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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ LUIZ HENRIQUE MERLIN BEM JURÍDICO, ESTRUTURA DO DELITO E ANTECIPAÇÃO DO DIREITO PENAL: novos e velhos discursos de ampliação do poder punitivo nas sociedades contemporâneas CURITIBA 2010

Dissertacao - Luiz Henrique Merlin Novos e Velhos Discursos de Ampliaçao Do Poder Punitivo Nas Soc Contemp

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    LUIZ HENRIQUE MERLIN

    BEM JURDICO, ESTRUTURA DO DELITO E ANTECIPAO DO DIREITO

    PENAL: novos e velhos discursos de ampliao do poder punitivo nas

    sociedades contemporneas

    CURITIBA 2010

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    LUIZ HENRIQUE MERLIN

    BEM JURDICO, ESTRUTURA DO DELITO E ANTECIPAO DO DIREITO

    PENAL: novos e velhos discursos de ampliao do poder punitivo nas

    sociedades contemporneas

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Direito, rea de Concentrao em

    Direito do Estado, Setor de Cincias Jurdicas da

    Universidade Federal do Paran, como requisito

    parcial para a obteno do ttulo de Mestre em

    Direito.

    Prof. Orientador: Dr. Juarez Cirino dos Santos

    CURITIBA 2010

  • FOLHA DE APROVAO

    LUIZ HENRIQUE MERLIN

    BEM JURDICO, ESTRUTURA DO DELITO E ANTECIPAO DO DIREITO

    PENAL: novos e velhos discursos de ampliao do poder punitivo nas

    sociedades contemporneas

    Dissertao aprovada como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre no Programa de Ps-Graduao em Direito, Setor de Cincias Jurdicas da Universidade Federal do Paran, pela seguinte banca examinadora:

    Presidente: ___________________________________ Prof. Dr. Juarez Cirino dos Santos Departamento de Cincias Jurdicas, UFPR

    Membro 01: ___________________________________ Profa. Dra. Katie Argello Departamento de Cincias Jurdicas, UFPR

    Membro 02: ___________________________________

    Prof. Dr. Juarez Tavares UFRJ

  • Ao meu sobrinho-afilhado

    Meu xar

    Luiz Eduardo Merlin

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo, em primeiro lugar, a meu orientador, Professor Doutor Juarez Cirino

    dos Santos, pelas aulas, ensinamentos e orientao. A todos os professores e

    funcionrios da Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal do Paran.

    Em especial aos meus pais, que me apoiaram e sempre tiveram pacincia para

    me ajudar e consolar quando foi necessrio nestes dois anos que se passaram

    eles sabem bem como foi difcil. Tambm aos meus queridos irmos.

    Ao pessoal do escritrio que compreendeu bem a importncia que a vida

    profissional e acadmica tem para mim; obrigado Eduardo Sanz, Marion Bach,

    Rossela Lewandowski, Carlinha.

    Ao Balco dos Notveis, na pessoa de seus presidentes, Rubens e Rubens

    aqui soa melhor o nome invertido. Vocs tambm agentaram firme. Obrigado.

    Ao Professor Lus Greco por ter cedido, gentilmente, parte de material ainda

    indito.

    Aos amigos, tantos e to prximos. Aos meus professores.

    Obrigado.

  • Resumo

    O bem jurdico um tema central dentro do Direito Penal dentro e fora do

    Brasil. O desenvolvimento da sociedade e a complexidade das relaes sociais

    tm justificado discursos de ampliao do poder punitivo, legitimando o que se

    convencionou chamar de antecipao do Direito Penal. Em resposta a isso,

    prope-se um refortalecimento do carter crtico do bem jurdico como limitador

    do poder estatal de punir. Como forma definir melhor e combater a expanso

    do Direito Penal, prope-se o estudo particularizado da estrutura do delito,

    delimitando as tcnicas ilegtimas de tipificao. A identificao de falsos bens

    jurdicos coletivos tambm um passo importante nesse caminho. Um estudo

    comparado com as formas de legitimao da lei penal na experincia anglo-

    americana, desde que apropriado de modo crtico, deve ajudar tambm a

    identificar melhor estruturas e bens jurdicos ilegtimos. Por fim, prope-se a

    idia de conflito interpessoal como princpio reitor das funes crticas e

    limitadoras do bem jurdico e da estrutura do delito.

    Palavras-chave: Bem jurdico. Desvalor de Ao. Desvalor de Resultado.

    Finalismo. Funcionalismo. Estrutura do Delito. Proporcionalidade. Conflito.

  • ABSTRACT

    The legal interest is a central theme in criminal law in and outside Brazil. The

    development of society and the complexity of social relations have justified the

    expansion of speeches punitive power, legitimizing the so-called anticipation of

    criminal law. In response, it is proposed a redevelopment of the critical nature of

    the legal and limiting state power to punish. In order to better define and combat

    the spread of criminal law, it is proposed to study the structure of individualized

    offense, limiting the techniques illegitimate typing. The identification of false

    collective legal interests is also an important step in this path. A comparative

    study with the legitimation of the criminal law in Anglo-American experience,

    where appropriate, critically, should also help better identify structures and legal

    interests illegitimate. Finally, it is proposed the idea of interpersonal conflict as a

    guiding principle of the critical functions and limiting the legal and the structure

    of the offense.

    Keywords: Legal interest. Worthlessness of Action. Worthlessness of Result.

    Finalism. Functionalism. Structure of Crime. Proportionality. Conflict.

  • 1

    NDICE

    1. Introduo .................................................................................................... 3

    2. O injusto: linhas gerais ............................................................................... 6

    2.1 A separao entre injusto e culpabilidade. .................................................. 7

    2.2 O nascimento do bem jurdico. ................................................................. 9

    2.4 Desvalor de ao e injusto pessoal. .......................................................... 13

    2.4.1 Desvalor de ao como contedo nico do injusto. ............................... 17

    2.4.2 Desvalor de ao como ao perigosa. ................................................. 20

    2.5 Desvalor de ao e a interpretao da legislao brasileira. .................... 25

    2.6 Primeiro diagnstico: desvalor de ao versus bem jurdico. .................... 28

    2.6.1 A legitimao material do Direito Penal pela estabilidade da norma: o

    funcionalismo sistmico normativista de Gnther Jakobs. .............................. 32

    3. A Constitucionalizao do Bem Jurdico ............................................ 36

    3.1 O princpio da proporcionalidade e bem jurdico: proibio e excesso. ..... 40

    3.2 A proteo deficiente e os imperativos de tutela: afronta a teoria do bem

    jurdico. ............................................................................................................ 41

    4. A tutela penal de bens jurdicos coletivos ou supra-individuais .......... 43

    4.1 Direito Penal e a emergncia de uma sociedade de risco. ..................... 43

    4.2 A questo dogmtica da titularidade individual e coletiva de bens jurdicos.

    ......................................................................................................................... 51

    4.3 A teoria pessoal do bem jurdico. .............................................................. 52

    4.4 As teorias dualistas do bem jurdico. ......................................................... 53

    4.4.1 Bens jurdicos gerais e difusos. .............................................................. 54

    4.5 Vantagens da teoria pessoal do bem jurdico. ........................................... 56

    5. Estrutura do delito: tcnicas de tipificao e ofensividade .................. 59

    5.1 Delitos de perigo e delitos de dano ........................................................... 59

    5.1.1 Perigo abstrato e perigo concreto .......................................................... 59

    5.1.2 A presuno de perigo ........................................................................... 62

    5.2 Antecipao do Direito Penal: a ampliao do poder punitivo ................... 63

    5.2.1 Crticas e erro metodolgico ................................................................... 68

    5.3 PROPOSTAS DOGMTICAS DO DUALISMO: estruturas e tcnicas de

    vulnerao de bens jurdicos supra-individuais ............................................... 69

    5.3.1 Bens jurdicos mediatos e imediatos ...................................................... 69

  • 2

    5.3.2 Bens jurdicos intermedirios desmaterializados e bens jurdicos com

    funo representativa ...................................................................................... 70

    5.3.3 A tese de Tiedemann ............................................................................. 71

    5.4 Desmascarando os falsos bens jurdicos coletivos ................................... 73

    5.5 Desmascarando os falsos bens jurdicos coletivos parte 2: bem jurdico

    versus funo .................................................................................................. 74

    5.6 Delitos por cumulao: tentativa de legitimao por metonmia ................ 79

    6. Harm Principle: discurso ango-americano sobre a legitimao do

    Direito Penal em intercmbio com a tradio continental ......................... 81

    6.1 Outras formas de discurso legitimador: Legal Paternalism, Offence Principle

    e Legal Moralism ............................................................................................. 84

    6.2 Possibilidade de intercmbio com o bem jurdico e sua funo crtica ...... 90

    6.3 Possibilidade de intercmbio: apenas a funo crtica .............................. 91

    7. A idia fundamental de conflito. .............................................................. 94

    7.1 Aplicando a idia de conflito aos casos propostos no incio do trabalho ... 96

    Bibliografia. .................................................................................................. 100

  • 3

    1. Introduo

    O tema do bem jurdico amplamente debatido no Direito Penal de

    tradio continental. Chegou-se a dizer ser este o tema da moda.1 Sintoma

    disso o grande nmero de publicaes que j existem e continuam a ser

    publicadas nos ltimos tempos, dentro e fora do Brasil.

    J a idia que quer se expor aqui sobre estrutura do delito tem um

    tratamento mais restrito. Entretanto, os temas correlatos como a idia de

    ofensividade, de tradio italiana e portuguesa,2 vm sendo tambm tratado

    com freqncia, embora por vezes sem qualquer diferenciao importante com

    a idia de bem jurdico.

    Com antecipao do Direito Penal, pretende-se, de modo crtico,

    identificar estruturas que punem condutas em um momento anterior leso por

    dano ou por perigo concreto.

    Ao apresentar este estudo indicando trs temas, o bem jurdico, a

    estrutura do delito e antecipao do Direito Penal, se quer traar parmetros

    crticos e limitaes ao poder de punir.

    Prope-se, como ponto de partida, a anlise dos exemplos a seguir, a

    princpio definidos como crime pela legislao penal brasileira:

    a) Um sujeito A um diretor de uma grande empresa petroqumica.

    Cabe a ele a deciso de programar polticas de respeito ao meio

    ambiente na produo industrial daquela empresa. Entretanto a ele

    coube cortar os elevados custos que resultavam da realizao do

    programa ambiental da empresa. A ausncia de estudos peridicos e

    m conservao do sistema de tratamento de resduos provocou o

    vazamento de milhares de litros de um lquido txico. O vazamento

    chegou a um rio causando a morte de centenas de peixes. A rea foi

    1 GRECO, Lus. Princpio da ofensividade e crimes de perigo abstrato Uma

    introduo ao debate sobre o bem jurdico e as estruturas do delito. In Revista Brasileira de Cincias Criminais. n. 49. Ed. Revista dos Tribunais So Paulo. 2004.

    2 DVILA, Fvio Roberto. Aproximaes teoria da exclusive proteo de bens jurdicos no

    direito penal contemporneo. In Revista Brasileira de Cincias Criminais. n. 80. set-out/2009. Revista dos Tribunais, So Paulo. P. 07-34.

  • 4

    isolada e durante meses a gua foi considerada imprpria para o

    consumo humano.

    b) Um sujeito B, com o fim de demonstrar sua satisfao pessoal com o

    a infelicidade particular de algumas pessoas, invade uma cerimnia

    fnebre declarando em voz alta que estava feliz com aquela morte,

    causando mal estar na famlia que estava presente.

    c) Um sujeito C, pretendendo conseguir peas para seu ritual satnico,

    viola a sepultura de indigentes, dali subtraindo crnios. Neste mesmo

    lugar deixa inscries e sua urina, o que acredita fazer escravizar a

    alma da pessoa morta, atendendo-a em todos os pedidos que lhe

    forem dirigidos.

    d) Um sujeito D sonha em ser pai, porm nem ele ou sua esposa

    podem ter filhos biolgicos. Um determinado dia a empregada que faz

    a limpeza diria de sua residncia vem com a notcia de que estava

    grvida de um desconhecido e queria ir a uma clnica clandestina para

    realizar um aborto. D ento convence a moa a levar adiante a

    gravidez e, em troca de cinco mil reais, ela deixa que sua esposa e ele

    registrem a criana como se fossem os pais biolgicos.

    e) Um sujeito E compra uma impressora com capacidade de reproduzir

    fielmente qualquer tipo de documento; com alguma modificao para

    aperfeioamento na mquina, ele comea a fabricar notas de cem

    reais. Em apenas seis meses, com a ajuda de terceiros, ele coloca em

    circulao mais de duas mil notas falsas.

    f) F empresrio do ramo txtil. Com a invaso do mercado por

    produtos importados, ele comeou a amargar srios prejuzos. Como

    no pretendia deixar este ramo de negcio, decidiu no repassar

    previdncia social os valores que para este fim eram descontados do

    salrio de seus empregados.

  • 5

    g) G um senhor que vive da venda de pequenas mquinas no interior

    do estado. Ele possui algumas motosserras, mquina bastante til para

    a poda das rvores existentes nas propriedades de uma regio de

    preservao ambiental. G no possui qualquer autorizao para

    comercializar o equipamento.

    Com estes exemplos em mente, bem como com a anlise detida de

    todo o desenvolvimento do bem jurdico penal e outros modos de justificao

    material do crime, pretende-se demonstrar um mtodo de anlise crtica destes

    delitos; mtodo que possa identificar bens jurdicos e estruturas ilegtimas,

    principalmente do que diz respeito s diversas formas de antecipao do

    Direito Penal.

  • 6

    2. O injusto: linhas gerais

    O que afinal intuitivo dizer sobre o significado de um fato criminoso?

    Partindo-se das causas e conseqncias, invadimos as mais diversas reas do

    saber, dentre as quais aquilo que se designa cincias criminais. Deixando

    propositadamente de fora (mas no totalmente) as reflexes no propriamente

    jurdico-dogmticas, sob o ponto de vista formal, o crime representa a violao

    de uma lei penal, uma norma jurdico-penal em sentido formal; sob o ponto de

    vista material ela representa mais: o significado aqui alude a uma violao de

    um tal contedo, um fundamento, aquilo que de fato sofre uma depreciao

    quando se diz existir uma conduta ilcita.

    Pense-se naquilo que de fato prejudicado em uma ao humana

    tpica e antijurdica; o resultado desta reflexo est intimamente ligado com os

    pontos de partida e finalidades do Direito Penal com aquilo que responde ao

    o que pretendo? e ao que responde ao como consigo?.

    A discusso sobre o que esse contedo e seus limites o que

    envolve definir o conceito material de delito, ou, em termos mais especficos e

    atuais, o contedo material do injusto (ao tpica e antijurdica).

    Como nem toda pretenso pode ser tida automaticamente como

    legtima no moderno Estado Democrtico de Direito, e nem toda forma de

    execuo destas pretenses so possveis, estas questes que envolvem o

    sentido de um fato criminoso sob o ponto de vista jurdico e poltico tambm

    exigem de si prprias limites, garantias.

    Sendo o crime, no moderno Direito Penal, a expresso de uma opo

    de Estado que expropria o conflito interpessoal e criminaliza grandes camadas

    da sociedade, estas garantias dizem respeito ao cidado. A legalidade, por

    exemplo, uma destas garantias porm em relao a ela no se tratar

    neste trabalho.

    Afinal, existe algo intrnseco e anterior quilo que autorizou o poder

    legislativo a prever uma ao humana como criminosa? Um contedo que d

    sentido e valor ao que consideramos passvel de receber uma pena criminal.

    Caso ele exista, o injusto possui mesmo ento dois pilares de sustentao que

    sem os quais o Estado no pode punir um cidado: um formal outro material.

  • 7

    Antes de penetrar na problemtica do injusto e materialidade,

    necessrio brevemente traar as linhas gerais sobre as quais foi formatada

    esta categoria dogmtica na tradio jurdico-penal continental.

    2.1 A separao entre injusto e culpabilidade.

    Em 1867, Adolf Merkel apresenta o contedo do injusto como uma

    rebelio contra o poder espiritual do Direito. O comportamento ilcito seria

    ento uma prtica contrria aos fundamentos da lei penal, representada pela

    afronta a este poder intrnseco. Entretanto, a proibio representada pelos

    preceitos penais somente poderia ser praticada por quem tivesse capacidade

    de compreend-la. Tal leso ao contedo do injusto estaria condicionada

    imputabilidade do sujeito, sem a qual no haveria conduta ilcita. O que

    significa, hoje, uma coincidncia entre ilcito e culpabilidade.3

    Rudolf von Jhering sustenta que a ilicitude de uma conduta

    independente da capacidade de compreenso do sujeito que atua; portanto,

    seriam categorias diversas, a anlise do prejuzo representado pelo fato ilcito e

    os componentes internos de seu realizador. 4

    Posteriormente, August Thon defende que todo o Direito um conjunto

    de imperativos. Tais imperativos so dirigidos tanto a imputveis como

    inimputveis, toda vez que as aes de incapazes tambm podem

    desencadear conseqncias jurdicas.5

    Unindo a teoria dos imperativos com o ponto de partida de Adolf

    Merkel, Hold von Ferneck renova a tese de que os mandatos de direito so

    dirigidos apenas a imputveis voltando a igualar injusto e culpabilidade.6

    3 Idem. p. 319; ZIELINSKI, Diethart. Disvalor de accin y disvalor de resultado en el concepto

    de ilcito. Buenos Aires : Hammurabi, 1990. trad. Marcelo A. Sancinetti. p. 5; SANCINETTI, Marcelo A. Teora del delito y disvalor de accin. Buenos Aires : Hammurabi, 1991. p. 18-19: Sancinetti cita ainda a influncia de Karl Bindin e sua teoria das normas. Entre ns: TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3. ed. Belo Horizonte : Del Rey, 2003. p. 299.

    4 ROXIN, Claus. op. cit. p. 321; ZIELINSKI, Diethart. op. cit. p. 6.

    5 ROXIN, Claus. op. cit. p. 321; ZIELINSKI, Diethart. op. cit.. p. 7; SANCINETTI, Marcelo A.

    op. cit.. p.21. Entre ns: TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3. ed. Belo Horizonte : Del Rey, 2003. p. 300.

    6 ROXIN, Claus. op. cit.. p. 322; ZIELINSKI, Diethart. op. cit.. p. 5; SANCINETTI, Marcelo A.

    op. cit. p. 20. TAVARES, Juarez. op. cit. p. 299.

  • 8

    J Johannes Nagler defendeu a noo de Direito partindo de sua

    funo ordenadora da vida social e regulao externa da vida humana, cuja

    perturbao se reprova. Trata ento de uma objetivao do injusto (o

    antijurdico a perturbao, desordem da vida social) de tal modo que permite

    afirmar que fenmenos naturais desencadeariam estados antijurdicos.7

    Retomando a teoria dos imperativos, James Goldschimidt, pretendendo

    a separao de esferas do antijurdico e culpabilidade, afirmou a infrao do

    injusto como infrao da norma jurdica que proibiria uma ao simplesmente

    , e culpabilidade como vulnerao de uma norma de dever que imporia uma

    motivao legalmente estabelecida.8

    No fim deste ciclo clssico, Edmund Mezger sustenta que o injusto

    violao de uma norma de valorao objetiva sem destinatrio (norma

    valorativa). E desta norma valorativa deriva outra, subjetiva de determinao

    (norma determinativa), dirigida ao concreto sujeito submetido ao Direito, em

    que, de modo separado do injusto, ento se baseia a culpabilidade.9

    Note-se que em todos os casos acima tm seu foco na pretenso de

    uma separao terica visvel entre a ao injusta e seu autor, tranando-se

    campos de anlise diversos: o injusto e a culpabilidade.

    Hoje a discusso sobre a separao injusto-culpabilidade

    considerada superada pela maioria da doutrina, embora alguns setores,

    empregando novas formulaes de culpabilidade defenda novamente a

    confuso conceitual.10

    Entretanto, a discusso ainda pode ser travada na medida em que

    Hans Welzel defende a idia de um injusto pessoal, referido ao autor.11 Nessa

    linha, o contedo do injusto est representado no s por fatores externos ao

    autor do fato ilcito; tambm a ao dele e seu significado sero objeto de

    7 ROXIN, Claus. op. cit. p. 322; ZIELINSKI, Diethart. op. cit.. p. 9 e ss. TAVARES, Juarez. op.

    cit. p. 300. 8 ROXIN, Claus. op. cit. p. 322; ZIELINSKI, Diethart. op. cit.. p. 11; SANCINETTI, Marcelo A.

    op. cit. p. 21. TAVARES, Juarez. op. cit. p. 300. 9 ROXIN, Claus. op. cit. p. 322. SANCINETTI, Marcelo A. op. cit. p. 23. TAVARES, Juarez. op.

    cit. p. 300. 10

    LESCH, Heiko Hartmut. Injusto y Culpabilidad en Derecho Penal. Universidad Externado de Colombia: Colombia. 2001.

    11 ROXIN, Claus. op. cit. p. 322: assinala-se ainda que, diferentemente do que sustentou Edmund Mezger e posteriormente Diethard Zielinski, Claus Roxin afirma que a norma de determinao como dirigida vontade individual de capazes e incapazes ordenando o que se deve fazer ou deixar de fazer, ao passo que a norma de valorao diz sobre a desaprovao antijurdica daquilo que no deve ser.

  • 9

    anlise. do que trata o que se convencionou chamar de desvalor de ato, em

    complementao a um desvalor de resultado. A insero dados subjetivos do

    autor no injusto, principalmente depois de Hans Welzel, faz reconhecer que o

    injusto no obra de uma mera causalidade, no composto, portanto, por um

    simples resultado fsico, mas sim a realizao de um fato por uma pessoa com

    objetivos, motivos ou deveres.12

    Porm ainda nada se definiu sobre o que significa esta leso

    fundamental caracteriza o injusto. Desta tentativa de conceituao nasce a

    discusso sobre o bem jurdico.

    2.2 O nascimento do bem jurdico.

    Antes mesmo de ser cunhada a expresso bem jurdico j era feita

    aluso pelos penalistas de um contedo do delito caracterizado pela

    conseqncia de uma quebra do contrato social (viso da filosofia penal

    iluminista). Porm foi Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach que afirmou a

    necessidade de uma violao de um concreto direito subjetivo de um terceiro

    para que estivesse configurado o delito.13

    A primeira noo de bem jurdico, onde o ilcito viola um bem e no

    um direito, nasce em Johann Michael Franz Birnbaum (1834)14, para quem o

    bem jurdico que atingido estava radicado no mundo ntico, baseado na idia

    de natureza das coisas.15 E embora muito se fale sobre os louros libertrios

    deste nascimento da concepo de bem jurdico (que atribuda a Birnbaum,

    ainda que ele no tenha propriamente utilizada a expresso bem jurdico),

    12

    TAVARES, Juarez. op. cit. p. 299. 13

    PRADO, Luiz Regis. op.cit. p. 28 e ss; SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Bem jurdico-penal e engenharia gentica humana, contributo para a compreenso dos bens jurdicos supra-individuais. So Paulo : Revista dos Tribunais, 2004. p. 42 (nota 1): ressalta que fazem parte deste perodo que tem seu trmino em P.J.A.R. Feuerbach, J.P. MARAT (Plan de legislation criminelle, 1779), MONTESQUIEU (Delesprit des lois, 1748), HOMMEL (Philosophische Gedanken ber das Criminalrecht, 1784) e BECCARIA [...]. FERNANDES, Gonzalo D. Bien jurdico y sistema del delito. Montevideo/Buenos Aires : BdeF, 2004. p. 12 e ss.

    14 LUISI, Luiz. Direito Penal. Bens constitucionais e criminalizao.Disponvel na Internet . Acesso em 14 de maro de 2005. ROXIN, Claus. op. cit. p. 55. FERNANDES, Gonzalo D. op. cit. p. 15 e ss.

    15 LUISI, Luiz. op. cit. ; SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. op. cit. p. 48. FERNANDES, Gonzalo D. op. cit. p. 17 e ss: repare-se que h uma ampliao do critrio material, o bem uma categoria mais ampla que direito subjetivo; isso teria uma razo histrica: o incio da revoluo industrial e a represso estatal a este movimento.

  • 10

    bom salientar que Birnbaum o fez como resposta tendncia iluminista de

    descriminalizao em massa de vrias condutas que no violavam exatamente

    um direito subjetivo e que seriam, ento, consideradas delitos de polcia.16

    Posteriormente, sob o manto de uma orientao positivista, Karl

    Binding, viu o bem jurdico como uma criao do legislador17 e sua leso uma

    ofensa ao prprio Estado (ao direito subjetivo de obedincia estatal).18 O jurista

    tem de tomar por boa e definitiva a soluo legalmente sancionada. Tanto

    assim que Manuel da Costa Andrade afirma que a proibio de autoleso,

    recorrente em Binding.19 Luigi Ferrajoli trata este momento no como uma

    evoluo, mas uma involuo no que diz respeito aos princpios como o da

    lesividade a bens jurdicos, dado que nesse momento o bem jurdico tal aos

    olhos do legislador.20 Como de novo aponta o professor portugus, no

    dever, assim, imputar-se ao acaso a simpatia e a autoridade de que Binding

    viria a gozar entre os defensores [...] do bem jurdico no contexto de um Direito

    Penal de obedincia mais ou menos ortodoxa aos cnones do nazismo.21

    Ainda sob a orientao positivista, porm com metodologia

    diferenciada (naturalista), o bem jurdico comea a ser visto como uma

    limitao ao poder legiferante do Estado em Franz von Liszt, para quem, em

    contraposio a concepo formalista de Karl Binding, a norma no cria o bem

    jurdico, mas sim o encontra por estar referendado em um dado social

    preexistente.22

    A partir do sculo XX, sob influncia da filosofia neokantiana no Direito

    Penal, em contraposio pretenso cientificista-positivista,23 o bem jurdico

    passou a ser tido como um valor cultural; relativo, portanto, a um campo

    16

    ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em direito penal. Coimbra : Coimbra, 1991. p. 53 e 54.

    17 KIST, Dario Jos. Bem jurdico-penal: Evoluo histrica, conceituao e funo. Disponvel na Internet: . Acesso em 14 de maro de 2005.

    18 PRADO, Luiz Regis. op.cit. p. 28 e ss; SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. op. cit. p. 49; ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em direito penal. Coimbra : Coimbra, 1991. p. 72.

    19 ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em direito penal. Coimbra : Coimbra, 1991. p. 69, nota n. 85.

    20 Luigi Ferrajoli. Direito e Razo. Teoria do Garantismo Penal. So Paulo : Revista dos Tribunais, 2002. p. 375.

    21 ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em direito penal. Coimbra : Coimbra, 1991. p. 69, nota n. 86.

    22 PRADO, Luiz Regis. op.cit. p. 35; SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. op. cit. p. 58 e ss. FERNANDES, Gonzalo D. op. cit. p. 21.

    23 FERNANDES, Gonzalo D. op. cit. p. 25 e ss

  • 11

    valorativo. Essa viso tem como um dos seus maiores expoentes Richard

    Honig, para quem os bens jurdicos so capazes de resumir

    compreensivamente o contedo dos tipos legais e exprimir o sentido e o fim

    dos preceitos penais singulares.24 Como conseqncia desse pensamento, a

    desmaterializao do bem jurdico acabou por vincul-lo idia de ratio legis

    da norma jurdica, confundindo o bem jurdico com o fim da norma

    incriminadora,25 com seu valor objetivo, transformando-o em mero mtodo

    interpretativo, sem qualquer funo crtica ao poder de punir.26 aqui, o bem

    jurdico, um mero exerccio retrico ou marco de referncia classificatrio.27

    Com a Escola de Kiel, no perodo do regime nazista do terceiro Reich,

    o bem jurdico foi negado, j que o crime significava uma contrariedade pessoal

    a um dever e uma hostilidade espiritual do autor contra a comunidade; o bem

    jurdico era considerado como o veneno da ideologia liberal.28 O critrio

    material do injusto correspondia idia de so sentimento do povo.

    J para Hans Welzel, precursor do finalismo, o bem jurdico todo

    estado social deseable que el Derecho quiere resguardar de lesiones.29 E

    embora este conceito seja vago, sua viso de bem jurdico pretende ser

    aproximada ao objeto material garantindo-lhe um substrato concreto. Prova

    disso a afirmao de Hans Welzel de que por vezes o bem jurdico coincide

    com o objeto material, como no exemplo do crime de homicdio, em que tanto a

    vida ser objeto material, quando bem jurdico.30

    Entre os juristas brasileiros contemporneos, Juarez Tavares afirma,

    por outro lado, que a viso de bem jurdico est atrelada norma jurdica.31

    Essa concluso no parte do conceito welzeliano de bem jurdico, mas sim da

    viso atual de bem jurdico como critrio material de legitimao, como objeto

    de proteo do Direito Penal; substrato que em Hans Welzel corresponde aos

    valores tico-sociais, estes sim atrelados norma jurdica, idia de desvalor

    de ao.

    24

    DIAS, Jorge de Figueiredo. op. cit. p. 44 e 45; ROXIN, Claus. op. cit. p. 54. 25

    LUISI, Luiz. op. cit. 26

    PRADO, Luiz Regis. op.cit. p. 37 e 38. 27

    TAVARES, Juarez. op. cit. p. 190. 28

    ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em direito penal. Coimbra : Coimbra, 1991. p. 69, nota n. 86. (Referindo-se diretamente Dahm e Schaffstein).

    29 WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemn. p. 5.

    30 Idem.

    31 TAVARES, Juarez. op. cit. p. 191 e ss.

  • 12

    Em relao concepo dogmtica funcionalista, para uma detida

    anlise didtica, podem-se visualizar trs grandes grupos: estrutural (a qual

    pode ser parcialmente aproximada posio de Francisco Muoz Conde, que

    se situa numa esteira giratria, entre as exigncias de uma realidade social de

    um lado, e as idias funcionais, de outro32), funcional prprio (Gnther Jakobs)

    e funcional imprprio (Claus Roxin).33 Ressalte-se, no entanto, que para todos

    estes posicionamentos, o que posto em questo no trato da noo de bem

    jurdico, em maior ou menor grau, a estabilidade da norma penal como

    instrumento adequado manuteno do sistema social.

    O primeiro (estrutural) funciona, em linhas mais gerais, tomando-se

    como base a norma penal como funo de controle social, onde as

    perturbaes (input) do sistema geram a necessidade de uma interveno

    (output).34

    O segundo (prpria) trabalha com o pressuposto de que norma penal

    s interessa assegurar a expectativa de que uma conduta no decepcione

    expectativas nas relaes entre as pessoas. Gnther Jakobs, que pretende

    basear sua teoria do delito em base sistmica luhmanniana,35 no nega

    totalmente a importncia do bem jurdico e alude para a insuficincia da funo

    jurdico-penal de sua proteo, pois a sociedade no nenhuma instncia

    para conservao de maximizao de bens36; porm identifica a funo

    protetiva com a validade ftica das normas, das quais se possa esperar a

    proteo de bens, das funes e da paz jurdica.37 Assim, Knut Amelung, por

    exemplo, baseia seu conceito material de crime, e nesse sentido o critrio

    material de injusto, na noo de dano social entendida como

    disfuncionalidade social , de contedo radicado na teoria dos sistemas

    32

    TAVARES, Juarez. op. cit. p. 195; MUOZ CONDE, Francisco. ARN, Mercedes Garca. op. cit. p. 63 e ss: La funcin de motivacin que cumple la norma penal es primariamnte social, general, es decir, incide en la comunidad; auque en su ltima fase sea individual, es decir, incida sobre el individuo concreto.

    33 TAVARES, Juarez. op. cit. p. 195.

    34 Idem.

    35 JAKOBS, Gnther. Derecho penal... p. 13 e ss. FERNANDES, Gonzalo D. op. cit. p. 65 e ss

    36 DIAS, Jorge de Figueiredo. op. cit. p. 47.

    37 TAVARES, Juarez. op. cit. p. 196; SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. op. cit.; JAKOBS, Gnther. O que protege o Direito Penal: os bens jurdicos ou a vigncia da norma? In CALLEGARI, Andr Lus; GIACOMOLLI, Nereu Jos (Coords). Direito Penal e Funcionalismo. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2005. p. 31-52.

  • 13

    sociais, tal qual se encontra na teoria do socilogo Talcott Parsons.38 Sendo

    que para Knut Amelung o bem jurdico teria suas vantagens como investigao

    compreensiva das finalidades do legislador, enquanto que a danosidade social

    se voltaria investigao das funes sociais, cuja vantagem oferecem uma

    anlise sociolgica do seu significado objetivo no sistema social de

    sociedade.39

    O terceiro (imprprio) fundamenta o bem jurdico a partir de uma base

    de poltica criminal ancorada nos preceitos da Constituio, sem deixar de

    salientar sua funo na manuteno do sistema.40 A propsito, o conceito de

    Claus Roxin:

    Los bienes jurdicos son circunstancias dadas o finalidades que son tiles para el individuo y su libre desarrollo en el marco de un sistema social global estructurado sobre la base de esa concepcin de los fines o para el funcionamiento del propio sistema.

    41

    Este , em linhas gerais, o desenvolvimento dos conceitos de bem

    jurdico, entretanto, como se ver mais adiante, existem problemas profundos

    do que diz respeito definio de bens jurdicos individuais e coletivos e sua

    capacidade de oferecer critrios de limitao ao poder legiferante.

    At aqui, entretanto, pode-se afirmar que a tradio jurdico-penal

    identifica a violao de bem jurdico ao chamado desvalor de resultado.

    2.3 Desvalor de ao e injusto pessoal.

    Partindo-se do finalismo welzeliano, de base ontologista, caracterizado

    pelo pensamento em contraposio s teorias penais neokantianas idealistas,42

    temos que o Direito Penal tem como misso proteger los valores elementales

    38

    DIAS, Jorge de Figueiredo. op. cit. p. 46; ZAFFARONI, Ral Eugenio. et alli. Derecho Penal... p. 489; SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. op. cit. p. 103-108. FERNANDES, Gonzalo D. op. cit. p. 59.

    39 ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em direito penal. Coimbra : Coimbra, 1991. p. 100 e 101.

    40 TAVARES, Juarez. op. cit. p. 197.

    41 ROXIN, Claus. op. cit. p 56.

    42 WELZEL, Hans. Teoria de la accin finalista. Buenos Aires : Editorial Depalma, 1951. trad de Eduardo Friker, p. 9; ZAFFARONI, Eugenio Ral. et all. Derecho Penal: Parte General. 2. ed. Buenos Aires : Ediar. 2002. p. 346.

  • 14

    de la vida en comunidad43 e la proteccin de los bienes jurdicos mediante la

    proccin de los elementales valores de accin tico-sociales.

    Ainda para Hans Welzel, a leso de bem jurdico, embora de conceito

    diverso da destruio do objeto da ao (elemento fsico, ftico sobre o qual

    recai uma conduta, diferente da abstrao constitutiva do conceito de bem

    jurdico), caracteriza-se pela causao do resultado, razo porque o injusto

    (que mais do que o mero surgimento do resultado) marcado pela presena

    da pessoa do autor, por meio da sua ao (atitude) frustradora dos deveres de

    obedincia dos valores tico-sociais. Eis a razo primeira de se falar em injusto

    pessoal.

    La antijuridicidad es siempre la desaprobacin de un hecho referido a un autor determinado. Lo injusto es injusto de la accin referido al autor, es injusto personal. Por ello, lo injusto de un mismo hecho puede tener diversa gravedad para los diferentes concurrentes.

    Muito ligado a esta idia de pessoalidade, o desvalor de ao noo

    muito cara ao processo de determinao do objeto de censura penal, pois La

    lesin del bien jurdico (el desvalor de resultado) tiene relevancia en el Derecho

    Penal slo dentro de una accin personalmente antijurdica (dentro del desvalor

    de accin). El desvalor personal de la accin es el desvalor general de todos

    los delitos en el Derecho penal.44

    O injusto pessoal insere o contedo da ilicitude penal no desvalor

    pessoal da ao, expresso do dever geral de obedincia s normas jurdicas.

    Por tal motivo, ento, o desvalor pessoal de ao configura no sistema

    welzeliano o padro comum do desvalor geral de todos os delitos.45

    O desvalor de resultado no passa, portanto, do bem lesionado ou

    posto em perigo, e um elemento de presena eventual em vrios delitos.46

    Mesmo no caso dos delitos culposos, onde o resultado deveria ser

    preponderante para a reprovao, Hans Welzel assinala que toda accin

    contraria al cuidado es antinormativa, indiferentemente de si se concreta en un

    43

    WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemn. 4 Ed. Editorial Jurdica del Chile : Santiago, 1993. p. 1.

    44 WELZEL. Hans. Derecho Penal Alemn. p. 74 e 75.

    45 TAVARES, Juarez. op. cit.p. 141.

    46 Idem.

  • 15

    resultado; pero slo una vez que se concreta en un resultado, que logra en

    todo caso segn el derecho positivo relevancia jurdico-penal, se convierte en

    el fundamento material del injusto tpico penal.47

    A noo de injusto pessoal, a referncia s circunstncias pessoais do

    autor e que a qualificam, a motivao, a subjetivao do injusto conjugada com

    preocupao com um Direito Penal com funo eticizante foi o que

    proporcionou a substituio do bem jurdico (objeto externo, o bem de

    proteo) pelos valores tico-sociais; assim que a tnica passa a no mais

    pesar sobre a leso real no mundo, mas sim sobre a valorao da

    contrariedade da ao ordem jurdica, o injusto pessoal passa a valer como

    tipo de autor.48

    O injusto no se esgota na causao de um resultado (leso do bem jurdico), desligada em seu contedo da pessoa do autor, de forma que a ao s antijurdica enquanto obra de um autor determinado: o fim que o autor associou ao fato objetivo, a atitude em que o cometeu, os deveres que o obrigavam a esse respeito, tudo isso determina de modo decisivo o injusto do fato junto eventual leso do bem jurdico. A antijuridicidade sempre a reprovabilidade de um fato referido a um autor determinado. O injusto injusto da ao

    referido ao autor, injusto pessoal.49

    Como avalia Juarez Tavares, no finalismo o contedo que d validade

    norma penal incriminadora secreto e mgico, pois depende da deciso

    judicial sobre circunstncias que s o sujeito detm, que o momento exato e

    a extenso de uma postura absolutamente subjetiva perante o sistema de

    valores que se quer preservar.50

    No de se surpreender, portanto, que mesmo diante de uma

    mudana no contedo da ilicitude, e ainda que Hans Welzel tenha por seus

    fundamentos mantido o dolo no tipo,51 no fez qualquer correo significativa

    no contedo do objeto da conscincia do injusto no que diz respeito ao

    47

    WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemn. p. 165. 48

    TAVARES, Juarez. op. cit. p. 141 e 152. 49

    WELZEL, Hans. O novo sistema jurdico-penal. Revista dos Tribunais : So Paulo. Trad. Luiz Regis Prado. p. 73-74.

    50 TAVARES, Juarez. op. cit. p. 306.

    51 O finalismo explica a razo do dolo estar no tipo e no na culpabilidade, porm, foi fora do finalismo que Helmuth von Weber primeiro defendeu a idia de dolo como elemento do tipo de injusto.(TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 3. ed. Belo Horizonte : Del Rey, 2003. p. 150).

  • 16

    conhecimento leigo da proibio, j que ilicitude teria mesmo que ver com uma

    valorao tico-social da prpria ao.

    El principio de la responsabilidad a los ciudadanos, por una parte, los hace responsables de que el contenido de la decisin de voluntad no sea antijurdico (en cuanto el actor poda reconocer la antijuridicidad, de acuerdo a la medida de su capacidad de comprensin tico-social) y, por otra parte, respecto de la realizacin cuidadosa de decisiones irrelevantes jurdicamente, les limita su responsabilidad a la consideracin de peligros para bienes jurdicos especialmente importantes. Con esto, la teora de la culpabilidad fija con claridad, positiva y negativamente, las fronteras de la responsabilidad tico-social de la persona, mientras que el principio del conocimiento de la teora del dolo no est en la situacin de hacerlo.

    52

    Mesmo que para alguns j tenha passado o tempo do finalismo, bom

    salientar que concepes semelhantes so amplamente defendidas. Por

    exemplo, Gnther Jakobs, embora tenha abandonado a orientao da doutrina

    finalista e fundado a teoria do delito em uma concepo funcionalista sistmica

    radical marcada pelo normativismo extremo, ainda guarda um ponto comum

    com seu antigo mestre: a proteo secundria de bens jurdicos apenas como

    conseqncia da misso do Direito Penal fundada em deveres.53 Lembre-se

    que para Hans Welzel a finalidade do Direito Penal est ligada na manuteno

    de um dever de respeito aos valores que constituem o fundo tico-social

    positivo das normas jurdico-penais e que esto arraigados na permanente

    conscincia jurdica, do atuar conforme o direito.54 J para Gnther Jakobs um

    dever de respeito mtuo, dever de no frustrar expectativas normativas que

    do base para a formulao de um estandarte de deveres impostos segundo

    os papis sociais exercidos pelo destinatrio da norma.55

    52

    WELZEL. Hans. Derecho Penal Alemn. p. 165. 53

    , inclusive, expressamente reconhecido por Gnther Jakobs (Derecho Penal. Parte general. 2 ed. Madrid : Marcial Pons, 1997. p. 18, nota 15.

    54 WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemn. p. 2.

    55 Nesse sentido: PREZ, Carlos Martnez-Bujn. La concepcin significativa de la accin de T. S. Vives y su correspondencia sistemtica con las concepciones teleologico-funcionales del delito. Revista Electrnica de Ciencia Penal y Criminologa. 1999, n. 01-13, Disponivel na internet: http://criminet.ugr.es/recpc/01/recpc01-03.htm. Nota 24: [Gnther Jakobs] entiende la infraccin de la norma no ya como la desobediencia de un mandato, sino como un "rechazo" o "frustracin" de la expectativas estabilizadas "contrafcticamente" por ella, a cuyo efecto sita la prevencin general positiva como fundamento de la pena con el fin cumplir la misin central atribuida por l al Derecho penal, a saber, reafirmar los valores tico-sociales de la convivencia.

  • 17

    [...] as garantias normativas que o Direito estabelece no tm como contedo que todos tentem evitar todos os danos possveis se assim fosse, porduzir-se-ia uma paralisao imediata da vida social. Por isso que se atribuem a determinadas pessoas que ocupam determinadas posies no contexto de interao, determinados encargos. dizer, asseguram padres pessoais, papis que devem ser cumpridos. Desse modo, possibilitam uma orientao com base em padres gerais, sem necessidade de conhecer as caractersticas

    individuais da pessoa que atua. 56

    Alm do fato de que a sociedade suscetvel de ser representada atravs da possesso de bens, pouco adequado, do ponto de vista do Direito Penal, tomar como ponto de referncia, em primeiro lugar, a leso do bem; pelo contrrio, tambm aqui, resulta mais adequado buscar a referncia na infrao de um papel. Isso se d pela seguinte razo: a moderna teoria do comportamento no permitido, como parte da teoria da conhecida imputao objetiva, tem mostrado que no existem proibies genricas de leso. Portanto, no h mandado genrico de salvao, e sim que tais normas afetam as pessoas competentes, sendo competente, precisamente, aquele cujo papel faz parte o no lesar (o

    salvamento).57

    2.3.1 Desvalor de ao como contedo nico do injusto.

    Posteriormente importncia impressa pelo finalismo no desvalor de

    ao foi que ento Armin Kaufmann radicalizou e tomou esta afirmao como

    ponto de partida para sua teoria penal. Como toda norma pressuporia um juzo

    de valor, da relao entre o juzo de valor e a norma surge um juzo positivo

    (bem jurdico) e um juzo negativo (leso de bem jurdico). O juzo negativo

    causado pela ao humana final em contradio com a norma. Norma esta que

    carrega consigo o juzo positivo, o bem jurdico. Desse modo, Armin Kaufmann

    concentra o bem jurdico na norma (juzos de valor acerca de atos), por

    considerar que os dois tratam da mesma questo, lo decisivo aqu es

    nicamente el valor (o disvalor) del acto. 58

    Diethart Zielinski, dicpulo de Armin Kauffman, desenvolve essa

    concepo subjetivista do injusto, pautada somente no desvalor da ao do

    56

    JAKOBS, Gnther. A imputao objetiva no Direito Penal. trad. Andr Lus Callegari So Paulo : Revista dos Tribunais, 2000. p. 19.

    57 JAKOBS, Gnther. O que protege o Direito Penal: os bens jurdicos ou a vigncia da norma? In CALLEGARI, Andr Lus; GIACOMOLLI, Nereu Jos (Coords). Direito Penal e Funcionalismo. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2005. p. 36.

    58 KAUFMANN, Armin. Teoria das Normas. p. 94 e ss. Apud SANCINETTI, Marcelo A. op. cit. p. 34.

  • 18

    sujeito-autor, pelo que afirma que El disvalor de accin contituye el ilcito. El

    mero perjuicio del bien jurdico, en el sentido del juicio de valor primario, no es

    un ilcito, en este sentido; l es slo un suceso jurdicamente indeseado, el

    resultado de una accin ilcita o bien de una casualidad.59

    Para Diethart Zielinski esse foco exclusivo sob o desvalor de ao

    justificado sob dois argumentos: o primeiro, de que somente possvel proibir

    aes e no resultados; o segundo, como j apontara Hans Welzel, de que o

    resultado nem sempre ir ocorrer.60 E nem mesmo o argumento da ausncia

    de afetao de bem jurdico seria capaz, por si s, de renegar esta teoria; para

    estes autores a subjetividade do sujeito ativo, a vontade, que fonte de

    perigo para o bem jurdico por exemplo: o fato subjetivo de algum querer se

    apropriar de coisa alheia seria uma fonte de perigo para o bem jurdico.61

    Ento Claus Roxin enfrenta a radicalizao subjetivista do injusto

    rebatendo o primeiro argumento afirmando que no h desvalor de resultado

    sem desvalor de ao; se probem resultados que pressupem realizaes

    planejadas de aes punveis ou a conseqncia adequada de infraes a

    dever de cuidado.62

    Si A dispara premeditamente una bala a la cabeza de B, habr que considerar el resultado de muerte como componente incluso de la accin de matar y con ella como objeto de la prohibicin de matar. Y si la bala de A se desva lateralmente, entonces no hay una accin de

    matar, sino slo una accin de tentativa de matar.63

    claro que a norma de conduta, assim como ela tida pela maioria da

    doutrina, vincula-se ao autor do fato proibido, pois o que interessa nesse

    conceito a viso subjetiva do autor sobre a realidade, e no os aspectos reais

    objetivos do que causado no mundo externo. Esta norma de determinao

    est referida ao autor e sua subjetividade como um comando; porm ela deve

    ter em conta uma norma de valorao, que carrega em si o valor do bem

    jurdico e o significado externo da leso e da ao tambm compe o centro de

    significado material do injusto. A determinao no uma simples adio de

    59

    ZIELINSKI, Diethart. op. cit. p. 143. 60

    De modo anlogo: MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal, parte general. 3 ed. Barcelona : PPU, 1995. p. 144 e ss.

    61 STRATENWERTH, Gnther. Disvalor de accin y disvalor de resultado en el derecho penal. 2. ed. Buenos Aires : Hammurabi, 2006. p. 30.

    62 ROXIN, Claus. op. cit. p. 324.

    63 Idem.

  • 19

    imperativo a esse contedo. Se por um lado o desvalor de ao est ligado

    diretamente ao desrespeito de uma norma de determinao, o desvalor de

    resultado refere-se ao momento do ilcito que compreende a norma de

    valorao impondo-se sobre da norma de determinao: a contrapartida

    objetiva do desvalor de ao.64

    Ento vejamos, por exemplo, uma tentativa de homicdio: apesar da

    ao objetivamente representar a mesma conduta que viola uma mesma

    determinao que num homicdio consumado, o valor significativo se dar

    sempre dentro do contexto em que aparece o resultado. A tentativa de matar

    seguir sendo valorativamente diferente daquela de matar efetivamente; o

    resultado, como objeto da valorao, inseparvel da ao. Isso porque o

    importante no ser a ao objetivamente considerada, mas o significado do

    contexto ao-resultado no mundo.

    Quanto ao segundo argumento de Diethard Zielinski, para quem o

    resultado obra de um fator de azar, Claus Roxin afirma que, pelo contrrio,

    somente se imputam os resultados, as concretas leses a bens jurdicos, que

    podem ser afirmadas como obra de um autor. O resultado pea nuclear do

    injusto, dele que se parte para imputar uma ao.65 Ter o resultado como

    mera condio objetiva de punibilidade deixar sem qualquer significao a

    imputao objetiva e tornar a norma penal uma norma moral de determinao,

    e no norma jurdica de conduta que traa os limites entre o lcito e o ilcito.66

    E tambm pelo fato da ao no poder ser separada do resultado, pois

    qualquer atuar pressupe a existncia de uma exteriorizao, pretender

    renegar radicalmente o resultado teria como conseqncia a punio de crimes

    impossveis e todo e qualquer fato com base na intencionalidade contra a

    norma jurdica: um Direito Penal de atitude interna.67

    Gnther Jakobs assinala tambm que a ao relevante aquela que

    socialmente relevante, e o que ainda est no mbito interno do sujeito somente

    para ele relevante pois somente o sujeito-autor inicia a ao pelo dolo; para

    a sociedade a percepo de onde inicia a ao na sua exteriorizao. essa

    64

    STRATENWERTH, Gnther. Disvalor de accin y disvalor de resultado en el derecho penal. 2. ed. Buenos Aires : Hammurabi, 2006. p. 40-46.

    65 ROXIN, Claus. op. cit. 325 e 326.

    66 TAVARES, Juarez. op. cit. p. 304 e 305.

    67 Idem p. 326.

  • 20

    ao que tem significado, que comunica sociedade; por isso ento a

    reafirmao da importncia do resultado: ele que intensifica essa significao

    social e, em conseqncia, d a um injusto consumado mais contedo que a

    tentativa de crime.68

    Isso no pode significar, porm, uma guinada para o puro desvalor de

    resultado, pois, considera-se aqui que o resultado como fundamento do ilcito

    depende, necessariamente, de ao e elemento subjetivo; assim como a morte

    natural no tem o mesmo significado que o homicdio.69

    A questo , pois, de se livrar de uma anlise valorativa que se prenda

    construir excessivamente em uma explicao puramente fsica, ontolgica, de

    ao e resultado.

    2.3.2 Desvalor de ao como ao perigosa.

    Desligando-se da fundamentao welzeliana, e insistindo no bem

    jurdico como fundamento material do delito, o desvalor de ao deve se

    desprender totalmente do culto a valores tico-sociais. O desvalor de ao liga-

    se, agora, sua significao como ao perigosa para o objeto do bem

    jurdico; e o desvalor de resultado leso danosa ao bem jurdico. Como

    ressalta Juarez Tavares, citando Michael Khler, a lei penal toma a ao

    humana dentro de uma estrutura prpria, resultante das relaes que quer

    disciplinar e que nada tm a ver com a tica da boa vontade e John Leslie

    Mackie, as normas no existem para garantir o estabelecimento de um

    objetivo moral determinado, como a vigncia dos valores tico-sociais, mas ao

    inverso, a disciplina jurdico-democrtica do exerccio da liberdade individual.70

    Hans-Heinrich Jescheck defende que o desvalor de ao do fato

    punvel reside na ao perigosa para o bem jurdico. O Direito Penal tem como

    finalidade a proteo de bens jurdicos, porque busca manter a concordncia

    entre a vontade dos destinatrios da norma e as exigncias (deveres) do

    68

    JAKOBS, Gnther Jakobs. Derecho Penal. Parte general. 2 ed. Madrid : Marcial Pons, 1997. p. 203 e ss.

    69 STRATENWERTH, Gnther. Disvalor de accin y disvalor de resultado en el derecho penal. 2. ed. Buenos Aires : Hammurabi, 2006. p. 35.

    70 TAVARES, Juarez. op. cit. p. 301 e 302.

  • 21

    ordenamento jurdico. E, desse modo, o delito simultaneamente leso de bem

    jurdico e infrao de um dever.71

    O mesmo autor explicita que o injusto tambm desaprova a forma e o

    modo em que se origina a situao juridicamente desaprovada. Assim, o

    desvalor de ao consiste tanto nas modalidades externas do comportamento

    do autor como circunstncias que concorrem em sua pessoa, tais como

    elementos objetivos de autoria, elementos subjetivos do injusto, dolo, omisso

    de dever de cuidado, idias e intenes do autor. Da porque em se dizer ao

    referida ao fato e ao autor, em se dizer injusto pessoal.72

    Tambm Francisco Muoz Conde assinala que o desvalor de ao

    responsvel pela especial periculosidade, primeira caracterstica que separa

    condutas criminosas daquelas que no o so; ao passo que o desvalor de

    resultado a prpria leso do bem jurdico. Tais caractersticas inseparveis,

    somadas idia de responsabilidade, definem o conceito de culpabilidade

    dentro do conceito material de crime.73

    Ou seja, para este autor, o contedo material da antijuridicidade no se

    esgota na leso ou perigo de leso ao bem jurdico, pois nem todo desvalor de

    resultado antijurdico. Somente a leso ou o perigo de leso provocados por

    uma ao desaprovada pela ordem jurdica ser antijurdica. A ao

    desaprovada fruto de uma violao a uma norma de determinao que

    conjugada com a norma de valorao de um determinado resultado revela o

    contedo da antinormatividade ou antijuridicidade.74

    Diz-se, portanto, que a proibio de uma determinada ao pretende a

    proteo na medida em que cumpre sua funo de motivao nos destinatrios

    da norma impelindo-os a respeitarem os bens jurdicos. O desvalor de ao

    pressupe, sempre, um valor ou desvalor de resultado. Os mandamentos no

    mate, no roube, s tm sentido caso se reconhea previamente o valor que

    os fundamentam. No existe uma hierarquia lgica entre os dois critrios, como

    71

    JESCHECK, Hans-Heinrich. WEIGEND, Thomas. Derecho Penal, parte general. 5 ed. Granada : Comares, 2002. p. 9.

    72 Idem. p. 256 e 257.

    73 MUOZ CONDE, Francisco. ARN, Mercedes Garca. Derecho Penal, parte general. 6 ed. Valencia : Tirant lo Blanch, 2004. p. 44-45.

    74 Idem. p. 304. Repare-se aqui a semelhana (e tambm a divergncia) com as categorias acima tratadas de Edmund Mezger.

  • 22

    pretendeu Hans Welzel ou Diethart Zielinski, as preferncias se daro, porm,

    por razes de poltica-criminal.75

    Claus Roxin ressalta que a ao tpica enquanto unidade de fatores

    internos e externos (incluindo o resultado), o objeto da norma de

    determinao e valorao que d base ao injusto.76 Pois ainda que

    pensssemos na tentativa como marco de exclusivo desvalor de ao,

    possvel identificar um resultado exterior ao sujeito, o comeo da execuo.

    Afirma tambm que no crime imprudente no somente o resultado objeto de

    desvalor, o desvalor de ao caracterizado nesses casos pela criao de um

    risco no permitido. Ainda, que o injusto caracterizado por pessoalidade, a

    ao do autor e suas qualidades, tendncias subjetivas, finalidades, modo,

    forma e elementos objetivos de autoria so freqentemente requeridas pelo

    preceito penal, abarcados pelo desvalor de ao e resultado, sendo, portanto,

    parte do injusto.77

    Porm como elementos que se referem ao autor e seu modo de agir

    so elementos do injusto? No seriam eles elementos prprios da culpabilidade

    antecipados na anlise de tipicidade penal?

    a) O problema dos elementos internos e a comunicao da norma de

    determinao:

    Windfried Hassemer explica que os elementos internos do injusto,

    nomeadamente dolo e culpa, no constituem apenas elementos de descrio

    tpica, so tambm fenmenos normativos sobre os quais recai a reprovao.

    Note-se, no que diz respeito leso, que o resultado externo o mesmo

    produzido por um injusto doloso ou imprudente os elementos objetivos do

    fato so os mesmos. Assim, os elementos internos existem unicamente como

    graus de intensidade, que tambm serviro de critrios para a imposio de

    75

    Idem. p. 304-305. 76

    De modo um pouco divergente TAVARES, Juarez. op. cit. p. 301: Enquanto a violao das normas proibitivas ou determinativas fundamenta o desvalor do ato, a norma valorativa fundamenta o desvalor do resultado, tendo em vista a real ocorrncia de leso ao bem jurdico, o que possibilita a diversidade de punies para o crime consuma e para a tentativa, atenuando-se a pena em relao a esta.

    77 ROXIN, Claus. op. cit. p. 319-326.

  • 23

    pena; a reao jurdico-penal deve estar de acordo com o grau de participao

    interna de cada sujeito.

    E nisso h que se ter em mente os fins a que se atribuam pena

    criminal, fins que instrumentalizados so o meio adequado para a

    concretizao do juzo de culpabilidade, pois do sentido pena. Por exemplo,

    ao autor de um crime imprudente a pena deve ter o efeito de compromet-lo a

    que se torne no futuro uma pessoa prudente; ao autor de um delito doloso,

    deve imp-lo no dever de prestar contas sobre sua relao em

    desconformidade com as normas.78

    Entretanto, o mecanismo de punio como forma de motivar as

    pessoas a atuarem conforme a norma seriamente questionado sobre a real

    produo deste efeito. Windfried Hassemer afirma que a rigidez jurdico-

    racional da idia de preveno geral menospreza a insensatez ftica dos

    homens. A preveno especial espera um homo oeconomicus, que pensa

    simplesmente no mecanicismo de ponderao de vantagens e desvantagens

    com a conduo de seu atuar conforme as normas ou em transgresso a elas,

    e que no se orienta pelas regras gerais. Mas nem sempre isso acontecer.

    Veja-se, por exemplo, a pouca capacidade de motivao nas normas jurdicas

    em contraposio s normas sociais nos casos de autores de crimes violentos

    ou passionais. No se deixar de dar um soco no rosto do vizinho irritante

    porque a lei assim probe. Pense-se tambm na criminalidade contra o

    patrimnio. Existe em muitos casos uma motivao criminosa, mas no

    jurdico-penal. Portanto, a pretenso de domnio psquico do autor punvel

    raramente alcanada,79 ou at mesmo indesejada poltico-criminalmente.

    A idia mecnica de que seres humanos so motivados assim como

    se levanta um pedao de pau contra um co , assim como a idia do efeito

    da pena da teoria da preveno geral que supe a ameaa com instrumento de

    conservar o indivduo com boa conduta, uma idia de desprezo ao homem

    tratando-o como objeto. No passa, pois, de uma teoria que se limita viso

    78

    HASSEMER, Windfried. op. cit. p. 298-300; 311; De modo anlogo, porm sem fundamentao prevencionista: TAVARES, Juarez. op. cit. p. 330-334.

    79 HASSEMER, Windfried. op. cit. p. 407-410.

  • 24

    jurdica de imposio, aplicao e execuo de pena, e por isso mesmo

    duvidosa, seja no campo emprico, seja no campo normativo.80

    Windfried Hassemer acolhe, no entanto, as funes preventivas da

    pena (geral e especial), porm refora a necessidade de sua permanente

    verificao emprica Preveno s um projeto aceitvel quando funciona81

    e as submete falibilidade, reconhecendo que o sistema de Direito Penal, o

    qual deve se pautar em princpios valorativos (proporcionalidade, ampla

    defesa, proibio de provas ultrajantes dignidade humana, incluso da vtima

    como sujeito do processo), apenas um dos vrios instrumentos de controle

    social.82

    Porm, Bernd Mssig, discpulo de Gnther Jakobs, critica Windfried

    Hassemer pelo fato de que, apesar de sua fundamentao social, baseia sua

    idia de norma, tal como Karl Binding, como imperativos. Para Bernd Mssig as

    orientaes contemporneas sobre comunicao e sentido (Niklas Luhmann e

    Jrgen Habermas), embora sejam conflitantes, em um ponto elas concordam: a

    norma mais complexa em seu sentido social que a representao lingstica

    em forma de imperativos da norma de comportamento. As normas so

    estruturas sociais transmitidas por comunicao; so esquemas simblicos de

    orientao; so formas de sentidos gerais em que o sistema de comunicao

    sociedade se descreve e tambm se reproduz como, por exemplo, sociedade

    que protege a propriedade privada.83

    Ainda assim, a crtica, embora vlida, deixa de levar em conta o papel

    do penalista dentro deste sistema, interpretando e aplicando o Direito; o

    mesmo se diga a casos em que o Estado-penal no passa de um brao

    armado em prol de valores que no tm nem poderiam ter reflexo na

    realidade da massa social. Se certo que devemos ter um porto firme na teoria

    social, mais certo que o Direito, por ser este instrumento que est ao mesmo

    tempo voltado ao coletivo e ao particular, no pode negar a realidade conflitiva

    (e por isso mesmo plural) da sociedade.

    80

    Idem. p. 411-413. 81

    Windfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, poltica. Porto Alegre : Srgio Antonio Frabris, 2008. p. 225.

    82 HASSEMER, Windfried. op. cit. p. 420; 426 e 427. Em sentido anlogo: MUOZ CONDE, Francisco. ARN, Mercedes Garca. op. cit. p. 65.

    83 MSSIG, Bernd. Desmaterializacin del bien jurdico y de la poltica criminal: sobre las perspectivas y os fundamentos de una teora del bien jurdico crtica hacia el sistema. p. 25 e ss.

  • 25

    Mas, de todo modo, considerando a complexidade da norma o conceito

    de norma de determinao e sua pretenso psicolgica perde completamente o

    sentido; ainda mais quando fundamentada em um puro desvalor de ao.

    2.4 Desvalor de ao e a interpretao da legislao brasileira.

    Somente de modo fsico poderamos separar a ao do resultado, o

    desvalor, a reprovao, o sentido da proibio nico e recai sobre o injusto

    como um todo.

    O desvalor de ao ento no pode significar uma leso ao Estado;

    ao reprovar o injusto ao autor devemos ter um critrio material fundado na idia

    de bem jurdico. De fato, existe uma contrariedade entre a ao do autor e o

    comando legal, porm este comando legal somente possui significado se

    manejado com seu significado social (da prpria norma em sentido complexo)

    respeitado o fim ltimo do Estado e do sistema jurdico como proteo do ser

    humano. O desvalor de ao no pode significar desrespeito ao dever de

    obedincia estatal, nem mesmo um simples desrespeito aos valores sociais;

    mesmo a sociedade s tem sentido se tomada em funo da dignidade do ser

    humano.

    Isso porque partimos da premissa que o Estado no possui direito de

    punir (razo pela qual seria credor pessoal de um comportamento fiel ao

    Direito), seno que tem o poder de punir. E este poder est limitado proteo

    de bens jurdicos e no legitimado por um direito obedincia. Mesmo o puro

    desvalor de ao somente legtimo se representar de algum modo uma

    leso a bem jurdico. A norma de determinao, nesse sentido, somente

    poderia existir em funo da norma de valorao.

    Embora na tradio dogmtica alem seja comum que a ao

    signifique ao menos uma leso paz jurdica (vide, por exemplo, a punio da

    tentativa inidnea, que a despeito de no lesionar qualquer bem jurdico, ainda

    passvel de punio por existncia de desvalor de ao que coloca em risco

    a paz jurdica), no Brasil temos fundamento de lege lata para sustentar um

    contedo significativamente menor para o desvalor de ato.

  • 26

    O artigo 17 do Cdigo Penal brasileiro preconiza que no se pune a

    tentativa quando, por ineficcia absoluta do meio ou por absoluta

    impropriedade do objeto, impossvel consumar-se o crime.

    A impunidade do crime impossvel no Brasil, como melhor opo

    poltico-criminal, d bases para que se defenda, entre ns, que o critrio

    material de criminalizao to somente a leso de bem jurdico concreto.

    Tambm, que no existe um bem jurdico genrico que toda violao da

    norma atinge; o bem jurdico tambm indicado abstratamente no tipo legal

    especfico que faz referncia a legalidade. Tenha-se o seguinte exemplo: um

    crime de furto no pode ter como regra geral a leso da paz jurdica toda vez

    que este um crime contra o patrimnio (bem jurdico abstrato) e quando no

    existir valor a ser subtrado (bem jurdico concreto, objeto com significado,

    suporte material real) esse ser um crime impossvel impunvel excluindo-se

    os atos j praticados , uma vez que os modos de execuo e condies

    relativas ao sujeito ativo no podem revelar um misterioso desvalor de ao

    como fundamento material do injusto para manter a punio.

    Em nosso pas temos, ento, um marco legal para a concepo de

    crime como violao de bem jurdico; a leitura a contrariu sensu do artigo 17 de

    nosso Cdigo Penal somente pode levar concluso que o desvalor de ao

    em si no o contedo lesivo do injusto que legitimaria a criminalizao; ou

    uma avaliao antecipada da culpabilidade (leva em conta o autor e objeto

    material da culpabilidade), e por isso no possui dignidade como critrio

    material de criminalizao.

    Diante disso, temos tambm que corrigir o postulado segundo o qual

    atos preparatrios tambm so punveis se tipificados; no basta somente o

    respeito legalidade, o legislador no pode, por exemplo, tipificar

    comportamentos inidneos (crimes impossveis) sob o ponto de vista lesivo

    ao bem jurdico.

    E consideramos redundante avaliar o desvalor de ao como ao

    perigosa, j que ao perigosa para o bem jurdico, e no perigosa em si (o

    que representaria uma idia de periculosidade pessoal). Note-se: a ao que

    cria o perigo a mesma ao que produz o resultado; a ao perigosa por

    conta da potencialidade de produzir resultado. Quando o resultado se realiza o

  • 27

    sujeito ativo j imprimiu o sentido de sua ao no resultado84 de modo que

    impossvel desvalorar uma ao perigosa sem estar, ao mesmo tempo,

    desvalorando o prprio resultado.

    Deve ser assim, por exemplo, tambm na anlise de tipos penais

    classificados por formais ou de mera atividade, que, como se ver mais

    adiante, tambm devem referir-se a leses de bens jurdicos.

    A tentativa de homicdio, por exemplo, s tem desvalor de ao pela

    ocorrncia de um quase-resultado (desvalor de resultado); e no pela ao do

    autor ser considerada intrinsecamente indigna, imoral, ou reveladora de

    periculosidade social.

    Ento se fosse possvel fazer de algum modo a separao entre

    desvalor de ao e resultado, o desvalor de ao seria apenas uma categoria

    de imputao dos elementos referentes subjetividade do autor referente ao

    injusto (dolo e culpa) e uma antecipao da culpabilidade (modos de execuo

    e caractersticas do autor). E, em princpio, nada h de errado em se antecipar

    a culpabilidade, desde que fiquem de fora as avaliaes da personalidade pelo

    carter e periculosidade social do autor e outras que tantas que expressam a

    idia de Direito Penal de autor. O certo que estes elementos antecipados no

    podem nunca fundamentar a materialidade do injusto.

    Se o Estado pretende comunicar o cidado de uma proibio com uma

    norma de determinao, o desvalor de ao pouco tem que ver com isso, j

    que a determinao de uma norma penal incriminadora no um simples

    comando; a funo da norma muito mais complexa que a que normalmente

    se supe. Mesmo que se admita que de modo geral o Direito Penal esteja

    dirigido como instrumento de conteno do sujeito (ego reprimido pelo

    superego), isso revela: a ao fsica e objetivamente considerada no passa de

    uma fase posterior conteno psicolgica, a ao e o resultado so

    exteriorizaes das pulses ou desejos e em nome destas exteriorizaes,

    sobre o significado que elas tm no mundo, fala a norma de valorao onde

    est radicado o bem jurdico.

    A ao pessoal, possui significado, este significado impresso pelo

    autor no resultado, de modo que at mesmo o resultado poderia ser chamado

    84

    Apropriando-nos indevidamente do termo, poderamos dizer que o risco se produz no resultado.

  • 28

    de pessoal; porm a reprovao no deve extrapolar os limites do Direito Penal

    do fato fundado na idia de proteo de bens jurdicos concretos que esto

    referidos especificamente nas normas penais incriminadoras.

    2.5 Primeiro diagnstico: desvalor de ao versus bem jurdico.

    Uma anlise detida ao que j foi dito demonstra que, ao passo que o

    contedo eticizante do desvalor de ao foi sendo retoricamente esvaziado, o

    conceito de bem jurdico foi tornando-se cada vez mais abstrato. E, em

    verdade, o contedo (tico-social) que Hans Welzel indicava ao desvalor de

    ao foi transportado para o desvalor de resultado, ao custo de uma maior

    abstrao da idia de bem jurdico. No de maneira declarada, mas como

    conseqncia de uma diluio do conceito ou noo de bem jurdico.

    Dentro desta perspectiva de incio, o alerta de Juarez Tavares:

    Na verdade, a questo do conceito de bem jurdico, como fundamento da incriminao, no pode deixar de ser o resultado de uma escolha poltica, ingnua ou comprometida, acerca do que se pretende com a sua proteo.

    85

    A exposio das diversas alteraes que se produzem na noo de bem jurdico, a partir do positivismo at o funcionalismo, vem demonstrar que seu conceito depende do rumo tomado pelo poder punitivo, em face das modificaes estruturais havidas na sociedade e no Estado. De uma sociedade liberal-individualista at a sociedade da comunicao ps-moderna, o que se observa que a noo de bem jurdico vai diluindo gradativamente sua substncia material, at culminar praticamente na sua eliminao.

    86

    Isso se deu, em boa medida, desde o incio do debate sobre o

    contedo material do injusto, pela tentativa de se legitimar bens jurdicos

    coletivos ou supra-individuais, como se ver mais adiante. No por outro

    motivo, Gnther Stratenwerth, sentencia: o problema no est ainda por

    solucionar-se, mas simplesmente insolvel. 87

    Retomemos, por enquanto, a orientao welzeliana. Com base

    ontologista, ao menos em tese garantiria uma viso aproximada e realista entre

    85

    TAVARES, Juarez. op. cit. p. 181. 86

    Idem. p. 197. 87

    STRATENWERTH, Gnther. Sobre o Conceito de Bem Jurdico. In GRECO, Luis. TRTIMA, Fernanda Lara. (Org.) O bem jurdico como limitao do poder estatal de incriminar? (no prelo).

  • 29

    resultado jurdico e resultado fsico, o que equivaleria a um bem jurdico com

    maior concreo e potencial crtico. Entretanto, sua tnica marcada pela

    excessiva abstrao do desvalor de ao na proteo e reforo dos valores

    tico-sociais anula a potencialidade crtica do bem jurdico. Ou seja, se por um

    lado temos um bem jurdico concreto, por outro temos um desvalor de ao

    que inutiliza sua funcionalidade crtica por conta do elevado grau de abstrao.

    Ento que, para tomar em exemplo autores ps-finalistas, Hans-

    Heinrich Jescheck e Thomas Weigend afirmam que a proteo de bens

    jurdicos uma exigncia de uma modelo liberal de Estado88 e discorrem ainda

    que no h confuso entre Direito e tica Individual. Ainda que se fale de

    vontade da ao, a prescrio normativa permanece sempre como um

    mandamento jurdico e, por isso, um injusto indiferente a critrios tico-

    individuais. A no ser no caso da imposio jurdica de ateno ao bem

    comum, que pode muito bem ser considerada manifestao de uma tica

    Social, sendo esta uma valorao que se limita, porm, ao mbito da

    culpabilidade.89

    A noo de bem jurdico defendida pelos citados professores parte

    visivelmente de um valor abstrato, espiritual, da ordem social, protegido

    juridicamente, em cuja defesa est interessada a comunidade e cuja

    titularidade pode corresponder a um indivduo ou coletividade. Bens

    imateriais, relaes das pessoas com interesses reais, tais como a faculdade

    de disposio das coisas (propriedade).90 E no somente isso, tambm delitos

    como escndalo pblico ( 183, StGB), maltrato a animais ( 17, TierSchG),

    afronta a convices religiosas ( 166, StGB), ofensas memria dos falecidos

    ( 189, StGB) ou as mentiras sobre Auschwiz ( 130, III, StGB), protegem

    bens jurdicos, pois so reflexos de valores com slida raiz sobre as convices

    da sociedade, arraigadas na moral social que, como tais, devem ser protegidas

    por meio de sano penal.

    justamente sobre estes ltimos exemplos, no entanto, que Gnther

    Stratenwerth ao sustentar a limitao do poder crtico do bem jurdico, aponta

    para a falta de sentido na procura por bens jurdicos diferentes da norma que

    88

    JESCHECK, Hans-Heinrich. WEIGEND, Thomas. op. cit. p. 9. 89

    Idem. p. 261. 90

    Idem. p. 275 e 277.

  • 30

    impe um dever.91 Note-se que ao contrrio de Hans Welzel, os professores

    Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend tm a pretenso de extirpar do

    injusto as valoraes ticas e dar o sentido de desvalor de ao como ao

    perigosa. Porm, acabam por relativizar o conceito de bem jurdico, tornando-o

    demasiado abstrato.

    Note tambm a viso aproximada92 a Hans Welzel como foi indicado

    supra no que toca o contedo do conhecimento da antijuridicidade exigido

    para a reprovao.

    En cualquier caso, el objeto de la conciencia de la ilicitud no es el conocimiento de la proposicin jurdica infringida o de la punibilidad del hecho [....]. Ms bien, es suficiente con que el autor sepa que su comportamiento contradice las exigencias del orden comunitario y que, por ello, est jurdicamente prohibido. Con otras palabras: es suficiente con el conocimiento de la antijuridicidad material, si bien como conocimiento del lego [...]. Por otro lado, la conciencia de la contrariedad a las costumbres no fundamenta el conocimiento del injusto [...]. [...] Para el conocimiento del injusto basta con la conciencia de estar atentando contra una norma jurdica formalmente vlida, pues en este caso el autor sabe de todos modos que infringe el Derecho vigente por muy convencido que est de la utilidad social de su

    comportamiento [...].93

    O que importa que nenhum espao de d no injusto para que sejam

    inseridas valoraes que no dizem respeito a um Direito Penal fundamentado

    na idia de bem jurdico. Nesse sentido, Jorge de Figueiredo Dias acusa a

    concepo de Direito Penal como proteo a valores tico-sociais de ser

    absolutamente inadequada estrutura e s exigncias das sociedades

    democrticas e secularizadas que tm como princpio o respeito ao pluralismo

    tico-social, sobretudo s exigncias ticas.94

    No funo do Direito Penal nem primria, nem secundria tutelar a virtude ou a moral: quer se trate da moral estadualmente imposta, da

    91

    STRATENWERTH, Gnther. Sobre o Conceito de Bem Jurdico. In GRECO, Luis. TRTIMA, Fernanda Lara. (Org.) O bem jurdico como limitao do poder estatal de incriminar? (no prelo).

    92 Esta aproximao feita por CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal, parte geral. Curitiba : ICPC; Lumen Juris, 2006. p. 302 (nota 83).

    93 JESCHECK, Hans-Heinrich. WEIGEND, Thomas. op. cit. p. 487 e 488.

    94 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. op. cit. p. 40-41; BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mnimos da tutela penal. Srie as cincias criminais no sculo XXI. v. 7. So Paulo : Revista dos Tribunais, 2002. p. 29 e ss.

  • 31

    moral dominante, ou da moral especfica de um qualquer grupo

    social.95

    E tambm Emilio Dolcini defende um Estado pluralista, laico e inspirado

    em valores de tolerncia, no qual todo o poder estatal emana do povo e que

    reconhece a dignidade do ser humano, onde o Direito Penal no pode

    perseguir fins transcendentes ou ticos, no pode tomar o ser humano como

    simples objeto de tratamento pelas suas tendncias anti-sociais, seno que

    deve reconhecer o Direito Penal como instrumento de proteo de bens

    jurdicos.96

    Muito embora presente um amplo rechao da idia de Direito Penal

    como instrumento de proteo de valores tico-sociais, as orientaes

    funcionalistas se baseiam em uma estrutura de conceito de bem jurdico que

    abarca (to s ou tambm) a proteo do chamado sistema social, seja com

    base na idia de danosidade social, seja como proteo de expectativas

    normativas, seja com vinculao Constituio como valor supremo do

    sistema jurdico, parte de um sistema social maior.

    Porm, qual o contedo deste chamado sistema social, suposto

    objeto de proteo do Direito Penal?

    Neste ponto, a crtica de Eugenio Ral Zaffaroni acena para uma

    necessidade de uma viso realista, que v na concepo de sistema uma

    fico, uma iluso que deve atender a sua utilidade, mas deve tambm ser

    abandonada quando nega o ser humano como valor.

    Particularizando en el plano del discurso jurdico-penal, con realismo tambin queremos significar la renuncia a las ficciones y a las metforas, tal como lo hemos sealado. No admitimos que, para sustentar un discurso, se invente lo que falta o se transporte lo que sabemos que no corresponde al discurso. Si al discurso le falta algo, ser porque no se adapta a la realidad y, por ende, deber ser desechado. En este sentido, hemos rechazado las metforas contractualista y organicista, como tambin la famosa guerra de todos contra todos, pudiendo agregarse otras, no menos artificiales y peligrosas, como el contractualismo entre los dbiles de Nietzsche [...] o las ilusiones sistmicas respecto de lo que no son ms que mutables coaliciones de poderes parciales. En este ltimo sentido, al rechazar toda idea de sistema en forma de aparato perfectamente montado e inteligentemente dirigido,

    95

    FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. op. cit. p. 40-41. 96

    DOLCINI, Emilio. MARINUCCI, Giorgio. Constituio e Escolha dos Bens Jurdicos. In Revista Portuguesa de Cincia Criminal. n. 4. Coimbra : Aequitas. 1994.. p. 152.

  • 32

    dejamos de lado las concepciones conspirativas, del signo que sean: una clara concepcin conspirativa es la llamada doctrina de la seguridad nacional, pero tambin lo son otras versiones simplistas de la lucha de clases y del marxismo dogmtico, que interpreta hasta las ms mnimas manifestaciones de ejercicio de poder como llevadas a cabo por una intencionalidad superiormente dirigida por una suerte de macro-computer capaz de planificarlo todo.

    97

    2.5.1 A legitimao material do Direito Penal pela estabilidade da norma: o funcionalismo sistmico normativista de Gnther Jakobs.

    Gnther Jakobs sustenta que o Direito Penal tem por funo manter a

    configurao social e estatal garantindo as normas e essa garantia consistiria

    em que as expectativas imprescindveis para o funcionamento da vida social,

    na forma exigida legalmente, no se dem por perdidas caso resultem

    defraudadas. E por isso, ento, que para este professor de Bonn o bem

    jurdico-penal a firmeza de las expectativas normativas esenciales frente a la

    decepcin, firmeza frente a las decepciones que tiene el mismo mbito que la

    vigencia de La norma puesta en prctica.98

    Os bens jurdicos tm valor apenas como realidade ftica da tutela das

    expectativas normativas. O lugar comumente ocupado pelo bem jurdico

    ocupado pelo critrio de validade da norma. Isso porque a simples perda de

    bens jurdicos que no interessam ao Direito Penal. Nesse sentido, a perda de

    bens se d pelos mais diversos motivos, e nem todos eles so objeto de

    preocupao do Direito Penal (morde natural, por exemplo). Este ramo do

    Direito tem como funo, ento, garantir certos bens contra ataques de outra

    pessoa. Portanto, Direito Penal como proteo de bens jurdicos significa que

    uma pessoa, encarnada em seus bens, protegida frente aos ataques de outra

    pessoa.99

    Assim endente-se que o Direito Penal garante a expectativa de que

    no se produzam ataques a bens jurdicos. Por isso Gnther Jakobs afirma que

    97

    ZAFFARONI, Eugenio Ral. En busca de las penas perdidas, deslegitimacin y dogmatica juridico-penal. Buenos Aires : Ediar, 1998. p. 169.

    98 JAKOBS, Gnther .Derecho Penal. Parte general. 2 ed. Madrid : Marcial Pons, 1997. p. 45.

    99 JAKOBS, Gnther .Derecho Penal. Parte general. 2 ed. Madrid : Marcial Pons, 1997. p. 45; PARMA, Carlos. Bien jurdico en el pensamiento de Gnther Jakobs. Disponvel na Internet: < http://www.carlosparma.com.ar/pdfs/cp_d_pg_04.pdf >. Acesso em 28 de maro de 2007.

  • 33

    o bem jurdico no deve se representar como um objeto fsico, seno como

    norma, uma expectativa garantida. O direito, aqui, est representado enquanto

    estrutura de relao entre pessoas, no podendo, pois, ser representado como

    um objeto fsico.100

    El Derecho penal garantiza la vigencia del derecho. Con esta finalidad, reacciona con una pena a la defraudacin de la expectativa normativa de que toda persona se comporte de modo fiel al Derecho, y esto significa que reacciona con la confirmacin de la vigencia del Derecho. La defraudacin puede ya concurrir cuando no puede hablarse, o todava no puede hablarse, de la consumacin de un delito contra la persona; esto ltimo en la tentativa inacabada, lo primero en la tentativa con objeto inidneo. Evidentemente, tambin en la tentativa hay ya algo consumado, aunque no sea el mximo posible (tentativa inacabada) o el mximo de lo objetable (tentativa acabada sin objetivacin en la consumacin), precisamente la infidelidad al Derecho, en cuyo tratamiento siempre se presupone que la formulacin de las expectativas (o normas) es correcta en cuanto a su contenido, sino el problema previo, ms exactamente, la parte del problema relativa a aquello a lo que deben ajustarse las expectativas en aquellos casos en los que la configuracin social se

    presenta como la existencia de personas.101

    A leso a um bem jurdico refere-se frustrao de uma expectativa

    normativa. Isso se concretiza na infrao de um rol de competncias, rol de

    deveres, dentro de sua teoria da imputao objetiva, tese que demonstra que

    no existem proibies genricas de leso, tampouco mandamentos genricos

    de salvamento, tudo se baseia em uma quebra de um rol de competncias

    atribudas a um cidado fiel ao direito. Desse modo o cidado que no age de

    forma a contradizer seu rol de obrigaes legais no defrauda uma expectativa,

    no descumpre a norma, seno que atua fiel ao direito, ainda que seu agir

    tenha relevncia causal para a leso de um bem.102

    Para o mesmo professor alemo o bem jurdico como proposto por

    outras correntes pode fundamentar apenas um direito penal do inimigo, em

    contraposio com o direito penal do cidado, pois este ltimo tutela as

    100

    Ibidem. 101

    JAKOBS, Gnter. Consumacin material en los delitos de lesin contra la persona. Al mismo tiempo, una contribucin a la generalizacin de la parte especial. Revista Electrnica de Ciencia Penal y Criminologa. 2002. p. 3. Disponvel na Internet: Acesso em: 12 de novembro de 2004.

    102 PARMA, Carlos. Bien jurdico en el pensamiento de Gnther Jakobs .

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    expectativas normativas dentro da sociedade com vistas a uma maximizao

    de esferas de liberdade.103

    Isso porque dentro de sua teoria funcionalista sistmica adaptada ao

    direito penal, existem dois modos do Estado atuar contra o delinqente,

    mediante um direito penal do cidado e um direito penal do inimigo. O direito

    penal do cidado, que visa garantir o valor da norma e a confiana no direito,

    mediante reafirmao da vigncia da norma pela imposio de pena; onde so

    respeitados todos os direitos fundamentais inerentes ao cidado. O direito

    penal do inimigo diz respeito a casos em que o sujeito ativo considerado

    perigoso (por exemplo, terroristas, delinqentes organizados, criminosos

    sexuais, etc), de modo a se afastar do direito de maneira permanente e no

    oferecer garantias de que ser fiel a norma (ou seja, tornando falho o critrio de

    expectativas normativas e respeito a um rol de competncias legais); aqui se

    aplicar no uma pena, e sim uma medida de segurana com vistas a anular a

    periculosidade do agente, nesse sentido que ele visa proteger bens jurdicos,

    contra ataques do inimigo, o sujeito perigoso. Neste direito penal, no se

    respeitam direitos como os do cidado, pois um inimigo do Estado no

    cidado, uma no-pessoa.

    Tirante esta ltima e desumana formulao que sustenta um no-

    Direito dos inimigos do Estado, para Gnther Jakobs a formulao tradicional

    de bem jurdico esconde, na verdade, opes arbitrrias de seus defensores

    por uma ou outra ideologia que pretendem fazer valer. Seria por isso que o

    bem jurdico sustentaria a crena de um Direito Penal comprometido com a

    defesa do ser humano. Mas como cr o professor de Bonn nem por isso os

    defensores da teoria do bem jurdico foram capazes de impedir os horrores do

    nazismo, alis, muito pelo contrrio: foram pacatos observadores do

    holocausto.

    Esta concluso de Gnther Jakobs faz crer que sempre houve um

    comprometimento com o carter limitador do bem jurdico, o que no reflete a

    realidade evolutiva deste critrio dogmtico e poltico-criminal; na verdade, os

    ensinamentos deste professor somente nos leva a conclui