Dissertação - Uma Teoria da Justiça - Rawls

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  • 8/14/2019 Dissertao - Uma Teoria da Justia - Rawls

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    UFSM

    Dissertao de Mestrado

    O CONSTRUTIVISMO KANTIANO NA TEORIA DA JUSTIACOMO EQUIDADE DE JOHN RAWLS

    _________________________

    Samir Dessbesel Ferreira

    PPGFIL

    Santa Maria, RS, Brasil

    2006

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    O CONSTRUTIVISMO KANTIANO NA TEORIA DA JUSTIACOMO EQUIDADE DE JOHN RAWLS

    por

    Samir Dessbesel Ferreira

    Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Ps-Graduao em Filosofia, rea de concentrao em Filosofia Transcendental e

    Hermenutica, linha de pesquisa Fundamentao do Agir Humano, daUniversidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito parcial

    para obteno do grau deMestre em Filosofia

    Orientador: Ricardo Bins Di Napoli

    PPGFIL

    Santa Maria, RS, Brasil

    2005

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    SUMRIO

    AGRADECIMENTOS .................................................................................................... IV

    RESUMO...........................................................................................................................V

    ABSTRACT.......... ........................................................................................................... VI

    LISTADEABREVIATURAS..........................................................................................VII

    INTRODUO................................................................................................................1

    CAPTULO 1. CONSTRUTIVISMOECONSTRUTIVISMOKANTIANO ......................7

    1.1. Caracterizao geral do construtivismo moral .............................................................81.2. O construtivismo kantiano..........................................................................................11

    CAPTULO 2. AINTERPRETAODERAWLSDAFILOSOFIAPRTICAKANTIANA............................................................................................ 18

    2.1. Usos, unidade e liberdade da razo.............................................................................19

    2.2. Razo construtiva e autonomia...................................................................................21

    2.3. Lei, procedimento, imperativos .................................................................................. 24

    2.4. O procedimento do imperativo categrico .................................................................25

    2.5. Seis concepes do bem .............................................................................................28

    2.6. Fundamentao da lei moral .......................................................................................32

    CAPTULO 3. OCONSTRUTIVISMONATEORIADAJUSTIACOMOEQUIDADE............................................................................................ 37

    3.1. O contratualismo.........................................................................................................38

    3.2. A descrio da posio original .................................................................................. 40

    3.3. A justificativa da posio original .............................................................................. 46

    3.4. Posio original e justia processual pura ..................................................................54

    CAPTULO 4. AESPECIFICIDADEDOCONSTRUTIVISMOPOLTICO .................. 63

    4.1. A delimitao do mbito de aplicao do poltico......................................................644.2. Os problemas postos para uma concepo poltica de justia .................................... 65

    4.3. As exigncias do poltico............................................................................................67

    4.4. Coerencialismo, tarefa prtica e abstinncia epistmica ............................................70

    4.5. Crticas ao modelo de justificao da teoria da justia como equidade .....................74

    4.6. A funo da posio original ......................................................................................78

    CONSIDERAESFINAIS............................................................................................84

    REFERNCIASBIBLIOGRFICAS............................................................................. 91

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo:

    Ao meu orientador, Prof. Dr. Ricardo Bins Di Napoli, pela

    disponibilidade para a orientao da presente pesquisa.

    CAPES, CNPQ e FAPERGS, cujo financiamento, seja por meio de

    bolsas de estudo, custeio de viagens ou aquisio de material bibliogrfico,

    possibilitou o desenvolvimento desta pesquisa.

    todos os colegas e professores do Departamento de Filosofia da

    UFSM, que desde a minha graduao contriburam, direta ou indiretamente,

    para minha formao filosfica.

    Aos meus amigos, pelo apoio e companheirismo.

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    RESUMO

    Dissertao de MestradoPrograma de Ps-Graduao em FilosofiaUniversidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil

    O CONSTRUTIVISMO KANTIANO NA TEORIA DA JUSTIACOMO EQUIDADE DE JOHN RAWLS

    AUTOR:SAMIR DESSBESEL FERREIRAORIENTADOR:RICARDO BINS DI NAPOLI

    Data e Local da Defesa: Santa Maria/RS, 01 de maro de 2006.

    A dissertao tem como objetivo principal abordar o modelo de argumentao em filosofia

    moral denominado por Rawls de construtivismo kantiano, de modo a esclarecermos o uso

    que Rawls faz deste modelo em sua prpria teoria, a teoria da justia como equidade. Para

    tanto, inicialmente buscamos encontrar uma caracterizao geral do modelo construtivista e

    de sua variante kantiana, de modo a esclarecermos que o trao distintivo do construtivismo

    kantiano reside na noo de pessoa moral, livre e igual, utilizada em seu procedimento deconstruo. Na interpretao que Rawls faz da filosofia prtica kantiana, encontramos uma

    aplicao do modelo construtivista bastante esclarecedora, na medida em que apresenta

    diversos aspectos comuns com a prpria teoria da justia como equidade. A partir disso,

    nos detemos na anlise do principal recurso que Rawls utiliza para justificar seus princpios

    de justia, a posio original. Esta, enquanto procedimento de construo inspirado no

    contratualismo clssico, estabelece um conjunto de cerceamentos sobre a deliberao de

    agentes idealmente concebidos. Na medida em que Rawls busca apresentar uma justificativa para tais cerceamentos, apia-se sob uma forma de argumento coerencial, o

    que tanto compromete a pretensa neutralidade do procedimento, quanto seu prprio status

    justificatrio. A partir disso, e considerando as exigncias especficas de uma concepo

    poltica de justia, bem como a noo de justificao ela associada, buscamos esclarecer

    que funo desempenha a posio original na teoria da justia como equidade, na medida

    em que o construtivismo kantiano tomado como um modelo de justificao.

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    ABSTRACT

    Dissertao de MestradoPrograma de Ps-Graduao em FilosofiaUniversidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil

    O CONSTRUTIVISMO KANTIANO NA TEORIA DA JUSTIACOMO EQUIDADE DE JOHN RAWLS

    (THE KANTIAN CONSTRUCTIVISM IN THE THEORY OF JUSTICE ASFAIRNESS OF JOHN RAWLS)

    AUTHOR:SAMIR DESSBESEL FERREIRAADVISOR:RICARDO BINS DI NAPOLI

    Date and place of defense: Santa Maria, March 01, 2006.

    The dissertation has as a principal aim to approach the argumentative model in moral

    philosophy named by Rawls in terms of kantian constructivism, in order to explain the use

    that Rawls does of this model in his own theory, the theory of justice as fairness. To do it,

    Its is initially searched for a general characterization of the constructivist model and itskantian variant to enlighten that the distinctive part of the kantian constructivist resides in

    the notion of moral person, free and equal, used in its construction procedure. In Rawls

    interpretation of Kant practical philosophy, it is found an enlightened application of the

    constructivist model in terms of presenting several common aspects in comparison to the

    theory of justice as fairness. In this perspective, the work focuses on the analysis of the

    principal resource that Rawls uses to justify his principles of justice, the original position.

    This as a procedure of construction inspired in the classic contractarianism establishes a set

    of limitations about the deliberation of agents ideally conceited. As Rawls searches to

    present a justification to these limitations, he is supported by a form of coherent argument,

    what compromise the intended neutrality of the procedure, in terms of its justificatory

    status. Considering the specific demands of a political concept of justice as well as the

    notion of justification associate to it, the work aims to explain which function executes the

    original position in the justice theory as equity as the constructivism kantian is presented as

    a model of justification.

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    LISTA DE ABREVIATURAS

    CKTM O Construtivismo kantiano na teoria moral.

    CRPr Crtica da razo prtica.

    FMC Fundamentao da metafsica dos costumes.

    JCE:PNM Justia como equidade: uma concepo poltica, no

    metafsica.

    LHMP Lectures on history of moral philosophy.

    TJ Uma teoria da justia.

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    INTRODUO

    John Rawls reconhecido atualmente como um dos grandes filsofos do sculo

    XX. Isto se deve pelo fato de ter contribudo de maneira significativa para um resgate ou

    revitalizao de discusses referentes filosofia moral e poltica, fomentando novamente

    um amplo interesse no debate filosfico dessas questes, na medida em que ele prprio

    props uma teoria que se mostrou deveras atrativa. Sua teoria da justia como equidade

    atraiu a ateno e simpatia de filsofos das mais diversas tradies, chegando mesmo a se

    popularizar em outros meios alm do estritamente filosfico. A obra Uma Teoria daJustia, onde Rawls expe pela primeira vez de modo sistemtico sua teoria, considerada

    por muitos como um marco na histria da filosofia moral e poltica.

    No entanto, ao mesmo tempo em que se manifestavam apoiadores e entusiastas

    da teoria da justia como equidade, Rawls recebe diversas crticas, sendo que esse dilogo

    que realiza com seus opositores o leva uma constante explicitao e mesmo reviso de

    sua teoria da justia como equidade. Deste modo encontramos nas obras de Rawls um work

    in progress, um constante esforo pelo aperfeioamento de sua teoria, sendo que a teoria dajustia como equidade, tal como fora apresentada em Uma Teoria da Justia, est longe de

    ser a sua verso final.

    Apesar disso, para o desenvolvimento da presente dissertao assumimos, como o

    faz o prprio Rawls, que em seu trabalho h uma continuidade de posio que se sobrepe

    s diversas mudanas que sofre a teoria da justia como equidade. Deste modo, apesar de

    alguns comentadores falarem de um primeiro Rawls no que se refere s posies

    assumidas em Uma Teoria da Justia e de um segundo Rawls ou Rawls tardio no que

    se refere aos posicionamentos assumidos em seus ltimos escritos (como em O Liberalismo

    Poltico), acreditamos no haver uma ruptura radical. Em muitos pontos, h mais uma

    mudana de nfase em relao aos temas envolvidos na discusso do que uma mudana de

    posicionamento em relao a estes temas. Um exemplo disso a mudana da utilizao da

    terminologia contratualista para a do construtivismo. No entanto, inegvel que h pontos

    em que Rawls no somente reformula sua posio (no sentido de apenas apresent-la de

    modo mais claro), mas em que efetivamente muda sua posio, abandonando teses

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    inicialmente adotadas e assumindo outras. Como exemplo, podemos mencionar o abandono

    das pretenses fortemente universalistas iniciais.

    Deste modo, ao realizarmos uma pesquisa centrada nos escritos de Rawls, estamos

    diante de um autor cuja obra no apenas extensa e conceitualmente complexa, mas cujo

    conjunto da obra apresenta ainda maiores dificuldades, dado o carter de work in progress

    que o caracteriza. Como podemos entender uma possvel conciliao entre a posio

    apresentada em Uma Teoria da Justia, centrada na utilizao de um aparato conceitual

    contratualista, com a posio apresentada por exemplo n O Liberalismo Poltico, centrada

    na argumentao a partir de uma idia de razo pblica? Por que Rawls parece abandonar

    as pretenses fortemente universalistas de Uma Teoria da Justia e aproximar-se cada vezmais de posies caractersticas do assim chamado comunitarismo? Seriam essas posies

    realmente conciliveis ou a idia de uma continuidade no trabalho de Rawls no

    pertinente?

    considerando questes como estas que acreditamos na relevncia do tema

    construtivismo moral na obra de Rawls: o construtivismo pode ser tomado como um fio

    condutor, que nos permite acompanhar todo o desenvolvimento que Rawls d sua teoria.

    E tendo em vista isso que na presente pesquisa nos centramos nos seus escritos da dcada

    de oitenta: so os escritos em que aparecem as primeiras formulaes explcitas de Rawls

    acerca do aparato conceitual construtivista, e, ainda, tais escritos podem ser considerados

    como constituindo por assim dizer uma posio intermediria entre a posio de Uma

    Teoria da Justia e a de seus ltimos trabalhos.

    Na formulao inicial de nosso projeto de pesquisa tnhamos como tema

    especificamente o vu da ignorncia enquanto dispositivo procedimental de representao

    no construtivismo rawlsiano. Nossos objetivos principais eram estudar o papel deste

    dispositivo na compreenso da equidade da posio original e de suas implicaes no quese refere vinculao da posio original com a idia de justia procedimental pura. No

    decorrer da pesquisa, porm, alm de verificarmos que havamos assumido certas hipteses

    de trabalho equivocadas (como por exemplo a idia de que Rawls pretendia derivar o

    razovel do racional, pois havamos nos centrado apenas no texto de Uma Teoria da

    Justia), consideramos que este tema era demasiado circunscrito para a elaborao de uma

    dissertao, e que ainda, para que fosse satisfatoriamente desenvolvido, teria de ao menos

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    pressupor uma discusso referente toda a problemtica do construtivismo kantiano e do

    modo como Rawls o entende e aplica sua teoria da justia como equidade.

    Foi tendo em vista isso que nos vimos levados trabalhar esta temtica mais geral,

    e assim elaborar a presente dissertao tendo como tema a relao entre o construtivismo

    kantiano e a teoria da justia como equidade. Nosso objetivo foi basicamente explicitar em

    que consiste o modelo construtivista e como Rawls o utiliza em sua teoria. Embora no

    mais nos centramos apenas na tematizao especfica do vu da ignorncia, este ltimo

    um elemento fundamental na caracterizao do construtivismo kantiano, e portanto faz

    parte de nossa discusso. Procuramos deste modo caracterizar o modelo construtivista e a

    sua variante kantiana, para assim nos determos na aplicao que Rawls faz deste modelopara sua prpria teoria da justia, a partir de sua noo de posio original. Entre nossos

    objetivos especficos principais encontra-se a explicitao da funo que a posio original

    assume na teoria: se ela deve ser tida como desempenhando a funo de justificar os

    princpios de justia da teoria da justia como equidade, e, em caso afirmativo, como tem

    de ser entendida essa justificao. Para tanto, procuramos compreender como Rawls

    justifica a prpria descrio da posio original, assim como quais so as pretenses e

    exigncias de uma concepo poltica de justia. Tendo isso em vista, tambm procuramos

    discutir a vinculao da idia de justia puramente procedimental com a posio original,

    que, como mencionamos anteriormente, foi um problema que orientou nossa pesquisa

    desde o incio.

    Rawls reivindica, desde Uma Teoria da Justia, uma filiao kantiana para sua

    teoria, e denomina o seu modelo construtivista de construtivismo kantiano, reconhecendo

    inclusive em Kant a origem histrica do modelo construtivista em filosofia moral. Apesar

    de diversos comentadores questionarem e mesmo oporem-se a esta filiao, considerando

    que Rawls seria mais kantiano em inteno do que nas posies tericas que propriamenteassume, ns deixamos de lado essa discusso, e em nenhum momento procuramos de

    algum modo problematizar essa vinculao da teoria da justia como equidade com a

    filosofia prtica de Kant. Apenas assumimos esta vinculao como sendo o caso, e isto por

    trs motivos principais. Primeiro, porque o prprio Rawls assume que este vnculo no se

    trata de uma relao de identidade entre a teoria da justia como equidade e a filosofia

    prtica de Kant, como se a primeira fosse simplesmente um desenvolvimento da posio

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    kantiana: a relao entre a teoria da justia como equidade e a filosofia prtica kantiana

    antes uma relao de analogia; a teoria da justia como equidade de inspirao kantiana,

    no se preocupando em ser rigorosamente fiel a Kant. Segundo, porque caso fssemos

    tentar apresentar possveis discrepncias entre a teoria da justia como equidade e a

    filosofia prtica de Kant, isso exigiria um envolvimento, tanto com a obra de Kant quanto

    com a vasta bibliografia secundria a ela associada, que ultrapassaria nossas possibilidades,

    e que a princpio no seria fundamental dados nossos objetivos. E terceiro, porque Rawls

    apresenta uma interpretao de Kant que, alm de extremamente complexa, configura-se

    como uma interpretao inovadora, dada a utilizao do aparato conceitual construtivista

    para a abordagem de sua filosofia moral, de modo que traar uma comparao entre ostextos kantianos e a interpretao oferecida por Rawls seria novamente um

    empreendimento que ultrapassaria nossas possibilidades e objetivos. No entanto, uma vez

    assumida essa interpretao, o vnculo entre a teoria da justia como equidade e a filosofia

    prtica kantiana fica muito mais claro.

    A bibliografia principal por ns utilizada constitui-se nos textos Justia como

    equidade: uma concepo poltica, no metafsica e O construtivismo kantiano na teoria

    moral, textos estes utilizados como referncia para a leitura de Uma Teoria da Justia.

    Tambm utilizamos como um complemento para o desenvolvimento do nosso tema a

    leitura de suas obras Justia como equidade: uma reformulao e O Liberalismo Poltico,

    muito embora ressaltamos aqui que estas ltimas obras foram utilizadas apenas como uma

    referncia complementar para a leitura das obras da dcada de oitenta, de modo a facilitar a

    identificao de determinados temas que aparecem de modo pouco explcito e que

    posteriormente sero temas centrais em sua teoria. Este recurso ao menos uma leitura das

    ltimas obras de Rawls tambm se fez necessrio para que pudssemos nos situar um pouco

    melhor em meio s discusses dos comentadores (especialmente os crticos) da teoria da justia como equidade, pois que encontramos uma ampla bibliografia secundria

    extremamente pertinente ao nosso tema, mas que no entanto centrava-se em seus ltimos

    escritos ou em sua obra como um todo.

    Como anteriormente mencionamos, dada a complexidade e originalidade da leitura

    que Rawls faz de Kant, no questionamos a sua legitimidade, sendo que no nos detivemos

    na bibliografia secundria que a critica. Apenas procuramos apresentar de maneira concisa

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    e coerente a interpretao que Rawls faz de Kant, tendo como base a srie de conferncias

    sobre a filosofia prtica kantiana publicadas em Lectures on history of moral philosophy,

    bem como em seu artigo Themes in Kants moral philosophy, e claro nos demais textos de

    Rawls anteriormente mencionados. No que diz respeito Kant, nos utilizamos

    essencialmente da Fundamentao da Metafsica dos Costumes e da Crtica da Razo

    Prtica, que so os textos aos quais Rawls mais faz referncia. A bibliografia secundria

    em relao a Kant foi utilizada apenas como um auxlio para a leitura de suas obras e para

    uma melhor compreenso dos temas ali envolvidos, pois, como mencionamos

    anteriormente, dada a singularidade da interpretao de Rawls, abdicamos de encontrar

    possveis concordncias e discordncias entre Rawls e outros comentadores j consagradosde Kant.

    Acreditamos ser relevante ainda ressaltar que, mesmo no interior de uma nica

    obra, Rawls no apresenta um discurso linear e unvoco, sendo que mesmo nos textos que

    no constituram-se da publicao de conferncias (mas especialmente nestes), pode-se

    verificar que a preocupao de Rawls pela clareza de sua exposio por assim dizer mais

    didtica do que sistemtica. Ou seja, em geral Rawls no se preocupa em apresentar

    definies precisas e definitivas de seus conceitos e nem em organiz-los em tpicos

    rigidamente delimitados; antes, vai fazendo apresentaes preliminares dos temas e

    medida que vo sendo acrescentados novos elementos retoma-os e reformula-os. Alm

    disso, talvez em parte pela obra de Rawls ser extremamente recente, em parte pela sua

    prpria complexidade, existem diferenas consideravelmente grandes de interpretao por

    parte de seus comentadores, de modo que em vrios pontos relevantes para nosso tema no

    existem interpretaes consolidadas da obra de Rawls. Deste modo, acreditamos ser

    conveniente uma relativamente constante referncia a passagens dos textos de Rawls e de

    seus comentadores em nossa exposio, para indicar em que se baseiam nossas afirmaesao longo do texto.

    Quanto estrutura dos captulos do presente trabalho, no pretendemos que fosse

    muito complexa ou rgida; apenas pretendemos abordar nosso tema de modo que os

    captulos estejam organizados decrescentemente: comeamos por uma tematizao mais

    geral e chegamos uma mais especfica. Assim, temos o primeiro captulo dividido em

    duas sees, sendo que na primeira tentamos apresentar uma caracterizao do

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    construtivismo moral em geral e na segunda uma caracterizao do construtivismo

    kantiano, de modo que o que foi dito acerca do construtivismo em geral englobe o que foi

    dito do construtivismo kantiano, e que este ltimo acrescente os elementos que o distingam

    em sua especificidade. Em seguida, nos captulos segundo e terceiro, respectivamente,

    apresentamos a filosofia moral de Kant (na interpretao de Rawls) e a prpria teoria da

    justia como equidade como casos de teorias construtivistas de tipo kantiano, abordando

    em cada uma os seus elementos que acreditamos ser mais caractersticos e relevantes para

    os fins da presente pesquisa. Em decorrncia disso, por fim, no quarto captulo tratamos da

    especificidade do construtivismo poltico de Rawls, discorrendo de modo mais detalhado

    sobre temas que tratamos no captulo terceiro e acrescentando aqueles elementos que,embora no se oponham caracterizao do construtivismo kantiano, so tpicos de sua

    aplicao questo que interessa propriamente a Rawls, a saber, a elaborao de uma

    concepo poltica de justia.

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    Captulo 1. CONSTRUTIVISMO E CONSTRUTIVISMO KANTIANO

    No presente captulo pretendemos apresentar uma primeira aproximao sobre o

    que Rawls entende por uma filosofia moral construtivista, considerando que a teoria da

    justia como equidade consiste no no prprio modelo construtivista, mas to somente em

    uma aplicao de tal modelo. Este captulo trata-se de uma primeira aproximao

    principalmente porque na primeira seo esboaremos apenas uma caracterizao geral do

    construtivismo moral, de modo que essa caracterizao possa englobar possveis tipos

    diferentes de construtivismo (no caso, kantianos e no-kantianos); e na segunda seo,trataremos o construtivismo de tipo kantiano de modo que sua caracterizao possa

    englobar tanto a interpretao que Rawls faz da filosofia prtica kantiana, quanto a prpria

    teoria da justia como equidade. Deste modo, diversos temas que trataremos aqui de uma

    maneira consideravelmente geral ficaro mais claros nos captulos seguintes, na medida em

    que sero incorporados diversos elementos mais especficos que aqui deixamos de lado.

    Para a caracterizao do construtivismo moral em geral, seguiremos o meio que

    Rawls recorrentemente utiliza em seus escritos para explicitar o que entende por

    construtivismo: a comparao com o intuicionismo racional, enquanto uma variante do

    realismo moral. Atravs dessa comparao, veremos que tanto o construtivismo quanto o

    realismo moral defendem ser possvel a objetividade em questes morais. No entanto, eles

    se diferenciam no modo como essa objetividade entendida, sendo que esta diferenciao

    est diretamente vinculada noo de pessoa que cada um pressupe. Ressaltamos tambm

    que devido ampla variao de leituras dos comentadores de Rawls quanto a possveis

    distines entre tipos de construtivismo, ainda no nvel do construtivismo moral em geral

    (ou seja, distines no entre construtivismos kantianos e no-kantianos, mas que poderiamdizer respeito a ambos), e considerando que o prprio Rawls no apresenta tais distines

    (ao menos explicitamente), assumiremos apenas uma distino entre o construtivismo

    enquanto um modelo de anlise e o construtivismo enquanto um modelo de justificao,

    pois esta distino nos ser particularmente importante posteriormente (na seo 4.6).

    Considerando que Rawls no faz uma distino sistemtica entre o que seria

    caracterstico do construtivismo moral em geral e o que seria especfico do construtivismo

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    moral de tipo kantiano que defende, acreditamos que vrios elementos que caracterizam o

    construtivismo moral ficaro mais claros ao tratarmos do construtivismo kantiano, na

    segunda seo, especialmente no que diz respeito s noes de agente moral e

    procedimento de construo. Assim, na segunda seo, apresentaremos a noo de razo

    prtica adotada por uma moral construtivista de tipo kantiano, entendida enquanto

    racionalidade e razoabilidade, para ento nos determos na anlise da noo de pessoa moral

    livre e igual, dando nfase idia de igualdade fundamental e de pessoa como fim em si

    mesma. Com esses elementos procuraremos esclarecer ento o carter deontolgico

    caracterstico de uma moral kantiana, bem como o modo como esta articula o procedimento

    de construo de seus princpios morais.

    1.1 Caracterizao geral do construtivismo moral

    O construtivismo em filosofia moral consiste em um modelo para a abordagem de

    questes morais, tanto com o intuito de explicitar pressupostos, organizar e tornar coerentes

    um conjunto de valores e preceitos morais (um modelo de anlise), assim como com o

    intuito de argumentar quanto validade destes valores e preceitos (um modelo dejustificao). O construtivismo insere-se portanto dentro de uma discusso filosfica acerca

    da natureza e ou fundamentos de juzos morais, consistindo deste modo em uma discusso

    meta-tica. Em termos gerais, nem mesmo questes referentes diferenciao e prioridades

    acerca das noes de justo e bem dizem respeito ao construtivismo. Esses e outros

    elementos so componentes articulados no interior de alguma verso especfica do

    construtivismo, sendo possvel denominar de construtivistas tanto teorias teleolgicas

    quanto deontolgicas, nas suas mais diversas variaes.1

    Uma rpida comparao com diferentes perspectivas meta-ticas em filosofia

    moral pode ajudar a esclarecer em que consiste o construtivismo moral. Assim, ao

    tomarmos um determinado juzo moral, como por exemplo tal deciso foi justa, podemos

    considerar, como o fazem o emotivismo e filosofias morais no-cognitivistas em geral, que

    uma tal sentena nada mais do que a expresso de um mero estado subjetivo ou uma

    1Por exemplo, teorias morais utilitaristas e kantianas. Rawls (TJ, p. 131) afirma que o procedimento dasituao inicial pode ser usado por teorias utilitaristas, e novamente em CKTM (p. 80, nota 1) que outilitarismo baseado na utilidade mdia pode ser apresentado como uma forma de construtivismo .

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    reao emocional do falante, sem pretenso de validade objetiva (ou, se h tal pretenso por

    parte do falante, ela ilegtima). Ou ento podemos considerar que juzos morais de algum

    modo so passveis de validade objetiva, sendo que, no entanto, o modo como esta

    objetividade entendida pode variar. O realismo moral e o construtivismo moral

    constituem duas diferentes maneiras de entender essa objetividade, procurando

    fundamentar a moral de modos bem distintos.

    O realismo moral, grosso modo, considera que nossos conceitos morais, embora

    assumam uma funo normativa, so antes de mais nada descritivos, pois referem-se

    objetos dados e independentes de nossa conceitualizao. Haveria algo assim como um

    reino dos valores que seria descrito por nossos conceitos morais, com leis equivalentes aoque tomamos como leis da natureza, que precisariam apenas ser descobertas. O modo de

    acesso a estes valores e leis pode ser por exemplo uma intuio racional, na qual seriam

    apreendidas as verdades em relao moral. O sujeito moral portanto meramente passivo,

    pois apenas percebe uma ordem moral j dada. Esta ordem, no entanto, seria justamente o

    que possibilita a objetividade em questes morais, muito embora a verificabilidade da

    adequao entre nossos conceitos e juzos em relao tal ordem seja problemtica, tendo

    em vista o carter peculiar de uma intuio racional.

    O construtivismo moral, tal como Rawls o entende, no nega necessariamente2 a

    existncia de um possvel reino de valores dado e independente, que seria de algum modo

    acessado, revelando ento os padres corretos para os juzos morais. Nega apenas que este

    apelo a um modo privilegiado de acesso verdades morais possa servir de justificativa

    para tais juzos. Diferentemente do realismo moral, no construtivismo os princpios morais

    so considerados como sendo construdos, e no descobertos: o construtivismo utiliza-se de

    uma noo complexa de pessoa enquanto agente moral, e no um sujeito meramente

    passivo que percebe uma ordem moral dada. Deste modo, seguindo a interpretao deKosgaard (2003), no construtivismo a moralidade entendida como uma resposta da

    racionalidade humana frente a problemas prticos, ou seja, a moralidade vista como um

    2 Embora a princpio o construtivismo parea contrapor-se ao realismo moral e negar enfaticamente aexistncia de uma ordem moral externa ao sujeito e independente deste (como o caso do construtivismo nafilosofia prtica de Kant de acordo com a interpretao de Rawls, como veremos no Captulo 2), oconstrutivismo poltico de Rawls (como veremos no Captulo 4) evita e mesmo no pode assumir uma taltese. Deste modo o construtivismo como o estamos apresentando mais uma concepo metodolgica acercado modo como argumentar em filosofia moral do que algo assim como uma tese ontolgica que, por exemplo,assumisse uma posio acerca de que tipo de entidades estaria em jogo em juzos morais.

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    produto ou uma construo da razo em seu uso prtico, no sendo tratada como um

    conjunto de objetos dados que seriam simplesmente conhecidos pela razo terica, como

    no caso do realismo moral: a filosofia prtica, como concebida por Kant e Rawls, no

    uma questo de encontrar conhecimento para aplicar na prtica. Antes, ela o uso da

    razo para resolver problemas prticos (p. 115), de modo que para o construtivista a

    filosofia prtica um assunto prtico. Sua tarefa elaborar solues para problemas

    prticos (p. 118).

    Segundo Rawls, o que necessrio para que uma concepo seja chamada de

    construtivista a elaborao de um procedimento, baseado em alguma noo de pessoa e

    de razo prtica, para a explicitao e avaliao de concepes morais. Tal procedimentopermite assim tornar explcita qual noo de pessoa pressuposta, bem como qual a relao

    entre esta noo de pessoa e os princpios morais que a teoria apresenta. A nfase na

    elaborao de um procedimento que tem por base uma noo de razo prtica, a princpio,

    leva o construtivismo a defender algum tipo de valor cognitivo para seus princpios morais,

    pois estes teriam uma origem, seno exclusivamente, ao menos suficientemente racional.

    Isto significa que o construtivismo afirma ser possvel a objetividade em questes

    morais: o procedimento atravs do qual so derivados princpios substantivos no pode ser

    arbitrrio, mas sim representar os requerimentos do raciocnio prtico.3 Se a elaborao do

    procedimento for bem-sucedida, obtm-se um critrio seguro como base de nossos juzos

    morais, que pode lhes assegurar validade universal ou restrita, dependendo das pretenses

    iniciais da teoria. Deste modo, no construtivismo o problema da justificao em moral recai

    sobre a justificao do prprio procedimento - tanto no modo como este articula as noes

    de pessoa e de razo prtica que utiliza, quanto nestas prprias noes.

    Segundo Onora ONeil (2003), podemos ainda distinguir dois diferentes nveis em

    que uma teoria moral pode ser tida como construtivista. O primeiro nvel, que caracterizariauma teoria moral construtivista em sentido restrito, consiste no nvel da construo de

    princpios morais atravs de um procedimento tido como dado. J o segundo, que

    caracterizaria ento uma teoria moral construtivista em sentido amplo, inclui exigncias em

    3 Em TKMP, p. 97, Rawls afirma que a forma e estrutura deste procedimento expressam os requerimentosda razo prtica. Em CKTM, p. 120, Rawls tambm afirma que a idia essencial que tais procedimentosdevem estar fundados de maneira satisfatria na razo prtica. Freeman (2003, p. 28) entende que, noconstrutivismo, princpios morais so vistos como o produto de um procedimento objetivo de deliberaoque projetado para capturar os principais componentes do raciocnio prtico.

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    que se faz necessria uma construo do prprio procedimento. No sentido restrito, uma

    teoria moral construtivista apenas tem de propor procedimentos que agentes podem usar

    para estabelecer princpios para guiar a ao, enquanto que no sentido amplo tem-se

    ainda o encargo de justificar aqueles procedimentos e fundamentar juzos normativos

    objetivos (p. 355-356). Aproveitando esta distino, no sentido restrito o construtivismo

    moral poderia ser entendido como um mero modelo de anlise (toma-se um conjunto de

    preceitos morais defendidos por alguma teoria e verifica-se a partir destes que

    procedimento de construo eles pressupem)4; no sentido amplo, o construtivismo moral

    seria um modelo de justificao, e, enquanto tal, o prprio procedimento precisa ser

    justificado, de modo que, na medida em que o procedimento justificado, os princpios quedele decorrem tambm o so.

    1.2 O construtivismo kantiano

    O que distingue uma teoria construtivista de tipo kantiano de outras teorias morais

    construtivistas , segundo Rawls, uma noo de pessoa moral livre e igual constituda de

    duas faculdades morais, a racionalidade e a razoabilidade

    5

    : de particular importncia aconcepo das pessoas enquanto razoveis e racionais, e, portanto, como livres e iguais, e

    as unidades bsicas de agncia e responsabilidade (TKMP, p. 97).

    No construtivismo kantiano, o conceito de razo prtica formado por dois

    diferentes e irredutveis padres de raciocnio prtico, a razoabilidade e a racionalidade.

    Resumidamente, a faculdade moral denominada de racionalidade corresponde noo

    usual de razo instrumental, ou seja, uma racionalidade que delibera acerca dos meios mais

    eficientes para atingir algum fim (TJ, p. 15). A faculdade moral da razoabilidade, por sua

    4 Esta distino entre construtivismo enquanto modelo de anlise e construtivismo enquanto modelo dejustificao sugerida pelo prprio Rawls: O procedimento das teorias contratualistas fornece, ento, ummtodo analtico geral para o estudo comparativo das concepes da justia. Tentamos definir as diferentescondies incorporadas na situao contratual em que seus princpios seriam escolhidos. Desse modo, formulamos as vrias suposies subjacentes, das quais parecem depender essas concepes. Mas se umainterpretao [da situao contratual] filosoficamente prefervel, e se seus princpios caracterizam nossosjuzos ponderados, temos tambm um procedimento de prova (TJ, p. 131). A relao entre contratualismo econstrutivismo ser tratada posteriormente na seo 3.1 .5 essa noo de pessoa que determina os traos substantivos de uma moral kantiana: o que especfico deuma doutrina kantiana a relao entre o contedo da justia e uma certa concepo da pessoa como livre eigual, como capaz de agir ao mesmo tempo de modo racional e razovel e, por conseguinte, como capaz departicipar da cooperao social entre pessoas assim concebidas (CKTM, p. 50-51).

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    vez, pressupe e condiciona a da racionalidade (CKTM, p. 69) delimitando quais fins

    podem ser almejados, consistindo no ponto de vista moral propriamente dito ao representar

    uma perspectiva de imparcialidade. Este carter restritivo do razovel em relao ao

    racional, na medida em que delimita quais fins podem ser almejados, constitui, j no nvel

    do modo como a razo prtica entendida, o trao distintivo do construtivismo kantiano

    enquanto uma concepo moral deontolgica, ou seja, uma concepo moral na qual h

    uma noo do que justo que tem prioridade sobre as concepes do que bom.

    Estes padres de raciocnio prtico da racionalidade e da razoabilidade, no entanto,

    no se referem ao bom e ao justo enquanto objetos dados e independentes do sujeito,

    mas sim dependem de sua atividade para existir (ou valer) da a noo de agente moral.Esta noo de agncia est estreitamente relacionada com a noo kantiana de razo prtica

    vinculada ao princpio da autonomia6: a capacidade do sujeito, enquanto racional e

    razovel, de ser autolegislador no mbito prtico. Ou seja, no apenas de agir segundo

    prescries, independentemente de impulsos momentneos e determinaes exteriores, mas

    ainda de ser a origem e fundamento de tais prescries. Isto porque estas prescries a

    princpio nada mais so do que as exigncias dos padres de raciocnio prtico da

    racionalidade e da razoabilidade em suas prprias atividades autolegisladoras, que no so

    tidas como algum tipo de apreenso de uma ordem moral dada tais prescries so

    produtos da razo prtica.

    A partir disso podemos elucidar alguns dos principais sentidos da qualificao de

    livres que atribuda s pessoas morais: os cidados, enquanto pessoas livres, tm o

    direito de considerar sua pessoa como independente, como distinta de um sistema

    particular de fins (CKTM, p. 94). E ainda, no procedimento de construo, pela

    capacidade de formular reivindicaes de maneira autnoma que a liberdade

    6 Com a ressalva de que a noo de agncia pretende desvincular-se das implicaes metafsicas da nookantiana de autonomia da vontade, como os dualismos sensvel-inteligvel, noumnico-fenomnico, etc. Noentanto, mesmo nessa noo de agncia possvel encontrar uma posio metafsica, especialmente no quese refere negao do realismo moral e na prpria idia de razo prtica enquanto livre e independente.Como veremos no Captulo 4, Rawls procurar desvincular-se de qualquer discusso de cunho metafsico naargumentao em defesa da teoria da justia como equidade, de modo que essa noo de agncia ento serentendida no como uma descrio de como somos de fato, ou seja, no como uma tese metafsica acerca danatureza humana enquanto racional e razovel, mas como a nossa atividade de nos representarmos destemodo, assumindo um ideal de pessoa: Princpios morais dependem do que Rawls chama nossa concepode ns mesmos como pessoas razoveis e racionais. Eles dependem de nossa atividade de concebermos ns mesmos deste modo; eles no dependem do fato de que somos pessoas razoveis e racionais (Irwin,2004, p. 144).

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    representada (CKTM, p. 100), ou seja, as pessoas so fontes autnomas de

    reivindicaes no sentido de que estas tm um valor prprio, que no deriva de deveres ou

    de obrigaes anteriores em relao sociedade ou a outras pessoas, nem determinado

    pelo seu papel social especfico (CKTM, p. 93). Nesse sentido, Rawls entende que em

    virtude do que podemos chamar suas capacidades morais, e das capacidades da razo o

    pensamento e o juzo, associados a essas capacidades dizemos que as pessoas so livres

    (JCE:PNM, p. 37). A noo de autonomia constitui o ncleo dos principais traos

    substantivos possveis de uma moral kantiana (pessoa como fim em si, igualdade

    fundamental entre pessoas morais, carter deontolgico) e ocupa portanto um lugar central

    no construtivismo kantiano, como veremos a seguir.A noo de pessoa moral atribui a cada indivduo, enquanto agente moral, um

    valor absoluto, ou uma dignidade inviolvel: cada pessoa tem de ser considerada como um

    fim em si mesma (FMC, p. 135 140). Pois da atividade deste agente, enquanto

    autolegislador moral, que qualquer coisa assume um valor relativo, e tida como uma

    finalidade a ser alcanada. Portanto, aquilo que constitui a condio pela qual algo pode ser

    um fim possui um valor ntimo e inalienvel em relao quaisquer outros fins que possam

    ser almejados: autonomia pois o fundamento da dignidade da natureza humana (FMC,

    p. 141).

    Esta noo de pessoa como um fim em si mesma ajuda a esclarecer alguns

    importantes sentidos quanto igualdade fundamental entre pessoas morais. Primeiro, todos

    os demais fins que algum possa ter passam a assumir um carter idntico de subordinao

    preservao e promoo daquilo que fim em si mesmo. Ou seja, do ponto de vista

    moral, as diversas finalidades de diferentes indivduos no so hierarquizadas entre si e so

    apenas subordinadas ao que fim em si mesmo. Assim tais finalidades no podem atribuir

    um maior ou menor valor moral aos indivduos, de modo que os sistemas de objetivos noso classificados por seu valor (TJ, p. 21). Todas as possveis finalidades, na medida em

    que no transgridem os limites de considerar as pessoas como fins em si mesmas, possuem

    do ponto de vista moral um valor idntico e devem ser igualmente respeitadas por todos, o

    que equivale a dizer que se um sujeito um fim em si mesmo, os seus fins tm de ser

    quanto possvel os meus (FMC, p. 136-137). Isso oferece uma primeira explicitao da

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    idia de igualdade entre pessoas morais que trao caracterstico de uma concepo

    kantiana.

    Uma segunda conseqncia da noo de pessoa como fim em si o critrio de

    aceitabilidade em relao a cada um daqueles que so afetados por uma norma ou ao

    qualquer. Isso significa que tratar uma pessoa como um fim em si mesma requer que essa

    pessoa possa concordar com o tratamento recebido (FMC, p. 136; TJ, p. 195-196). Isso nos

    leva mais uma explicitao da idia de igualdade fundamental entre os indivduos

    tomados como pessoas morais, pois o critrio de aceitabilidade razovel dos princpios

    d certa substncia idia de igualdade fundamental e, ao mesmo tempo, flui dela

    (Berry, 1997, p. 29), ou seja, a fora decorrente da natureza igual do eu est no fato deque os princpios escolhidos devem ser aceitveis para os outros eus (TJ, p. 282).

    Outra idia subjacente noo de igualdade fundamental entre pessoas morais

    que todas as diferenas naturais e sociais entre os indivduos so arbitrrias do ponto de

    vista moral, o que equivale a dizer que tais diferenas no podem ser consideradas como

    elementos relevantes quando estamos tratando de questes morais. Posies sociais,

    habilidades desenvolvidas ou dotes inatos no tm qualquer peso em se tratando do valor

    moral das pessoas: independentemente destas e de quaisquer outras caractersticas, cada

    pessoa tm um valor idntico, e absoluto o que descarta bases de comparao

    meritocrticas e perfeccionistas.

    A partir desta noo de pessoa encontramos novamente, s que em outro nvel,

    uma das caractersticas fundamentais de uma teoria construtivista de tipo kantiano: seu

    carter deontolgico, ou o primado do justo sobre o bem. Pois como j foi dito da noo de

    pessoa moral livre e igual segue-se que cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada

    na justia que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar (TJ, p.

    4). Diferentemente das teorias morais teleolgicas em que primeiramente apresenta-se umanoo de bem e ento entende-se o justo como aquilo que promove e maximiza este bem,

    em uma doutrina moral deontolgica, como tem de ser qualquer teoria moral construtivista

    de tipo kantiano, pretende-se defender uma noo do que justo que possui prioridade

    sobre qualquer concepo do bem.

    Essa prioridade do justo sobre o bem, em uma doutrina construtivista de tipo

    kantiano, deve ser representada j no prprio procedimento utilizado para a derivao dos

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    princpios morais que defenda. Isto se d por meio de delimitaes ou cerceamentos do

    razovel sobre o racional, ou, dito de maneira mais clara: o procedimento consistir

    basicamente na formulao de um problema de escolha racional que submetido a

    condies razoveis (ou tidas como expresso do razovel).

    Este procedimento, no entanto, no nada mais do que um experimento mental,

    uma deliberao fundada em um estado de coisas meramente hipottico, sendo que assim

    so desnecessrias preocupaes quanto s possibilidades fticas das condies que so

    impostas escolha. Essas condies, que visam satisfazer as demandas da faculdade moral

    da razoabilidade, no entanto, devem conservar um determinado grau de simplicidade (TJ, p.

    153, 651-652), visto terem de poder ser manejadas mentalmente por aqueles que seutilizam de tal experimento para uma deliberao de natureza moral ou seja, ns,

    enquanto pessoas concretas, temos de poder simular mentalmente a situao do personagem

    artificialmente concebido que habita o procedimento.

    Rawls considera como uma boa representao do razovel no procedimento de

    construo a limitao das informaes disponveis ao ou aos personagens idealmente

    concebidos que so colocados diante de um problema de escolha racional. Isto feito

    atravs da utilizao de um artifcio de representao denominado vu da ignorncia

    denso, que exclui todas as informaes relativas a caractersticas psicolgicas, fsicas,

    habilidades de qualquer tipo, posio social e mesmo interesses e objetivos daqueles que

    realizaro a escolha. Rawls faz esta distino entre o uso de um possvel vu da ignorncia

    tnue e um vu da ignorncia denso de acordo com quais informaes eles ocultariam

    dos personagens habitantes do procedimento, de modo que uma caracterstica

    suplementar de uma doutrina kantiana que ela visa a uma verso mxima do vu de

    ignorncia, pois comea por negar qualquer informao aos parceiros e a seguir

    acrescenta apenas o que necessrio para que eles possam chegar a um acordo racional (CKTM, p. 101-102). Este vu da ignorncia por sua vez implica na utilizao de uma

    noo de bens bsicos ou interesses fundamentais, pois a postulao de uma lista destes

    bens torna-se necessria para que os personagens idealmente concebidos tenham alguma

    referncia para realizarem a escolha7.

    7 Esta lista de bens bsicos alvo de crticas quanto pretensa neutralidade em relao s concepes do bemque Rawls advoga para sua teoria, sendo que esta lista poderia tambm comprometer o prprio carterdeontolgico de uma concepo moral kantiana, na medida em que h, de certa forma, uma noo do bem que

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    Deste modo, apesar dos personagens que habitam o procedimento serem

    meramente racionais e auto-interessados, avaliando princpios morais de um ponto de vista

    prudencial, sua escolha moralmente aceitvel, pois a limitao de informaes oferecida

    pelo vu da ignorncia obriga-os a adotar um ponto de vista geral ao levarem em conta

    todos os possveis afetados pela sua escolha, pois no sabem quem propriamente so.

    Rawls entende que esta equidade da situao hipottica de escolha pode abdicar de

    qualquer motivao moral dos personagens, pois sua escolha racional j est delimitada por

    consideraes morais8. Assim para Rawls a escolha moralmente aceitvel no apenas

    porque, dada a limitao de informaes, os personagens so levados a adotar uma

    perspectiva de imparcialidade

    9

    , mas ainda, na medida em que sua escolha racional e auto-interessada, ela possibilita tambm que os princpios morais sejam avaliados por

    requerimentos de benefcio mtuo.

    *

    Em resumo, o construtivismo moral caracteriza-se pela idia de que princpios

    morais tm de ser avaliados a partir de um recurso denominado de procedimento de

    construo, que permite evidenciar as noes de pessoa e razo prtica subjacentes a estes

    princpios. Metodologicamente, contrape-se ao realismo moral, na medida em que o

    procedimento assume uma noo de agncia moral e considera que princpios morais so

    antes de mais nada produtos ou construes da razo em seu uso prtico, e no objetos

    pressuposta no prprio procedimento de construo. Rawls elabora ento uma distino entre o bementendido em sentido amplo ou abrangente e o bem em sentido estrito, pretendendo com isso defender-se destes problemas (TJ, p. 438). Posteriormente (principalmente na seo 3.2), retomaremos essa discussoacerca da lista dos bens bsicos, esclarecendo alguns pontos de forma um pouco mais detalhada.8 Berry (1989, p. 350), a partir deste ponto que se refere motivao dos personagens no procedimento deconstruo, apresenta uma distino entre construtivismo rgido (hard constructivism) e construtivismobrando (soft constructivism), sendo que no construtivismo rgido, uma vez definida a situao da escolha, ospersonagens tm uma motivao estritamente racional, enquanto que no construtivismo brando pode-seatribuir-lhes tambm motivaes morais propriamente ditas. Assim o modo como Rawls entende oconstrutivismo kantiano qualificaria este como um construtivismo rgido, na medida em que a motivaodas partes to somente racional e desprovida de qualquer considerao moral, pois estas consideraesmorais j esto incorporadas no prprio procedimento atravs do vu da ignorncia (como veremos maisdetalhadamente na seo 3.3).9 Habermas (1989) define como imparcial um princpio que fora cada um , no crculo dos concernidos, aadotar, quando da ponderao de interesses, a perspectiva de todos os outros (p. 86). Deste modo Rawlsgostaria de ver assegurada a considerao imparcial de todos os interesses pela iniciativa do sujeito, quejulga moralmente, de colocar-se num estado originrio fictcio excluindo os diferenciais de poder, garantindoliberdades iguais para todos e deixando cada um na ignorncia das posies que ele prprio assumiria numaordenao social futura (p. 87).

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    dados conhecidos de algum modo pela razo em seu uso terico. O modelo construtivista

    pode ser aplicado tanto teorias morais teleolgicas quanto teorias morais deontolgicas.

    Essa aplicao pode assumir duas diferentes funes: pode visar justificar princpios morais

    ou apenas analis-los. Na medida em que pretende justificar tais princpios, o prprio

    procedimento necessita ser justificado, o que inclui uma justificao das noes de pessoa e

    de razo prtica nas quais se baseia.

    O trao distintivo do construtivismo kantiano, enquanto uma forma de

    construtivismo moral, a noo de pessoa moral livre e igual que utiliza, bem como a

    noo de razo prtica enquanto racionalidade e razoabilidade, para a elaborao de seu

    procedimento de construo. Esta noo de pessoa moral enquanto um fim em si mesmadetermina um dos traos substantivos caractersticos de uma moral kantiana: a igualdade

    fundamental entre pessoas morais. A partir disso, constata-se outro trao caracterstico de

    uma moral kantiana: seu carter deontolgico, onde h uma noo do que justo que tem

    prioridade sobre possveis noes do que bom. Este carter deontolgico fica evidente

    tambm na elaborao do prprio procedimento de construo: as delimitaes do razovel

    sobre o racional um problema de escolha racional sujeito a condies razoveis. A

    representao do razovel no procedimento feita atravs do dispositivo de representao

    chamado de vu da ignorncia, sendo que o construtivismo kantiano utiliza-se de um vu

    da ignorncia denso que exclui todas as informaes relativas s particularidades dos

    personagens que habitam o procedimento. Tais personagens deliberam apenas

    racionalmente (estrategicamente), de modo que a representao do razovel pelo vu da

    ignorncia pode abdicar da postulao de qualquer motivao moral destes personagens.

    Deste modo no construtivismo kantiano princpios morais so avaliados tendo como

    critrio uma conjuno dos dois padres de raciocnio prtico (a razoabilidade e a

    racionalidade), de modo que tais princpios, para serem aceitveis, tm de satisfazer asexigncias no apenas de uma perspectiva de imparcialidade, mas tambm de benefcio

    mtuo.

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    Captulo 2. A INTERPRETAO DE RAWLS DA FILOSOFIAPRTICA KANTIANA

    Rawls considera que a filosofia prtica kantiana no pode ser devidamente

    compreendida sem levar em considerao todo o empreendimento crtico realizado por

    Kant, ou ao menos o que se encontra presente na Crtica da Razo Pura e na Crtica da

    Razo Prtica, conjuntamente com seus escritos especficos sobre moral, direito e poltica.

    Isso porque considera de fundamental importncia, para entendermos a filosofia prtica

    kantiana como precursora do construtivismo moral, alguns elementos caractersticos do

    idealismo transcendental10, bem como do empreendimento de uma crtica da razo. Taiselementos, segundo Rawls, impedem ou ao menos tornam bastante problemtica uma

    leitura que v em Kant um realista moral, leitura esta que negligencia alguns dos principais

    resultados obtidos por Kant.

    O objetivo deste captulo consiste em apresentar em linhas gerais os principais

    temas que Rawls aponta na filosofia prtica kantiana para interpret-la como uma teoria

    moral construtivista. Faremos isso tendo em vista que Rawls reivindicar constantemente a

    classificao de sua teoria da justia como equidade como sendo uma teoria moralconstrutivista kantiana, apesar de pretender desvencilhar-se totalmente da problemtica

    metafsica e epistemolgica na qual o construtivismo de Kant se insere. No entanto, apesar

    destas diferenas entre a teoria da justia como equidade e a interpretao que Rawls faz de

    Kant, acreditamos encontrar diversos pontos relevantes no apenas para a elucidao do

    modelo construtivista kantiano, mas tambm da prpria teoria da justia como equidade.

    A principal bibliografia que utilizamos para a elaborao deste captulo constitui-

    se de uma srie de conferncias ministradas por Rawls sobre a filosofia moral kantiana,

    publicadas em Lectures on history of Moral Philosophy. Dado o carter fragmentrio da

    exposio de Rawls, com a constante retomada e desenvolvimento de temas anteriormente

    apresentados, procuramos fazer constantes referncias ao texto original em nossa

    exposio. Alm disso, Rawls apresenta uma leitura original e complexa da moral kantiana,

    sendo que, devido s limitaes temticas e de extenso do presente trabalho, teremos de

    10 As razes do construtivismo encontram-se nas profundezas do idealismo transcendental de Kant(LHMP, p. 239).

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    deixar de lado diversos elementos importantes de sua leitura e apresentar de maneira bem

    sintetizada os recortes que acreditamos mais relevantes para os fins do presente captulo,

    primando mais pela coerncia que pela completude em nossa exposio.

    Na primeira seo apresentaremos um rpido esboo de temas complexos e

    caractersticos da filosofia kantiana como um todo, como o tema dos diferentes usos da

    razo, da unidade da razo e da liberdade da razo. Na segunda seo, apresentaremos uma

    elucidao da idia que Rawls v em Kant de uma razo construtiva livre, em ligao com

    o princpio da autonomia. Na terceira seo apresentaremos as distines que Rawls adota e

    considera implcitas nos textos de Kant entre lei moral, imperativo categrico e

    procedimento do imperativo categrico, bem como entre o imperativo categrico e oimperativo hipottico e imperativos categricos e hipotticos particulares, com o fim de, na

    quarta seo, nos determos na descrio do procedimento do imperativo categrico com

    todos os passos que o compe. Isso nos levar s seis concepes seqenciais do bem e

    uma explicitao do carter deontolgico da filosofia prtica kantiana, assim como da

    noo de humanidade como um fim em si mesma e do ideal de um reino dos fins como o

    objeto construdo pela razo prtica, na quinta seo. Finalmente, na sexta seo,

    apresentaremos a leitura que Rawls faz do modo como Kant fundamenta a sua teoria moral,

    esclarecendo o coerencialismo que Rawls atribui a ele em relao doutrina do fato da

    razo, tendo deste modo como desfecho a retomada dos temas iniciais dos diferentes usos e

    da unidade da razo.

    2.1 Usos, unidade e liberdade da razo

    Rawls assinala a importncia da distino kantiana entre dois diferentes tipos derazo: a razo terica e a razo prtica, lembrando tambm que no constituem duas

    razes distintas, mas que trata-se apenas de uma s e mesma razo que s na aplicao

    se deve diferenar (FMC, p. 106). Assim, os usos terico e prtico da razo devem

    mostrar-se no apenas compatveis, mas complementares. O empreendimento crtico

    realizado por Kant, deste modo, visa oferecer um relato global dos conceitos e princpios

    da razo como um sistema unificado de conceitos e princpios (LHMP, p. 256), assim

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    como determinar em quais casos estes conceitos e princpios possuem um uso correto e

    vlido levando em considerao a unidade dos diferentes usos da razo.

    Alm desta diviso entre razo prtica e razo terica, Rawls sublinha uma

    subdiviso: a razo terica em razo pura especulativa e entendimento, e a razo prtica,

    em razo prtica pura (tambm denominada de o razovel) e razo prtica emprica

    (tambm denominada de o racional). A razo possui sempre o interesse de obter alguma

    unidade, cabendo a cada um dos diferentes usos uma diferente funo: o entendimento,

    unificar o mltiplo da intuio sensvel sob conceitos; a razo pura especulativa, orientar o

    entendimento em vistas mxima unidade e a mxima extenso possvel, organizando seus

    conhecimentos sob a forma de um sistema; a razo prtica emprica, organizar em umaidia racional de felicidade os vrios desejos e inclinaes pertencentes faculdade

    inferior do desejar (LHMP, p. 263); e a razo prtica pura, atravs da idia da lei moral,

    alm de impor limites quanto aos fins que so permissveis, visa unificar diferentes

    concepes da felicidade com seu requerimento de ser merecedor da felicidade no ideal

    de um reino dos fins.

    Estes diferentes usos, porm, esto estreitamente relacionados, sendo mutuamente

    dependentes, j que a razo concebida como uma unidade auto-subsistente de princpios

    na qual cada membro existe para cada outro, e todos para cada um (LHMP, p. 262).

    Deste modo, Rawls dir que a autenticao de um uso da razo (a demonstrao de sua

    legitimidade) consiste, em linhas gerais, na explicao de seu papel na constituio da

    razo como um todo. Como cada uso possui diferentes papis, a autenticao de cada uso

    tambm ser diferente. Embora cada uso atenda a um diferente interesse da razo, percebe-

    se que o interesse fundamental ao qual todos atendem o da obteno de uma unidade;

    assim, estes diferentes interesses tambm precisam ser unificados, sendo que se as

    reivindicaes legtimas da razo terica e prtica so ambas reconciliadas em umaconstituio da razo (...) os objetivos da crtica da razo foram atingidos (LHMP, p

    324-325).

    A razo pura tida como a faculdade de orientao, sendo que em cada esfera

    [terica e prtica], a razo fornece orientao ao ser normativa: ela coloca fins e organiza-

    os em um todo de modo guiar, ou dirigir, o uso de uma faculdade (LHMP, p. 263).

    Assim, tanto o entendimento quanto a razo prtica emprica no so propriamente livres.

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    O entendimento, porque suas operaes so guiadas no por fins dados por si prprio

    mas por fins dados ele pela razo especulativa (LHMP, p. 284); e a razo prtica

    emprica, porque alm de ter de tomar as inclinaes como empiricamente dadas, est

    subordinada s delimitaes da razo prtica pura. Deste modo a razo, como a faculdade

    dos princpios, determina o interesse de todas as faculdades do nimo, mas determina a si

    prpria o seu (CRPr, p. 194).

    Apenas a razo pura possui a capacidade de colocar fins para si mesma por si

    mesma, sendo esta capacidade um componente essencial da absoluta espontaneidade da

    razo (LHMP, p. 284). A razo pura considerada como possuindo total independncia

    em relao natureza, e assim, como no sendo determinada pela necessidade natural. Istoporque a razo pura no apenas no est, obviamente, no mesmo plano que os fenmenos;

    mas principalmente porque nem mesmo refere-se eles diretamente: as idias da razo no

    apenas no surgem da empiria, mas nem mesmo visam aplicar-se diretamente empiria. No

    entanto, em sua atividade, a razo pura no arbitrria, mas antes est tambm sujeita

    uma necessidade: sua prpria necessidade. A razo pura trabalha em funo de seus

    prprios interesses, que ela prpria se d a priori, e deste modo tida como espontaneidade

    absoluta, ou seja, como sendo livre. Liberdade no entendida como ausncia de

    determinao (indeterminismo), mas sim como ausncia de determinao externa.

    Este rpido esboo geral sobre os diferentes usos da razo, a unidade da razo e a

    liberdade da razo necessrio para compreendermos a leitura que Rawls faz da filosofia

    prtica kantiana como uma doutrina moral construtivista, pois para Rawls o corao de

    sua doutrina encontra-se em sua viso de razo construtiva livre e na idia de coerncia

    que a acompanha (LHMP, p. 275). Assim, agora podemos tentar explicitar o que Rawls

    entende por razo construtiva livre, e posteriormente pelo coerencialismo que ele atribui

    a Kant, tratando de modo mais detalhado os elementos especficos de sua filosofia moral.

    2.2 Razo construtiva e autonomia

    Rawls assinala que enquanto a razo terica preocupa-se com o conhecimento de

    objetos empiricamente dados, a razo prtica pura preocupa-se com a produo de objetos

    de acordo com uma concepo daqueles objetos (LHMP, p. 216). A nfase na produo

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    (ou construo) de objetos assinala a importncia da noo de agncia caracterstica de uma

    teoria moral construtivista, uma vez que essa concepo de acordo com a qual estes

    objetos sero produzidos no constitui nem algum tipo de abstrao a partir de dados de

    origem emprica, nem algum tipo de apreenso de uma realidade supra-emprica dada, e

    nem mesmo uma idia racional de perfeio. Antes, essa concepo de objetos que devem

    ser produzidos resultado da prpria atividade da razo prtica pura que autolegisla a

    priori, sendo que nossa razo prtica pura tem de ser o produtor supremo de seus

    prprios princpios (LHMP, p. 229-230).

    O princpio supremo da razo prtica pura o princpio da autonomia: a prpria

    razo prtica pura que determina sua lei, independentemente de qualquer outro elementoque lhe seja estranho. Essa lei a lei moral, e assim a razo considerada em sua liberdade e

    a razo enquanto submetida lei moral referem-se ao mesmo princpio, o princpio da

    autonomia. Pois enquanto livre, a razo prtica pura no recebe qualquer determinao que

    lhe seja externa; entretanto no livre no sentido de no ter determinao alguma (o que

    para Kant seria um contra-senso): a razo prtica pura determina-se a si mesma pela lei

    moral, sendo deste modo sua atividade no sujeita ao determinismo do mecanismo natural e

    nem arbitrria e aleatria, mas respondendo necessidade da prpria razo legislando a

    priori. Deste modo a lei moral entendida como a lei da liberdade, pois a lei que a

    prpria razo estabelece para si mesma, sendo que, alm dela, s h o determinismo

    natural, onde no h liberdade alguma.

    Na medida em que no pode haver nenhum objeto anteriormente dado que

    determine a razo, a lei que ela estabelece para si mesma constitui-se primariamente apenas

    da forma da lei em geral: necessidade e universalidade11. essa caracterizao meramente

    formal da lei moral que delineia o procedimento pelo qual a razo prtica constri seu

    objeto, sendo este o sentido no qual Rawls fala do princpio da autonomia enquantoimplcito em uma concepo construtivista de razo prtica pura e da lei moral como

    um princpio da razo construtiva livre (LHMP, p. 266). Tal procedimento ser chamado

    11 Kant afirma que somente uma lei formal, isto , uma lei que no prescreve razo nada mais do que aforma de sua legislao universal como condio suprema das mximas, pode ser a priori um fundamentodeterminante da razo prtica. (CRPr, p. 103), e tambm que o princpio da validade universal de todas assuas mximas como leis (que seria certamente a forma de uma razo pura prtica) (...) (FMC, p. 161).

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    por Rawls de procedimento do imperativo categrico, e o objeto construdo por meio dele

    de reino dos fins. Deste modo,

    a razo prtica pura constri seu prprio objeto a priori atravs doprocedimento do imperativo categrico, objeto este que a ordem moral pblicade um possvel reino dos fins. () ao construir seu prprio objeto a priori , sua[dos membros de um reino dos fins] razo prtica pura livre como a razo livre. Ela tem a liberdade da razo (LHMP, p. 252).

    No entanto, importante salientar que este ideal do reino dos fins no dado

    anteriormente lei moral, como se a lei moral encontrasse seu fundamento neste ideal. Isto

    tornaria a concepo kantiana uma moral teleolgica de cunho perfeccionista: o que

    moral aquilo que promove um certo ideal de sociedade dado (mesmo que seja dadounicamente pela razo). Na medida em que alguma concepo do bem seja dada

    anteriormente lei moral e a determine, o resultado sempre uma moral heternoma12:

    Kant acredita que uma vez que comeamos do bem como um objeto anterior eindependentemente dado, a concepo moral ter de ser heternoma. Isto porqueneste caso a razo prtica pura no , como deve ser, sua prpria autoridadesoberana como produtora suprema da lei. Heteronomia significa precisamenteesta falta de autoridade soberana (LHMP, p. 227).

    Este ideal de um reino dos fins construdo atravs da lei moral: no antecede a lei

    moral, mas deriva-se dela. E enquanto mero ideal, tampouco se pode lhe atribuir uma

    realidade supra-emprica, como quando se considera o que Kant fala acerca do ponto de

    vista de um mundo inteligvel como uma tese ontolgica, atribuindo assim sua filosofia

    prtica um carter realista em contraposio ao seu carter construtivista: a idia kantiana

    de autonomia exige que no possa existir uma ordem de objetos tal que determinasse os

    princpios primeiros do justo e da justia para pessoas morais, livres e iguais (CKTM, p.

    119). Na quinta seo esclareceremos um pouco mais este tpico, ao tratarmos das seis

    concepes seqenciais do bem que Rawls julga implcitas na filosofia prtica kantiana, oque permite que seu carter construtivista e deontolgico se torne mais claro.

    12 Conferir FMC, p. 147, e tambm CRPr, p. 179, onde Kant diz que se antes da lei moral se admite comofundamento determinante da vontade qualquer objeto sob o nome de bem, e ento se deduz dele o princpioprtico supremo, este em tal caso redundaria sempre em heteronomia e eliminaria o princpio moral.

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    2.3 Lei, procedimento, imperativos

    Rawls faz uma distino que, segundo sua interpretao, estaria implcita nafilosofia moral kantiana, e que necessita ser esclarecida a fim de se evitarem mal-

    entendidos: a distino entre lei moral, imperativo categrico e o procedimento do

    imperativo categrico. A lei moral uma idia da razo (LHMP, p. 167) que especifica

    um princpio vlido para todos os seres razoveis, qual seja, o princpio da autonomia. J o

    imperativo categrico diz respeito ao modo como a lei moral experenciada por seres

    razoveis finitos marcados por necessidades naturais: a lei moral se apresenta como um

    cerceamento, sendo que as suas exigncias resultam em uma obrigao, um mandamento

    incondicional. Finalmente, o procedimento do imperativo categrico constitui-se na

    articulao de um modo de reflexo (LHMP, p. 166) que visa adaptar s nossas

    circunstncias na ordem da natureza os requerimentos do raciocnio prtico, de modo que

    possa o imperativo categrico ser aplicado nossa situao (LHMP, p. 167), levando

    em considerao as condies normais da vida humana. O procedimento do imperativo

    categrico representa na forma procedimental todos os requerimentos da razo prtica

    (tanto pura quanto emprica) e como aqueles requerimentos aplicam-se a nossas mximas

    (LHMP, p. 165).A distino entre o razovel e o racional refere-se s duas formas de razo prtica:

    a razo prtica pura e a razo prtica emprica, respectivamente. A razo prtica pura

    expressa atravs do imperativo categrico, ou seja, exigncias que a razo impe

    independentemente de qualquer possvel fim almejado por algum agente particular. Estas

    exigncias, antes de referirem-se felicidade propriamente dita do agente, referem-se a este

    ser digno ou merecedor da felicidade, bem como em compatibilizar os possveis fins de

    diferentes agentes e restringi-los com respeito ao que um fim em si mesmo. O razovel,

    alm das exigncias dadas pelo imperativo categrico, entendido tambm como o

    elemento motivacional dos agentes em relao a estas exigncias, pois desde que ns no

    fssemos movidos pelo razovel, ns no tomaramos o que Kant chama um interesse

    prtico puro pela lei moral (LHMP, p. 240). Ou seja, o razovel tambm refere-se ao agir

    por respeito lei moral que caracteriza o agir por dever (FMC, p. 115, nota 10), sendo este

    interesse prtico puro pela lei moral contrastado com o agir por mero interesse (FMC, p.

    124, nota 23), que caracterizaria aes meramente conformes ao dever.

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    A razo prtica emprica, por sua vez, expressa atravs do imperativo hipottico:

    exigncias da racionalidade enquanto mero clculo acerca dos melhores meios para um fim

    dado o uso instrumental da razo. Este clculo precisa estar de acordo com os princpios

    da deliberao racional, cujos principais so tomar os meios mais efetivos para um

    determinado fim, adotar a alternativa com maior probabilidade de sucesso, e perseguir o

    fim mais inclusivo (LHMP, p. 220). Cabe assim razo prtica emprica organizar em uma

    idia racional de felicidade os diversos desejos e inclinaes do agente (LHMP, p. 263).

    Rawls faz ainda mais uma distino: entre o imperativo categrico e o

    imperativo hipottico e imperativos categricos e hipotticos particulares. Enquanto que

    um imperativo hipottico particular apenas uma mxima que diz o que deve ser feitotendo em vista um determinado fim de acordo com os princpios da deliberao racional,

    um imperativo categrico particular uma tal mxima submetida s exigncias da lei

    moral, passando pelo crivo do procedimento do imperativo categrico e desse modo

    podendo servir de lei ou preceito geral.

    2.4 O procedimento do imperativo categrico

    Rawls tratar do procedimento do imperativo categrico como possuindo quatro

    passos, tendo como base a formulao que Kant faz do imperativo categrico denominada

    frmula da lei da natureza. Rawls afirma que as diferentes formulaes do imperativo

    categrico reduzem-se a trs famlias de formulaes (frmula da lei universal, da

    humanidade como fim em si e da autonomia), que, por sua vez, tambm so de algum

    modo equivalentes (LHMP, p. 181), sendo que, a princpio, no h uma diferena

    objetiva entre elas (LHMP, p. 182). No entanto, Rawls lembra que o prprio Kant afirmaque melhor, nojuzo moral, proceder sempre segundo o mtodo rigoroso e basear-se na

    formula universal do imperativo categrico (FMC, p. 141, e LHMP, p. 182), pois ao

    tomar tal formula como a base do mtodo estrito, o procedimento do imperativo

    categrico (...) expressa este imperativo no modo mais usvel para ns (LHMP, p. 212,

    nota 2). Deste modo, o procedimento do imperativo categrico baseia-se na formulao:

    Age como se a mxima da tua ao se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal

    da natureza (FMC, p. 130).

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    No primeiro passo do procedimento, temos simplesmente uma determinada

    mxima que assumida como sendo racional do ponto de vista do agente, dadas sua

    situao, alternativas disponveis, desejos, habilidades e crenas (LHMP, p. 167). A

    mxima ainda assumida como sendo sincera, ou seja, como representando

    verdadeiramente os fins e motivos do agente. Deste modo, no primeiro passo do

    procedimento temos a seguinte frmula: Eu irei fazer X nas circunstncias C com o fim de

    obter Y, onde X representa a ao a ser realizada, C as circunstncias nas quais o

    agente se encontra e Y os objetivos do agente ao praticar determinada ao.

    No segundo passo, generalizamos a mxima que obtivemos, de modo a torn-la

    um preceito geral. Apenas substitumos, na frmula, a perspectiva do agente consideradoisoladamente pela de todos, de modo que obteremos a seguinte frmula: Todos iro fazer

    X nas circunstncias C com o fim de obter Y.

    No terceiro passo, transformamos este preceito geral em uma lei da natureza. Isso

    significa que atribumos um carter de necessidade ao preceito geral, que, no segundo

    passo, ainda tinha o carter de uma mera possibilidade. Deste modo, a frmula ser:

    Todos sempre faro X nas circunstncias C com o fim de obter Y , como se querer Y e

    fazer X fossem um efeito necessrio de C, dado o determinismo natural; o que equivale

    a pensarmos, em termos de motivao para a ao, que esta lei foi implantada em ns por

    um instinto natural (LHMP, p. 168; FMC, p. 131).

    No quarto passo, ns acrescentamos a hipottica lei da natureza obtida no terceiro

    passo com as demais leis da natureza que conhecemos, e tentamos ento pensar qual seria a

    ordem natural resultante uma vez que a recente lei adicionada estivesse produzindo seus

    efeitos. Esta nova ordem da natureza Rawls denomina de mundo social ajustado (adjusted

    social world) (LHMP, p. 169), sendo que a mxima do primeiro passo do procedimento

    imputa agora ao agente a inteno de ter sido o legislador deste mundo resultante no quartopasso.

    Assim, uma mxima moralmente permissvel apenas se satisfizer duas

    condies: 1) temos de poder querer, enquanto agentes racionais, razoveis e sinceros, agir

    a partir de tal mxima considerando o mundo social ajustado ela associado, e 2) temos

    de poder querer esse mundo por si mesmo e conseqentemente nossa insero nele. Se no

    pudermos aceitar ambas as condies, ento tal mxima representa uma ao que no deve

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    ser praticada, mesmo que uma tal ao seja plenamente racional dada nossa situao. Este

    carter restritivo, proibindo aquelas mximas que no passam pelo crivo do procedimento

    do imperativo categrico independentemente das conseqncias para nossos desejos,

    reflete a prioridade da razo prtica pura sobre a razo prtica emprica (LHMP, p.

    169) no procedimento do imperativo categrico.

    Rawls ainda assinala que, ao deliberarmos acerca de questes morais utilizando o

    procedimento do imperativo categrico, temos de tentar simular a perspectiva de agentes

    morais ideais, ou seja, agentes humanos plenamente razoveis e racionais que,

    embora afetados por inclinaes e desejos naturais, tais agentes no sodeterminados por eles e sempre agem como os princpios da razo pura requerem.

    Eles ainda so, vamos supor, lcidos e sinceros no sentido que eles sabem (oupodem formular) as razes das quais eles agem, e eles podem declarar estasrazes quando apropriado (LHMP, p. 165).

    Assim, Rawls aponta ainda que no quarto passo fazem-se necessrias

    determinadas estipulaes acerca das caractersticas que tm de ser atribudas aos agentes

    ideais do procedimento: necessrio especificar o que estes agentes ideais devem querer

    (ou quais so suas prioridades) assim como que tipo de informao eles tero disponvel, ao

    avaliar o mundo social ajustado resultante do quarto passo do procedimento (LHMP, p.

    173).

    Na medida em que estes agentes so auto-interessados (LHMP, p. 233), Rawls

    entende que a avaliao do mundo social ajustado no deve ser feita a partir de desejos

    arbitrrios e contingentes, o que faria a lei moral carecer de contedo objetivo (LHMP,

    p. 221), mas sim a partir de uma noo de necessidades humanas verdadeiras (true

    human needs) (LHMP, p. 173) que pode ser atribuda a Kant. Estas necessidades ou bens

    seriam aquelas condies necessrias para os seres humanos aproveitarem suas vidas

    (LHMP, p. 174). Para que esta idia seja utilizvel no procedimento, faz-se necessrio

    apresentar uma lista de quais seriam estes bens. Assim, Rawls diz queKant sustenta, eu penso, que ns temos necessidades humanas verdadeiras (ounecessidades bsicas) no apenas por comida, bebida, e repouso, mas ainda poreducao e cultura, assim como pelas vrias condies essenciais para odesenvolvimento e exerccio de nossa conscincia e sensibilidade moral, e para ospoderes da razo, pensamento, e julgamento (LHMP, p. 174-175).

    Esta especificao dos bens humanos verdadeiros faz-se necessria tambm

    porque os agentes ideais precisam avaliar o mundo social ajustado a partir de

    informaes limitadas, sendo que ignoram tanto as caractersticas particulares de si prprios

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    considerada, ou seja, ainda sem as restries do razovel, ao formular mximas e buscar

    concretizar sua concepo de felicidade.

    A segunda concepo do bem relaciona-se com o quarto passo do procedimento do

    imperativo categrico, a j anteriormente mencionada concepo das necessidades

    humanas verdadeiras. Esta concepo tem importncia neste passo para garantir um

    contedo objetivo lei moral, j que Kant supe diferentes agentes terem diferentes

    concepes de sua felicidade (LHMP, p. 221). Portanto, se a avaliao de um mundo

    social ajustado feita a partir de uma determinada concepo de felicidade, as mximas

    que so aprovadas pelo procedimento do imperativo categrico sero relativizadas quele

    agente particular com sua concepo de felicidade especfica, no sendo passveis devalidade universal.

    A terceira concepo do bem o bem como a realizao na vida cotidiana do

    que Kant chama fins permissveis, isto , fins que respeitam os limites da lei moral

    (LHMP, p. 222). So aqueles fins cujas mximas passam pelo teste do procedimento do

    imperativo categrico, ou seja, cujo mundo social ajustado associado a tais mximas

    satisfaz as duas condies de aceitabilidade a partir da perspectiva de agentes ideais.

    Assim, aqueles fins cujas mximas no passam pelo teste tm de ser revisados ou

    abandonados, no importando a intensidade do desejo ou o quanto tais fins so racionais da

    perspectiva do agente - deste modo fica expressa a prioridade do justo (as exigncias do

    razovel) sobre o bem (as demandas da racionalidade). Rawls enfatiza que a partir desta

    concepo do bem o contraste com uma doutrina moral teleolgica tal como o

    utilitarismo claro, desde que para Kant a concepo de fins permissveis pressupe que a

    lei moral e os princpios da razo prtica pura j estejam colocados (LHMP, p. 222).

    A quarta concepo do bem a concepo da boa vontade. Esta a concepo do

    bem relacionada ao valor moral de uma pessoa. A boa vontade tem um valor absoluto,sendo a nica coisa boa em si mesma, de modo que esta vontade no ser na verdade o

    nico bem nem o bem total, mas ter de ser contudo o bem supremo e a condio de tudo o

    mais, mesmo de toda aspirao de felicidade (FMC, p. 111). Segundo Rawls, este bem

    consiste em um firme e estvel desejo de ordem superior, ou para usar o termo de Kant, um

    interesse prtico puro, o qual nos leva a tomar interesse em agir por dever (LHMP, p.

    223) e no meramente conforme ao dever: o interesse prtico puro de respeitar as

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    exigncias da lei moral mesmo em detrimento de desejos e inclinaes. No entanto, Rawls

    assinala que o valor absoluto da boa vontade no para ser considerado, como em uma

    concepo teleolgica, como o valor supremo a ser maximizado (LHMP, p. 210). Para

    Rawls, esta concepo de boa vontade possui dois papis principais na filosofia prtica

    kantiana. O primeiro que ela a condio de sermos membros de um possvel reino dos

    fins (LHMP, p. 158), sendo isto amplamente aceito, como algo bsico do pensamento

    democrtico (LHMP, p. 160). O segundo papel diz respeito ao que Rawls chama de um

    aspecto religioso (LHMP, p. 160) da filosofia prtica kantiana, e refere-se basicamente ao

    sentido de nossa vida no mundo (LHMP, p. 158).

    A quinta concepo do bem justamente a do reino dos fins, o objeto construdopela razo prtica pura. Agora j podemos esclarecer dois diferentes sentidos em que

    podemos tomar a construo do reino dos fins. Primeiro, o prprio ideal do reino dos fins

    construdo via procedimento do imperativo categrico: o ideal de uma comunidade moral

    resultante de todas as mximas que servem como imperativos categricos particulares no

    o fundamento da lei moral, mas deriva-se desta lei, como j o dissemos anteriormente

    (seo 2.2, p. 22). O segundo sentido refere-se mais propriamente concretizao deste

    ideal. Deste modo o reino dos fins uma idia prtica para realizar o que no existe mas

    que pode tornar-se real pelas nossas aes e omisses, e isso exatamente em conformidade

    com esta idia (FMC, p. 141, nota 43). Rawls enfatiza que um componente essencial

    deste ideal que razovel tentar realizar um tal reino no mundo natural (LHMP, p.

    311), ou seja, tal ideal no se apresenta como uma utopia inalcanvel, mas como um bem

    natural, um bem que possvel (embora nunca plenamente realizvel) na ordem da

    natureza (LHMP, p. 311).

    Por um reino dos fins deve ser entendida uma conjuno sistemtica de pessoas

    razoveis e racionais sobre leis (morais) comuns (LHMP, p. 208). Por conjunosistemtica deve-se entender a compatibilizao, em uma ordem moral pblica, de todos

    os fins moralmente permissveis de seus membros. Isto, por sua vez, implica que todas as

    pessoas razoveis e racionais tratam-se a si mesmas assim como as outras como tais

    pessoas e portanto como fins em si mesmas (LHMP, p. 208). Ou seja, no apenas

    submetem-se s restries da moralidade abandonando fins moralmente proibidos tendo em

    vista a conservao do que fim em si (deveres da justia), mas ainda devem buscar

  • 8/14/2019 Dissertao - Uma Teoria da Justia - Rawls

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    promover aquilo que fim em si (deveres da virtude), assumindo determinados fins como

    obrigatrios, como por exemplo promover sua perfeio moral e natural e a felicidade

    dos outros (LHMP, p. 209).

    Rawls lembra que um componente essencial do reino dos fins a condio de

    adeso (membership) (...). Esta condio simplesmente a personalidade moral, ou os

    poderes da razo prtica (LHMP, p. 209). Ou seja, ser membro do reino dos fins implica

    em ser legislador desta comunidade moral, o que segundo Kant o fundamento da

    dignidade humana, de seu valor como fim em si (conforme tratamos anteriormente, na

    seo 1.2, p.12).

    Por fim, a sexta concepo do bem na filosofia prtica kantiana a concepo dobem completo. Este bem a conjuno do ser merecedor da felicidade e do ser feliz de fato

    em uma realizao aproximada do ideal do reino dos fins13: este o bem obtido quando o

    ideal de um reino dos fins realizado e cada membro tanto tem uma boa vontade quanto

    alcanou a felicidade, at onde as condies da vida humana permitem (LHMP, p.225).

    A boa vontade, como bem supremo, condio para a possvel obteno do bem

    completo: ser merecedor da felicidade requisito para desfrutar a felicidade, j que esta

    felicidade s possvel na concretizao aproximada do ideal do reino dos fins, ou seja, na

    medida que em seus membros cumprem efetivamente seus deveres de justia e de virtude.

    Rawls ainda esclarece que, apesar de a boa vontade e a felicidade serem bens to

    diferentes em suas naturezas, e em seus fundamentos em nossas pessoas (LHMP, p. 225),

    eles so ambos bens incomensurveis que no precisam ser pesados um contra o outro, pois

    que eles podem ser combinados em um bem completo e unificado apenas pela relao da

    estrita prioridade de um sobre o outro (LHMP, p. 226); isto , a prioridade da razo

    prtica pura (o razovel) sobre a razo prtica emprica (o racional), ou a prioridade do

    justo sobre o bem.

    13 Rawls considera que a concepo do bem completo como a premiao da felicidade conforme a virtude,realizada por Deus, um aspecto religioso da doutrina kantiana que mes