Dissertação - Mulheres de Ouro - Vera Fernandes.pdf

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

    FACULDADE DE EDUCAO FSICA E DESPORTOS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO FSICA UFJF

    VERA LUCIA FERREIRA PINTO FERNANDES

    MULHERES DE OURO:

    Trajetria e representaes de atletas de lutas

    Juiz de Fora

    2014

  • VERA LUCIA FERREIRA PINTO FERNANDES

    MULHERES DE OURO:

    Trajetria e representaes de atletas de lutas

    Dissertao apresentada ao PPGEF Mestrado em Educao Fsica da Faculdade de Educao

    Fsica e Desportos da Universidade Federal de

    Juiz de Fora, como parte dos requisitos para

    obteno do ttulo de Mestre. rea de

    concentrao: Movimento Humano e Cultura.

    Orientadora: Profa. Dra. Ludmila Nunes Mouro

    Juiz de Fora

    2014

  • Fernandes, Vera.

    Mulheres de Ouro: Trajetria e representaes de atletas de lutas / Vera Fernandes. --

    2014.

    185 f. : il.

    Orientadora: Ludmila Nunes Mouro

    Dissertao (mestrado acadmico) - Universidade Federal de

    Juiz de Fora, Universidade Federal de Viosa, Faculdade de Educao Fsica. Programa de

    Ps-Graduao em Educao Fsica, 2014.

    1. Lutas. 2. Mulheres. 3. Trajetria Esportiva. 4. Feminilidades. I. Nunes Mouro,

    Ludmila, orient. II. Ttulo.

  • VERA LUCIA FERREIRA PINTO FERNANDES

    MULHERES DE OURO:

    Trajetria e representaes de atletas de lutas

    Dissertao apresentada ao PPGEF Mestrado em Educao Fsica da Faculdade de Educao

    Fsica e Desportos da Universidade Federal de

    Juiz de Fora, como parte dos requisitos para

    obteno do ttulo de Mestre. rea de

    concentrao: Movimento Humano e Cultura.

    Aprovada em 25 de maro de 2014, pela Banca Examinadora composta por:

    ________________________________________________________

    Profa. Dra. Ludmila Nunes Mouro (Orientadora)

    Universidade Federal de Juiz de Fora UFJF

    _______________________________________________________

    Prof. Dr. Anderson Ferrari

    Universidade Federal de Juiz de Fora UFJF

    _______________________________________________________

    Profa. Dra. Silvana Vilodre Goellner

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS

  • Dedico esta dissertao a Sandro Fernandes: meu

    marido e companheiro de todas as horas.

  • AGRADECIMENTOS

    O fim de uma longa caminhada chegou e agora um momento de agradecer.

    Agradeo primeiramente a Deus que tanto ouviu meus pedidos para a

    concretizao desta etapa e me consolou quando, sozinha, as incertezas invadiam a mente e o

    corao: Ir dar certo? Darei conta? E o que vem depois? Questes rotineiras que permearam

    este processo.

    Ao meu marido, Sandro, que tanto me incentivou e acredita em minha capacidade.

    Com pacincia, amor e muito bom humor compartilhou os momentos de alegria e me

    tranquilizou nos instantes mais difceis. A concluso do trabalho no seria possvel sem a sua

    participao.

    Ao meu filho, Maycon, que continuou a crescer, se desenvolver e se tornar uma

    boa pessoa mesmo na minha ausncia; aos meus pais, Srgio e Ataide, e irmos, Augusto,

    Marcelo e Valria, que mesmo sem entender o qu e para qu estou envolvida neste

    processo apoiaram a seu modo.

    Aos amigos que compartilharam a experincia e momentos do Mestrado, tornando

    o caminho menos sinuoso: Ayra, Carla, Flvia, Joo Paulo, Letcia, Lcia e Tayane; alm das

    professoras Kalyla Maroun e Mrcia Barante que fizeram muito mais do que aceitar a

    participao na Banca como suplentes. Os Congressos e outros Eventos, e as segundas-feiras

    dentro e fora da Faefid foram muito mais proveitosos na companhia de vocs. Agradeo pelas

    leituras e sugestes s minhas escritas.

    Aos amigos que chegaram h pouco tempo, Aline Laila e Marcelo, ou como a

    Tamara que se ausentou para seguir seu caminho, e aqueles, como Aline, Igor, Luana, e

    Willen que trouxeram sua juventude e curiosidade e professora Selva Barreto que esteve

    indiretamente participando deste processo, compartilhando sua alegria de viver. Nesta jornada

    todos fizeram a diferena. Tambm lhes agradeo pelas leituras e sugestes sobre o meu

    estudo.

    s amigas de perto Amanda, Ana Paula, Caroline e Michelle e de longe Ramiele,

    Sabrina e Vanessa, que mesmo no participando diretamente do processo sempre torceram

    por mim.

    s atletas Adriana, Aline, Ana Maria, rica, Joice e Las o meu agradecimento

    especial. Obrigada por terem me recebido de braos abertos e dedicado seu tempo a mim e a

    minha pesquisa: sem vocs este estudo no seria possvel.

  • Ao professor Roney Polato que, prontamente, aceitou fazer a leitura de meu

    estudo no momento da Qualificao, contribuindo para o desenvolvimento deste. Foi uma

    honra contar com sua participao.

    Aos professores Anderson Ferrari e Silvana Goellner que no apenas aceitaram

    participar da Banca de Qualificao, mas muito contriburam com suas leituras e sugestes ao

    desenvolvimento deste estudo. E, novamente, com a mesma prontido, aceitaram participar da

    Defesa. No poderia ter feito melhores escolhas.

    professora Ludmila Mouro que transcende o limite da orientao. Tornou o

    processo mais leve com sua pacincia, tranquilidade e apoio logstico. E com sua sabedoria

    me ajudou a crescer enquanto pessoa e enquanto acadmica, em especial, nos momentos em

    que acreditou em minhas condies quando eu mesma no acreditava. Voc me mostrou que

    posso muito mais do que imaginava. Por isso, te agradeo, principalmente, por acreditar em

    mim.

    Por fim, agradeo Faculdade de Educao Fsica e Desportos e a Universidade

    Federal de Juiz de Fora que participam da minha formao desde a graduao, e a Capes pelo

    apoio financeiro.

  • S lutador quem sabe lutar consigo mesmo.

    Carlos Drummond de Andrade

  • RESUMO

    Esta pesquisa, de natureza qualitativa e carter descritivo, se desenvolveu a partir da seguinte

    questo central: Quais os eventos e experincias so vivenciados pelas mulheres que levaram

    adiante uma carreira como lutadora, apesar dos elaborados argumentos sociais que

    funcionariam como inibidores de tal atitude?. Com aporte terico dos estudos de gnero e

    metodolgico das representaes sociais, desta questo central foram definidos como

    objetivos deste estudo: a) Compreender como se d o processo de insero e permanncia de

    mulheres nas lutas; b) Identificar os significados, as motivaes, assim como, as dificuldades

    na construo de suas carreiras; e c) Identificar e analisar as representaes de feminilidades

    dessas mulheres atletas e analisar at que ponto se aproximam e/ou se afastam de uma

    representao hegemnica. Para atingir os objetivos propostos utilizamos uma Entrevista

    Semiestruturada, elaborada de acordo com os objetivos da pesquisa, que foi feita a seis atletas

    profissionais de diferentes modalidades de lutas: duas atletas de Boxe Olmpico, trs de Luta

    Olmpica estilo livre e uma de Mixed Martial Arts. Todas as atletas possuem grande

    representatividade nacional e internacional dentro do cenrio das lutas. As narrativas mostram

    que as atletas possuem a aptido esportiva para as modalidades em que atuam, mas esta s

    descoberta a partir do convite para a primeira experincia, primeira luta, ou envolvimento

    tcnico com o esporte que, notadamente, sempre mediado por um homem, aqui

    caracterizado como tutor. A este fato, somam-se o anseio das famlias pela escolha

    profissional das atletas, as dificuldades financeiras e preconceitos , seus sonhos, conquistas

    e significados agregados carreira de lutadora. So mulheres que suportam uma pesada rotina

    de treinos em ambientes mistos e representam a feminilidade de forma plural e marcada pela

    postura mais agressiva nos treinos e nas lutas. Suas feminilidades esto aliadas vaidade e

    beleza, sejam estas constitutivas de toda mulher ou aquela investida externamente nas

    ocasies em que no se encontram lutando ou treinando e, quando possvel, tambm nestes

    momentos. Ou seja, elas subjetivam determinadas masculinidades como forma de

    pertencimento ao meio, ao mesmo tempo em que marcam a presena do feminino no ringue,

    no tapete e no octgono.

    Palavras-chave: Lutas, Mulheres, Trajetria Esportiva; Feminilidade.

  • ABSTRACT

    This research is qualitative and descriptive in character, developed from the following central

    question: What are the events and experiences experienced by women who carry on a career

    as wrestlers, despite the elaborate social arguments that act as inhibitors of such an attitude?.

    With theoretical basis of gender studies and methodology of social representations, the

    objectives of this study have been defined from this question: a) To understand how the

    process of insertion and retention of women in wrestling is b) To identify the meanings,

    motivations, as well as the difficulties in building their careers, and c) To identify and analyze

    the representations of femininity of these female athletes and analyze how far towards and / or

    away from a hegemonic representation. In order to achieve the proposed objectives, a semi-

    structured interview was used, prepared in accordance with the objectives of the research,

    which comprehended six professional athletes of different modalities of wrestling: 2 in

    Olympic boxing, 3 freestyle wrestlers and 1 in mixed martial arts. All athletes have great

    national and international presence. The narratives show that the athletes are fit for the

    modalities in which they compete, but this is only founf out from when they start in the sport,

    in their first fight, or with the technical involvement with the sport, which is always mediated

    by men, here characterized as tutors. In addition, there is the desire of families regarding teh

    choice of the professional athletes, the difficulties - financial and prejudice - their dreams,

    achievements and meanings attached to the career of wrestlers. They are women who bear a

    heavy training routine in mixed environments and represent femininity in a plural manner and

    are marked by more aggressive stance in training and in fights. Their femininity is allied to

    vanity and beauty be it constitutive of every woman or that one invested externally on the

    occasions that they are not fighting or training and, where possible, also in those moments. In

    other words, they subjectivate certain masculinity as a way of belonging to the sport, while

    marking the presence of the feminine in the ring, on the mat and in the octagon.

    Key-words: Wrestling. Women. Sports trajectory. Femininity.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Adriana Arajo ......................................... 36

    Figura 2 rica Matos ......................................... 37

    Figura 3 Joice Silva ......................................... 38

    Figura 4 Las Nunes ......................................... 39

    Figura 5 Aline Silva ......................................... 40

    Figura 6 Ana Maria ......................................... 41

    Figura 7 Sala de treino do primeiro andar da

    Champion (rea com sacos de pancada)

    ......................................... 47

    Figura 8 Sala de treino do primeiro andar da

    Champion (rea do ringue)

    ......................................... 47

    Figura 9 Sala de treino do segundo andar da

    Champion (viso geral)

    ......................................... 48

    Figura 10 rea de treino do CT da Tijuca ......................................... 49

    Figura 11 Vista area do CEFAN ......................................... 50

    Figura 12 rea de treino do CT do CEFAN ......................................... 51

    Figura 13 Academia Team Nogueira (viso de cima) ......................................... 52

    Figura 14 rica durante o sparring com um atleta da

    mesma categoria de peso

    ......................................... 89

    Figura 15 Ana durante o sparring com um atleta da

    mesma categoria de peso

    ......................................... 89

    Figura 16 Treino de Las e Joice, de categorias de peso

    diferentes

    ......................................... 91

    Figura 17 Treino de Las com outra atleta da seleo

    brasileira da mesma categoria de peso

    ......................................... 92

    Figura 18 Treino intencional de Aline e um atleta da

    equipe masculina

    ......................................... 92

  • LISTA DE SIGLAS

    AIBA Associao Internacional de Boxe

    CBBOXE Confederao Brasileira de Boxe

    CBLA Confederao Brasileira de Lutas Associadas

    CEF Caixa Econmica Federal

    CEFAN Centro de Educao Fsica Almirante Adalberto Nunes

    CEP Comit de tica e Pesquisas

    CND Conselho Nacional de Desporto

    COB Comit Olmpico Brasileiro

    COI Comit Olmpico Internacional

    CPB Comit Paraolmpico Brasileiro

    CPMI Comisso Parlamentar Mista de Inqurito

    CT Centro de Treinamento

    DC Dirio de Campo

    FILA Federao Internacional de Lutas Associadas

    FEFI Federao Esportiva Feminina Internacional

    FIVB Federao Internacional de Voleibol

    GEFSS Grupo de Estudos em Gnero, Educao Fsica, Sade e Sociedade

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IFBB International Federation of Body Building

    LO Luta Olmpica

    MMA Mixed Martial Arts

    RS Representaes Sociais

    TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

    TRS Teoria das Representaes Sociais

    UFC - Ultimate Fighting Championship

  • SUMRIO

    1) INTRODUO ........................... 14

    2) CONSTITUIO DO ESTUDO ........................... 21

    2.1) Modernidade e identidade lquidas. ........................... 21

    2.2) Breve incurso sobre poder e gnero ........................... 24

    2.3) Carreiras esportivas e representaes de feminilidades ........................... 29

    3) CAMINHOS INVESTIGATIVOS ........................... 37

    3.1) Apresentando as participantes da pesquisa ........................... 37

    3.2) Descrio das modalidades de lutas investigadas ........................... 43

    3.2.1) Boxe Olmpico (Boxe) ........................... 43

    3.2.2) Luta Olmpica (LO) ........................... 45

    3.2.3) Mixed Martial Arts (MMA) ........................... 47

    3.3) Os locais de treinamento das participantes da pesquisa ........................... 48

    3.3.1) Academia Champion ........................... 48

    3.3.2) Os Centros de Treinamento da FILA ........................... 51

    3.3.3) Team Nogueira ........................... 54

    3.4) Instrumentos e procedimentos de coleta de dados ........................... 55

    3.5) Procedimentos e tcnicas de anlise dos dados ........................... 56

    4) TORNAR-SE LUTADORA ........................... 59

    4.1) Como cheguei at aqui: agentes, fatores e experincias no

    processo de insero e consolidao profissional das

    lutadoras ........................... 59

    4.2) O que me motiva a continuar: dificuldades e decepes;

    conquistas, sonhos e significados ........................... 74

    4.3) Mulheres que lutam e o paradoxo das feminilidades

    plurais ........................... 89

    4.3.1) A rotina de treinos das lutadoras ........................... 90

    4.3.2) Dentro e fora do ringue, do tapete e do octgono... ........................... 97

    5) APONTAMENTOS FINAIS ........................... 114

    REFERNCIAS ........................... 117

    ANEXO I Parecer CEP ........................... 121

    ANEXO II Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ........................... 123

  • ANEXO III Declarao de Concordncia ........................... 125

    ANEXO IV Roteiro de Entrevista ........................... 126

    ANEXO V Entrevista Adriana Arajo ........................... 127

    ANEXO VI Entrevista rica Matos ........................... 133

    ANEXO VII Entrevista (Piloto) Joice Silva ........................... 140

    ANEXO VIII Entrevista Joice Silva ........................... 146

    ANEXO IX Entrevista Las Nunes ........................... 151

    ANEXO X Entrevista Aline Silva ........................... 160

    ANEXO XI Entrevista (Rememorada) Ana Maria ........................... 169

    ANEXO XII Entrevista Ana Maria ........................... 172

    ANEXO XIII Insero no Campo de Pesquisa ........................... 184

  • 14

    1) INTRODUO

    Mulheres de Ouro1: trajetria e representaes de atletas de lutas um estudo

    transita pelo tempo da modernidade2, dos nossos dias. Um tempo marcado pelo avano

    tecnolgico, principalmente nos setores da comunicao, que conecta o mundo e miscigena

    culturas e, paradoxalmente, aproxima distncias e distancia proximidades. Um tempo de

    relaes sociais e identidades mais instveis e temporrias.

    Em nossa sociedade desse tempo atual, fala-se em maior equidade de gneros em

    que homens e mulheres exercem funes e ocupam espaos semelhantes. Fala-se em maior

    liberdade de escolha: poltica, social e comportamental. Mas tambm, observamos nesta

    mesma sociedade o referencial de um centro normatizado de ideias, valores e prticas. No

    queremos aqui negar os avanos e conquistas das mulheres e outros grupos sociais no

    decorrer do ltimo sculo. Entretanto, observamos no meio esportivo, foco deste estudo, a

    existncia de questes em aberto que merecem nossa ateno, investigao e discusso.

    neste tempo e sociedade que pretendemos refletir sobre a trajetria de mulheres

    que dedicam suas vidas na construo de uma carreira como lutadora em diferentes

    modalidades, assim como suas representaes de feminilidade construdas em meio ao

    cenrio esportivo das lutas. Neste momento, faz-se importante apresentar brevemente as

    motivaes e inquietaes que resultaram neste estudo.

    Para justificar minha motivao nos estudos que envolvem as relaes de gnero,

    fao minhas as palavras da Professora Silvana Goellner em prefcio obra Gnero e

    Esportes: masculinidades e feminilidades, na medida em que: o gnero no apenas um

    tema acadmico. Diz respeito a cada um de ns. De como nos constitumos, entendemos,

    representamos, enfim, do modo como produzimos nossa subjetividade, e tambm, nosso

    corpo (KNIJNIK, 2010, p. 7-8).

    E a curiosidade sobre as diferentes formas de ser e viver feminilidades me

    acompanha desde o perodo em que estive inserida em Academias de Ginstica na condio

    de estagiria e professora. Foi onde eu pude observar entre aparelhos de musculao e aulas

    coletivas variados comportamentos, gestualidades e arquiteturas corporais de homens e

    1 O ttulo deste estudo foi inspirado no nome do filme Menina de Ouro (2004), de Clint Eastwood, cuja

    personagem principal, a boxeadora Maggie Fitzgerald (Hilary Swank), a menina de ouro da trama, rene as condies necessrias para atingir o auge na carreira de lutadora e realizar seus sonhos, assim como as

    participantes desta pesquisa. 2 Para este estudo utilizaremos a concepo de modernidade de BAUMAN (2001) para caracterizar um tempo

    atual de fluncia e transitoriedade nas relaes.

  • 15

    mulheres, cada qual despertando diferentes reaes entre o pblico masculino e feminino.

    Entre as mulheres, as musculaturas transbordantes ou a no evidncia aos msculos, o uso de

    roupas que mostram mais ou menos o corpo, a academia como espao social do culto ao

    corpo, que representaes so construdas? Estas foram as questes iniciais.

    Dessa forma, na expectativa de iniciar um estudo sobre as representaes de

    feminilidades de mulheres praticantes de musculao, me aproximei do Grupo de Estudos em

    Gnero, Educao Fsica, Sade e Sociedade (GEFSS) a partir de 2011. No entanto, aps a

    contemplao de uma vaga no Programa de Ps-Graduao em Educao Fsica pela

    Universidade Federal de Juiz de Fora no ano de 2012, fui convidada e incentivada pela

    orientadora a expandir meu olhar para as relaes de gnero no universo esportivo, mais

    especificamente para a trajetria e as representaes de feminilidades de mulheres atletas

    envolvidas, profissionalmente, nos esportes em que h evidente demonstrao de fora e

    virilidade, como as diferentes modalidades de lutas.

    Questionei-me sobre a viabilidade do estudo e minhas reais condies de dar

    conta do recado, devido dificuldade de contatar atletas, e pelo fato de o universo das lutas

    esportivas3 no fazer parte de meu cotidiano e, assim, empregaria um olhar de fora. Todavia, a

    expressiva participao de brasileiras nas lutas, nos Jogos Olmpicos de Londres, em 20124,

    com possibilidade de investigar questes que permeiam o cenrio das mulheres que lutam

    em pleno ciclo olmpico Rio-2016, somada a recente entrada das mulheres no Ultimate

    Fighting Championship (UFC) maior organizao de Mixed Martial Arts (MMA) do mundo

    tornou-se fascinante para mim e aceitei o desafio. Assim, a busca por maior entendimento

    sobre o contexto das mulheres brasileiras nos esportes, em especialas lutas, se fez necessrio.

    Atravs de filmes e leituras, pude perceber as prticas esportivas como espaos

    historicamente generificados (GOELLNER, 2007). Espaos generificados, geralmente, no

    o so em sua essncia, mas por agregarem discursos e valores que visam proferir o que (ou

    no) adequado/ideal para homens e para mulheres. Ideal este que culturalmente transmitido

    pelos diversos setores sociais, polticos e econmicos, a comear pela instituio familiar.

    A famlia a primeira a criar todo um conjunto de aes e expectativas em torno

    dos filhos, antes mesmo de seu nascimento. Dentre estas podemos citar as cores e objetos

    3 Diferencio aqui lutas esportivas, como aquelas voltadas para a formao e treinamento de atletas com

    objetivo de competies, das lutas fitness caracterizadas pela combinao de golpes de uma ou mais modalidades de luta, praticados em sesses coletivas em academias especializadas (ou no), com outras

    finalidades diferentes da competio, podendo ser a esttica, o condicionamento fsico e a sade, modalidades

    com as quais convivi nos anos de trabalho em Academias de Ginstica. 4 Competiram 12 atletas nas lutas: 7 no jud, 3 no boxe, 1 no taekwondo e 1 na luta olmpica.

  • 16

    pessoais que, normalmente, seguem a premissa do rosa para as meninas e o azul para os

    meninos. Uma diviso dual tambm acontece com as prticas esportivas. De forma geral, as

    atividades rtmicas e expressivas so tidas como adequadas formao fsica e do

    comportamento femininos e os esportes coletivos de confronto e as lutas construo do

    corpo e carter viril dos homens. Diante disso, observamos que no campo das representaes

    sociais5 as prticas esportivas podem influenciar, positiva ou negativamente, nas construes

    de feminilidades e masculinidades e, por isso, busca-se manter mulheres e homens nas

    fronteiras da tradio.

    Entendemos a tradio, a partir da concepo de Anthony Giddens, como uma

    orientao para o passado que tem forte influncia no presente. Ou seja, aquilo que se mantm

    atravs da repetio, da continuidade, do costume, da crena de um assim deve continuar,

    porque sempre foi dessa forma. A tradio, de gerao em gerao, transmite costumes,

    valores, crenas, modos, ideias e memrias que so incorporadas pelos indivduos atravs das

    interaes sociais e aceitas por suas culturas como padres ideais de ao e comportamento

    (GIDDENS, 1997). O autor, no entanto, nos alerta que muitas das coisas que consideramos

    tradicionais, aliceradas na neblina dos tempos, no passam, na verdade, de produtos do

    ltimo par de sculos, e por vezes so ainda mais recentes (GIDDENS, 2002, p. 46).

    Assim, observamos que o conceito de tradio fruto da modernidade; que as

    tradies so mutveis e continuamente reconstrudas de acordo com o presente. Dessa forma,

    as representaes idealizadas dos modos de ser mulher e ser homem so tambm reflexos da

    tradio de uma sociedade. As lutas, sendo prticas esportivas no plenamente recomendadas

    s mulheres por nossa sociedade, encontram-se como um interessante territrio para

    analisarmos os motivos de sua insero, assim como as construes de feminilidades por elas.

    Para melhor compreenso da questo, faz-se necessrio voltarmos, ao Brasil do

    perodo compreendido entre 1940 e 1970 em que evidenciamos a promulgao do Decreto-lei

    3199/41. Esta lei que entrou em vigor no dia 14 de abril de 1941 tinha por objetivo

    estabelecer as bases de organizao dos desportos no pas. Para o nosso estudo, destacamos o

    Art. 54 do Captulo IX, Disposies gerais e transitrias, que dizia: s mulheres no ser

    permitida a prtica de desportos incompatveis com as condies de sua natureza, devendo

    para este efeito o CND6 baixar as necessrias instrues s entidades desportivas do Pas. E

    em 1965, atravs da Deliberao 7/65, o CND criou a regra que dizia: s mulheres item 2:

    5A Teoria das Representaes Sociais (TRS) constitui parte do referencial terico-metodolgico do estudo e ser

    contextualizada no Captulo 3 Caminhos Investigativos. 6Conselho Nacional de Desportos.

  • 17

    no seria permitida a prticade lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salo, futebol

    de paria, polo, rugby, halterofilismo e beisebol (MOURO, 1998, p. 138, grifo nosso).

    As brasileiras deste perodo vivenciaram um momento ambguo, na medida em

    que foi possvel observar certos incentivos e, ao mesmo tempo, controle sobre estes nas

    diferentes esferas da sociedade. Elas passaram a ocupar mais os espaos pblicos: o estudo, o

    trabalho fora de casa, o lazer e/ou as prticas esportivas faziam parte da rotina de parcela da

    populao feminina. Estes novos hbitos nasciam com diferentes objetivos, mas sob a

    condio comum de que seus afazeres fora de casa se ajustassem s obrigaes com o lar. Ou

    seja, nenhum incentivo tinha como inteno a modificao de seu papel social. No cenrio

    esportivo, porm, este foi um tempo de mudanas nas representaes das mulheres e de

    vanguarda no movimento delas junto a essas prticas, que cresce at os dias atuais

    (MOURO, 1998).

    Dentre outras aes, consideramos a organizao dos Jogos da Primavera, cuja

    primeira edio aconteceu no ano de 1949 na cidade do Rio de Janeiro, como um dos eventos

    esportivos para mulheres que contribuiu para a popularizao das prticas esportivas no

    cenrio nacional, uma vez que acontecimentos dessa natureza se disseminaram em diferentes

    estados da federao (MOURO, 1996; FARIAS, 2011). Os Jogos ocorreram de 1949 a

    1972, perodo de vigncia do Decreto-lei 3199/41, caracterizando-se como mecanismo de

    controle das prticas esportivas leves e moderadas sobre aquelas consideradas vigorosas. Mas

    tambm, por sua popularidade e repercusso no pas, o evento considerado um marco na

    democratizao das prticas esportivas para as mulheres.

    Mas elas queriam mais. Ainda no perodo da ditadura militar, a insistncia das

    mulheres e de alguns idealizadores sobre a prtica esportiva feminina influenciaram

    decisivamente na revogao do Decreto-lei 3199/41 em 1979 (SOUZA; MOURO, 2011),

    gerando expectativas de maior liberdade sobre suas prticas corporais. Podemos, ento,

    afirmar que a queda desta lei garantiu maior liberdade de prticas esportivas s mulheres?

    As possveis respostas no so to simples. Pouco mais de trinta anos se passaram

    e determinados esportes continuam a ser subrepresentados ou representados ainda como

    femininos ou masculinos. O que nos leva a afirmar que os discursos concretizados na forma

    de lei em outrora ainda pairam em meio s representaes sociais.

  • 18

    Por isso, tomaremos o universo masculino das lutas: Boxe Olmpico (Boxe7),

    Luta Olmpica (LO) estilo livre e Mixed Martial Arts (MMA) para problematizarmos a

    transposio de barreiras do gnero no meio esportivo, bem como as construes e

    representaes de feminilidades de mulheres atletas, na medida em que encontram-se entre as

    prticas esportivas pouco estimuladas na infncia s meninas e caracterizam-se como um

    espao ainda no consensual sobre a presena feminina. O que talvez possa ser apreendido

    atravs da perspectiva de Wacquant (2002) em sua obra Corpo e Alma: notas etnogrficas de

    um aprendiz de boxe.

    O autor investigou o boxe, inserindo-se nos espaos e processo de formao do

    atleta, e diz que tanto a modalidade [e ns estendemos esta concepo para as demais lutas]

    quanto os espaos de treinos e confrontos foram pensados e arquitetados pelos homens e para

    os homens, sem a participao das mulheres (WACQUANT, 2002). Isso significa que para se

    inserirem nestes espaos e prticas elas tiveram que se ajustar ao que j havia sido colocado

    como cdigos por eles.

    As lutas que compe este estudo so modalidades de combate entre dois atletas,

    cada qual com menor ou maior possibilidade e diversidade de tcnicas de ataque e defesa, em

    que se utiliza: no Boxe, apenas os punhos com luvas especficas, de 10 onas (284g), a fim de

    somar pontos; na LO, os atletas podem fazer uso dos membros inferiores e superiores, na

    inteno de imobilizar o adversrio com as costas no cho; e no MMA, utiliza-se um

    conjunto de tcnicas de vrias lutas, em que o atleta pode fazer uso de todo o corpo com o

    objetivo de finalizar o oponente, seja por nocaute ou imobilizaes. obrigatrio o uso de

    luvas especficas, de 4 a 6 onas (de 113 a 170g)8.

    Dessa forma, buscamos responder a seguinte questo central do estudo: Quais os

    eventos e experincias pelas quais as mulheres que levaram adiante uma carreira como

    lutadora passaram, apesar dos elaborados argumentos sociais que funcionariam como

    inibidores de tal atitude?. E a partir desta, outras questes orientadoras se desdobraram:

    Como se d o processo de insero e permanncia de mulheres atletas nas lutas? Quais so

    os significados, as motivaes e as dificuldades identificadas na construo de suas carreiras?

    Devido aos anos de dedicao aos treinos para a construo de suas carreiras, que mudanas

    7 O Boxe, com inicial maiscula, ser aqui utilizado para designar o Boxe Olmpico, uma das modalidades de

    investigao deste estudo. 8As caractersticas de cada uma dessas modalidades de lutas sero detalhadas no Captulo 3 Caminhos

    Investigativos.

  • 19

    corporais so percebidas e como lidam com essas modificaes? Que feminilidades so

    construdas por essas mulheres atletas?. A seguir apresento os objetivos da investigao:

    a) Compreender como se d o processo de insero e permanncia dessas

    mulheres nas lutas;

    b) Identificar os significados, as motivaes, assim como, as dificuldades na

    construo de suas carreiras;

    c) Identificar as representaes de feminilidades dessas mulheres atletas e analisar

    at que ponto se aproximam e/ou distanciam de uma representao hegemnica

    de feminilidade.

    Os motivos que justificam e nos levam a investigar este tema compreender

    como a trajetria dessas mulheres que fazem das lutas a sua profisso ajuda a reescrever e

    reconstruir as relaes de gnero no cenrio esportivo, alm de termos a inteno de

    contribuir para a ampliao da discusso da literatura sobre as mulheres que lutam. Por isso,

    entendemos ser importante dar voz a estas atletas que transcendem e transgridem o

    convencional sobre as prticas esportivas para as mulheres e constroem seus modos de ser e

    viver feminilidades atravs das lutas.

    Este estudo foi escrito na forma monogrfica e apresenta-se organizado da

    seguinte forma: expostas a problematizao, questes orientadoras, os objetivos e a

    justificativa no Captulo 1 Introduo, o Captulo 2 Constituio do Estudo contempla

    os pressupostos tericos que do suporte investigao, como modernidade e identidade,

    poder e gnero, alm de trazer uma breve relao entre as prticas esportivas e as

    representaes de feminilidades; no Captulo 3 Caminhos Investigativos, trazemos a

    descrio do tipo de abordagem, instrumentos e tcnicas de anlise dos dados. Trata-se de um

    estudo de abordagem qualitativa e carter descritivo, cujo principal instrumento de coleta de

    dados foi a entrevista semiestruturada aplicada a seis atletas de representatividade nacional e

    internacional em suas modalidades. Para a anlise dos dados utilizamos a categorizao

    temtica. Neste captulo ainda so apresentadas as participantes do estudo, as caractersticas

    das modalidades e os locais de treinamento visitados durante a pesquisa.

    A anlise de dados se desenvolve o Captulo 4 Tornar-se lutadora no qual

    buscamos desenhar os seus projetos esportivos, focando o primeiro subitem no processo de

    insero e permanncia das atletas nas lutas os fatores internos e externos, os agentes e

    experincias que participaram do processo ; no segundo, trazemos as principais dificuldades,

  • 20

    conquistas e significados, a fim de entender os motivos que as instigaram a manter-se como

    lutadoras das modalidades investigadas. No terceiro subcaptulo trazemos a problemtica das

    mulheres que lutam e o paradoxo das feminilidades plurais, em que trazemos a rotina de

    treinos das lutadoras, alm de buscarmos evidenciar o conflito entre a identificao com o

    ofcio de lutadora e as representaes de feminilidades, que se constituem em meio ao jogo de

    resistncias e assujeitamentos ao que est posto como norma; o Captulo 5 Apontamentos

    Finais aponta para as principais concluses resultantes do estudo; e, aps este ltimo

    captulo, encontram-se listadas as referncias utilizadas, seguido dos anexos.

  • 21

    2) CONSTITUIO DO ESTUDO

    2.1) Modernidade e identidade lquidas.

    Incialmente, refletimos a cerca da modernidade e identidades atravs das obras de

    Bauman (2001; 2005). Zygmunt Bauman um socilogo polons nascido em 1925, que

    publicou mais de cinquenta livros. A teoria da liquidez encontra-se em grande parte de suas

    obras, principalmente, a partir da dcada de 1990, por identificar nesta fase as caractersticas

    da fluidez, instabilidade e transitoriedade do tempo e nas relaes.

    Nesta fase atual, o tempo e o espao apresentam-se relativos e mais maleveis,

    rompendo com a imutabilidade de outrora. Podemos afirmar que nunca houve na histria da

    humanidade modificaes to velozes. Nos ltimos 150 anos, fomos do cavalo ao foguete; da

    escassez de gua tratada gua encanada nos domiclios; do vapor eletricidade e energia

    nuclear; do telefone analgico aos celulares e internet. Samos do local para o global ou,

    segundo Bauman (2001), de uma fase slida para uma fase lquida.

    A liquidez , para Bauman, uma metfora aos lquidos, cuja caracterstica

    principal a fluidez e, dessa forma, moldam-se conforme o recipiente onde esto contidos

    sem a necessidade de exercermos fora; movem-se com facilidade, escorrem, transbordam.

    Nas relaes humanas, a liquidez diz respeito velocidade com que as situaes penetram, se

    adaptam, transformam e, to rapidamente, abandonam os lugares, as pessoas (BAUMAN,

    2001). Em entrevista revista brasileira ISTO, Bauman esclarece sua concepo de

    liquidez. Afirma que os:

    Lquidos mudam de forma muito rapidamente, sob a menor presso. Na

    verdade, so incapazes de manter a mesma forma por muito tempo. No atual

    estgio lquido da modernidade, os lquidos so deliberadamente impedidos de se solidificarem. A temperatura elevada - ou seja, o impulso de

    transgredir, de substituir, de acelerar a circulao de mercadorias rentveis -

    no d ao fluxo uma oportunidade de abrandar, nem o tempo necessrio para

    condensar e solidificar-se em formas estveis, com uma maior expectativa de

    vida9 (ISTO, 2010).

    O prprio perodo de escrita e publicao do livro Modernidade Lquida nos

    assinala sobre a teoria da liquidez de Bauman. A obra foi produzida e lanada na virada do

    sculo XX para o XXI. Neste momento, vivamos um perodo turbulento e incerto. Diversas

    9 Disponvel em: http://www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhe/102755_VIVEMOS+TEMPOS+

    LIQUIDOS+NADA+E+PARA+DURAR. Acesso em 16/mai./2013.

  • 22

    previses sobre o bug do milnio trouxeram o medo pela possibilidade de panes

    tecnolgicas em todo o mundo. O mais comentado dizia sobre os computadores e aplicativos

    tecnolgicos que estariam programados a funcionarem at o ano de 1999, sendo necessrias

    intensas manobras para manter a ordem nos diversos setores da vida moderna onde a

    tecnologia computacional se faz presente. Fato que no se concretizou. Somado a isto, a

    prpria virada da dcada, do sculo, do milnio gerou na populao mundial expectativas por

    uma transformao radical; suscitou a esperana de, enfim, estarmos rompendo com o

    passado. Um passado slido, de estruturas rgidas, marcado pela tradio.

    Certamente, adentramos um novo tempo. Entramos, de acordo com a concepo

    de Bauman, na modernidade lquida em que estruturas slidas como as tradies, as

    crenas, as obrigaes e o totalitarismo poltico se derreteram, mas tambm, abriram espao

    para novos e aperfeioados slidos, na medida em que nenhum molde pode ser quebrado sem

    que por outro seja substitudo (BAUMAN, 2001). Principalmente, aps a Segunda Guerra

    Mundial, uma vontade de liberdade se fez presente nas sociedades. Vontade esta que tida

    como o alicerce da modernidade lquida, ao mesmo tempo em que gera medo, por estar em

    oposio segurana construda em torno de uma vida social estvel na ordem moderna de

    outrora.

    Na modernidade lquida, h de estar clara que no existe a inteno de abandono

    s normas e regras sociais: a liberdade incide da emancipao de crenas e integrao de

    novos valores. Ou seja, a existncia de normas e regras condio necessria para que haja o

    exerccio da liberdade. Nesse sentido, o indivduo pode agir de acordo com seus impulsos e

    desejos, mas, assumindo-se como responsvel por seu prprio destino e pelas consequncias

    de seus atos (BAUMAN, 2001). neste contexto de liquidez que as identidades (tnicas,

    religiosas, de gnero) so construdas, se moldam e adaptam-se s circunstncias e interesses

    individuais que, tambm, coletivo.

    Na verdade, para Bauman (2005), no existe uma identidade em si, mas apenas

    direes ou um horizonte pelo qual nos orientamos e por onde podemos chegar a mltiplos e

    diferentes destinos, que nunca so definitivos. O mais importante para o autor no o lugar

    almejado, mas o caminho a ser percorrido. Caminho este imprevisvel e cercado de

    artimanhas e perigos desconhecidos.

    Embora o socilogo reconhea a inexistncia de uma identidade unitria, ele se

    utiliza de meios (meramente didticos) para explicar a construo da identidade. Uma

    metfora presente em seus textos a do quebra-cabea incompleto: o quebra-cabea por

    entender que as identidades seriam construdas por vrias peas (peas identitrias); e

  • 23

    incompleto porque, diferentemente do brinquedo em que se conhece uma imagem final a ser

    construda, a identidade jamais conheceria um resultado definitivo, uma vez que so

    constitudas dos inmeros pedaos de vrias imagens distintas, por vezes conflitantes, e

    sempre haver peas faltantes e desconhecidas (BAUMAN, 2005).

    Stuart Hall (2003) compartilha a perspectiva de Bauman e afirma que o sujeito de

    identidade nica e estvel est se tornando fragmentado, sendo composto de vrias

    identidades, algumas vezes contraditrias, no havendo mais uma identidade fixa, essencial

    ou permanente. As identidades so continuamente transformadas nos sistemas culturais ao

    qual pertencemos [e/ou temos acesso] e definida histrica e no biologicamente.

    Estas peas identitrias, ento, flutuam em nosso meio cultural e so lanadas

    pelos diversos setores sociais que nos cercam, como: famlia, amigos, escola, igreja, leis,

    medicina, mdias, os esportes, e ainda por ns mesmos, atravs da influncia sofrida pelos

    setores sociais, mas tambm, atravs de buscas independentes. Nas palavras de Bauman: As

    identidades flutuam no ar, algumas de nossa escolha, mas outras infladas e lanadas pelas

    pessoas em nossa volta, e preciso estar em alerta constante para defender as primeiras em

    relao s ltimas (BAUMAN, 2005, p. 19).

    Nesta perspectiva, o sujeito pode assumir identidades diferentes e no unificadas

    em momentos distintos dentro de um mesmo eu. Por isso, identificao um termo que,

    segundo Hall (2003), melhor define as vrias possveis identidades que o sujeito perder,

    ganhar ou assumir no processo de constituio se si. Pois, medida que os sistemas de

    significao e representao cultural se multiplicam, somos confrontados por uma pluralidade

    de identidades possveis, com as quais poderamos nos identificar, ao menos

    temporariamente.

    Por outro lado, nossa sociedade do tempo presente ambgua, uma vez que rejeita

    condutas de inflexibilidade, ao mesmo tempo em que reprime nossas escolhas quando so

    contrrias quelas incentivadas e representadas como ideais pelos inmeros setores sociais,

    constituindo-se em mecanismos de poder. Nesta perspectiva, o exerccio da liberdade torna-se

    rduo, por se estabelecer atravs de enfrentamentos as regras e normas sociais sendo, assim,

    despertada uma necessidade de pertencimento: busca-se ser diferente, mas no nico. E nisto

    incluem-se a utilizao de produtos, marcas, estilos, valores, comportamentos e identidades.

    Neste contexto, a globalizao um significativo fator de influncia sobre nossas

    escolhas pessoais (BAUMAN, 2005, HALL, 2003). As fronteiras no so mais fsicas.

    Atravs dos espaos e ambientes virtuais e dos meios de transporte cada vez mais avanados,

  • 24

    possvel transitar por diferentes povos e culturas, absorver variadas praxes e experimentar

    diferentes situaes.

    A globalizao tem a possibilidade de contestar e deslocar as identidades

    centradas e produzir formas mais plurais de identificao, marcadas por histrias particulares

    ao mesmo tempo em que podem carregar traos das culturas tradicionais. Ou seja, influncias,

    experincias, interdies e incentivos fundem-se na constituio dos sujeitos, que refletem em

    suas escolhas e seus modos de ser e de viver.

    2.2) Breve incurso sobre poder e gnero.

    Primeiramente, julgamos importante situar o leitor que a concepo de poder que

    se estabelece neste estudo a do filsofo francs Michael Foucault (1926-1984). A temtica

    do poder se encontra em grande parte de suas obras, principalmente, a partir da dcada de

    1970, quando do desenvolvimento de uma Histria da violncia nas prises em sua obra

    Vigiar e Punir. Porm, no se tratava de um objetivo principal o desenvolvimento de uma

    genealogia do poder. Em uma entrevista denominada Sujeito e Poder, o filsofo

    esclarece:

    Eu gostaria de dizer, antes de mais nada, qual foi o objetivo do meu

    trabalhonos ltimos vinte anos. No foi analisar o fenmeno do poder nem

    elaborar os fundamentos de tal anlise. Meu objetivo, ao contrrio, foi criar

    uma histria dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres

    humanos tornam-se sujeitos (FOUCAULT, 1995, p. 231).

    Para Foucault (2012c) nos tornamos quem somos por meio da incorporao de

    subjetividades que, por sua vez, se refere a processos que so organizados e que organizam

    prticas de si e tm suas foras nos discursos e na relao saber-poder, ao mesmo tempo em

    que demonstram descontinuidades das formas histricas. Ou seja, o estudo do poder mostrou-

    se um envolvimento conceitual inevitvel a fim de compreender as relaes de fora

    existentes no processo de constituio dos sujeitos.

    Ao desenvolver a problemtica, Foucault admitiu idas e vindas, pois, no havia a

    inteno de fomentar uma relao negativa em torno do poder, mas sim construir uma nova

    concepo. O autor percebia que ao se falar em poder comumente as pessoas pensam sobre

    uma estrutura poltica, governo, agente, instituio, rgo ou grupo repressor que o detm e

    todos os outros so a ele subordinados. De outra forma, porm, o filsofo afirma que em

    qualquer relao humana, sejam elas, amorosas, institucionais ou econmicas, o poder est

  • 25

    presente. A soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma dominao nada

    mais so que suas formas terminais. Em suas palavras:

    Parece-me que se deve compreender o poder primeiro, como a

    multiplicidade de correlaes de foras imanentes ao domnio onde se

    exercem e constitutivas de sua organizao; o jogo que, atravs de lutas e

    afrontamentos incessantes as transforma, refora, inverte; os apoios que tais

    correlaes de foras encontram umas nas outras, formando cadeias ou

    sistemas ou ao contrrio, as defasagens e contradies que as isolam entre si;

    enfim as estratgias em que se originam e cujo esboo geral ou cristalizao

    institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulao da lei, nas

    hegemonias sociais (FOUCAULT, 2011, p. 102-103).

    O que se pretende ressaltar que Foucault no teve como objetivo negar o papel

    do Estado nas relaes de poder das diferentes sociedades, mas sim, argumentar a existncia

    de micropoderes ascendentes que se relacionam entre si e com o nvel mais geral dessa

    relao de foras constitudo pelo Estado; que numa concepo tradicional de poder

    prevalecia a ideia de manipulao de um ser soberano sobre os outros e, diferentemente, em

    sua concepo a opresso ou submisso unilateral um princpio equivocado. O poder no

    tem apenas o lado negativo que impede e cobe, mas tambm uma face positiva que incita,

    produz: aes, saberes (FOUCAULT, 2012a).

    Foucault defende que o poder no um objeto ou uma coisa a ser possuda. Mas,

    relaes mveis que so exercidas discursivamente em vrios pontos e em diferentes nveis da

    sociedade, de modo que a existncia de um exterior no possvel. Segundo autor [...] o

    poder est em toda parte; no porque englobe tudo e sim porque provm de todos os lugares

    (FOUCAULT, 2011, p. 103). Assim, o exerccio das relaes de poder acontecem desde as

    pequenas situaes do relacionamento humano at os nveis institucionais mais altos do

    Estado. Podemos, ento, perceber que para o filsofo toda relao consiste em relaes de

    poder, sendo possvel, neste momento abordar a concepo de gnero que constituir este

    estudo.

    Segundo Scott (1995) no h como falar de gnero sem considerar o seu carter

    relacional, na medida em que a autora entende que mulheres e homens so definidos e

    diferenciados um em relao ao outro, o que no sentido foucaultiano constitui-se em relaes

    de poder. Em outras palavras, o gnero uma forma primeira de significar as relaes de

    poder (p. 86).

    Conceitualmente, o termo gnero desestabilizou a afirmao de que homens e

    mulheres constroem-se masculinos e femininos pelas diferenas corporais e que estas

  • 26

    poderiam justificar certas desigualdades e lhes atribuir funes e papis sociais. Por isso,

    tornou-se uma palavra particularmente til, por oferecer um meio de distinguir a prtica

    sexual dos papis sexuais atribudos s mulheres e aos homens. E ainda, possibilitou

    identificar que corpos, gestualidades e as representaes de beleza, performance e

    sexualidade so construdas historicamente as quais, em diferentes contextos culturais10,

    foram associadas s representaes de feminilidades e masculinidades. Dessa forma,

    entendemos o gnero como:

    a condio social por meio da qual nos identificamos como masculinos e

    femininos. diferente de sexo, termo usado para identificar as

    caractersticas anatmicas que diferenciam os homens das mulheres e vice-

    versa. O gnero, portanto, no algo que est dado, mas construdo social

    e culturalmente e envolve um conjunto de processos que vo marcando os

    corpos, a partir daquilo que se identifica ser masculino e/ou feminino

    (GOELLNER, 2010, p. 75).

    Enquanto categoria de anlise, gnero, melhor abrange o que as diversas

    sociedades e culturas humanas representam sobre feminino e/ou masculino. No entanto, faz-se

    necessrio esclarecer que no se trata de negar a biologia ou tomar a cultura como destino,

    mas problematizar que as posies e ocupaes sociais de mulheres e homens numa dada

    sociedade e tempo muito mais fundamentada em contextos culturais do que fruto da

    anatomia de seus corpos. Isso significa dizer que o gnero performativo, na medida em que

    se institui atravs da repetio dos atos, da estilizao dos corpos em que vrios tipos de

    encenaes ajudam a constituir a iluso de um dcil self generificado, inclusive para os

    prprios atores, que acabam acreditando e encenando de acordo com sua crena (BUTLER,

    2010).

    Louro (2008a) complementa sobre a construo do gnero e sexualidade,

    destacando a influncia de especialistas. A autora afirma que se trata de um procedimento

    minucioso, sutil e sempre inacabado, que acontece ao longo de toda a vida atravs de

    aprendizagens e prticas explcitas ou dissimuladas que so incentivadas pelas inmeras

    instncias e espaos sociais famlia, escola, igreja, instituies legais e mdicas e as mdias

    e tm o poder de decidir e inscrever em nossos corpos marcas e normas que devem ser

    seguidas. Em suas palavras:

    10A cultura, do ponto de vista antropolgico, entendida como um conjunto de crenas, valores e hbitos que so

    incorporados pelos sujeitos atravs do convvio em uma determinada comunidade (LARAIA, 2001), em que

    podemos perceber estreita relao com a concepo de tradio de Giddens. Para mais, consultar: LARAIA,

    R.B. Cultura: Um conceito antropolgico. 14 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

  • 27

    Especialistas das mais diversas reas dizem-nos o que vestir, como andar, o

    que comer (como e quando e quanto comer), o que fazer para conquistar (e

    para manter) um parceiro ou parceira amoroso/a, como se apresentar para

    conseguir um emprego (ou para ir a uma festa), como ficar de bem com a

    vida, como se mostrar sensual, como aparentar sucesso, como... ser (LOURO, 2008a, p. 17-18).

    Ou seja, desde a infncia as condutas que no reforam as diferenas entre

    mulheres e homens so consideradas imprprias e, por isso, so desestimuladas, de modo a

    perpetuar que as feminilidades e as masculinidades constituem-se extremidades opostas que

    no devem ser aproximadas. Especificamente s mulheres, focando no estudo, espera-se e se

    incentiva uma representao idealizada em que seu comportamento e gestos sejam suaves,

    delicados, controlados, passivos.

    Adelman (2003 apud BORDO, 1997) explica que essa feminilidade hegemnica

    vivida dentro de uma esttica da limitao, em que os comportamentos e corporalidade

    femininos so produzidos atravs da aceitao de restries e da limitao da viso, ambas

    construdas sobre o reconhecimento da falta do poder. Neste sentido, quaisquer outras

    possibilidades manifestadas em seus modos e corpo, como a fora, a determinao, a

    coragem, a ousadia e as atitudes mais ativas no so vistas com unanimidade, podendo ser

    considerados como desvio/transgresso.

    Segundo Becker (2009), o comportamento normal das pessoas em nossa

    sociedade (e provavelmente em qualquer sociedade) pode ser visto como uma srie de

    compromissos progressivamente crescentes, com normas e instituies convencionais (p.

    38). J os desviantes so aqueles que transgridem a estes atos, comportamentos ou mesmo

    rotinas considerados convencionais pela maior parcela de uma sociedade. O autor, no entanto,

    diz que as regras sociais so construdas por meio de processos em que alguns grupos

    conseguem impor seus pontos de vista como mais legtimos que outros. Ou seja, o desvio, no

    inerente aos atos ou aos indivduos que os praticam, mas sim, reside na representao do

    outro que a este reage.

    Para Foucault (2012b), importante perceber que as relaes de poder se

    constituem por disposies, manobras, tticas, tcnicas e funcionamentos que so

    exercidas sobre sujeitos livres que, por sua vez, as resistem, contestam, respondem, aceitam,

    se submeteme/ou transformam de acordo com as possibilidades e interesses individuais e

    coletivos. Ao defender o carter relacional do poder, afirma que onde h poder h

  • 28

    resistncia, por isso, as relaes de poder no podem existir seno em funo de uma

    multiplicidade de pontos de resistncia. Segundo o autor:

    [...] no existe, com respeito ao poder, um lugar da grande Recusa [...]. Mas

    sim, resistncias, no plural, que so casos nicos: possveis, necessrias,

    improvveis, espontneas, selvagens, solitrias, planejadas, arrastadas,

    violentas, irreconciliveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas

    ao sacrifcio (FOUCAULT, 2011, p. 106, grifo do autor).

    O filsofo afirma que os pontos de resistncia so mveis e transitrios, e no

    podem ser entendidos como a face negativa das relaes de poder, fadada a derrota. De outra

    forma, afirma que as resistncias so o outro termo nas relaes de poder que podem

    inflamar, de forma mais ou menos regular entre grupos e indivduos, certos pontos do corpo,

    certos momentos de vida, certos tipos de comportamento (FOUCAULT, 2011, p. 106).

    Nesse sentido, so em meio s resistncias que sujeitos e grupos encontram diversificadas

    formasde exerccio das prticas de liberdade.

    Segundo Foucault, onde as determinaes encontram-se saturadas, na verdade,

    no existem relaes de poder. Pelo contrrio, num estado de absoluta dominao, as relaes

    de poder so inexistentes e as prticas de liberdade encontram-se, em grande medida,

    esgotadas ou limitadas. na identificao do ponto em que se formar a resistncia, que um

    novo campo de relaes de poder e de prticas de liberdade se abrir (Op. Cit.).

    Dessa forma, se a base identitria de gnero dada pela repetio estilizada dos

    atos atravs do tempo, como forma de assujeitamento cultura, ento, as possibilidades de

    transformao se encontram nas relaes arbitrrias entre os atos, na possibilidade de outras

    formas de repetio ou ainda na quebra da repetio subversiva desse estilo (BUTLER,

    2010.). Ou seja, as prticas de liberdade abrem outras possibilidades de ser, viver e

    representar feminilidades e/ou masculinidades por meio da experincia.

    A experincia sempre criaes discursivas, tidas como invenes dos sujeitos no

    exerccio de sua constituio. Trata-se de vivncias singulares que no existiam antes e nem

    existiro depois, alm de serem capazes de desprender o sujeito de si, de modo que ele no

    seja mais o mesmo e se reconhea em constante reconstruo. Dessa forma, entendemos a

    experincia como a racionalizao de um processo, ele prprio provisrio, que termina num

    sujeito ou em vrios sujeitos (FOUCAULT, 2012c, p. 137).

    Nesse sentido, as prticas esportivas enquanto experincia para as mulheres

    constituem o rol de atividades que podem interferir diretamente na construo e representao

    da feminilidade hegemnica que, por sua vez, possui histria e se adapta ao contexto onde

  • 29

    est inserida. Atravs de estratgias discursivas, busca-se diferenciar o que , e o que no ,

    adequado s meninas e mulheres. Assim, por meio da literatura e matrias miditicas

    buscaremos apontar historicamente algumas mudanas ou vontade de mudana nas

    representaes.

    2.3) Carreira esportiva e representaes de feminilidades

    A relao entre a carreira de atleta, ou mesmo as prticas esportivas, e as

    representaes de feminilidades no recente. Ao atravessarmos a histria, notvel a

    perspectiva de que os esportes e seus valores constituem em uma rea de reserva masculina

    (DUNNING, 1992). A histria das mulheres encarou a total proibio de sua participao na

    primeira edio dos Jogos Olmpicos da Era Moderna11

    , justificado pelo discurso biologicista

    de que os esportes, bem como as competies, no faziam parte de uma natureza feminina.

    No Brasil, sem confronto direto com os homens por uma redistribuio no

    territrio esportivo, mas por meio de infiltraes elas paulatinamente foram (e ainda esto)

    ocupando espaos, de forma a desafiar o status quo e comprovar sua capacidade em

    diferentes modalidades e nveis de atuao (arbitragem, comisso tcnica, atleta), mas nunca

    livre de recomendaes e/ou questionamentos (MOURO, 1998).

    H evidncias de mulheres envolvidas em certa diversidade de prticas esportivas,

    na dcada de 1930 a fim de constituir um corpo forte capaz de gerar filhos fortes para

    desenvolver a nao. Nesse sentido, Devide (2004) afirma que a natao, a ginstica, a

    dana, o remo, a esgrima e o turfe foram eleitos como os mais adequados biologia das

    futuras mes (p. 132). A natao, neste contexto, foi tida como adequada natureza

    feminina, por no masculiniz-la ou comprometer-lhe a graa e, por isso, poderiam at

    competir. Dessa forma, a modalidade tornou-se porta de entrada das brasileiras em Jogos

    Olmpicos e na carreira de atleta. O pas esteve representado pela nadadora Maria Lenk no

    ano de 1932, nos Jogos de Los Angeles.

    Entretanto, percebendo a ocupao do cenrio esportivo pelas mulheres, muitas

    modalidades foram a elas desaconselhadas, na inteno de coibir aquelas consideradas

    imprprias sua natureza. o caso de algumas provas do atletismo como o salto com vara,

    11 Sobre a histria das mulheres nos Jogos Olmpicos da Era Moderna sugiro a leitura de TURINI, M.;

    DACOSTA, L. (Editores) Coletnea de Textos em Estudos Olmpicos. Vol. 1. Rio de Janeiro: Gama Filho,

    2002, em especial, o conjunto de artigos que compe a Parte 7 Histria do Esporte, Gnero, Amadorismo e Turismo no Movimento Olmpico, Memorabilia Olmpica.

  • 30

    salto triplo, decatlo e pentatlo, e aquelas proibidas com fora de lei, como os esportes listados

    no Decreto-lei 3199/41 (GOELLNER, 2009). E as permitidas, deveriam sempre ser praticadas

    dentro de certos limites. Entretanto, elas desafiaram as representaes hegemnicas e pouco a

    pouco criaram oportunidades de pertencimento nas diversas modalidades, preenchendo

    brechas.

    Por outro lado, as mulheres sempre esbarraram na carncia de reconhecimento e

    possibilidades de participao em competies de eventos considerados mistos. O atletismo

    nos Jogos Olmpicos um interessante exemplo da busca por maior insero no cenrio

    esportivo pelas mulheres. Nessa perspectiva, desde a primeira autorizao participao das

    mulheres na segunda edio dos Jogos Olmpicos da Era Moderna, no ano de 1900, na cidade

    de Paris, o atletismo esteve entre as modalidades a elas proibidas pelo Comit Olmpico

    Internacional (COI). Acreditava-se que os saltos e as corridas de meio fundo e fundo

    acarretariam danos a seus rgos reprodutores.

    Internacionalmente, este fato impulsionou a francesa Alice Milliat a reivindicar ao

    COI o direito de as mulheres terem o mesmo programa olmpico que os homens, cuja

    negativa a inspirou na fundao da Federao Esportiva Feminina Internacional (FEFI) em

    1921 que, em 1922 na cidade de Paris. Na ocasio, foi organizada a primeira edio dos Jogos

    Olmpicos Femininos para exclusiva participao das mulheres, que reuniu mais de vinte mil

    espectadores e atletas em onze provas. Aps a primeira edio, a FEFI reeditou o evento com

    o nome de Jogos Femininos Mundiais (The Womens World Games) a cada quatro anos, at

    1934, com um programa de provas maior que o olmpico que inclua modalidades por eles

    proibidas, como as provas de salto e longas distncias do atletismo. A perseverana de Alice

    Milliat, e a insistncia de outras mulheres e de alguns idealizadores e protagonistas da

    participao feminina nos Jogos Olmpicos, e prticas esportivas como um todo, aos poucos

    levou o COI a inserir as modalidades do atletismo no programa olmpico para as mulheres.

    (MIRAGAYA, 2002).

    Este contexto inspirou o Brasil, que tambm teve organizados em alguns centros

    urbanos competies para a participao exclusivamente feminina, cuja primeira edio

    aconteceu, respectivamente, em 1935, os Jogos Femininos do Estado de So Paulo; em 1949,

    os Jogos da Primavera no Rio de Janeiro; e em 1954, os Jogos Abertos Femininos em Porto

    Alegre (GOELLNER, 2009). Alm disso, a primeira representao brasileira no atletismo em

    Olimpadas se deu atravs de Ada dos Santos, na prova de salto em altura, na edio dos

    Jogos de Tquio, no ano de 1964 (MOURO, 1998).

  • 31

    Estes eventos esportivos voltados para as mulheres, porm, apresentavam certos

    dualismos: primeiro porque, ao mesmo tempo em que se observavam discursos acerca da

    importncia da participao feminina no universo da cultura fsica, pairavam no ar os anseios

    sobre as mulheres esportistas, que estariam passando demasiado tempo fora de casa para os

    treinos e competies; outro ponto diz sobre a ameaa que os esportes representavam

    graciosidade das atletas, cujos organizadores buscavam minimizar atravs dos concursos de

    beleza constitutivos destes eventos.

    Mesmo as prticas esportivas tidas como ideais para as mulheres so cerceadas

    pelos discursos da feminilidade. O vlei, por exemplo, era, e ainda , visto como um esporte

    de tcnica e no de fora. A rede que separa as duas equipes e impede o contato direto um

    elemento fundamental para que a modalidade seja adequada s mulheres. Mesmo assim,

    Dalsin e Goellner (2006) perceberam nas narrativas da imprensa local portoalegrense, de

    meados do sculo XX sobre as jogadoras de vlei, que as imagens veiculadas nunca eram das

    atletas em momentos de jogo em que se apresentam suadas e desarrumadas. Contrariamente,

    preservava-se a imagem de uma vitalidade delicada das mulheres, conferida pela prtica

    esportiva. Ou seja, o cuidado com a aparncia no poderia ser deixado de lado em detrimento

    da prtica esportiva.

    Para alm da aparncia, no ano de 1998, um episdio envolvendo a jogadora de

    vlei da seleo brasileira, rika Coimbra, nos mostra o quanto que, mesmo a modalidade

    considerada um esporte feminino, a tcnica deve prevalecer sobre a fora. Pois, por sua

    potente cortada, a atleta teve a feminilidade questionada, tendo que submeter-se a uma

    cirurgia para correo da taxa hormonal e, assim, adquirir o carto rosa exigido pela

    Federao Internacional de Voleibol (FIVB):

    Aos 18 [anos], ela viveu um dos momentos mais difceis na carreira. A

    atacante no passou no teste de feminilidade realizado pela Federao

    Internacional de Voleibol (Fivb) durante o Campeonato Mundial Juvenil de

    1997. No exame foi detectado excesso de testosterona (hormnio

    masculino), e a federao obrigou o tcnico Bernardinho a cortar a jogadora

    da competio, sob ameaa de desclassificar o Brasil. Clubes que

    disputavam a Superliga tambm questionaram a presena de rika. A

    atleta tinha uma m formao dos rgos reprodutores e teve de ser

    submetida a uma cirurgia e a tratamento hormonal. Um ano depois, aps

    novos testes realizados na Europa, rika conseguiu o "carto rosa" e pde

    voltar seleo12

    (UOL, 2004, grifo nosso).

    12Disponvel em http://esporte.uol.com.br/olimpiadas/brasileiros/volei/erikavolei.jhtm Acesso em: 31/mai./2013.

  • 32

    Cerca de vinte anos antes deste acontecimento, o governo de Ernesto Geisel

    (1974-1978) props a redemocratizao do pas de forma lenta, segura e gradual. Dessa

    forma, como fruto das reivindicaes do Movimento Feminista13

    , abriu-se espao para a

    discusso sobre a maior participao das mulheres na sociedade (ASSIS, 1985). Em 1976 foi

    criada uma Comisso Parlamentar Mista de Inqurito (CPMI) para examinar a situao das

    mulheres nos mbitos social, poltico, econmico, trabalhista e, dentre outros, tambm no

    cenrio esportivo. Durante o ano de 1977 foram ouvidas 32 mulheres, inclusive a nadadora

    Maria Lenk, que reivindicavam o direito de usufrurem de seus corpos e de se exporem ou no

    periculosidade dos esportes de contato e alto impacto e, dessa forma, sugeriam a revogao

    da lei que prejudicava a participao das mulheres em determinados desportos (SOUZA;

    MOURO, 2011).

    A CPMI foi concluda em 1978 e, em clima de mudana no meio esportivo, no

    ano seguinte, um importante acontecimento no cenrio das lutas influenciaria diretamente a

    revogao do Decreto-lei 3199/41. Em outubro de 1979, uma equipe feminina composta por

    quatro judocas viajou com a seleo brasileira para o Campeonato Sulamericano de Jud.

    Aps a polmica participao dessas mulheres, em dezembro do mesmo ano, o CDN revogou

    a deliberao no 7/65e a substituiu pela deliberao n

    o 10/79. Neste documento, o presidente

    em exerccio do CND baixou instrues s entidades desportivas do pas para a prtica de

    desportos pelas mulheres (Op. Cit.).

    A dcada de 1980 foi promissora no que diz respeito criao de rgos oficiais

    que visavam conferir maior representatividade feminina. o caso do Conselho Estadual da

    Condio Feminina de So Paulo, criado em 1983 e o Conselho Nacional dos Direitos da

    Mulher, em 1985. E no que diz respeito s prticas esportivas, em 1986, o CND admitiu

    atravs da Recomendao n 2, a importncia da mulher participar das diversas modalidades

    esportivas do pas, inclusive as lutas, aumentando a participao das mulheres em

    competies. As autoras dizem que ainda em 1980, aconteceu o I Campeonato Brasileiro de

    13 O Movimento Feminista conheceu seu auge na dcada de 1960, principalmente, nos Estados Unidos, e

    encontra-se como uma vertente da contracultura que, Goffman e Joy (2007) entendem como uma incitao

    liberdade de pensamento e constante mudana, e no se restringe a um nico perodo. A contracultura por

    eles pensada em diferentes contextos desde os mitos gregos at os dias atuais. No perodo compreendido entre os

    anos de 1960 e 1970, os autores destacam algumas das manifestaes culturais e comportamentais que surgiram

    como, por exemplo: o rock que ganhou fora com os Beatles e os Rolling Stones; os hippies que imaginavam

    representar um novo estgio da humanidade; e o uso de drogas e alucingeno, sobre os quais afirmaram que mais

    do que o uso qumico por diverso ou fuga das angstias e problemas, representam uma manifestao da

    constante adeso s novas ideias, experincias e formas de viver. Em meados da dcada de 1960 houve tambm

    o nascimento de uma militncia poltica negra e, a partir da dcada de 1970, o desejo de libertao se tornou a

    necessidade de libertao da represso sexual. Para mais, consultar: GOFFMAN, K; JOY, D.: A Contracultura

    atravs dos tempos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.

  • 33

    Jud no Rio de Janeiro, que iria classificar as atletas para o I Campeonato Mundial Feminino

    nos Estados Unidos, no mesmo ano (SOUZA; MOURO, p. 41).

    Com a proximidade do sculo XXI, as mulheres no mais encontram grandes

    resistncias para se inserirem no mercado de trabalho e, em mdia, possuem maior grau de

    escolaridade que os homens. Elas tambm ganham espao no cenrio poltico e nos cargos de

    chefia. Porm, ainda recebem salrios menores para exercerem os mesmos cargos e, apesar de

    estar aumentando o nmero de mulheres, os homens ainda ocupam cerca de 65% dos cargos

    de chefia em nosso pas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica14

    (IBGE,

    2012). No cenrio esportivo, ao tomarmos como referncia apenas o esporte de rendimento,

    ainda hoje, vrias so as situaes de desigualdade entre homens e mulheres. Conforme

    Goellner (2012), para as elas:

    [...] so bem menores os recursos destinados para patrocnios, incentivos,

    premiaes e salrios; em algumas modalidades, a realizao de

    campeonatos bastante restrita e, por vezes, inexistente; h pouca

    visibilidade nos diferentes meios miditicos; a participao de mulheres em

    rgos dirigentes e de gesto do esporte nfima; a insero em funes

    tcnicas, como treinadoras e rbitras, ainda diminuta; federaes,

    confederaes, clubes e associaes esportivas mantm registros precrios

    sobre a participao das mulheres em seus dados oficiais, especialmente no

    que se refere a aspectos histricos (p. 73-74).

    Ou seja, todos os acontecimentos, mesmo os direitos por elas adquiridos, no

    concretizaram uma efetiva conquista como almejado. No cenrio esportivo, embora no

    haja mais uma fora coercitiva em forma de lei que restrinja sua participao, a presena

    feminina ou as dissonncias de certos meios e modalidades ainda causam desconfortos numa

    parcela da sociedade. A maior abertura participao feminina nos esportes no s livraram

    do discurso da feminilidade hegemnica. Os ventos de liberdade que comeou a soprar no

    caracterizaram, de fato, uma libertao das amarras discursivas sociais. A qualidade fsica

    fora acima de certos nveis ainda gera desconfianas quando referentes s mulheres.

    Uma breve comparao, com base nos Jogos Olmpicos, sobre a insero de

    algumas modalidades de lutas para os homens e para as mulheres nos d indcios dessa

    afirmao: respectivamente, para os homens e para as mulheres, o Boxe estreou em 1904 e

    2012; o jud em 1968 e 1992; a LO estilo livre em 1904 e 2004. O taekwondo a nica

    14Informaes do Censo 2010. Disponvel em http://www.censo2010.ibge.gov.br/resultados. Acesso em:

    15/mai./2013.

  • 34

    modalidade de luta que estreou simultaneamente para eles e para elas no ano de 2000. E a LO

    estilo greco-romano estreou em 1896 e ainda exclusivamente masculina15

    .

    Retomando a oposio entre fora e feminilidade outros acontecimentos

    marcaram a carreira e a vida de mulheres atletas. Mais recentemente, no ano de 2005, sob o

    discurso da sade e esttica, as atletas de fisiculturismo foram convocadas pela Federao

    Internacional de Fisiculturismo (International Federation of Body Building - IFBB) a

    diminurem 20% de seu volume muscular. Isso porque o volume muscular de atletas das

    categorias mais pesadas causavam incmodos no olhar, pois, fissuravam as representaes

    dominantes de feminilidade. Tal fato foi um baque para aqueles e aquelas que cultivavam a

    ideia de que essas mulheres poderiam alargar de modo ilimitado as representaes construdas

    acerca de seus corpos e de suas feminilidades no esporte (JAEGER; GOELLNER, 2011, p.

    960).

    Ou seja, a fora, assim como o volume muscular acima do nvel padronizado para

    as mulheres no so esperados a elas; que a feminilidade hegemnica deve estar inscrita, no

    apenas nos gestos, mas tambm na exterioridade do corpo. preciso manter-se ativa sem,

    contudo, ousar. Nas palavras de Goellner (2007, p. 02), s mulheres [...] incentivado viver

    o espetculo esportivo desde que no deixe de lado a beleza e a graciosidade, atributos

    colados uma suposta essncia feminina.

    Assim, entre avanos e retrocessos no cenrio esportivo elas constroem mais do

    que carreiras, mas tambm, formas de representar, ser e viver feminilidades, que podem estar

    mais ou menos prximas das representaes dos setores sociais mais conservadores ou

    daqueles que idealizam/organizam as regras esportivas, principalmente, suas regras para as

    mulheres. No universo das lutas, tambm, podemos perceber oscilaes nas representaes.

    Atravs da pesquisa sobre O Jud Feminino no Brasil possvel apreender que

    a insero de mulheres na modalidade no se deu de forma resistida, se comparadas a lutas de

    outras origens. Embora o incentivo para competies tenha encontrado obstculos, a insero

    de mulheres no jud aconteceu em meados do sculo passado por intermdio da famlia: seus

    pais, descendentes japoneses, por influncia de suas razes, ensinavam a suas filhas e esposas

    tcnicas bsicas, sem entrarem em confronto direto (SOUZA; MOURO, 2011). Podemos

    notar que o combate em si poderia colocar em risco sua feminilidade, mas no o treinamento

    regular.

    15 Dados de CARVALHO, A.M.J. A participao feminina nos Jogos Olmpicos. In TURINI, M.; DA COSTA,

    L. Coletnea de Textos em Estudos Olmpicos. Volume 1, 2002. Atualizado atravs de informaes do Comit

    Olmpico Brasileiro (COB). Disponvel em http://www.cob.org.br/. Acesso em: 06/mai./2013.

  • 35

    No entanto, a judoca Edinanci Silva, no ano de 1996, tambm por sua fora, teve

    a feminilidade questionada. O trecho abaixo, fala da superao da atleta frente situao que,

    contudo, no elimina os momentos de desconfiana enfrentados:

    A judoca Edinanci Fernandes da Silva no precisa de medalhas para garantir

    seu lugar no panteo dos vitoriosos. No tatame da vida, ela golpeia o

    preconceito e defende sua feminilidade. Desde 30 de abril de 1996, quando

    se submeteu a duas cirurgias delicadas - orquiectomia (retirada dos

    testculos) e clitoriodectomia (reconstruo do clitris) -, essa paraibana de

    22 anos passou a desconhecer o sentido da palavra paz. Mas decidiu confiar

    na medicina e seguir em frente. Na primeira operao, os mdicos

    procuraram baixar a produo de testosterona, hormnio masculino. Na

    segunda, as providncias foram de ordem anatmica. Entre traumas e

    maledicncias, Edinanci escapou do rtulo de aberrao e firmou-se

    como mulher. Dona de uma fora descomunal, a maior judoca brasileira

    prepara-se agora para representar o pas no Campeonato Mundial por

    Equipes, nos dias 11, 12 e 13 deste ms, na Bielo-Rssia16

    (POCA, 1998,

    grifo nosso).

    Por outro lado, Moura et al (2010) em entrevista a uma lutadora profissional de

    MMA, verificaram na fala da atleta que a masculinizao do corpo inevitvel, pois a carga

    de treino muito intensa (p. 17). A atleta se refere a sua aparncia musculosa, tida como

    indispensvel a sua atuao como lutadora. Em contrapartida, faz questo de afirmar que

    mantm caractersticas femininas, procurando manter sua vaidade e beleza, fazendo unhas e

    cabelo antes das lutas profissionais; afirma ainda que no quer ser um homem, mas uma

    mulher que luta. Sua fala nos diz que, embora goste de sua aparncia, a lutadora no v como

    uma forma de feminilidade, mas uma das essncias da masculinidade idealizada que a

    musculatura evidente. Goellner (2009) afirma que:

    O termo masculinizao da mulher, regularmente citado quando o assunto se

    refere s imagens de feminilidade, sugere no apenas alteraes no

    comportamento e na conduta das mulheres, mas na sua aparncia: julga-se o

    quo feminina uma mulher tambm pela exterioridade do seu corpo (p.

    289).

    Dentre as lutas que participam desse estudo, a luta [LO] estilo livre ainda hoje

    para muitas pessoas um esporte rude e pouco refinado (ELIAS, 1992). De forma semelhante,

    apesar de toda pasteurizao sofrida pelo pugilismo no decorrer dos tempos, como o uso de

    protetores nas mos e capacete, por amadores, o boxe ainda um esporte considerado muito

    16 Disponvel em http://epoca.globo.com/edic/19980907/socied2.htm Acesso em: 31/mai./2013.

  • 36

    violento, sendo marcantes as imagens sujas de corpos machucados, suor, sangue (MELO;

    VAZ, 2006, p. 143). E ainda, o MMA pode ser considerado hoje a inscrio mxima da

    violncia regrada dentre as lutas, pois, segundo Awi (2012, p. 21), o esporte que mais se

    aproxima de uma briga real.

    Dessa forma, sendo as lutas modalidades esportivas cujas exigncias tcnicas e

    corporais17

    marcam as gestualidades e os corpos dentro daquilo que se concebe uma

    masculinidade hegemnica, as mulheres que com estas se identificam e decidem levar adiante

    uma carreira como lutadora so tidas como transgressoras. No entanto, conforme Becker

    (2009), em sociedades complexas como a nossa existem os grupos dominantes e desviantes,

    assim como diferentes concepes de desvio e noes particulares de regras. O desvio

    inscreve-se em tipos de comportamentos [inclumos aqui gestos e corpos] que alguns

    reprovam e outros valorizam. Por isso, o autor argumenta sobre a necessidade de

    conhecermos as prticas desviantes e os pontos de vista de seus praticantes.

    Assim, almejamos desvendar alguns sentidos e significados sobre as lutas, a

    carreira e as feminilidades a partir de mulheres que dedicam suas vidas ao Boxe, a LO e ao

    MMA. A seguir, apresentamos o referencial e procedimentos metodolgicos que nos ajudaro

    a alcanar os objetivos propostos.

    17 Chamamos de exigncias tcnicas e corporais das lutas o treinamento tcnico e fsico que, normalmente,

    resultam em fortalecimento e desenvolvimento muscular, demonstraes de fora, agressividade e virilidade nos

    treinos e competies.

  • 37

    3) CAMINHOS INVESTIGATIVOS

    O estudo apresenta caractersticas de uma pesquisa qualitativa de carter

    descritivo. Neste tipo de metodologia se enfatiza a descrio, a induo, a teoria

    fundamentada e o estudo das percepes pessoais. Dessa forma, buscaremos compreender os

    sentidos e significados do objeto de estudo trajetria profissional e representaes de

    feminilidades a partir da perspectiva e dos discursos das participantes da investigao

    mulheres atletas de lutas (TRIVIOS, 1987).

    Neste momento, sero apresentadas cada uma das atletas, suas modalidades de

    luta e os locais de treinamento que participam deste estudo. Optamos pela apresentao

    descritiva, a fim de manter a fluncia da escrita.

    3.1) Apresentando as participantes da pesquisa18

    O convite s voluntrias lutadoras aconteceu, num primeiro momento, por

    contato telefnico ou eletrnico (e-mail e/ou redes sociais). Foram contatadas as sete atletas

    da seleo brasileira de jud, uma do taekwondo, trs do Boxe e uma da LO, que participaram

    dos Jogos Olmpicos de Londres no ano de 2012. Alm destas, foi feito contato com outras

    duas atletas da seleo brasileira de LO que no estiveram em Londres, e uma atleta de

    MMA, a fim de constituir um grupo final.

    Participaram da pesquisa, as atletas que aceitaram o convite neste primeiro

    contato, somando seis lutadoras: duas da seleo brasileira de Boxe, Adriana Arajo e rica

    Matos19

    , trs da seleo brasileira de LO, Joice Silva, Las Nunes e Aline Silva, e a lutadora

    de MMA, Ana Maria Gomes. Todas assinaram o Termo de Consentimento Livre e

    Esclarecido (TCLE), conforme modelo do Anexo II, e tambm seus treinadores, exceto da

    atleta de MMA que, na ocasio no estava na presena de seu treinador. So elas:

    Adriana Arajo, pugilista de Boxe Olmpico, 31 anos, solteira, sem filhos e

    possui o ensino mdio completo. natural da cidade de Salvador na Bahia, onde reside e

    treina de segunda a sbado na Academia Champion. Tem como treinador o reconhecido Luiz

    18 As atletas so apresentadas na ordem em que aconteceram as entrevistas.

    19 As boxeadoras que representaram o pas em Londres-2012 estiveram cortadas da seleo durante o ano de

    2013. Disponvel em: http://www.lancenet.com.br/minuto/Cortada-Selecao-medalhista-perseguicao-

    CBBoxe_0_906509522.html. Acesso em: 16/jun./2013. Adriana Arajo retornou seleo em fevereiro de 2014.

    Disponvel em: http://globoesporte.globo.com/boxe/noticia/2014/02/apos-reuniao-adriana-araujo-acerta-o-

    retorno-selecao-brasileira-de-boxe.html. Acesso em 28/abr./2014. E rica Matos, espera do primeiro filho,

    encontra-se afastada do Boxe. Fonte: pgina pessoal da rede social facebook. Acesso em: 28/abr./2014.

  • 38

    Drea20

    e seu filho Luiz Drea Junior. Adriana procurou o Boxe por finalidade esttica, no

    fim da adolescncia, perodo em que deixou de praticar futebol. Entretanto, o primeiro

    treinador ao perceber o seu talento a convidou para participar de uma competio, seis meses

    aps sua entrada no Boxe. Em sua primeira luta, h 13 anos, elegeu a modalidade como sua

    profisso. Adriana a nmero 1 do ranking nacional em sua categoria, at 64 quilos e no

    momento, no est representando nenhum clube. Constituiu a seleo feminina de Boxe que

    estreou em Londres-2012, tendo disputado na categoria at 60 quilos, e garantido a primeira

    medalha (de bronze) do Boxe feminino brasileiro em Olimpadas, o que lhe oportunizou

    constituir o Time Nissan21, empresa que lhe fornece apoio. Sua entrevista encontra-se no

    ANEXO V22

    .

    Figura 1: Adriana Arajo

    Fonte: Pgina pessoal de Adriana da rede social facebook.

    20 Luiz Drea baiano e ex-pugilista campeo mundial em 1988. Ficou famoso como treinador ao levar o

    boxeador Acelino Freitas, o Pop, ao ttulo mundial em 1999. Alm de Pop, passou por suas mos Serto,

    Pedro Lima e os irmos Rodrigo e Rogrio Nogueira. Estes ltimos lhe apresentaram o MMA em 2003. O

    treinador nunca abandonou o boxe, mas adequou-se aos novos tempos, agregando o MMA Academia

    Champion. Com Edilberto Oliveira (Crocot) ocorreu a sua estreia no UFC. Passaram por suas mos os

    reconhecidos Vitor Belfort e Anderson Silva. Hoje treina e agencia o peso pesado do MMA, Jnior dos Santos

    (Cigano). Disponvel em: . Acesso em: 23/out./2013. 21

    O Time Nissan uma equipe de atletas selecionados pela Nissan por meio de carta convite. Estes atletas so

    patrocinados com um carro da Empresa Executora at os Jogos Olmpicos e Paraolmpicos Rio 2016. Disponvel

    em: . Acesso em: 23/out./2013. 22

    As imagens das lutadoras foram selecionadas pela pesquisadora e autorizadas pelas atletas.

  • 39

    rica Matos, outra atleta que participou deste estudo, tambm pugilista de Boxe

    Olmpico e completou 30 anos em maio de 2013. casada, com um atleta de Boxe, no tem

    filhos23

    e completou o ensino mdio. rica praticava futsal quando conheceu o Boxe por

    incentivo e convite de um amigo lutador. Em sua primeira luta, h nove anos, saiu vitoriosa e

    apaixonou-se pela modalidade. A boxeadora natural da cidade de Salvador, na Bahia, onde

    reside. No momento, atleta do Projeto de Boxe do clube So Jos dos Campos, em So

    Paulo. Nos perodos em que est na Bahia, assim como Adriana, rica treina na Academia

    Champion e tm Luiz Dria e seu filho Luiz Drea Junior como seus treinadores. a primeira

    do ranking nacional em sua categoria, at 48 quilos, e tambm participou das Olimpadas de

    Londres-2012 na categoria at 51 quilos. A atleta no conquistou uma medalha olmpica, mas

    sagrou-se a primeira mulher brasileira da histria a boxear em Olimpadas. Sua entrevista est

    disponvel no ANEXO VI.

    Figura 2: rica Matos

    Fonte: Pgina pessoal de rica da rede social facebook.

    Joice Silva atleta de LO estilo livre. Tem 30 anos, solteira e no tem filhos.

    formada em Educao Fsica pela Universidade Gama Filho (UGF) e est cursando ps-

    23 Em seu perfil da rede social facebook a atleta anunciou que est espera de seu primeiro filho.

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    graduao lato sensu em Administrao e Marketing Esportivo. Descobriu a modalidade h

    12 anos atravs de seu treinador de jiu jitsu que a incentivou a frequentar os treinos de LO

    para melhorar sua tcnica no jiu jitsu. Porm, as primeiras competies com vitria, sua

    aptido para o esporte, o fato de este esporte ser olmpico, e as oportunidades que surgiram na

    prtica do esporte, a incentivou na construo de uma carreira na LO. Joice natural da

    cidade do Rio de Janeiro e hoje reside na zona oeste, no bairro de Jacarepagu. Realiza seus

    treinamentos no Centro de Treinamento da FILA na Tijuca e no CEFAN. Joice a primeira

    atleta do ranking nacional em sua categoria, at 58 quilos. Representou o Brasil nas

    Olimpadas de Londres-2012, ainda na categoria at 55 quilos. Embora no tenha conquistado

    medalha, considerada uma das principais atletas da seleo brasileira, pois conquistou a

    dcima terceira posio do ranking mundial por seu desempenho em 2012, na categoria 59

    quilos e hoje ocupa a oitava colocao na categoria que representa no momento; 58 quilos.

    Joice integra, tambm, a equipe de LO da Marinha do Brasil, desde abril de 2013. Sua

    entrevista est disponvel nos ANEXOS VII e VIII.

    Figura 3: Joice Silva

    Fonte: Pgina pessoal de Joice da rede social facebook.

    Las Nunes, tambm atleta de LO e a mais jovem a compor o grupo das

    participantes deste estudo. Tem apenas 21 anos de idade, solteira, no tem filhos e est

    cursando Administrao no Centro Universitrio SantAnna em So Paulo. Possui 8 anos de

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    experincia na modalidade e conheceu a LO por acaso quando, na adolescncia, pensou estar

    entrando num Projeto de Jud, estilo de luta que j havia praticado na infncia. No entanto, as

    primeiras participaes na LO com vitria a incentivou a seguir em frente. Las natural da

    cidade de Barro Alto, em Gois e hoje reside em So Paulo, na cidade de Osasco. atleta da

    equipe do SESI-SP e integra a seleo brasileira de LO. No ano de 2013 atuou pela primeira

    vez na classe Snior. a primeira do ranking nacional em sua categoria, at 63 quilos e

    conquistou a dcima quinta posio no ranking mundial. A atleta ainda no estreou em

    Olimpadas, mas constitui uma das esperanas brasileiras de medalha para a edio dos Jogos

    do Rio-2016. Sua entrevista encontra-se disponvel no ANEXO IX.

    Figura 4: Las Nunes

    Fonte: Pgina pessoal de Las da rede social facebook.

    Aline Silva mais uma atleta de LO. Tem 27 anos, solteira, no tem filhos e

    est cursando Educao Fsica pelo Centro Universitrio SantAnna em So Paulo. Conheceu

    a LO na adolescncia por estmulo de seu treinador que percebia sua desmotivao no jud.

    Aps sua primeira competio, ocasio em que saiu vitoriosa, num torneio internacional que

    acontecera nos Estados Unidos, a atleta ficou maravilhada com o esporte e sua repercusso no

    mundo, e seguiu em frente na LO. Aline natural da cidade de So Paulo, onde reside. A

    atleta compe a equipe do SESI-SP, integra a seleo brasileira de LO e a equipe de LO da

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    Marinha do Brasil. a primeira do ranking nacional em sua categoria, at 72 quilos. A atleta

    no estreou em Olimpadas ainda, e tambm constitui uma das esperanas brasileiras de

    medalha para a edio dos Jogos Olmpicos de 2016 a realizar-se na cidade