisermos entender o

surgimento do problema da akrasía. Assim, elucidaremos as teses de Sócrates a

partir do contexto de sua enunciação. Por outro lado, teremos que encarar o

problema da akrasía em si mesmo da forma como ele é elaborado no diálogo.

Com isso, procuraremos entender as implicações da descrição tradicional da

akrasía e a formulação alternativa do fenômeno oferecida por Sócrates. Faremos,

portanto, uma integração desses elementos em nossa investigação, como veremos

no plano de desenvolvimento da dissertação a seguir.

No primeiro capítulo, analisamos especificamente a relevância do

surgimento do problema da akrasía no contexto do diálogo entre os personagens

do Protágoras. Como ressaltamos anteriormente, a discussão sobre o prazer e a

akrasía não parece ter uma relação direta com os outros tópicos abordados no

diálogo, o que demanda uma reconstrução do encadeamento dos argumentos

debatidos. Analisamos, portanto, qual é a relação entre as teses sustentadas por

Protágoras acerca da natureza e o ensino das virtudes com a questão do prazer e

da akrasía. Em nossa hipótese central, sustentamos que a inconsistência das teses

do sofista sobre a virtude acabam culminando na emergência do problema da

akrasía.

No segundo capítulo, abordamos, diretamente, a descrição tradicional da

akrasía a partir de sua enunciação no Protágoras. Nesse ínterim, a própria

formulação do fenômeno, na concepção da opinião dominante, implica em

inconsistências e leva Sócrates a oferecer uma refutação da descrição tradicional.

Através da refutação, o filósofo estabelece um paradoxo, contudo, que não apenas

parece refutar a descrição tradicional, mas também vem a negar a influência das

paixões humanas. Por essa e outras razões, uma corrente de comentadores de

Platão denominada ‘intelectualista’ sustenta o pressuposto ‘motivacional’ pelo

qual o personagem Sócrates dos primeiros diálogos rejeita a influência dos

desejos não racionais sobre a ação humana. No entanto, apresentaremos algumas

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evidências dentro e fora dos primeiros diálogos que parecem contestar isso. Em

um segundo estágio, a formulação tradicional da akrasía no Protágoras é uma

clara alusão de Platão às convicções da opinião dominante grega de sua época,

uma experiência que tem profundas raízes na cultura grega. Sendo assim,

verificamos se a descrição tradicional da akrasía apresentada no diálogo pode ser

associada aos supostos casos de akrasía representados pelas personagens de

Eurípides em suas tragédias. Com base nessas evidências, tentamos mostrar que o

desafio da refutação da akrasía por Sócrates deve levar em conta a influência dos

desejos não racionais.

No capítulo 3, analisamos o papel do argumento hedonista na redução ao

absurdo da descrição tradicional da akrasía. A discussão sobre o prazer e a

akrasía é motivada, inicialmente, por um exame das crenças de Protágoras e, logo

em seguida, é retomada na investigação das convicções da opinião dominante.

Delimitamos, portanto, a continuidade entre o primeiro e o segundo diálogo com

base na relação implícita entre as crenças do sofista e da opinião dominante. Em

seguida, analisamos especificamente os pressupostos e o desenvolvimento do

argumento hedonista na primeira e na segunda discussão, respectivamente. A

partir disso, evidenciamos o complexo argumento da redução ao absurdo através

dos pressupostos hedonistas. Nesse plano, fica claro que esse argumento abre

caminho para que Sócrates ofereça sua própria reformulação da akrasía com base

no hedonismo.

No capítulo 4, nos concentramos sobre a consistência da refutação da

akrasía e as divergências interpretativas dos comentadores. Existem dificuldades

interpretativas tanto a respeito da classificação do hedonismo de Sócrates como

em relação à descrição alternativa da akrasía como ignorância. A partir dessas

dificuldades, alguns comentadores chegam a questionar a refutação da descrição

tradicional da akrasía por Sócrates. Sendo assim, analisamos o conflito de

interpretações e determinamos a consistência da refutação da akrasía por

Sócrates. Em primeiro lugar, abordamos o livro The Greeks on Pleasure de

Gosling e Taylor e a obra Plato’s Ethics de Terence Irwin. Em seguida,

analisamos também a interpretação de George Rudebusch apresentada em Ethical

Protagoreanism e a proposta de Martha Nussbaum oferecida em A fragilidade da

bondade. Por último, refletimos acerca da interpretação de Daniel Devereux

presente no artigo Socrates’ Kantian Conception of Virtue e também a de Thomas

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Brickhouse e Nicholas D. Smith do livro Socratic Moral Psychology. Com base

no confronto entre essas interpretações, oferecemos uma proposta interpretativa

que seja coerente com os argumentos oferecidos por Sócrates.

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2 O surgimento do problema da akrasía no Protágoras- A possibilidade do ensino da virtude

2.1 O problema da akrasía no contexto do diálogo

A apresentação do problema da akrasía no Protágoras emerge

indiretamente da discussão entre Sócrates e o sofista sobre o ensino da virtude

(areté)9. No entanto, essa hipótese só pode ser verificada a partir da própria

reconstrução dos argumentos apresentados durante todo o diálogo. É preciso

ultrapassar as interrupções abruptas do diálogo para encontrar um ponto comum

que integra o problema da akrasía tanto às discussões antecedentes quanto às

subsequentes. Para tanto, acreditamos que todos os diálogos empreendidos pelos

personagens no Protágoras estão comprometidos com a análise da possibilidade

do ensino da virtude. O problema da akrasía está fundamentalmente integrado à

forma como se estabelece a argumentação. Essa hipótese de leitura, no entanto,

exige uma explicação.

A introdução do problema da akrasía, por Sócrates, aparece de maneira

abrupta, na passagem 352b-353a, precedida por uma elucidação da posição de

Protágoras sobre o valor do prazer na vida humana. Com efeito, tanto a

investigação sobre a akrasía quanto a análise do prazer estão interligadas durante

toda a passagem 351b-358d. Ambas são motivadas pela afirmação do sofista a

respeito da virtude da ‘coragem’ (andreía): “a coragem (andreía) provém da

natureza (apò phýseos) e boa nutrição das almas (eutrophías tôn psychôn)” (351b)

10. Com essa tese, ele assume que o conhecimento não é necessário para a posse

da coragem e que essa virtude é constituída por elementos extracognitivos. Na

medida em que o sofista sustenta ser possível ensinar a virtude, alegando inclusive

poder transmiti-la a seus alunos (318e), é notável que sua concepção de coragem

9 No contexto do diálogo, especificamente, os interlocutores utilizam esta palavra para se referir

às qualidades morais que tornam a vida de um homem admirável (TAYLOR, 1991, p. 74-75). 10 Durante a dissertação, seguimos prioritariamente a tradução de Carlos Alberto Nunes. Em todo

caso, tivemos que recorrer frequentemente à comparação com outras traduções inglesas e até

mesmo as francesas para preservar uma coerência ao texto original grego e eliminar algumas

obscuridades da tradução em português.

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atinja, justamente, a própria possibilidade do ensino das virtudes. Se a coragem

depender de fatores não cognitivos, não há nenhuma garantia de que a virtude seja

efetivamente transmitida através do conhecimento. De fato, o sofista assume essa

posição contra o argumento da unidade entre coragem e sabedoria apresentado por

Sócrates (350c). Mas por que o sofista insiste, por tanto tempo, em defender uma

concepção de andréia que, inevitavelmente, atinge sua crença na possibilidade do

ensino da virtude? Em última instância, sua posição sobre a natureza da coragem é

derivada de sua justificação da possibilidade do ensino das virtudes apresentada

em seu mito (320d-328d). Conforme sustenta Zeyl (1980, p. 267), a crença na

transmissão da virtude, através de elementos não cognitivos, tem seus

fundamentos na posição da opinião dominante (hoi polloi)11. A despeito de seu

desprezo pelas opiniões da maioria, o sofista está comprometido com ela

justamente por defender o ensino da virtude sob bases tradicionais. Por essa razão,

Sócrates transforma a opinião dominante em uma personagem a fim de revelar a

Protágoras as implicações de suas próprias posições através do problema da

akrasía.

Com o exame da opinião dominante, Sócrates consegue, enfim, convencer

Protágoras de que é preciso defender a relação entre conhecimento e virtude

contra a crença comum na submissão do conhecimento aos impulsos ou à

natureza. Assim, ele obriga o sofista a manter distância das crenças tradicionais no

que diz respeito à natureza não cognitiva das virtudes. A partir dessas referências,

podemos identificar dois resultados opostos da discussão dos interlocutores: (a)

Protágoras se compromete a defender a pluralidade das virtudes, sem perceber que

tal posição atinge a crença na possibilidade do ensino da virtude; e (b) Sócrates

busca fundamentar, de forma mais consistente, o ensino da virtude através da

hipótese de que o conhecimento e as virtudes se referem à mesma coisa. Para o

filósofo, este é o balanço de todo o diálogo realizado entre eles (361a-c). Com

efeito, o final do diálogo revela uma inversão de papéis que pode ser verificada

durante a própria discussão. Enquanto Sócrates passa a reconhecer a capacidade

de transmissão das virtudes por conta da discussão, Protágoras, por outro lado,

assume teses que não preservam sua própria alegação de que é possível ensinar a

virtude. Por que razão Sócrates, antes descrente no ensino efetivo da virtude,

11 Este ponto também é ressaltado por Roslyn Weiss (2006, p. 50) e por Martha Nussbaum (2009,

p. 93; p. 394).

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parece ser o único a defender uma tese que deveria ser, nesse ínterim, defendida

por seu interlocutor? De fato, o sofista, algumas vezes, interrompe, ou se indispõe

com, os argumentos apresentados por Sócrates, obrigando o filósofo a realizar

manobras estratégicas para preservar a discussão objetiva de cada tópico por meio

do diálogo. Em duas passagens (333c; 339c), o sofista revela que sua resistência

aos argumentos a respeito da unidade entre as virtudes é marcada pela defesa de

ideias tradicionais da maioria (ZEYL, 1980, p. 266, n. 15). Como ressalta Roslyn

Weiss, o sofista apresenta uma justificação do ensino da virtude que contempla

apenas virtudes cívicas comuns como temperança (sophrosýne), a justiça

(dikaiosýne) e mesmo a piedade (hósion), deixando de lado, deliberadamente, a

‘coragem’ e a ‘sabedoria’ (sophía) do conjunto das virtudes (2006, pp. 37-38)12.

Apenas através do diálogo com Sócrates ele vai indicar que essas virtudes são

qualitativamente diferentes das outras: ‘muitos são corajosos, mas injustos e

muitos são justos, mas não sábios’ (329e). Os argumentos apresentados por

Sócrates levam o sofista a conceder que as virtudes se implicam mutuamente e

não podem ser concebidas em separado.

Como vimos anteriormente, Protágoras vai evidenciar com mais

veemência que sua resistência a aceitar os argumentos de Sócrates se funda na

concepção de que as virtudes dependem de fatores extracognitivos. Ao tratar a

coragem como uma virtude dependente da natureza apropriada, o sofista expressa

uma posição bem diferente de sua defesa do ensino universal das virtudes cívicas

associadas à opinião dominante (WEISS, 2006, p. 47). De fato, Protágoras havia

alegado que o sucesso da transmissão das virtudes exige uma boa disposição

12 Apesar de concordamos com esse aspecto da interpretação de Weiss (2006), nós não apoiamos

seu retrato das posições de Sócrates e Protágoras em relação aos argumentos apresentados.

Segundo a intérprete, Protágoras esconde por meio de seus artifícios retóricos sua incapacidade de

ensinar a virtude e Sócrates, por outro lado, reconhecendo de antemão o caráter falho do ensino

sofístico das virtudes, busca provar a inconsistência das teses de seu interlocutor. Embora

possamos evidenciar alguns problemas que podem ser derivados de uma análise da personalidade

de Protágoras, talvez seja um exagero chegar ao ponto de considerar sua fundamentação do ensino

da virtude como totalmente incoerente. A representação dos personagens por Weiss (2006, p. 24-

26) se baseia na crença de que o objetivo de Sócrates nos diálogos de Platão é refutar as posições

inconsistentes dos sofistas e outros interlocutores proeminentes. Em sua interpretação, Sócrates se

transforma em um interlocutor cujo único propósito é fazer com que seus interlocutores aceitem

suas próprias teses. Como indicaram Wolfsdorf (2006) e Waterfield (2007), em suas respectivas

resenhas ao livro, Sócrates dificilmente se distinguiria dos sofistas se, em vez de realizar um

exame das teses dos seus interlocutores, acabasse por convencê-los por meio de argumentos

erísticos. Mais adiante, buscaremos demonstrar que Sócrates, efetivamente, defende outro tipo de

posição durante o diálogo, mais próximo de um investigador de argumentos do que alguém

tentando vencer na discussão. De outro lado, acreditamos que a fundamentação do ensino das

virtudes apresentada por Protágoras é realmente levada a sério no diálogo.

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natural (euphyéstatos – 326b). Em última instância, a incompatibilidade das teses

do sofista está marcada por seu comprometimento velado com a opinião

dominante: o ensino das virtudes não pode ser assegurado caso dependa da

disposição natural do aluno. Através da apresentação do problema da akrasía,

Sócrates tentou mostrar a Protágoras que sua vinculação implícita às ideias

derivadas da opinião dominante grega inviabilizam a própria possibilidade do

ensino das virtudes.

Para analisar as contradições entre as teses de Protágoras, motivadas por

seu comprometimento com a opinião dominante, precisamos analisar

primeiramente a discussão sobre o hedonismo e akrasía no diálogo. Como

veremos, os problemas da natureza e da possibilidade do ensino das virtudes são

os tópicos que norteiam a discussão do prazer e do fenômeno da akrasía entre

Sócrates e Protágoras.

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2.2 A refutação da descrição tradicional da akrasía e a unidade entre virtude e conhecimento

A discussão sobre a akrasía e a apresentação de um tipo de hedonismo que

se encontram na passagem 351b-358d aparecem de maneira abrupta no diálogo

realizado entre Sócrates e Protágoras. Como podemos ver, essa discussão emerge

da insistência do sofista em se manter firme na sua concepção não cognitiva das

virtudes e, assim, inviabilizar sua própria tese do ensino das virtudes. Nessa

perspectiva, a discussão sobre o hedonismo (351b-e; 353c-354e) e a análise do

fenômeno da akrasía (352a-353c; 354e-357e) estão conectadas ao propósito de

explicitar a posição do sofista acerca do ‘conhecimento’ (epistémen - 352b). A

partir disso, Sócrates recorre a uma arguição da opinião dominante grega sob a

qual as opiniões do sofista inevitavelmente se fundamentam. Com as implicações

do questionamento da opinião dominante, Protágoras será levado a reconhecer

que sua posição é inconsistente e que a coragem, assim como as outras virtudes,

tem de consistir em sabedoria.

Após a objeção de Protágoras aos argumentos anteriores, Sócrates busca

elucidar em que medida as contradições do discurso de seu interlocutor estão

associadas ao comprometimento do sofista com a opinião dominante grega (hoi

polloí). Para defender a tese do ensino das virtudes contra a postulação de

elementos não cognitivos nas virtudes, Sócrates vai apresentar a crença da opinião

dominante de sua época no fenômeno reconhecido como ‘akrasía’. A existência

desse fenômeno, como ele é explicado pela maioria, constitui uma grande objeção

à tese da unidade entre a sabedoria e as outras virtudes. Poderíamos dizer que a

tese da unidade das virtudes implica, em alguma medida, a ideia de que as

virtudes são apenas nomes para uma mesma coisa, no caso, conhecimento13. Com

13 De acordo com Irwin (1995, p. 79-80), essa concepção das virtudes, esboçada na passagem

329d-e, corresponde à tese da Unidade das Virtudes, isto é, a postulação de que todas as virtudes

correspondem a uma única coisa. É necessário ressaltar, no entanto, que o intérprete atribui essa

tese a Sócrates, mas consegue apenas indicar uma referência que o personagem utiliza para ilustrar

não a posição do próprio filósofo mas a posição de Protágoras. De acordo com Kahn (1996, p.

221), por outro lado, não há qualquer referência explícita da defesa de tal tese por Sócrates no

Protágoras: “A unidade da virtude nunca é expressamente defendida por Sócrates no Protágoras;

ele apenas argumenta contra as asserções de pluralidade e diversidade sustentadas por Protágoras.”

(itálicos do autor, tradução nossa). Todavia, acreditamos que a tese da Unidade das virtudes está

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efeito, a explicação dominante sobre o fenômeno indica que o conhecimento pode

ser submetido pela força dos impulsos. De fato, no fenômeno da akrasía, um

homem é obrigado a agir de modo contrário ao que pensa ser melhor, porque é

submetido pelos seus impulsos (352b-e). Caso Sócrates consiga provar que o

conhecimento deliberativo orienta toda a ação humana, ele pode refutar a

formulação tradicional do fenômeno como também pode mostrar a Protágoras que

o ensino da virtude é incompatível com a crença em elementos não cognitivos nas

virtudes. Através da refutação da akrasía, portanto, Sócrates poderá fazer com que

seu interlocutor seja forçado a reconhecer que sua concepção de virtude não

viabiliza o ensino das virtudes. Para que a virtude possa ser ensinada, portanto, é

necessário que ela seja inteiramente conhecimento. De fato, Protágoras se

comprometerá com essa estratégia ao reconhecer o poder do conhecimento

humano do qual sua alegação de ensinar virtude depende fundamentalmente: “o

conhecimento (epistémen) e a sabedoria (sophían) são o que há de mais poderoso

(krátiston) entre todas as coisas humanas (pantón tôn antropeíon pragmáton)”

(352d). Como indica Zeyl (1980, p. 267), a tese sustentada aqui pelo sofista não é

consistente com sua concepção não cognitiva da virtude. Ao concordar que o

conhecimento é nobre (kalón) e capaz de governar (árchein) as ações humanas

(352c), Protágoras apresenta uma posição contrária a sua alegação anterior de que

a coragem não depende de conhecimento. Os interlocutores concordam, portanto,

com a necessidade de que o conhecimento seja suficiente para garantir a ação

virtuosa e não seja dominado por nenhuma força externa. A partir da confiança no

poder do conhecimento, o sofista se unirá a Sócrates na tarefa de questionar a

crença na akrasía como é aceita pela opinião dominante. Através da utilização de

pronomes e verbos na 2ª pessoa do plural, a opinião dominante será personificada

por Sócrates para que se inicie uma discussão sobre os pressupostos assumidos

por ela para sustentar a existência de tal fenômeno. Enquanto isso, os sofistas,

inclusive Protágoras, serão obrigados a ficar em segundo plano, observando o

exame de Sócrates à opinião dominante personificada. Todavia, Sócrates e

Protágoras estarão comprometidos, implicitamente, com a negação da crença na

natureza não cognitiva das virtudes. Por meio do questionamento da opinião

dominante, portanto, os interlocutores estarão inclinados a demonstrar a

implicada na conclusão da discussão entre os interlocutores, ainda que o diálogo termine em aporia

(361a-e).

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incoerência da akrasía e, dessa forma, mostrar qual a verdadeira relação entre a

coragem e as outras virtudes. Com efeito, Sócrates deixa explícito que esse é o

objetivo central dessa investigação: “creio, respondi que isso pode ajudar-nos a

descobrir (exeureîn) a relação existente entre a coragem (andréia) e as outras

partes da virtude (tâlla mória ta tês aretês)” (353b). A emergência da discussão

sobre a akrasía está sustentada pela posição do sofista acerca da natureza da

coragem. Dessa forma, a posição explicitada por ele deixa ainda mais em

evidência sua concepção não cognitiva da virtude. De fato, essa tese o associa às

ideias enraizadas na opinião dominante grega. Para compreender melhor o grau de

comprometimento das posições de seu interlocutor com a opinião comum,

Sócrates elaborará uma estratégia argumentativa.

Em sua estratégia, Sócrates inicia uma investigação sobre a posição do

sofista acerca do prazer. Tudo indica, entretanto, que o filósofo deseja esclarecer

uma posição que Protágoras havia esboçado anteriormente sobre a relatividade do

‘bem’ (334c). Nessa discussão, o personagem havia sustentado que nem todas as

‘coisas boas’ (agathà) são ‘vantajosas para o homem’ (toîs anthropoîs ophélima –

334a). De outro lado, na discussão sobre o prazer, Sócrates leva o sofista a admitir

a identidade entre as ‘coisas boas’ e as ‘coisas prazerosas’ (hedéa – 351c). Na

realidade, como fica mais claro posteriormente no diálogo, essa posição implicará

o reconhecimento de que as ‘coisas boas’, assim como as ‘coisas prazerosas’, são

‘coisas vantajosas’ (ophélimoi – 358b). Nesse sentido, a tese sustentada aqui pelos

interlocutores é contrária àquela sustentada por Protágoras anteriormente. Através

desse argumento, Sócrates consegue mostrar ao sofista que a ‘coragem’ é

‘sabedoria’ (sophía – 360d), o que implicará, posteriormente, a tese de que virtude

é conhecimento. Se Sócrates conseguisse a admissão direta de Protágoras a essa

tese, ele concederia ao próprio sofista a possibilidade de demonstrar que a virtude

pode ser ensinada, como é reconhecido no final do diálogo (361a-b). No entanto,

não é isso que ocorre. Em vez disso, o sofista sustenta que ‘algumas coisas boas

são dolorosas’ (aniarà agathà) e ‘algumas coisas ruins são prazerosas’ (hedéa

kaká), assumindo, sem o saber, crenças relacionadas à opinião dominante grega

(351c). De fato, sua posição é contraposta à unidade entre ‘bem’ e ‘prazer’

apresentada por Sócrates. Como a tese hedonista será utilizada para demonstrar a

unidade entre ‘bem’ e ‘vantajoso’ na sequência, podemos observar que a crença

do sofista na relatividade do ‘bem’ em 334a está, efetivamente, relacionada com

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sua resistência em reconhecer a consistência do hedonismo. No tocante a isso, o

sofista estabelece uma restrição em relação às coisas boas: “se as coisas não forem

nobres (tois kaloîs) 14 elas não podem ser consideradas boas”. Por mais que

Protágoras conceda que concorda com uma das crenças da opinião dominante,

será que ele poderia aceitar também a crença da maioria sobre o fenômeno da

akrasía? Como podemos ver, o sofista rejeita a submissão do conhecimento aos

impulsos humanos. Ele não pode aceitar, dessa forma, que o conhecimento possa

ser submetido por prazeres que a opinião comum considera maus (353a). O

sofista, então, se vê numa encruzilhada: conceder que possam existir coisas

prazerosas que sejam ruins ou investigar a unidade entre ‘bem’ e ‘prazer’ e, assim,

defender o conhecimento com Sócrates? Ainda que sua oposição às ideias e aos

valores da opinião dominante possa ser verificada em algumas de suas posições ao

longo do diálogo (ZEYL, 1980, p. 266)15, é apenas nesse momento que sua

discordância com a maioria fica em maior evidência. Assim, os interlocutores se

unirão para refutar a descrição comum do fenômeno da akrasía a partir da

investigação da crença da opinião dominante em prazeres maus e em dores boas

(353b). Nessa investigação, Sócrates mostrará que é necessário aceitar a hipótese

esboçada por ele em forma de pergunta: “o prazer em si mesmo não é bom?”

(hedonèn autèn agathón estin - 351e).

Para traçar um retrato coerente da deliberação dos homens, os

interlocutores admitem que os prazeres só podem ser bons e as dores, por outro

lado, só podem ser maus (354b-d). A partir dessas conclusões, a explicação usual

da akrasía revela ser absurda pois, se prazer e bem são a mesma coisa, teria de ser

admitido que o agente em akrasía é submetido pelo próprio bem (354e-356a).

Com a refutação da explicação tradicional, os interlocutores têm de encontrar uma

explicação alternativa para o fenômeno. Na conclusão, os interlocutores admitem

que a akrasía não pode ser nada mais que ‘ignorância’ (amathía – 357d-e). Desse

modo, a explicação alternativa pode fundamentar o poder superior do

conhecimento sobre a deliberação humana e impedir que a sabedoria seja

submetida pelos impulsos. Todos os outros sofistas são convidados a concordar

com essas conclusões derivadas da investigação da opinião dominante (358a). A

14 Essa palavra tem conotações morais e estéticas ao mesmo tempo e caracteriza ações

consideradas louváveis e honradas pelos gregos. Deve ser contrastada com aischron que significa

vergonhoso, indigno, desonroso (TAYLOR, 1991, p.165). 15 Cf. 317a, 352e, 353a

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partir disso, Sócrates sustenta uma tese paradoxal: ninguém pode deliberadamente

(hekón) escolher coisas más ao invés das boas (358d). Com efeito, esse argumento

é utilizado posteriormente para demonstrar a unidade entre coragem e sabedoria

(360d). A refutação da akrasía, portanto, constitui uma parte fundamental do

argumento da unidade entre virtude e conhecimento.

A controvérsia em torno da descrição tradicional da akrasía, portanto, é

derivada do problema do ensino das virtudes e, também, da unidade entre virtude

e conhecimento. Assim, acreditamos que a discussão sobre a akrasía emerge em

um ponto crucial do diálogo: no momento em que Protágoras é obrigado a encarar

a incongruência de suas teses refletidas na opinião dominante grega. De fato, pode

ser observada, através da análise das discussões empreendidas pelos interlocutores

do Protágoras, a problemática vinculação entre o sofista e as concepções

correntes da opinião dominante acerca do ensino da virtude e da natureza da

virtude. Com o propósito de compreender a emergência desses problemas,

analisaremos os argumentos apresentados por Sócrates, Hipócrates e Protágoras

para caracterizar a matéria de ensino do sofista.

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2.3 A necessidade do ensino da virtude para Protágoras A controvérsia que ronda a possibilidade do ensino da virtude surge de um

estado inicial de ignorância a respeito do ofício e do ensino do sofista, conforme

nos relata Sócrates em uma conversa com um amigo. Nesse ínterim, a visita de

Sócrates a Protágoras é motivada pelo convite do jovem Hipócrates que, assim

como outros jovens de sua época, está ansioso para ganhar a suposta sabedoria do

sofista (310d-e). Antes de prosseguirem diretamente à casa de Cálias, onde o

sofista está hospedado, Sócrates suspeita que o jovem impulsivo não está seguro:

nem a respeito da sabedoria que ele espera aprender; nem mesmo do que pensa

em se tornar através do sofista (311b). Por conta da fraca justificativa de suas

motivações, Sócrates convence o rapaz a ter calma e aproveita a oportunidade

para lhe examinar (diéskopoun), isto é, avaliar quais são as razões que

fundamentam sua atitude. As primeiras questões acerca da matéria do ensino

sofístico não são adequadamente respondidas por Hipócrates. De outro lado, os

problemas derivados por Sócrates a partir das repostas insatisfatórias do rapaz

continuam a se refletir nas primeiras observações do sofista a respeito de sua

técnica.

Embora Hipócrates alegue que o sofista é um hábil orador (310a), isso não

é suficiente para determinar o que é a sua matéria de ensino. Como mostra

Sócrates, o ensino buscado pelo jovem no sofista não é do mesmo tipo que o do

médico ou do pintor cujo propósito é ensinar o aluno a reproduzir o conhecimento

específico de sua área de saber16. (311b-e). Com efeito, é necessário determinar

sob que matéria seu aluno deve se tornar um bom orador (312e). Provavelmente

devemos apenas preencher as lacunas da primeira classificação da matéria de

16 O personagem quer chamar atenção para o fato de que é necessário justificar à sofística o

ensino de ´techné´, isto é, uma ´técnica´ da maneira como os gregos a compreendiam. Nessa

designação, Sócrates está exigindo, de forma implícita, uma definição do ensino sofístico que

contemple um conjunto de características fundamentais dos procedimentos e objetivos de uma

técnica. Essas características são especificadas claramente por Nussbaum (2009, p. 84): 1)

universalidade, pois este conhecimento deve oferecer um corpo teórico diante do qual se deriva o

elemento universal dos casos particulares; 2) possibilidade de ensino, na medida em que o

especialista nesse saber deve ser capaz de transmiti-lo para seus pupilos; 3) precisão, uma vez que

o procedimento adequado, em qualquer ocasião, deve garantir o mesmo resultado esperado pelo

especialista; 4) preocupação com a explicação, pois o técnico tem de oferecer mostrar as razões de

cada uma de suas operações.

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ensino do sofista. Segundo Sócrates, talvez o rapaz não queira obter do sofista um

conhecimento em função da técnica (epì téchne), para adquirir qualidades

discursivas, mas em função da educação (epì paidéia), para a formação social,

como o professor de língua grega (312b). Nessa hipótese, Sócrates considera que

o ensino do sofista não se dirige a formar outros sofistas, que seriam reconhecidos

através de sua habilidade discursiva, mas apenas a desenvolver a formação

educacional do jovem sem capacitá-lo a nenhuma técnica específica.

A sofística acaba se inserindo no grupo das áreas de sabedoria que visam à

formação educacional de um jovem para se tornar um cidadão ateniense. Mais

adiante, Protágoras admite que seu objetivo como sofista é ‘educar os homens’

(paideúein anthrópous) e ele associa seu ofício ao dos antigos poetas e sábios,

base da formação educacional ateniense (317b). A relação entre o ofício do sofista

e as técnicas ancestrais da Grécia marca a ambiguidade que a palavra ‘téchne’

apresenta nesse contexto (KAHN, 1996, p. 213)17. Com efeito, os interlocutores

reconhecem que existem classes de técnicas com finalidades fundamentalmente

diferentes: enquanto umas se preocupam com a formação profissional, outras

promovem a formação educacional. De outra perspectiva, podemos perceber que a

tradição com a qual o especialista em sabedoria (o sophistes em grego) está

associado tem um sentido originalmente amplo e positivo (KERFERD, 2003, p.

45-46). Por ser reconhecida dentro desse conjunto ancestral de sabedoria, dirigida

para a educação dos jovens, a técnica de Protágoras preserva uma relação direta

com a tradição educacional. Contudo, ele também insiste na especificidade de sua

técnica que, por precaução, alega possuir (316e-317a). No intuito de preservar a

reputação da técnica, o sofista não ofereceu nenhum parâmetro claro para

distinguir sua especialidade de outros tipos de ensinamento orientados para

formação educacional. Em que ele pretende educar seus alunos? É necessário

prosseguir na investigação a fim de que Protágoras possa explicar melhor em que

conhecimento se baseia sua técnica.

17 É importante notar aqui que tanto Sócrates quanto Protágoras admitem que o ensino sofístico

deve ser comparado ao ensino da música, poesia e ginástica. Como já indicara Nussbaum, essa

espécie de técnicas apresenta um modo de operação bem diferente das técnicas especificadas

anteriormente por Sócrates. Nesse sentido, Nussbaum (2009, p. 86) recorre à análise das técnicas

oferecida por Aristóteles: “Aristóteles argumenta que há algumas artes em que a obra ou érgon é

um produto externo às atividades dos artistas – por exemplo, a construção de casas; e outras em

que as atividades são elas mesmas fins, por exemplo, a matemática, a execução da flauta, da lira.

As divisões helenísticas das tékhnai corroboram a mesma ideia.” (itálicos da autora)

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Para delimitar corretamente seu tipo de ensino, o sofista oferece uma

explicação mais precisa de sua especialidade. Protágoras supõe que tal ensino

pode promover a virtude no âmbito público e privado em sua definição:

“essa disciplina é a boa deliberação (eubolía) acerca dos assuntos particulares

(perì tôn tên oikeíon), para que possa administrar do melhor modo sua própria

casa (tên autoû oikían) e, nos assuntos da cidade (perì tôn tês póleos), para que

seja o mais capacitado nos assuntos da cidade (tà tês póleos dynatótatos) tanto

por ações quanto por palavras (kaì práttein kaì légein).” (318e-319a)

A técnica sofística visa promover a boa deliberação, seja em questões

relativas à esfera privada, seja na pública. Ao contrário das técnicas, que

proporcionam apenas a eficácia do exercício de certos procedimentos, a sofística

teria o poder de trazer excelência (areté) à própria vida humana. Pelo vocabulário

utilizado, Sócrates supõe que o sofista esteja alegando ‘tornar homens bons

cidadãos’ (poieîn ándras agathoùs polítas) através da ‘técnica política’ (tèn

politikèn téchnen – 319b)18. O consentimento de Protágoras pode ser

compreendido a partir do papel político ativo que os cidadãos atenienses deveriam

ter dentro das deliberações públicas da cidade (TAYLOR, 1991, p. 72-73). Nesse

contexto, um bom cidadão ateniense tinha que apresentar uma série de virtudes

morais necessárias para a discussão dos assuntos públicos, isto é, relativos à

cidade. A existência de uma técnica que pudesse transmitir a virtude através do

ensino, no entanto, é questionável para Sócrates. Com efeito, as próprias práticas

atenienses levam a crer que tal técnica não pode existir. Assumindo que os

atenienses devem ser levados em conta por serem sábios (319b), o filósofo

elabora duas objeções com base nos fatos reconhecidos:

1) As questões políticas e técnicas são tratadas de modo diferente. Nos

assuntos técnicos, os quais necessitam de conhecimento de um mestre, os

atenienses exigem a intervenção de especialistas na área e expulsam os

leigos. De outro lado, a deliberação (bouleúsesthai) dos assuntos públicos

18 Como assinala Taylor (1991, p. 71-72), todo cidadão livre ateniense tinha o dever cívico de

participar ativamente das deliberações públicas da cidade. Nesse sentido, a concepção moderna de

‘política’, ao substituir a participação direta dos cidadãos na vida pública pela representação

indireta por meio de representantes, estabelece uma distância inequívoca do que está sendo

denominado aqui de politikèn techné. Para os gregos, a especialidade da polítiké está diretamente

ligada aos cidadãos, denominado de polítas, além de exigir qualidades intelectuais e morais para a

administração da cidade. Apesar da diferença entre o significado grego e moderno da palavra,

decidimos manter a tradução por ‘técnica política’.

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admite que os cidadãos possam apresentar sua opinião sem que seja

exigido nenhum conhecimento específico de sua parte ou que seja

indicado seu professor (didaskálou). Dessa forma, eles “não consideram

que [essa técnica] possa ser ensinada” (oûk didákton eînai). (319b-d)

2) No que concerne à esfera privada (idía), “os mais sábios e melhores

cidadãos (hoí sophótatoi kaì áristoi)” não conseguiram transmitir a virtude

para seus próprios filhos, nem por eles mesmos, nem por meio de outros.

Dessa forma, os pais os abandonam à própria sorte: “deixando-os soltos,

como animais sagrados, pastando livremente para ver se, por acaso

(autómatoi), venham a se deparar com a virtude” (peritúxosi tê aretê –

320a)19.

A técnica deliberativa defendida por Protágoras não parece se adequar aos

costumes da própria sociedade ateniense. Além disso, as objeções de Sócrates

levam a crer que a deliberação só poderia ser uma técnica se ela fosse ensinada

através de um conhecimento especializado (TAYLOR, 1991, p. 74). As crenças

tradicionais da sociedade ateniense indicam que a virtude não pode ser ensinada e

apenas pode ser produto do acaso. A partir desses fatos, Protágoras precisará

justificar de que maneira a virtude é ensinada para, então, fundamentar sua técnica

deliberativa.

Com a intenção de dar uma resposta à altura das objeções propostas,

Protágoras vai recorrer ao que muitos intérpretes designaram como Grande

Discurso. Esta classificação se deve ao fato de que a linguagem e os artifícios

retóricos de Protágoras estão em pleno funcionamento nessa ocasião. O Grande

Discurso é dividido entre mito (mýthos) e argumento (lógos – 320c). Ainda que

Protágoras não apresente uma delimitação clara de como podemos compreender

essa divisão20, o texto nos permite inferir que o mito segue de 320d a 322d e o

argumento toma toda a passagem 322d-328c. Por meio do mito, Protágoras tenta

oferecer uma representação da origem dos valores sociais do homem pela

intervenção divina. Dessa forma, o sofista pretende oferecer uma explicação

coerente das práticas de deliberação ateniense (323a). Na sequência, a justificativa

19 Como ressalta Kerferd (2003, p. 48), uma das principais objeções à educação proposta pelos

sofistas era que qualquer tipo de pessoa consegue aprender o que os sofistas tem para ensinar. 20 O sofista diz que está iniciando seu argumento (lógos) em 324d, mas sua delimitação não é

coerente com o que ele efetivamente faz no diálogo. Na realidade, o lógos inicia antes. Para

Nussbaum (2009, p. 393), Protágoras não está sendo cuidadoso com suas palavras ou a forma de

exposição de seu discurso.

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para o ensino da virtude será demonstrada por meio da explicação da prática

comum de punição (323c-324d). A partir de sua justificativa do ensino da virtude,

Protágoras se detém a uma longa exposição do processo de formação educacional

ateniense no intuito de oferecer uma resposta à segunda objeção de Sócrates

(324d-326e). Por fim, o sofista conclui que a incapacidade da transmissão da

virtude de um pai para seu filho se deve a elementos da natureza humana (326e-

328c). A reação de Sócrates ilustra o efeito que Protágoras queria exercer sobre

seus ouvintes com seu discurso.

A extensão e a forma do discurso, no entanto, acabam escondendo

algumas dificuldades sobre o sentido preciso de suas palavras e até mesmo

problemas em seus argumentos. Contudo, não acreditamos que seja plausível

exagerar os aspectos retóricos do texto para simplesmente afirmar que Protágoras

não apresenta nada que possa ser reconhecido como técnica. Seguindo os passos

de Nussbaum (2009), estamos inclinados a reconhecer que o sofista justifica de

forma persuasiva o ensino das virtudes. Assim, o discurso ressalta, com fortes

fundamentos, a necessidade do ensino das virtudes para a preservação da

sociedade humana. De outro lado, a tradição interpretativa do diálogo tem razão

em apontar falhas nos argumentos de Protágoras, principalmente na sua resposta à

segunda objeção de Sócrates. Não podemos assegurar a transmissão da virtude, se

o conhecimento depender de fatores externos ao conhecimento humano. Dessa

forma, vamos nos voltar para a análise do Grande Discurso para compreender

mais detalhadamente as teses apresentadas.

No programa do discurso, o sofista deverá mostrar como as práticas

políticas atenienses, de fato, confirmam que as virtudes podem ser ensinadas, ao

contrário do que Sócrates supõe inicialmente. A partir do mito, será possível

explicar a origem da prática de deliberação ateniense, de forma que não a torne

incompatível com a crença de que a virtude se transmite através do ensino. A

narrativa conta a história dos titãs Prometeu e Epimeteu, encarregados pelos

deuses de conceder as ‘capacidades’ (dýnameis) às diferentes espécies de criaturas

mortais (320c-d)21. A divisão inicial foi incumbida a Epimeteu que adotou uma

divisão equânime às respectivas espécies, distribuindo os recursos necessários

21 É necessário ressaltar que essas ‘capacidades’ não são ainda as técnicas humanas, mas guardam

com elas alguma similaridade. Como ressalta Nussbaum (2009, p. 393), ambas são recursos

designados a cada um dos seres para que preservem a vida de sua própria espécie.

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para que nenhuma delas se extinguisse (321a). Embora Epimeteu tenha tomado

suas precauções, ele não percebeu que havia concedido às ‘criaturas irracionais’

(tà áloga) todas as capacidades que dispunha e deixou a espécie humana

desprovida de recursos (321b-c). Constatando o erro de Epimeteu, Prometeu furta

dos deuses Hefesto e Atena ‘a sabedoria das técnicas e o fogo’ (tèn éntechnon

sophían sùn pyrí) com o propósito de assegurar ‘a salvação (soterían) do homem’

(321c-d). No entanto, enquanto Prometeu era severamente punido pelos deuses, os

homens permaneciam sem acesso à técnica política, ficando apenas com a

‘sabedoria necessária para a vida’ (perì tón bíon sophían ánthropos – 321d).

Apesar de os homens conseguirem articular uma linguagem e poderem erguer

altares aos deuses, eles não conseguiam se proteger nem dos outros animais nem

dos conflitos entre si mesmos22 (322b-c). Ao analisar o problema, Zeus constata a

necessidade de intervir diretamente para que o ser humano não se extinga por

completo:

“Então Zeus (...) mandou que Hermes levasse aos homens o pudor (aidô)23 e a

justiça (dikè), para que houvesse ordem dentro das cidades (póleon kósmoi) e

laços de amizade (desmoì philías) para unir os homens.” (322c)

Com o advento das dádivas divinas, o homem poderá finalmente proteger

sua própria espécie contra os ataques externos de animais e de outros homens. A

partir de um senso básico de respeito aos outros e reverência às leis imparciais da

cidade, o ser humano consegue ultrapassar os estreitos limites de sua

individualidade e seu laço de sangue com a família (TAYLOR, 1991, p. 81).

Assim, o discurso demonstra que a natureza humana está orientada para o

exercício da política. Diferentemente de técnicas usuais, como a medicina, as

22 A interpretação da passagem pode causar alguma confusão: devemos crer que o surgimento de

uma linguagem e de uma religião já impõe por si mesma a existência de grupos sociais

rudimentares ou que esses elementos não podem emergir sem a presença da técnica política entre

os homens? Essa controvérsia foi fomentada entre os comentadores por conta da indicação de que

os homens viviam ‘dispersos’ (skedannúmenoi – 322c). Não é diretamente necessário que o mito

tenha de relatar ‘literalmente’ o que aconteceu. Segundo Nussbaum (2009, p. 90), somente com a

necessidade de preservação das prórprias espécies esses valores se tornaram fundamentais: “essas

instituições e esses sentimentos associados moldaram tanto a vida das criaturas que as possuem

que não podemos descrever sua natureza sem mencionar sua qualidade de membros dessas

instituições e o vínculo que tem com elas” (itálicos da autora) 23 Cf. BAILLY, 1957; LIDELL; SCOTT, 1996. A palavra aidôs representa sem dúvida um

desafio de tradução. Em geral, o termo é utilizado para designar o sentimento de honra e respeito

dirigidos aos outros homens em sociedade. Todavia, as conotações semânticas dessa palavra

evocam um sentimento claramente negativo, motivado principalmente pela vergonha e pelo medo

da retaliação da sociedade. Por essas razões, preferimos a palavra ‘pudor’.

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‘capacidades’ concedidas por Zeus devem ser compartilhadas entre todos os

homens (322d). A distribuição igualitária de pudor e justiça ocorre por conta da

preservação da própria espécie humana, pelas palavras de Zeus: ‘para que todos

participem (metechónton) deles, pois as cidades não podem ser formadas (ou

génoito póleis), se pudor e justiça forem compartilhados por poucos (olígoi

metéchoien), como se dá com as demais técnicas.’ (322c-d). Desse modo, é

necessário que todos os cidadãos apresentem um grau mínimo de pudor e justiça

para que possam ser integrados à comunidade política da cidade (TAYLOR, 1991,

p. 80). Com efeito, o pudor e a justiça distribuídos pelos cidadãos tornam possível

a manutenção das cidades e, consequentemente, a preservação da humanidade

(322 e). A partir do mito, Protágoras acredita ter conseguido convencer Sócrates

de que a prática de deliberação ateniense é, na realidade, uma prova de que todos

os cidadãos partilham da virtude política (politikê aretè) por natureza de ‘algum

modo’ (pos – 323b-c). Ora, mas será que todos devem apresentar a virtude

política necessariamente? O sofista indica que há exceção à regra: algumas

pessoas não apresentam o senso básico de pudor ou justiça apropriado para a

convivência na cidade e, dessa forma, devem ser mortos ou exilados como uma

‘doença da cidade’ (nóson póleos -322d) e ‘não estar entre os homens’ (mè einaî

antrópois – 323c). Assim, é indicado para o leitor que não se deve tomar o mito

ao pé da letra, sendo necessário tentar compreender seu significado para além das

imagens da trama.

O mito narrado por Protágoras pode causar equívocos se for interpretado

de forma literal24. Como já foi evidenciado por Taylor (1991, p. 80), seguir a

sequência dos acontecimentos narrados no mito torna a história evidentemente

absurda. Como, por exemplo, os homens podem possuir as capacidades políticas

se elas necessitam da existência prévia de uma comunidade? Talvez Protágoras só

queira indicar que o desenvolvimento dessas capacidades exige a existência de

24 Esse tipo de leitura é sustentada por Kerferd (2003, p. 243), por exemplo, em sua defesa à

coerência do mito do sofista. Para o comentador, a concessão de aidós e diké aos homens se

efetiva após estarem vivendo na terra e, portanto, tais capacidades devem ser possuídas apenas

através do ensino. Outra interpretação literal, mais recente, assume que todo o discurso de

Protágoras é direcionado para responder às objeções de Sócrates, mas não apresenta nenhuma

consistência em seus argumentos. Segundo Weiss (2006, p. 34-37), apesar de o mito indicar que a

técnica pode ser transmitida pelo ensino, o resto do discurso vai provar que a natureza humana já é

virtuosa por si mesma. As conclusões dos autores são diametralmente opostas, mas eles

evidenciam o problema implicado em tomar o mito como uma narrativa literal.

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relações humanas que ultrapassem a estrita necessidade material25. Pelo mito,

pode se mostrar, portanto, a origem do modo de vida que caracterizou fortemente

a espécie humana enquanto tal. Assim, a história narrada evidencia como a

natureza das criaturas é formada pelo modo de vida peculiar de sobrevivência da

própria espécie. Segundo Nussbaum (2009, p. 89), isso é evidenciado pela sutileza

com que Protágoras se refere às criaturas ‘irracionais’ (áloga), pressupondo assim

a racionalidade característica do homem. Nessa perspectiva, tanto a razão quanto

o pudor e a justiça são elementos essenciais da própria natureza humana e não

elementos derivados da necessidade de sobrevivência. Por essa razão, todos os

homens devem manifestar, de algum modo, as ‘capacidades’ humanas básicas

para integração social. Como foi apontado pelos comentadores, o mito oferece

uma explicação coerente da necessidade da existência das virtudes cívicas básicas

na cultura ateniense (KAHN, 1996 p. 217; WEISS, 2006, p. 34). De fato, o sofista

vai assimilar as dádivas de Zeus com as virtudes ‘justiça’ (dikaiosýne) e

‘temperança’ (sophrosýne) e, depois, incluir a ‘piedade’ (hósion) dentro da classe

das virtudes cívicas necessárias. Mas a necessidade da existência dessas virtudes

não é a justificativa do ensino delas. Assim, vamos analisar agora o lógos

apresentado por Protágoras para justificar o ensino das virtudes e responder às

objeções de Sócrates.

Sem mencionar que está iniciando uma argumentação, Protágoras se

compromete a comprovar a existência do ensino da virtude através da prática de

punição adotada na cultura ateniense. Numa sociedade na qual todos são aptos por

natureza à deliberação, não parece ser possível comprovar o ensino das virtudes.

Segundo o sofista, o reconhecimento da necessidade de castigos (koláseis) e

repreensões (nouthetésis), para as pessoas que não alcançam os bens que deveriam

ser adquiridos pelo exercício (askéseos) e estudo (didachês), é uma prova cabal do

ensino das virtudes (323d-e). Nesse ínterim, alguém que apresente qualidades

opostas à virtude política, como a impiedade ou a injustiça, deve ser tratado como

um pedaço de madeira retorcido que precisa ser endireitado, isto é, obrigado a se

25 Como afirma Taylor (1991, p. 81): “não temos nenhuma justificação para que ele faça alguma

distinção entre o sentido psicológico de não-primitivismo, e o sentido cronológico (...)” (tradução

nossa).

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adequar à vida social (324a; 325d-e)26. Para a sociedade ateniense, portanto, a

punição tem o papel evidente de promover a educação dos cidadãos em geral e

integrá-los ao corpo social do qual eles devem fazer parte se quiserem preservar

sua própria humanidade. Ao alegar que comprovou a existência da crença

ateniense na possibilidade de ensinar a virtude, Protágoras se volta para a análise

do processo educativo no intuito de responder à segunda objeção de Sócrates. Na

medida do possível, os atenienses tomam cuidado para que a criança possa

desfrutar de um extenso programa educacional e ‘seja a melhor’ (béltistos éstai –

325c). Depois de um período pequeno sob os cuidados dos pais, a criança é levada

para a escola para aprender a ler os poemas de bons poetas (poiêtôn agathôn)27, e

inspirar seu comportamento nos feitos de homens bons do passado (palaiôn

andrôn agathôn – 325e-326a). Em seguida, o ensino da música pela poesia

cantada, a melopéia, cuja função é tornar as crianças capacitadas para a palavra e

para a ação (légein kaì préttein) através do ritmo e da harmonia (326b). Na

medida em que se tornam mais velhas, são apresentadas à ginástica e ao ensino

das leis para se integrarem à vida política da sociedade. Durante esse extenso

programa, fica claro que o objetivo principal do ensino é fazer com que as

crianças tenham um ‘bom comportamento’ (eukosmías – 325d).

Nessa perspectiva, Protágoras considera que o ensino da virtude é como o

ensino da língua grega, todos são capazes de ensiná-la (327e). Contudo, ele

admite que há desigualdade: ‘cada um na medida de sua capacidade’ (kath’ hóson

dýnantai ékastos). Desse modo, o sofista parece pressupor a crença de que há

graus diferentes de aprendizagem das virtudes. Em cada nível de educação,

teríamos uma diferença qualitativa de aprendizagem da virtude. O nível mais

sofisticado de educação ficaria então a cargo do sofista: “Tenho-me na conta de

um desses, superior aos demais homens na possibilidade de tornar nobre e bom

qualquer homem (tina pròs tò kalòn kaì agathòn) (...)” (328b). Nessa passagem,

Protágoras evidencia sua concepção elitista do ensino das virtudes. Apenas os

sofistas são capazes de transmitir a seus alunos o mais alto grau de virtude

reconhecido pela expressão ‘nobre e bom’ (kalòn kaì agathòn). Por se

26 Cf. SAUNDERS, Trevor. “Protagoras and Plato on Punishment” in: KERFERD, G. B. The

Sophists and their Legacy. Proceedings of the Fourth International Coloquium on Ancient Greek

Philosophy at Bad Homburg 1979, Wiesbaden, 1981, pp. 129-141. 27 É mencionado que eles têm que ‘aprender de cor’ (ekmanthánein) os poemas (325e). Temos aí

uma boa ilustração do tipo de ensino que Protágoras quer elogiar, conforme ficará mais claro na

discussão sobre o poema de Simônides adiante.

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concentrarem estritamente no desenvolvimento da virtude política, eles

conseguem preparar melhor seus alunos, na deliberação prática necessária para a

convivência social, do que a sociedade e os outros educadores. Ora, mas como a

sociedade poderia admitir a livre deliberação para todos e acomodar em seu seio

uma elite política de sábios? Com o propósito de responder a essa questão, é

necessário analisar melhor a técnica apresentada por Protágoras.

A linguagem apresentada por Protágoras provoca algumas controvérsias

em relação ao tipo de técnica deliberativa que ele está defendendo em seu

discurso28. Para compreendermos melhor qual é a proposta do sofista, devemos ter

em mente as técnicas educativas que servem de paradigma para sua própria

técnica deliberativa. Como foi ressaltado anteriormente no diálogo, o objetivo da

educação é proporcionar a seus alunos o conhecimento necessário para sua

deliberação prática e não uma aplicação técnica. Segundo Nussbaum (2009, p.

87), o sofista valoriza técnicas que visam à excelência da execução da própria

atividade e não à confecção de um produto externo. Do mesmo modo que a

música tem o papel de aperfeiçoar a própria execução da melodia e do ritmo, a

técnica deliberativa deve aperfeiçoar a execução das virtudes políticas. A

fabricação de sapatos, por outro lado, tem como parâmetro a produção de um bom

sapato. Nessa perspectiva, o sofista é capaz de se destacar entre os educadores,

pois ele se preocupa estritamente com o desenvolvimento de virtudes

imprescindíveis para a vida política do cidadão. A técnica deliberativa deve ter a

finalidade de aprimorar a execução das virtudes e fazer com que o cidadão esteja

“mais ciente da natureza e das inter-relações de seus compromissos éticos”

(Ibidem, p. 92). O homem com esse conhecimento deveria preservar os valores

humanos reconhecidos universalmente e necessários para a vida política da

28 De acordo com uma corrente de comentadores, o sofista não propõe nada mais do que uma

habilidade rudimentar de condicionamento social (IRWIN, 1995, p. 79; KAHN, 1996, p. 217;

WEISS, 2006, p. 35-36). Segundo esses intérpretes, a proposta de ensino adotada pelo sofista não

visa nada mais do que a adequação dos cidadãos às normas sociais consideradas virtuosas pela

comunidade. De fato, Protágoras não pode pensar que as normas sociais de qualquer cidade podem

ser mais importantes do que os princípios instituídos para a preservação da própria cidade, diké e

aidós (Cf. KERFERD, 2003, p. 229). Por outro lado, Taylor (1991, p. 83-84) sugere que a técnica

deliberativa estaria associada ao suposto relativismo subjetivista de Protágoras. De acordo com tal

teoria (se é que ela pode ser derivada do texto), não existe uma verdade ou falsidade sem

qualificação. As opiniões de cada pessoa não podem ser julgadas por sua veracidade mas apenas

pela persuasão. Sem dúvida, Protágoras ressalta o valor democrático da deliberação, contudo não é

necessário que ele aceite o subjetivismo nem mesmo que a deliberação pública, envolvendo

questões de preferências, isto é, não factuais, exija algum tipo de subjetivismo (NUSSBAUM,

2009, p. 392).

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cidade. O espaço público deve estar aberto à revisão de leis e costumes, sempre se

tendo em mente a preservação dos valores sociais mais importantes. Segundo o

sofista, a maioria das pessoas tem sua natureza orientada para receber o ensino das

virtudes que eles adquirem pela educação formal. Todavia, o ensino dos sofistas

ultrapassa o nível comum da educação formal. Como apenas os mais ricos têm

acesso a uma educação desse nível (326b-c), Protágoras teria que explicar como é

possível que uma elite formada pelos sofistas possa coexistir com o ambiente

democrático dos assuntos políticos, no qual todos os cidadãos possuem as virtudes

necessárias para a deliberação pública.

O Grande Discurso de Protágoras apresenta sérios problemas, não apenas

com relação a sua proposta de ensino elitista, mas também, no que concerne à

natureza das virtudes. Embora essas questões não sejam diretamente tratadas por

Sócrates, elas vão ficando em evidência à medida em que o filósofo questiona os

pressupostos do sofista. Para avaliar o impacto dos problemas às teses sustentadas

pelo próprio sofista, vamos apresentá-las em tópicos:

a) Há uma incompatibilidade entre a defesa da deliberação prática, pela

maioria, e a necessidade de professar uma educação mais avançada das

virtudes para poucos. Existe a alegação de que os alunos aprendizes dos

sofistas serão, teoricamente, mais capazes para as deliberações públicas

em virtude de uma ‘diferença de grau’ (KAHN, 1996, p. 217). As posições

de Protágoras indicam que a maioria dos cidadãos estão aptos para tomar

as decisões públicas e, ao mesmo tempo, não estão. De um lado, a

educação que eles adquiriram durante a vida os capacita para o

engajamento nos assuntos da cidade. No entanto, sua educação tradicional

não lhes capacita o suficiente para a deliberação pública com os alunos dos

sofistas. De que modo o ensino das virtudes políticas do sofista capacita

seus alunos a serem melhores que os cidadãos comuns? O ensino sofístico

consiste apenas na transmissão das virtudes tradicionais (temperança,

justiça e piedade) ou fornece outras virtudes? A partir do discurso de

Protágoras, nessa passagem, não temos nenhum indício de quais são os

reais objetivos de seu ensino (KAHN, 1996, p. 217). Na realidade, o

sofista omite outras duas virtudes que são importantes na cultura grega: a

coragem (andréia) e a sabedoria (sophía). Com efeito, o diálogo orientado

por Sócrates servirá para explicitar as concepções de Protágoras a respeito

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da superioridade dessas virtudes em relação às virtudes comuns. Como

observou Weiss (2006, p. 47), a discussão, no entanto, revelará que a

coragem é uma virtude distinta transmitida apenas a poucas pessoas,

superiores por natureza. Se Protágoras alega transmitir esse tipo de virtude

superior a seus alunos, seu ensino está seriamente comprometido na

medida em que necessita de condições naturais que estão fora de seu

alcance.

b) A resposta de Protágoras à segunda objeção de Sócrates acaba

apresentando problemas para a própria possibilidade do ensino das

virtudes. Segundo o sofista, homens bons não conseguem transmitir sua

virtude para seus filhos porque isso não depende apenas do ensino, mas

também da natureza de seu pupilo. Para explicar sua tese, ele recorre a

uma analogia utilizando a técnica da música: se, em vez da virtude,

tivéssemos de ser educados na técnica da flauta, será que os filhos de bons

flautistas poderiam conseguir mais sucesso do que os filhos de maus

flautistas? (327a-b) Infelizmente não há nenhuma garantia para o sofista:

“o filho que acontece de ter (étuchen) o talento natural (euphyéstatos) para

a flauta, é que se tornaria mais estimado (ellógismos), ficando obscuros os

que não têm talento (aphyés).” (327c)

Assim, será concedido que a transmissão da virtude não depende

unicamente do ensino, mas também do ‘talento natural’ que o filho dos bons

homens poderá apresentar. O conhecimento defendido por Protágoras, de fato,

não é suficiente por si mesmo para garantir a boa deliberação e a execução das

virtudes, é necessária a presença de elementos extracognitivos. Ao conferir a

responsabilidade da ineficácia do ensino da virtude à natureza, o sofista reforça a

imagem do rebanho abandonado à própria sorte para buscar a virtude (320a). As

implicações dessa tese ficarão mais claras à medida que Protágoras explicitar sua

posição mais a frente (351a; 312d). Por enquanto, Sócrates revelará,

paulatinamente, a inconsistência das teses do sofista a partir de sua concepção da

pluralidade das virtudes.

Ambos os problemas ressaltados anteriormente convergem para o mesmo

ponto: a posição de Protágoras sobre a natureza das virtudes. As diferenças de

aprendizagem das virtudes, tanto nos alunos destacados quanto nos alunos que

não possuem talento necessário, se baseiam na crença de que a posse das virtudes

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depende fundamentalmente do ‘talento natural’ (euphýestatos). De fato, a posição

do sofista gera problemas acerca da possibilidade de transmissão da virtude

apenas por meio do ensino (ZEYL, 1980, p. 267). Tendo consciência dessa

inconsistência, provavelmente, Sócrates busca compreender melhor os

pressupostos do sofista para sustentar a pluralidade das virtudes.

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2.4 A reciprocidade das virtudes

Apesar de dizer que se sente persuadido de que há um ensino da virtude, o

filósofo observa uma ‘pequena’29 dificuldade: as virtudes designadas por

‘temperança’, ‘justiça’ e ‘piedade’ são partes (mória) da mesma virtude ou são

apenas nomes que se referem à mesma coisa única? (toû autoû henòs óntos –

329c-d)30 Como Protágoras ainda parece não ter uma ideia clara acerca da

extensão do que se implica a partir de sua posição, Sócrates vai recorrer a uma

analogia (paradeígmati). Se considerarmos que a virtude é única e indivisível, não

haveria nenhuma diferença qualitativa entre as diferentes virtudes e o todo (hólon)

da virtude, como nas partes do ouro (329d). De outro lado, poderemos considerar

que a virtude é divisível; assumindo, assim, que cada parte apresenta uma

característica peculiar em relação às outras partes e ao todo, como nas partes do

rosto (329e). A última classificação implica necessariamente três pressupostos: 1)

as virtudes não guardam semelhança (hoîon) entre si (330a-b); 2) cada virtude

apresenta uma potência (dýnamis) diferente (330b)31; 3) é possível possuir uma

virtude sem ter as outras. O sofista acredita que a segunda premissa explica

melhor a sua concepção de virtude.

Ao caracterizar as virtudes pelas suas diferenças específicas, Protágoras

ressalta as virtudes gregas que haviam sido omitidas de seu discurso: a coragem

(andréia) e a sabedoria (sophía). Para ele, essas virtudes se destacam

explicitamente das virtudes comuns da maioria: “há muitos homens corajosos que

são injustos (ádikoi), como há muitos justos que não são sábios” (329e). Desse

modo, já podemos evidenciar, implicitamente, o juízo de valor que, por sua vez, já

indica a existência de um grande abismo separando as virtudes consideradas

superiores por uma minoria e as virtudes cívicas da maioria (WEISS, 2006, p. 38).

29 O tom do personagem é claramente irônico, pois o problema assumirá grandes proporções na

discussão subsequente (WEISS, 2006, p. 38). 30 Como afirma Taylor (1991, p. 103-108), não devemos supor que Sócrates esteja falando aqui de

qualquer tipo de identidade de sentido entre os nomes das diferentes virtudes, isto é, o pressuposto

de uma sinonímia ou correspondência de significado entre elas. O personagem platônico apenas

quer chamar atenção para o fato de que todas as virtudes podem ter simplesmente a mesma

referência, ou seja, indicar uma única e mesma ‘coisa’ em vez de se referir a ‘coisas’ diferentes

(Ibidem, p. 223). Cf. KAHN, 1996, p. 221 31 Como observa Taylor (1991, p. 110), a potência não deve ser associada a uma espécie de

disposição natural, mas sim a forças motoras cuja posse possibilita a execução de ações virtuosas.

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No intuito de conscientizar seu interlocutor das inconsistências de sua posição,

Sócrates vai questionar a pluralidade das virtudes através de uma série de

argumentos. As questões levantadas por Sócrates colocaram em xeque os

pressupostos assumidos pela crença na pluralidade das virtudes: através do

questionamento sistemático do pressuposto 3, Sócrates força Protágoras a abrir

mão do pressuposto 1. Durante a discussão, os interlocutores chegam a conclusões

que atingem profundamente a crença na pluralidade: a) a unidade entre a justiça e

a piedade (330c-331e); b) a unidade entre a temperança e a sabedoria (332a-

333b); c) a unidade entre temperança e justiça (333d-333e; 345d-346e32); d) a

unidade entre a coragem e a sabedoria (349d-351b; 358d-360e). Com efeito, as

teses sustentadas por Sócrates se baseiam no princípio da reciprocidade das

virtudes, conforme podemos perceber no argumento da unidade entre justiça e

piedade:

“Logo, não sendo suscetível a piedade (hosiótes) de ser justa, nem a justiça

(dikaiosýne) de ser pia, porém algo que não é piedoso; como seria a piedade algo

que não é justo, mas injusto (ádikon), e a justiça ímpia (anósion)? (...) De minha

parte, pelo menos eu lhe diria que a justiça é pia e a piedade justa.” (331a)

Através da discussão, os interlocutores reconhecem que cada virtude

possui uma qualidade específica: a justiça é justa e a piedade é pia. Ora, se a posse

de uma virtude não implica a posse das outras, poderíamos dizer que alguém pode

ser pio e injusto ou até justo e ímpio ao mesmo tempo. Como observa Irwin,

Sócrates se compromete com a admissão de que as ações virtuosas não podem

engendrar ações benéficas e maléficas ao mesmo tempo (1995, p. 79-80). Por

meio da tese da reciprocidade das virtudes, o filósofo assume que as virtudes se

implicam mutuamente e que não é possível possuir uma virtude sem possuir todas

as outras. Dessa maneira, as ações justas, por exemplo, devem proporcionar

apenas ações benéficas para os homens e não engendrar atos ímpios, isto é, ações

maléficas. Nenhuma ação virtuosa específica pode se opor às ações virtuosas

proporcionadas pelas outras virtudes. Através desses argumentos, Sócrates leva

Protágoras a admitir que a justiça e a piedade tem de apresentar uma

correspondência significativa entre si mesmas: “a justiça é a mesma coisa (tautón

estì) que a piedade ou algo muito semelhante (homóiotaton); e, sobretudo, a

32 Consideramos, com Weiss (2006, pp. 41-43), que o argumento da unidade entre a temperança e

a justiça inicia na passagem anterior, mas só é concluído através do paradoxo estabelecido em

345d-e.

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justiça se assemelha à piedade e a piedade se assemelha à justiça” (331b). De

acordo com Sócrates, a existência da justiça e da piedade, enquanto virtudes, só

pode ser fundamentada se ambas puderem proporcionar ações justas e piedosas ao

mesmo tempo. Apesar de Protágoras conceder que há uma semelhança, ele não

admite que essa semelhança implique identidade e nem mesmo algum elemento

significativo compartilhado. Do mesmo modo que pares opostos apresentam uma

mínima semelhança característica, como em relação ao branco e ao preto e às

partes do rosto, a justiça e a piedade também possuem ‘de alguma maneira’ (tô

trópo) um grau de semelhança (331d). A relutância do sofista, em aceitar a

semelhança entre as virtudes, ficará cada vez menos resistente à medida que

Sócrates evidencia que as outras virtudes também se implicam mutuamente.

Para dar prosseguimento ao seu plano de argumentação, Sócrates lança

mão do argumento da unidade entre temperança (sophrosýne) e sabedoria

(sophía). A constatação da conexão entre sabedoria e temperança elimina a grande

barreira que separava a sabedoria das outras virtudes comuns (WEISS, 2006, p.

39-40). Para colocar em xeque as posições do sofista, Sócrates vai partir do

princípio da correspondência entre ações e virtudes: se alguma ação virtuosa foi

motivada pela própria virtude, será executada de determinada maneira; caso a

ação tenha por base uma orientação oposta (ti enantíous), a ação será realizada da

maneira contrária (332b-c); Nessa perspectiva, ações executadas em função da

sabedoria ou da temperança são ações benéficas para o homem, ou melhor, ações

corretas (orthôs) e vantajosas (ophelímos – 332a). De fato, poderíamos dizer que

ações executadas de forma contrária são derivadas de princípios contrários a essas

virtudes, isto é, de forma insensata (aphrónos) e incorreta (ou orthôs - 332b).

Logo, ações contrárias a essas virtudes são geradas a partir do mesmo oposto, isto

é, da insensatez (aphrosýne). Como os interlocutores admitem que há somente um

oposto para cada coisa (332c-d) e que a sabedoria e a temperança apresentam o

mesmo oposto, é necessário reconhecer que ambas as virtudes se referem à mesma

coisa (333a). A referência à virtude cívica necessária para a deliberação pública, a

sophrosyne, possibilita uma relação direta com a sophía que também está

vinculada a um tipo de sabedoria prática33. A partir de agora, Protágoras deve

33 O contexto do diálogo de fato não exige o sentido restritivo que a palavra adquire com o tempo,

o domínio dos apetites corporais. Para termos uma melhor compreensão dos argumentos de

Sócrates, é necessário preservamos o sentido mais abrangente (TAYLOR, 1991, p. 123). Com isso

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admitir que a relação de semelhança entre as virtudes é mais significativa do que

aquela que ele pensava anteriormente. Assim, ele tem de reconhecer que justiça e

piedade são bem parecidas, e, ao mesmo tempo, que temperança e sabedoria são

idênticas (333b). A íntima relação entre temperança e sabedoria será usada no

próximo argumento, da unidade entre a justiça e a temperança.

Tendo por base a estreita relação entre sabedoria e temperança, Sócrates

lança mão de um argumento para avaliar, agora, se a justiça e a temperança se

implicam mutuamente. Desse modo, Sócrates relembra o início da discussão

(329e), quando Protágoras afirmou que existem pessoas sábias que são injustas.

As premissas de Sócrates utilizam a correspondência etimológica entre o

substantivo sophrosyne, (temperança), o verbo no infinitivo sophroneîn (ser

temperante), e a expressão verbal eu phroneîn (ser sensato) (WEISS, 2006, p. 40).

A estrutura do argumento implica a tese de que os injustos não obtêm ‘coisas

vantajosas para os homens’ (ophélima toîs anthropoîs) ou, em outras palavras,

‘coisas boas’ (agathá – 333e). Sendo assim, a tese resulta em um paradoxo, isto é,

vai contra a crença comum de que os injustos podem conseguir efetivamente

coisas que são vantajosas. No que se segue, o argumento é interrompido

bruscamente por Protágoras. Como observa Weiss, o argumento de Sócrates

‘chega longe o bastante para que o leitor possa discernir a direção em que ele é

orientado’ (tradução nossa, p. 40). Para provar que a injustiça é incompatível com

a temperança, o filósofo alegaria que a injustiça promove coisas desvantajosas

para os homens, isto é, coisas ruins e, dessa forma, não proporciona benefícios

como a temperança. No entanto, como observamos anteriormente, o sofista não

concorda com a correspondência entre ‘bem’ e ‘vantajoso para os homens’,

elaborando um longo discurso acerca da relatividade das coisas consideradas boas

(334a-c). Após uma longa controvérsia a respeito de quais seriam os melhores

termos para retomar o diálogo, Protágoras exorta Sócrates a fazer a análise de uma

contradição no poema de Simônides.

Com efeito, a discussão sobre o poema oferece uma boa oportunidade para

que Sócrates retome o argumento interrompido. Enquanto Protágoras apresenta

uma contradição nos versos de Simônides, sobre a dificuldade de ‘tornar-se bom’

(génesthai agathòn), todavia não em ‘ser’ bom (emménai esthlòn), Sócrates alega

podemos associá-la, com mais plausibilidade, à virtude da sabedoria e sua relação aproximada com

um tipo de sabedoria prática (Ibidem, p. 122).

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poder explicar a incompatibilidade e, dessa forma, finaliza sutilmente o

argumento em favor da tese de que a injustiça não implica sabedoria. Após alguns

comentários secundários, Sócrates tenta explicar qual a razão que leva o poeta a

dizer que ‘ser’ bom não é difícil, como alegava Pítaco, mas sim ‘tornar-se’ bom

(343c)34. Para o filósofo, Simônides quer chamar atenção para a vulnerabilidade

da vida humana em relação às forças do infortúnio (améchanos), isto é, aos

fatores imprevisíveis do acaso, que podem levar um homem bom a realizar ações

terríveis e, consequentemente, se transformar em um homem mau. O ser humano,

portanto, é capaz de se tornar bom por um tempo limitado, mas não consegue

garantir sua permanência nessa condição. Com base nesta reinterpretação

socrática, Simônides julgaria que a influência do infortúnio sobre a ação do

homem bom, ou seja, aquele que possui conhecimento para agir bem, é um

fenômeno equivalente a um tipo de ignorância: “pois o agir mal (kakè práxis) é

ver-se alguém privado de conhecimento (epistémes sterthênai)” (345b). Para

Sócrates, Simônides e a maioria dos homens sábios estão de acordo com a ideia

de que a ação má não pode ser escolhida deliberadamente, mas deve ser derivada

da ‘ignorância’ (amathía): “nenhum dos sábios (tón sophôn andrôn) é de opinião

que pode haver homem capaz de errar (examartánein) ou de praticar

deliberadamente (hekónta) qualquer ato mau ou vergonhoso (aischrá te kaì kakà)”

(345d-e). Nesse sentido, os homens sábios (inclusive Simônides) acreditam que

nem os maus nem os bons são capazes de deliberar livremente a favor de seu

próprio mal. Dessa forma, a afirmação não supõe que um ato pode ser feito

involuntariamente, de forma não deliberada, mas que um ato apenas pode ser

realizado de duas maneiras: de bom grado (hekón), com pleno consentimento do

agente, ou de mau grado (ákon), sob coação de fatores exteriores35. De acordo

com essa asserção, se um agente tiver clara consciência de que suas ações más não

resultarão nos benefícios realmente desejados, ele não irá realizá-las. Sendo assim,

os sábios não poderiam nunca, a partir de sua própria sabedoria e de forma

deliberada, cometer atos injustos quando, ao mesmo tempo, estão cientes que uma

alternativa melhor está disponível à sua escolha. Portanto, não pode haver sábios

que são injustos como Protágoras alegara anteriormente. Como ressalta Weiss

(2006, p. 43), Sócrates pode, enfim, terminar o argumento anterior: os injustos

34 Cf. TAYLOR, 1991, p. 145 35 Cf. TAYLOR, 1991, p. 146; WEISS, 2006, p. 43

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não podem ser sábios e os sábios só podem ser justos. Portanto, a justiça só pode

ser sabedoria. A partir desse argumento, os interlocutores podem conceder com

mais evidência que quatro das virtudes mencionadas, a ‘piedade’, a ‘justiça’, a

‘temperança’ e a ‘sabedoria’ se correspondem por alguma semelhança e todas elas

se assemelham por conta da sabedoria. Aos olhos de Protágoras, isso seria o

mesmo que assimilar a sabedoria às virtudes tradicionais da maioria. No entanto,

o sofista ainda pode sustentar que a coragem deve ser distinta das demais virtudes.

Após Sócrates interromper a análise de poemas que, por ventura, havia

sido levada a cabo com Protágoras, os interlocutores concordam em retomar a

discussão sobre a relação entre as diferentes virtudes por meio do diálogo (348c-

349d). Neste momento, Protágoras sustenta que é possível ter a coragem, não

sendo necessária a existência de outras virtudes: “muitos indivíduos são injustos

em alto grau, ou por demais ímpios, ou intemperantes em excesso, ou

supinamente ignorantes, porém distintamente corajosos” (andreitótatous

diapheróntos – 349d). Por conta dessa afirmação, Sócrates vai questionar a

separação entre a coragem e as outras virtudes, levando em conta um conjunto de

argumentos. Na sequência de argumentos, os interlocutores concordarão com dois

princípios: a) a virtude constitui uma coisa nobre (kálon) por inteiro (hólon) e não

por uma parte (dessa forma, o que é oposto à virtude é vergonhoso (aischròn) por

inteiro) (349e; 350b); b) aqueles que têm conhecimento são mais audazes

(tharraléos) do que os que não têm; Vejamos a estrutura do argumento36:

1. Os corajosos são audazes (tharraléos); (349e).

2. Os audazes sem conhecimento (de cavalaria, mergulho, etc.) são loucos

(mainómenoi), uma condição vergonhosa (aischròn) (350b);

3. Os audazes sem conhecimento não são corajosos, pois a coragem é uma

virtude;

4. Aqueles que são audazes com conhecimento (sophótatoi) são mais

audaciosos e, sendo mais audaciosos, são mais corajosos; (350c);

5. Assim, coragem é sabedoria;

36 Devo a formulação da estrutura do argumento à Taylor (1991, p. 150) e Weiss (2006, p. 44).

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Durante a argumentação, Sócrates relaciona à virtude da coragem o

conhecimento de técnicas tais como a cavalaria ou mergulho. A estrutura do

argumento implica reconhecer que apenas um conhecimento técnico

(contrapondo-se às ações em situação de perigo com a ausência desse

conhecimento) deixaria uma pessoa mais audaz - tendo-se em conta que ela seria

mais consciente - realizando assim ações nobres e corajosas. De outro lado, as

pessoas sem conhecimento podem ser audazes, mas executam ações vergonhosas

e, dessa forma, não são virtuosas. A coragem, portanto, não é compatível com a

ignorância. É necessário analisarmos os detalhes da argumentação. Para conseguir

convencer o sofista de que a coragem é a mesma coisa que a virtude, Sócrates

precisa convencê-lo da premissa ‘todos os sábios são corajosos’. Como mostra

Taylor, a premissa 4 deve assegurar o comprometimento de Protágoras com o

seguinte pressuposto: ‘se e somente se todos os homens forem corajosos eles

serão sábios’ o que implica a tese ‘a coragem é sabedoria’. No entanto, o sofista

constrói um argumento analógico àquele utilizado por Sócrates para mostrar que

as premissas não o comprometem com a afirmação de que ‘coragem é sabedoria’.

Segundo o sofista, é possível chegar a uma conclusão similar por outro caminho:

se fosse dito que os fortes (ischuroì) são capazes (dynatoì) e se alguém é mais

capaz de lutar se tem conhecimento da técnica de combate, então o saber é a força

(ischùs – 350d-e). Deixando de lado a controvérsia sobre a plausibilidade da

objeção do sofista ao argumento anterior37, podemos conceber melhor o que ele

tem em mente a partir do próprio argumento analógico utilizado para explicitar

sua posição. Com efeito, a capacidade (dýnamis) corresponde à audácia (e, por

implicação, à sabedoria), assim como a força corresponde à coragem. Do mesmo

modo que a força deriva da boa condição do corpo humano, a coragem também

necessita de uma boa natureza para se manifestar da forma apropriada. Dessa

forma, o sofista sustenta que a coragem não depende de conhecimento (351b).

37 Os intérpretes divergem sobre a plausibilidade da ‘falha’ encontrada nos argumentos de

Sócrates pelo sofista. Segundo Taylor (1991, p. 159), o argumento de Sócrates apenas mostra que

o conhecimento é necessário, mas não suficiente para que alguém possa ser considerado corajoso.

De outro lado, Weiss (2006, p. 45-46) acredita que Protágoras não reproduz fielmente o argumento

de Sócrates, mas apenas parte do argumento para indicar a falha mencionada. Provavelmente,

podemos conceder que o sofista não quer reproduzir o argumento fidedignamente mas reproduz

apenas a parte em que ele identifica uma falha (TAYLOR, 1991, p. 158). Além disso, acreditamos

que a divergência de Protágoras é influenciada por sua própria concepção de virtude. A objeção de

Protágoras também parece indicar, como fica claro no próximo argumento a respeito da coragem

(359c), que o conhecimento técnico não é um critério apropriado para determinar a natureza da

coragem.

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Como mostramos anteriormente, esta tese reforça a concepção não cognitiva das

virtudes implícita nas posições anteriores do sofista (327c), o que faz com que

Sócrates evidencie a incompatibilidade entre as teses de seu interlocutor através

da discussão acerca do prazer e da crença da opinião dominante no fenômeno da

akrasía. Com efeito, a referência do filósofo à crença da maioria no fenômeno é

utilizada para explicitar as inconsistências das teses do sofista acerca da natureza

não cognitiva da virtude. Com base na refutação da descrição tradicional da

akrasía, Sócrates conseguirá eliminar, definitivamente, essa crença do sofista,

retomando então o argumento da unidade entre coragem e sabedoria. Sendo

assim, devemos restabelecer brevemente as conclusões da discussão sobre o

prazer e a akrasía a fim de esclarecer de que maneira o filósofo demonstra a

unidade entre a coragem e sabedoria.

Durante a discussão sobre o prazer e a akrasía, observamos que Sócrates

fez uma análise das crenças da opinião dominante para testar as teses assumidas

pelo próprio Protágoras acerca da natureza da virtude. Com isso, os interlocutores

tiveram que analisar três posições da maioria que são extensões implícitas das

teses do sofista: (a) apenas coisas nobres (kaloîs) são boas; (b) existem prazeres

que são ruins e dores que são boas; (c) o conhecimento pode ser submetido pelos

impulsos no fenômeno da akrasía. A convicção do sofista no poder do

conhecimento permitirá a Sócrates analisar a crença comum a respeito do prazer

com o objetivo de demonstrar a inviabilidade da descrição tradicional da akrasía.

Assim, Sócrates chega a duas conclusões que serão utilizadas no argumento

subsequente: (1) com base no hedonismo, prazer e bem são a mesma coisa, assim

como dor e mal; (2) o conhecimento não pode ser submetido aos impulsos porque

o fenômeno da akrasía é, na realidade, ignorância e ninguém age contra o que

considera ser bom. A partir do hedonismo, o filósofo indica que o sofista não pode

mais sustentar suas restrições a respeito do prazer.

Desse modo, Protágoras está comprometido a assumir que ‘nobreza’

(kalón) e ‘prazer’ (hedoné) não são mais coisas distintas (358b; 360a). Como

constata Kahn (1996, pp. 237-238), a reinserção da ‘nobreza’(kalón) na discussão,

após a análise das crenças da opinião dominante, serve para que Sócrates possa

persuadir o sofista de que existe uma forma de hedonismo que é compatível com a

moralidade grega. Antes, a condição da ‘nobreza’ impedia que Protágoras

admitisse a correspondência entre prazer e bem. Nesse momento, como

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observamos, Sócrates pode fazer com que o sofista reconheça a íntima relação

existente entre ‘prazer’, ‘nobre’ e ‘bem’.

Com esse passo garantido, Sócrates pode retomar o argumento da coragem

e convencer Protágoras a assumir a unidade entre coragem e sabedoria. Nesse

sentido, uma diferença considerável é marcada em relação ao argumento anterior.

Segundo Weiss (2006, p. 64-65), o argumento anterior supunha que era necessário

conhecimento técnico específico para se obter a coragem, enquanto este novo

argumento supõe que seja apenas necessário o conhecimento do bem e do mal. De

fato, isso parece indicar que a concepção de conhecimento técnico sustentada

anteriormente não era apropriada para explicar a natureza da coragem. Como

sustenta Taylor, a utilização de uma concepção diferente de conhecimento prova

que a sabedoria técnica não possibilita a posse da virtude da coragem, ao passo

que o conhecimento do bem e do mal é compatível com sua natureza. A partir

disso, os interlocutores reconhecem que não é mais possível dizer que os

corajosos e os covardes se inclinam para coisas diferentes já que a admissão da

tese paradoxal não possibilita mais esta posição (359c-d). Para manter a

consistência, é necessário admitir a tese oposta: os corajosos e os covardes vão em

direção ao que consideram ser melhor, isto é, buscam ‘as mesmas coisas’ (epì tà

autà – 359d). Assim, nem os covardes nem os corajosos estão dispostos a ir ao

encontro do que é ‘temível’ (tà deinà). A coragem, portanto, consiste no

conhecimento ‘das coisas que são e das que não são temíveis’ (360d). Nesse

ínterim, a sabedoria é coragem tal como as outras virtudes. Com isso, Protágoras

não está autorizado a sustentar, novamente, que a coragem depende de boa

natureza ou que os corajosos podem ser ignorantes. O argumento o levaria a

sustentar uma tese explicitamente contrária à que ele sustentava. Em face disso,

Protágoras admite a conclusão a contragosto e Sócrates faz um balanço da

discussão mostrando ao sofista qual era seu real objetivo (361a-d). Em sua

análise, Sócrates revela que o sofista estava comprometido com uma tese

fundamentalmente oposta à possibilidade do ensino das virtudes.

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2.5 Considerações finais da integração entre a discussão do hedonismo e da akrasía e a tese do ensino das virtudes

Podemos considerar que a análise das teses de Protágoras é o motor de

toda a argumentação de Sócrates sobre o hedonismo e a akrasía. A analogia feita

por Sócrates entre a relação de seu exame com um exame médico, em 352a, é

esclarecedora. Como ressalta Taylor (1991, p. 171), a análise da relação entre

prazer e bem é como a inspeção da aparência do paciente, enquanto a relação

entre coragem e conhecimento pode se remeter ao exame completo de seu estado

físico. O comprometimento implícito das teses de Protágoras com os valores

tradicionais atenienses acaba envolvendo o sofista com teses contraditórias. A

possibilidade de transmissão das virtudes não pode ser assegurada pela

necessidade de uma natureza apropriada para a eficácia do ensino. De outro lado,

a alegação de que o ensino das virtudes é universal não comporta a ideia de que

apenas um grupo de pessoas pode efetivamente adquiri-las. A desvinculação

explícita entre Protágoras e a opinião dominante serve para manifestar as

contradições inerentes às suas próprias afirmações. A investigação conjunta da

opinião dominante grega permite compreender, portanto, os desdobramentos e as

implicações daqueles que defendem a tese de que o conhecimento não é suficiente

para a ação virtuosa. Tanto a análise da posição da opinião dominante a respeito

do prazer quanto a investigação de sua crença na akrasía, portanto, estão

profundamente conectada.

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3 A descrição tradicional da akrasía

Através de nossas considerações anteriores, tentamos evidenciar como o

problema da akrasía é apresentado por Sócrates com o objetivo de pressionar o

sofista a esclarecer sua posição acerca do conhecimento. O consentimento velado

de Protágoras com as crenças da ‘opinião dominante’ poderia levá-lo a reconhecer

a impotência do conhecimento contra os impulsos humanos, isto é, a crença

comum no fenômeno designado por akrasía. Ambos os interlocutores concordam

que o conhecimento deve prevalecer no domínio humano e que a descrição

apresentada está equivocada (352d-e). Como dissemos anteriormente, o problema

da akrasía constitui uma grande objeção para a tese da reciprocidade entre virtude

e sabedoria. A descrição comum da akrasía depende de duas condições: (1) existe

um conflito entre a deliberação e os impulsos humanos; (2) por vezes, os impulsos

podem prevalecer sob o conhecimento nas ações humanas. Com efeito, a

existência da akrasía impossibilita qualquer pretensão de que o ensino das

virtudes possa garantir a ação virtuosa.

Tendo isso em conta, podemos estabelecer que o problema da akrasía não

é apenas relevante no âmbito dos tópicos discutidos no diálogo, mas se destaca

por si mesmo à medida que estabelece uma dificuldade para a relação entre

deliberação e ação. Para compreendermos a extensão desse problema, devemos

seguir as indicações apresentadas no próprio Protágoras, já que este é o primeiro

texto filosófico a abordá-lo. Em primeiro lugar, é necessário fazer uma análise da

palavra akrasía de modo a compreender qual a sua origem etimológica; em

segundo lugar, nos concentraremos propriamente sob a descrição da akrasía da

‘opinião dominante’ relatada pelo próprio Sócrates em 352d-e. A partir disso,

poderemos evidenciar algumas inconsistências e dificuldades que surgem da

própria descrição comum do fenômeno. Assim, seremos obrigados a lidar, de

forma fundamental com uma questão que tem gerado controvérsia entre os

comentadores: Sócrates quer negar que a akrasía ocorra ou quer oferecer uma

descrição alternativa para ela? Uma corrente de intérpretes afirma que Sócrates

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desconsidera a influência dos desejos não racionais38 nas ações humanas ao

propor sua formulação alternativa para o fenômeno. Contra essa interpretação,

consideramos que o personagem não sustenta, em nenhum momento no diálogo,

que os desejos não racionais não podem influenciar nossas ações. De fato, se

tomarmos, ainda, algumas indicações dos primeiros diálogos de Platão, veremos

que Sócrates se preocupa em elaborar uma distinção entre diferentes tipos de

desejos de acordo com a própria cultura grega. Além disso, alguns comentadores

têm ressaltado que há certa correspondência entre a formulação usual da akrasía,

apresentada por Sócrates, e as falas das personagens de Eurípides, Medéia e

Fedra. Sendo assim, nossa tarefa final será traçar as correspondências possíveis

entre a descrição usual da akrasía da ‘opinião dominante’ no Protágoras e os

discursos dessas personagens trágicas nas obras Medéia e Hipólito de Eurípides.

Nessa perspectiva, buscaremos evidenciar que o conflito psicológico retratado na

descrição usual da akrasía presente no Protágoras já tinha sido abordado, de

alguma forma, por Eurípides em suas tragédias e constituía um problema para a

própria sociedade grega de sua época. Para iniciarmos nossa investigação,

portanto, pretendemos realizar uma análise etimológica do termo grego akrasía de

modo a determinar sua origem semântica.

38 Por ‘desejos não racionais’ estou designando todo aquele grupo de desejos que é contrário ao

desejo racional pelo que é melhor, ou seja, pela ‘felicidade’ (eudaimonia). Todavia, precisamos

ressaltar que a expressão é vaga e imprecisa uma vez que a nomenclatura é retirada, na realidade,

da discussão entre os comentadores de Platão e não a encontramos efetivamente nos Diálogos.

Mais adiante, tentaremos esclarecer melhor essa distinção a partir da controvérsia acerca da

corrente de comentadores platônicos que sustentam a teoria do ‘intelectualismo motivacional’.

Como sustentaremos posteriormente, não acreditamos que exista qualquer evidência que de que o

Sócrates dos primeiros diálogos (em que incluímos aqui o Protágoras) efetivamente não

reconheça a influência dos desejos não racionais sobre a ação humana.

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3.1 A etimologia da palavra akrasía

De acordo com o dicionário etimológico Dictionnaire étymologique de la

langue grecque de Pierre Chantraine (1968, p. 578), a palavra akrasía deriva do

termo grego krátos que significa propriamente ‘força’, com raiz na tradição

homérica. O termo krátos, por si mesmo, não remete a qualquer tipo de força, mas

se restringe, especialmente, à força física necessária para vencer ou conquistar, de

cujo termo provém ‘vitória, ‘poder’, soberania’. Tendo isso em vista, a presença

do prefixo ‘a’ antes de ‘krátos’ na palavra ‘akrasía’ estabelece uma negação do

sentido original da raiz. Assim, a palavra indica um tipo de impotência, de onde

provém a noção de ‘não ter poder’ ou ‘não se conter’. O sentido original está

marcado pela ideia de não ter a força necessária para vencer ou dominar. O

adjetivo de ‘akrasía’, ‘akratés’, está em oposição à ‘enkratés’ que significa ‘ser

mestre de si’. Nessa perspectiva, podemos reconhecer que ‘akrasía’ remete,

portanto, a uma falta de domínio de si mesmo, ou de sobre algo, como uma

incapacidade de vencer a si mesmo. Em português, as palavras normalmente

utilizadas para traduzir ‘akrasía’ não condizem perfeitamente com seu sentido

original. Com efeito, a palavra ‘incontinência’ sugere conotações sexuais e a

expressão ‘fraqueza de vontade’, por sua vez, pressupõe a ‘vontade’ cujo sentido

não é contemplado por nenhuma palavra da Grécia arcaica ou clássica39.

Atualmente, podemos encontrar a palavra ‘acrasia’ em alguns dicionários de

português e seu significado está mais próximo do termo grego ‘akrasía’; todavia,

o sentido de ‘acrasia’ está marcado pelas reflexões filosóficas contemporâneas

acerca do fenômeno. Nesse sentido, a perspectiva contemporânea tende a

reconhecer casos de inação ou passividade como casos de acrasia40, o que não

pode ser encontrado nas reflexões da Grécia antiga acerca do fenômeno. Para nos

resguardar de quaisquer equívocos, optamos por manter a transliteração do termo

grego ‘akrasía’ no curso desta dissertação a fim de preservar o sentido original da

39 Cf. VERNANT, J-P. “Esboços da Vontade na Tragédia Grega” in: Mito e Tragédia na Grécia

Antiga. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, p. 25-52. 40 No contexto contemporâneo, a ‘procrastinação’ pode ser reconhecida como um tipo de acrasia.

Na filosofia grega clássica ou nas tragédias, não há nenhuma preocupação explícita com esse tipo

de caso.

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palavra no contexto da cultura grega. Com o sentido original do termo grego,

seremos capazes de determinar a relação existente entre o significado da palavra

akrasía e a descrição tradicional do fenômeno apresentada por Sócrates no

Protágoras.

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3.2 A akrasía segundo a opinião dominante (hoi polloí) no Protágoras (352d-e): Sócrates quer negar a influência dos desejos não racionais?

Como já havíamos mencionado anteriormente, a introdução da descrição

tradicional do fenômeno da akrasía, por Sócrates, na discussão, se dá com o

objetivo de mostrar, ao seu interlocutor, as consequências de sua crença na

constituição não cognitiva da virtude. Apesar de provavelmente não compreender

os desdobramentos dessa estratégia, Protágoras se junta a Sócrates ao reconhecer

o poder do conhecimento sobre as outras coisas humanas (352d). Dessa forma, os

interlocutores reconhecem que não concordam com a crença na impotência do

conhecimento sob a qual a descrição tradicional do fenômeno da akrasía se

fundamenta. As admissões iniciais dos personagens já nos levam a encarar a

formulação da akrasía como um problema. De fato, as inconsistências podem ser

percebidas na própria formulação da descrição tradicional da akrasía, como nos

relata Sócrates:

“[...] muitas pessoas (polloús), sabendo o que é melhor (gignóskontas ta béltista),

não querem agir desse modo, embora o pudessem (exòn autois), mas agem de

outra maneira. [...] responderam que a causa de fazerem o que fazem é ficarem

dominadas (hettoménous) pelos prazeres, ou pela dor ou por qualquer das paixões

de que eu falava ainda agora.” (352d-e).

Através do personagem Sócrates, Platão fornece indicações de como a

sociedade grega, de sua época, compreendia a experiência denominada akrasía. O

fenômeno reconhecido comumente por akrasía classifica o tipo de experiência

que ocorre em um agente que realiza uma deliberação sobre o que é melhor a se

fazer, em determinada situação, mas acaba fazendo o contrário no momento de

agir, porque é submetido aos seus impulsos. Desse modo, a opinião dominante

concede que o agente pode deliberar pelo que é melhor (béltion)41 ou recuar do

que é pior (kákion) para si próprio, sem referência propriamente a considerações

41 Cf. LIDDEL;SCOTT, 1996. Béltion é o adjetivo comparativo de agathós enquanto béltista é a

sua forma superlativa. Na passagem 355b, Sócrates se refere a um homem em akrasía que sabe as

coisas más (kaká) que está prestes a executar. Para manter alguma consistência em nossa

explicação vou me referir ao adjetivo comparativo kákion em oposição ao adjetivo béltion, da

mesma maneira que kakós está em oposição a agathós.

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morais no interesse de outras pessoas envolvidas no momento da ação42. Por meio

dessa descrição, podemos considerar que o agente sob efeito de tal fenômeno tem,

pelo menos, duas alternativas de escolha à sua disposição e consegue distinguir

qual delas é a melhor e qual é a pior, com plena consciência do que está

escolhendo. Nessas condições, o agente não pode alegar ignorância do que está

fazendo, e muito menos dizer que está sendo coagido de qualquer maneira

(TAYLOR, 1991, p. 173). Na linguagem grega, seu ato é realizado de bom grado

(hékon), isto é, sua deliberação não está sendo comprometida por forças externas à

sua escolha e nem pela força de seu impulso imediato em direção ao que é pior.

Do contrário, poderíamos dizer que o agente agiu de mau grado (ákon) e não pode

ser responsabilizado pelo que fez. Apesar de podermos responsabilizar o agente

em akrasía por sua conduta, a opinião dominante alega que ele está sob domínio

de impulsos variados: a ira (thymón), o prazer (hedonén), a dor (lúpen), desejo

sexual (érota)43, o medo (phóbon – 352b). Assim, se aceitarmos a descrição

tradicional teríamos de admitir que uma pessoa sob o efeito deste fenômeno tem o

poder de fazer o que considera ser melhor e, ao mesmo tempo, age contra o que

pensa por influência dos impulsos mencionados. Ora, como o agente sob akrasía

delibera em função do que é melhor e, ao mesmo tempo, é levado a fazer o que é

pior no momento de agir? Será que ele realmente tem responsabilidade sobre sua

ação ou seria melhor dizer que ele não teve domínio real sobre o que fez?

Definitivamente, a descrição tradicional do fenômeno da akrasía apresenta alguns

problemas e necessita de maiores esclarecimentos. Sendo assim, uma explicação

alternativa para o fenômeno se faz necessária. Como podemos ver, Sócrates

reconhece que a formulação tradicional da akrasía é inadequada, tendo-se em

conta sua crença na superioridade do conhecimento.

Durante toda a passagem 352e-358d, Sócrates fará uma extensa análise da

concepção dominante sobre o fenômeno da akrasía. Na realidade, a análise

42 Cf. TAYLOR, 1991, p. 203. Com efeito, devemos lembrar que considerações morais foram

temporariamente excluídas da discussão entre os interlocutores desde o início da investigação

acerca do prazer. Apenas em 359e-360a, as considerações morais serão retomadas no último

argumento da unidade entre sabedoria e coragem. 43 Cf. LIDDEL;SCOTT, 1990. A maioria das traduções aqui consultadas propõe a palavra ‘amor’

como tradução para o termo grego ‘érota’. Acreditamos que a tradução por amor pode incorrer em

equívocos e optamos por uma tradução que corresponda melhor ao que os gregos designavam por

‘éros’. Érota se aproxima de ‘paixão’ ou ‘desejo sexual’ e implica desejos relativos ao ‘sexo’

(estreitamente ligado a ‘aphrodisíon’ em 353c). A sugestão de Taylor (1991) por ‘luxúria’ é mais

próxima do que o que está sendo designado pela palavra ‘érota’.

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filosófica de Sócrates se volta, especificamente, para a submissão do

conhecimento ao impulso de prazer. Ao fim de sua investigação, Sócrates age

como se a refutação dessa formulação particular de akrasía implicasse a refutação

de qualquer outra submissão aos impulsos variados citados anteriormente. Ora,

mas por que Sócrates restringe tão abruptamente seu escopo de análise? É

possível apontar duas razões principais para isso: 1) o personagem está cumprindo

a tarefa estipulada anteriormente com Protágoras, de investigar a relação entre

‘prazer’ e ‘bem’ com o objetivo de determinar as crenças da opinião dominante

que fundamentam sua própria descrição da akrasía (351e; 353c); e 2) o filósofo

parece considerar que o impulso pelo prazer e a fuga da dor são mais básicos do

que outros tipos de impulsos e, dessa forma, esses impulsos podem ser reduzidos

aos dois primeiros (TAYLOR, 1991, p. 172). As coisas designadas por ‘prazer’ e

‘dor’ seriam correspondentes, nesse sentido, aos impulsos básicos de ‘atração’ e

‘repulsão’, respectivamente. Sendo assim, seria estranho que alguém atribuísse a

um impulso de ‘prazer’ ou, em outras palavras, à ‘atração’ imediata por qualquer

coisa, a causa de ter escolhido o que julgava ser pior, isto é, o que é ‘repulsivo’ no

momento de agir. Na realidade, poderíamos dizer que seu impulso imediato não se

dirige ao que é realmente prazeroso, mas apenas ao que parece ser prazeroso. Por

conta dessas dificuldades, Sócrates julga necessário reavaliar a formulação

tradicional da akrasía com base em uma investigação das crenças comuns sobre

prazer e dor. Neste momento, não me deterei ainda sobre os argumentos

apresentados por Sócrates para realizar a refutação da descrição tradicional. Na

sequência, tentaremos compreender, mais detalhadamente, qual a tese que

Sócrates contrapõe à descrição tradicional do fenômeno e qual seria seu objetivo

com isso.

Como pudemos notar anteriormente, as análises de Sócrates o levaram a

sustentar uma tese paradoxal contra a descrição comum da akrasía. Em um

primeiro passo, Sócrates vai demonstrar que a descrição sustentada pela opinião

dominante pode ser levada ao absurdo (354e-356a). Em um segundo passo, o

filósofo vai sugerir uma formulação alternativa para o fenômeno, com o objetivo

de eliminar as deficiências da descrição tradicionalmente aceita pela maioria

(356c-357e). De acordo com o personagem, a melhor maneira de caracterizar essa

experiência é designá-la por ‘ignorância’ (amathía - 357d). Como observamos, a

investigação das crenças da opinião dominante revelou que o prazer é a mesma

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coisa que o bem, a dor a mesma coisa que o mal, assim como a deliberação

humana é orientada pelo prazer e repele o que é doloroso (354c-e). Nessa

perspectiva, Sócrates nos leva a aceitar que a ‘ignorância’ chamada de akrasía

nada mais é que o erro na escolha dos prazeres que são maiores, isto é, a falta de

conhecimento acerca das verdadeiras dimensões das ações e das coisas que

escolhemos. A partir dessas premissas, o filósofo deriva uma tese paradoxal que

parece estabelecer uma negação do fenômeno da akrasía. Com efeito, Sócrates

sustenta a seguinte afirmação com base na natureza humana (en athrópou phýsei):

ninguém que, sabendo (eîdòs) ou presumindo (oiómenos) que há coisas melhores

(beltío) do que as que ele faz ou é capaz de fazer (dynatá), subsequentemente fará

essas coisas, quando pode fazer as melhores (exòn tà beltío) (...) não há quem, de

bom grado (hekòn), vá para as coisas ruins ou para as que ele considera ruins

(oíetai kaká), parece a mim, que não está na natureza do homem (en anthrópou

phýsei) querer ir para as coisas que ele considera ruins, em preferência ao que é

bom (oíetai kaká antì tôn agathôn) (358c-d) 44

Na referida passagem, a tese apresentada mostra que Sócrates pretende

fazer mais do que negar que o conhecimento possa ser submetido a algum

impulso ao prazer. As palavras do filósofo deixam claro que sua intenção é fazer

uma afirmação mais forte: negar que até mesmo a crença possa ser dominada

pelos impulsos. Assim, a passagem estabelece que ninguém se inclina

intencionalmente para as coisas ruins, por mais que ‘saiba’ (eîdòs) que as coisas

que fará são realmente ruins, isto é, tenha conhecimento, ou ainda meramente

‘considere’ (oíetai) que essas coisas sejam ruins. Com isso, podemos perceber que

Sócrates não apenas discorda da descrição tradicional da akrasía como submissão

de o conhecimento, mas também acredita que é necessário eliminar a

possibilidade do agente ter sua crença subjugada pelos impulsos (TAYLOR, 1991,

44 Há efetivamente outra formulação do paradoxo durante a discussão sobre o poema de

Simônides (345d-e), mas é importante ressaltar que a formulação da passagem 358c-d é uma

conclusão do exame direto das posições de Protágoras através da análise das crenças da opinião

dominante. Conforme esclarece Kahn (1996, p. 247-248), o paradoxo aparece nos diálogos de

Platão em duas formas diferentes, em uma formulação prudencial e em uma formulação moral. Na

primeira formulação, temos o paradoxo de que ninguém faz o que é mau de bom grado, isto é, agir

contra o que é bom não é do próprio interesse. Na segunda formulação, o paradoxo estabelece que

ninguém faz o que é injusto de bom grado. Segundo o autor (Ibidem, p. 247), a segunda

formulação pode ser derivada da primeira se acrescentarmos a premissa socrática S: ‘Nunca é do

próprio interesse agir injustamente (adikein)’ (tradução nossa). Nos diálogos, é frequente que um

dos interlocutores de Sócrates rejeite a proposição moral e leve o filósofo a recorrer a proposição

prudencial para demonstrar a consistência da primeira proposição. No Protágoras, identificamos

essa estratégia, particularmente, uma vez que a formulação prudencial em 358c-d sustenta a

identificação entre ‘bem’ (agathon), ‘prazer’ (hedone) e ‘nobre (kalon), o que implica na

formulação moral.

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p. 171-172). Nesses termos, a descrição tradicional do fenômeno é negada tout

court.

Para entendermos melhor a posição socrática, adotaremos a proposta de

análise sugerida por Terry Penner (1997, p.121-122) para esclarecermos melhor a

perspectiva temporal45 sob a qual é possível considerar a relação existente entre

juízos e ações na formulação da akrasía. Em primeiro lugar, vamos assumir que

podem existir duas espécies de akrasía: o conhecimento-akrasía, na qual agimos

contra nosso conhecimento do que é bom ou do que é mau; e a crença-akrasía,

pela qual agimos contra nossa crença do que seja bom ou mau. Em segundo lugar,

postulemos que existem duas perspectivas temporais diferentes sob as quais

podemos avaliar a relação entre nossos juízos e ações. Dessa forma, podemos

dizer que agimos contra o que acreditamos no momento da ação, isto é,

sincronicamente. De outro lado, podemos encarar a situação de uma perspectiva

diacrônica e, assim, considerar que agimos contra o que pensamos antes e depois

da ação, mas não especificamente contra o que julgávamos no momento da ação.

Para que a akrasía seja realmente negada, de forma absoluta, é necessário que não

apenas se postule que o agente não pode agir contra o que se crê ou o que sabe ser

melhor diacronicamente mas, principalmente, sincronicamente. A partir das

distinções sugeridas, conseguimos classificar de maneira mais apropriada a tese

socrática. Nesse ínterim, a tese paradoxal nega peremptoriamente que seja

possível a alguém sofrer uma experiência de conhecimento-akrasía sincrônico ou

diacrônico. No entanto, a posição do filósofo vai ainda mais longe: não apenas

postula que a crença-akrasía é impossível em sentido diacrônico mas também em

sentido sincrônico. Dessa forma, a tese apresentada parece ser radical, pois não

admite que haja qualquer situação em que agimos contra uma crença do que é

bom porque os impulsos dominaram o agente.

Estaria Sócrates comprometido a sustentar a invencibilidade da crença

sobre os impulsos humanos, do mesmo modo que mostrou que o conhecimento é

superior sobre quaisquer outros fatores? Há alguma controvérsia sobre essa

questão. Embora Sócrates claramente admita que o conhecimento ou, em outras

palavras, a técnica da medida, sempre domina o que quer que seja (357e), afirmar

45 Como foi bem salientado em conversa particular pelo professor Fernando Muniz, a perspectiva

temporal sugerida por Penner para esclarecer os variados tipos de akrasía está fundamentalmente

amparada na distinção temporal dos prazeres de Sócrates no Protágoras de Platão (353c-354e).

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que a crença não pode ser submetida pelos impulsos seria algo bem mais forte. Na

passagem 358c-d, parece que Sócrates está inferindo não somente que crença e

conhecimento não podem ser submetidos pelos impulsos, mas também que crença

e conhecimento tem o mesmo poder em relação aos desejos não racionais. Para

contornar esta dificuldade, alguns intérpretes elaboraram duas propostas diferentes

para compreender a afirmação de Sócrates. Através da primeira proposta,

intérpretes como Charles Kahn (1996, p. 228-243) e Roslyn Weiss (2006, p. 60-

61) sugeriram que a tese paradoxal apenas é válida enquanto dirigida contra os

interlocutores de Sócrates, isto é, de forma ad hominem. Os defensores dessa

posição admitem que Sócrates não está disposto a assumir a tese paradoxal em

própria pessoa, o que acreditamos ser totalmente contrário aos princípios do

diálogo defendidos pelo filósofo46. Com efeito, acreditamos que Sócrates não

pode se comprometer em sustentar crenças insinceras durante uma discussão com

seus interlocutores. Por outro lado, outro grupo de intérpretes, embora reconheça

que o paradoxo é uma tese do próprio personagem, julga que é necessário fazer

uma emenda no texto para que a afirmação tenha consistência com relação às

teses sustentadas por Sócrates nos primeiros diálogos de Platão. Nessa

perspectiva, Vlastos (1969, p. 72) sustenta que o paradoxo da impossibilidade de

agir contra a própria crença deve ser interpretado com a inclusão de um elemento

condicional: ‘quando nós temos conhecimento’. Apesar de a proposta preservar a

preocupação de Sócrates em reforçar o poder do conhecimento, a condição

inserida no texto parece não condizer com o que efetivamente é afirmado. Em

outra proposta, Taylor (1991, p. 200; p. 202-203) indica que a referência à

‘crença’, na passagem, deve ser associada à ‘crença verdadeira’. De acordo com o

intérprete, Platão ainda não teria chegado a delimitar uma diferença explícita entre

conhecimento e crença verdadeira no Protágoras. Por essa proposta, deveríamos

compreender que a crença verdadeira pode, por vezes, prevalecer sobre os

impulsos, embora não com a mesma regularidade que o conhecimento

46 Os intérpretes anti-hedonistas sugerem que Sócrates não defende os argumentos hedonistas e as

conclusões derivadas desses argumentos, como a refutação da descrição tradicional da akrasía.

Esta corrente pressupõe ora que Sócrates esteja sendo insincero ora que ele esteja apenas

comprometido em refutar as crenças de seus interlocutores para demonstrar suas próprias teses. Ao

adotar esse ponto vista, a corrente avalia a consistência dos argumentos de Sócrates apenas

enquanto dirigidos contra seus interlocutores e não em si mesmos. De fato, acreditamos que essa

posição não é coerente com o método de diálogo defendido pelo filósofo. Na introdução,

esboçamos essa hipótese em linhas gerais e pretendemos elaborar melhor nossa proposta

interpretativa com base em indicações do próprio texto no próximo capítulo.

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(TAYLOR, 1991, p. 191)47. Em ambas as interpretações, a ignorância, que

substitui a descrição tradicional da akrasía, é basicamente um erro cognitivo

baseado em uma crença falsa. Dessa forma, as alterações sugeridas parecem ser

realmente artificiais, pois inserem na formulação do paradoxo algo que não é

efetivamente dito, simplesmente no intuito de assimilar o que é dito na passagem

com a tese da superioridade do conhecimento sustentada por Sócrates nos

primeiros diálogos.

Com o objetivo de preservar a força do paradoxo sustentado por Sócrates,

intérpretes elaboraram outra proposta interpretativa. Em seus respectivos artigos,

os intérpretes Devereux (1995, p. 391) e Penner (1997, p. 131-133) argumentaram

que qualquer tipo de crença – verdadeira ou falsa – está sujeita à ignorância e,

desse modo, não pode ser critério para colocar a crença em uma posição superior

ao conhecimento. Realmente, a passagem 358c-d trata o termo ‘crença’ de forma

não qualificada, implicando tanto crença verdadeira quanto falsa. Sendo assim,

essa interpretação parece efetivamente corresponder ao texto. No entanto, se

aceitarmos isso, temos que admitir o fato de que não encontramos nenhum

argumento sobre a invencibilidade da crença no Protágoras. Como indica Penner

(Ibidem, p. 123-125), a afirmação do paradoxo, na medida em que nega a

possibilidade de agir contra a própria crença, não garante nenhum poder superior

da crença em relação ao conhecimento. Enquanto o conhecimento preserva a

escolha correta diacronicamente, a crença, verdadeira ou falsa, pode,

naturalmente, ser alterada por conta das circunstâncias e em relação ao que foi

deliberado antes e depois do momento da ação (Ibidem, p. 132-33). De acordo

com Penner, Sócrates efetivamente reconhece que a akrasía pode ser descrita

como crença-akrasía diacrônica. Todavia, estaríamos, assim, comprometidos com

o pressuposto de que o agente, em uma situação de akrasía, não é submetido pelos

apetites, mas está agindo em função de uma crença equivocada no momento da

47 Com efeito, Penner (1997, p. 133-134) dirige duras críticas à posição de Taylor. Em geral, suas

críticas podem ser resumidas em dois pontos principais: (1) para interpretar 356c, Taylor assume

que não há qualquer diferença entre crença verdadeira e conhecimento, mas concede também que

o conhecimento é melhor que a crença na medida em que garante juízos corretos regularmente.

Devemos notar que a inserção do critério da regularidade aqui é uma estratégia do comentador

para explicar porque Sócrates fala de conhecimento nessa passagem e não de crença verdadeira; e

(2) as outras indicações que talvez pudessem comprovar a confiança do filósofo na regularidade

são tiradas de interpretações equivocadas do texto. Sendo assim, acreditamos que não temos

nenhum motivo para aceitar a hipótese de que a crença verdadeira seja tão valorosa quanto o

conhecimento.

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ação. Se Sócrates está comprometido em negar a crença-akrasía sincrônica,

deveríamos estar dispostos a afirmar categoricamente que ele está

desconsiderando o poder dos impulsos sobre a ação humana?

Um grupo de intérpretes sustentou que o paradoxo apresentado no

Protágoras é uma das mais claras evidências de que o Sócrates dos primeiros

diálogos48 nega a influência dos desejos não racionais na ação humana. Essa

posição e a tese de que virtude é conhecimento constituiriam, portanto, o que é

denominado de ‘intelectualismo socrático’. Embora os intérpretes normalmente se

refiram ao ‘intelectualismo’ de uma forma não qualificada e, com isso, não se

proponham a fazer uma distinção clara entre as duas teses (ou mostrar que o

filósofo realmente assuma ambas as posições), realizaremos uma diferenciação

para efeitos de esclarecimento. Nessa perspectiva, seguiremos a distinção sugerida

por Brickhouse & Smith (2010, p. 1): à tese de que as ações deliberadas podem

resultar somente de motivações racionais chamaremos ‘intelectualismo

motivacional’, enquanto a tese que sustenta a unidade entre virtude e

conhecimento será denominada de ‘intelectualismo da virtude’. Na sequência, não

nos preocuparemos em discutir a posição do ‘intelectualismo da virtude’

defendida pela tradição interpretativa intelectualista49. Nos concentraremos apenas

sobre a tese do ‘intelectualismo motivacional’ de modo a avaliar alguns exemplos

de passagens dos primeiros diálogos que parecem oferecer evidências contrárias.

Dos comentadores defensores dessa tendência interpretativa, Terry Penner

expressou melhor as bases do ‘intelectualismo motivacional’, supostamente

defendida por Sócrates nos diálogos socráticos, em seu artigo Sócrates e os

primeiros diálogos:

Nos diálogos socráticos, encontramos uma teoria intelectualista do desejo, de

acordo com a qual todos os desejos, não só os desejos dos virtuosos, são desejos

pelo bem – isto é, pelo que quer que seja melhor para mim nas circunstâncias em

que me encontro. (...) De acordo com essa teoria, todos os desejos de fazer

48 Dentre os autores analisados em nossa investigação, Kahn (1996, cap. 2) é o único que coloca

em xeque a classificação dos primeiros diálogos de Platão e a suposição de que esses diálogos

constituem uma unidade filosófica distinta do pensamento do filósofo. No entanto, Brickhouse e

Smith (2010, cap. 1) oferecem uma defesa persuasiva da unidade filosófica dos diálogos socráticos

de Platão. 49 Seguimos a distinção sugerida por Brickhouse e Smith, mas devemos reconhecer que a

distinção é artificial já que os próprios intérpretes designados de ‘intelectualistas’ não diferenciam

tão claramente tais pressupostos. Como nosso interesse está voltado para a análise do pressuposto

motivacional, tivemos de encontrar a partir dos textos dos autores indicações mais claras de seu

alinhamento a tal posição.

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alguma coisa são desejos racionais, à medida que sempre automaticamente se

ajustam às crenças do agente, relacionadas a quais são os melhores meios para

seu fim último. De fato, segundo essa visão o único meio de influenciar minha

conduta é mudando de opinião acerca do que é melhor. (itálicos do autor, 2013, p.

163-165)

Em alguns textos que pautam as doutrinas professadas por Sócrates nos

diálogos socráticos, identificamos a presença de pressupostos desse tipo de

‘intelectualismo’ (IRWIN, 1995, p. 75-76; p. 209; DODDS, 1973, p. 78;

TAYLOR, 1991, p. 203-204; Ibidem, 1998, p. 74-75; VLASTOS, 1969, p. 83-

84)50. Como podemos ver, o ‘intelectualismo motivacional’ se compromete com

alguns princípios: (1) se todos os desejos são desejos racionais pelo que é melhor,

Sócrates desconsidera a influência de desejos não racionais para a ação humana;

(2) apenas os desejos racionais orientam a deliberação humana à medida que

determinam os melhores meios para atingir um fim último (no caso dos desejos

racionais, esse fim sempre será a eudaimonia – isto é – a plenitude humana); (3)

para mudar o comportamento de uma pessoa, é necessário simplesmente alterar

suas crenças. Em linhas gerais, podemos dizer que as bases da corrente ortodoxa

denominada ‘intelectualismo motivacional’ podem ser reconhecidas nas palavras

de Penner51. Embora a maioria dos intérpretes assuma que Sócrates reconhece a

orientação dos desejos racionais para o que é melhor (a eudaimonia), isso não

implica, necessariamente, que ele chegaria ao ponto de negar a influência de

desejos não racionais na deliberação. Recentemente, alguns intérpretes indicaram

que Sócrates, efetivamente, testemunha e reconhece o poder dos desejos não

racionais nos primeiros diálogos.

Nos diálogos da fase da juventude de Platão, comentadores chamaram a

atenção para um conjunto de passagens que estabelecem uma distinção entre os

diferentes desejos humanos (KAHN, 1996, p. 232; WEISS, 2007, p. 96-100;

50 No artigo de Penner (1997, p. 129) acerca da força do conhecimento no Protágoras citado

anteriormente, o autor volta a mostrar que está comprometido com esta teoria. 51 Ver nota 38 acerca dos desejos não racionais. Os intérpretes calcados nos pressupostos

intelectualistas sustentam duas maneiras distintas pela qual o personagem Sócrates acredita que os

desejos não racionais podem ser reduzidos aos racionais: (1) alguns defendem uma tese forte de

que a personagem simplesmente nega a existência dos desejos não racionais. Nesse caso, tais

intérpretes se vêem no embaraço de ter de explicar o que leva Sócrates a se referir explicitamente

aos efeitos de desejos tipicamente não racionais; (2) outros, tendo consciência dos problemas

envolvidos na sustentação da tese forte, optam por conceder que Sócrates reconheça os desejos não

racionais, mas não considera que estes desejos possam influenciar a conduta de um homem. Em

todo caso, ambas as vertentes apontam para a mesma conclusão: Sócrates acredita que a existência

dos desejos racionais é suficiente para explicar a ação humana e, dessa forma, devemos esse tipo

de desejos servem para explicar mesmo os fenômenos aparentemente irracionais como a akrasía.

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DEVEREUX, 1995, p. 396-403; BRICKHOUSE; SMITH, 2010, p. 50-62). Em

muitas dessas passagens, observamos o interesse, normalmente do próprio

Sócrates, em diferenciar os verbos ´boulesthai’ e ‘epithymein’ ou suas palavras

derivadas. Na linguagem grega, essas palavras são usadas para designar ‘desejo’

de forma abrangente e podem ser usadas de maneira intercambiável, mas

normalmente também podem ter um sentido mais restrito (WEISS, 2007, p. 97,

DEVEREUX, 1995, p. 400). Pelo significado restrito, ‘boulesthai’ se refere ao

desejo racional por aquilo que é benéfico, enquanto ‘epithymein’ é usado para

indicar apetites, como fome e sede, que buscam uma satisfação imediata. Nesse

sentido, podemos encontrar, nos primeiros diálogos, uma grande preocupação em

marcar essa delimitação com base no sentido restrito dessas palavras: em Laques,

Sócrates diz que os corajosos adquirem a coragem em relação aos apetites

(epithymíais), aos medos (phóbois), aos prazeres (hedonaîs) e dores (lýpais -

191e); no Cármides, o filósofo estabelece uma distinção similar entre apetite

(epithymía), o querer (boúlesis), e o desejo sexual (éros) – (167e), cada desejo

ligado a seu respectivo objeto; no mesmo diálogo, é notável que ele mesmo

reconheça o poder das paixões quando subitamente ‘perde o controle sobre si

mesmo’ (oukét’ en emautoû) ao vislumbrar o corpo nu do personagem-título e

‘arder’ em desejo erótico (155d); no Protágoras, ainda que desconsideremos a

descrição tradicional da akrasía mencionada anteriormente (que não será aceita

por Sócrates), ainda podemos notar a referência do filósofo a uma discriminação

de Pródico entre querer (boúlesthai) e ter apetite (epithymeîn)52. A partir dessas

evidências, portanto, temos claros indícios de que o Sócrates dos diálogos da

juventude do pensamento platônico não desconsiderava o poder dos impulsos,

conforme alega a corrente ortodoxa do ‘intelectualismo socrático’. Desse modo, a

distinção não apenas entre tipos diferentes de desejos, mas entre seus respectivos

objetos de desejo, parece colocar sob suspeita qualquer possibilidade de defender

que o personagem platônico admite, apenas nesse grupo de diálogos, que todos os

desejos são desejos racionais.

As passagens mencionadas anteriormente constituem, por si mesmas, uma

grande objeção à hipótese central do ‘intelectualismo motivacional’. Apesar dos

52 Em 337a-c, o personagem Pródico chama atenção para duas formas diferentes de se obter

prazer: em 337a-c, o sofista distingue entre a satisfação (euphraínestai) por aprendizado e pela

troca de sabedoria e o deleite (hédesthai) obtido por meio dos prazeres corporais.

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pressupostos dessa posição estarem seriamente comprometidos, ainda seria

possível alegar que o paradoxo socrático apresentado no Protágoras parece

realmente estar comprometido em defender uma teoria estritamente intelectualista

da motivação humana. Por essa hipótese, esta obra seria o único diálogo em que

Sócrates reduz impulsos humanos a desejos racionais e defende ainda uma

negação absoluta da crença-akrasía sincrônica. Como vimos anteriormente,

Charles Kahn (1996, p. 230-233) e Roslyn Weiss (2007, p. 60-61) adotaram essa

perspectiva e, para evitar as inconsistências entre a posição do personagem neste

diálogo e as referências que mencionamos anteriormente, assumiram que o

paradoxo socrático é uma tese defendida com o único propósito de refutar as

posições dos interlocutores do filósofo e não algo que ele admitiria em própria

pessoa. O motivo de não acreditarmos nessa hipótese já foi apresentado acima53.

Por outro lado, ainda que Penner defenda abertamente o ‘intelectualismo

motivacional’, como pudemos ver, o autor elabora uma interpretação que permite

entender a refutação da akrasía não como uma negação da crença-akrasía

sincrônica, mas como uma explicação alternativa para o fenômeno nos termos da

crença-akrasía diacrônica. Na visão de Penner (1997, p. 123-124), Sócrates está

mais preocupado em oferecer um argumento que preserve a estabilidade

epistemológica, isto é, a superioridade do conhecimento durante todo o período da

ação, do que negar a descrição tradicional da akrasía. Embora reconheça que

Sócrates defenda o paradoxo, Penner admite que a crença-akrasía sincrônica é

absurda por si mesma (Ibidem, p. 124-125). Acreditamos, no entanto, que a

negação da crença-akrasía é definitivamente o objetivo de Sócrates em 358c-d.

Nos capítulos posteriores, veremos que a própria refutação da akrasía não pode se

validar sem que a descrição tradicional seja reduzida ao absurdo e seja, assim,

efetivamente negada. De acordo com Devereux (1995), Brickhouse e Smith

(2010), Sócrates não poderá refutar a descrição tradicional da akrasía caso ele

desconsidere: (1) a influência dos desejos não racionais; e (2) a preservação das

crenças do agente antes, durante e depois da ação. Assim, a explicação alternativa

de Sócrates deve demonstrar que, apesar de o agente em situação de akrasía ser

influenciado por seus impulsos, não são os impulsos que determinam a ação desse

agente, em última instância, mas suas crenças. Dessa forma, acreditamos que

53 Cf. Introdução.

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Sócrates não trata a crença-akrasía sincrônica como algo evidentemente absurdo,

mas está inclinado a negar essa descrição do fenômeno através de argumentos. A

interpretação ortodoxa do ‘intelectualismo motivacional’ não consegue se

sustentar nem mesmo no que se refere ao paradoxo socrático desenvolvido no

Protágoras.

O ‘intelectualismo motivacional’ ainda pode ser confrontado com dois

outros elementos: (1) as críticas de Aristóteles, em suas obras éticas, à concepção

de autocontrole (enkráteia) e de virtude defendidas por ‘Sócrates’; e (2) a

correspondência entre a descrição tradicional da akrasía exposta anteriormente no

Protágoras e as falas das personagens Medéia e Fedra nas tragédias de Eurípides.

De fato, devemos avaliar com algum cuidado esses dois elementos já que não há

evidência clara de que Aristóteles esteja se referindo ao personagem platônico ou,

ainda, que a exposição da descrição tradicional da akrasía possa ser encontrada de

forma explícita nas obras de Eurípides. Em nossa análise, no entanto, esperamos

mostrar que uma investigação minuciosa dessas referências poderá reforçar nossas

críticas acerca da posição do ‘intelectualismo motivacional’. Ao contrário do

‘intelectualismo socrático’, evidenciaremos que as críticas de Aristóteles dirigidas

às teses de ‘Sócrates’, sobre a virtude, não podem validar uma suposta

desconsideração da influência dos desejos não racionais pelo filósofo.

Em geral, algumas críticas de Aristóteles a ‘Sócrates’ em Ética a Eudemo,

Ética a Nicômaco e, mesmo na obra de autoria disputada, Magna Moralia são

usadas para mostrar que mesmo o próprio Aristóteles julgava que Sócrates não

acreditava na existência de desejos não racionais54. Com efeito, é provável que

Aristóteles esteja se referindo às doutrinas que o Sócrates histórico defendia.

Como nos faltam evidências seguras a respeito do que esta figura obscura

realmente defendia, teremos de nos reportar às teses defendidas pelo personagem

Sócrates dos primeiros diálogos platônicos por falta de uma fonte mais apropriada

(IRWIN, 2008, p. 24-25)55. Para avaliarmos se Aristóteles realmente se refere a

54 Em Plato’s Ethics, Irwin (1995, p. 75-76) revela sua confiança sobre o testemunho de

Aristóteles (ou, particularmente, em sua interpretação da posição do filósofo) para caracterizar

Sócrates como um ‘intelectualista’ que nega a existência dos desejos não racionais sobre a ação

humana. Para o comentador (Ibidem, p. 75), o personagem Sócrates dos primeiros diálogos

claramente corrobora esse ‘intelectualismo’: “Se Sócrates não acredita que haja quaisquer desejos

não racionais, então ele não pode reconhecer o desejo não racional como uma fonte de erro que

impede o uso correto do conhecimento.” (tradução nossa) 55 Segundo Irwin (2008, p. 25), as outras fontes que temos para reconstruir as ideias do Sócrates

histórico são pouco elaboradas para serem consideradas confiáveis: “nós não temos nada além dos

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alguma negação da existência de desejos não racionais por Sócrates, vamos nos

referir a duas críticas realizadas por ele: (1) Na Ética a Eudemo, Aristóteles se

refere a alguns pensadores (incluindo provavelmente Sócrates) que sustentavam a

tese de que o autocontrole (enkrateia) é a mesma coisa que a virtude (areté). Esses

pensadores consideram que ter a ‘razão’ correta é condição suficiente para ser

virtuoso (1127b); e (2) Em Magna Moralia, o filósofo acusa Sócrates,

explicitamente, de defender que a virtude é constituída por ciência (epistéme) e

desconsiderar o papel da parte irracional da alma na constituição do caráter (êthos

– 1182a). No primeiro caso, poderíamos considerar que os pensadores em questão

acreditam que o conhecimento é suficiente para a ação virtuosa porque

provavelmente negam a existência dos desejos não racionais e o papel exercido

por eles na constituição do caráter. No entanto, para Aristóteles o ‘autocontrole’

(enkrateía) é uma condição contrária à akrasía. Enquanto o homem de

autocontrole é aquele que resiste a fortes desejos não racionais contrários à

deliberação para realizar a ação correta, o homem que sofre de akrasía também

delibera sobre o que é melhor a se fazer, mas cede a seus fortes impulsos

contrários à sua deliberação. Em ambos os casos, o papel desempenhado pelos

desejos não racionais é fundamental para determinar cada uma das formas de

caráter. Nessa perspectiva, não encontramos a tal ‘evidência’ que comprovaria a

concordância de Aristóteles com a representação de um Sócrates ‘intelectualista’

(DEVEREUX, 1995, p. 383-384). Em Magna Moralia, no entanto, encontramos

uma posição muito mais incisiva a respeito da posição defendida pela corrente

intelectualista. Efetivamente, Aristóteles esclarece sua oposição às teses de

‘Sócrates’:

“Pois ele [Sócrates] fez das virtudes ciências (epistémas), mas isso é impossível.

(...) Então, de acordo com ele, todas as virtudes surgem na parte racional

(logistikôi) da alma. Ao fazer das virtudes ciências ele abandona a parte irracional

(tò álogon méros) da alma, e assim abandona tanto a paixão (páthos) quanto o

caráter (êthos). Claramente, esta não é a maneira correta de tratar das virtudes.”

(1182a15-20)56

diálogos socráticos de Platão para verificar as afirmações de Aristóteles sobre Sócrates, e nós

temos de confiar no testemunho de Aristóteles se nós fomos acreditar que esses diálogos nos falam

sobre o Sócrates histórico. (...) Se nós acreditarmos que Aristóteles está certo ao supor que alguns

dos diálogos platônicos nos falam sobre Sócrates, nós estamos certos em acreditar no que ele fala

sobre Sócrates; pois o que ele nos diz se ajusta aos diálogos platônicos relevantes.” (tradução

nossa) 56 Por falta de uma tradução em português da obra, tivemos de recorrer a uma tradução

comparativa a partir da tradução inglesa da Loeb (1935) em confronto com o texto original grego.

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Ora, a crítica de Aristóteles parece justamente se voltar para a

desconsideração dos desejos não racionais por ‘Sócrates’. Por essa hipótese,

poderíamos mesmo julgar que, na visão de Aristóteles, não há conflito interno no

homem com autocontrole ou no homem em akrasía para Sócrates, simplesmente

porque os desejos não racionais não desempenham papel sobre a deliberação

(IRWIN, 1995, p. 75). Todavia, essa interpretação é muito precipitada e deixa de

perceber a restrição que Aristóteles confere a sua crítica. Efetivamente, Aristóteles

julga que Sócrates deveria ter considerado o papel dos desejos não racionais

especificamente com relação às suas teorias sobre a virtude (DEVEREUX, 1995,

p. 386). Quando Sócrates defende que virtude é conhecimento, ele desconsidera o

papel que esses desejos possam desempenhar na constituição do caráter, algo

central na concepção de virtude defendida por Aristóteles. Sendo assim, não

encontramos nenhuma indicação mais plausível do Sócrates ‘intelectualista’ que

procurávamos. Em face da ausência de evidências, acreditamos que Platão, em

seus primeiros diálogos, não retrata Sócrates como um ‘intelectualista’ em

momento algum.

Como apenas podemos confiar nos primeiros diálogos platônicos para

criar um retrato consistente das teses de Sócrates, a interpretação ‘intelectualista’

se torna ainda menos plausível se levarmos em conta a representação das paixões

humanas nas obras de Eurípides no século V. É fundamental levarmos em conta

que muitos reconhecem em Eurípides as primeiras descrições de casos de akrasía.

Assim, precisamos avaliar as obras de Euípides a fim de determinar se

encontramos realmente formulações do fenômeno reconhecido como tal.

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3.3 As raízes da crença da opinião dominante sobre o fenômeno da akrasía

Durante este capítulo, reincidiremos no fato de que a refutação da

descrição comum da akrasía depende fundamentalmente de que Sócrates não

tente simplesmente negar, mesmo de forma implícita, a influência dos desejos não

racionais na deliberação. Como vimos, a própria descrição da opinião dominante,

realizada inclusive pelo próprio filósofo em 352b-e, constata o poder exercido

pelos impulsos na ação humana. Não por acaso, alguns comentadores reconhecem

que a formulação do fenômeno da akrasía da opinião dominante apresentada no

Protágoras de Platão guarda similaridades com as falas das personagens Fedra e

Medéia das tragédias de Eurípides57. Particularmente, Charles Kahn (1996, p.

227-228) acredita que o diálogo estava naturalmente inserido no contexto de um

debate sobre o poder da deliberação humana em Atenas58. Nesse período, as

tragédias Hipólito e Medéia eram conhecidas pelo grande público e,

provavelmente, também eram de conhecimento do próprio Platão. Através dessas

tragédias, Eurípides mostrou a seu público como o poder das paixões humanas

pode destruir mesmo aquelas pessoas que deliberam bem. É importante notar o

tempo relativamente pequeno que separa a representação dessas obras ao público

grego para os padrões da época: enquanto Hipólito e Medéia foram apresentadas,

respectivamente, por volta de 428a.c. e 429a.c., o diálogo de Platão veio ao

público em 433a.c provavelmente (GUTHRIE, 1975, p.214). Dada a influência de

tragédias como essas no seio da cultura grega, poderíamos dizer que Platão tinha

plena consciência da visão corrente sobre o poder dos impulsos na ação humana.

57 É importante notar que essa relação de oposição entre o Sócrates platônico do Protágoras e as

personagens trágicas de Eurípides já foi corroborada também por Muniz (2011, p. 46). 58 Conforme sustenta Kahn (1996, p. 232): “um grande dramaturgo como Platão estava tão

agudamente consciente do papel exercido pelo forte sentimento e temperamento nas vidas dos

seres humanos ordinários quanto Eurípides estava.” (tradução nossa). No entanto, justamente por

reconhecer que Platão reconhece a influência dos desejos não racionais na maioria dos diálogos,

ele não assume que a refutação da akrasía seja uma tese defendida em própria pessoa por Sócrates.

De fato, Kahn (Ibidem, p.232) acredita que “o autor do Protágoras não endossa por si mesmo o

racionalismo onipotente da passagem em questão” (tradução nossa). Na sequência, sustentaremos

que a tese da refutação da akrasía não significa uma negação do poder dos desejos não racionais.

Em nossa hipótese, portanto, as teses de Sócrates não sustentam a ‘onipotência’ da razão humana

frente aos impulsos, como supõe o intérprete.

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Ainda que constatemos que as obras de Eurípides representam a maneira

como as paixões podem desorientar nossas ações, isso não prova que os discursos

das personagens Medéia e Fedra possam ser considerados descrições de casos de

akrasía, nem mesmo que as próprias personagens sofram de akrasía. Para isso,

deveremos fazer uma análise mais minuciosa dessas falas posteriormente. Nesse

momento, é plausível elaborarmos uma questão antes de prosseguirmos: será que

não podemos encontrar na cultura grega antiga, em Homero, Sófocles ou Ésquilo,

nenhuma representação do conflito psicológico que marca os casos de akrasía?

Os estudos sobre a cultura grega ‘Esboços sobre a Vontade na Tragédia

Grega’ e Os Gregos e o Irracional, realizados, respectivamente, por Jean Pierre-

Vernant (1990) e E. R. Dodds (1956), revelaram que os personagens de Homero,

Sófocles e Ésquilo não compreendem os conflitos psicológicos da mesma maneira

que nós, os modernos. Fundamentalmente, isso se deve ao fato de que os

personagens não compartilham das noções modernas de ‘livre-arbítrio’ ou

‘vontade’ ou mesmo de palavras correlatas (VERNANT, 1990, p. 26-34, p. 49-52;

DODDS, 1956, p. 20). Esses helenistas, cada um a seu modo, mostraram como a

cultura grega antiga compreendia a intervenção dos deuses sobre as ações

humanas e consideram os efeitos que isso pode provocar sobre a concepção grega

de ‘agente humano’. Diante desses esforços, Dodds (1956, p. 5-13) aponta que os

personagens homéricos normalmente atribuem ações extraordinárias, que fogem

aos padrões normais do caráter de uma pessoa, à influência de alguma divindade,

normalmente a partir do fenômeno designado por áte59. Dessa maneira, ações que

resultam de conflitos psicológicos dos personagens, por exemplo, são atribuídas a

causas exteriores, concretizadas em divindades que são invocadas para explicar o

que ocorreu em sua deliberação (Ibidem, p. 14-15). Com isso em mente,

acreditamos que seja inapropriado buscar, no mundo homérico, o conflito

59 A ate não é uma força que provém do próprio agente mas algo que vem ‘de fora’ da sua

deliberação e que o força a realizar uma ação que não condiz com seu caráter habitual, algo

extraordinário para sua condição. Segundo Dodds (1956, p. 5): “Sempre, ou quase sempre, ate é

um estado mental – um obscurecimento temporário ou confusão do estado normal de consciência.

Trata-se, de fato, de uma insanidade parcial ou temporária; e, como toda insanidade, é atribuída,

não a causas fisiológicas ou psicológicas, mas a uma atividade ‘daimônica’ externa” (tradução

nossa). Nessa perspectiva, os personagens homéricos se referem a ate quando reconhecem que

suas ações não podem ser atribuídas a causas diretamente perceptíveis. Eles julgam que são

orientadas pela interferência de uma divindade (daímon) ou qualquer tipo de potência sobrenatural.

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psicológico caracterizado pela akrasía, já que não dispomos nem mesmo de uma

distinção mais precisa entre desejo racional e desejos não racionais60.

De acordo com Dodds, observamos uma mudança significativa da cultura

homérica do século VIII para a cultura da Grécia clássica envolvida pela tragédia

do século V: ocorre uma passagem progressiva da ‘cultura da vergonha’ para uma

‘cultura da culpa’61. Enquanto a ‘cultura da vergonha’ representava a interferência

divina como uma força externa exortando os personagens a controlarem sua

impulsividade e agirem em conformidade com os valores morais, a cultura arcaica

dá lugar a uma representação mais severa das divindades associando-as às forças

punitivas. Conforme defende Dodds (1956, p. 35), “o ‘Olimpianismo moralizado’

tendeu a tornar-se uma religião do medo, em uma tendência que se refletiu sobre o

vocabulário religioso” (tradução nossa). Dessa maneira, podemos constatar que há

uma alteração semântica na palavra áte na medida em que ela serve para designar,

no novo contexto, uma interferência divina cujo propósito específico é forçar os

homens a realizar um tipo de erro (hamartía) em sua deliberação, levando-o à

ruína (Ibidem, p. 37-39). O contexto da cultura arcaica, então, favorece o

desenvolvimento de uma reflexão intensa nas tragédias de Ésquilo e Sófocles

sobre o papel da deliberação na vida humana. Tanto Dodds (1956, p. 37) quanto

Vernant (1990, p. 35-38) associam a problematização da deliberação humana nas

tragédias ao surgimento do direito dentro do ambiente da cidade e às discussões

jurídicas acerca da responsabilidade do agente nas ofensas cometidas. Apesar de

as tragédias serem fruto dessa controvérsia, elas emergem de um contexto ainda

bastante influenciado por elementos religiosos. Particularmente podemos observar

isso na explicação do ‘erro’ deliberativo oferecida pelos personagens trágicos.

Desse modo, observamos que os personagens alegam, frequentemente, que estão

agindo sob o efeito de uma poluição (miasma) gerada por algum membro de sua

linhagem ou estão sendo influenciados por uma divindade maléfica (alastor -

DODDS, 1956, p. 35-36: VERNANT, 1990, p. 35-36). A partir da solidificação

das instituições jurídicas gregas, como os tribunais, os gregos puderam abandonar

progressivamente as concepções de falta ou crime relativas ao parentesco e

60 De acordo com Irwin (1986, p. 182-187), Homero não tinha uma visão estritamente cognitiva

da deliberação humana mas reconhecia uma visão ‘indiferenciada’ (cognitiva e emocional) da ação

humana. A partir disso, o comentador confere duras críticas a Dodds que sustenta uma concepção

cognitivista do mundo homérico (1956, p 16-17, p. 184). Com efeito, Irwin constata que Dodds

apresenta argumentos contraditórios a respeito da tradição grega. 61 Cf. DODDS, 1956, cap. 2

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elaborar categorias que permitssem classificar os delitos em função da intenção do

agente. Como sustenta Vernant (1990, p. 50), as tragédias gregas se encontram no

limite dessa mudança social: “a culpabilidade trágica constitui-se assim num

constante confronto entre a antiga concepção religiosa da falta (...) e a concepção

nova, posta em ação no direito”. Segundo o autor, podemos encontrar sinais dessa

tensão expressa pelo drama vivido por personagens como Agamêmnon e

Clitemnestra nas tragédias de Ésquilo ou mesmo por Édipo no Édipo Rei de

Sófocles.

Apesar de os personagens executarem atos que coerentemente são

refletidos em suas próprias deliberações, as ações podem ser explicadas em um

plano ‘sobrenatural’, no qual o agente não é inteiramente responsável pelo que

ocorreu (Ibidem, p. 47). Assim, o interesse dessas tragédias pelo mecanismo da

deliberação racional permite nos depararmos com personagens agindo em função

de ponderações elaboradas sobre o que devem fazer em situações de difícil

escolha. Todavia, não podemos dizer que esses personagens realizam deliberações

inteiramente corretas sobre o que é melhor para eles mesmos. Por mais que esses

agentes sejam responsáveis por seus atos equivocados, sem dúvida os ‘erros’

resultam da desconsideração de certos fatores ou de algum equívoco que

compromete o sucesso de suas deliberações (DODDS, 1956, p. 39). Desse modo,

considerando que os personagens realizam deliberações sem total consciência do

que é melhor para si mesmos nas suas escolhas, não podemos reconhecer

claramente casos de akrasía nas tragédias de Ésquilo e Sófocles62. Embora

motivações irracionais sejam mencionadas pelos personagens das tragédias em

situações de conflito, a ausência de deliberações estritamente corretas a respeito

do que é melhor a se fazer não permite que tomemos esses casos como casos de

akrasía. Nessa perspectiva, por conta do contexto aproximado que envolve o

Protágoras de Platão, a Medéia e o Hipólito de Eurípides, talvez possamos

encontrar nas obras do tragediógrafo formulações mais precisas do fenômeno

designado por akrasía.

Na sequência, tentaremos demonstrar que as peças de Eurípides

testemunham o poder do conflito entre deliberação e desejos não racionais em

formulações que são correspondentes à descrição da akrasía da ‘opinião

62 Cf. IRWIN, 1989, p. 188-189.

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dominante’ apresentada no Protágoras. No entanto, precisamos antes

contextualizar a obra do tragediógrafo para sustentar nossa hipótese. Em

Euripides the Irrationalist, Dodds (1973, p. 78-79; p. 83) indicou que é plausível

concebermos a obra de Eurípides dentro de um contexto em que as doutrinas dos

sofistas floresciam na Atenas no século V. Segundo o autor, Eurípides sentiu a

necessidade de responder aos filósofos de sua época (pré-socráticos, sofistas e o

Sócrates histórico) que acreditavam no poder da razão para descobrir a verdade e

orientar a conduta humana. Ainda que não compartilhemos a visão do helenista

acerca da reação de Eurípides ao Sócrates histórico (de que nada sabemos

objetivamente) 63, acreditamos que o poder do conhecimento sobre a ação humana

podia ser coerentemente defendido pelos sofistas (DODDS, 1973, p. 78-83)64.

Nesse contexto, é plausível conjecturarmos que a crença na impotência do

conhecimento frente aos impulsos pela akrasía parece ser uma ideia oportuna para

que Eurípides coloque sob suspeita o próprio ensino dos sofistas. Como vimos, o

próprio Protágoras mostra que o personagem-título, principal representante dos

sofistas, não está disposto a reconhecer a descrição tradicional do fenômeno,

justamente por acreditar no poder do conhecimento. Ao negar o poder do

conhecimento para a deliberação, podemos admitir que o reconhecimento de um

fenômeno como a akrasía seria conveniente para os propósitos de Eurípides.

Embora alguns comentadores tenham afirmado que em Medéia e Hipólito

podemos testemunhar o reconhecimento da formulação tradicional da akrasía,

devemos avaliar diretamente onde e como o fenômeno é classificado pelas

personagens principais das tragédias de Eurípides.

As tragédias Medéia e Hipólito são representadas em um contexto

intelectual demasiadamente diferente do contexto da época de Ésquilo e Sófocles.

No entanto, observamos, mesmo no novo ambiente intelectual, a permanência de

resquícios do antigo vocabulário religioso utilizado pelos gregos para se referir à

maldição hereditária e à interferência divina como causas da ruína das ações

63 Cf. Charles Kahn (1996, p. 71- 100) Segundo o intérprete, não temos indicações absolutamente

claras do que o Sócrates histórico realmente tenha defendido durante sua vida. Embora os diálogos

platônicos realmente possam dar algumas pistas acerca da influência do mestre sobre Platão,

nenhuma delas é definitivamente conclusiva. Para Kahn (Ibidem, p. 88), no entanto, a obra

Apologia pode ser considerada ‘quase-documental’. 64 Cf. nota anterior. Embora rejeitemos a pretensão de que seria possível reconstruir a filosofia do

Sócrates histórico conforme acredita Dodds, é plausível supor que a descrença das personagens de

Eurípides no conhecimento humano devem ter sido particularmente controversas para o público

que tinha consciência da confiança dos sofistas no ensino da virtude.

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perpetradas pelas heroínas trágicas. Em Medéia, por exemplo, enquanto o Coro

sugere que a personagem-título está sob efeito de ‘poluição’ (1265), Jasão emite

recorrentemente o mesmo juízo acerca das ações da personagem (1370-1405), e

atribui a ruína causada por sua ex-esposa a um alástor (1335). De outro lado, em

Hipólito, Afrodite conta que Fedra abandona a terra de Cecrópidas por conta de

sua ‘poluição’ (34) e Teseu alega que a morte de Fedra é consequência de um

alástor (820). É curioso notar que tanto Medéia quanto Fedra acabam explicando

seus respectivos infortúnios em termos similares. Enquanto Medéia se refere à áte

(275-280), Fedra atribui sua “loucura” (manía) à mesma causa (240), além de

relembrar sua poluição (315-320). A presença dessas figuras religiosas na

linguagem das personagens poderia nos levar a crer que deveríamos entender suas

ações sob o símbolo da interferência divina. Em todo caso, por mais que esse fator

seja significativo no caso de Fedra, o mesmo não vale para Medéia. Nesse sentido,

a força simbólica do universo das divindades estava dando lugar ao poder das

paixões nas tragédias de Eurípides (DODDS, 1956, p. 186-187). Como enfatiza

Kitto (1990, p. 23, p. 35), teremos maior compreensão da tragédia que cerca

Medéia e Fedra, caso consideremos ambas como vítimas em vez de agentes

trágicos. Tanto Fedra como Medéia são simplesmente veículos ou instrumentos de

forças da natureza, cegas e irracionais, que provocam a ruína, não apenas delas

mesmas, mas dos outros personagens com quem elas estão envolvidas (Ibidem, p.

31-39). Assim, é importante ressaltar que as personagens não recorrem a termos

religiosos quando refletem e descrevem de que maneira o poder das paixões

prevalece sobre a razão (DODDS, 1973, p. 81-82). Nossa hipótese sobre a

presença de uma descrição tradicional da akrasía nessas tragédias, portanto, torna-

se cada vez mais plausível.

Em face às indicações levantadas, temos motivos mais convincentes para

avaliar se Eurípides realmente tinha algum interesse em reconhecer a descrição

tradicional da akrasía. Alguns comentadores têm sustentado que Medéia e Fedra

parecem realmente sustentar a formulação comum desse fenômeno nos termos da

‘opinião dominante’ do Protágoras (KAHN, 1996, p. 227-228; IRWIN, 1983, p.

189-193). Ainda que possamos encontrar descrições típicas da akrasía tanto em

Hipólito quanto em Medéia, classificar o caráter de Fedra ou Medéia em termos

de akrasía é algo bem diferente. Apesar de serem consideradas porta-vozes da

formulação da akrasía, não é de todo claro que as personagens realmente

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executam atos em situação de akrasía. A presença de um conflito psicológico

durante a deliberação não é condição suficiente para afirmar que o agente seja

vítima de akrasía. Como ressaltamos anteriormente, é necessário que a ação seja

realizada contra o que o agente julga ser melhor para si mesmo. Tendo isso em

vista, confrontaremos os discursos de Fedra e Medéia na sequência com o

objetivo de avaliarmos: (1) se os discursos têm correspondência com a descrição

da akrasía atribuída à opinião dominante; e (2) se podemos dizer que as

personagens estão sob efeito da akrasía enquanto realizam suas ações.

Analisemos primeiro o caso de Fedra em Hipólito. Após ter seu desejo

erótico (éros) por seu enteado Hipólito descoberto pela Ama, a personagem

trágica tece um longo discurso sobre a condição humana frente aos impulsos e sua

deliberação acerca do que é necessário fazer diante disso. Como sustenta Irwin em

Euripides and Socrates, as primeiras considerações de Fedra, acerca da condição

humana, correspondem às palavras da opinião dominante sobre o fenômeno da

akrasía (p. 189-190). De fato, a personagem se dirige ao Coro das Trezênias

nestas palavras65:

tenho refletido, na duração arrastada da noite, sobre aquilo que destrói a vida dos

mortais. E o que me parece é que não é devido à natureza de sua compreensão (ou

katà gnómes phýsin) que praticam o mal; muitos pensam muitíssimo bem (ésti

gàr tó g’eû phroneîn polloîsin). Mas devemos considerar o seguinte: nós

conhecemos e compreendemos o que é bom (tà chrést’ epistámestha kaì

gignòskomen), só que não o pomos em prática; uns, por inércia (argías); outros,

porque põem à frente do que é nobre outra coisa, um prazer qualquer (hoi

d’hedonèn prothéntes antì toû kaloû állen tin’). (375-380)

É importante notar que neste momento Fedra não elabora uma reflexão

apenas sobre si mesma, mas generaliza o fenômeno descrito para a humanidade.

De fato, a generalidade com que Fedra trata o conflito entre a deliberação e a ação

se aproxima muito dos termos com que Sócrates se refere à concepção da opinião

dominante sobre a akrasía no Protágoras. Para verificarmos as correspondências,

observemos com cuidado alguns aspectos: (1) a destruição dos homens não se

deve à natureza do que acreditam. Ao contrário de Fedra, podemos plausivelmente

alegar que os graves erros cometidos comumente pelas pessoas se devem à

65 A tradução é de Frederico Lourenço. Algumas modificações tiveram de ser realizadas na

tradução para tornar mais clara a correspondência de alguns termos dessa passagem e a descrição

da akrasía da opinião dominante no Protágoras. Para realizar as modificações, confrontei a

tradução portuguesa com a tradução de David Kovacs.

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desconsideração de fatores externos ou à ignorância. Nessa perspectiva,

alegaríamos que a posse de um saber prático seria suficiente para lhes auxiliar. A

personagem chama atenção para um tipo de ‘erro’ comum que não está ligado a

natureza da deliberação do agente; (2) muitas pessoas dotadas de bom senso não

conseguem praticar o que elas consideram ser melhor em uma determinada

situação. Assim, pouco importa se o agente possui uma ‘compreensão’

(gignóskontas) ou mesmo um ‘conhecimento’ (epistéme) do que é ‘nobre’ ou do

que ‘bom’, ele recorrentemente poderá fazer o contrário do que pensa; e (3) a

enumeração das causas que justificam esse tipo de ações implica que as

motivações são variadas. Como diz a personagem, alguns são levados por inércia

(argías), outros são vítimas do prazer (hedoné). A seguir, Fedra vai mais longe e

considera que existem prazeres maus (385-390).

Tendo isso em mente, podemos notar algumas semelhanças entre o

vocabulário utilizado por Sócrates para se referir às crenças sustentadas pela

opinião dominante de sua época no Protágoras e as palavras enunciadas aqui por

Fedra em Hipólito. Em primeiro lugar, Fedra descreve a experiência que acomete

o ser humano nos mesmos termos da concepção tradicional da akrasía, formulada

por Sócrates. Em ambas as obras, não há nenhuma menção de que os agentes não

realizam seus atos deliberadamente ou são forçados de alguma maneira. Conforme

supracitado, tanto Fedra quanto a opinião dominante consideram que a posse de

qualquer tipo de conhecimento prático do que seja melhor não assegura a

realização da ação correta. De fato, os impulsos são mais fortes do que a

deliberação racional. A referência específica de Fedra ao prazer como causa do

fenômeno é emblemática, já que vimos que Sócrates vai se deter especificamente

sobre um caso específico de akrasía, a ‘submissão ao prazer’, para realizar sua

controversa refutação da descrição tradicional. Das possíveis causas da akrasía

mencionadas no diálogo, no entanto, o ‘desejo sexual’ (éros) parece ter uma

importância peculiar para o caso da própria personagem Fedra. Na história da

personagem, ela é vítima de ter por Hipólito uma violenta paixão, que foi enviada

pela deusa Afrodite. Deveríamos considerar que o caso de Fedra é um caso de

akrasía nos termos tradicionais?

Não há dúvidas de que o início do discurso de Fedra é uma reflexão sobre

a própria condição da personagem enquanto envolvida na condição humana. Na

perspectiva de Fedra, assim como para a Ama e o Coro de mulheres, não há como

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resistir ao impulso sexual. De fato, devemos ter em mente que o ‘desejo sexual’

(éros) é uma manifestação divina do poder de Afrodite como revela a própria

deusa na cena de abertura (25-50). A personagem Ama reforça o poder da deusa

sobre os homens: “É impossível resistir a Cípris quando jorra num grande caudal”

(444). Devemos reconhecer que tanto Afrodite quanto Ártemis em Hipólito são

forças da natureza que controlam o destino dos personagens no contexto da

tragédia (KITTO, 1990, p. 35-36, DODDS, 1973, p. 87). Numa situação como

essa, esperaríamos que Fedra não conseguisse resistir ao poder da paixão sexual e

acabasse dizendo a Hipólito o que está sentindo, por mais que isso arruíne sua

vida. Em tal perspectiva, poderíamos concordar com Irwin (1983, p. 191) e

reconhecer Fedra como uma mulher sob akrasía, agindo contra o que considera

ser melhor por causa do desejo sexual. No entanto, não é isso que ocorre. Logo

após o início do discurso citado anteriormente, Fedra mostra qual foi sua atitude

com relação à paixão que lhe tomou o pensamento: primeiro, ela tentou se calar;

em seguida, tentou vencer o impulso por uma reflexão sensata (tò sophroneîn); ao

fim, por não conseguir resistir à força do desejo, seu último recurso será a morte

ou, em outras palavras, o suicídio (390-400). Na ocasião em que seu desejo é

revelado (a contragosto seu) para Hipólito, Fedra leva a cabo o que antes era

especulação: suicida-se e acusa seu enteado de estuprá-la, preservando assim sua

honra. Em inúmeras ocasiões, Fedra defende o valor de manter uma vida com

honra (timé) e boa fama (eukleés) até o fim (325-330; 485; 680-730). Portanto, a

deliberação racional da personagem se orienta para a preservação de sua honra em

seu interesse e ao longo de sua vida. Nesse caso, sua atitude é um reflexo de sua

deliberação e não é contrária a ela. Ainda que Fedra seja vítima de um conflito

psicológico, não podemos afirmar que ela está sob akrasía, pois nos falta

precisamente a ação contrária à deliberação. Teríamos uma ocasião para a akrasía

caso a personagem deliberadamente se rendesse ao seu desejo por Hipólito, o que

não verificamos em momento algum. Sendo assim, devemos nos voltar para a

tragédia Medéia em busca de antecedentes do fenômeno da akrasía em sua

formulação tradicional.

Em Medéia, a personagem-título é movida, por sua cólera (chólos), a

destruir a vida do ex-marido que a abandonou, juntamente aos seus filhos, para

ficar com a filha do rei de Corinto. A ameaça do exílio pelo rei apenas agrava o

infortúnio da ultrajada mulher e seus filhos. As intenções de Medéia com relação

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ao ex-marido, sua atual esposa e o rei são claramente perversas (370-385). A

morte deles é cuidadosamente arquitetada pela personagem. Em seu plano, a

melhor maneira de assassiná-los e sair impune será o uso de drogas. Apesar de a

Nutriz se preocupar com as intenções dela para com as crianças66 (90), não temos

nenhuma indicação inicial do que a mulher vingativa poderá vir a fazer com seus

filhos. A visita de Egeu, no entanto, não apenas fornece a possibilidade em um

refúgio em Atenas mas também revela qual o valor dos filhos para um homem.

Assim, Medéia afirma que pretende matar seus filhos após envenenar seus

inimigos (765-810). Com efeito, a história ratifica os desígnios da mulher

vingativa: o rei e sua filha são ambos envenenados pelos presentes trazidos pelos

filhos de Medéia; em seguida, a própria personagem mata suas crianças para

concluir sua vingança. Do modo como a tragédia foi contada agora, poderíamos

considerar que a mulher vingativa matou seus filhos sem hesitação, de maneira

perversa. Nessa perspectiva, não haveria nenhuma possibilidade de nos

depararmos com um caso de akrasía. Contudo, é necessário nos voltarmos para

alguns detalhes da tragédia. É emblemático que o Coro de mulheres tente impedir

Medéia de levar a cabo o assassinato de seus filhos e questione suas intenções

(810-860). Embora Medéia se mantenha aparentemente firme em suas resoluções,

ela começará a vacilar à medida que se põe a refletir melhor sobre o que está

prestes a fazer. Enquanto, maliciosamente, exorta Jasão a fazer com que os filhos

permaneçam na cidade e entreguem os presentes à sua atual esposa, a personagem

dá sinais de suas aflições por seu choro incontido (920-970). Quando o Preceptor

anuncia que as crianças estão no palácio, Medéia expressa com mais exatidão a

hesitação de sua deliberação e o conflito psicológico que a atormenta ao Coro.

Diante disso, o conflito relatado pela própria personagem parece conter

características de um caso de akrasía67:

A coragem some, ó mulheres, quando vi o olhar límpido das crianças. Eu não

poderia. Digo adeus às decisões anteriores (bouleúmata tà prósthen), levarei

meus filhos desta terra. Por que ferir o pai destes com estes males e obter eu

mesma duas vezes tantos males (autèn dìs tósa ktâsthai kaká)? Eu não mesmo!

Digo adeus às decisões. Contudo, que sofro? Quero causar riso deixando impunes

meus inimigos? (...) Nunca, ò animo (thymé), tu nunca farás isto! Deixa-os, ó

66 Eurípides apresenta de forma sutil no início da tragédia o aspecto selvagem da ira de Medéia

através das palavras de Nutriz: em duas ocasiões, ela menciona os verbos gregos taurouménen e

apatauroûtai que literalmente aludem a uma semelhança ou uma transformação em um touro

(90;185). 67 Seguimos a tradução de J. A. A. Torrano com pequenas alterações.

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mísera, poupa os filhos! (...) Ó pelas fúrias vingativas (alástoras) de Hades, nada

será de modo que eu permita ultrajar os meus filhos! É de todo necessário que

morram, assim, nós os massacraremos, que os criamos. É de todo um fato, e não

há escapatória. (...) Eu irei por misérrima via, eu os enviarei por via mais mísera

ainda. (...) Não posso contemplar-vos mais, mas sou vencida por males (nikômai

kakoîs). Sim, compreendo quais males farei (mantháno drân méllo kaká). O furor

é superior68 às minhas decisões (thymòs kreísson tôn emôn bouleumáton), ele

causa os maiores males aos mortais (megíston aítios kakôn brotoîs). (1040-1080)

A partir dessa passagem, verificamos a intensa flutuação de suas decisões

caso leve a cabo o assassinato de seus filhos por suas próprias mãos. A carga

dramática de sua deliberação é intensificada pela recorrente representação das

crianças em sua imaginação. Para avaliarmos melhor a expressão do conflito nas

palavras de Medéia, sugerimos a seguinte divisão de seu discurso69: (1) ao

constatar as esperanças nutridas pelo futuro de seus filhos, a personagem constata

que sua própria vida será miserável se os matar. Por conta desse aspecto, Medéia

abandona as ‘decisões anteriores’ (bouleúmata tà prósthen), isto é, o desígnio de

matar os filhos. A alteração de sua resolução resulta, efetivamente, de uma

constatação: em comparação às dores do pai, ela mesma sofrerá ‘duas vezes tantos

males’ (dìs tósa kaká) sendo mãe. Desse modo, Medéia compreende que realizar o

assassinato iria contra o seu próprio interesse; (2) a perspectiva de ser

ridicularizada por seus inimigos faz com que sua cólera pese em sua decisão. Uma

nova consideração entra em pauta: se ela não assassinar os filhos, seus inimigos

poderão ultrajá-los de alguma forma enquanto viverem. Não havendo outra

perspectiva para o futuro deles, o assassinato se impõe, então, como uma

necessidade para Medéia. É importante ressaltar que nada nessa nova ponderação

implica uma reavaliação de sua posição acerca do impacto do assassinato de seus

filhos em sua própria vida. Com efeito, a personagem volta a afirmar o quanto

será miserável caso prossiga nessa via (1065); e (3) ao fim de seu discurso,

Medéia constata que não pode evitar de cometer o ato ao qual ela mesma tem

repulsa. Ela afirma que compreende a desgraça que se abaterá sobre ela caso

cometa o assassinato. Efetivamente, não há como ‘vencer os males’, isto é, sua

consciência do que está prestes a fazer não é suficiente para que deixe de fazê-lo.

Ao fim, Medéia atribui a causa dos seus atos abomináveis ao próprio thýmos e

68 Com efeito, ‘superior’ aqui traduz kreísson que significa literalmente ‘mais forte’ ou ‘mais

poderoso’. 69 Devo a Irwin (1983, p. 192) a estrutura da divisão sugerida.

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estabelece que ele é ‘superior às minhas decisões’ (kreísson tôn emôn

bouleumáton). Neste momento, as ‘decisões’ que estão em oposição ao thýmos

são os desígnios de não matar suas crianças. Desse modo, assassinar suas crianças

comprovou ser uma escolha péssima para sua própria vida70. Por meio desse

discurso e, principalmente, de sua afirmação final, poderíamos dizer que Medéia

está prestes a executar um ato de akrasía.

As palavras finais do discurso da personagem levam a acreditar que

estamos diante de um caso de akrasía. Em sua análise da tragédia, Irwin (1983, p.

191-192) marca com precisão as diferentes ponderações de Medéia e estabelece,

de forma persuasiva, a condição de akrasía em que seu caráter se reflete. Como

ressalta o intérprete, por mais que efetivamente suas decisões estejam em

constante mudança no processo deliberativo, Medéia não chega a abandonar sua

resolução de que o assassinato de seus filhos lhe proporcionará os piores males.

Contudo, se a personagem cogita a necessidade de matá-los por conta da

perspectiva do ultraje de seus inimigos aos seus filhos, não poderíamos dizer que

ela talvez tenha abandonado a deliberação de não matar seus filhos? Se nos

comprometermos realmente em analisar a situação de Medéia, tendo em conta

toda sua deliberação e o assassinato em si mesmos, talvez possamos hesitar em

atribuir-lhe uma experiência de akrasía. Na perspectiva da personagem, no

entanto, o conflito interno se mantém até o fim do drama. Quando está prestes a

cometer o assassínio, ela expressa ainda o amor que sente por seus filhos e chora

pelos cadáveres deles depois que o ato foi executado (1235-1250). Dessa forma,

ainda que Medéia considere a necessidade do assassinato, ela constata

simultaneamente que a própria ação não resultou de sua deliberação (em relação

ao que é melhor para si mesma), mas da força de seu impulso pela ira (thýmos).

Como ressaltamos anteriormente, as ações perpetradas por Medéia em toda a

tragédia são motivadas por seu próprio desejo de vingança. Embora o plano de

assassinar Jasão e a rainha lhe proporcionem realmente uma satisfação, assassinar

seus filhos lhe causa repulsa em relação ao seu próprio interesse. É necessário

ressaltar que seu impulso vingativo de arruinar a vida de Jasão por completo não

70 Em particular, o assassinato dos seus próprios filhos não é sob nenhum parâmetro benéfico na

perspectiva de Medéia. Se levarmos em conta o conceito de incomensurabilidade delineado por

Martha Nussbaum (como veremos adiante), diríamos que o assassinato é um ato

incomensuravelmente maléfico para a personagem, isto é, não há qualquer parâmetro sob o qual

essa ação pode ser considerada boa em contraposição a qualquer outra perspectiva.

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torna o assassinato de seus filhos menos doloroso para a personagem. Diante do

desfecho dos atos de Medeia, Eurípides mostra que nem mesmo a deliberação

pode prevalecer sobre as paixões humanas. Nesse limite, o tragediógrafo utiliza

sua personagem principal para demonstrar o poder dos impulsos humanos através

de um caso de akrasía. Em Medéia, portanto, testemunhamos a representação da

akrasía pelo impulso do thýmos, tal como é contemplado na descrição da opinião

dominante no Protágoras.

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3.4

A proposta de reformulação da descrição tradicional do fenômeno no Protágoras.

Por meio das evidências apresentadas, procuramos sustentar que a

formulação da akrasía atribuída à opinião dominante da sociedade grega no

Protágoras reflete a existência de um fenômeno que pode ser reconhecido pelos

discursos das personagens trágicas da Medéia e do Hipólito de Eurípides. Com

base na cronologia aproximativa que dispomos dessas obras, acreditamos que seja

plausível dizer que Platão faz referência (implícita) ao mesmo fenômeno descrito

por Medéia e Fedra nas tragédias de Eurípides ao estabelecer a descrição

tradicional da akrasía através do personagem Sócrates no Protágoras. Sendo

assim, acreditamos que Platão apenas está expressando uma descrição da

experiência da akrasía que circulava em sua época desde a representação dessas

tragédias de Eurípides, de acordo com as evidências que possuímos. A partir dessa

descrição do fenômeno da akrasía, por outro lado, Eurípides reconheceu

provavelmente a possibilidade de mostrar a força dos impulsos humanos contra

aqueles que defendiam a soberania do conhecimento deliberativo, como os

sofistas71. Com Medéia e Fedra, Eurípides mostra que os impulsos humanos

podem colocar a perder mesmo as melhores deliberações e o conhecimento

prático mais seguro. Como a condição humana está submetida ao fenômeno da

akrasía, nenhum tipo de conhecimento pode assegurar a realização da melhor

alternativa de escolha. Tendo em conta a defesa do conhecimento por Sócrates no

Protágoras, acreditamos que podemos reconhecer que Platão tem especial

interesse na descrição da akrasía comumente aceita pela maioria. Como

observamos no capítulo 1, a descrição tradicional oferece uma forte objeção para a

justificação da superioridade do conhecimento em relação aos impulsos defendida

por Sócrates e Protágoras. Dessa maneira, parece que um dos objetivos centrais

dos interlocutores é reavaliar a experiência reconhecida como akrasía, a partir das

71 Cf. DODDS, 1956, cap. V; DODDS, 1973, p. 78-79. Todavia, temos de ressaltar que

discordamos da direta associção de Dodds entre a suposta filosofia do Sócrates histórico e as teses

defendidas pelo personagem homônimo no Protágoras.

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inconsistências das crenças da opinião dominante utilizadas para sustentar a

descrição tradicional da akrasía.

Como mostramos anteriormente, a descrição tradicional da akrasía, no

Protágoras, constitui por si mesma um problema em sua formulação. De acordo

com a concepção corrente da sociedade grega, não há nenhuma contradição entre

agir de bom grado e, ao mesmo tempo, ser submetido pelos impulsos. Em termos

filosóficos, porém, essa descrição oferece grandes problemas para se determinar a

responsabilidade do agente em relação à sua própria ação na akrasía (IRWIN,

1983, p. 196-197). Ao encarar assim o problema da akrasía no Protágoras, Platão

não se compromete a tratar dos impulsos humanos através dos elementos divinos

que aparecem no Hipólito ou, em menor grau, na Medéia de Eurípides.

Na primeira discussão filosófica acerca do problema da akrasía, Platão se

esforça para compreender o fenômeno a partir de uma visão positiva da

deliberação e das paixões humanas, com um interesse especial sobre as

consequências da formulação tradicional sobre a ética e o processo deliberativo

em geral. Em que pesem algumas diferenças entre as obras de Eurípides e o

diálogo de Platão, procuramos mostrar que a concepção habitual do fenômeno

apresentada pelos autores é essencialmente a mesma. No entanto, a atitude do

tragediógrafo é completamente oposta à do filósofo: enquanto Eurípides se

preocupa em mostrar que a razão humana é inferior aos impulsos humanos através

do fenômeno da akrasía, Platão utiliza o personagem Sócrates para conduzir um

diálogo com o propósito de oferecer uma descrição alternativa dessa experiência,

não só pelas dificuldades que a formulação tradicional traz para a ética, mas

também para preservar o poder do conhecimento sobre a ação humana.

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4 O argumento hedonista e a redução ao absurdo da descrição tradicional da akrasía 4.1 A relação entre a opinião dominante e Protágoras: as teses acerca do prazer e a descrição tradicional da akrasía

Durante a passagem 353c-356a, Sócrates vai personificar a ‘opinião

dominante’ e empreender uma discussão com essa personagem para demonstrar

que a descrição tradicional da akrasía é absurda. De fato, o exame das crenças da

‘opinião dominante’ terá como objeto um caso específico de akrasía, a

‘submissão ao prazer’ (hedonês hettâstai), o que implicará também uma análise

sobre o que é o próprio ‘prazer’ na concepção da personagem. Na discussão, o

filósofo realizará uma reavaliação das crenças sustentadas pela maioria, a fim de

reformular a descrição comum do fenômeno nos termos em que ela é apresentada.

Para fazer isso, Sócrates conta com dois argumentos interdependentes: 1) uma

reavaliação das concepções correntes de ‘prazer’ (hedoné) e ‘dor’ (aniará) com o

objetivo de esclarecer o que exatamente significa ser ‘submetido pelo prazer’

(353c-354e). No curso dessa investigação, Sócrates chegará à conclusão de que a

opinião dominante está comprometida com um tipo de hedonismo, ao contrário do

que se acreditava anteriormente; e 2) a redução ao absurdo da descrição

tradicional através dos princípios hedonistas assumidos anteriormente (354e-

356a). A redução ao absurdo da descrição do fenômeno apresentada pela opinião

dominante depende, fundamentalmente, dos pressupostos hedonistas da discussão

precedente. É preciso verificar, no entanto, que o exame das crenças da ‘opinião

dominante’ se origina da relação velada entre essa personagem e o sofista

Protágoras.

Como mostramos anteriormente, Protágoras já havia sustentado teses que

podem ser indiretamente associadas às crenças correntes da sociedade ateniense

durante a discussão. A resistência do sofista aos argumentos apresentados por

Sócrates se baseia nesse comprometimento implícito com a opinião dominante.

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Conforme indica Irwin, Protágoras não consegue perceber sua vinculação às

crenças da maioria:

“por mais que Protágoras possa se orgulhar de ter progredido em relação às

crenças comuns (...), ele frequentemente depende do senso comum não

examinado. Como ele não examinou sua própria posição, ele acabou não vendo

que suas objeções ao senso comum entram em conflito com suas próprias visões.”

(1995, p. 94, tradução nossa)

Na discussão sobre o hedonismo e a akrasía, no entanto, Sócrates exige

um posicionamento de Protágoras em relação às posições defendidas pela opinião

dominante na medida em que o filósofo reconhece que há uma correspondência

entre as teses do sofista e as crenças tradicionais (351b-e). Para fazer com que o

sofista encare o reflexo de seu próprio pensamento, Sócrates chama a atenção para

duas teses do sofista, fundamentalmente vinculadas à opinião dominante grega:

(1) a virtude pode ser composta de elementos não cognitivos. Na passagem 351b,

o sofista alega que a coragem (andreía) deve provir de uma natureza apropriada.

Durante a análise das crenças da maioria, Sócrates apresentará a descrição

tradicional da akrasía para, indiretamente, colocar em xeque a concepção não

cognitiva da virtude sustentada por Protágoras72; e (2) existem algumas ‘coisas

prazerosas ruins’ (hedéa kaká) e algumas ‘coisas dolorosas boas’ (aniará agathà

– 351c). De fato, esta proposição deriva da discordância do sofista com as

premissas hedonistas elaboradas por Sócrates. Como o sofista não apresenta

nenhuma discordância significativa à correspondência de sua própria afirmação à

posição da maioria pelo filósofo (351c-d), Sócrates encontrará o caminho livre

para examinar a extensão da relação velada das convicções do sofista com as

crenças tradicionais. Nessa perspectiva, acreditamos que a relação existente entre

as teses supracitadas poderá nos esclarecer sobre a motivação central de Sócrates

para empreender um diálogo com um personagem personificado a fim de

examinar teses com as quais o sofista está comprometido.

A complexa estratégia de Sócrates, no curso do diálogo, exige que

Protágoras seja, virtualmente, substituído pela opinião dominante. Mas por que o

filósofo deve dispensar seu próprio interlocutor, quando uma arguição direta

72 É interessante notar que Protágoras em momento algum percebe que a crença tradicional na

akrasía não é incompatível com a natureza da virtude sustentada por ele mesmo. Como vimos, ele

concorda enfaticamente com Sócrates a respeito do poder do conhecimento para a deliberação

humana (352d).

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poderia preservar a possibilidade de obter convicções sinceras de seu interlocutor,

ao passo que um diálogo indireto não garantiria a mesma vantagem? Para

compreendermos isso, é necessário termos em mente a necessidade frequente de

Sócrates em exortar Protágoras a não estender seus discursos demasiadamente,

mas manter a discussão no nível do diálogo com discursos breves (brachéa –

334d-335c). É importante notar que na primeira ocasião em que Protágoras

expressa hesitação em concordar com um argumento em razão das crenças da

opinião dominante (tôn pollôn) Sócrates demonstra indiferença com relação a

quem responderá às suas questões:

“Para mim é a mesma coisa, respondi, uma vez que sejas tu quem respondes, quer

penses desse modo (dokeî soî taûta), quer não (eìte mé). Meu principal objetivo é

examinar o argumento (tón lógon eksetádzo), muito embora possa acontecer que

tanto eu, que pergunto, como tu, que me respondes, acabemos por ser examinados

(eksetádzesthai).” (333c)

Como indica Sócrates, seu objetivo não é exatamente analisar as crenças

de seu interlocutor, mas, efetivamente, os argumentos que sustentam suas teses.

Nessa medida, não importa necessariamente se seu interlocutor acredita ou não no

argumento, desde que os dois interlocutores se disponham a empreender o diálogo

e mantenham o interesse em examiná-lo nas suas implicações, o objetivo será

alcançado. Dessa forma, é possível que os próprios interlocutores reconheçam,

mais profundamente, as crenças com as quais estavam comprometidos ou

verifiquem a consistência de suas teses em função dos resultados da investigação.

Com base nessas indicações do método de diálogo, Irwin (1995, p. 92) sugere que

o interesse de Sócrates não se limita ao que Protágoras aceita em relação ao poder

do conhecimento. Desse modo, reconhecemos que o propósito do filósofo é

examinar os argumentos compartilhados entre Protágoras e a opinião dominante.

Na medida em que Sócrates consegue o auxílio do sofista na tarefa de examinar as

crenças comuns, o filósofo está reiterando sua intenção primordial que é

simplesmente analisar as implicações das teses do próprio sofista. Se Protágoras

não consegue perceber que o que está em jogo são suas próprias crenças, isso se

deve por causa de sua insistência em conceber a discussão como um tipo de

disputa verbal e sua falha em compreender o método socrático de argumentação

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(IRWIN, 1995, p. 92-93)73. De qualquer modo, o acordo entre o sofista e o

filósofo levará, inevitavelmente, à constatação de que as crenças tradicionais

sobre o prazer e o conhecimento são implausíveis.

Durante a discussão sobre o prazer e a akrasía, Sócrates tentará indicar ao

sofista que o exame das crenças da opinião dominante corresponde a um exame

das próprias convicções do sofista. Como é revelado na analogia médica em 352a-

b, o filósofo chama a atenção para a conexão existente entre as convicções do

sofista acerca do conhecimento e do prazer.

Já tendo visto, pelo que disseste (hos phès), qual é a tua maneira de pensar a

respeito do bem e do prazer (écheis pròs tò agathòn kaì to hedú), precisarei

perguntar-te: ‘Vamos, Protágoras, revele teu pensamento (tês dianoías

apokálupson): o que entendes por conhecimento (pôs écheis pròs epistémen)? É o

teu parecer (soî dokeî) como o da maioria dos homens (hósper toîs polloîs

anthrópois) ou [tem] algum outro [parecer] (è àllos)? (352a-b)

A partir de uma analogia com um exame médico, Sócrates fornece claras

indicações sobre seu objetivo, ao propor uma investigação das teses do sofista. De

acordo com Taylor, podemos dizer que a primeira análise do bem e do prazer

corresponde ao exame das mãos e da face, enquanto a investigação acerca do

conhecimento corresponderia ao exame completo do corpo (TAYLOR, 1991, p.

171)74. O primeiro exame é subsidiário ao segundo e ambos estão estreitamente

vinculados à investigação das crenças da opinião dominante. Na medida em que

Protágoras discorda da crença da maioria a respeito da akrasía, e da submissão do

conhecimento, ele se alia a Sócrates na tarefa de realizar um exame da posição da

opinião dominante a respeito do prazer, com a qual o próprio sofista parece estar

implicitamente comprometido (352c-d). Além disso, Sócrates ressalta que a

discussão com a maioria também é motivada pela elucidação da relação entre a

coragem e a virtude (353b). Como vimos, o sofista havia discordado de Sócrates,

alegando que a coragem não tem nenhuma relação com as outras virtudes.

A tese da natureza da coragem apresentada pelo sofista é o propulsor da

investigação a respeito de sua posição no que se refere ao prazer. Como já

73 Como ressalta Irwin (1995, p. 93), “o equívoco de Protágoras de não entender os métodos e os

objetivos de Sócrates o previnem de entender as implicações de suas próprias afirmações sobre a

virtude e sobre ele mesmo como professor da virtude. (...) Sócrates pode argumentar que se

Protágoras realmente afirma ensinar virtude, e não simplesmente ensinar uma habilidade que pode

ser bem ou mal utilizada, então ele tem de argumentar com a visão de Sócrates de que o

conhecimento é suficiente para a virtude.” (tradução nossa) 74 Cf. ZEYL, 1980, p. 253, p. 265

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havíamos mostrado no capítulo 1, a crença de Protágoras na existência de

elementos não cognitivos nas virtudes tem raízes nas crenças comuns da

sociedade ateniense acerca do ensino da virtude. Com efeito, a concepção não

cognitiva da coragem é influenciada pelas posições sustentadas anteriormente,

com base nas crenças tradicionais (327c, WEISS, 2006, p. 47). A resistência em

reconhecer a consistência dos argumentos de Sócrates sobre a forte relação

existente entre as virtudes e a sabedoria envolve a crença na natureza da coragem.

Embora Protágoras não apresente qualquer consciência das implicações de suas

teses para seu próprio ofício como professor da virtude, Sócrates tenta investigar

se o sofista estaria disposto a concordar com a opinião dominante com relação à

crença comum na submissão do conhecimento pelo fenômeno da akrasía (352b-

c). Assim, podemos concluir que o filósofo, efetivamente, suspeita que a

concepção da coragem sustentada por seu interlocutor o comprometeria com a

crença tradicional na akrasía. Como o sofista assume que o conhecimento deve

prevalecer sob os impulsos, provavelmente em função de seu ofício (352c), é

notável que sua defesa do conhecimento, efetivamente, entra em conflito com sua

posição a respeito da coragem (ZEYL, 1980, p. 267; TAYLOR, 1991, p. 172-

173). Contudo, as inconsistências entre suas teses serão explicitamente indicadas

na medida em que Sócrates identificar a relação intrínseca entre as crenças de

Protágoras e as crenças da opinião dominante a respeito do prazer.

Como salientamos anteriormente, a análise da descrição da akrasía

oferecida pela opinião dominante está fundamentalmente amparada na

constatação dos pressupostos hedonistas dessa personagem. Dessa forma,

devemos analisar primeiramente o argumento hedonista apresentado por Sócrates,

antes de considerar a redução ao absurdo da crença tradicional na akrasía. Para

iniciarmos uma análise do argumento hedonista, precisamos primeiramente

compreender de que maneira a discussão com a opinião dominante preserva uma

continuidade com as divergências entre Sócrates e Protágoras verificadas na

discussão anterior.

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4.2 O argumento hedonista

O desenvolvimento do argumento hedonista no exame das crenças da

opinião dominante depende, fundamentalmente, dos pressupostos hedonistas

elaborados por Sócrates em sua discussão com Protágoras. Para efeito de

esclarecimento, reconhecemos que o argumento hedonista compreende dois

estágios: (1) uma discussão inicial entre Sócrates e Protágoras que tem o propósito

de elucidar a posição do sofista em relação ao prazer (351b-e). Nessa discussão, o

filósofo apresenta as premissas hedonistas que serão elaboradas posteriormente; e

(2) o desenvolvimento do argumento hedonista a partir das crenças da opinião

dominante (353c-354d). Como essa investigação envolve crenças explicitamente

compartilhadas com o sofista, é natural que o próprio Protágoras deva se

comprometer a assumir o hedonismo. Na medida em que o argumento do segundo

estágio precisa dos pressupostos elaborados pelo primeiro, nos concentramos

inicialmente sobre a discussão inicial entre Sócrates e Protágoras. Com efeito,

essa investigação nos ajudará a compreender de que maneira as divergências entre

Sócrates e Protágoras serão fundamentais para o exame da opinião dominante.

Na sequência original do diálogo, a tese da natureza não cognitiva da

virtude leva Sócrates a mudar os termos do debate, para investigar as posições do

sofista em relação ao prazer. Tendo em mente que Sócrates tem o propósito de

analisar as teses do sofista sobre a relação entre bem e prazer, podemos

vislumbrar o caminho para onde a argumentação do filósofo se dirige. Em 351b-c,

o filósofo apresenta 3 premissas que recebem o assentimento firme de Protágoras:

(1) Socr. - Admites, Protágoras, que alguns homens vivem bem (eu dzeîn), e

outros mal (toús kakôs)? Prot. – Respondeu que sim. (2) Sócr. - E achas que vive

bem o homem se vive em dor (anióménos) e sofrimento (odunómenos)? Prot. -

Não, ele disse. (3) Sócr. – E se ele viver com prazer (hedéos bioùs) até o fim, não

te pareceria que teve uma vida boa? Prot. – Eu diria que [sim], (4) disse. Sócr. –

Então viver prazerosamente é bom (agathón) e viver de maneira dolorosa é mau

(kakôn)? (351b-c)75

75 É importante notar a presença dos verbos na segunda pessoa do singular (légeis, kaleîs)

fortalecendo a ideia de que as perguntas são dirigidas para esclarecer as posições de Protágoras.

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Em uma interrupção abrupta do argumento anterior, Sócrates revela a

Protágoras que a admissão das três premissas iniciais o levariam a assumir a

quarta premissa por necessidade lógica. Como ressaltou Zeyl (1980, p. 252-253),

as três primeiras premissas já constituem, por si mesmas, um tipo de hedonismo.

O argumento estabelece a necessidade de se ter algum tipo de critério para

classificar uma vida como boa ou ruim. Enquanto a premissa 2 afirma que a

condição suficiente para determinar se uma vida e boa é ter prazeres durante a

maior parte da vida, a premissa 3, por outro lado, assume que a condição

suficiente para classificar uma vida como ruim é passar a maior parte da vida

tendo dores76. Ao se comprometer com as três primeiras premissas expostas por

Sócrates, o sofista assume crenças sobre a eudaimonia difundidas pela própria

cultura grega, como podemos reconhecer pela relação semântica entre eudaimonia

e a expressão ‘eu dzeîn’ presente no texto (Ibidem, p. 252, p. 258; TAYLOR,

1991, p. 164). Desse modo, Sócrates faz com que Protágoras admita uma teoria

hedonista eudaimônica, segundo a qual o prazer é um critério suficiente para

determinar uma vida como boa ou má. Na sequência, no entanto, o sofista impõe

uma restrição à conclusão expressa na premissa 4 em função de crenças

compartilhadas com a opinião dominante ateniense.

Ao discordar de Sócrates, Protágoras sustenta que só podemos determinar

se uma vida é realmente boa caso obtenhamos prazer em ‘coisas nobres’ (toîs

kaloîs – 351c). Como observamos anteriormente, o filósofo mostra que essa

proposição é correspondente à crença da opinião dominante de que existem

‘coisas prazerosas ruins e coisas dolorosas boas’ (hedéa kaká kaì aniarà agathà)

(351c-d). Durante a discussão, Sócrates insiste que o sofista assuma uma tese

hedonista: “estou perguntando se o prazer em si não é bom (hedonèn autèn eî ouk

agathón estin).” (351e). De fato, como salienta Zeyl (1980, p. 254), a intenção do

filósofo, com isso, é fazer com que o sofista seja consistente em suas afirmações e

76 Taylor (1991, p. 164) não acredita que as proposições 1,2 e 3 se comprometam com o

hedonismo em estrito senso. Apesar de conceder que o conjunto 1 a 3 possibilite a avaliação de

uma vida por um critério independente do prazer, este critério ‘não permite uma vida prazerosa ser

julgada pior que uma vida dolorosa por qualquer outro critério’. Como é muito difícil imaginar

uma vida sem prazeres ou dores, poderíamos supor que uma vida em que os prazeres e dores sejam

equivalentes pode ser considerada boa por outra razão. No entanto, 1, 2 e 3 não admitem essa

possibilidade (ZEYL, 1980, p. 265). De outro lado, 1, 2 e 3 são apresentadas por Sócrates e

admitidas por Protágoras sem qualquer questionamento. Além de Zeyl, Weiss (2006, p. 48-49) e

Annas (1999, p. 169) também reconhecem que essas premissas já constituem um tipo de

hedonismo.

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reconheça a mesma tese hedonista com a qual ele se comprometera ao concordar

com as três premissas anteriores77. No entanto, Protágoras não percebe que ele

mesmo deveria defender esta tese, em função de suas admissões iniciais, e, ainda

por cima, rejeita o hedonismo como se fosse uma proposta do próprio filósofo

(ANNAS, p. 169, 351d-e)78. Embora reconheça que não está convencido da tese

hedonista apresentada por Sócrates, ele concorda em analisá-la conjuntamente.

Ora, mas por qual razão Sócrates quis esclarecer a posição de Protágoras em

relação ao prazer? E por que ele tenta convencê-lo a aceitar uma tese hedonista?

Para compreender o que está em jogo nessa discussão inicial, devemos ter em

mente, novamente, a vinculação do sofista às crenças tradicionais da sociedade

ateniense sob as quais se baseiam os obstáculos que limitam a adesão do

personagem aos argumentos apresentados por Sócrates.

Com base nas conclusões estabelecidas por nossa análise, podemos

justificar um desvio da argumentação principal da natureza das virtudes para o

hedonismo, em ao menos duas razões. Em primeiro lugar, como já havíamos

mencionado no capítulo 1, Sócrates tem em mente a tese da relatividade do ‘bem’,

apresentada anteriormente pelo sofista (334a-c). Como vimos, Protágoras

sustentou que existem coisas boas que não são vantajosas para o homem em seu

argumento anterior (334a). À medida que a análise posterior reavalia as crenças

do sofista acerca das ‘coisas boas’, devemos supor que Sócrates deseja esclarecer

a posição anterior do sofista. Durante a passagem 351b-e, o filósofo demonstra

através das três premissas iniciais que é logicamente necessário assumir a

identidade entre ‘bem’ e ‘prazer’. No capítulo 1, constatamos que unidade entre

‘bem’ e ‘vantajoso’ é correspondente ao argumento da unidade entre ‘bem’ e

‘prazer’. Além disso, esse argumento favorece a unidade entre conhecimento e

virtude e, consequentemente, assegura o ensino das virtudes defendido por

77 É necessário salientar, no entanto, que não acreditamos na perspectiva anti-hedonista do

comentador. Segundo Zeyl (1980, p. 254-260), Sócrates está tentando ‘tomar vantagem’ da teoria

hedonista para fazer com que Protágoras reconheça a unidade entre conhecimento e virtude. Nós

realmente concordamos que Sócrates vê no hedonismo uma forma de sustentar a unidade entre

conhecimento e virtude. Contudo, acreditamos que para Sócrates a única forma de garantir o

ensino das virtudes defendido por Protágoras é admitir a unidade entre o conhecimento e a virtude.

Como o próprio sofista insiste em não reconhecer a consistência desse argumento, o filósofo

recorre à uma tese hedonista por supor que um tipo de hedonismo é compatível com o argumento

da unidade entre conhecimento e virtude. 78 Provavelmente, sua forma de considerar a teoria como uma proposta do filósofo reflete sua

dificuldade em compreender os métodos de argumentação de Sócrates além de sua insistência em

conceber o diálogo como uma forma de disputa verbal.

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Protágoras. No entanto, o sofista oferece uma resistência ao hedonismo e assume

uma tese contrária, impondo uma restrição à identidade entre ‘prazer’ e ‘bem’,

dessa vez em associação explícita à opinião dominante. Como essa posição é

efetivamente incompatível com a unidade entre virtude e conhecimento,

acreditamos que Sócrates julga necessário eliminar definitivamente a resistência

do sofista a admitir a unidade das virtudes na análise das crenças tradicionais que

fundamentam sua posição. Conforme Sócrates reconhece a consistência do

argumento hedonista nas três premissas iniciais, devemos suspeitar que ele admite

que as crenças tradicionais são essencialmente hedonistas. Desse modo,

conseguimos perceber que há uma relação intrínseca entre a tese da unidade entre

conhecimento e virtude e a tese hedonista. Em segundo lugar, Protágoras mostra

uma resistência recorrente em relação aos argumentos de Sócrates em favor da

relação entre a sabedoria e as outras virtudes. Considerando que a resistência do

sofista se funda em crenças compartilhadas com a opinião dominante, Protágoras

estaria comprometido a assumir a posição de que o conhecimento não é suficiente

para garantir a ação virtuosa. Dessa maneira, a implicação de que a ação virtuosa

não pode ser assegurada pelo ensino coloca em xeque o propósito da própria

profissão do sofista79. Assim, a teoria hedonista eudaimônica esboçada na

sequência por Sócrates tem o objetivo de fazer com que o interlocutor reconheça

que uma vida boa predominantemente prazerosa só pode ser garantida através do

conhecimento. Como veremos, o percurso do argumento de Sócrates vai

comprovar a necessidade de um tipo de conhecimento deliberativo, através da

constatação de que todos os homens realizam cálculos hedonistas em suas

deliberações. À medida que Protágoras apresenta, novamente, resistência à

unidade entre as virtudes e o conhecimento por conta de suas crenças tradicionais,

Sócrates julga necessário questionar, diretamente, a opinião dominante para

demonstrar a Protágoras que suas próprias crenças contrárias ao hedonismo são

inconsistentes.

Nesse ínterim, Sócrates insiste recorrentemente em uma tese hedonista

para fazer com que Protágoras defenda o que deveria defender desde o princípio

da discussão: a natureza cognitiva da virtude. Como o sofista recai sobre a

concepção convencional em ‘prazeres ruins e dores boas’, Sócrates o coloca em

79 Cf. 352d

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um dilema: aceitar esta posição e reconhecer ao mesmo tempo a descrição comum

da experiência da akrasía como ‘submissão ao prazer’ (hedonês hettâsthai) ou

examinar as crenças aparentemente anti-hedonistas da opinião dominante e buscar

uma descrição alternativa para o fenômeno (351e- 353a). A pretexto de defender a

superioridade do conhecimento, Protágoras se unirá a Sócrates na tarefa de

examinar a concepção do prazer e a descrição da akrasía oferecidas pela opinião

dominante (353b). Ao exortar seu interlocutor a se unir a ele, Sócrates o

compromete a realizar uma investigação acerca das últimas consequências de suas

teses e a eliminar assim os obstáculos que impediam o desenvolvimento da

discussão anterior.

O diálogo realizado entre Sócrates e a opinião dominante é derivado do

acordo firmado entre o filósofo e o sofista. Sendo assim, Protágoras deixa o

filósofo tomar as rédeas do exame da opinião dominante, enquanto ele próprio

ficará em segundo plano para verificar a consistência dos argumentos

apresentados. Durante o diálogo, Sócrates vai mostrar que os conceitos de ‘prazer’

e ‘dor’ da opinião dominante estão equivocados (353c-354e). Com o exame dessa

personagem, o filósofo não apenas vai demonstrar que as crenças em ‘prazeres

maus’ e ‘dores boas’ são equivocadas, mas também que estão fundadas sob

pressupostos hedonistas.

Para empreender sua investigação, Sócrates vai considerar, primeiramente,

as crenças da maioria em relação a ‘prazeres maus’ e, logo em seguida, suas

convicções sobre ‘dores boas’. Em primeiro lugar, o filósofo demonstra especial

interesse sob um caso específico de akrasía com base nos juízos da opinião

dominante: a ‘submissão ao prazer’ (353c). Conforme a maioria acredita que as

coisas prazerosas más são as causas pelas quais as pessoas agem contra sua

deliberação, precisamos determinar o que são exatamente essas coisas para o juízo

comum. Ora, se esses ‘prazeres maus’ (hedéa kaká) se referem à coisas como

‘bebida’ (póton), ‘comida’ (síton) e ‘ sexo’ (aphrodisíon)80, então a qualificação

de ‘maus’ deriva não de seus prazeres intrínsecos, mas em função das ‘doenças’

(nósous) e da ‘miséria’ (penía) que podem ocasionar (353c-d). Desse modo,

80 Cf. LIDDEL-SCOTT, 1996. Literalmente ‘aphrodisíon’ se refere às ‘coisas sexuais’. De fato,

encontramos alguma divergência entre as propostas de tradução do termo grego. Embora Carlos

Alberto Nunes sugira a tradução ‘amor’, acreditamos que ela não contempla o sentido do termo em

grego. Nas traduções de língua inglesa se sugere o termo ‘sexo’ que julgamos ser mais apropriado

para o que está sendo designado pela palavra em grego.

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devemos supor que a maioria leva em conta apenas os efeitos resultantes dessas

coisas em vez de seus ‘prazeres imediatos’ (hedonês parachrêma) em sua

estimativa (353e). Seguindo os termos da própria opinião dominante, Sócrates

demonstra que o critério utilizado para fundamentar a classificação de certos

prazeres por ‘maus’ prova, na realidade, que tais prazeres são simplesmente dores.

Com isso, Sócrates propõe uma nova classificação dos prazeres a fim de depurar

os juízos da maioria:

“ao próprio prazer (autò tò chaíren) dizeis ser mau (kakòn), quando vos priva

(aposterêi) de maiores prazeres do que nele se contém (autò échei), ou quando

ocasiona (paraskeuázei) maiores dores do que seus próprios prazeres (ên autô

hedonôn).” (354c)

Nessa perspectiva, Sócrates estabelece que as palavras ‘dor’ e ‘mau’ são

apenas nomes diferentes para as mesmas coisas. É possível perceber que o

filósofo subentende que a crença errônea da opinião dominante em ‘prazeres

maus’ está efetivamente fundada sob um critério de comparação entre prazeres e

dores imediatos e prazeres e dores futuros. A crença comum em prazeres ruins se

realiza por conta de um cálculo quantitativo pelo qual se verifica que as dores, a

longo prazo, serão maiores que os prazeres imediatos. Como as coisas más

efetivamente o são em função de prazeres menores e dores maiores, devemos

reconhecer que sua avaliação não tem em vista os prazeres imediatos, mas as

dores subsequentes. Em face aos próprios pressupostos hedonistas dessas crenças,

a opinião dominante está inclinada a assumir que ‘mau’ (kakon) não é nada mais

que ‘dor’ (aniara). Na sequência, Sócrates realiza uma análise semelhante acerca

da crença em dores boas.

Dando prosseguimento a seu exame, Sócrates investiga alguns exemplos

de coisas dolorosas consideradas boas pela opinião dominante. Tanto nesse caso

como no anterior, o juízo do homem comum é fundando sob os mesmos

pressupostos. A opinião dominante acredita que ‘exercícios físicos’ (gymnásia),

‘expedições militares’ (strateías) e ‘tratamentos médicos’ (tôn iatrôn therapeías)

são exemplos de coisas boas e dolorosas ao mesmo tempo (354a). Segundo

Sócrates, seu interlocutor tem que admitir que a razão dessas coisas serem boas

não é por causa das dores que resultam do momento, mas em função de seus

efeitos posteriores: ‘saúde’ (hugíeaí), ‘bem-estar físico’ (euexíai tôn somatôn),

‘salvação da cidade’ (tôn póleon sotería), ‘domínio sobre os outros’ (allôn archaì)

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e ‘riqueza’ (ploûtoi – 354b)81. Assim, a opinião dominante está inclinada a

reconhecer que dores só podem ser boas se resultarem em prazeres. Como o

homem comum se baseia nos efeitos prazerosos dessas coisas para classificá-las

como boas, é necessário que as dores sejam efetivamente prazeres. A partir disso,

Sócrates estabelece uma nova consideração da dor ao constatar que os juízos

comuns são inadequados:

“Não dizeis que sofrer dor é um bem (tò lupeîsthai agathòn), quando nos livra

(apallátte) de dores maiores do que as que lhe são inerentes (tôn en autôn ousôn),

ou quando nos proporciona (paraskeuádze) prazeres maiores do que essas dores

(tôn lupôn)?” (354d)

Como na última passagem, observamos que Sócrates novamente chama

atenção para um pressuposto quantitativo implícito no juízo do homem comum.

Para determinar o ‘bem’ das dores, a opinião dominante tem em vista uma

comparação entre a quantidade das dores sofridas no momento e a estimativa dos

prazeres subsequentes. De acordo com esse raciocínio, as dores boas são boas em

função dos prazeres maiores ou as dores menores previstas para o futuro. Por

coerência lógica, a opinião dominante deve admitir que as coisas boas nada mais

são do que prazeres. Ora, se o homem comum evita prazeres maus porque são

efetivamente dores, ele também busca dores boas por serem prazeres. Nesses

termos, Sócrates descobre um fato sobre a própria deliberação humana82, a partir

de sua inquirição da maioria dos homens: “então, perseguis (diókete) o prazer

como um bem e fugis (pheúgete) da dor como um mal?” (354c). Com a

reavaliação das crenças da opinião dominante, Sócrates demonstra que os juízos

81 Taylor (1991, p.175) observa que o homem comum, na visão de Platão, não traça nenhuma

distinção entre um hedonismo do interesse próprio, egoísta, e um hedonismo voltado para um

conjunto de pessoas. Exemplos de prazeres que proporcionam ‘saúde e boa condição física’ são

apresentados conjuntamente com os que proporcionam ‘salvação da cidade e riqueza’ (354a-b). 82 Alguns intérpretes, como Gosling & Taylor (1982, p. 57), Santas (1979, pp. 206- 207), e

Rudebusch (1999a, p. 22) consideram que Sócrates sustenta aqui uma forma de hedonismo

psicológico. Todavia, o termo ‘psicológico’ é demasiado carregado para ser derivado desta tese já

que Sócrates não parece fazer nenhuma análise mais detalhada sobre a psicologia humana como

ele faz no Fédon, Górgias ou na República IV. De outro lado, a tese enunciada pelo filósofo parece

ser meramente uma conclusão dos argumentos desenvolvidos anteriormente. Nussbaum (2009, p.

96-97, p. 101) julga que o retrato da deliberação humana apresentado por Sócrates faz parte do

projeto maior de estabelecer uma técnica que elimine os problemas da contingência do acaso

(tyche) e da akrasía. Como observa Nicholas White (1988, p. 138-139), não há nenhuma indicação

que Sócrates queira eliminar a existência do fenômeno através dessa técnica. Além disso, devemos

acreditar que ele simplesmente quer construir um retrato da deliberação que possa explicar o

fenômeno de forma coerente.

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comuns de ‘prazeres ruins’ e ‘dores más’ são, paradoxalmente, fundados em um

tipo de hedonismo.

A demonstração dos pressupostos hedonistas das crenças convencionais da

maioria permite a Sócrates retomar a tese hedonista esboçada anteriormente. Além

disso, temos de ressaltar que Protágoras se vê comprometido a assumir as

conclusões do filósofo uma vez que ele reconheceu, explicitamente, a vinculação

entre suas próprias crenças e as crenças da maioria. O desenvolvimento do

argumento hedonista, através do exame das crenças tradicionais, tem o propósito

de esclarecer a tese apresentada por Sócrates anteriormente. Dessa maneira, temos

a possibilidade de compreender mais profundamente a tese elaborada em 351b-e:

“Pois o que eu digo (egò gàr légo)83 é que, enquanto são prazerosas (kath’ hò

hedéa estín), não são boas essas coisas (katà toûto ouk agathà), se não levarmos

em conta suas consequências (mè eí ti ap’ autôn apóbesetai); e, por outro lado,

com relação às coisas dolorosas (tà aniarà), enquanto dolorosas não são más

(kath’ hóson aniará, kakà)?” (351c)

A análise dos pressupostos hedonistas das crenças tradicionais permite a

demonstração dos princípios hedonistas da tese proposta por Sócrates a Protágoras

anteriormente. A partir disso, temos a possibilidade de esclarecer a tese hedonista

do primeiro estágio. De acordo com a tese hedonista, devemos abstrair das

concepções correntes de prazer e dor e considerá-los sob uma única condição:

‘não levar em conta outras consequências’. Como apontam Gosling & Taylor

(1982, p. 48-49), a tese hedonista estipula a necessidade de avaliar as

consequências das coisas que classificamos como ‘boas’ ou ‘más’, sem considerar

quaisquer características que não sejam prazer e dor. Pela consideração extensiva

proposta, somos inclinados a julgar que outras características além de prazer e dor

não contam em tal avaliação84. Com efeito, a opinião dominante não percebe que

83 A presença de um pronome em grego tem um uso enfático. Os intérpretes hedonistas e anti-

hedonistas tem disputado veementemente a intenção de Sócrates ao enunciar egó. Dessa forma,

Taylor (1991, p. 166), por exemplo, afirma que a sentença é uma pergunta retórica e pode ser

utilizadas como uma confirmação de que Sócrates está defendendo uma tese em própria pessoa.

De outro lado, Zeyl (1980, p. 266) acredita que a sentença apenas introduz uma questão direta e

não é uma proposição indireta. Como mostramos anteriormente, somente Protágoras concebe que

a tese hedonista é uma posição do próprio filósofo por falhar em compreender a forma dialógica de

argumentação defendida por Sócrates. Dessa forma, sustentamos com Julia Annas (1999, p. 169-

170) que a presença do ego enfático apenas demonstra que o filósofo é o único a discutir a tese

quando, na realidade, quem deveria estar mais interessado em discuti-la deveria ser o próprio

sofista. 84 Para atenuar a força do argumento de Sócrates, Vlastos (1969, p. 76) propõe que o filósofo

defende um hedonismo moderado: ‘todos os prazeres são bons e todas as dores são más’ (Cf.

KAHN, 2006, p. 50-51). De acordo com essa interpretação, Sócrates ainda poderia conceder que

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sua classificação do que é ‘bom’ e do que é ‘mau’ está fundada sobre um juízo de

valor acerca da quantidade de prazer e dor proporcionada por cada tipo de coisa.

Assim, o exame da opinião dominante estabelece que ‘prazer’ e ‘bem’ se referem

às mesmas coisas assim como ‘dor’ e ‘mal’. Portanto, esses termos são

intercambiáveis. Sendo assim, obtemos um quadro geral do hedonismo

apresentado por Sócrates.

Nas considerações anteriores, tentamos analisar os argumentos hedonistas

apresentados por Sócrates sem nos comprometer, no entanto, com as divergências

interpretativas que envolvem a tese hedonista. Dessa maneira, evitamos

considerar as controvérsias acerca da classificação do tipo de hedonismo proposto

por Sócrates e, consequentemente, os problemas do argumento que envolvem a

refutação da descrição tradicional da akrasía. Mesmo considerando que

precisaríamos tratar da descrição alternativa do fenômeno da akrasía oferecida

pelo filósofo, deixaremos isso para o próximo capítulo. Na sequência, tentaremos

esclarecer alguns aspectos gerais do hedonismo proposto que não estão abertos à

controvérsia interpretativa. Com isso, pretendemos fornecer algumas orientações

preliminares para entendermos o hedonismo de forma geral.

A partir das indicações oferecidas por Sócrates, podemos elaborar uma

classificação preliminar do hedonismo derivado das crenças tradicionais da

maioria. Como mostraram Gosling & Taylor (Ibidem, p. 57), o hedonismo

proposto através dos argumentos de Sócrates pode ser encarado como uma tese

valorativa, segundo a qual o prazer é a única coisa que vale a pena buscar. Nessa

medida, o homem comum sempre está inclinado a escolher deliberadamente

aquilo que ele considera ser mais prazeroso em qualquer circunstância de escolha

deliberada. Como ressalta ainda Santas (1979, p. 210), a diferença entre o prazer e

a dor se verifica não na quantidade concreta de prazer e dor das ações executadas

pelo agente, mas nas quantidades estimadas de prazer e dor das alternativas de

ação que podem ser escolhidas em sua deliberação. Com base no hedonismo,

podemos conceber o critério que orienta a deliberação humana e determina qual

nem todas as coisas boas são prazeres e nem todas as coisas más são dores. No entanto, como

mostra Taylor (1991, p. 168-169), esse tipo de hedonismo pode implicar na própria crença em

‘prazeres maus’ e ‘dores boas’, o que tornaria a posição de Sócrates muito semelhante à posição da

opinião dominante (Cf. GOSLING e TAYLOR, p. 47-48). Como essa proposta interpretativa

enfraquece os argumentos apresentados pelo filósofo, na medida em que atribuí a ele uma

confusão em seus propósitos, concordamos com Taylor que o melhor seja descartá-la.

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das alternativas é benéfica e qual é maléfica. Consideremos, por exemplo, que um

agente deve escolher entre duas alternativas x e y em uma dada situação: de

acordo com o hedonismo, podemos supor que o agente precisa realizar um cálculo

deliberativo dos prazeres e dores que as alternativas vão lhe proporcionar ao todo.

Nessa perspectiva, a estimativa de prazer com a qual estamos comprometidos nos

leva a abstrair da aglomeração de prazeres e dores contidas nas ações concretas

para orientar nossas ações pelos valores absolutos de prazer e dor (VLASTOS,

1969, p. 73; SANTAS, 1979, p. 200). Dessa forma, se x e y constituem

alternativas contrárias de aglomerados de prazer e dor, somos levados a

determinar x como um bem e y como um mal através de uma estimativa de

comparação entre x e y, avaliando assim que x contém mais prazer que y. A partir

dessas considerações, reconhecemos que a classificação absoluta de ‘bem’ e ‘mal’

é derivada das estimativas de prazer e dor contidas nas condições particulares.

O hedonismo apresentado por Sócrates depende da forte relação entre

‘prazer’ e ‘bem’. Além de fornecer uma tese valorativa do prazer para explicar a

deliberação, a tese hedonista também postula a permutabilidade entre os termos

‘bem’ e ‘prazer’ e também entre ‘dor’ e ‘mal’ (GOSLING; TAYLOR, 1982, p.

49-50). Como vimos anteriormente, o hedonismo estabelece que ‘bem’ e ‘prazer’

e, por outro lado, ‘dor’ e ‘mal’ são pares de termos intercambiáveis que tem a

mesma referência. Com efeito, Sócrates não implica que a tese hedonista postula a

necessidade de uma identidade semântica entre os pares de termos, mas apenas

uma identidade de referência, isto é, designam as mesmas coisas, respectivamente.

Contudo, para obtermos o conjunto dos princípios que compõem o hedonismo

proposto pelo filósofo precisamos retomar a relação entre ‘bem’, ‘prazer’ e

‘eudaimonia’ constituída nas três primeiras premissas do início da discussão com

o sofista.

Como pudemos ver anteriormente nas premissas iniciais de Sócrates, a

tese hedonista afirma que o prazer deve corresponder à satisfação completa de

uma vida ou, em termos gregos, à eudaimonia. (IRWIN, 1995, p. 83, 87-88;

PENNER, 1997, p. 128). Segundo Irwin (Ibidem, p. 83), Sócrates não toma o

hedonismo como uma alternativa à aspiração grega pela eudaimonia, mas como

uma explicação do fim último da eudaimonia. A tese hedonista estabelece,

portanto, um critério epistemológico: os juízos de ‘bem’ e ‘mal’ se fundam em

juízos de ‘prazer’ e ‘dor’ que determinam em conjunto o que promove a plenitude

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ou a ruína da vida humana. Como constatamos que o homem busca,

intencionalmente, as coisas prazerosas, podemos supor que todas as deliberações

são realizadas tendo em vista a eudaimonia, isto é, o bem do homem. A partir

dessas considerações, podemos tirar duas conclusões: (1) todas as ações

deliberadas visam ao prazer como um bem; e (2) todas as ações deliberadas

evitam a dor como um mal. De fato, essas premissas inviabilizam as crenças

convencionais em prazeres maus e dores boas. Além disso, a premissa de número

1 atinge a descrição tradicional da akrasía que alega ser possível uma experiência

de ‘submissão por prazeres maus’. Com base nos pressupostos hedonistas

assumidos pela opinião dominante, Sócrates demonstra que a descrição da akrasía

da maioria é absurda nos seus próprios termos.

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4.3 A redução ao absurdo da descrição tradicional da akrasía

O argumento de redução ao absurdo da descrição tradicional da akrasía

depende fundamentalmente do hedonismo desenvolvido anteriormente. O filósofo

sustenta seus argumentos basicamente em dois princípios hedonistas: (a) ‘prazer’

e ‘bem’ se referem às mesmas coisas assim como ‘dor’ e ‘mal’; e (b) dado a, se P

considera que x é mais prazeroso (ou melhor) do que y no total, P escolhe x em

vez de y. A partir disso, o argumento de redução ao absurdo prosseguirá por dois

estágios: no primeiro estágio, Sócrates coloca em xeque a descrição do fenômeno

em termos de ‘bem’ e ‘mal’ (354e-355e); no segundo estágio, os interlocutores

consideram a descrição em termos de ‘prazer’ e ‘dor’ (355e-356a). De acordo com

Taylor (1991, p. 85), ambos os argumentos compõem ‘versões alternativas da

mesma tese’. Embora o argumento tenha a estrutura de uma redução ao absurdo

da descrição da akrasía da opinião dominante, a palavra grega ‘geloîon’ abrange

tanto o sentido de absurdo quanto o sentido de ridículo85. De fato, o absurdo da

descrição necessita de explicação como bem mostra a introdução da figura do

homem transgressor (hybristès) concebida por Sócrates durante o diálogo. Como

veremos a seguir, essa demonstração do absurdo já abre caminho para que o

filósofo formule sua própria descrição da akrasía. Todavia, é necessário nos

determos sobre o primeiro estágio do argumento do absurdo visto que as

conclusões estabelecidas aqui servirão de base para a demonstração do absurdo no

segundo estágio.

Na medida em que o texto não apresenta uma estrutura formalmente clara,

temos que ordenar as premissas de modo a esclarecer os passos da argumentação

de Sócrates. Para realizar a redução ao absurdo da descrição da akrasía como

‘submissão ao prazer’, Sócrates confia nas premissas hedonistas expostas

85 Cf. LIDDEL-SCOTT, 1996. Provavelmente, a exposição do ridículo da crença da maioria na

akrasía é uma exigência dramática do argumento dado que a opinião dominante precisa

reconhecer que a descrição tradicional é inconsistente e, ao mesmo tempo, deve buscar com o

auxílio de Sócrates outra descrição para o fenômeno. É notável que o próprio filósofo mostre que a

opinião dominante deve reconhecer a descrição alternativa do fenômeno, aproveitando a

oportunidade para relembrá-la do ridículo de sua própria descrição da akrasía (357d).

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anteriormente. De fato, o filósofo retoma a descrição da akrasía tal como

mostraremos através da seguinte forma lógica86:

1. Segundo a opinião dominante, P escolhe y em vez de x, sabendo

(gignóskon) que y é pior que x, porque é submetido pelo prazer87 de y.

(355b-c)

Através do princípio a, substituindo ‘prazer’ por ‘bem’, obtemos uma

formulação correspondente da akrasía:

2. P escolhe y em vez de x, sabendo que y é pior que x, porque é

submetido pelo bem de y. (355c).

Dessa forma, derivamos a sentença que será o alvo de Sócrates em sua

argumentação com a opinião dominante. Se concebermos que a ação realizada

pelo homem em akrasía não é impedida por forças externas, como alega a

maioria, reconhecemos que o agente realiza uma deliberação completa, com

conhecimento de causa do que está escolhendo (IRWIN, 1995, p. 84, TAYLOR,

1991, p. 185). Nessas condições, e com o auxílio do princípio hedonista b, a

opinião dominante deve admitir que qualquer deliberação realizada por P tem que

resultar numa escolha pelo que é melhor ou mais prazeroso, tendo em vista sua

eudaimonia. Diante desses fatos, podemos esclarecer alguns elementos que levam

Sócrates à redução ao absurdo da descrição tradicional da akrasía. Contudo, o

86 Devo essa formulação a Irwin (1995) e Weiss (2006). De qualquer maneira, reconheço que a

formulação lógica de Irwin tem suas limitações na medida em que depende fundamentalmente de

uma distinção qualitativa de prazeres que não corresponde ao hedonismo apresentado por Sócrates

(veremos esse problema no próximo capítulo). Por outro lado, a estrutura lógica do argumento

apresentada por Roslyn Weiss tenta seguir o texto original com mais fidelidade. Por essa razão,

minha própria formulação é muito inspirada na formulação lógica proposta pela autora. 87 De acordo com Vlastos (1969, p. 81-82), a formulação da akrasía não implica autocontradição

se for traduzida por ‘submissão aos prazeres’ em vez de ‘submissão ao prazer’. Segundo Vlastos, a

autocontradição se realiza no primeiro caso se utilizamos o princípio da substituição de nomes de

‘prazer’ por ‘bem’ e formos levados a afirmar que uma pessoa é ‘submetida pelo (desejo do) bem’.

No segundo caso, a ‘submissão pelo (desejo de) coisas boas’ requer uma explicação do absurdo tal

como é retratado no texto (o comentador segue o plural tàs hedonás em 355b). Todavia, como

observa Taylor (1991, p. 183-185), Vlastos está errado por 2 razões: (1) o substantivo hedoné é

utilizado de forma indiferenciada no singular e no plural, evidenciando que o texto não prevê

qualquer distinção entre ‘prazer’ e ‘prazeres’. De fato, quando a substituição de termos é operada

(em 355c) , Sócrates trata ‘prazer’ e ‘bem’ no singular. (2) a ‘submissão a um desejo por coisas

boas’ não é mais autocontraditória que uma ‘submissão a um desejo pelo bem’. Na verdade, Platão

trata o desejo por prazer como equivalente ao desejo por prazeres. Além disso, Vlastos (1969, p.

83) acredita que o argumento do absurdo termina no primeiro estágio, quando, na realidade, os

interlocutores concordam que o argumento está terminado apenas ao fim do segundo estágio.

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filósofo considera que apenas a formulação da sentença não é o bastante para

explicar o absurdo da crença tradicional na akrasía.

Embora julguemos que a sentença de número 2 seja suficiente para expor o

absurdo da descrição tradicional, Sócrates exige uma explicação mais detalhada

do absurdo. Para isso, ele introduz a figura do transgressor (hybristès) dentro do

diálogo, provavelmente a fim de levar o argumento às últimas consequências.

Diante disso, essa pequena intervenção do personagem solicita um esclarecimento

da opinião dominante:

“Acaso, ele dirá, os bens não merecem vencer (ouk axíon nikân) os males em

vossa estima (en hýmin)88, ou merecem (è axíon)? É evidente que teríamos de

dizer-lhes que não merecem, pois de outro modo não teria errado (exemártanen) a

pessoa que dissemos ser submetida por prazeres.” (355d)

É necessário mostrar qual o critério do agente para determinar o valor dos

bens em comparação com os males. Uma vez que o homem comum julga suas

alternativas por um critério quantitativo de prazer, uma avaliação de bens e males

também deve seguir o mesmo parâmetro. Desse modo, se os bens forem maiores

que os males, os bens serão escolhidos ao invés dos males (355d). De fato, esse

seria o raciocínio caso o agente tivesse realizado a ação correta; contudo, ele

cometeu um erro (exemártanen). Logo, teremos de assumir que os bens não valem

os males. Para esclarecer os passos do argumento, vejamos a continuidade de sua

estrutura lógica89:

3. Se os bens de y valessem seus males, então y seria a escolha correta.

4. y não é a escolha correta (se fosse, o agente não teria errado)

5. Os bens em y não valem seus males.

6. Os bens em y são menores que seus males.

7. É absurdo dizer que P escolhe y em vez de x, sabendo que y é pior que

x, porque é submetido pelo bem de y.

Se o agente erra em sua escolha, é provável que os males escolhidos

tenham menor valor que os bens. Se seguirmos o hedonismo, e reconhecermos

que o homem opta pela alternativa em que ele acredita que obterá maior bem, é

88 Para essa tradução ver Vlastos (1969 p. 80). 89 Devo essa formulação a Roslyn Weiss (2006, p. 52-53).

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inexplicável que P escolha y tendo consciência que os bens de y não tem maior

valor sobre os bens de x. Segundo o transgressor, teríamos de admitir uma

conclusão absurda: “É evidente, diria ele, que o que denominais ‘ser submetido’

(tò hettâstai) é escolher (lambánein) maiores males ao custo de (antì)90 pequenos

bens (355e)”. Nessa perspectiva, o agente opta pelos bens da pior alternativa

tendo consciência que sua escolha lhe acarretará males futuros. Como observa

Santas (1979, p. 205), a conclusão do transgressor nos leva a assumir que o agente

tem plena consciência de que a alternativa escolhida constitui-se tanto de

pequenos bens quanto de grandes males. Na realidade, o que deve se explicar é de

que maneira alguém pode escolher maiores males por conta de pequenos bens

dado que a ação é realizada de bom grado e, necessariamente, é o reflexo de uma

deliberação pelo que é melhor.

Para assegurar que a descrição tradicional da akrasía é realmente inviável,

Sócrates prossegue do primeiro para o segundo estágio do argumento utilizando a

mesma estrutura lógica de raciocínio. Com o auxílio do princípio a, o filósofo vai

analisar a formulação tradicional, novamente, através dos termos de ‘prazer’ e

‘dor’. Dessa vez, o filósofo substitui ‘mal’ por ‘dor’ na formulação tradicional,

além de ser mais direto em suas conclusões:

1. P escolhe y em vez de x, sabendo (gignóskon) que y é mais doloroso que x,

porque é submetido pelo prazer de y (355e).

2. Os prazeres em y não valem suas dores.

3. Os prazeres em y são menores que suas dores.

4. É absurdo dizer que P escolhe y em vez de x, sabendo que y é mais

doloroso que x, porque é submetido pelo prazer de y.

Com a redução ao absurdo da descrição da akrasía como ‘submissão ao

prazer’ e ‘submissão ao bem’, Sócrates assegura que seu interlocutor

personalizado não tenha mais outros meios de sustentar sua crença na akrasía. A

validade da redução ao absurdo depende da admissão do hedonismo por parte da

opinião dominante. Durante a discussão, Sócrates chama atenção para o fato de

que seu personagem personalizado deve aceitar a inviabilidade de sua própria

90 Para essa tradução ver Santas (1969, p. 204-205) e Taylor (1991, p. 186-187).

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descrição da akrasía, caso reconheça que a deliberação humana se inclina para o

que é benefício ou para o que é mais prazeroso durante sua vida. Diante disso, um

agente que tem plena consciência da gravidade de suas alternativas, como alega a

maioria, não pode ir ao encontro do que considera ser pior sabendo que vai

provocar mais dor a si mesmo do que prazer. Seguindo este raciocínio, iríamos

admitir que uma pessoa é capaz de agir em função do menor prazer e,

consequentemente, da maior dor proporcionada por sua escolha. A conclusão, na

realidade, revela ser absurda e não há como continuar sustentando a crença

tradicional na akrasía. A partir dessa constatação, Sócrates apresenta uma

descrição alternativa para o fenômeno.

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4.4 A necessidade de uma descrição alternativa para a akrasía O hedonismo e a redução ao absurdo da descrição tradicional da akrasía

na análise das crenças da opinião dominante são argumentos fundamentais para a

formulação alternativa da experiência da akrasía do filósofo. Durante essa

discussão, Sócrates revela que as crenças hedonistas da maioria estão baseadas em

estimativas quantitativas de prazeres e dores. Nessa medida, a opinião dominante

deve reconhecer que todos os homens deliberam através da comparação entre os

valores de suas alternativas de escolha em termos de prazer e dor. Com o

reconhecimento de que o homem considera suas alternativas por um mesmo

padrão de medida, Sócrates estabelece o absurdo da crença na akrasía. A redução

ao absurdo, por sua vez, encaminha a discussão para uma formulação mais

adequada do fenômeno. Como ressalta Nussbaum (2009, p. 101), o absurdo da

descrição tradicional leva a considerar que o agente sob efeito da akrasía não

utiliza efetivamente um parâmetro único de escolha. Se P acredita que y é menos

valoroso que x sob o mesmo padrão de medida, a opção por y não pode ser

explicada com base na consideração das proporções reais de suas alternativas.

Nesse sentido, é necessário que essa pessoa esteja escolhendo y por alguma outra

razão que não lhe permite determinar apropriadamente o valor dessa alternativa

em comparação a x. Com base no hedonismo, portanto, somos levados a admitir

que o cálculo deliberativo de prazer e dor, em uma situação de akrasía, está

equivocado. Nesses termos, Sócrates estabelece que a akrasía deve ser

reconhecida como um tipo de ignorância.

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5 A refutação da descrição tradicional da akrasía

5.1 O desafio da refutação da descrição tradicional do fenômeno

Durante a passagem 356c-357e, Sócrates oferece sua própria formulação

da akrasía, tendo em vista a constatação de ser absurda a descrição tradicional.

Nessa perspectiva, a formulação socrática emerge da necessidade de redefinir o

fenômeno considerando-se dois fatores: (1) comprovou-se ser, a descrição

tradicional, inadequada para compreender o que ocorre na akrasía; e (2) um

compromisso foi firmado anteriormente entre Sócrates e o sofista para reformular

a descrição tradicional de modo a assegurar o poder do conhecimento em relação

aos impulsos humanos (352e-353c). Na verdade, é por conta desse segundo fator

que os interlocutores iniciam a investigação das crenças da opinião dominante a

respeito da akrasía como submissão da deliberação ao prazer.

Com base no hedonismo e nas inconsistências da opinião dominante em

sua crença na ‘submissão ao prazer’, o filósofo oferece uma formulação

alternativa do fenômeno como ‘ignorância’ (amathía – 357d). À medida que a

akrasía é reconhecida como ignorância, Sócrates pode equiparar o fenômeno a

uma ‘falta de conhecimento’ (epistémes endeía) e, assim, recomendar o

conhecimento como medida preventiva contra esse estado. Dessa forma, Sócrates

não só demonstra que o agente sob akrasía realiza ações que estão vinculadas às

suas próprias crenças como também assegura o poder do conhecimento para

determinar suas escolhas.

Como observamos no capítulo 2, Sócrates sustenta uma tese paradoxal que

constitui uma negação não apenas do conhecimento-akrasía, mas também da

crença-akrasía sincrônica, ou seja, uma experiência em que um agente age contra

o que acredita ser melhor no momento da ação (358c-d). De fato, a negação da

crença-akrasía é fundamental para que o filósofo possa redefinir o fenômeno

como ‘ignorância’ e possa sustentar o poder do conhecimento sobre a ação contra

a crença da opinião dominante na akrasía. Antes de estabelecer essas conclusões,

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Sócrates retoma a tese que ele e Protágoras se comprometeram a defender

conforme tiveram que confrontar as crenças da maioria:

“nós concordávamos que não há nada mais forte (medèn eînai kreîtton) que o

conhecimento e que onde quer que ele se encontre sempre vence (aeî krateîn) o

prazer e todas as outras coisas.” (357c)

Esta tese afirma que o conhecimento não pode ser submetido pelo impulso

ao prazer em qualquer momento da ação. Com isso, obtemos uma refutação do

conhecimento-akrasía tanto em sua forma sincrônica, quanto em sua forma

diacrônica. Como observa Penner (1997, pp. 132-137), Sócrates tem o propósito

de defender que apenas o conhecimento pode assegurar a estabilidade do que se

acredita diacronicamente, isto é, antes, durante e após a ação executada. Ao

contrário do conhecimento, a crença pode vacilar durante o processo da ação e

pode permitir que a ação seja realizada contra o que se acreditava antes e depois

da ação. Como observamos, embora esta interpretação preserve a diferença que

Sócrates quer estabelecer entre conhecimento e crença, ela não reconhece que o

filósofo tenha qualquer preocupação em negar a possibilidade da crença-akrasía

sincrônica91. Do mesmo modo que admite uma corrente de comentadores, no

entanto, julgamos que a tese paradoxal apresentada em 358c-d é uma explícita

negação da crença-akrasía sincrônica (SANTAS, 1979, p. 206-207; WEISS,

2006, p. 60-61; KAHN, 1996, p. 228-243). Conforme a descrição tradicional

postula que é possível agir contra o que se acredita ser melhor no momento da

ação, a tese paradoxal sustentada por Sócrates tem o papel de assegurar a

refutação dessa descrição comum do fenômeno. Por outro lado, a suficiência do

conhecimento para a ação virtuosa só é garantida enquanto a descrição alternativa

da akrasía, como ignorância, garante que os homens deliberem em função de suas

crenças, e não realizem suas ações através de seus impulsos. De fato, se a akrasía

for inteiramente o efeito das crenças equivocadas do agente em ignorância,

Sócrates consegue assegurar que o conhecimento seja definitivamente superior na

ação, eliminando quaisquer erros cognitivos provocados por essa experiência. É

com esse objetivo, portanto, que o filósofo apresenta sua própria formulação da

akrasía. Embora consigamos compreender a tese estabelecida, nos falta ainda

analisar os argumentos que a sustentam. Com efeito, os argumentos que

91 Cf. Ibidem, p 124-125

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fundamentam a reformulação da akrasía pelo filósofo oferecem grande

controvérsia interpretativa.

A refutação da descrição tradicional da akrasía por Sócrates tem causado,

para além dos problemas de interpretação, dúvidas acerca de sua validade. De um

lado, a proposta alternativa do fenômeno apresentada pelo filósofo considera que

a akrasía é um erro no cálculo deliberativo dos prazeres e dores causado pela

influência do que se denomina ‘o poder da aparência’ (toû phainoménou dýnamis

– 356d). Para explicar o que isso significa, Sócrates traça uma analogia entre

espaço e tempo, e mostra como podemos nos enganar pela aparência do que está

próximo de nós (356c)92. Através desse recurso argumentativo, Sócrates indica

que o erro provocado pela aparência não é nada mais que ignorância. No entanto,

é difícil considerar o que ele quer designar aqui por esse poder (dýnamis)

possuído pelas aparências. Primeiramente, estamos falando aqui de uma ilusão

provocada pela proporção dos objetos a nossa volta? Ou seria este um fenômeno

ocasionado por nossa percepção? Será que os desejos não racionais têm algum

papel a desempenhar nessa experiência ou será que Sócrates exclui qualquer

referência a eles? O que efetivamente causa o poder das aparências, e de que

maneira exerce sua influência sobre as crenças do agente durante a ação? Com

efeito, as dificuldades de interpretação consideradas aqui serão cruciais para tentar

compreender o que realmente é a descrição da akrasía por ignorância. A tese da

superioridade do conhecimento sobre a ação depende, essencialmente, da

demonstração da ignorância da akrasía. Como a interpretação do argumento de

Sócrates é fundamental para a avaliação do sucesso no que se refere à refutação da

descrição tradicional, os comentadores vão buscar analisar a consistência da tese

da ignorância em função da garantia da superioridade do conhecimento. Sendo

assim, faz-se necessário recorrermos às controvérsias de interpretação para

avaliarmos a formulação da akrasía oferecida por Sócrates.

Desde o último século, interpretações conflitantes do diálogo ofereceram

esclarecimento e, ao mesmo tempo, problematizaram a descrição da akrasía

92 Como salienta Muniz (2011, p. 75), a aparência não adquire neste diálogo o caráter

epistemologicamente negativo que se constituirá nos diálogos posteriores de Platão: “O texto não

nos permite supor a desqualificação da experiência sensória por alguma falha ontológica ou

qualquer outra razão metafísica que fundamente a atribuição de uma deficiência à natureza do

sensível.” Na realidade, o comentador (Ibidem, p. 68) demonstra que não há nos primeiros

diálogos qualquer indício da forma negativa com a qual a experiência sensível será retratada nos

diálogos da maturidade de Platão.

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apresentada por Sócrates. À medida que alguns intérpretes identificaram

problemas na refutação da descrição tradicional do fenômeno pelo filósofo, outros

autores elaboraram boas alternativas de interpretação para contornar as

dificuldades apresentadas. Como observaremos, o conflito entre as interpretações

sugere que alguns problemas identificados nos argumentos da refutação podem

ser contornados se considerarmos novas propostas interpretativas. Desse modo, é

preciso verificar se as interpretações se apoiam realmente no próprio texto no

intuito de avaliar as vantagens e as desvantagens de cada uma das propostas.

Como a refutação da akrasía no diálogo está vinculada à tese hedonista, devemos

salientar que a maioria das propostas interpretativas da descrição socrática da

akrasía julga que a consistência da descrição alternativa da akrasía necessita,

antes, de uma determinação adequada do tipo de hedonismo apresentado no

diálogo. Portanto, devemos levar em conta tanto a classificação do hedonismo

quanto o argumento do poder das aparências ao analisar as divergências

interpretativas. Em última instância, teremos de avaliar se os problemas indicados

pelos intérpretes chegam a comprovar que Sócrates não tem sucesso em sua

substituição da descrição comum da akrasía ou se ele consegue, efetivamente,

refutar a formulação tradicional do fenômeno. Antes disso, no entanto,

precisaremos retomar alguns dos princípios hedonistas aceitos pela opinião

dominante e, assim, analisar os argumentos acerca do poder da aparência

designados para explicar o fenômeno da akrasía.

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5.2 O poder da aparência (toû phaynoménou dýnamis) e a técnica da medida (metretikè téchne)

Para prosseguir na análise da descrição alternativa da akrasía, é necessário

ter em mente alguns elementos do hedonismo assumido pela opinião dominante.

Como vimos, a própria opinião dominante admite que o hedonismo fornece um

parâmetro apropriado para explicar a deliberação humana. Através do exame das

crenças tradicionais da opinião dominante, foi demonstrado que seus parâmetros

para designar certas coisas de ‘prazer’ e ‘dor’ estão equivocados, se levarmos em

conta apenas as consequências de prazer e dor. Enquanto os ‘prazeres maus’

mostraram ser essencialmente dores, as ‘dores boas’ provaram ser simplesmente

prazeres (353c-354b). Com isso, reconhecemos que não há nenhum critério para

julgar o que é ‘mau’ além de ‘dor’, ao passo que também não há outro parâmetro

para julgar o que é ‘bom’ além de ‘prazer’. As palavras ‘bom’ (agathon) e ‘prazer

(hedone) assim como ‘dor’ (aniara) e ‘mau’ (kakon) se referem às mesmas coisas

e são permutáveis. Ao admitir esse princípio, a opinião dominante deve

reconhecer que o homem realiza sua deliberação tendo sempre em vista obter o

prazer e evitar a dor (354c). Nessa perspectiva, o homem atribui maior valor ao

prazer em sua vida se comparado à dor. Como vimos, a conjugação entre o

princípio da permutabilidade entre bem e prazer, assim como a tese hedonista

valorativa, constituem o hedonismo apresentado por Sócrates. De acordo com essa

teoria, o homem comum realiza um cálculo em sua deliberação para alcançar

sempre o que considera ser mais prazeroso e, ao mesmo tempo, evitar o que é

mais doloroso para sua vida. A partir dos pressupostos hedonistas admitidos pela

opinião dominante, obteremos o descrédito da formulação tradicional da akrasía

pela redução ao absurdo, como foi observado. É notável, portanto, que o próprio

hedonismo que orienta a ação humana sirva de base para a redução ao absurdo da

crença tradicional na akrasía e ofereça o fundamento para a proposta de uma

formulação alternativa do fenômeno.

Para sugerir uma nova proposta de descrição da akrasía, é preciso ter em

conta o hedonismo em que se baseia a deliberação humana, como foi mostrado no

exame da opinião dominante. Se o homem valoriza o maior prazer e desvaloriza a

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maior dor em sua deliberação, é preciso executar o cálculo correto para obter o

que se deseja. O fato de que o homem em akrasía, efetivamente, escolhe a

alternativa que tem ‘menor prazer e maior dor’ indica que seu cálculo deliberativo

não é correto. Ora, mas o que ocorre para que um agente realize um cálculo

incorreto em vez de um cálculo correto? O que diferencia o primeiro caso do

segundo? Com o objetivo de compreender o que ocorre com o homem que erra,

Sócrates recorre a uma imagem espacial para esclarecer o efeito dos prazeres

imediatos sobre nós: “as mesmas coisas não se vos afiguram (phaínetai) à vista (tê

ópsei) maiores, quando mais próximas e menores, quando mais afastadas?”

(356c)93. Da mesma maneira que a posição espacial provoca uma alteração na

percepção dos objetos a nossa volta, nossas ações também estão sujeitas a um

fenômeno que provoca uma ilusão com relação às nossas ‘perspectivas’ de ação.

Desse modo, esse efeito faz com que consideremos mais valorosas as alternativas

que nos proporcionam satisfação imediata do que aquelas em que apenas

conseguiremos prazer no passar do tempo, mesmo que essas sejam realmente mais

prazerosas. Esse fenômeno que leva um homem a conferir maior valor ao prazer

que efetivamente tem menor valor por conta de uma forma de ilusão, Sócrates

denomina de ‘poder da aparência’ (toû phainómenou dýnamis). Com base neste

efeito, o filósofo vai sustentar que a akrasía é simplesmente uma forma de ‘erro

na escolha dos prazeres e dores’ (examártenein perì tèn tôn hedonôn aíresin kaì

lypôn), ou seja, ‘ignorância’ (357d-e). Porquanto as aparências inviabilizam a

possibilidade de vislumbrar os efeitos de nossas ações claramente, Sócrates

estipula a necessidade de se comportar ‘como um homem perito em pesagens’

(hósper agathòs istánai ánthropos – 356b). Ao colocar na balança os cursos de

ação possíveis, o homem é capaz de determinar o que irá lhe trazer maior prazer e

o que vai lhe proporcionar maior dor. Se o bem agir humano (eû pratteîn) consiste

em alcançar os maiores prazeres e não fazer o que causará as maiores dores, então

devemos nos orientar por uma ‘técnica da medida’ (metretikè téchne – 356d).

Com o auxílio da técnica da medida, Sócrates acredita que é possível superar o

efeito das aparências para revelar as ‘proporções’ das coisas. Em geral, a oposição

93 Para essa analogia, cf. ‘O paradigma da percepção sensível e o prazer’ (MUNIZ, 2011, 69-81).

Segundo Muniz (Ibidem, p. 78-80), a analogia nesse caso tem a função de esclarecer um domínio

obscuro, a deliberação e a temporalidade dos prazeres, a partir de um campo diretamente

conhecido, a percepção sensível e a espacialidade dos objetos. Sendo assim, o mecanismo da

ilusão da aparência só pode ser apreendido dentro desse contexto relacional da temporalidade e da

espacialidade.

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entre o poder das aparências e a técnica da medida é essencial para compreender

de que maneira a descrição da akrasía como ignorância pode favorecer a

preservação do poder do conhecimento. Com isso, precisamos elucidar melhor o

que ocorre com o agente em ambas as situações.

Durante a descrição alternativa do fenômeno, Sócrates não oferece

nenhum exemplo ou argumento mais detalhado sobre a maneira como o agente

pode ser levado a errar devido à influência das aparências. Em 356d-e, ele fornece

algumas indicações parciais do que ocorre sob o efeito das aparências, e como a

técnica da medida pode corrigir essa ilusão:

Não nos ilude esta última [o poder da aparência], levando-nos muitas vezes a

tomar as mesmas coisas às avessas (áno te kaì káto), a mudar de ideia

(metalambánein) e nos arrepender (metamélein) nas ações e nas escolhas (en taîs

praxési kaì en taîs airésesi) das coisas grandes e pequenas? A técnica da medida

não tornaria essa aparência ineficaz (ákuron), ao mostrar a verdade não faria a

alma ter tranqüilidade (échein tèn psychèn hesuchían) sustentada pela verdade,

salvando, assim, a vida? (356d-e)

Embora Sócrates nos forneça um contraste entre o processo de erro

deliberativo proporcionado pelas aparências e a correção da deliberação através da

técnica da medida, é difícil termos uma ideia clara do que está ocorrendo com o

agente em cada um desses casos. Ora, o que significa tomar as coisas ‘às avessas’

(áno te kaì káto)94? Se o agente ‘muda de ideia’ ou se arrepende em relação ao

que fez, de que maneira as aparências interferem sob sua deliberação? De que

forma a aparência pode se tornar ‘ineficaz’ (ákuron) com o auxílio da técnica da

medida? Como a técnica da medida pode proporcionar, ao agente, ‘tranquilidade

da alma’ (tèn psychen hesuchían)? Evidentemente, a interpretação de cada um

desses aspectos é controversa e será analisada a partir da exegese interpretativa.

Como Sócrates não oferece nenhum exemplo para esclarecer seus argumentos,

precisaremos recorrer a um caso específico de akrasía a fim de obtermos

indicações preliminares de sua descrição alternativa do fenômeno.

Para analisarmos a plausibilidade dessa explicação alternativa oferecida

por Sócrates, é necessário recorrer a um caso hipotético de akrasía para ilustrar o

alcance dessa proposta95. Em virtude da relação entre hedonismo e eudaimonia

admitida pelos interlocutores, buscaremos preservar, no exemplo a seguir, o

94 Literalmente de ‘ponta cabeça’ ou ‘de cima para baixo’. 95 O exemplo apresentado foi inspirado no exemplo do glutão apresentado por Brickhouse &

Smith (2010, pp. 75-76), assim como na análise de Bobonich (2007, p. 49).

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princípio de que toda ação deliberada é realizada em função da eudaimonia, isto é,

o que é melhor para o agente. Além disso, procuraremos também explorar, nesse

exemplo, a sugestão socrática de encarar a akrasía como uma forma de ilusão

‘espacial’. Na sequência, vamos propor uma interpretação literal da imagem

oferecida pelo filósofo, embora estejamos dispostos a verificar outras hipóteses

interpretativas posteriormente.

Consideremos, então, o caso de um diabético que, por conta de sua saúde

debilitada, recebeu uma prescrição médica severa para não comer doces. Em t1,

ele avista uma torta de limão ao longe, mas considera que não deve arriscar sua

saúde. Em t2, no entanto, a torta é colocada em sua frente e observamos que ele

come a torta vorazmente. Em t3, o diabético se repreende pelo que fez e diz que

não queria arriscar sua saúde. O que ocorreu de fato? Enquanto a opinião

dominante se inclinaria a julgar que a deliberação foi submetida por um apetite,

Sócrates, no entanto, atribuiria o erro ao surgimento de uma crença momentânea

em t2 pela influência de um prazer imediato. Para que Sócrates consiga validar

sua refutação, é necessário que ele demonstre não somente o absurdo da descrição

tradicional, mas também a superioridade de sua formulação da akrasía em relação

à crença tradicional no fenômeno. Ora, mas de que maneira pode ser gerada uma

crença errônea na ‘aparência’ de um prazer imediato? Qual é exatamente o efeito

da ‘aparência’ do prazer sobre o agente? A explicação de Sócrates corresponde ao

que ocorre no fenômeno? Com base nesses problemas, seremos obrigados a

analisar algumas das mais relevantes propostas interpretativas ao problema da

akrasía no Protágoras a fim de esclarecer os argumentos de Sócrates.

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5.3 As divergências interpretativas 5.3.1 Interpretação de Gosling, Taylor e Irwin – Distinção temporal de prazeres

A tradição interpretativa do diálogo observa que a sustentação do

hedonismo, por Sócrates, constitui uma parte fundamental da refutação da crença

na acrasia e da inferioridade do conhecimento frente aos impulsos. Os autores de

The Greeks on Pleasure, Gosling & Taylor, por exemplo, acreditam que as

considerações de Sócrates acerca da instantaneidade ou posteridade dos prazeres e

dores no Protágoras mostram a preocupação do filósofo em fazer uma distinção

temporal dos prazeres. Nesse sentido, essa distinção parece ser estabelecida em

351d pelo personagem, quando ele classifica as coisas prazerosas como ‘àquelas

que participam (metéchonta) no prazer ou que produzem (poioûnta) prazer’.

Nessa perspectiva, Sócrates compreende que o prazer pode ser tanto uma

qualidade inerente a objetos ou ações – uso padrão – quanto pode ser produzido

por eles – uso extensivo. O uso padrão de classificação do prazer é o juízo comum

dos homens para designar certas coisas como prazerosas. Para Sócrates, isso

demonstra que o homem comum não percebe claramente a existência dos prazeres

de longa duração, visto que para este homem alguns prazeres são ruins e algumas

dores são boas. Dessa maneira, a opinião dominante não percebe que, pelo uso

extensivo, os prazeres só são ruins quando resultam em dores e as dores só são

boas se resultam em prazeres. Observa-se, portanto, uma equivalência de

referência entre os termos ‘prazer’ e ‘bem’ que faz com que eles sejam

intercambiáveis. Contudo, a consideração extensiva nos indica que os prazeres só

são efetivamente valorosos se contribuem para o prolongamento da experiência de

prazer na maior duração. Dessa forma, Gosling & Taylor (1982, p. 53). concluem

que o filósofo identifica o bem ao prazer de longa duração. Sócrates, então,

defenderia um hedonismo esclarecido em que o agente tem o conhecimento

adequado para escolher, com precisão, quais de suas ações promovem os prazeres

mais relevantes para a vida, isto é, os prazeres de longa duração. Apesar de

descrever o argumento apresentado no diálogo, Gosling & Taylor não acreditam

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na consistência dele. Os autores apresentam duas falhas que, segundo eles, deixam

em suspeita a refutação da akrasía por Sócrates:

(1) Sócrates não observa a distinção, realizada por ele mesmo, entre uso

padrão e extensivo de prazer. Sócrates mostra que a opinião dominante, a

partir da distinção apresentada, teria de sustentar que o homem em akrasía

é dominado pelos prazeres imediatos (355b). O filósofo opera, então, a

substituição de nomes possibilitada pelo hedonismo para refutar a akrasía:

ele troca ‘prazer momentâneo’ por ‘bem’. Para os autores, contudo,

Sócrates está equivocado nessa substituição de nomes, pois ele havia

sustentado que o ‘bem’ equivale ao ‘prazer de longa duração’96. A

substituição, portanto, é inconsistente e Sócrates parece não ter explicado

claramente sua distinção temporal dos prazeres (GOSLING; TAYLOR,

1982, p. 57);

(2) os autores argumentam que o homem sob akrasía poderia negar que há

um desejo uniforme por um fim último que orienta todas as nossas ações.

Ele pode mostrar que, apesar de ele ter consciência dos efeitos de suas

ações, ele ainda é levado por seu desejo por prazeres imediatos (Ibidem, p.

57-58) Como observamos anteriormente, Taylor concorda com o

pressuposto motivacional da corrente intelectualista segundo a qual o

personagem Sócrates da fase da juventude acredita que só existe o desejo

racional pelo que é melhor (1991, p. 203-20497). Nessa perspectiva, a

crítica dos autores se dirige à suposta crença de Sócrates de que o homem

só possui um desejo uniforme racional pelo prazer de longa duração.

Conforme o homem em akrasía pode ter outros desejos que não esse

desejo único, a formulação de Sócrates comprova ser inadequada.

Devemos considerar essas objeções posteriormente. Analisaremos,

sobretudo, se essas objeções são críticas consistentes ao texto ou se, talvez, se

96 É interessante observar a crítica de Taylor a Vlastos sobre a interpretação incorreta da

substituição de nomes operada no argumento de redução ao absurdo da akrasía (Cf. nota 87).

Nessa crítica, Taylor diz que o texto trata os termos hedone e agathon sem marcar qualquer

diferença entre os usos desses termos no singular e no plural e que, portanto, sustentar uma

distinção entre ‘submissão ao prazer’ e ‘submissão aos prazeres’ na formulação da akrasía é

implausível. Dessa forma, parece realmente estranho que o comentador chame atenção para esse

fato no texto e, ao mesmo tempo, ele próprio acuse Sócrates de fazer uma substituição ilegítima

com base em uma distinção similar. 97 Cf. capítulo 2.

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baseiam em leituras equivocadas da passagem. É preciso reconhecer,

principalmente, em que ponto as outras propostas interpretativas coincidem ou se

afastam uma da outra. Em seguida, veremos como Irwin propõe uma classificação

mais coerente do hedonismo apresentado, embora reconheça o mesmo problema

apresentado por Gosling e Taylor.

Na interpretação de Irwin, a experiência da akrasía testa o eudaimonismo

psicológico de Sócrates. Segundo essa última teoria, o fim buscado por todos os

homens ao agirem é a mais completa felicidade (eudaimonia) alcançada durante

toda a vida. Nesse sentido, toda finalidade visada pelas ações humanas está

submetida a um fim último que é a felicidade (IRWIN, 1995, p. 114). Dessa

forma, os desejos humanos são dirigidos para a aquisição de um bem final visto

como todo o conjunto de coisas, cujo valor é determinado por sua contribuição na

obtenção da felicidade. Todas as ações virtuosas, nesse caso, são orientadas por

um único fim, o bem, e o conhecimento do bem é condição suficiente para

alcançar uma vida virtuosa, ou seja, uma vida feliz. A opinião dominante desafia

essa tese socrática quando enuncia que, em determinadas ocasiões, escolhemos o

que é mais prazeroso em vez do que é melhor. Para Irwin (1995, p. 115), Sócrates

será, então, obrigado a justificar o eudaimonismo psicológico contra a explicação

usual da akrasía que constitui uma forte objeção a esta teoria. Se o filósofo

acredita que a única forma de atingir a felicidade é agir de acordo com o que

sabemos ser melhor, o homem comum, por sua vez, reconhece a obtenção de

prazer como o principal objetivo da vida humana. É muito difícil determinar se

uma pessoa é realmente feliz, dada a variedade e particularidade que a concepção

de ‘eudaimonia’ tem para cada um – pois cada pessoa se refere a um conjunto

diferente de valores necessários para a obtenção da felicidade – ao passo que é

mais fácil e objetivo determinar se um indivíduo está aproveitando sua vida

prazerosamente (Ibidem, p. 91). O hedonismo, portanto, fornece um critério

objetivo a ser alcançado pelo exercício das virtudes: o prazer. Com essas

considerações, Irwin conclui que o hedonismo não pretende substituir o

eudaimonismo, mas apresenta o prazer como um critério objetivo para determinar

o bem que é o fim último de todas as nossas ações (Ibidem, p. 83). Segundo esse

autor, Sócrates defende que os juízos cognitivos que possuímos acerca do prazer

devem orientar nossas ações acima de qualquer outro juízo, inclusive os juízos

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sobre o bem. O comentador classifica o hedonismo socrático como um hedonismo

epistemológico.

A classificação do hedonismo apresentada por Irwin possui algumas

vantagens sobre a interpretação de Gosling e Taylor. Ao contrário dos autores

citados anteriormente, Irwin acredita que Sócrates pretende demonstrar que o

prazer fornece um critério objetivo para determinar o fim último da eudaimonia.

Além disso, Irwin também consegue reconhecer o projeto de Sócrates de fundar o

hedonismo no conhecimento (epistéme). No entanto, este autor reconhece o

mesmo problema que Gosling e Taylor já haviam apontado: o agente em akrasía

ainda pode defender que é dominado por seus impulsos apesar do hedonismo. Em

seguida, devemos fazer uma análise do argumento utilizado pelos comentadores

no intuito de avaliar se sua crítica da refutação de Sócrates à descrição tradicional

da akrasía pelo hedonismo é pertinente.

Para Gosling e Taylor, o homem esclarecido mede os prazeres de curta e

longa duração em função da contribuição desses prazeres para uma vida

predominantemente prazerosa. O homem sob a ignorância da akrasía, por sua vez,

faz o cálculo errado dos prazeres por estimar mais a curta duração dos prazeres

em relação à longa duração, já que não possui o conhecimento adequado do

esclarecido, a técnica da medida. Em todo caso, é difícil compreender como o

homem ignorante deve valorizar prazeres que ele não possui já que ainda não

adquiriu o conhecimento necessário para fazer a distinção qualitativa que o

esclarecido faz. A conexão implícita do hedonismo esclarecido entre crenças e

desejos impossibilita que o ignorante sob akrasía sinta qualquer prazer em

satisfazer os desejos que só podem ser atribuídos ao homem esclarecido. Nessa

perspectiva, o hedonismo esclarecido supõe que o conhecimento dos prazeres de

longa duração possa promover desejos que o ignorante, efetivamente, não

possui98.

Gosling e Taylor reconhecem que esse homem ainda pode sustentar que

erra por conta do desejo que ele realmente tem pela instantaneidade de seus

98 Podemos associar a classificação do hedonismo sugerida por Gosling, Taylor e Irwin com o

hedonismo de satisfação cognitivamente contrafactual apresentada por Rudebusch em seu artigo O

Hedonismo de Cálicles. De acordo com Rudebusch (1999b, p. 167-168), esta teoria sustenta que ‘o

bem de uma pessoa consiste na satisfação dos desejos que ela teria quando fosse cognitivamente

esclarecida, ou seja, tivesse informação factual completa e acurada e habilidade lógica e

conceitual’. De fato, as críticas de Rudebusch a essa teoria são bastante similares as críticas

dirigidas pelos próprios autores ao hedonismo de Sócrates (Ibidem, p. 168-169).

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prazeres, tendo ou não a consciência dos efeitos futuros de suas ações. Nessa

perspectiva, Irwin, que também acredita no pressuposto motivacional99, e segue a

mesma distinção temporal dos prazeres, chega a uma conclusão similar à dos

autores. Assim como Gosling e Taylor, Irwin (1995, p. 115) também acredita que

há falhas nos argumentos apresentados por Sócrates para refutar a akrasía. Para

Irwin, particularmente, não são todos os homem sob akrasía que concordariam

com a descrição hedonista de Sócrates para este fenômeno. O agente influenciado

pela akrasía não tem que se comprometer, necessariamente, com qualquer

hedonismo para explicar sua submissão aos impulsos. Plausivelmente, ele pode

achar que determinada conduta pode ser pior ou mais dolorosa e, ainda assim, ser

atraído por ela. Embora a classificação do hedonismo oferecida por Irwin

reconheça o empenho do filósofo em encontrar um critério quantitativo que

oriente nossas ações, ele não percebe que a distinção temporal dos prazeres

inviabiliza o próprio projeto socrático. A diferença entre os prazeres próprios do

ignorante e do esclarecido, referente às crenças de cada um deles, não está em

concordância com a classificação objetiva que Sócrates procura encontrar para

diferenciar os prazeres.

Evidentemente, a distinção temporal dos prazeres apresenta um critério

inconsistente com o que Sócrates está propondo em seu hedonismo. Porquanto as

interpretações são orientadas por esse tipo de distinção qualitativa dos prazeres, é

preciso encontrar interpretações que preservem a distinção quantitativa para a qual

Irwin já havia chamado a atenção. Veremos, em seguida, que as interpretações de

Rudebusch e Nussbaum apresentam alternativas mais próximas ao que Sócrates

quer estabelecer com seu hedonismo. Sobretudo, suas interpretações ainda

possuem a vantagem de evidenciar, no texto, os argumentos que comprovam e

oferecem consistência ao critério quantitativo da tese hedonista. Os critérios

definidos por esses comentadores tentam preservar a comensurabilidade, isto é,

um parâmetro singular que permita que as escolhas disponíveis ao agente possam

ser comparadas entre si.

99 Cf. IRWIN, 1995, p. 75-76

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5.3.2

Interpretação de Rudebusch e Nussbaum – Preservação da comensurabilidade

De acordo com George Rudebsuch, a objeção formulada por Gosling e

Taylor (e reproduzida por Irwin) não viabiliza o critério quantitativo que Sócrates

busca no hedonismo a fim de preservar a comensurabilidade das escolhas

humanas. A distinção entre prazeres de curta e longa duração apresenta um

critério qualitativo que não pode orientar as ações humanas. Conforme sustentam

Gosling, Taylor e Irwin o homem sob efeito da akrasía poderia sustentar

plausivelmente a descrição tradicional do fenômeno contra o hedonismo de

Sócrates. Segundo Rudebusch (1999a, p. 24), isso ocorre porque a distinção entre

prazeres de curta e longa duração permite que a akrasía seja o resultado da

submissão à ‘sensação’ deste homem ao realizar sua ação errada. Com efeito, os

indivíduos sob akrasía normalmente alegam que foram subjugados por um

conjunto variado de sensações. De forma que essas sensações fundamentam a

crença na incomensurabilidade, isto é, a crença de que não há um parâmetro único

para comparar as diferentes alternativas à nossa disposição, não conseguimos

julgar, objetivamente, qual delas tem maior valor. No entanto, a admissão do

hedonismo elaborado por Sócrates determina que a akrasía seja descrita apenas

com base na imediatez do prazer, e não em qualquer outro critério (Ibidem, p. 24).

Desse modo, tal critério impede que a akrasía seja considerada por uma distinção

qualitativa com base, por exemplo, na diversidade das sensações. De outro lado,

Sócrates estabelece, explicitamente, que o prazer deve ser avaliado quanto à sua

quantidade, o que preserva sua confiança em relação à comensurabilidade do

hedonismo:

“E se alguém disser: Mas, Sócrates, há uma grande diferença entre o prazer

imediato (tò parachrêma hedù) e o prazer e a dor por vir (tòn hústeron chrónon)?

eu lhe perguntaria: consiste essa diferença em algo que não seja prazer e dor?

Não pode consistir noutra coisa.” (356a)

Na passagem acima, Sócrates solicita à opinião dominante que abandone a

distinção temporal dos prazeres e se concentre apenas sob uma avaliação objetiva

das alternativas de ação em termos de ‘prazer’ e ‘dor’. De fato, a crença na

distinção qualitativa entre prazeres imediatos e futuros permite que o homem em

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akrasía justifique seu erro em função de seu desejo pelo ‘prazer imediato’.

Contudo, na medida em que Sócrates estabelece que o prazer e a dor devem ser

avaliados objetivamente, ele inviabiliza a crença na incomensurabilidade do

prazer imediato. Como ressalta Rudebusch, o hedonismo assegura a

comensurabilidade das escolhas e fundamenta a ação correta com base no

conhecimento.

Rudebusch alega que o desenvolvimento do hedonismo por Sócrates se

funda sobre a ambição do filósofo em encontrar um critério comensurável que

assegure a deliberação humana contra o fenômeno da akrasía (Ibidem, p. 25).

Essa interpretação, efetivamente, encontra ecos na posição defendida por

Nussbaum em A fragilidade da bondade. De acordo com Nussbaum (2009, p. 97),

a tese hedonista é defendida por Sócrates não pelo interesse isolado no prazer,

mas com o objetivo de encontrar um fim singular para fundamentar sua técnica

prática : “Sócrates o adota [prazer], antes, por causa da ciência que ele promete, e

não por sua própria plausibilidade intrínseca”. Nessa perspectiva, o hedonismo

surge como uma tese experimental capaz de viabilizar a elaboração de uma

técnica prática que forneça à deliberação humana a precisão encontrada nas

técnicas de contagem ou mensuração de objetos (Ibidem, p. 95-96). Como indica

Nussbaum, a concepção de uma técnica deliberativa amparada sob a base de um

padrão de medida comensurável e homogêneo não é estranha às reflexões éticas

do tempo de Platão. No século V e início do século IV, a possibilidade de

quantificar os objetos através de algum padrão de medida servia para avaliar o

maior grau de precisão de determinadas técnicas com relação às outras (Ibidem,

2009, p. 95). Na época de Platão, toda técnica, para ser reconhecidamente

racional, devia possuir algum padrão de medida quantitativo e demonstrar o

controle de seus objetos através da mensuração. No caso da deliberação prática, é

comum naquela época, como para nós hoje em dia, pesar as alternativas, medir

qual opção acarreta as melhores consequências. Sem dúvida, o diálogo

Protágoras é uma obra influenciada por toda a tradição de reflexão sobre as

técnicas e do seu progresso sobre a vida humana, como podemos evidenciar nas

discussões de seus personagens. A técnica da medida elaborada por Sócrates,

portanto, resulta propriamente de uma aspiração grega da época que tinha a

ambição de criar uma técnica deliberativa mais precisa. Com o auxílio desta

técnica, Sócrates pode assegurar a ação virtuosa sobre o conhecimento. No

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entanto, é necessário que a deliberação humana não possa ser impedida pelo poder

dos impulsos como no fenômeno da akrasía segundo a crença tradicional. Dessa

forma, devemos elaborar uma classificação apropriada do hedonismo apresentado

por Sócrates para compreender qual é sua descrição alternativa para akrasía.

Como observamos, a única diferença à qual Sócrates chama atenção na sua

distinção entre os prazeres é a distinção objetiva de ‘prazer’ e ‘dor’ por sua

quantidade. Através desse hedonismo, o filósofo encontra um critério

comensurável que preserva a possibilidade de comparação entre alternativas

diferentes de escolha. No entanto, apenas isso não é suficiente para

compreendermos o hedonismo apresentado aqui. Durante a exposição dessa tese,

Sócrates recorre à necessidade de se determinar a extensão das ‘proporções’ de

nossas alternativas de escolha em prazer e dor (356b-c). De acordo com o filósofo,

a ‘ilusão’ da aparência presente nos leva a considerar que o prazer imediato de

nossas opções imediatas é mais valoroso do que o prazer contido em suas

consequências. Nesse caso, os prazeres são julgados por um critério qualitativo

que não nos permite compará-los adequadamente. Como mostramos, a diferença

qualitativa entre a particularidade do prazer imediato e o prazer a longo prazo

provoca o conflito de valores fundamental para a crença na descrição tradicional

da akrasía. Por outro lado, o escrutínio da técnica da medida nos leva a

redimensionar os valores de nossas opções ao revelar as dimensões reais do prazer

imediato em face dos prazeres futuros.

Com base nessas indicações, Rudebsuch (1999a, p. 24-25) acredita que

podemos obter uma classificação mais precisa do hedonismo elaborado pelo

filósofo. Segundo o intérprete, a distinção que Sócrates, efetivamente, postula no

Protágoras é a diferença entre magnitudes reais e aparentes de prazer (Ibidem, p.

24-25). Essa distinção preserva a proposta hedonista de Sócrates, enquanto a

distinção qualitativa dos prazeres não é capaz de garantir a consistência do

hedonismo contra a crença tradicional na akrasía. Se analisarmos a tese hedonista

sob esse ângulo, podemos compreender melhor a tese socrática da ignorância da

akrasía proporcionada pela aparência dos prazeres (357d). Em sua interpretação,

Rudebusch utiliza exemplos envolvendo deliberação pela maior quantidade de

dinheiro para ilustrar a escolha de um homem em akrasía que está comprometido

com o hedonismo e, ao mesmo tempo, escolhe o prazer que considera ser menor.

O comentador solicita que consideremos o caso de um homem que escolhe uma

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grande pilha de dólares em vez de um cheque que contém efetivamente mais

dinheiro (pp. 25-26). Se levarmos em conta que o agente, sendo hedonista, sabe e

intencionalmente deseja adquirir a maior quantidade de dinheiro, sua ação parece

ser inexplicável. Embora possamos pensar em um conjunto de motivações que

poderiam influenciar sua deliberação – como segurança, infantilidade, novidade

etc. -, teríamos que afirmar que sua decisão foi baseada apenas na aparência da

pilha de dólares. Nessa perspectiva, desejos externos não precisam ser inseridos

na explicação conforme eles contribuem para a crença na incomensurabilidade

rejeitada pelos critérios do hedonismo (Ibidem, p. 26). Na realidade, é

simplesmente a aparência da pilha de notas que leva o agente a julgar que a

quantia de dinheiro da pilha é maior do que a contida no cheque. Assim, se nos

mantivermos hedonistas, seremos obrigados a reconhecer que é apenas o

imediatismo da aparência do prazer que pode justificar a crença equivocada e, ao

mesmo tempo, impedir a avaliação correta do que vai proporcionar maior prazer.

Como ressalta Rudebusch, o dinheiro, assim como o prazer, é uma quantidade

abstrata cuja magnitude real só pode ser identificada através da aparência. O

prazer, no entanto, tem a capacidade de aparecer de maneira muito mais variada

que o dinheiro. Assim, a vulnerabilidade do agente, diante do prazer, faz com que

seu juízo acerca das proporções de suas opções seja alterado por conta da presença

de um prazer imediato.

O erro da akrasía se baseia na ignorância do imediatismo de prazer que

não permite identificar as magnitudes reais dos prazeres, ou seja, aqueles prazeres

realmente desejados pelo agente. De fato, a avaliação quantitativa com a técnica

do hedonismo possibilita que o homem sob akrasía tome consciência do que ele

realmente deseja. Ao contrário do que indica a interpretação de Gosling e Taylor,

não precisamos postular qualquer diferença entre os desejos do ignorante e do

homem esclarecido, pois ambos contém o mesmo tipo de desejo pelo maior prazer

durante uma vida100. A única diferença é que o homem esclarecido tem

100 Como Rudebush (1999a, p. 27) supõe que Sócrates sustenta o mesmo tipo de hedonismo no

Protágoras e no Górgias julgamos que a classificação do hedonismo socrático nas duas obras é

contínua e complementar. Em outras palavras, acreditamos que a classificação do hedonismo

socrático do Protágoras apresentada em Ethical Protagoreanism é complementa pela classificação

do hedonismo de Sócrates no Górgias presente no artigo O Hedonismo de Cálicles. Neste segundo

artigo, Rudebusch (1999b, p. 171-172) ressalta que Sócrates no Górgias apresenta um hedonismo

do desejo verdadeiro. De fato, a teoria do desejo verdadeiro é compatível com o hedonismo de

magnitudes reais e aparentes do Protágoras. De acordo com Rudebusch, o hedonismo esclarecido

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conhecimento dos prazeres que são realmente desejados, enquanto o homem

ignorante acredita buscar os prazeres que deseja, embora não obtenha o que

realmente quer. A partir de Rudebusch, podemos compreender que a formulação

do fenômeno da ignorância dos prazeres permite considerar a akrasía como uma

espécie de erro de cálculo das proporções de prazer pelo efeito da aparência.

Dessa forma, o cálculo pode ser corrigido com o auxílio da técnica da medida que

apresenta as proporções reais de prazer em contraste com os prazeres aparentes. A

distinção entre magnitudes reais e aparentes parece preservar a comensurabilidade

da tese hedonista ao mesmo tempo em que fornece um parâmetro para analisar a

descrição alternativa da ignorância da akrasía. Nessa perspectiva, a substituição

da descrição tradicional da akrasía por ignorância é fundamental para que as

motivações irracionais não possam justificar o erro do agente.

Com o hedonismo, Sócrates consegue reformular a crença na

incomensurabilidade que provoca a akrasía, e propõe uma descrição do fenômeno

em termos que estabelecem o controle dos impulsos pelo conhecimento. Como

indica Rudebusch (1999a, p. 25), o argumento anti-akrasía orientado pelo

hedonismo rejeita a incomensurabilidade responsável pela crença na subjugação

do homem pela força do desejo pelo prazer imediato. Posto que o hedonismo de

Sócrates exige a comensurabilidade das escolhas da vida, não haverá espaço para

a consideração qualitativa que promove desejos externos no agente. De outro

lado, Nussbaum sustenta que as premissas hedonistas exigem um

redimensionamento da descrição tradicional (2009, p. 101): ‘O que Sócrates fez

não foi tanto provar que jamais pode haver tais falhas, quanto esclarecer a relação

entre um certo retrato da racionalidade deliberativa e o problema da akrasia’.

Realmente, a admissão do hedonismo pela opinião dominante nos levou a

considerar que o ser humano contém duas forças motivacionais elementares em

sua deliberação: um impulso pelo prazer e uma repulsa pela dor (354c). Como

vimos, a busca pelo prazer e a fuga da dor na deliberação humana se expressa em

termos quantitativos, tendo em vista a vida do agente como um todo. A partir

desse novo retrato da deliberação, o filósofo efetua sua refutação da descrição da

akrasía sustentada pela opinião dominante. Nessa perspectiva, Nussbaum afirma

que um agente auxiliado pela técnica hedonista sustentada por Sócrates não vai

permite que o agente se dê conta do que realmente deseja embora não pudesse percebendo

enquanto se encontrava em um estado anterior de ignorância.

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desenvolver a akrasía na concepção tradicional (2009, p.102): “[o hedonismo]

modifica as paixões, extinguindo as motivações que agora temos por certos tipos

de comportamento irracional”. Sendo assim, parece que tanto Rudebusch quanto

Nussbaum acreditam que o hedonismo socrático não apenas inaugura uma nova

formulação do fenômeno, mas também extingue as motivações irracionais que

contribuem para a existência do que a opinião dominante caracteriza como

akrasía. Com base nessa corrente de interpretação, precisamos compreender

melhor o que fundamenta as motivações irracionais que possibilitam a experiência

da akrasía tal como compreende a opinião dominante.

De acordo com Nussbaum e Rudebusch, se o hedonismo de Sócrates

promove a comensurabilidade dos valores das alternativas de ação essencial para

que ocorra a ação correta, a força da akrasía reside em um elemento contrário: a

crença do agente na incomensurabilidade de suas opções. Na perspectiva do

agente, uma das alternativas contém uma qualidade particular que não lhe fornece

nenhum parâmetro objetivo para avaliá-la com outras alternativas possíveis. Dessa

maneira, a crença no valor qualitativo do objeto, ou atividade, faz com que o

agente sinta um impulso irresistível para obtê-lo. Para compreender como a

incomensurabilidade ocorre na akrasía, podemos julgar que um homem, sabendo

que y é pior que x, é levado escolher y porque julga, no momento da ação, que y

tem uma qualidade atraente que x não contém. Com efeito, ambas as

interpretações dos comentadores se apoiam sobre a relação intrínseca entre

incomensurabilidade e o fenômeno da akrasía na concepção tradicional.

As interpretações desses autores são amparadas em um conjunto de

exemplos que servem para ilustrar os argumentos hedonistas de Sócrates contra a

descrição tradicional do fenômeno. No entanto, precisamos salientar que as

interpretações explicam a crença da opinião dominante na incomensurabilidade da

akrasía de formas diferentes. Como notamos, Rudebusch (1999a, p. 22-24) atribui

o efeito da akrasía à crença na distinção qualitativa das opções de ação

disponíveis, o que acarreta a pluralidade heterogênea das alternativas e a

incomensurabilidade entre elas. Tendo em conta exemplos de aumento de salário,

ele mostra que a maioria das pessoas pode atribuir seus erros à influência de

desejos particulares, mesmo que utilize um padrão quantitativo para avaliar o que

é melhor (Ibidem, p. 22). De fato, as razões pelas quais a maioria alega escolher a

alternativa menos rentável ao invés da mais rentável – fetiche, prazer imediato,

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novidade, consideração pelos outros, etc. – não correspondem a uma simples

opção de mais ou menos. A crença em um conjunto variado de motivações

instaura a incomensurabilidade no processo de deliberação humana e elimina, por

suposto, a perspectiva de um parâmetro comensurável para a decisão. Como

Rudebusch indica, sua descrição da questão da incomensurabilidade tem claras

origens na leitura de Nussbaum.

Nussbaum, por outro lado, também verifica o poder da

incomensurabilidade da akrasía e entra em mais detalhes sobre o que ocorre nesse

fenômeno. A partir de uma clara alusão à personagem Fedra de Eurípides,

Nussbaum mostra que não é possível escolher o menor montante se a pessoa

utiliza um critério quantitativo de deliberação. (p. 102). Em todo caso, Nussbaum

ressalta que não é apenas uma qualidade que modificou seu juízo, mas uma forma

de especialidade que torna sua escolha única e insubstituível. De acordo com a

autora, o poder da akrasía reside exatamente nesta característica:

“A akrasia, como a conhecemos e vivemos, parece depender da crença que os

bens são incomensuráveis e especiais: que essa rosca, essa pessoa, essa atividade,

embora em certo sentido não tão boa em geral quanto sua rival, tem, entretanto,

um gênero especial de bondade que nos impulsiona a ela, bondade que não

poderíamos obter exatamente da mesma forma se formos na outra direção.”

(2009, p.103)

Dessa forma, podemos claramente pensar que um homem em akrasía pode

avaliar, objetivamente, o que deve fazer e, no entanto, ser influenciado por uma

variedade de crenças na especialidade dos objetos ou das atividades a nossa

disposição no momento da ação. Com isso, abrimos espaço para o

desenvolvimento das motivações irracionais, com o objetivo de justificar o desejo

pela satisfação imediata e a ação contra o que se considera ser melhor. Ao amante,

ao alimento ou à atividade é atribuído um valor especial, de modo a torná-lo

incomensurável em relação aos outros bens envolvidos na ação, mesmo diante da

evidência racional de que é melhor deixá-los de lado. Com efeito, a crença na

qualidade especial nos leva a considerar que qualquer outra perspectiva de ação

não tem o mesmo valor que a alternativa da satisfação imediata. Durante o

processo de deliberação, ocorre o que Sócrates chamava de uma ‘mudança das

resoluções’ (metalambánein) a respeito do que se deve fazer (356d). Em outras

palavras, há uma obstrução temporária da consciência das medidas objetivas das

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alternativas por conta de uma apreciação qualitativa do prazer imediato no

momento da ação (NUSSBAUM, 2009, p. 100)101. Como bem ressaltou

Rudebusch, a crença incomensurável do agente é provocada simplesmente em

função da aparência do prazer imediato. Após a passagem do efeito da aparência,

o agente volta a si, consegue retomar sua crença nas proporções reais dos prazeres

envolvidos na ação e se arrepende do que fez. Por outro lado, com o

conhecimento promovido pela técnica da medida, a aparência do prazer imediato

será ineficaz (ákuron) contra a firme resolução do agente em relação à verdadeira

magnitude de suas escolhas. A partir das interpretações de Nussbaum e

Rudebusch, conseguimos esclarecer alguns aspectos das referências de Sócrates

ao engano da aparência dos prazeres imediatos e à correção de tal ilusão através

da técnica da medida.

Para esclarecer a proposta interpretativa dos autores em relação à

formulação da akrasía de Sócrates, vamos retomar o exemplo anterior, e mostrar

de que maneira o surgimento da crença na incomensurabilidade pode intervir no

cálculo de prazer do agente102. Tendo isso em mente, devemos discutir o caso do

diabético sob a ótica do hedonismo comensurável. Se aceitarmos o hedonismo,

reconhecemos então que todo homem estima a alternativa mais prazerosa com

base em um critério quantitativo, e busca, deliberadamente, a opção que lhe

proporcionará o maior prazer. No caso do diabético, por exemplo, ele julga que

não comer a torta lhe garantirá melhor saúde, ou seja, maior prazer do que a

alternativa de comê-la e arriscar sua saúde em t1. Durante este momento, portanto,

o diabético está comprometido a avaliar suas alternativas como se fossem um

montante maior e outro montante menor de prazer. Nessa perspectiva, se o

diabético é hedonista e tem consciência de qual é a alternativa que contém maior

prazer, seu trabalho parece ser bastante facilitado. No entanto, alguma coisa

ocorre com o diabético no momento da ação, em t2, e ele acaba optando por

comer a torta, não apenas pondo em risco sua saúde, mas contrariando sua

deliberação anterior em função de seu próprio benefício. Uma vez que os critérios

puramente quantitativos do hedonismo não justificam a escolha tomada, é

necessário então que a decisão tenha seu fundamento em outro tipo de critério.

101 Cf. PENNER, 1997, p. 132-133; DEVEREUX, 1997, p. 391 102 Minha formulação se inspira nos exemplos apresentados por Nussbaum (2009), Rudebusch

(1999a) e Penner (1997).

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Nesta perspectiva, o diabético pode alegar que sua deliberação foi submetida pela

aparência suculenta da torta, pela iminência da satisfação imediata, por um desejo

repentino etc. De acordo com Rudebusch e Nussbaum, as inúmeras razões que um

homem em akrasía pode invocar para justificar seu erro são provenientes da

inserção de um critério qualitativo durante a deliberação do agente. Sendo assim,

podemos considerar que o diabético age apenas em função da crença no valor

qualitativo da torta, que impede qualquer consideração objetiva da perspectiva de

não comê-la em t2. Na sequência, em t3, o agente volta a julgar suas alternativas

sob a ótica hedonista e se repreende pelo que fez. Para manter a resolução da

deliberação durante a ação, é necessário, então, a técnica da medida que preserva

o critério comensurável das alternativas e inviabiliza o desenvolvimento de

motivações irracionais no momento da ação. Com isso, obtemos um retrato mais

detalhado da descrição tradicional da akrasía e da reformulação de Sócrates do

fenômeno no Protágoras.

Apesar dos autores se esforçarem para tornar a descrição da akrasía de

Sócrates mais coerente, sua proposta interpretativa também está aberta a objeções.

De um lado, Rudebusch e Nussbaum conseguiram preservar o critério da

comensurabilidade buscado por Sócrates em seu hedonismo, evitando então o

problema da distinção temporal dos prazeres da interpretação de Gosling, Taylor e

Irwin. De outro lado, Rudebusch e Nussbaum, assim como os outros

intérpretes103, desconsideraram qualquer influência dos desejos não racionais em

sua proposta interpretativa da refutação da akrasía por Sócrates. Como veremos a

seguir, a recusa em inserir os desejos não racionais em sua análise da

reformulação da akrasía pelo filósofo se deve ao pressuposto do ‘intelectualismo

motivacional’, compartilhado pela corrente intelectualista. Como observamos, o

pressuposto motivacional defende que o personagem Sócrates acredita que todos

os desejos são desejos racionais pelo que é melhor para mim. Na sequência,

103 Como vimos anteriormente, Gosling, Taylor e Irwin assumem claramente sua vinculação ao

pressuposto motivacional. Sendo assim, eles também assumem que Sócrates não reconhece a

influência dos desejos não racionais. Por essa razão, os comentadores dirigem a descrição

alternativa de Sócrates justamente uma crítica que é direcionada, na realidade, ao próprio

pressuposto motivacional que eles atribuem ao filósofo. Segundo eles, o homem em akrasía ainda

poderia sustentar a descrição tradicional em função de seu desejo não racional pela satisfação

imediata. Contudo, em primeiro lugar, observamos que a objeção dos autores se fundamenta em

uma concepção equivocada do hedonismo socrático. Por outro lado, se supormos que Sócrates, na

realidade, reconhece a influência dos desejos não racionais na explicação da ação humana, como

veremos a seguir, essa objeção perde completamente seu sentido.

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vamos mostrar que a exclusão dos desejos não racionais da interpretação de

Rudebusch e Nussbaum acaba desfavorecendo a descrição alternativa do filósofo

em alguns aspectos. A partir de Brickhouse e Smith, defenderemos que apenas a

postulação dos desejos não racionais é capaz de contornar os problemas

apresentados a seguir.

As interpretações de Nussbaum e Rudebusch se comprometem com o

pressuposto intelectualista de que toda ação deliberada é motivada,

exclusivamente, pelo desejo racional do que é melhor para o agente, ou seja, o que

contribui para sua eudaimonia. Assim, essa interpretação intelectualista (como a

designaremos de agora em diante), sugere que o poder das aparências no

fenômeno da akrasía é motivado por uma espécie de erro estritamente intelectual

que dispensa a influência dos desejos não racionais (BRICKHOUSE; SMITH,

2010, p. 74-75; DEVEREUX, 1995, p. 394). Para a corrente intelectualista, ou

bem os desejos não racionais não existem ou, mesmo se existirem, não cumprem

nenhum papel direto na explicação da ação (BRICKHOUSE; SMITH, 2010, p.

52). Nessa perspectiva, poderíamos até conceder que a intenção do filósofo seja

essa mesma, uma vez que ele rejeita qualquer referência aos diversos impulsos

invocados pela opinião dominante na descrição comum da akrasía (352c-d). Se

admitirmos essa hipótese de interpretação, como indica Devereux (1995, p. 394),

estaremos inclinados a assumir que o erro ilusório da akrasía e a correção da

técnica da medida devem ser tomados em sentido literalmente espacial. Sendo

assim, podemos dizer que é simplesmente a aparência do prazer imediato que leva

o homem em akrasía a julgar erroneamente suas alternativas no momento da

ação. De acordo com essa leitura, a proximidade de um objeto que causa prazer

imediato nos provoca uma crença ilusória de que é possível adquirir mais prazer

do que efetivamente podemos obter. Na medida em que o momento da decisão

passa (e o objeto não está mais em nossa frente), nos livramos da aparência do

prazer imediato fornecida por ele, e conseguimos voltar a julgar apropriadamente.

Nessa interpretação, portanto, a perspectiva visual do prazer imediato provoca

uma alteração nas crenças do agente que o leva a cometer o ato de akrasía no

momento da ação.

Se seguirmos as indicações da interpretação intelectualista, deveríamos

admitir que é simplesmente a presença da ‘aparência’ de prazer que causa a

alteração nas crenças do agente em akrasía. Como mostram Brickhouse & Smith,

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as interpretações intelectualistas, de modo geral, acreditam que o homem que

comete a akrasía deve obter uma nova informação no momento da ação, em

função da aparência ou de qualquer outra razão, que o desvie de sua deliberação

correta (BICKHOUSE; SMITH, 2010, p. 76). Nessa medida, Sócrates, juntamente

à opinião dominante, não parece descrever o mesmo fenômeno e, em

consequência disso, o filósofo não conseguiria convencer, efetivamente, a

personagem da refutação da formulação tradicional. A opinião dominante pode

insistir que uma descrição apropriada do fenômeno deve ter em conta que a

informação acerca do objeto prazeroso não seja alterada durante a ação. Assim, a

insistência das propostas intelectualistas em tratar a formulação socrática da

akrasía como um tipo de ilusão de ótica provocada pela ‘aparência’ do prazer, não

conseguem explicar o fenômeno da maneira adequada. Como esses intérpretes

supõem que Sócrates exclua os desejos não racionais de sua descrição da akrasía,

compreendemos qual o motivo que leva os intelectualistas a interpretarem as

imagens espaciais em sentido literal.

As interpretações intelectualistas desenvolvidas por Rudebsuch e

Nussbaum acabam incorrendo em alguns equívocos. Os intérpretes acreditam que

apenas o desejo racional pode explicar a reformulação da akrasía apresentada por

Sócrates. Com efeito, esse ponto de vista traz uma série de problemas que

enumeramos a seguir: (1) como já ressaltamos, os intérpretes sustentam que

apenas a proximidade do objeto prazeroso suscita uma nova informação

responsável por alterar as crenças do agente no momento da ação104. Os

problemas gerados por essa hipótese já foram suficientemente abordados acima;

(2) essas interpretações não apenas desconsideram a influência dos desejos não

racionais, mas alegam também que a descrição alternativa da akrasía, apresentada

por Sócrates, simplesmente elimina o efeito das motivações irracionais sobre a

deliberação do agente: Rudebusch (1999a, p. 26), por exemplo, descarta sem

hesitação os ‘desejos externos’ da explicação da akrasía a partir do hedonismo (p.

26); Nussbaum (2009, p. 102), como observamos, sustenta que o hedonismo

socrático elimina o poder das motivações irracionais sobre a ação humana; e (3)

embora não tenhamos no Protágoras qualquer análise acerca da natureza do

prazer, os intérpretes não hesitam em atribuir qualidades ao prazer que não são

104 Cf. RUDEBUSCH, 1999a, p. 26; NUSSBAUM, 2009, p. 101

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tratadas diretamente por Sócrates durante o diálogo105. Dessa maneira, Nussbaum

(2009, p. 97), assume que “[o prazer] é algo que poderíamos pensar reduzir todos

os outros valores”106, enquanto Rudebusch (1999a, p. 26) sustenta que “[o prazer]

pode aparecer com maior variedade e particularidade do que o dinheiro” (tradução

nossa). Nesse sentido, as dificuldades que originam dessas interpretações

intelectualistas podem ser contornadas se considerarmos a influência dos desejos

não racionais dentro da explicação de Sócrates. No capítulo 2, observamos que

uma corrente de intérpretes sustenta que o Sócrates dos primeiros diálogos

efetivamente acredita no poder desses desejos. Resta saber se o diálogo

Protágoras também abre espaço para essa perspectiva, especialmente no

argumento da refutação da akrasía por Sócrates.

105 Em uma resenha do livro Socrates, Pleasure and Value, Taylor (2001) endereça críticas a

Rudebusch por sugerir uma teoria da natureza do prazer que não pode ser encontrada no

Protágoras. 106 Cf. IRWIN, 1995, p. 88-89. Verificamos esses pressupostos pelas próprias palavras de Irwin

(Ibidem, p. 88): “O hedonismo parece sustentar a versão fundacionalista do eudaimonismo. O

prazer parece ser um objeto de desejo autoexplicativo e final. (...) Pois o prazer parece ser um fim

indubitavelmente digno de escolha” (nossa tradução). De fato, esse aspecto da interpretação de

Irwin é explicitamente mencionado por Brickhouse e Smith (2010, p. 73).

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5.3.3 Interpretação de Brickhouse e Smith – Desejo racional e desejo não racional

Antes mesmo de Brickhouse e Smith chamarem atenção para o

reconhecimento da influência dos desejos não racionais por Sócrates nos

primeiros diálogos, foi Devereux, em seu trabalho pioneiro, quem notou

primeiramente que a descrição alternativa da akrasía no Protágoras não é uma

negação desses desejos tal como julgam os intelectualistas107. Segundo Devereux

(1995, p. 388-389), temos ao menos dois fatores que contribuem para a hipótese

de que Sócrates efetivamente reconhece os desejos não racionais durante a

discussão presente em 352a-358d: (1) se olharmos com mais atenção a passagem

352b-d, observaremos que Sócrates não está rejeitando o recurso aos desejos não

racionais como explicação de nossas ações. No contexto dessa passagem, o

filósofo busca a concordância de Protágoras com relação à tese de que o

conhecimento não pode ser ‘arrastado’ (perielkoménes) ou ‘dominado’

(kratestethênai) pelos impulsos (352c). De fato, os interlocutores parecem supor

que há um conflito interno entre o conhecimento e os impulsos, mas reconhecem

que o conhecimento jamais pode ser subjugados por essas outras forças

motivacionais. Como vimos anteriormente, a conclusão do filósofo de que o

conhecimento ‘sempre vence (krateîn) o prazer e todas as outras coisas’(357c),

retoma a tese anterior e apenas reforça esta proposta interpretativa; e (2) durante a

discussão com Protágoras e a opinião dominante, tanto o filósofo quanto seus

interlocutores se referem ao fenômeno da akrasía como um tipo de ‘experiência’

(tò páthos; tò páthema – 352e-353a; 357c-d). Sendo assim, Sócrates não está

negando a existência do fenômeno, mas está buscando por uma descrição mais

107 Kahn (1996) e Weiss (2007) acreditam que Sócrates nos primeiros diálogos acredita no poder

dos desejos não racionais, mas negam, no entanto, que ele sustente essa crença especificamente em

sua refutação da descrição tradicional da akrasía. Segundos esses autores, Sócrates recusa

qualquer referência aos desejos não racionais porque seu interesse é levar as crenças de seus

interlocutores, Protágoras e a opinião dominante, à contradição com o propósito de fazer com que

eles possam assentir ao paradoxo em 358d e, consequentemente, reconhecer a tese de que virtude é

conhecimento. Como essa estratégia argumentativa, envolve a tese de que Sócrates está sendo

insincero acerca de suas verdadeiras crenças, acreditamos que a interpretação desses autores é

implausível. De outro lado, é realmente estranho, como observamos, que Sócrates reconheça o

poder das motivações irracionais em todos os outros diálogos mas apenas no Protágoras ele abra

mão de sua crença para efeitos retóricos. Sendo assim, estamos inclinados a buscar outra proposta

de interpretação que possa contemplar a presença desses tipos de desejos na descrição alternativa

da akrasía.

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apropriada para o que a opinião dominante diz ser a ‘submissão pelo prazer’. Com

isso, podemos sustentar que o filósofo está disposto a analisar o mesmo fenômeno

que a opinião dominante reconhece. Porquanto a experiência é marcada por um

conflito de desejos, a tarefa de Sócrates será demonstrar que o conhecimento não

é subjugado durante esse processo. Aparentemente encontramos nosso caminho

livre para considerar a influência dos desejos não racionais na descrição

alternativa de Sócrates.

Todavia, seria possível considerarmos, ainda, uma objeção hipotética da

corrente intelectualista a nossa hipótese. Como indicam Brickhouse e Smith

(2010, p. 79), os defensores dessa doutrina poderiam alegar que a inserção dos

desejos não racionais no argumento de Sócrates torna a própria reformulação da

akrasía indistinguível da formulação da opinião dominante. Nesse caso, teríamos

que admitir, necessariamente, que o homem em akrasía é submetido por seus

impulsos e não por sua crença equivocada. No entanto, essa objeção não procede

se considerarmos que desejo racional e desejos não racionais não são fatores

excludentes, mas complementares. Não há nenhuma contradição entre a tese do

eudaimonismo socrático, segundo a qual agimos de acordo com o desejo racional

pelo que é melhor para nós (em função da eudaimonia), e a existência de desejos

não racionais que se direcionam para a satisfação imediata. Com isso,

conseguimos preservar a tese de Sócrates, pois não temos que assumir que a

deliberação pode sofrer a intervenção direta dos impulsos, tal como julga a

opinião dominante. Na realidade, as implicações da refutação da akrasía nos

levam a sustentar que as paixões só podem interferir na deliberação através do

desejo racional, que é a única força motivacional responsável pela realização da

ação deliberada. A partir dessas evidências, somos levados a admitir que a

introdução dos desejos não racionais na descrição do filósofo pode nos auxiliar a

compreender o que Sócrates quer designar pelo ‘poder das aparências’ em sua

reformulação da akrasía. Sendo assim, nos propomos a explorar a hipótese

apresentada tanto por Devereux quanto por Brickhouse e Smith, no intuito de

analisar com mais profundidade a tese de Sócrates.

Com a introdução dos desejos não racionais no argumento do filósofo

poderemos reformular a experiência da akrasía como uma forma de ignorância.

Como observamos anteriormente no capítulo 2, o paradoxo socrático estabelece

que qualquer crença, seja ela verdadeira ou falsa, é suscetível à alteração, em

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função das circunstâncias em que nos encontramos, ao passo que o conhecimento

se mantém estável durante a ação. Naquela ocasião, ressaltamos, no entanto, que o

paradoxo socrático é uma negação absoluta da crença-akrasía sincrônica, isto é, a

possibilidade de ocorrer uma ação contrária à crença no momento da ação. Uma

vez que Sócrates reconhece a existência da crença-akrasía diacrônica, podemos

entender a descrição alternativa da akrasía como um efeito temporário de

alteração das crenças do agente no momento da ação (DEVEREUX, 1995, p. 391,

PENNER, 1997, p. 123-125). Como aponta Devereux (1995, p. 394-395), a

instabilidade da crença em um ato de akrasía não se deve à aproximação espacial

do objeto ao agente mas, na realidade, à influência dos desejos não racionais. A

crença, em contraposição à estabilidade do conhecimento, será vulnerável à

influência dos impulsos, e ela pode ser modificada, por sua vez, durante a

realização da ação. Conforme a crença presente na deliberação é simplesmente um

juízo que determina qual das alternativas é a melhor, é apenas por meio da própria

crença que os impulsos podem levar o agente a desacreditar no seu juízo anterior

acerca do que é melhor. Em termos formais, diríamos que um homem é capaz de

julgar que x é melhor que y e, no momento de agir, passar a considerar que y é

efetivamente melhor sob a influência das paixões. Dessa forma, podemos explicar

o poder das aparências apenas através da introdução dos desejos não racionais.

Nesses termos, a tese de Sócrates não pode mais ser tratada como um erro

puramente intelectual (Ibidem, p. 395). Devemos assim, buscar alternativas para a

leitura intelectualista da passagem.

Dando prosseguimento ao caminho aberto por Devereux, Brickhouse e

Smith levam mais adiante a sugestão de encontrar uma interpretação diferente da

passagem 356b-357e, que contemple a influência dos desejos não racionais. Com

efeito, por mais que o vocabulário utilizado por Sócrates, ao tratar do poder das

aparências e da técnica da medida, pareçam sugerir uma perspectiva espacial

(356c), provavelmente há algo mais em jogo. Segundo Brickhouse e Smith (2010,

p. 75), a perspectiva intelectualista interpreta a tese da ignorância da akrasía como

um tipo equívoco causado pela proximidade do objeto prazeroso, o que causa uma

série de problemas. Em casos de proximidade espacial, o que ocorre é o contrário

do que eles alegam. Com certa frequência, supomos que a proximidade do objeto

nos leva a ter uma percepção mais verídica do mesmo, e não mais enganadora.

Assim, Sócrates precisaria nos explicar porque o prazer se torna mais enganador à

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medida que se aproxima de nós. Essa explicação está ausente do diálogo. De

acordo com os comentadores, teremos maior entendimento das observações de

Sócrates, no que concerne ao efeito da aparência de prazer, se analisamos a

proximidade espacial como uma analogia para a proximidade temporal (Ibidem, p.

76-77). Não seria, portanto, simplesmente a ‘aparência’ do objeto prazeroso a

causa da hesitação do agente em sua decisão, mas a iminência da ação que

promove a crença ilusória de que o prazer imediato será mais benéfico do que ele

realmente é. A técnica da medida, por outro lado, seria responsável por nos

distanciar da contingência do momento da ação e permitir a manutenção da

perspectiva verdadeira de nossas decisões. Ora, mas se não é efetivamente a

aparência do objeto prazeroso que provoca o equívoco, como a iminência da ação

pode provocar esse efeito? De que maneira a técnica da medida poderia corrigir a

ilusão dessa ‘aparência’? Como veremos a seguir, a explicação do poder das

aparências apresentado por Sócrates ganha consistência conforme consideramos o

papel desempenhado pelos desejos não racionais.

Para mostrar como a introdução dos desejos não racionais pode deixar a

explicação de Sócrates mais clara, vamos recorrer mais uma vez ao exemplo do

diabético. Como vimos, o diabético come a torta de limão, agindo contrariamente

ao que julgava antes e depois da ação, ou seja, cometendo uma crença-akrasía

diacrônica. Sendo assim, existe alguma razão no momento da ação que o leva a

julgar que comer a torta será melhor, isto é, lhe proporcionará mais prazer que o

sofrimento subsequente. De fato, constatamos que não pode ser o caso de que a

torta ‘parece’ ou ‘enganosamente parece’ ser melhor, meramente porque se

encontra na sua frente. Sem dúvida, Sócrates concordaria que o homem se sente

atraído pela torta no momento da ação e que age na crença de que comer a torta

será mais benéfico para si mesmo. Contudo, não é em qualquer circunstância que

a torta é atraente para o diabético. Se o homem não tivesse um apetite tão grande

pela torta, por exemplo, provavelmente não teria se inclinado a comê-la. Numa

ocasião em que seu apetite está saciado, por exemplo, o diabético não cometeria a

akrasía. Como indicam os autores (Ibidem, 77-78), podemos suspeitar que apenas

uma mudança no interior do agente poderia explicar o erro motivado pelo poder

das aparências. Sendo assim, podemos reconhecer que o efeito das aparências

exercido pela torta é provocado, na realidade, pela influência de um desejo não

racional sobre a deliberação no momento da ação. Nessa interpretação, não

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dependemos mais do surgimento implausível de uma nova informação no

momento da ação, para explicar a alteração das crenças do agente em akrasía,

como defende a interpretação intelectualista. Além disso, devemos levar em conta

que tal homem não muda seu desejo racional pelo que é melhor, porém deixa seu

desejo não racional convencer sua deliberação de que um objeto de satisfação

imediata é realmente bom. Com efeito, a interpretação de Brickhouse e Smith

reforça a proposta de Devereux ao revelar o papel decisivo dos desejos não

racionais na elucidação do efeito das aparências. A partir dessa hipótese, podemos

vislumbrar como o conhecimento da técnica da medida deve controlar as paixões

e não deixar que elas interfiram durante o processo da deliberação.

Na perspectiva aberta por esses autores, os argumentos apresentados por

Sócrates, para demonstrar a refutação da akrasía, são destinados a estabelecer a

tese de que o conhecimento deve prevalecer sobre os impulsos. A discussão,

portanto, pressupõe a existência dos desejos não racionais e, em nenhum

momento, se dispõe a negá-los. Dessa forma, a interpretação intelectualista de que

a proposta da técnica da medida é designada para extinguir as motivações

irracionais está equivocada. Contudo, é necessário nos questionarmos: o

conhecimento pode prevalecer sobre qualquer tipo de motivação irracional? Será

que o conhecimento é resistente contra apetites fortes ou será que ele só consegue

controlar apetites fracos? Nesse sentido, Devereux (1995, p. 403-408) defende

que o conhecimento subjuga mesmo os apetites mais fortes para Sócrates.

Segundo o intérprete, a posse do conhecimento é plenamente compatível com a

existência de fortes desejos não racionais108. Em contraposição a essa posição,

Brickhouse & Smith (2010, p. 83-85) mostram que o conhecimento, na verdade,

pressupõe o desenvolvimento de apetites fracos no agente. Na verdade, os apetites

fortes bloqueiam a consideração das proporções reais das alternativas, e impedem

a realização da deliberação correta no momento da ação. Ao contrário, é

necessário que os apetites sejam fracos para que o conhecimento possa controlá-

los e para que se preserve a deliberação racional. Segundo os autores, através

disso ‘o agente é capaz de considerar outros fatores ao fazer um juízo final se deve

108 Para sustentar sua tese, Devereux (1995) se detém sobre um conjunto de referências: (1) a tese

da suficiência do conhecimento contra qualquer outra coisa estabelecida por Sócrates no

Protágoras; (2) as referências do Górgias e do Laques a respeito de ‘resistência’ e ‘persistência’; e

(3) o testemunho de Aristóteles de que Sócrates acreditava no caráter denominado de enkratéia

que consiste na resistência da razão aos impulsos.

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perseguir o objeto do apetite ou da paixão – incluindo fatores que podem pesar

contra perseguir o objeto’ (Ibidem, p. 81, tradução nossa). Assim, o conhecimento

é responsável por manter, na perspectiva do agente, as medidas reais de prazer e

dor de suas alternativas para alcançar a satisfação desejada por sua motivação

racional. Para isso, é preciso que os desejos não racionais se submetam à

orientação do desejo racional. Desse modo, as considerações de Sócrates sobre a

técnica da medida sugerem que a posse do conhecimento pode acarretar um efeito

psíquico no agente. Se relembrarmos, na passagem 356c-d, Sócrates havia

mencionado que esta técnica não só é capaz de ‘tornar a aparência ineficaz’

(ákuron epoíse toûto tò phántasma), mas também pode fazer com que a alma

tenha tranquilidade (hesuchían epoíesen échein tèn psychèn). Novamente, essa

evidência nos mostra que a posse da técnica da medida não apenas representa um

benefício epistemológico, mas um benefício psíquico para o próprio agente. Como

indicam os autores (2010, p. 85), a referência à ‘ineficácia’ (ákuron) da aparência

frente ao conhecimento da técnica da medida revela que os desejos não racionais

não exercem mais uma força significativa sobre a deliberação do agente109. O

contraste entre esse estado de tranquilidade e o estado de perturbação do homem

que está sob efeito das aparências é notável. De fato, essa condição de

instabilidade provocada pelo poder da aparência nos leva a supor que tal

experiência tem origem na força dos próprios desejos não racionais na visão de

Sócrates.

Com base nessas considerações, obtemos uma nova configuração de toda a

argumentação de Sócrates para refutar a formulação tradicional da akrasía. Dessa

forma, rejeitamos definitivamente a hipótese de que o hedonismo, proposto pelo

filósofo, elimina a ocorrência da akrasía justamente por eliminar as motivações

irracionais que a constituem. Essa forma de considerar o problema advém da

crença intelectualista de que as motivações irracionais são fundadas no próprio

desejo racional para o melhor. Para essa corrente, as motivações irracionais são

apenas crenças que desorientam o desejo racional para o objeto que não lhe é

apropriado. Porquanto nos livramos dessas crenças, essas motivações não vão se

desenvolver. Ao contrário dessa proposta, reconhecemos com Brickhouse &

109 Segundo Bobonich (2007, p. 55), o akuron da aparência pela técnica da medida não significa

que ela deixou de existir, mas apenas que ela perdeu sua força motivacional sobre o agente.

Conforme sugere o intérprete, “uma aparência poderia estar presente mesmo em uma pessoa com a

técnica da medida, apenas não iria determinar como a pessoa age.” (tradução nossa)

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Smith que os desejos não racionais têm existência independente do desejo

racional, além de terem seus próprios objetos particulares para Sócrates. Com

isso, sustentamos que a tese da ignorância da akrasía e as observações sobre o

poder da aparência exigem outro tipo de explicação. Como sugerem os autores, o

poder da aparência não provém literalmente da proximidade do objeto prazeroso.

Segundo eles, precisamos pensar no efeito da aparência sob outras bases:

“Na discussão do Protágoras, Sócrates assume que é da natureza do prazer e do

alívio da dor parecer bom. A questão, então, não é quando objetos prazerosos

parecem bons. Em nossa visão, eles sempre parecem bons. Ao invés disso, a

questão é como e porque eles podem nos levar a acreditar que eles são bons.”

(itálicos dos autores, 2010, p. 86, tradução nossa)

Dessa forma, os comentadores apontaram a necessidade de ultrapassarmos

a imagem puramente espacial da aparência sugerida pelos intelectualistas. Com

isso, precisamos conjugar o efeito da aparência à influência dos desejos não

racionais para compreendermos a profundidade da formulação da akrasía de

Sócrates. De fato, Sócrates comprova que a deliberação humana se volta,

naturalmente, para o prazer e evita a dor. Tendo isso em conta, o filósofo assume

de antemão que o prazer sempre parece bom para nós. Todavia, a questão a ser

encarada é, efetivamente, por que o homem sob influência da aparência passa a

acreditar que o objeto prazeroso é benéfico para si mesmo. Como eles apontam,

os desejos não racionais podem nos auxiliar a explicar o que está ocorrendo. Se

antes o agente não estava inclinado a reconhecer que o objeto era melhor, os

desejos o influenciam a tomar a aparência pela realidade e julgar que a escolha

errada será vantajosa. Através disso, procuramos mostrar de que modo a inserção

dos desejos não racionais possibilita um esclarecimento da ilusão da aparência.

Todavia, pretendemos agora fazer um balanço geral desse conflito de

interpretações a fim de determinar as vantagens e desvantagens de cada

interpretação e oferecermos uma proposta interpretativa que consiga dar conta dos

argumentos de Sócrates.

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5.3.4

Uma proposta interpretativa

A partir do conflito de interpretações apresentado, podemos ver que a

refutação da descrição tradicional da akrasía no Protágoras é uma tese

amplamente controversa. Os intérpretes salientaram que o sucesso da refutação de

Sócrates depende fundamentalmente de dois fatores: (1) a descrição alternativa do

fenômeno deve ser elaborada da maneira que ela é concebida pelo filósofo, com

base nas crenças da opinião dominante; e (2) as premissas hedonistas assumidas

por essa personagem, isto é, o reconhecimento de que a deliberação humana é

orientada para o prazer e evita a dor. Além disso, eles também realçaram que a

refutação da descrição tradicional possibilita que Sócrates substitua a descrição

tradicional por ignorância e consiga, assim, sustentar a tese da superioridade do

conhecimento sobre os impulsos.

Diante disso, o conflito de interpretações nos revelou que algumas

objeções podem ser apresentadas aos argumentos de Sócrates em função da

maneira como escolhemos interpretar seus argumentos. Conforme confrontamos

essas interpretações, mostramos, no entanto, que as objeções apresentadas podiam

ser contornadas. Com isto, tentamos oferecer uma interpretação mais consistente

dos argumentos de Sócrates, e demonstrou também que o filósofo consegue,

efetivamente, refutar a descrição tradicional do fenômeno. Como vimos,

Devereux, Brickhouse & Smith indicaram que uma interpretação consistente dos

argumentos deve levar em conta o papel dos desejos não racionais na

reformulação da akrasía. Através desses comentadores, verificamos que as outras

interpretações não tiveram êxito em demonstrar a consistência da refutação da

descrição tradicional do fenômeno porquanto estavam amparadas em pressupostos

intelectualistas. As interpretações de Rudebusch e Nussbaum sustentaram que a

ignorância da akrasía está fundada em um tipo ‘aquisição de informação’ no

momento da ação, porque supõem que Sócrates acredita apenas na existência de

um único desejo: o desejo racional pelo que é melhor. Para eles, o fenômeno é

causado pela crença na incomensurabilidade das alternativas de ação. Como essa

posição acaba transformando a akrasía em outra espécie de fenômeno,

acreditamos que ela não favorece os argumentos de Sócrates. No entanto,

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devemos reconhecer também que a proposta interpretativa de Brickhouse e Smith

tem suas limitações. Conforme esses intérpretes ressaltam o papel dos desejos não

racionais na explicação do que ocorre com o ignorante em akrasía, eles

dispensam justamente o papel da ‘aparência’ na explicação do fenômeno. Como

observamos, Sócrates expõe, claramente, que o efeito da aparência tem uma

importância crucial para explicar o que realmente ocorre na akrasía. De fato, se

dispensarmos a interpretação intelectualista do efeito da aparência como uma

‘aquisição de informação’, talvez possamos conferir mais consistência ao ‘poder

da aparência’ sem, no entanto, excluir a influência dos desejos não racionais da

explicação de Sócrates. Com isso, poderemos, efetivamente, reconsiderar a crença

da incomensurabilidade dentro da reformulação da akrasía proposta pelo filósofo.

Para fazer isso, devemos voltar ao caso do diabético para ver o que estamos

propondo mais claramente.

A reconsideração da crença da incomensurabilidade exige uma ligeira

modificação no caso do diabético. Nessa nova perspectiva, sugerimos que o

diabético, na realidade, toma consciência da qualidade do objeto prazeroso bem

antes de executar sua ação. Se supormos, por exemplo, que o diabético, desde o

momento t1, já tinha consciência que a torta possuía uma qualidade específica,

não seríamos levados ao equívoco de dizer que o homem só percebe isso em t2.

Se ele não estava motivado a cometer a akrasía em t1, isso se explica pelo fato de

que a torta não estava em seu campo de ação. De outro lado, como Sócrates

reconhece que o agente delibera em função do maior prazer, podemos sugerir que

a crença na qualidade do objeto não é relevante para sua deliberação em t1. Uma

vez que o agente toma consciência de que a torta está sob seu campo de ação e foi

desenvolvido um apetite por ela, a crença na qualidade do objeto se torna

relevante para a deliberação e o homem comete a akrasía. De fato, essa

consciência e a influência do apetite só são possibilitadas através da aparência do

objeto prazeroso. Com isso, ocorre o que designamos anteriormente de alteração

de crenças do agente: o desejo não racional em contato com a aparência do objeto

faz com que algo que parece bom seja realmente bom. Sendo assim, sustentamos

que o desejo não racional e a aproximação do objeto são os fatores motivacionais

que promovem o juízo de que o objeto à sua frente será benéfico para o agente.

Desse modo, damos sentido à proposta de Rudebusch e Nussbaum sem, no

entanto, postularmos a aquisição de uma nova informação pelo agente. É

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necessário salientar que nossa proposta tenta preservar o papel da aparência na

explicação de Sócrates. Com efeito, o apetite é estimulado pela proximidade do

objeto ao mesmo tempo em que a aparência do objeto é usada pelo apetite para

ludibriar a deliberação do agente. Nesse processo, o apetite leva o agente a tomar

o que parece bom como o que é realmente bom. Através disso, acreditamos

oferecer consistência à proposta de Sócrates de descrever a akrasía como

ignorância. Por outro lado, essa interpretação também favorece a eliminação da

ignorância através do conhecimento proporcionado pela técnica da medida.

A técnica da medida elaborada por Sócrates fornece ao homem o

conhecimento necessário para que sua deliberação obtenha o que realmente

deseja: o maior prazer durante a vida. Na medida em que as crenças

convencionais sobre prazer e dor estão apoiadas sobre princípios hedonistas, o

filósofo elabora uma técnica deliberativa para garantir o prazer desejado pelo

homem. Embora seja um fato reconhecido que a opinião dominante realize um

cálculo deliberativo para obter o maior prazer, ocorre com frequência um erro de

cálculo, como na experiência da ignorância. Como vimos, esse fenômeno ocorre

pela inserção de um fator incomensurável na deliberação do agente, promovido

pela influência de um apetite em proximidade de seu objeto de desejo. Nessa

perspectiva, a incomensurabilidade impede que o agente possa comparar suas

alternativas de ação de acordo com um mesmo padrão de escolha. Tendo isso em

mente, Sócrates julga necessário encontrar um parâmetro comensurável para a

deliberação humana, conforme sustentam Nussbaum e Rudebusch. Se a admissão

dos princípios hedonistas revela a própria natureza comensurável da deliberação

humana, é necessário propor uma técnica deliberativa que assegure as proporções

do maior prazer para além das aparências. Nessa perspectiva, Rudebsuch oferece

uma classificação apropriada do hedonismo de Sócrates com base na distinção

entre magnitudes reais e aparentes de prazer. De fato, a intenção do filósofo é nos

proporcionar um parâmetro de medida que preserve a comensurabilidade da

deliberação orientada pelas magnitudes reais dos prazeres. Por outro lado, como

indica Irwin, o hedonismo depende de uma relação fundamental entre prazer e

eudaimonia. Para Sócrates, portanto, os prazeres realmente desejados são aqueles

que estão fundamentalmente vinculados ao desejo racional pela eudaimonia, isto

é, o que é melhor para si mesmo. O conhecimento dos prazeres leva o agente a

sempre considerar o que ele quer para sua vida como um todo. Em nossa

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perspectiva, isso só é possível se também levarmos em conta que a posse da

técnica da medida também limita a influência dos desejos não racionais na

deliberação humana. Com efeito, Sócrates menciona que o conhecimento virtuoso

proporciona ao homem tranquilidade da alma e a ineficácia (ákuron) da aparência

(356e), o que seria obscuro caso não pensássemos em um apaziguamento da força

dos desejos não-racionais. Sendo assim, sustentamos que a posse do

conhecimento impede a interferência das motivações irracionais preservando

assim a correta deliberação do agente, conforme sugerem Brickhouse e Smith. É

preciso ressaltar, no entanto, que a técnica da medida depende fundamentalmente

da substituição da descrição tradicional da akrasía por ignorância.

Através dessas considerações, tentamos oferecer uma representação

consistente da tese da refutação da akrasía. Apesar da formulação alternativa da

akrasía por ignorância ter suas vantagens contra a descrição tradicional da

maioria, intérpretes indicaram que a proposta socrática gera problemas para a

fundamentação da deliberação humana. Dessa forma, precisamos investigar esses

problemas na medida em que buscamos avaliar a consistência dos argumentos de

Sócrates.

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5.3.5 Problemas remanescentes O erro característico nos casos relacionados à akrasía pode ser

compreendido a partir do fato de que a ação é realizada de bom grado (hékon).

Para Sócrates, o agente se encontrar em uma situação na qual ele pode escolher de

forma livre, sem coação, é fundamental para mostrar que a crença na explicação

tradicional da akrasía está errada. Nesse ínterim, ainda que os desejos não

racionais possam desempenhar um papel na explicação de Sócrates, é incerto

determinar qual seria exatamente a força motivacional que eles exerceriam sobre o

agente. Posto que uma ação deliberada é realizada de bom grado, a influência dos

desejos não racionais permanece, fundamentalmente, subordinada à deliberação

racional (BOBONICH, 2007, p. 50). O Protágoras não apresenta nenhuma

explicação detalhada a respeito de quais são os objetos ou o modo de operação

dos desejos não racionais no homem.

Além da ausência de qualquer análise mais detalhada do papel dos desejos

não racionais, alguns comentadores apontaram que a descrição alternativa da

akrasía apresentada por Sócrates corre sério risco de ser assimilada à compulsão

psicológica. De acordo com Santas (1979, p. 213), podemos supor que a escolha

equivocada na condição da akrasía não depende de sua estimativa de prazer e dor,

mas da força relativa de seus desejos. Assim, não seremos inclinados a reconhecer

uma correlação necessária entre a avaliação do maior prazer e a força

motivacional mais forte sustentada por Sócrates. Admitindo essa condição, a

experiência da akrasía se reduz, efetivamente, a um estado de compulsão

psicológica (Ibidem, p. 215-217). Desse modo, por mais que o diálogo Protágoras

tenha demonstrado que a formulação tradicional da akrasía é absurda, em relação

às estimativas de prazer do agente, ele não tem sucesso em refutar a concepção da

akrasía em termos de força relativa dos desejos. Por outro lado, Irwin (1995, p.

209-208) também indicou que a descrição da akrasía como ignorância assimila os

casos em que as ações realizadas não foram motivadas por um desejo racional

pelo bem a uma forma de compulsão. Nessa perspectiva, um grande conjunto de

ações humanas motivadas pelos desejos não racionais permanece ininteligível

para nós. Devemos, reconhecer, portanto, que a descrição alternativa da akrasía

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de Sócrates acaba caindo em sérios problemas conforme não apresenta uma

análise detalhada das motivações irracionais. Se Sócrates realmente acredita que

os desejos não racionais desempenham um papel significativo em sua formulação

da akrasía, é notável que a ausência de uma consideração psicológica do

problema não nos fornece indicações claras sobre o modo como esses desejos

realmente podem interferir nas ações humanas110.

A descrição alternativa da akrasía por ignorância definitivamente

apresenta algumas limitações. Embora nos proporcione uma formulação

consistente da akrasía em termos epistemológicos, ela não dá conta da existência

do fenômeno em toda sua magnitude. A proposta de Sócrates depende de que a

estimativa de prazer coincida com a superioridade da força do desejo. A ausência

de uma análise da psicologia humana ou, mais particularmente, de uma

investigação acerca do modo de operação dos desejos não racionais nos leva a

tratar, isoladamente, alguns casos de akrasía como casos de compulsão

psicológica. Dessa maneira, dificilmente podemos reconhecer as ações realizadas

nesses casos como atos deliberados. Por outro lado, a proposta de Sócrates

também tem suas vantagens se descartarmos a consideração das forças relativas

entre desejos. Porquanto sustentarmos que o desejo racional sempre será o desejo

mais forte, temos a perspectiva de explicar a akrasía como um ato deliberado.

Com isso, não só temos a possibilidade de responsabilizar o agente por sua ação,

mas ainda por cima garantimos que o conhecimento possa auxiliá-lo a não

cometer a akrasía. Devemos salientar que a proposta de Sócrates, ao menos,

consegue resolver o problema em alguma medida, enquanto a proposta rival acaba

criando mais problemas do que resolve.

110 Como defende Muniz (2011, p. 51), por outro lado, isso pode ser atribuído a ausência de uma

análise mais profunda sobre o modo de operação da alma e sua relação com o corpo nos primeiros

diálogos como um todo.

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6 Considerações finais

O diálogo Protágoras realiza uma investigação sobre o fenômeno da

akrasía, uma experiência que tem raízes na própria cultura grega. Na discussão

entre os interlocutores do diálogo, o fenômeno é analisado de duas formas

intercaladas: as inconsistências da própria formulação tradicional da akrasía e

suas contradições com as teses defendidas pelos personagens. É fundamental

verificarmos cada um desses aspectos para compreendermos de que maneira a

akrasía se constitui como um problema no Protágoras.

O problema da akrasía representa um ponto culminante da discussão entre

Sócrates e o personagem homônimo sobre a possibilidade do ensino das virtudes.

A necessidade de discutir a descrição comum do fenômeno da akrasía emerge da

insistência do sofista em não reconhecer a consistência entre a possibilidade do

ensino da virtude e a tese da unidade das virtudes sob o conhecimento. Durante a

discussão, Sócrates percebe que a recusa de seu interlocutor em admitir a

plausibilidade dos argumentos que apóiam esta tese advém do estreito vínculo

entre sua concepção não cognitiva da virtude e as crenças da opinião dominante

grega. Com o recurso de Sócrates ao exame da opinião dominante personalizada,

em 353c-357e, o sofista se une ao filósofo para defender a relação entre

conhecimento e virtude contra a descrição da akrasía da maioria que advoga a

submissão do conhecimento pelos impulsos. No plano do diálogo, a descrição

tradicional da akrasía constitui uma forte objeção à suficiência do conhecimento

para a ação virtuosa. Por outro lado, a abordagem do fenômeno da akrasía no

diálogo Protágoras nos leva a conceber de que maneira essa experiência pode ser

encarada como um problema filosófico.

Embora o Protágoras seja sem dúvida a primeira obra a analisar

filosoficamente a akrasía, o diálogo apresenta, ao mesmo tempo, uma das teses

mais controversas a respeito do fenômeno. Nesta obra, Sócrates sustenta a

polêmica refutação da akrasía. Durante nossa dissertação, mostramos que a

refutação não se trata de uma simples negação do fenômeno, mas sim de uma

reformulação de uma descrição específica da akrasía tal como compreende a

opinião dominante grega, segundo relato do próprio Sócrates (352d). De acordo

com a opinião dominante, um homem pode meramente considerar ou ter um

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conhecimento rigoroso sobre o que é melhor e, ainda assim, fazer o que é pior

arrastado e subjugado pelos mais variados impulsos. A deliberação o direciona

para seu próprio benefício e, por suposto, ele não é forçado a realizar a ação por

forças externas, isto é, a agir de mau grado (ákon). De outro lado, a maioria supõe

que o conflito entre dois tipos de desejos, o desejo racional pelo que é benéfico e

o desejo não racional pela satisfação imediata, é fundamental para que ocorra a

akrasía. O conflito entre os desejos se fundamenta basicamente no pressuposto de

que existe uma força relativa entre os desejos humanos. Com base nessa

convicção, a opinião dominante reconhece em tal experiência a força superior das

paixões humanas sobre o conhecimento. Nesse sentido, consideramos que o

fenômeno constitui tanto um problema em si mesmo e uma dificuldade para as

teses defendidas pelos interlocutores do diálogo.

A formulação da akrasía atribuída à maioria representa um grande desafio

tanto em relação à determinação das condições da realização de uma deliberação

quanto às teses defendidas durante a discussão do diálogo. Em primeiro lugar,

existem implicações do problema para a própria deliberação humana. De acordo

com a opinião dominante, não é implausível afirmar que o agente realiza uma

deliberação e, ao mesmo tempo, é submetido pelos impulsos. Como o agente pode

ser responsabilizado por sua ação na medida em que ele é subjugado por suas

paixões? Será que ele realmente estava em condições de realizar uma deliberação

de bom grado se ele teve a possibilidade de evitar o que acabou fazendo? Se a

maioria admitir que os impulsos o forçaram, então corremos o risco de assumir

que o agente não estava sob controle de sua ação. Em segundo lugar, a formulação

tradicional da akrasía oferece problemas para a própria tese da superioridade do

conhecimento defendida por Sócrates e Protágoras no diálogo. Nessa perspectiva,

o filósofo elabora a tese da refutação da descrição tradicional da akrasía para

comprovar a superioridade do conhecimento sob os impulsos. De acordo com a

maioria, quaisquer que sejam as convicções do agente, crença ou conhecimento

em sentido estrito, serão subjugadas pelos impulsos. Durante a discussão, Sócrates

demonstra que o poder do conhecimento depende não apenas da negação do

conhecimento-akrasía, mas também da crença-akrasía. A negação da crença-

akrasía sincrônica, isto é, a possibilidade de agir contra o que considera ser

melhor no momento da ação, é fundamental para a reformulação do fenômeno

como ignorância. Através da correspondência entre ignorância e akrasía, Sócrates

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assimila a experiência a uma espécie de erro epistemológico que pode ser

corrigido com o auxílio do conhecimento. Em razão disso, o filósofo relembra o

acordo realizado com o sofista com o propósito de defender a força superior do

conhecimento (357c). A análise filosófica da akrasía no Protágoras de Platão

emerge assim das dificuldades inerentes à própria formulação tradicional do

fenômeno oferecida pela opinião dominante. Nesse plano, o problema da akrasía

compreende dois elementos que estão interligados: (1) não há parâmetros

adequados para determinar se o agente em akrasía realmente executou sua ação

deliberadamente, isto é, de bom grado; (2) a existência da akrasía, tal como ela é

formulada pela maioria, atinge a possibilidade do conhecimento orientar as ações

humanas. Se Sócrates deseja refutar a descrição tradicional da akrasía, ele precisa

oferecer uma formulação que possa contornar essas dificuldades.

Através dessas considerações, ressaltamos que o problema da akrasía é

abordado no Protágoras de Platão tendo em conta dois tópicos centrais: a

determinação das condições necessárias para que uma deliberação ocorra e a

justificação do poder do conhecimento. Com efeito, a primeira dificuldade não é

explicitamente tratada no diálogo, mas deriva da própria formulação tradicional da

akrasía. Durante a refutação da descrição tradicional, o paradoxo de que ninguém

realiza deliberadamente o que é pior permite que Sócrates contorne este problema

(358c-d). Por outro lado, a segunda dificuldade é tratada diretamente pelos

personagens justamente por atingir as posições do sofista e do filósofo em relação

à possibilidade do ensino das virtudes. Como vimos, a formulação tradicional

constitui um impedimento para a própria possibilidade do ensino das virtudes.

Durante a dissertação, tentamos mostrar que nossa investigação foi motivada pela

análise dessas duas questões que são cruciais para compreender o problema da

akrasía no Protágoras.

A descrição tradicional da akrasía é apresentada por Sócrates como um

desafio para a crença no poder da deliberação e do conhecimento humano. Em seu

esforço de lidar com o problema da akrasía, observamos que o filósofo busca uma

formulação mais apropriada do fenômeno tendo em vista as dificuldades geradas

pela própria formulação oferecida pela sociedade grega. Durante essa dissertação,

tentamos mostrar que a reformulação da akrasía é construída por Platão a partir

de um diálogo com uma opinião dominante personalizada. Nesse sentido, a

reformulação constitui um desafio para Sócrates na medida em que depende da

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refutação da descrição tradicional através de um exame orientado para revelar as

crenças hedonistas da maioria. A cena construída por Platão demanda que

Sócrates e seu interlocutor personalizado estejam se referindo ao mesmo

fenômeno. Como observamos, o fenômeno tem raízes profundas dentro da cultura

grega e implica no reconhecimento do poder dos impulsos humanos. Ora, se

Sócrates realmente deseja oferecer uma formulação alternativa da akrasía,

derivada da inconsistência das crenças tradicionais, como ele poderia fazer isso se

ele simplesmente negasse a influência das paixões sobre nossas ações? Tendo em

conta a incoerência dessa posição, buscamos mostrar que não há nenhuma

evidência que sustente a suposição de que Sócrates desconsidera os desejos não

racionais. De outro lado, caso essa posição tivesse alguma plausibilidade,

teríamos de colocar em dúvida a refutação da descrição tradicional da akrasía

enquanto calcada nas crenças tradicionais. Quando Sócrates estabelece que o

conhecimento sempre é superior aos impulsos (357c), não parece que ele esteja

negando a influência dos desejos não racionais. Para mostrar a consistência da

reformulação da akrasía, buscamos uma proposta interpretativa mais coerente

com os argumentos do filósofo.

O reconhecimento da influência dos desejos não racionais sobre a ação

humana viabiliza o argumento da refutação da descrição tradicional. Como

observamos, a negação da crença-akrasía sincrônica implica que os desejos não

racionais estejam subordinados às convicções do agente no momento da ação

ignorante. Com isso, o filósofo estabelece as condições mínimas necessárias para

a fundamentação da deliberação humana em casos de akrasía e, a partir disso,

demonstra a tese da superioridade do conhecimento. O comprometimento das

crenças convencionais com o hedonismo nos leva a assumir que todo agente

delibera em função de uma estimativa de prazer. Ao aceitarmos o argumento

hedonista, conseguimos entender o que significa o erro epistemológico

proporcionado pela aparência dos prazeres e podemos buscar uma técnica

deliberativa para corrigi-lo. Portanto, temos uma maneira de explicar o que ocorre

na akrasía sem incorrer em problemas acerca das condições de deliberação do

agente. No entanto, conseguimos isso ao custo de não compreender qual é

exatamente o papel dos desejos não racionais na ação humana e, dessa maneira,

associamos casos de akrasía à compulsão. É extremamente incerto o papel que os

impulsos exerceriam sobre a explicação da ação humana. Se aceitarmos a

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descrição do fenômeno como ignorância, seremos levados a assimilar alguns

casos, em que não há uma vinculação entre a escolha e o desejo racional, a casos

de compulsão psicológica.

Apesar das vantagens da proposta de substituição da descrição tradicional

da akrasía por ignorância, temos de admitir também suas desvantagens. Se

Sócrates consegue garantir as condições mínimas para a deliberação de um lado, a

tese da ignorância não favorece o entendimento da irracionalidade presente no

próprio fenômeno por outro lado. Todavia, nessa dificuldade parece residir o

problema da akrasía em si mesmo e o desafio de respondê-lo: buscar uma

formulação que racionalize e torne inteligível um fenômeno irracional. Durante a

análise da akrasía no Protágoras, Platão indica que para lidar com o problema é

preciso investigá-lo em suas origens, a partir das próprias crenças da opinião

dominante. Por meio do diálogo, Platão coloca Sócrates diante de um desafio à

confiança no poder da deliberação com a crença na descrição tradicional da

akrasía. O reconhecimento da aspiração hedonista da própria deliberação humana

permite que Sócrates ofereça uma racionalização do comportamento da akrasía.

Como essa formulação do fenômeno é valida apenas nas condições onde

garantimos a correspondência entre a deliberação hedonista e a ação, nos casos em

que não encontramos tal relação o problema da akrasía permanece.

Ao sugerir uma reformulação da akrasía, Sócrates revela a complexidade

do problema filosófico e, ao mesmo tempo, a necessidade de determinar o que

realmente ocorre em tal fenômeno. A persistência do problema da akrasía até os

dias atuais e a plausibilidade da formulação socrática em relação a alguns casos do

fenômeno mostram que Platão apresenta no Protágoras um problema e uma

tentativa de solução que permanecem pertinentes.

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7 Referências bibliográficas

1. Bibliografia primária

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2. Bibliografia secundária

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3. Dicionários

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