77
FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DE EMPRESAS MÁRCIO COSTA DE LEMOS A LEALDADE DOS SERVIDORES PÚBLICOS BRASILEIROS: uma análise na área de segurança pública do Distrito Federal. Rio de Janeiro 2012

Dissertação Márcio Lemos - Publicação Dr. Steven Maynard-Moody

Embed Size (px)

Citation preview

  • FUNDAO GETLIO VARGAS

    ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAO PBLICA E DE EMPRESAS

    MRCIO COSTA DE LEMOS

    A LEALDADE DOS SERVIDORES PBLICOS BRASILEIROS:

    uma anlise na rea de segurana pblica do Distrito Federal.

    Rio de Janeiro

    2012

  • FUNDAO GETLIO VARGAS

    ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAO PBLICA E DE EMPRESAS

    MRCIO COSTA DE LEMOS

    A LEALDADE DOS SERVIDORES PBLICOS BRASILEIROS:

    uma anlise na rea de segurana pblica do Distrito Federal.

    Dissertao apresentada Banca

    examinadora do Mestrado Acadmico em

    Administrao da Escola Brasileira de

    Administrao Pblica e de Empresas -

    EBAPE da Fundao Getlio Vargas -

    FGV, como requisito parcial para

    obteno do grau de Mestre em

    Administrao.

    Orientadora: Profa Dr

    a Alketa Peci

    Rio de Janeiro

    2012

  • Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV

    Lemos, Mrcio Costa de

    A lealdade dos servidores pblicos brasileiros : uma anlise na rea de segurana

    pblica do Distrito Federal / Mrcio Costa de Lemos. - 2012.

    77 f.

    Dissertao (mestrado) - Escola Brasileira de Administrao

    Pblica e de Empresas, Centro de Formao Acadmica e Pesquisa.

    Orientadora: Alketa Peci.

    Inclui bibliografia.

    1. Servidores pblicos. 2. Lealdade administrativa. 3. Comprometimento organizacional. 4. Burocracia. 5. Processo decisrio. 6. Discricionariedade administrativa. 7.

    Responsabilidade administrativa. I. Peci, Alketa. II. Escola Brasileira de Administrao

    Pblica e de Empresas. Centro de Formao Acadmica e Pesquisa. III. Ttulo.

    CDD 352.3

  • DEDICATRIA

    A meu grande amigo e companheiro de

    todas as jornadas Marclio Mrcio.

  • AGRADECIMENTOS

    Professora Alketa Peci, pela valorosa orientao e ainda pela pacincia, ateno, incentivo,

    crticas e sugestes, durante a elaborao da dissertao.

    Ao Professor Joaquim Rubens Fontes Filho, por todo apoio e direo, pela indicao de

    orientao na realizao deste trabalho, pela dedicao na conduo do curso e de sua disciplina,

    pelo acompanhamento e incentivo constante, assim como pelos timos ensinamentos, e por toda a

    ateno dada aos alunos da turma de Mestrado em Administrao Pblica, de forma que rendo a

    ele minha grande gratido.

    Aos excelentes professores da FGV, verdadeiros mestres, por todas as lies ensinadas e

    conhecimento transmitido.

    Ao PRONASCI, SENASP e ao Ministrio da Justia, pela viabilizao e patrocnio do curso.

    Claudia Ferreira, sempre diligente, pela interminvel pacincia e pela importante e incansvel

    assistncia junto FGV, desde o incio at a concluso do curso.

    A Direo da Polcia Civil do Distrito Federal pelo apoio irrestrito para participao neste curso e

    concluso dos trabalhos.

    Aos colegas e amigos da segurana pblica do DF pelo tempo e disposio em responder

    atenciosamente s entrevistas, compartilhando experincias que enriqueceram a pesquisa.

    A meus pais, Helena e Marclio Mrcio, pelo apoio e estmulo constante. Sempre foram modelos

    de profissionalismo e carter, sem os quais no teria traado esta trajetria profissional e

    acadmica.

    A todos os que, por alguma falha momentnea, no tenha sido mencionado.

    Muito obrigado!

  • Homo sum, humani nihil a me alienum puto.

    Terncio

  • RESUMO

    Esta pesquisa tem por objetivo contribuir para compreenso dos vnculos de lealdade que

    orientam a atuao dos servidores pblicos brasileiros. Aps a reviso bibliogrfica, foram

    realizadas entrevistas a fim de coletar e analisar as percepes dos profissionais. O estudo

    focou em funcionrios da segurana pblica do DF, como peritos criminais, delegados e

    policiais, abrangendo aqueles que atuam na linha de frente, assim como chefes e dirigentes.

    Adaptou-se o referencial terico de Maynard-Moody e Musheno (2003), assim como o de De

    Graaf (2010), acerca da lealdade dos servidores pblicos e buscou-se reunir narrativas que

    ilustrassem situaes cotidianas em que as decises so tomadas e a discricionariedade

    exercida. Nesse sentido, procurou-se investigar as instncias de reponsabilidade mais

    representativas, assim como possveis tenses e conflitos, sobretudo em um panorama em que

    governana e accountability esto em evidncia. Os regulamentos so sempre rigorosamente

    cumpridos? Ou haveria um juzo de ponderao moral abrangendo outras facetas e interesses?

    Respondidas estas questes, procedeu-se o cotejo entre os resultados obtidos e aqueles

    oriundos das pesquisas referenciais. Por fim, tambm se procurou entabular tpicos que

    possam ser desenvolvidos como desdobramentos desta pesquisa.

    Palavras-chave: Lealdade. Servidores Pblicos. Burocracia. Linha de Frente. Alto Escalo.

    Tomada de Deciso. Discricionariedade. Governana. Accountability.

  • ABSTRACT

    This research aims to contribute to understand the bonds of loyalty that guide the actions of

    the Brazilian civil servants. Following the literature review, interviews were conducted to

    collect and analyze the perceptions of professionals. The study focused on public safety

    employees of Brazilian Federal District, as forensics experts, police chiefs and officers,

    including those working on the front lines, as well as leaders. Adapted the theoretical

    reference from Maynard-Moody and Musheno (2003), and from De Graaf (2010), about the

    loyalty of civil servants, the study tried to gather narratives that illustrate everyday situations

    in which decisions are taken and discretion is exercised. Accordingly, we sought to

    investigate instances the most representative of responsibility, as well as potential tensions

    and conflicts, especially in a scenario where governance and accountability are in evidence.

    Regulations are always strictly observed? Or is there a judgment of moral evaluation that

    considers other facets and interests? Answered these questions, we proceeded to the

    comparison between the results and those from the research references. Finally, also sought to

    engage in topics that can be implemented as a development of this research.

    Keywords: Loyalty. Civil Servants. Bureaucracy. Front Line. Top Public Administrators.

    Decision Making. Discretion. Governance. Accountability

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 01 Composio da amostra .................................................................................. 38

    Quadro 02 Categorias alvo de tratamento diferente ......................................................... 52

    Quadro 03 Principais grupos de influncia....................................................................... 57

    LISTA DE FIGURAS

    Figura 01 Organograma SSP/DF ...................................................................................... 45

    Figura 02 Organograma PCDF ......................................................................................... 46

    Figura 03 Famlia hipossuficiente .................................................................................... 56

    Figura 04 Objeto motivo de priso ................................................................................... 56

    Figura 05 Ao policial em Braslia ................................................................................. 62

    LISTA DE SIGLAS

    PCDF - Polcia Civil do Distrito Federal

    DETRAN-DF - Departamento de Trnsito do Distrito Federal

    SSP-DF - Secretaria de Segurana Pblica do Distrito Federal

    DGPC - Direo Geral da Polcia Civil

    CBMDF - Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal

    PMDF - Polcia Militar do Distrito Federal

    CF - Constituio Federal

    SESIPE-DF - Subsecretaria do Sistema Penitencirio do Distrito Federal

  • SUMRIO Agradecimentos, 5

    Dedicatria, 6

    Resumo, 8

    Abstract, 9

    Lista de Quadros, 10

    Lista de Figuras, 10

    Lista de Siglas, 10

    1 O PROBLEMA

    1.1 Introduo ............................................................................................................ 13

    1.2 Objetivos .............................................................................................................. 16

    1.3 Suposio ............................................................................................................. 17

    1.4 Delimitao do Estudo ......................................................................................... 17

    1.5 Relevncia do Estudo ........................................................................................... 19

    1.6 Definio dos Termos .......................................................................................... 22

    2 REFERENCIAL TERICO

    2.1 A Lealdade dos Servidores Pblicos .................................................................... 26

    2.2 A Linha de Frente................................................................................................. 28

    2.2.1 O Panorama Atual.................................................................................... 28

    2.2.2 A Identidade dos Servidores Pblicos ..................................................... 29

    2.2.3 O Processo de Tomada de Deciso .......................................................... 30

    2.3 Os Administradores do Alto Escalo ................................................................... 31

    2.3.1 O Papel dos Administradores Pblicos.................................................... 31

    2.3.2 O Conceito de Lealdade........................................................................... 32

    2.3.3 Os Tipos de Administrador Pblico ........................................................ 33

    2.4 A Linha de Frente e a Nova Gesto Pblica ........................................................ 34

  • 3 METODOLOGIA

    3.1 Tipo de Pesquisa .................................................................................................. 36

    3.2 Universo e Amostra.............................................................................................. 37

    3.3 Coleta de Dados ................................................................................................... 39

    3.4 Tratamento de Dados ........................................................................................... 40

    3.5 Limitaes do Mtodo.......................................................................................... 41

    4 RESULTADOS E ANLISES

    4.1 Contexto Institucional .......................................................................................... 43

    4.2 Grau de Discricionariedade .................................................................................. 46

    4.3 Vnculos de Lealdade ........................................................................................... 47

    4.3.1 Normas e Regulamentos .......................................................................... 48

    4.3.2 Beneficiados e Prejudicados .................................................................... 49

    4.3.3 Grupos e Fatores de Influncia ................................................................ 57

    5 DISCUSSO E CONCLUSO, 63

    APNDICE Roteiro de Entrevista, 67

    REFERNCIAS, 71

  • 13

    1 PROBLEMA

    1.1 Introduo

    Para quem trabalham de fato os servidores pblicos?

    A resposta a esta questo extremamente complexa, envolve uma srie de fatores distintos e

    depende do grau de discricionariedade disponvel em um panorama em que as estruturas so

    cada vez mais diferenciadas.

    O fato que hoje j no se concebe mais a viso tradicional do funcionalismo pblico

    conforme a administrao burocrtica racional-legal weberiana, em que os papis so muito

    bem definidos, em especial pela separao entre polticos que tomam decises e

    administradores pblicos que as executam (BRESSER-PEREIRA, 1996). Parece superada a

    precursora distino ou dicotomia wilsoniana onde polticos eleitos elaboram as polticas

    pblicas e os servidores administram como servos fieis de seus mestres polticos (WILSON,

    1887).

    A perspectiva de implementao de polticas pblicas decorrente dessa ideia e descrita por

    Hill e Ham (1993) como do tipo policy-centered, no prospera mais atualmente, pois esta

    viso no contempla o processo criativo da administrao e deixa de considerar diversos

    outros fatores recentes.

    Este ponto adquire relevncia em uma sociedade contempornea complexa, dinmica,

    fragmentada e com mltiplas camadas (SRENSEN; TORFING, 2009), principalmente

    quando os temas responsabilizao, accountability (controle pblico sob a ao do Estado),

    Nova Gesto Pblica e at mesmo Nova Governana Pblica e Gesto de Redes (estruturas

    policntricas) esto em evidncia nos debates acadmicos e na literatura cientfica

    (OSBORNE, 2006). A tendncia natural das burocracias de responder vagarosamente a

    mudanas complexas do ambiente no mais tolerada (AGRANOFF; McGUIRE, 2001).

    Portanto, compete aos servidores pblicos entregarem diversos servios segundo um conceito

    de administrao pblica moderna, eficiente, controlada por resultados, voltada para o

    atendimento do cidado-cliente envolvendo uma srie de responsabilidades (BRESSER-

  • 14

    PEREIRA, 1996). Os oramentos a serem gerenciados so enormes, as demandas por

    economia e eficincia so crescentes e os cidados esperam a cada dia melhorias na qualidade

    dos servios de que dependem diariamente, conferindo aos servidores uma srie de novas

    atribuies e de novas pessoas a quem devem prestar contas (POLLITT; BOUCKAERT,

    2000).

    No contexto da Nova Governana Pblica, por exemplo, espera-se que o servidor pblico atue

    com iniciativa, propriedade e consistncia em uma rede mutante composta por stakeholders

    locais, nacionais e internacionais. Almeja-se que haja voz para os diversos interesses, para os

    possveis acordos, parcerias e negociaes (POLLITT; BOUCKAERT, 2000). Com efeito,

    pode-se afirmar que a mudana nas identidades e percepes dos atores, assim como nos

    papeis de polticos e servidores pblicos contemporneos os aproximam em suas funes

    (SRENSEN; TORFING, 2009).

    Em uma sociedade informacional (CASTELLS, 1999), a regra oferecer uma resposta

    funcional de interao/cooperao para incrementar legitimidade e efetividade aos processos,

    incluindo arranjos pblico-privados, negociao coordenada, governana interativa,

    colaborativa ou social-poltica (KOOIMAN, 1999). As demandas que se apresentam

    requerem conhecimento compartilhado, flexibilidade, adaptao, ajustes e comprometimento

    de recursos da para soluo de problemas imediatos no somente pela agregao de

    tomadores de deciso. Na gesto de redes, por exemplo, a delegao de poder (empowerment)

    baseada na informao mais do que na autoridade (AGRANOFF; McGUIRE, 2001).

    No cenrio acima descrito, o que orienta de fato a prestao dos servios e a tomada de

    deciso por parte dos servidores pblicos? Quem o verdadeiros patro desses funcionrios?

    Qual sua real liberdade para decidir o que fazer e como fazer?

    Cada cultura e cada rea da atuao humana apresentam, em sua construo social, condies

    especficas que determinam as instncias para as quais as pessoas orientam seu dever de

    responsabilidade legal e moral.

    Em termos de filosofia moral, o comprometimento com a humanidade. Na esfera legal e

    poltica, via de regra, as instncias institucionais so as mais relevantes. No campo religioso, a

    questo transcendental. Alm disso, podem ser mencionados diversos outros aspectos como

  • 15

    a responsabilidade natural (dos pais para com os filhos, por exemplo) e responsabilidade com

    o passado, muito comum na cultura oriental (THIRY-CERQUES, 2008).

    A questo que quando se trata de pessoas, neste caso servidores pblicos, preciso lembrar

    que todos so tambm membros de diferentes grupos profissionais e sociais distintos, que

    compem seu universo relacional. Alguns desses grupos dizem respeito ao gnero, orientao

    sexual, etnia, religio, ou classe social e econmica. As pessoas possuem atributos diferentes,

    assim como ideias, valores, interesses, aspiraes e papis tambm distintos (RUA, 2009).

    Naturalmente, esses fatores tm grande relevncia no comportamento individual, a depender

    das circunstncias de cada pessoa, da percepo e do seu vnculo/comprometimento. Da

    surge a subjetividade e a intersubjetividade como algo inerente a cada indivduo que est

    misturado no mundo (FRAGA, 2009). Deste modo, a vida em sociedade tornou-se

    complexa, envolvendo mltiplas possibilidades de cooperao, competio e conflito, com

    novas responsabilidades e novas instncias de responsabilizao surgindo a cada dia.

    Alm disso, um fato concreto experimentado por um servidor pblico em sua instituio

    (reclamaes, investigaes, pronunciamento da justia, atuao da corregedoria, repercusso

    na imprensa, etc) pode suplantar todas essas instncias de responsabilidade e alterar

    significativamente sua maneira de agir.

    Compreender a razo das aes dos servidores pblicos importante para que as causas se

    esclaream, porque elas so efetivamente circunstncias na histria das organizaes

    (FRAGA, 2009).

    Com esse objetivo, foram coletadas informaes, opinies e narrativas, por meio de

    entrevistas semiestruturadas, que ilustram a complexidade desse comportamento. Nesta

    investigao, procurou-se identificar e analisar as condicionantes, motivaes e crenas, assim

    como posies pr-constitudas, ambguas e contraditrias. Para tanto, foram abordados tanto

    funcionrios da linha de frente quanto aqueles que ocupam cargos de chefia e de direo.

    Por fim, o presente texto apresenta, ainda que brevemente, alguns tpicos a serem

    posteriormente discutidos, considerando que as organizaes que atuam ao nvel da rua

  • 16

    (streetlevel bureaucracy) tm participao fundamental na implementao de polticas

    pblicas (LIPSKY, 1980).

    1.2 Objetivos

    Esta pesquisa teve por objetivo compreender o que determina as decises dos servidores

    pblicos brasileiros da rea de segurana pblica.

    Em outras palavras, a pesquisa props-se a compreender que vnculos de lealdade, balizadores

    de comportamento e instncias de responsabilizao orientam a atuao desses servidores.

    Almejou ainda investigar e analisar os graus de liberdade e discricionariedade dos

    funcionrios, assim como a existncia de conflitos e tenses.

    Assim, possvel questionar, no contexto verificado, como sua atuao e as estruturas das

    interaes podero influenciar na implementao de polticas pblicas e nas intervenes

    estatais.

    Para tais objetivos especficos, torna-se necessrio alcanar certos objetivos intermedirios,

    definidos por Vergara (2009) como aqueles de cujo atingimento depende o prprio alcance do

    objetivo final que orienta a pesquisa:

    a) Coletar informaes e analisar o atual panorama do servio

    pblico na rea de segurana pblica do DF, sob a tica de um

    sistema social dinmico, identificando padres de

    comportamento e relaes entre elementos;

    b) Coletar a percepo do pblico-alvo da pesquisa, a saber,

    funcionrios pblicos que atuam na segurana pblica do

    Distrito Federal, aqui includos os que atuam na linha de frente e

    aqueles que ocupam cargos de chefia e direo;

  • 17

    c) Analisar a forma como o processo de tomada de deciso

    levado a efeito pelos servidores, identificando os balizadores

    que influenciam seu comportamento;

    1.3 Suposies

    O servidor pblico, atuando tanto na linha de frente quanto em cargos de chefia e direo, em

    rgos que lidam diretamente com o pblico, se depara como uma srie de instncias de

    responsabilizao no exerccio do seu poder discricionrio.

    Nesse contexto, nem sempre as leis e as ordens superiores seriam rigorosamente cumpridas.

    No dia-a-dia, haveria um juzo de ponderao moral que considera outras facetas, tais como:

    orientao poltica, a situao da vtima, as diferenas sociais/econmicas, as condies

    vulnerveis do prprio autor de crime ou, por outro lado, sua crueldade ou insolncia.

    1.4 Delimitao do Estudo

    A rea da segurana pblica ampla e extensa, envolvendo diversos segmentos e servidores,

    inclusive diversas polcias (ostensivas, investigativas e repressivas), com variadas funes,

    desde a preveno, investigao e reabilitao.

    Portanto, de modo a delimitar o presente a uma esfera no proibitiva, composta somente por

    objetos efetivamente operacionalizveis, este trabalho se restringiu ao mbito de peritos

    criminais, delegados de polcia e policiais do Distrito Federal, acerca dos quais obteve dados,

    exemplos e suposies. Percepes ou indicadores oriundos de outros ramos da segurana

    pblica no foram abordados.

    Quanto ao aspecto geogrfico, entendeu-se que o estudo deveria ser circunscrito Braslia

    DF, por deter tima representatividade em relao s caractersticas nacionais, sobretudo por

    ser um polo de atrao do funcionalismo pblico, cujos candidatos se apresentam de todas as

    unidades da federao.

  • 18

    Alm disso, optou-se por lidar exclusivamente com unidades que atuam ao nvel da rua, pois,

    na atividade pblica moderna, muito complexa a responsabilizao direta pelas aes e

    decises.

    O alongamento dos nveis decisrios entre a atividade legislativa e de definio de polticas

    pblicas at sua implantao na linha de frente contribuem para distanciar as decises

    polticas de seus efeitos. Nem sempre a burocracia de rua compreende algo to abstrato como

    uma poltica (RUA, 2009). Trabalhando com unidades que atuam ao nvel da rua, pode-se

    diminuir esta distncia.

    Outro aspecto a ser registrado que, a despeito de recorrentes denncias que permeiam os

    noticirios, no se procurou, neste trabalho, investigar influncias esprias na atuao dos

    servidores, tais como corrupo e clientelismo. Tratam-se de tpicos a serem abordados em

    pesquisas especficas.

    Por fim, preciso mencionar que a abordagem aqui adotada como marco referencial

    concentrou-se em duas pesquisas: a primeira realizada por Maynard-Moody e Musheno

    (2003) e a segunda por De Graaf (2010).

    Conforme detalhado mais adiante, na seo REFERENCIAL TERICO, Maynard-Moody e

    Musheno (2003) realizaram, nos Estados Unidos, um amplo estudo baseado em entrevistas e

    narrativas, cujo tema central a burocracia ao nvel da rua e o desenvolvimento cotidiano de

    seu processo decisrio.

    Por seu turno, De Graaf (2010) desenvolveu uma pesquisa na Holanda enfocando a imagem e

    o papel do administrador pblico moderno e profissional, que goza de alto grau de liberdade e

    poder discricionrio. Em suma, aquele estudo d nfase ao servidor de baixo escalo e este

    aos funcionrios da alta Administrao.

    Posto isso, buscou-se a reflexo e discusso acerca das concluses dessas pesquisas.

    Entendeu-se relevante verificar se o espelho internacional pode ser aproveitado em parte, ou

    na sua totalidade, ao contexto nacional.

  • 19

    1.5 Relevncia do Estudo

    A partir do final da dcada de 1960 e incio da dcada de 1970 iniciou-se um perodo de

    crescente preocupao com a efetividade das polticas pblicas (policy work) e da governana.

    Esta inquietao desdobrou-se em uma srie de iniciativas para aperfeioar o contedo

    poltico das decises governamentais, o processo de tomada de deciso, a coordenao

    poltica e as principais estruturas de gesto e entrega de servios (BARRETT, 2004).

    Inicialmente, os estudos focavam o processo de elaborao das polticas pblicas,

    considerando to-somente uma perspectiva hierrquica. Na concepo weberiana de

    separao entre tomadores de deciso e burocracia (BRESSER-PEREIRA, 1996), entendia-se

    que as polticas pblicas, uma vez formuladas e legitimadas, deveriam ser simplesmente

    executas pelo sistema administrativo, ou seja, pelos burocratas.

    Assim, quaisquer ineficincias seriam decorrentes de falhas no alto nvel poltico.

    Contudo, conforme esclarece Barrett (2004), fazendo referncia a Heclo (1972), o

    desenvolvimento das pesquisas acadmicas na rea de polticas pblicas resultou na

    percepo de que uma srie de outros fatores podem acarretar falhas na implementao

    (implementation failure), e o foco foi ento direcionado tambm para a base da pirmide. Esse

    contexto significa que se tornou relevante deixar de ater-se to somente aos resultados, e

    investigar os motivos pelos quais as falhas acontecem, analisando-se o processo de

    transformao das polticas em ao, ou seja, concentrando-se na prpria implementao.

    Entre os fatores-chave identificados, h a ausncia de objetivos claros, permitindo

    interpretaes diversas e discricionariedade na interpretao, multiplicidade de atores e

    agncias envolvidos, valores e interesses diferentes entre atores e agncias, tanto internos

    quanto externos, e a relativa autonomia das agncias implementadoras com poucos

    mecanismos de controle (BARRETT, 2004).

    Nesse panorama, considerando os novos arranjos institucionais com participao cidad, em

    que h corresponsabilizao pelas polticas e seus resultados, a questo da discricionariedade

    dos agentes de rua comeou a ser amplamente estudada. Verificou-se que o poder

  • 20

    discricionrio pode ser usado por aqueles que atuam na linha de frente para preencher lacunas

    na ausncia de regras claras ou para negociar alteraes das polticas pblicas na prtica

    segundo o discernimento individual do servidor (LIPSKY, 1980). Pressman e Wildavsky

    (1973) assinalam que esse fenmeno pode resultar inclusive na subverso dos objetivos

    originais da poltica.

    Com efeito, os servidores pblicos, em especial dos nveis mais baixos da estrutura

    administrativa (atores invisveis), controlam grande parte dos recursos de autoridade,

    informao e conhecimento do processo administrativo.

    Embora no possuam mandato, estes profissionais possuem clientelas setoriais que compem

    seu universo relacional. Alm disso, esses burocratas podem possuir projetos polticos

    prprios. Tais projetos podem contemplar questes pessoais, como promoes,

    reconhecimento em termos de poder ou de gratificaes materiais ou simblicas, ou questes

    organizacionais, como a fidelidade instituio, o crescimento da organizao qual

    pertencem, entre outras coisas (RUA, 2009).

    Rua (2009) lana luz sobre o fato de que cada indivduo tem uma srie de interesses prprios

    que resultam em conflitos entre polticos e burocratas, assim como entre servidores de

    diferentes unidades e rgos.

    Assim, percebe-se que o comportamento dos servidores pblicos uma fundamental

    engrenagem do sistema de implementao das polticas pblicas. Portanto, torna-se um tema

    extremamente relevante, em especial em um momento que se busca maior responsabilizao e

    efetividade nas prticas de governana.

    Compreender a participao dos diversos atores envolvidos, em especial dos servidores,

    fundamental para o aperfeioamento das decises, assim como para o desenvolvimento e a

    implementao das polticas pblicas que mais bem atendam sociedade (PRESSMAN;

    WILDAVSKY, 1973)

    Com efeito, quando se trata de um Estado democrtico de direito, os temas que abordam a

    relao entre poltica e burocracia, assim como os possveis controles democrticos sobre a

    burocracia adquirem grande relevncia.

  • 21

    A reforma do Estado, por exemplo, requer o estudo de seus papis, que consistem, por um

    lado, em equip-lo com instrumentos para uma interveno efetiva e, por outro, em criar

    incentivos para que os funcionrios pblicos atuem de modo a atender o interesse pblico

    (PRZEWORSKI, 2003, p. 40).

    Nesse tpico afloram algumas questes centrais que requerem anlise. Como enfatiza

    Przeworski (2003), preciso considerar a separao entre propriedade e gesto, os conflitos

    de agncia, a assimetria de direitos e de informao, o alinhamento de interesses e eventuais

    tomadas de deciso coletiva.

    Posto isso, parece que no se tem realizado, especificamente no Brasil, discusso relevante

    sobre a relao poltica e burocracia na perspectiva democrtica. Na prtica, o tema tem sido

    negligenciado pela literatura nacional (OLIVIERI, 2011).

    Assim, entendemos que a presente pesquisa pode contribuir para a compreenso de questes

    atuais como qualidade e eficincia da gesto pblica, responsabilizao de governantes e de

    servidores perante a sociedade e democratizao do Estado. Nesse panorama, preciso

    considerar que:

    A burocracia no apenas o conjunto dos funcionrios pblicos e dos processos administrativos, mas um dos fundamentos do exerccio

    do poder estatal e do governo democrtico, e por isso necessria a

    compreenso sobre sua composio, seu funcionamento e sua relao

    com os dirigentes polticos eleitos (OLIVIERI, 2011, p. 1396).

    Quanto ao enfoque na rea de segurana pblica, preciso enfatizar que se trata efetivamente

    de um tema importante e que mobiliza a opinio pblica. O custo financeiro do crime e da

    violncia volumoso (BRAND; PRICE, 2000), seja na manuteno do sistema de justia

    criminal (MAGUIRE; PASTORE, 1994) ou pelo prprio prejuzo financeiro e psicolgico

    causado s pessoas (MILLER; COHEN; WIERSEMA, 1996).

    Ademais, polticas pblicas ineficazes nessa rea produzem resultados que se agravam

    progressivamente. Wilson e Kelling (1982) esclarecem, por exemplo, em sua Teoria das

  • 22

    Janelas Quebradas, que a ausncia de atuao efetiva na desordem social e nos pequenos

    delitos acarreta uma escalada crescente de crimes mais graves.

    A importncia da segurana pblica encontra-se registrada tambm na Constituio Federal

    Brasileira CF (BRASIL, 1988), que preceitua que esta dever do Estado, direito e

    responsabilidade de todos, sendo exercida para preservao da ordem pblica e da

    incolumidade das pessoas e do patrimnio.

    A eficincia do sistema de segurana pblica e de justia criminal tem ainda relevante e direto

    impacto para os cidados, a depender das decises tomadas na linha de frente, pela forma de

    atendimento, etc. A mltipla vitimizao, assim como a vitimizao secundria, por exemplo,

    so questes cada vez mais estudadas pelo meio acadmico (SHAPLAND; WILLMORE;

    DUFF, 1985; MAGUIRE, 1991; SYMONDS, 1980).

    Acrescente-se o fato de os cidados se tornarem frequentemente a parte esquecida (VIANO,

    1978) ou mesmo a questo de a violncia policial ter razes tambm no prprio cotidiano

    operacional das organizaes policiais (SKOLNICK, 1993). Deste modo, torna-se importante

    estudar esse segmento.

    Esta a relevncia almejada pelo presente trabalho: contribuir para uma discusso crtica e

    reflexiva acerca da lealdade dos servidores pblicos que atuam na rea de segurana pblica,

    fomentando um dilogo entre universidade, Estado e sociedade civil, analisando o papel

    desses atores, fornecendo informaes para o entendimento de possveis modelos de

    aperfeioamento do servio pblico.

    1.6 Definio dos Termos

    Considerando-se que um mesmo termo pode ter significados diferentes para diferentes

    pessoas e contextos (VERGARA, 2009), so apresentadas a seguir breves definies a fim de

    alertar o leitor para como determinados termos-chave devem ser compreendidos no decorrer

    deste estudo.

  • 23

    a) Discricionariedade: uma pequena liberdade concedida aos

    administradores pblicos, para agirem de acordo com o que

    julgam conveniente e oportuno diante de determinada situao.

    Liberdade para decidir em face das circunstncias concretas do

    caso, impondo-lhe e simultaneamente facultando-lhe a utilizao

    de critrios prprios para avaliar ou decidir quanto ao que lhe

    parea ser o melhor meio de satisfazer o interesse pblico que a

    norma legal visa a realizar (MELLO, 2009).

    b) Implementao de Poltica Pblica: Conjunto dos eventos e

    atividades que acontecem aps a definio das diretrizes de uma

    poltica, que incluem tanto o esforo para administr-la, como

    seus substantivos impactos sobre pessoas e eventos (RUA,

    2009).

    c) Lealdade (loyalty): Vinculao. Dever de responsabilidade.

    Vontade e a dedicao prtica de uma pessoa a um objeto (DE

    GRAAF, 2010). No se trata de vinculo afetivo, mas prtico.

    Princpio tico que juntamente boa-f constituem o princpio

    da moralidade administrativa, cuja violao configura ilicitude

    jurdica (MELLO, 2009).

    d) Linha de Frente (frontline) ou Nvel da Rua (street-level):

    Atendimento diretamente ao pblico por rgo ou servidor

    pblico (MAYNARD-MOODY; MUSHENO, 2003). No caso

    da segurana pblica podemos citar como exemplo o policial

    que recebe a notcia de um crime pessoalmente no balco de

    uma delegacia ou se desloca com a viatura para realizar uma

    diligncia ou priso; o perito criminal que pessoalmente realiza

    um levantamento em local de crime, realiza exames e elabora o

    laudo pericial; agente do DETRAN que realiza fiscalizao de

    trnsito, inspeo da documentao de veculos, faz teste de

    alcoolemia em condutores; bombeiro que compe uma equipe

    de atendimento de emergncia, ou delegado que pessoalmente

  • 24

    realiza oitivas com vtimas, testemunhas ou acusados,

    formulando representaes para priso e indiciamento em

    inquritos policiais.

    e) Policy Work: A traduo deste termo pode gerar dvidas, uma

    vez que os acadmicos americanos utilizam a expresso em trs

    sentidos distintos: 1. Fazer o trabalho, ou seja, implementar

    determinada poltica pblica; 2. Fazer funcionar, tomar as

    decises que permitem que a poltica atinja seus objetivos; e 3.

    Elaborar as polticas pblicas, no sentido poltico, legislativo e

    governamental (BRODKIN, 2011).

    f) Poltica Pblica: Conjunto de decises pblicas que tem por

    finalidade aes de preveno e correo, a fim de modificar

    uma realidade social, por intermdio de objetivos, estratgias de

    atuao e alocao de recursos. O que o governo escolhe fazer

    ou no fazer (DYE, 1984).

    g) Redes: novas formas de organizao social, do Estado ou da

    sociedade, intensivas em tecnologia da informao e baseadas

    na cooperao entre unidades dotadas de autonomia (RUA,

    2009).

    h) Segurana Pblica: Conjunto de atividades destinadas a garantir

    preservao da ordem pblica e da incolumidade das pessoas e

    do patrimnio. o afastamento, por meio de organizaes

    prprias, de todo perigo ou de todo mal que possa afetar a ordem

    pblica, em prejuzo da vida, da liberdade ou dos direitos de

    propriedade de cada cidado (SILVA, 1963).

    i) Servidor Pblico: Agente pblico estatutrio. Todo aquele que

    mantm vnculo de trabalho profissional com entidades

    governamentais, integrados em cargos ou empregos da Unio,

    Estados, Distrito Federal, Municpios, respectivas autarquias e

  • 25

    fundaes de direito pblico. Em suma, so os que entretm

    com o Estado e com as pessoas de Direito Pblico da

    Administrao indireta relao de trabalho de natureza

    profissional e carter no eventual, sob vnculo de dependncia

    (MELLO, 2009).

  • 26

    2 REFERENCIAL TERICO

    2.1 A Lealdade dos Servidores Pblicos

    A lealdade dos servidores pblicos, em sentido estrito e objetivo, consiste na atuao

    conforme os princpios ticos que permeiam a sociedade, visando maximizar, com

    sinceridade e boa-f, os direitos dos cidados (MELLO, 2009). Compe, em grande medida, o

    princpio da moralidade administrativa.

    De Graaf (2010), contudo, apresenta o conceito de forma um pouco mais abrangente e oferece

    uma srie de expresses em ingls (loyalty, loyalty conceptions, role, role conceptions e role

    obligations) que traduzem lealdade como uma vinculao, um dever de responsabilidade a

    uma pessoa ou uma ideia. Na prtica, seria subordinar seu prprio interesse aos interesses do

    seu objeto de lealdade (EWIN, 1993).

    O fato que os servidores pblicos experimentam, e frequentemente seguem, mltiplas

    formas de lealdade, com mltiplos destinatrios, tanto internos quanto externos (BOVENS,

    1996). Em um panorama luso-hispnico, por exemplo, podemos citar diversos fatores

    motivacionais que estimulam ou embaraam a vinculao dos funcionrios, tais como: a

    autoridade vertical ou hierrquica, a autoridade profissional baseada na qualificao, as

    recompensas e sanes, ou o chamado cuidado maternal (JAMIL, 1998).

    Com efeito, Bovens (1996) acrescenta ainda que a noo ortodoxa weberiana de lealdade

    estritamente hierrquica demonstra-se limitada e no mais aceita ou aplicvel. O que fazer

    caso determinada ordem parecer errada na opinio do servidor pblico que deve execut-la? O

    dilema resolvido pela composio das diversas orientaes de reponsabilidade (pessoal,

    social, profissional e pblica) que moldam a atuao dos servidores.

    Mas qual a relevncia do fato de haver inmeras formas de lealdade influenciando o

    comportamento dos servidores pblicos?

    A resposta a esta questo simples. Os agentes pblicos, notadamente os servidores pblicos

    estatutrios, tem importncia fundamental para a sociedade, uma vez que representam o

    Estado em sua relao com os cidados. a face visvel do Estado (MOURA, 2001). o

  • 27

    elemento humano que materializa, na ponta, a atuao de um ente abstrato. a referncia

    primeira e imediata que o cidado usurio tem da atuao administrativa (SOARES, 1998).

    No dia-a-dia, so os servidores que concretizam as polticas pblicas (LINDBLOM, 1980),

    em especial aqueles que atuam ao nvel da rua (street level bureaucracy) (LIPSKY, 1980).

    Portanto, esses servidores que atuam nos nveis inferiores da estrutura administrativa podem

    influenciar fortemente o curso das polticas pblicas porque contam com recursos de poder,

    como informao, conhecimento do processo administrativo e autoridade (RUA, 2009).

    Assim, como representam e exteriorizam a vontade do Estado, a qualidade e eficincia do

    servio pblico dependem, em grande escala, desses servidores (COSTA, 1981). E,

    obviamente, o norte para o qual a lealdade desses servidores est orientada torna-se

    extremamente importante.

    Ademais, o tipo de lealdade empregada tambm faz toda a diferena. Na prtica, deslealdade

    sempre um vcio reprovvel, mas a lealdade nem sempre uma virtude a ser almejada. Via

    de regra, a lealdade permite que confiemos uns nos outros, refletindo o desejo de pertencer a

    certos grupos. Mas isso s funciona quando os objetos so apropriados e no ocorre de forma

    imprpria ou extrema (como chauvinismo, nazismo, etc).

    Portanto, a lealdade equivocada pode facilmente conduzir a comportamentos no desejados

    ou repulsivos. Nesse sentido, Ewin (1993) esclarece que algumas dessas formas de lealdade,

    que a princpio seriam nobres e positivas, podem at mesmo serem contrrias aos objetivos da

    instituio a que os indivduos pertencem e efetivamente causar conflitos.

    Em suma, precisamos conhecer quais os vnculos de lealdade dos servidores pblicos, e suas

    dinmicas de interaes, para prever e orientar seu comportamento e, em ltima instncia,

    poder aperfeioar a atuao do Estado. No podemos de forma alguma negligenciar os

    valores, os comportamentos e as ideologias prticas que permeiam os funcionrios que

    compem a administrao pblica (PERLMAN, 2003). So os valores, crenas e ideias desses

    servidores, em suas diversas formas de interao, que determinam como so construdas as

    aes que transformam o modo como as polticas foram concebidas (LIPSKY, 1980).

  • 28

    Assim, uma vez provada a importncia de compreender a lealdade dos servidores e, na

    medida em que esta comporta diversos fatores e balizadores de comportamento, vinculao e

    responsabilizao, identificaram-se duas vertentes para desdobramento do presente estudo: os

    servidores que atuam na linha de frente (burocratas) e os altos administradores pblicos.

    2.2 A Linha de Frente

    Com relao linha de frente (frontline) cabe registrar a abordagem proposta por Maynard-

    Moody e Musheno (2003), acerca a burocracia ao nvel da rua (street-level bureaucracy) e do

    desenvolvimento cotidiano de seu processo decisrio.

    Os referidos autores estudaram quais motivaes, crenas e caractersticas morais orientam as

    escolhas e as aes de trs grupos de profissionais: policiais, professores de escolas pblicas e

    conselheiros do servio social. Por um perodo de trs anos, pesquisou-se qualitativamente a

    viso e as experincias dos prprios servidores pblicos em reas urbanas de dois estados

    norte-americanos.

    Assim, foi demonstrado que o mundo ao nvel da rua permeado por constantes conflitos e

    tenses entre a obrigao de obedecer s leis e os sistemas de valores individuais dos

    trabalhadores que atendem diretamente ao pblico.

    2.2.1 O Panorama Atual

    O enfoque convencional sobre a relao entre Estado e governo do tipo "Estado-agente",

    segundo o qual o Estado democrtico se comporta como um edifcio essencialmente fundado

    sobre leis e procedimentos previsveis. Nesses moldes, casos iguais seriam invariavelmente

    tratados de forma igual. Nessa formulao, desvios em relao s leis no so permitidos,

    exceto quando os trabalhadores adaptam a legislao s circunstncias especficas de maneira

    consistente com as polticas pblicas e a autoridade hierrquica (MAYNARD-MOODY;

    MUSHENO, 2003). Este o j mencionado modelo tradicional de Burocracia proposto por

    Weber (BRESSER-PEREIRA, 1996)

  • 29

    Em que pese a preponderncia dessa viso do tipo "Estado-agente", entendeu-se que, na linha

    de frente, a influncia das crenas morais dos trabalhadores parte indissocivel do processo

    decisrio dirio. Assim, torna-se necessrio analisar um segundo enfoque, chamado de

    "cidado-agente", que enfatiza a complexidade das situaes do dia-a-dia.

    Nesse cenrio, os servidores avaliam caso a caso a aplicao das regras com base em suas

    percepes acerca dos cidados ou clientes para tomar decises. Trata-se de um processo de

    interao, de identificao, de modo que em alguns casos os trabalhadores podem at mesmo

    arriscar a si mesmos na defesa dos cidados. Em outras situaes, baseadas em julgamentos

    distintos, segue-se rigorosamente a letra da lei (acting by the book). Por fim, h ainda casos

    em que as pessoas esto sujeitas excluso e ao abuso de autoridade se no forem

    consideradas dignas (MAYNARD-MOODY; MUSHENO, 2003).

    2.2.2 A Identidade dos Servidores Pblicos

    Maynard-Moody e Musheno (2003) esclarecem que a identidade dos servidores importa tanto

    quantos os atos, pois significa o modo pelo qual os indivduos reconhecem a si mesmos em

    diversas posies subjetivas. Estes significados reconhecveis geram expectativas e

    proporcionam um modo de organizao do mundo social, que se combinam ou se sobrepem

    nos inmeros contextos da vida no dia-a-dia.

    A identidade, seja individualizada, coletiva ou atribuda, se constitui no princpio que

    representa a atuao e o reconhecimento social construtor de significado diante do acelerado

    reordenamento organizacional da sociedade (CASTELLS, 1999).

    Aqui, verifica-se que h uma tendncia natural dos trabalhadores de se identificarem com

    grupos especficos ao qual pertencem, seja em funo do trabalho, da classe social, etnia ou

    gnero. O universo relacional de cada indivduo (RUA, 2009) inafastvel.

    Ademais, os achados da pesquisa de Maynard e Musheno (2003) indicam que a incorporao

    de sua identidade pelo trabalhador pode variar a depender de sua rea de atuao. Policiais,

    por exemplo, normalmente mantm sua identidade profissional em suas vidas particulares.

  • 30

    Portam armas veladas, e mantm constante vigilncia. Por outro lado, h trabalhadores que

    abandonam completamente sua identidade profissional assim que retiram o uniforme.

    Essa identificao influencia o comportamento desses trabalhadores, que podem desenvolver

    uma abordagem reducionista, com nfase no enquadramento das pessoas em grupos sociais

    pr-definidos e culturalmente rotulados. Por exemplo, o desenvolvimento de lealdade

    recproca, do cdigo de silncio, etc (MAYNARD-MOODY; MUSHENO, 2003). Aqui o

    tempo de convivncia relevante.

    Outro aspecto importante revelado na pesquisa por Maynard-Moody e Musheno (2003) a

    compreenso de que a poltica de estratificao burocrtica, ou hierarquia entre chefes e

    trabalhadores, est sendo substituda por uma complexa poltica de identidade, devido aos

    conflitos entre os grupos subjetivos a que pertencem.

    2.2.3 O Processo de Tomada de Deciso

    Maynard e Musheno (2003) explicam que, ao nvel da rua, o comportamento dos servidores

    depende de seus prprios julgamentos morais baseados em conhecimento pessoal e em

    constantes interaes com as pessoas. Isto no significa que as regras, leis e as polticas

    pblicas so desprezadas. O que existe so dilemas, que se manifestam nas situaes

    ambguas e conflituosas. Equidade e justia significam responder a cada cidado conforme o

    merecimento individual.

    Isto contradiz grande parte da escola de pensamento weberiana, que predomina na

    administrao pblica (BRESSER-PEREIRA, 1996). Assim, as pessoas no so consideradas

    sem rosto, abstraes. Pelo contrrio, cada indivduo considerado como portador de pontos

    fortes e fraquezas que raramente se enquadram em um manequim tamanho nico empregado

    pelas polticas pblicas e pela prpria legislao (MAYNARD-MOODY; MUSHENO, 2003).

    Neste julgamento moral, diversas dimenses do merecimento so empregadas. Os servidores

    avaliam o mrito de forma complexa e multidimensional, com base em fatores que podem ser

    a genuna necessidade do servio, a civilidade, a deferncia, o bom carter, etc.

  • 31

    Maynard-Moody e Musheno (2003) comentam que a forma de tratamento recebida pode se

    manifestar de quatro maneiras distintas ou mesmo de uma forma hbrida e combinada.

    A primeira resposta a normal, de rotina, o tratamento burocrtico. Na maioria dos casos o

    tratamento usual o adequado e resolve as questes, promovendo um nvel de satisfao

    apropriado a todos os envolvidos. Uma segunda forma de responder aos cidados um

    atendimento extraordinrio para aqueles que so merecedores de uma ateno especial. A

    atuao pragmtica a terceira forma de resposta, quando se busca o prtico e exequvel em

    vez de buscar o ideal ou desejvel. A quarta forma de tratamento direcionada aos

    malfeitores (bad-guys), que no merecem tratamento adequado. Aqui as leis so utilizadas

    para proteger os prprios trabalhadores, assim como punir essas pessoas.

    2.3 Os Administradores do Alto Escalo

    A anlise da atuao dos administradores do alto escalo e seu processo de tomada de deciso

    depende da compreenso do seu grau de liberdade, do alcance de seu poder discricionrio e

    dos diversos atores envolvidos no processo decisrio (stakeholders) (DE GRAAF, 2010).

    De Graaf (2010) esclarece que a compreenso dos mecanismos utilizados para soluo de

    conflitos depende do entendimento de como os administradores pblicos percebem seus

    papis e responsabilidades, e como solucionam conflitos de interesse, segundo padres de

    lealdade.

    2.3.1 O Papel dos Administradores Pblicos

    De Graaf (2010) tambm questiona o modelo proposto por Max Weber, no qual o

    administrador pblico clssico seria neutro e previsvel, segundo um padro pr-determinado,

    apresentando lealdade inquestionvel s autoridades polticas eleitas. Os polticos teriam a

    funo de traar as diretrizes gerais para implementao das polticas pblicas. Por seu turno,

    os servidores teriam o papel de no se envolver em processos polticos de tomada de deciso,

    mas to-somente executar as ordens dos superiores titulares de cargos eletivos.

  • 32

    Nada obstante, sobretudo sobre a gide da Nova Gesto Pblica (New Public Management),

    os administradores pblicos adquiriram uma srie de novas atribuies em confronto com a

    imagem clssica weberiana (BRODKIN, 2011).

    Essas atribuies so voltadas para conferir respostas mais adequadas aos cidados, garantir

    servios com qualidade e agilidade, contribuindo estrategicamente para melhorar a reputao

    de suas organizaes. Nesse cenrio, no h mais espao para separao rgida entre

    administrao e poltica. H, portanto, uma ruptura com o modelo clssico.

    A Teoria da Escolha Pblica (Public Choice) um exemplo dessa ruptura. As pessoas so

    motivadas por interesses pessoais. Portanto, os servidores pblicos, como meros agentes

    humanos, priorizariam seus interesses prprios e no o bem pblico (BUCHANAN, 2003).

    Aqui, h a transposio dos conceitos da economia de mercado. O altrusmo romntico dos

    polticos e dos servidores pblicos substitudo por uma abordagem mais direta e cnica.

    A Teoria da Agncia (Principal-Agent Theory) um desdobramento da considerao de que

    todos os atores tm interesses prprios preponderantes, ao tentar alinhar os interesses de

    agentes e principais (PRZEWORSKI, 2003).

    2.3.2 O Conceito de Lealdade

    Em que pese a etimologia da palavra lealdade que remete literalmente ao cumprimento estrito

    da lei, De Graaf (2010) apresenta uma discusso acerca das diversas definies do termo ao

    longo do tempo. Em seguida, define aquele aplicvel a pessoas com vrios objetos de

    lealdade, qual seja: A vontade e a dedicao prtica de uma pessoa a um objeto. Esse o

    conceito utilizado neste trabalho.

    A lealdade dos servidores pode estar vinculada a vrios objetos, tais como os colegas de

    trabalho, o bem pblico, a mdia, a conscincia individual e os imperativos morais e religiosos

    dos prprios funcionrios, as associaes de classe, a legislao, os clientes das organizaes,

    e os polticos. A concepo de responsabilidade burocrtica pode ter natureza hierrquica,

    pessoal, social, profissional e cvica. Outros autores distinguem at 8 tipos de

    responsabilidade, o que conduz inevitavelmente a conflitos de expectativas e a tenses.

  • 33

    Os papis (ou funes) dos administradores e suas concepes tambm esto intimamente

    relacionados lealdade. De fato, uma funo administrativa pode ser compreendida como o

    conjunto coeso de valores e atitudes relacionados ao trabalho que proporcionam ao

    administrador pblico um conjunto de expectativas sobre suas responsabilidades (DE

    GRAAF, 2010).

    2.3.3 Os Tipos de Administrador Pblico

    De Graaf (2010) apresenta quatro concepes bsicas de lealdade e, portanto, quatro tipos

    distintos de administradores pblicos, resultantes dos diferentes modos de interpretao. Essas

    concepes indicam ainda seus respectivos comportamentos e processos de tomada de

    deciso.

    Os quatro tipos fundamentais seriam: (a) Profissionais que seguem a letra da lei (by-the-

    book), (b) servidores neutros em relao sociedade, (c) funcionrios que se baseiam em

    avaliaes pessoais, e (d) funcionrios independentes e abertos com princpios.

    Os profissionais do tipo by-the-book almejam servir principalmente a sociedade e a seus

    cidados, o que deve ser feito seguindo rigorosamente as regras profissionais. Neste caso, a

    lealdade no direcionada prpria organizao ou aos colegas. Os valores pblicos so

    posicionados em um patamar superior aos valores polticos. Estes profissionais entendem que

    as regras no existem para dificultar a eficcia e a eficincia, mas para propiciar um governo

    bom e justo.

    Servidores neutros tambm so muito leais sociedade e aos valores pblicos. Preocupam-se

    com os efeitos sociais e procuram agir do modo mais imparcial possvel, sem utilizar valores

    pessoais. So leais aos superiores e aos polticos (que devem tomar as decises), e no

    profisso, apresentando menor resistncia quando lhe pedem algo ilegal.

    Os funcionrios que se baseiam em avaliaes pessoais so leais a suas vidas privadas e a

    suas prprias identidades e conscincias, que importam mais do que tudo. Portanto, no so

    servidores pblicos nas 24 horas do seu dia. Comparam o trabalho com outros papis sociais,

  • 34

    resultando em conflitos de lealdade. So crticos do governo e da burocracia e no gostam de

    regras, pois impediriam a criatividade.

    Funcionrios independentes compem o quarto e ltimo padro identificado por De Graaf

    (2010) em seu estudo. Esses administradores so leiais aos seus prprios princpios, lei e s

    demais regras oficiais. Para evitar conflitos, seguem os princpios e diretrizes gerais da

    administrao pblica, e no suas prprias conscincias. Aqui, o possvel conflito entre o

    papel do cidado e do funcionrio pblico.

    2.4 A Linha de Frente e a Nova Gesto Pblica

    A relao entre administradores e os servidores na linha de frente com o advento da Nova

    Gesto Pblica (New Public Management) tem adquirido propores no meio acadmico,

    sobretudo quando se percebeu que os servidores da linha de frente tm participao

    fundamental na implementao de polticas pblicas (BRODKIN, 2011; LIPSKY, 1980).

    Embora no determinem explicitamente o contedo da poltica, os funcionrios que atuam ao

    nvel da rua so formuladores de polticas pblicas de fato, no sentido de que essas polticas

    so informalmente construdas (ou reconstrudas) no curso das atividades dirias da vida

    organizacional (BRODKIN, 2011).

    Brodkin (2011) enfatiza a importncia de estudar este fato para as estratgias da Nova Gesto

    Pblica que visam influenciar as pessoas por meio de incentivos por desempenho, onde as

    prprias organizaes que atuam ao nvel da rua poderiam determinar a melhor forma de

    implementar as polticas pblicas, segundo uma discricionariedade inerente e necessria.

    A lgica, segundo a NGP, seria de que os funcionrios do alto escalo determinam as

    polticas pblicas, suas metas e os incentivos. Por seu turno, os funcionrios da linha de frente

    se encarregam em como chegar aos objetivos.

    No entanto, Brodkin (2011) apresenta um recorte onde questiona a premissa de que o

    importante alcanar as metas de desempenho, independentemente do como com as polticas

    pblicas so efetivamente implementadas. O fato que esta postura pode resultar em

  • 35

    considerveis desvirtuamentos e at mesmo no que Merton (1968) chamaria de deslocamento

    dos objetivos originais.

    Com efeito, aqueles que atuam ao nvel da rua no respondem direta ou indiretamente apenas

    aos incentivos de desempenho. Eles usam o seu poder discricionrio para ajustarem-se,

    produzindo prticas informais que podem ser substancialmente diferentes e mais

    diversificadas do que o proposto originariamente pelos formuladores de polticas e pelos

    gestores. Tal fato enseja dvidas sobre transparncia, expondo limitaes da Nova Gesto

    Pblica.

    Assim, o que se procurou demonstrar na presente pesquisa exatamente esse universo de

    valores em contraposio a uma viso reducionista. Estima-se que tenham sido identificadas

    prticas efetivas de emprego do poder discricionrio em dissonncia a essa ideia de que metas

    e incentivos seriam suficientes para que funcionrios da linha de frente desempenhem suas

    funes de forma alinhadas com as polticas pblicas.

  • 36

    3 METODOLOGIA

    3.1 Tipo de Pesquisa

    Com o objetivo de classificar o tipo de pesquisa, foi utilizada a taxionomia apresentada por

    Vergara (2009), segundo a qual devem ser empregados dois critrios bsicos: a) quanto aos

    fins e b) quanto aos meios.

    Quanto aos fins, a pesquisa consiste em uma investigao classificada como de natureza

    exploratria, descritiva e explicativa, conforme segue:

    a) Exploratria, embora o tema em questo j seja de fato objeto de estudo de campo

    semelhante, inclusive mencionado como referencial terico. Quanto rea de

    segurana pblica, h uma crescente preocupao acadmica. Nada obstante, no

    Brasil, tem sido verificada escassa produo cientfica especificamente no sentido

    de analisar a atuao dos servidores da linha de frente, com foco nos elementos

    que orientam suas decises cotidianas. Para a segurana pblica, tambm uma

    contribuio pouco observada.

    b) Descritiva, porque apresenta, dentro dos limites pr-estabelecidos, as

    caractersticas da burocracia da segurana pblica brasileira, em especial do

    Distrito Federal, destacando peculiaridades.

    c) Explicativa, uma vez que procurou esclarecer os mecanismos que orientam e os

    fatores que influenciam o processo de tomada de deciso dos servidores, por meio

    do referencial apresentado, tais como instncias de responsabilizao, dimenses

    morais e vnculos de lealdade.

    No que tange aos meios de investigao a pesquisa :

    a) Bibliogrfica, se valendo de um estudo sistematizado tendo como suporte

    analtico publicaes produzidas pelos principais autores clssicos e

    contemporneos das teorias aqui tratadas, assim como dos materiais de estudiosos

  • 37

    e comentadores destes autores devidamente reconhecidos no meio acadmico.

    Sero utilizadas, portanto, fontes primrias e secundrias.

    b) Documental, pois se fez uso de documentos, regulamentos e dados (inclusive

    eletrnicos) no publicados, divulgados ou disponibilizados, sendo, deste modo,

    restritos ao ambiente interno dos rgos de segurana pblica do Distrito Federal,

    que so utilizados para justificar, confirmar ou ilustrar as suposies formuladas

    no trabalho.

    c) De campo, em virtude da realizao de investigao emprica realizada com

    pessoas classificadas como pblico alvo: servidores pblicos de unidades que atua

    ao nvel de rua na segurana pblica do Distrito Federal, sejam do alto ou do baixo

    escalo.

    3.2 Universo e Amostra

    O universo de pesquisa constitudo pelos diversos rgos e unidades, assim como diversas

    categorias funcionais relacionados segurana pblica, sejam no Legislativo, Judicirio ou

    Executivo.

    Verifica-se que a abrangncia deste universo muito extensa, pois engloba inmeras

    organizaes em diversas especialidades e localidades. Com efeito, somente no poder

    executivo temos a atuao de uma srie de rgos ali presentes, inclusive diversas polcias,

    com funes administrativas e judicirias.

    Portanto, foi preciso delimitar parte deste universo, conforme mencionado no Item 1.4

    (Delimitao do Tema), de modo a restringir os estudos a uma esfera no proibitiva, composta

    somente por objetos efetivamente operacionalizveis, que permitam alcanar as respostas ao

    problema apresentado.

    Chegamos assim definio da amostra, segundo o critrio da acessibilidade que, segundo

    Vergara (2009), utilizado para solucionar elementos pela facilidade de acesso a eles,

    independentemente de processos estatsticos. Assim, definiu-se que este trabalho se

  • 38

    restringiria ao mbito de peritos criminais, delegados de polcia e policiais do Distrito Federal

    dos quais coletar dados, exemplos e suposies. Indicadores oriundos de outros ramos da

    segurana pblica no sero abordados, ao menos no momento.

    Foram entrevistados 43 (quarenta e trs) servidores no total, sendo que 32 (trinta e dois)

    atuam diretamente na linha de frente e 11 (onze) ocupam cargos de chefia ou direo. Veja-se

    o quadro detalhado abaixo.

    Peritos

    Criminais

    Delegados de

    Polcia

    Agentes de

    Polcia Total

    Linha de

    frente 2 2 28 32

    Chefia e

    Direo 4 5 2 11

    Total 6 7 30 43

    Quadro 01- Composio da amostra.

    A acessibilidade s informaes necessrias reside no fato de o autor ser perito criminal

    oficial do Distrito Federal, exercendo cargo comissionado de direo, obtendo, portanto,

    contato direto com vrios profissionais da rea e acesso a diversas informaes restritas.

    Registre-se tambm a utilizao do critrio da tipicidade, que consiste na seleo de

    elementos considerados representativos. Assim, na seleo da mostra, no foram

    contemplados subordinados diretos do pesquisador, nem funcionrios da mesma

    especialidade, a fim de evitar influncia indevida nas respostas e assegurar a devida

    independncia.

    De fato, a representatividade em relao ao rol selecionado consiste em sua caracterstica

    deste ser composto por elementos fundamentais no sistema de segurana pblica, que atuam

    no combate a todas as modalidades criminosas, contemplando ainda profissionais que

    comparecem pessoalmente aos locais de crime e aqueles que atendem a todas as vtimas e

    autores, nos instantes que se seguem a consecuo da prtica delituosa e posteriormente ao

    longo das investigaes. Outrossim, detm dados, informaes e percepes no disponveis

    em quaisquer outros ramos do sistema.

  • 39

    Vale mencionar ainda que, mesmo se atendo exclusivamente ao mbito policial do Distrito

    Federal, o volume de dados disponveis e pessoas a serem entrevistadas seria demasiadamente

    grande, o que resultou em uma nova filtragem. Mais uma vez, o critrio da tipicidade foi

    empregado, a fim de amostrar os elementos mais representativos dentre os disponveis,

    especialmente aqueles que tenham experincias especialmente particulares em sua instituio.

    Tal procedimento, entretanto, somente foi factvel no transcurso da pesquisa, quando se

    obteve o conhecimento profundo da populao, requisito para tal seleo.

    Por fim, ao longo do trabalho verificou-se a necessidade de acessar dados, ou entrevistar

    pessoas de outras esferas da segurana pblica, no previstas inicialmente. Esta questo est

    mencionada mais adiante e deve ser efetivamente contemplada em desdobramentos do

    presente trabalho.

    3.3 Coleta de Dados

    Em primeiro lugar, preciso ressaltar a relevncia desta etapa para a validade do trabalho de

    pesquisa. Sem alongar muito, vale registrar o alerta fornecido Merton (1968), e replicado por

    Alves (1996), nos advertindo que "a despeito da etimologia, dados no so dados (data are

    not given), mas construdos com o auxlio inevitvel de conceitos (...)".

    Posto isso, os dados indispensveis realizao da pesquisa proposta foram coletados por

    intermdio de uma srie de atividades:

    a) No que tange pesquisa bibliogrfica, os dados foram obtidos de toda forma de

    literatura disponvel e academicamente reconhecida acerca do tema, tais como

    livros, teses, dissertao, artigos, jornais, legislao, documentos e dados

    disponveis online.

    b) Com relao fase de pesquisa documental, os dados foram coletados em

    relatrios, pareceres, documentos no publicados e bancos de dados disponveis

    internamente no mbito do sistema de segurana pblica do Distrito Federal, a fim

    de compreender o contexto institucional em que se desenvolveu o trabalho.

  • 40

    c) Por fim, a pesquisa de campo consistiu preponderantemente na realizao de

    entrevistas semi-estruturadas com os servidores da rea de segurana pblica de

    modo a obter informaes acerca de suas percepes. Os entrevistados foram

    devidamente encorajados a exprimir seus sentimentos e crenas, acerca das

    questes gerais e pessoais, assim como pontos atinentes atuao do poder

    pblico. Evitou-se, portanto, a utilizao somente de perguntas abertas. Seguindo

    orientao de Gnther (2003), procurou-se tambm estabelecer confiana com a

    apresentao do entrevistador e dos objetivos da pesquisa, assegurando-lhes total

    liberdade. Parra capturar o interesse do respondente, buscou-se esclarecer a

    importncia do tema, ressaltando como as opinies e experincias dos

    respondentes so importantes.

    d) As perguntas utilizadas, adaptadas de Maynard-Moody e Musheno (2003) e de De

    Graaf (2010), foram aplicadas da forma mais harmoniosa possvel, cujo resultado

    apresentado mais adiante em item prprio.

    Este tipo de pesquisa permite confrontar as caractersticas da percepo em um nmero

    satisfatrio e representativo de categorias, nas diversas localidades do DF, com o aparato

    conceitual e a matriz terica definida para o desenvolvimento do trabalho de pesquisa. A

    garantia de efetividade foi feita pela definio precisa do pblico-alvo na identificao dos

    subgrupos relevantes, conforme explicado por Gnther (2003).

    A coleta foi preponderantemente transversal, ou seja, em um nico momento no tempo. No

    se descarta, contudo, a possibilidade de que, decorrendo alguma mudana considervel no

    cenrio, haja desdobramentos do presente trabalho, com a obteno de novos dados no futuro,

    realizando-se uma coleta longitudinal, aprimorando esta pesquisa.

    3.4 Tratamento de Dados

    Em funo da natureza dos dados obtidos, que trazem reflexes, percepes e interpretaes

    levantadas por terceiros acerca da realidade, o tratamento dos dados exigiu um mtodo de

    considervel complexidade, notadamente pela preocupao em compreender o

  • 41

    comportamento e o sentimento humano, sob a perspectiva dos prprios atores sociais, em

    especial os chamados agentes do Estado.

    Deste modo, privilegiou-se uma anlise interpretativa, sob uma perspectiva hermenutica no

    confronto dos relatos das pessoas com os estudos do referencial terico que descrevem

    particularmente essas percepes em um mundo de alta complexidade e contingncia.

    Pode-se dizer que tudo deriva de interpretaes, que sempre enxergamos o mundo por meio

    de uma lente contaminada (Foucault, 2005). Alm disso, com relao especificamente ao

    tema agora em estudo, preciso lembrar que lealdade em sua essncia um sentimento. As

    pessoas sentem, ou no, o dever de agir com lealdade a algum ou a alguma coisa. A essncia

    eminentemente interpretativa, sensorial (VERGARA, 2009). Tal fato refora ainda mais a

    relevncia do tipo de viso empregada neste trabalho.

    3.5 Limitaes do Mtodo

    A metodologia selecionada para a pesquisa proposta, embora seja entendida como a mais

    apropriada, apresentou as seguintes dificuldades e limitaes quanto coleta e tratamento dos

    dados:

    a) O acesso aos entrevistados difcil, devido ao acmulo de tarefas escala pesada

    de plantes que hoje se verifica na rea de segurana pblica, onde os ndices de

    criminalidade tem apresentado nmero crescentes, sobretudo em 2012.

    b) O volume de dados disponveis dificulta a delimitao adequada de amostras, uma

    vez que podem ter sido obtidos muitos dados acerca de situaes dispares sem

    formar um conjunto suficientemente coeso de informaes.

    c) Quanto pesquisa documental, o problema est na divulgao de dados que

    porventura considerados sigilosos, ou que possam comprometer a segurana

    populao ou ainda incentivar a criminalidade.

  • 42

    d) Com relao aos autores e pesquisas utilizados como referencial terico, preciso

    explicitar os principais pressupostos de que estes utilizam, as correntes de

    pensamento e paradigmas que informam suas teorias. Alm disso, todas essas

    informaes devem ser submetidas a crticas quanto sua coerncia, validade,

    originalidade, profundidade e alcance.

  • 43

    4 RESULTADOS E ANLISE

    Em linhas gerais, esta pesquisa procurou focar inicialmente na obteno de informaes

    acerca de tpicos como liberdade, discricionariedade, autoridade, regras e normas.

    Posteriormente, buscou-se identificar fatores de influncia, instncias de reponsabilidade,

    balizadores de comportamento e grupos relevantes que, por um lado ou por outro, recebessem

    tratamento diferenciado (positivo ou negativo) ou interferissem na atuao do servidor no seu

    dia-a-dia.

    Por fim, as narrativas colecionadas visam a ilustrar todo o cenrio descrito e extrado durante

    a realizao das entrevistas.

    Noutros termos, primeiramente investigou-se se a liberdade para tomar decises por parte do

    servidor. Qual a grau de discricionariedade oferecido por suas instituies.

    Em seguida, pesquisou-se que fatores interferem e o que determina o emprego dessa

    discricionariedade e o processo de tomada de deciso.

    Por fim, foram buscadas narrativas que demonstrassem o resultado prtico disso no cotidiano,

    ilustrando o panorama geral do servio pblico, em especial na rea de segurana pblica,

    objeto da pesquisa.

    A sntese desses resultados e suas respectivas anlises esto apresentados a seguir em trs

    sub-sees, quais sejam: 4.1 Contexto Institucional; 4.2 Grau de Discricionariedade; e 4.3

    Vnculos de lealdade.

    4.1 Contexto Institucional

    Para que seja compreendido o grupo de pessoas que forneceram suas percepes para o

    presente trabalho importante apresentar a estrutura da Segurana Pblica do Distrito

    Federal.

  • 44

    Deste modo, pode-se entender em que medida os servidores pblicos que ali trabalham, atuam

    na linha de frente, ou ao nvel da rua, no atendimento ao cidado, socorro a vtimas e

    conteno de autores de crime.

    Pesquisando-se a legislao vigente, verifica-se, em linhas gerais, que o Sistema de Segurana

    Pblica do Distrito Federal composto pelos seguintes rgos (Decreto N 28.691, de 17 de

    janeiro de 2008):

    I Secretaria de Estado de Segurana Pblica do Distrito

    Federal SSP-DF;

    II Polcia Civil do Distrito Federal - PCDF;

    III Polcia Militar do Distrito Federal - PMDF;

    IV Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal

    CBMDF;

    V Departamento de Trnsito do Distrito Federal DETRAN-

    DF

    A Secretaria de Estado de Segurana Pblica (SSP/DF) o rgo central do Sistema de

    Segurana Pblica do Distrito Federal e tem o compromisso de dirigir os rgos de Segurana

    Pblica para atividades policiais primordialmente preventivas e de participao comunitria,

    visando proteo social e a melhoria da qualidade de vida da populao pela efetivao de

    um verdadeiro estado de segurana.

    A estrutura da SSP/DF tem origem no Decreto Distrital N 4.852, de 11 de outubro de 1979,

    que a designou como rgo coordenador do Sistema de Segurana Pblica, composto pela

    Polcia Militar, Polcia Civil, Corpo de Bombeiros Militares e Departamento de Trnsito e

    demais segmentos que foram criados ao longo dos anos seguintes. Estes rgos lidam

    diretamente com pblico. Alm disso, h a Subsecretaria do Sistema Penitencirio, cujo

    pblico principal so internos do sistema prisional e seus familiares.

    Em face necessidade de adequao das atividades de Segurana Pblica, o Governo do

    Distrito Federal - GDF reestruturou esta Secretaria, por meio da Lei 2.997, de 03 de julho de

  • 45

    2002. O rgo adotou a atual denominao de Secretaria de Estado de Segurana Pblica e

    Defesa Social, um ato distintamente de valorizao da proteo do cidado e da comunidade.

    Esta a estrutura atual do sistema de Segurana Pblica do DF. Na prtica, h cinco rgos

    que atuam ao nvel da rua e lidam diretamente com o pblico, conforme segue:

    Figura 01 - Organograma SSP/DF Fonte: www.ssp.df.gov.br

    Nesse contexto, a Polcia Civil aquela que lida com o maior nmero de pessoas envolvidas

    diretamente nas diversas ocorrncias, uma vez que atende vtimas, autores, testemunhas e

    todos os demais interessados no processo criminal.

    As unidades atuam ao nvel da rua so o Departamento de Polcia Circunscricional DPC

    (Delegacias das cidades-satlites), o Departamento de Polcia Especializada - DPE (tais como

    Homicdios, Defesa do Consumidor, Defraudaes, Crime Organizado, etc) e Departamento

    de Polcia Tcnica DPT (Percias em Locais de Crime, Objetos, Percias em pessoas vivas e

    em cadveres). H ainda a Corregedoria Geral de Polcia CGP, que atende ao pblico

    recebendo reclamaes (juntamente com a Ouvidoria), apurando transgresses disciplinares e

    emitindo certides de antecedentes criminais.

    Veja-se a estrutura da PCDF:

    SSP

    PCDF PMDF CBMDF DETRAN/DF SESIPE

  • 46

    Figura 02 - Organograma PCDF Fonte: www.pcdf.df.gov.br

    4.2 Grau de Discricionariedade

    Na anlise dos dados, primeiramente percebeu-se que tanto os servidores burocratas que

    atuao na linha de frente (front-line), assim como aqueles que detm cargos de chefia e

    direo consideraram que h considervel autoridade e liberdade para escolher as tarefas que

    realizam diariamente.

    A pesquisa tambm revelou que h grande margem para estabelecimento de regras e

    procedimentos em ambas as categorias. Com efeito, as normas escritas contemplam apenas

    parte das situaes do dia-a-dia. Alm disso, a maior parte dos servidores consideram as

    normas e procedimentos existentes como pouco especficos ou muito genricos.

    Outro aspecto revelado que a maioria dos servidores, de qualquer nvel hierrquico, entende

    que sua instituio no transmite com clareza, definio e objetividade necessrias quais as

    polticas, metas e objetivos devem nortear os trabalhos e servios.

    PCDF

    DPT DPC DPE Corregedoria Ouvidoria DGP DEPATE

  • 47

    Portanto, em que pese o fato de que os funcionrios via de regra procurem seguir os

    procedimentos e instrues para realizar suas principais tarefas, a prpria ausncia de

    normatizao, ou falta de clareza nos protocolos operacionais, enseja um alto grau de

    discricionariedade na atuao cotidiana.

    Na verdade, tal fato incentivado indiretamente, na medida em que fcil controlar o

    resultado e saber se a deciso foi acertada. Nesse sentido, a pesquisa demonstrou que a quase

    totalidade dos respondentes acham fcil verificar se realizou o trabalho corretamente e se seu

    esforo produziu resultados prticos.

    Em suma, as normas no so completas nem claras e, portanto, instalou-se uma situao em

    que habitual contar com elevado grau de liberdade, autoridade e discricionariedade nas

    decises do dia-a-dia em casos comuns.

    4.3 Vnculos de Lealdade

    Com relao aos principais grupos em relao aos quais os entrevistados reconhecem dever de

    responsabilidade, as respostas obtidas poderiam ser, em sua maior parte, organizadas da

    seguinte forma:

    - Internos: Colegas de Trabalho

    - Externos: Usurios

    - Reguladores: Governamentais

    Registre-se, que estes principais balizadores de responsabilidade identificados pelos

    respondentes foram os mesmo tanto por aqueles que atuam na linha de frente quanto pelos

    chefes e diretores.

    Percebe-se, na quase totalidade das entrevistas, que os cidados em geral so os maiores

    referenciais de lealdade. Ou seja, colegas normais de trabalho, vtimas comuns, etc. Noutros

    termos, a sociedade de uma forma genrica.

  • 48

    Por fim, vale registrar que o vnculo com a prpria instituio, a fidelidade do servidor algo

    notvel que certamente tem grande peso em seu comportamento. Nesse diapaso, a pesquisa

    demonstrou os funcionrios consultados sempre compartilham algum sentimento de lealdade

    de forte com seu rgo.

    4.3.1 Normas e Regulamentos

    Nas entrevistas, verificou-se, primeiramente, que h muitas crticas em relao s normas e

    regulamentos.

    Este um assunto que est sempre presente nas entrevistas, ainda que no tenham sido

    mencionados pelo entrevistador. A fala de entrevistados destacada a seguir, com objetivo de

    enfatizar os pontos da anlise:

    Os regulamentos internos a meu ver no so injustos ou

    proporcionam diferenas entre usurios. At pelo contrrio, tentam

    corrigir erros do ordenamento jurdico ultrapassado. Quando no d

    a gente tenta v o que d pra fazer pra evitar injustia. (# 01)

    Eu mesmo nunca tive problemas com a corregedoria, mas

    experincias de outros colegas serviram para melhorar a minha

    conduta profissional. Principalmente quanto ao abuso de autoridade.

    O policial hoje em dia atua em uma linha muito tnue entre a

    necessidade de agir contra o crime sem ser autoritrio. Ao mesmo

    tempo em que precisa ter uma postura firme e contundente para

    desempenhar o seu trabalho, a legislao muito rgida por causa

    dos direitos humanos. Tem tambm os policiais que negligenciaram

    as condies de segurana e foram vtimas de criminosos, os que

    extrapolaram o poder de polcia. Busco sempre o meio-termo, o

    equilbrio. (# 04)

  • 49

    As normas so para punir policiais e da poca da ditadura. A justia

    e o ministrio pblico so contra a polcia. (# 07) [entrevistando j

    foi punido em processo penal por abuso de autoridade].

    Muitas [normas] so criadas de maneira oportunistas. Como a gente

    faz ento? (# 08)

    Acho que no problema no so os regulamentos, mas a falta de

    estrutura para atender tudo da mesma forma. (# 09)

    Se for investigar cada ocorrncia conforme manda o figurino, no

    vai ter equipe pra isso no. O planto funciona com 3 ou 4 canas. S

    d para deslocar uma equipe por vez, o resto tem que esperar. Fazer

    o que? o pessoal do planto que decide na hora por conta prpria,

    qual caso dar prioridade. Agora se pintar um flagrante de Maria da

    Penha e no registrar sobra pro delegado. O ferro vem de todo lado,

    direo, corregedoria, ministrio pblico rede globo. A ferrou. Tem

    de ficar esperto no que d para segurar e o que no d. (# 10)

    Outrossim, essa inconsistncia normativa, ou mesmo incompatibilidade com o entendimento

    dos servidores permite e incentiva liberdade e discricionariedade no processo de tomada de

    deciso, as quais so exercidas continuamente, conforme depoimentos, segundo uma srie de

    fatores que influenciam os servidores em seu cotidiano, muitas vezes de forma explcita, mas

    no raramente tambm de forma velada.

    4.3.2 Beneficiados e Prejudicados

    Nas entrevistas, por exemplo, verificou-se que h algumas questes ou atores que interferem

    praticamente em todos os participantes, em praticamente todas as situaes. So os cidados

    e usurios dos servios, tanto internos quanto externos.

  • 50

    Quando o tema so os cidados, de pronto aflora a uma questo recorrente e relevante, que a

    percepo de que um aspecto a ser enfrentado a discriminao e tratamento diferenciado.

    Vejam-se alguns trechos ilustrativos retirado das entrevistas no momento em que o tema

    privilgio e discriminao suscitado:

    Existe na maioria dos rgos a poltica de evitar discriminao, mas

    so coisas internas, que dificilmente refletiram na realidade da

    sociedade. (# 02)

    Os funcionrios do executivo so discriminados em relao ao

    legislativo e ao judicirio. Os militares so discriminados at

    economicamente por terem participado do golpe de 64. Seus salrios

    e direitos so inferiores at de policiais militares de alguns estados do

    Brasil. (# 03)

    Na minha opinio, as leis e regulamentos visam o tratamento

    isonmico e tentam eliminar ou, ao menos, coibir a

    discricionariedade e, principalmente, a arbitrariedade. Contudo, o

    tratamento privilegiado e discriminatrio ainda ocorre e, com

    certeza, ainda ocorrer por um bom tempo. Penso que chega a ser

    cultural esse jeitinho na administrao pblica e aquele agente que

    no faz uso dessa prtica chega a ser mal visto, chamado at

    pejorativamente de certinho. (# 04)

    O atendimento privilegiado no plano Institucional na Polcia Civil

    do DF e na Secretaria de Segurana Pblica deriva de leis estaduais

    e normas internas dessas Instituies. Idosos, crianas e mulheres tm

    atendimento privilegiado. Fora do plano institucional, temos

    atendimentos privilegiados para amigos de autoridades, o que

    infelizmente torna cada vez mais injusto o atendimento ao "cidado

    sem conhecidos". Acho que o tratamento deveria ser igual para todos,

  • 51

    mas sem que o plano poltico impede essa forma de aplicao do que

    "justo". (# 14)

    O atendimento privilegiado garantido por leis e normas, ainda que

    injusto, deriva de um ordenamento que, em princpio e se no for

    ilegal, deve ser cumprido. Entendo que, hoje, o espao para

    discriminao de atendimento na prestao de servios muito

    pequeno, no permitindo disparidades vistas em outra poca. (# 21)

    Como diretor, por diversas vezes fiz escolhas considerando classes

    sociais inferiores e de certa forma tentando fazer com que essas

    pessoas tivessem uma vida profissional melhor. (# 07)

    As leis e regulamentos internos no so ruins. Mas deveriam ter

    formas diferenciadas dando uma maior ateno a cada caso e cada

    necessidade. A gente sempre tem que adaptar. (# 21)

    Se quiser fazer o seu trabalho, vai ter de analisar a situao de cada

    um! (# 22)

    Os regulamentos existentes para atendimento ao pblico no

    diferenciam no os usurios, mas sim a viso que cada servidor tem

    da pessoa a ser atendida. (# 25)

    Hoje, com o excesso de cotas e privilgios, algumas categorias se

    tornaram discriminadas. Um exemplo seria o homem branco classe

    mdia. (# 27)

    O pessoal geralmente evita discriminar, mas se o criminoso for

    mala, como dizem, a rapaziada d uma no p da orelha do

    camarada. No digo que seja justo, mas que compreensvel . (#

    11)

  • 52

    Com relao ainda aos cidados e usurios dos servios, sobretudo quando surge o assunto

    privilgio e discriminao, a quase totalidade dos entrevistados tende a sugerir questes e

    grupos especficos para os quais identificam algum tipo de tratamento diferenciado.

    Alguns identificam como alteraes no prprio comportamento em relao a pessoas

    especficas, outros mencionam mudanas no comportamento dos demais funcionrios.

    Entre as principais categorias mencionadas, muitas delas espontaneamente, vale registrar

    algumas: pobres, cidados de bem, menores de idade, idosos, mulheres, negros, ndios,

    deficientes (portadores de necessidades especiais), corruptos, pblico GLS, gestantes,

    doentes, autoridades, autores do fato, bandido sujo, presos e ex-condenados.

    Categorias alvo de Tratamento diferente

    Pobres Cidados de bem

    Menores de idade Mulheres

    Idosos ndios

    Negros Corruptos

    Deficientes Pblico GLS

    Gestantes Autoridades

    Doentes Ricos

    Autores de crime Bandido Sujo

    Presos Ex-condenados

    Quadro 02 - Categorias alvo de tratamento diferente

    Percebe-se com clareza que algumas categorias so alvo de aceitao e outros de rejeio.

    Assim, importante identific-los, uma vez que recebero tratamento diferenciado por parte

    dos servidores, os quais podem ser influenciados positivamente ou negativamente.

  • 53

    No quadro apresentado no foram diferenciados quais grupos so na prtica beneficiados ou

    quais so efetivamente prejudicados. Com efeito, determinada categoria pode estar sujeita h

    diversas situaes dependendo do histrico, do atendente, do caso. Pode ter tratamento

    privilegiado de determinado funcionrio, mas ser tratada de forma inadequada por outro, na

    mesma instituio. Como exemplo, vale citar alguns depoimentos totalmente opostos sobre

    uma temtica repetidamente levantada pelos participantes, a questo de gnero:

    As mulheres so muito oprimidas. A tal ponto de sequer procurar-

    nos para registrar uma ocorrncia. E quando a fazem, na maior parte

    das vezes volta atrs. Recentemente atendi uma jovem senhora que

    havia sido submetida a maus tratos pelo marido. Ela me disse que era

    a primeira vez que tinha tomado coragem. Mas seu rosto parecia

    muito conhecido. Quando fomos consultar o Millenium [sistema de

    registro de ocorrncias da PCDF], j tinha dois registros da mesma

    pessoa contra o mesmo autor. At hoje a gente no sabe se ela

    esqueceu de to comum que era ou quis proteger o cara. Em todo

    caso um absurdo. Uma opresso que chega a doer na gente.

    [policial da delegacia da mulher] (# 02)

    No planto de delegacia, casos como vtima da Lei Maria da Penha

    precisa ter mais ateno, pois ela est desequilibrada

    emocionalmente e vem procurar ajuda pra proteger seus filhos, bem

    como orient-la a respeito das medidas protetivas a quem tem direito.

    Muitas das vezes as vtimas so de classe mais desfavorecida e

    precisam de uma ateno especial. (# 07)

    Gosto muito das mulheres. Mas no serve pra polcia. No

    preconceito, mas mulher assim mesmo. Chega cheia de disposio,

    toda operacional, empetecada igual ao batman. Mas basta virar me

    que acaba tudo. No quer mais correr atrs de bandido, s quer

    servio administrativo, se esconder no SAA [servio de apoio

    administrativo]. Tudo bem, ser me massa, mas depois o trabalho

    pesado fica todo com a gente. (# 14)

  • 54

    Se pudesse, trabalharia s com mulheres. So mais criativas,

    sensveis, generosas, e sabem cumprir os regulamentos. A polcia

    precisa mudar de cara. Acabou a poca da GEB. [Guarda Especial

    de Braslia, conhecida popularmente pela truculncia] (# 35)

    A questo de existncia de grupos que merecem ateno especial j foi identificada

    anteriormente, como pode-se verificar no Guia de Direitos Humanos Conduta tica,

    Tcnica e Legal para Instituies Policiais Militares (BRASIL, 2008). Nesse material,

    registra-se que o policial cidado deve entender as diferenas, no discriminar e promover a

    tolerncia e respeito. Entre os grupos que merecem ateno especial so citados: mulheres,

    crianas e adolescentes, idosos, pessoas com deficincia, assim como gays, lsbicas,

    bissexuais, etc.

    Nada obstante a possibilidade de diferentes tratamentos para o mesmo grupo, as pessoas em

    situao de hipossuficincia (pobres) foram efetivamente os mais citados, quase que

    unanimemente. Aqui sempre h uma percepo favorvel, uma vontade de ajudar. Vejam-se

    alguns excertos obtidos das entrevistas em relao a este grupo:

    Me comove muito a situao da populao humilde. muito triste.

    Os mais carentes to sempre, sempre na pior. (# 02)

    Populao carente precisa de ajuda. A gen