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UNIVERSIDADE SˆO JUDAS TADEU Programa de Ps-Graduaªo em Filosofia O JUIZ E A INTERPRETA˙ˆO NO PROCESSO JUDICIAL Dissertaªo apresentada Banca Examinadora da Universidade Sªo Judas Tadeu como exigŒncia para obtenªo do ttulo de mestre em filosofia, sob a orientaªo do Prof. Dr. HØlio Salles Gentil Vnia da Silva Schütz Sªo Paulo, 2013

Dissertação Vânia da Silva Schütz.doc - pdfMachine from ... · Sabedoria PrÆtica, de modo que entre o legal e o bom esteja o justo. Palavras-chave: Ricoeur, interpretaçªo,

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU Programa de Pós-Graduação em Filosofia

O JUIZ E A INTERPRETAÇÃO NO PROCESSO JUDICIAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Universidade São Judas Tadeu como exigência para obtenção do título de mestre em filosofia, sob a orientação do Prof. Dr. Hélio Salles Gentil

Vânia da Silva Schütz

São Paulo, 2013

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Banca Examinadora:

Prof(a). Dr.(a)____________________________________

Prof(a). Dr.(a)____________________________________

Suplentes:

Prof(a). Dr.(a)____________________________________

Prof(a). Dr.(a)____________________________________

Schütz, Vânia da Silva S586j O juiz e a interpretação no processo judicial / Vânia da Silva

Schütz. - São Paulo, 2013. 155 f. : il. ; 30 cm.

Orientador: Hélio Salles Gentil.

Dissertação (mestrado) � Universidade São Judas Tadeu, São

Paulo, 2013.

1. Filosofia. 2. Juíz � Processo Judicial. I. Gentil,

Hélio Salles. II. Universidade São Judas Tadeu,

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em

Filosofia. III. Título

CDD 22 � 340.1

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Dedicatória

Ao meu pai, Juvenil Nunes da Silva, in memorian, que foi, é e será meu modelo de vida, de honestidade,

de trabalho, de responsabilidade, de carinho e afeto, meu grande e eterno incentivador.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dr. Hélio Salles Gentil, incansável na orientação de uma

operadora do direito que inconformada com a situação judiciária viu na filosofia uma

possibilidade de refletir acerca das tantas indagações e contradições do cotidiano

jurídico.

À minha grande amiga Marilu Oliveira Ramos, pelo incentivo constante e

disponibilidade em me ajudar profissionalmente de modo que fosse possível a obtenção

de um pouco mais de tempo para a dedicação aos estudos.

À minha amiga-irmã Silvana Malaquias Antunes, seus pais, José e Hilda Antunes

e seu irmão Saulo Antunes, que torcem incansavelmente pela minha vitória nos mais

diversos seguimentos da minha vida, me dando suporte emocional para prosseguir.

Por fim, ao meu esposo, Prof. Dr. Jorge Schütz Dias, inspiração acadêmica,

companheiro amoroso e fiel, paciente, que abraçou comigo a luta da vida iluminando o

meu caminho para que até aqui chegasse, meu especial agradecimento por não ter me

deixado desistir de lutar.

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RESUMO

Este trabalho trata da análise do ato de julgar sob a perspectiva da fenomenologia

hermenêutica de Paul Ricoeur. O objetivo é examinar o processo judicial desde o seu

nascimento, dando-se ênfase à utilização da linguagem. Trabalha-se com a hipótese de

que ocorrem vários processos interpretativos em todo o desenrolar do processo

judicial, desde o seu nascedouro até a prolação de sentença. Para propiciar esta análise,

traz-se a baila o pensamento ricoeuriano acerca da justiça como uma prática social da

qual decorrem princípios, quais sejam: ocasiões da justiça que diz respeito ao fato de

que se lida com a justiça quando surge a necessidade de evocar uma instância superior

para solucionar conflitos; canais da justiça, que diz respeito ao aparelho judiciário

compreendendo os tribunais, os juízes, um corpo de leis escritas; argumentos da

justiça, que dizem respeito ao fato de fazer parte da justiça a atividade comunicativa

mediante o emprego da linguagem. Esses princípios dão o contorno do problema

examinado. No que tange à situação específica de prolação da sentença, é examinada a

pessoa do juiz na qualidade de um intérprete no processo judicial, analisando-se a

relação da formação de sua identidade profissional e de sua identidade pessoal e as

implicações dessas relações no julgamento a ser proferido, destacando-se que as

sentenças serão justas na medida em que visarem uma vida boa, levando em conta a

Sabedoria Prática, de modo que entre o legal e o bom esteja o justo.

Palavras-chave: Ricoeur, interpretação, juiz, processo judicial.

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ABSTRACT

This paper covers the act of judging by the perspective of Paul Ricoeur�s hermeneutic

phenomenology. The objective is to examine the legal proceeding since its birth, lending

emphasis to its language use. This is a study about the hypothesis of the occurrence of

various interpretative processes in the course of the proceedings, since its birth until the

delivery of the sentence. To provide an analysis of it, the paper brings up Ricoeur�s

thoughts about justice as a form of social practice from which the following principles

derive: occasions of justice, which refer to the fact that dealing with the justice is

mandatory in need of evoking a superior instance to solve conflicts; justice channels,

which refer to a judicial system concerning the court, the judges and a body of written

laws; justice arguments, which refer to the fact of being part of the justice a

communicative activity carried through language. These principles provide the shape of

the analyzed problem. With regard to the specific situation of sentence delivery, the

person of the judge as interpret in a legal proceeding is investigated, being analyzed the

relation between the formation of his professional identity and his personal identity,

and the implications of these relations on the judgment to be uttered, highlighting that

the sentences will be fair inasmuch as they aim for a pleasant life, taking into account

the Practical Wisdom, in a way that between the legal and the pleasing lies the

righteous.

Keywords: Ricoeur, interpretation, judge, legal proceedings

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LISTA DE SIGLAS

Ag.Reg. Agravo Regimental

CC Código Civil

CEMN Código de Ética da Magistratura Nacional

CF Constituição Federal

CPC Código de Processo Civil

CP Código Penal

DJU

HI

Diário de Justiça da União

Hermenêutica e Ideologias

LI

LICC

MHE

Leituras 1 � Em torno ao Político

Lei de Introdução ao Código Civil

A Memória, a História, o Esquecimento

MS

SMCO

Mandado de Segurança

O Si mesmo como um Outro

STF Supremo Tribunal Federal

STJ

TI

TN

V.U.

Superior Tribunal de Justiça

Teoria da Interpretação

Tempo e Narrativa

Votação Unânime

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SUMÁRIO Introdução...........................................................................................................................08 CAPÍTULO I � A Hermenêutica Filosófica, a Hermenêutica Jurídica e o Conceito de Justiça 1.1. Introdução.....................................................................................................................14 1.1. O Problema Hermenêutico Encontrado por Ricoeur.............................................18 1.2. Uma Parte da Contribuição dada por Ricoeur à Hermenêutica...........................25 1.2.1 A Dialética do Evento e da Significação.................................................................27 1.2.2 A Passagem da Fala para a Escrita e o Mundo do Texto.....................................30 1.3. A Hermenêutica Jurídica.............................................................................................33 1.4. O Conceito de Justiça em Paul Ricoeur....................................................................43 1.4.1. Ética e Moral...............................................................................................................43 1.4.2. O Conceito de Justiça................................................................................................47 1.4.3. Da Teoria à Prática da Justiça..................................................................................58 CAPÍTULO II � A Linguagem no Processo Judicial 2.1. Introdução......................................................................................................................65 2.2 Há diálogo no Processo Judicial?...............................................................................68 2.3. O Processo Judicial como narrativa...........................................................................72 2.4. O Sentimento no Processo Judicial.............................................................................77 2.5. A Passagem da Fala à Escrita no Processo Judicial..................................................83 2.6. O Esquema de Comunicação de Jakobson e o Processo Judicial............................88 2.7. A Significação do Discurso no Processo Judicial.....................................................90 2.8 A Busca da Verdade no Processo Judicial.................................................................94

CAPÍTULO III � Um Intérprete no Processo Judicial: O Juiz 3.1. Introdução......................................................................................................................111 3.2. A Ação Judicial e a Atuação do Juiz ..........................................................................113 3.3. A Formação da identidade ........................................................................................120 3.3.1 A Identidade Funcional.......................................................................................120 3.3.2 A Identidade Pessoal...........................................................................................130 3.4. O Juiz e a Sabedoria Prática........................................................................................138

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Conclusão..............................................................................................................................144 Bibliografia............................................................................................................................151

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INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é examinar um aspecto do ato de julgar, seu exercício na

prática judiciária, sob a perspectiva filosófica de Paul Ricoeur. Um ato que pode parecer

simples se considerada a mecanização presente na prática hodierna do direito, revela-se

bastante complexo na medida em que dele se toma a devida distância para uma reflexão

sobre as condições que envolvem os procedimentos que o constituem.

A busca pela compreensão do modo como ocorre o processo judicial até a

prolação da sentença levou a pesquisadora a encontrar no pensamento filosófico de Paul

Ricoeur instrumentos para pensar inúmeras questões decorrentes da prática judiciária.

Assim, o pensamento ricoeuriano será usado como lente através da qual se examinará o

processo judicial.

Inicialmente examinaremos como se forma o processo judicial e o seu desenrolar

até a prolação da sentença. Trabalhamos com a hipótese de que ocorrem várias

interpretações ao longo de todo o desenrolar do processo judicial, desde o seu

nascedouro até a prolação de sentença. O juiz, como cumpridor do mister de distribuir

corretamente o direito às partes litigantes, faz inúmeras interpretações (de textos, de

gestos, de falas, da vida) no decorrer do processo, até chegar à prolação da sentença, que

também será passível de interpretação pelas partes, por juízes de Segunda Instância e

por terceiros, uma vez que algumas sentenças geram efeitos não somente entre as partes,

mas atingem uma coletividade.

No entanto, antes de adentrar-se à discussão das questões de interpretação

ocorridas no processo judicial, acompanharemos, em linhas gerais, a constituição e

caracterização do que se denomina hermenêutica filosófica, no que ela é distinta de uma

hermenêutica jurídica, tomando como ponto de chegada o problema hermenêutico tal

como encontrado por Ricoeur decorrente, segundo sua própria leitura, das elaborações

desenvolvidas por Schleiermacher, Dilthey, Heidegger e Gadamer, após o que

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destacaremos o a contribuição específica de Ricoeur para esta hermenêutica, consistente,

no que nos interessa aqui, no destaque dado por ele à passagem do discurso oral ao

discurso escrito e aos problemas colocados para a interpretação de textos, diferentes dos

colocados para a interpretação de falas.

Em que pese o desenvolvimento deste trabalho com base na hermenêutica

filosófica, é cediço a existência da hermenêutica jurídica, esta, considerada uma

hermenêutica especial que está diretamente ligada à interpretação de textos legais. A

escolha da hermenêutica filosófica para examinar as questões de interpretação ocorridas

no processo judicial decorre do entendimento de que a hermenêutica jurídica não dá

conta da totalidade das dimensões envolvidas nas interpretações ocorridas no processo

judicial, da qual ela é apenas uma parte. Julgar um caso concreto não se reduz a

simplesmente aplicar a lei mediante suas interpretações regradas, da forma como trata

do assunto a hermenêutica jurídica. O que se pretende examinar aqui são as condições

que vão muito além destas meras aplicações regulamentadas, daí a perspectiva mais

abrangente da hermenêutica filosófica.

E o pensamento de Ricoeur não é trazido somente para exame das questões

relativas à interpretação. Para situar o problema em exame, qual seja, o ato de julgar,

traz-se à baila o pensamento ricoeuriano acerca da justiça como uma prática social, nos

oferecendo um quadro geral da totalidade do processo, distinguindo: as �ocasiões da

justiça�, expressão com que indica o fato de que se lida com a justiça quando surge a

necessidade de evocar uma instância superior para solucionar conflitos; os �canais da

justiça�, que diz respeito ao aparelho judiciário compreendendo os tribunais, os juízes,

um corpo de leis escritas; e os �argumentos da justiça�, que diz respeito ao fato de fazer

parte da justiça a atividade comunicativa mediante o emprego da linguagem. Além

disso, consideramos também suas ideias acerca da ética e da moral, do justo entre o bom

e o legal e da justiça como sabedoria prática, e que nos ajudarão na compreensão da

prolação da sentença judicial.

Sendo assim, no primeiro capítulo, com o fito de dar-se uma visão geral do

problema objeto da pesquisa, a exposição tem início com a posição de Ricoeur na

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hermenêutica partindo-se do pensamento de seus antecessores os quais foram tomados

por ele como referência para que chegasse às suas concepções sobre hermenêutica.

Ricoeur apontou o pano de fundo, o estado em que se encontrava o problema

hermenêutico examinando os filósofos Schleiermacher, Dilthey, Heidegger e Gadamer,

para a partir daí formular sua contribuição, a qual será parcialmente considerada.

Neste primeiro capítulo também será exposta a hermenêutica jurídica,

apresentando suas características e os métodos desenvolvidos de interpretação da lei.

Para a hermenêutica jurídica, a referência da interpretação é a lei e todas as regras

aplicadas convergem para esta ideia.

Ainda no capítulo 1, apresentamos algumas das ideias de Ricoeur sobre a justiça.

Ora, sendo o tema deste trabalho a sentença judicial, esta, decorrente de um processo

judicial que é instaurado na medida em que uma pessoa (física ou jurídica) busca a

tutela estatal para a resolução de um conflito no qual está envolvido, clamando por

justiça, encontramos nas ideias de Ricoeur sobre a justiça noções esclarecedoras dessa

situação, procurando com elas estabelecer o campo de nosso problema.

O segundo capítulo tem por foco o exame da linguagem no processo judicial e

começa com o exame da existência do diálogo no processo judicial, aproveitando o mote

de Ricoeur de que �a hermenêutica começa quando termina o diálogo�.1 Nesse sentido,

consideraremos se o conflito decorre da falta de diálogo ou se existe a possibilidade de

diálogo mesmo onde existe conflito, e de que maneira o diálogo está presente no

processo judicial.

Ademais, examinaremos como o processo judicial caminha até a prolação da

sentença, descrevendo os elementos da linguagem que estão diretamente envolvidos na

prática processual e seus desdobramentos no decorrer do processo. Para melhor

compreender a linguagem utilizada no processo judicial, se examinará a questão da

narrativa, uma vez que a reconstrução da história no processo judicial é um momento

importante deste processo. O passado está em permanente processo de reinterpretação,

tendo em vista um futuro. Ainda no que tange à compreensão da linguagem e,

1 RICOEUR, TI, 2009, p. 50.

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especificamente no concernente ao discurso, será posta sob exame a significação do

discurso no processo judicial, aí compreendido �o dizer�, �o dito�, �acerca do que se

diz� e as consequências dessa significação.

A produção de provas no processo judicial será objeto de exame em dois

momentos distintos, dando-se ênfase em ambos os momentos à colheita de provas

testemunhais. Destacamos que todos os atos processuais se tornam escritos, ainda que

tenham sido feitos inicialmente de forma oral. Examinaremos as consequências desta

transformação do meio oral para o escrito, dessa passagem da fala para a escrita. Num

segundo momento, voltamos à questão dos depoimentos testemunhais para examinar a

dimensão da verdade no processo judicial, aí considerando a verdade como

correspondência entre o que narram as testemunhas ou as partes e o que de fato se

passou entre elas no acontecimento original. Levando-se em conta que o processo

judicial tem por finalidade intermediária a busca da verdade a fim de que o juiz, tendo

encontrado a verdade de acordo com seu livre convencimento, dê razão a uma, a outra

parte ou a ambas as partes, examinamos aqui a possibilidade de uma alegação falsa ser

tomada por verdade e suas consequências, podendo acarretar uma sentença judicial

contrária à finalidade de distribuição da justiça.

Também se examinará no segundo capítulo a presença dos sentimentos no

processo, em particular nos escritos do processo judicial. Segundo Ricoeur, o indivíduo

é mais sensível ao sentimento de injustiça do que ao sentimento de justiça. Se há

sentimento de injustiça no processo judicial (ou de justiça), como este sentimento

poderia se exteriorizar? A hipótese considerada é que o processo judicial carrega em

seus discursos sentimentos que se revelam mediante a utilização de termos, a

concatenação das palavras, as exclamações, as interrogações, pontuações em geral,

alternância entre palavras com letras maiúsculas e minúsculas, repetição de alguma

expressão ou afirmativa, itálicos, negritos, sublinhado, de modo a exteriorizar o

sentimento do peticionário. E estes sentimentos assim expressos não são irrelevantes

para as interpretações que o juiz faz e para a sentença prolatada.

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No terceiro capítulo tomamos como foco o sujeito que conduz o processo judicial

e nele faz as interpretações até a prolação da sentença e é essencial ao funcionamento do

Poder Judiciário: o Juiz, o magistrado.

Saliente-se que o Poder Judiciário é dividido em Instâncias, sendo a Primeira

Instância o local onde os processos judiciais são propostos tendo sequência até seu

julgamento. Se houver insatisfação com o julgamento, a parte insatisfeita poderá entrar

com recurso para que seja reexaminada a matéria por um colegiado de Juízes que

compõem o Tribunal, este, considerado Segunda Instância. O juiz sob exame aqui é o

juiz de Primeira Instância, aquele que conduz o processo e prolata a sentença em

Primeira Instância.2

Destarte, neste capítulo se examinará a atuação do juiz na ação judicial e as

ferramentas legais que ele tem para conduzir o processo e prolatar a sentença. Ato

contínuo se examinará a formação de sua identidade pessoal, considerando que há uma

relação importante entre seu exercício profissional e sua identidade pessoal. Por ser o

ato de julgar designado pela sociedade a uma pessoa é que se faz necessário pensar em

quem é este sujeito que julga. Quem é ele, o que ele faz, qual a sua formação técnica,

como se forma a identidade pessoal e sua relação com os problemas que envolvem o

exercício de sua função. Para exame da formação de sua identidade profissional, são

trazidos o Estatuto da Magistratura e o respectivo Código de Ética e para o exame da

formação de sua identidade pessoal são trazidas as ideias de Charles Taylor e de Paul

Ricoeur.

Por fim, se examinará o ato de julgar com base na concepção de justiça como

prática social, no modo como pensado por Ricoeur, levando-se em conta que o juiz, ao

prolatar uma decisão e, baseado em todas as interpretações feitas durante o processo,

suas referências éticas e morais, suas reflexões acerca de si e acerca do outro, acabará

por estabelecer, na prática, uma medida entre o que é legal e o que é o bom em suas

referências, mesmo que não saiba disso. Pode-se pensar que há ele de achar um 2 A regra geral é que o processo judicial se inicia com o juiz monocrático, de Primeira Instância. No entanto, a lei prevê � pela via da exceção � os casos em que são de competência originária dos Tribunais processar e julgar determinadas causa. Não é este o caso sob exame neste trabalho.

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equilíbrio a fim de que entre o legal e o bom esteja o justo. Este equilíbrio decorreria de

uma �sabedoria prática�, que assim considerada, nos termos de Ricoeur, transcende a

norma e que lida com o viver em conjunto, não se detendo somente ao que é bom para

os indivíduos e nem somente ao que está na norma.

A conclusão deste trabalho retoma algumas das ideias de Ricoeur para exame do

processo judicial. Se por um lado, tomando-se a devida distância da prática judiciária há

uma gama de possibilidades de exame da justiça em abstrato, por outro lado, colocando

a lente do pensamento ricoeuriano bem perto da prática judiciária, podem-se enxergar

com clareza as nuances dos procedimentos muitas vezes automatizados e viciados pela

prática hodierna. Não se pretende neste trabalho dar soluções para o juiz sentenciar

deste ou daquele jeito. Dizer o que o juiz deve ou não deve fazer não é o objetivo deste

trabalho. No entanto, o que se pretende mostrar é que a partir da consideração de uma

intenção de vida boa, reconhecida como horizonte maior de todo ato de julgar, é

possível pensar que uma visão mais ampla do que a da hermenêutica jurídica mais

tradicional pode contribuir para se achar o melhor lugar do justo, como nos ensinou

Ricoeur, entre o bom e o legal.

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CAPÍTULO I

A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA, A HERMENÊUTICA JURÍDICA E O CONCEITO DE JUSTIÇA EM

RICOEUR

1. Introdução

Segundo Richard Palmer, a palavra hermenêutica vem do verbo grego

hermeneuien o substantivo hermeneia, palavras estas que derivam do deus grego Hermes.

Na mitologia grega, é atribuído ao deus Hermes a transformação de �... tudo aquilo que

ultrapassa a compreensão humana em algo que essa inteligência consiga compreender.�

3 Então, segundo a crença grega, Hermes tornava claro, nítido e compreensível o que a

inteligência humana tivesse por obscuro e incompreensível.4 Por conta deste �poder

aclarador�, os gregos atribuíam a Hermes a descoberta da linguagem e da escrita, já que

tanto a linguagem como a escrita são ferramentas para a compreensão e transmissão dos

significados pelos seres humanos.5

O uso da palavra hermenêutica tendo como significado interpretar/compreender

se deu inicialmente no campo da teologia, na medida em que as técnicas de

interpretação começaram a ser usadas para a compreensão das Escrituras Sagradas.

Segundo Palmer, a palavra hermenêutica encontrou seu atual uso na medida em que

houve necessidade de utilização de regras para uma exegese adequada das Escrituras. 6

3 PALMER, Richard. E. Hermenêutica, Coleção O saber da Filosofia, Edições 70, 2006, p. 24. 4 Embora o pensamento de Palmer sobre a derivação da palavra hermenêutica do deus Hermes não seja isolada, a atribuição ao deus-Hermes como origem da hermenêutica também não é consenso entre os filósofos. Emerich Coreth diz que não há certeza de ter a palavra hermenêutica derivado do deus Hermes. Para ele, esta derivação é apenas uma probabilidade, porém, independentemente de ser ou não a palavra derivada de Hermes, para os gregos o termo hermenêutica referia-se a uma dimensão sacra de compreensão e interpretação da palavra advinda de uma divindade. CORETH, Emerich. Questões Fundamentais da hermenêutica, Tradução de Carlos Lopes Matos, Editora Pedagógica e Universitária Ltda., 1919, p. 2. 5 PALMER, Richard. Op. cit., p. 23-24. 6 PALMER, 2006, p. 44.

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Richard Palmer não situa exatamente no tempo quando teria sido difundido o

significado mais antigo da palavra hermenêutica como princípio de interpretação

bíblica. Segundo Palmer, as operações de exegese textual e as teorias de interpretação

remontam a antiguidade.7 No entanto indica como provável o aparecimento do termo

hermenêutica Ra como título de uma obra de J. C. Danhauer publicada em 1654, obra

esta intitulada Hermenêutica Sacre Sive Methodus exponendarum sacrarum litterarum.8

Segundo Palmer, depois da publicação da obra de Danhauer, o termo

�hermenêutico� passou a surgir com mais frequência, notadamente na Alemanha, onde

círculos protestantes passaram a criar manuais de interpretação das Escrituras,

aparecendo no decorrer dos anos entre os séculos XVII e XVIII novos manuais que

ajudassem os sacerdotes na exegese das Escrituras, estes antes sem qualquer recurso

para decidirem sobre as questões de interpretação.9

No século XVIII, com o advento da filologia clássica as escolas de interpretação

bíblica gramatical e histórica passaram a reconhecer que os mesmos métodos de

interpretação da Bíblia deveriam ser utilizados nas demais obras não bíblicas. Concluiu-

se nessa ocasião que para a compreensão de um texto, seria imprescindível a análise e

compreensão do contexto em que estava inserido. No caso dos textos bíblicos, os

contextos históricos das narrações bíblicas, de modo que a tarefa do intérprete tornou-se

uma tarefa também histórica, estando diretamente ligada à filologia.10

Segundo Palmer, a interpretação o conjunto de regras para interpretação de textos

bíblicos aos poucos se transformou num conjunto de regras gerais da exegese filológica,

sendo a Bíblia apenas um dos textos em que a utilização dessas regras era viável. 11

De acordo com Palmer, foi Schleiermacher (1768-1834) quem passou a ver a

hermenêutica como arte da compreensão, em total crítica ao ponto de vista da filologia.

Para Schleiermacher, a hermenêutica não podia ser tida como um conjunto de regras,

mas a arte de compreensão em qualquer diálogo. Então, a partir de Schleiermacher, a 7 PALMER, 2006, p. 45. 8 PALMER, 2006, p. 44. Nesse mesmo sentido, CORETH, Emerich, 1973, op. cit., p. 3. 9 PALMER, 2006, p. 44. 10 PALMER, 2006, p. 49. 11 Idem.

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hermenêutica deixa de ser um conjunto de regras para interpretação de um texto

específico disciplinar para passar a uma arte de interpretação geral, conforme se verá

adiante.12

A história do desenvolvimento das técnicas interpretativas segue com Wilhem

Dilthey (1833-1911), Martin Heidegger (1889-1976) e Hans George Gadamer (1900-2002).

Foi com base no desenvolvimento da teoria hermenêutica por estes pensadores (além de

Schleiermacher), que Ricoeur apontou o estado em que recebia e percebia o problema

hermenêutico para, a partir daí, ofertar sua contribuição ao tema.13 Para Ricoeur, foi com

Schleiermacher e Dilthey que o problema hermenêutico se tornou problema filosófico.14

Paul Ricoeur define a hermenêutica como �a teoria das operações da

compreensão em sua relação com a interpretação de textos.�15

Para entender esta definição de Ricoeur, necessário se faz passar pelo conceito de

compreensão. E, ao se pensar em compreensão torna-se inevitável o questionamento

sobre a possibilidade de os textos, as obras, a vida, serem compreendidos se os sujeitos

têm horizonte de significados distintos uns dos outros. Como é possível compreender?

Esta questão indica o problema filosófico acerca da compreensão contido na palavra

hermenêutica.

Para Emerich Coreth, compreender significa apreender o sentido, num universo

em que o sentido é aquilo que é significativo em um contexto e tem uma significação

originária da linguagem. As coisas no mundo não têm um único sentido, assim como as

palavras não têm um único sentido. Para que o sentido das coisas e das palavras se

revele, há que se analisar o contexto em que estão incluídos os objetos de análise. Se a

compreensão se tratar de algo da vida humana cotidiana, por exemplo, há que se

analisar o contexto da situação vivida a fim de que possa haver compreensão da

12 PALMER, 2006, p. 50. 13 RICOEUR, HI, 2008, p. 24. 14 RICOEUR, CI, 1969, p. 7. 15 RICOEUR, HI, 2008, p. 23.

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situação. Se a compreensão é da palavra � quer oral, quer escrita � há que se analisar o

contexto da fala ou da escrita. 16

Para Ricoeur, compreender não é só um modo de conhecimento, mas um modo

de ser. O questionamento feito acima no sentido de que como um sujeito pode

compreender um texto, uma história, para Ricoeur é substituído pela seguinte questão: o

que é um ser cujo ser consiste em compreender?17

E a relação da compreensão com os textos? Segundo Ricoeur, a primeira e mais

originária relação entre o conceito de interpretação e compreensão é a relação de

comunicação dos problemas técnicos da exegese textual com os problemas da

significação e da linguagem.18 Para Ricoeur, �é primeiro e sempre na linguagem que

vem exprimir-se toda a compreensão única ou ontológica�.19

Desta feita, abordar-se-á a importância da Linguagem na visão ricoeuriana para,

posteriormente, abordar-se a questão da linguagem no processo judicial com base no

pensamento ricoeuriano.

A abrangência da teoria de interpretação hermenêutica é muito ampla.

Interpretar é inerente ao ser humano e faz parte de sua vivência no mundo. O ser

humano interpreta para compreender e a busca pela compreensão não é somente pela

compreensão de textos, de obras de arte, de músicas. O ser humano quer compreender

a própria vivência, a vivência de outrem, os fatos e situações da vida, a forma de estar

no mundo, e, até mesmo os pensamentos e os sonhos.20

Palmer, citando Ricoeur, aponta que a interpretação permeia todo o viver

humano, pois o ser humano não somente interpreta textos, obras de arte, músicas, mas

interpreta a vida, a forma de estar no mundo. O viver humano é repleto de símbolos.

Até mesmo os sonhos são passíveis de interpretação porque são formados por imagens

simbólicas.21

16 CORETH, Emerich. Op.cit., p. 50-51. 17 RICOEUR, CI, 1969, p. 8. 18 RICOEUR, CI, 1969, p. 6. 19 RICOEUR, CI, 1969, p. 13. 20 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica, 1997, p. 82-86. 21 PALMER, 2008, p. 52.

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Dessa forma, a interpretação parece ser ato essencial do ser humano, permeando

seu pensamento. Nesse sentido, muito interessante o pensamento de Raimundo Bezerra

Falcão, segundo o qual �viver é estar condenado � grata condenação! � a interpretar

constantemente�.22

Como se pode verificar, o problema hermenêutico é amplo e complexo.

Interpretar, compreender, clarificar, não são tarefas tão fáceis quanto parecem ser diante

da imensidão de abrangência e da multiplicidade de símbolos, signos, significados e

diferentes percepções destes. Isto porque, é cediço que cada ser humano tem um

horizonte de significado e isto faz com que a compreensão passe a ser um problema.

Considerando que este trabalho tem por foco o problema da interpretação na

prolação da sentença, não se poderia deixar de fora a consideração de abordagem da

hermenêutica jurídica. Isto porque, se a prática jurídica tem uma hermenêutica própria,

não seria ela, com sua teoria e suas regras, suficiente à reflexão sobre as questões

oriundas das interpretações que ocorrem no decorrer do processo judicial até a prolação

da sentença? Parece que não.

Pretende-se demonstrar no decorrer deste capítulo que a metodologia de

interpretação abordada pela hermenêutica jurídica não dá conta da totalidade da

questão interpretativa presente no processo judicial até a prolação da sentença. Por esta

razão que este trabalho volta-se à hermenêutica filosófica, com o objetivo de refletir

acerca da problemática da interpretação no processo judicial.

1.1. O problema Hermenêutico Encontrado por Ricoeur

Segundo Paul Ricoeur, a hermenêutica tem como objetivo �desvelar� o sentido

que o texto oferece para além do conteúdo manifesto. Para Ricoeur, a hermenêutica

22 FALCÃO, 1997, p. 84.

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possui uma proximidade às questões da linguagem. Ele define a hermenêutica como �a

teoria das operações da compreensão em sua relação com a interpretação de textos�.23

Essa proximidade das questões da linguagem, segundo Ricoeur, se dá porque nas

línguas naturais, as palavras possuem vários significados, ou seja, as palavras têm como

característica a polissemia quando consideradas fora de um contexto específico. Sendo

assim, para que a palavra seja compreendida faz-se necessária uma sensibilidade ao

contexto em que está inserida. E, o manejo deste contexto articula uma atividade de

discernimento que é a interpretação.

Então, para Ricoeur, o primeiro e mais elementar trabalho da interpretação é a

identificação do significado do discurso elaborado com palavras polissêmicas. Este

discernimento de significado é a é a interpretação que somente é possível mediante o

uso da linguagem.24

Por isso, para Ricoeur a hermenêutica deve ser estudada a partir da linguagem,

principalmente da linguagem escrita. Este vínculo da interpretação com a linguagem

escrita se dá porque, segundo Ricoeur, a hermenêutica é a teoria da interpretação

voltada para textos e são os textos exemplos de linguagem escrita.25 Para Ricoeur, a

linguagem é o� primeiro lugar da interpretação�.26

O desenvolvimento da teoria hermenêutica realizada por Ricoeur é decorrente

de uma revisão da hermenêutica romântica de Schleiermacher e Dilthey, da renúncia

da subjetividade e do idealismo da fenomenologia de Husserl e do aprofundamento de

uma hermenêutica fenomenológica, a exemplo do que já haviam realizado Heidegger,

em Ser e Tempo (1927), e Gadamer, em Verdade e Método (1960)27 como se verá a seguir:

Para Ricoeur foi Friedrich Schleiermacher (1768-1834) que fez uma reviravolta

na hermenêutica, na medida em que a hermenêutica que até então se tratava de método

23 RICOEUR, Paul HI, 2008, p. 23. 24 RICOEUR, Paul HI, 2008, p. 25. 25 RICOEUR, Paul TI, 2009, p. 41. 26 RICOEUR, Paul HI, 2008, p. 24. 27 TARRICONE, Jucimara. O Intérprete Benedito Nunes, XI Congresso Internacional da ABRALIC, julho/2008-USP, 2009. Disponível em: http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/044/JUCIMARA_TARRICONE.pdf. Acesso em: 28 jan. 2012.

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de interpretação para textos específicos, passou a ser um método para textos em

geral. A este movimento Ricoeur chamou de desregionalização.28

Isto porque, para Scheleiermacher, em que pese a existência da multiplicidade de

temas inerentes a textos das mais diversas disciplinas, a arte da compreensão é

comum a todos os textos, independentemente dos assuntos abordados.

Scheleiermacher defendeu que antes de qualquer arte especial de interpretação está a

arte geral da compreensão e esta opera mediante regras universalmente válidas, leis

que podem ser descobertas e que têm por objeto a extração do sentido do texto.29

Segundo Ricoeur, o que havia antes de Schleirmacher era a filologia de textos

clássicos e a exegese dos textos sagrados (Antigo e Novo Testamentos). Como cada um

desses textos possuía suas particularidades, uma hermenêutica geral, isto é, aplicada a

todo e qualquer texto independentemente do assunto por ele tratado, exigia do

intérprete tanto um distanciamento, num nível superior, das aplicações particulares

para a interpretação de cada texto, como também um distanciamento das operações

comuns aos ramos da hermenêutica até então existentes, isto é, a filologia e a exegese.

Para a compreensão dos textos sagrados e clássicos, existiam regras específicas

bem como, regras gerais de interpretação, estas, comuns a todo e qualquer texto a ser

interpretado. E, para Ricoeur, a hermenêutica nasceu desse esforço de se manter um

distanciamento tanto das operações particulares como das operações comuns de modo

a tornar a filologia e a exegese uma �tecnologia�.30

Segundo Ricoeur, o programa hermenêutico de Schleirmacher era portador das

marcas romântica e crítica que parecem demarcar toda a hermenêutica futura. E ele

explica: A marca romântica decorre do fato de seu programa guardar relação estreita

com o processo de criação, buscando �compreender um autor tão bem, e mesmo melhor do

que ele se compreendeu�.31 Em outras palavras, a compreensão se volta para a mensagem

do autor, em sua singularidade. E a marca crítica decorre do desejo de Schleiermacher

28 RICOEUR, HI, 2008, p. 26. 29 PALMER, 2006, p. 97. 30 RICOEUR, HI, 2008, p. 26. 31 SCHELEIERMACHER, F. Hermeneutik. Kimmerlé § 15 e 16, apud RICOEUR, HI, 2008, p. 56.

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elaborar regras universalmente válidas de compreensão, lutando contra a não-

compreensão.

Com Wilhelm Dilthey (1833-1911) a hermenêutica foi direcionada como método

de compreensão das ciências humanas também chamadas ciências do espírito, estando

inclusa nestas, a história. Para Ricoeur, Dilthey é o intérprete do pacto entre a

hermenêutica e a história.

Buscava Dilthey uma forma de interpretação objetivamente válida das

expressões de vida humana, ou seja, uma base metodológica para a interpretação de

gestos, atos históricos, leis, obras de arte ou literatura e encontrou na hermenêutica o

fundamento de todas as ciências humanas32 e naturais. Dilthey considerou que somente

a experiência concreta, histórica e viva, pode impulsionar a interpretação das

expressões de vida interior do homem. A questão da compreensão da vida humana

decorre da compreensão da própria história de existência de cada ser humano.33

A questão fundamental colocada por Dilthey foi: como o conhecimento histórico

é possível? Um primeiro passo tomado por Dilthey para demonstrar como esse

conhecimento histórico do homem mediante a interpretação da vida pela própria vida

é possível, foi separar as ciências humanas das ciências naturais apontando a grande

oposição entre a explicação da natureza e a compreensão da história.34

Segundo Ricoeur, Dilthey retém da hermenêutica de Schleiermacher o lado

psicológico, ao entender que �todas as modalidades do conhecimento do homem

implicando uma relação histórica pressupõe uma capacidade primordial: a de se

transpor na vida psíquica de outrem.35

Segundo Ricoeur, considerada a hermenêutica sob o ponto de vista de

compreensão por transferência na vida psíquica de outrem e, uma vez que não é

possível a apreensão imediata das expressões de outrem, a hermenêutica desempenha o

32 Dilthey chamou as ciências humanas de ciências do espírito. Nesse sentido vide CORETH, 1973, p. 20. 33 PALMER, Op. cit., p. 105-106. As ciências humanas e sociais são denominadas por Dilthey �Geisteswissenschaften�. 34 PALMER, 2006, p. 112. No mesmo sentido RICOUER, HI, 2008, p. 31. 35 RICOEUR, HI, 2008, p. 31.

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papel de reconstrução da escrita (ou qualquer outro procedimento de inscrição)

mediante a interpretação dos signos, a fim de que haja a compreensão.

Como afirmou Ricoeur, �Dilthey percebeu perfeitamente o âmago do problema:

a vida só apreende a vida pela mediação das unidades de sentido que se elevam acima

do fluxo histórico. Percebeu um modo de ultrapassagem da finitude sem sobrevôo,

sem saber absoluto, que é propriamente, a interpretação.�36

Com Martin Heidgger (1889-1976) ocorreu nova revolução na teoria

hermenêutica, eis que ele questionou a relação sujeito-objeto sobre a qual estava

assentada a questão da compreensão. Para Heidegger, a compreensão da existência do

homem é a compreensão do ser-aí (dasein) do homem que constrói sua identidade na

sua história. O ser que compreende a si mesmo antes de qualquer compreensão.

Segundo Ricoeur, em Heidegger �surge uma questão nova: ao invés de nos

perguntarmos como sabemos, perguntaremos qual o modo de ser desse ser que só

existe compreendendo�.37 Esta primeira reviravolta dá lugar a uma segunda

reviravolta, qual seja, a questão da compreensão. Para Heidegger, a compreensão tem

significado totalmente distinto do que foi pensado por Dilthey e Schleiermacher, pois

para ele a compreensão se tornou ontológica, a compreensão é compreensão do ser e se

dá através do mundo. O mundo e a compreensão são partes inseparáveis da

constituição ontológica da existência do Dasein.38

Segundo Ricoeur, permanece não resolvida em Heidegger a questão de �como

tornar consciência de uma questão crítica em geral, no contexto de uma hermenêutica

fundamental?�39 De acordo com o pensamento de Heidegger, somente uma parte da

tarefa é completada, percorrendo apenas um caminho: aquele que vai da epistemologia

à ontologia, ficando afastado o regresso da ontologia à epistemologia.40

36 RICOUER, HI, 2008, p. 36. 37 RICOUER, HI, 2008, p. 37. 38 PALMER, 2006, p. 137. 39 RICOEUR, HI, 2008, p. 44. 40 SANTOS, Fausto dos. Prospecções filosóficas: Platão e Aristóteles, Estética, Hermenêutica e Teologia. Chapecó: Argos, 2012, p. 163.

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Com Hans-George Gadamer (1900-2002), a hermenêutica volta a dialogar com as

ciências do espírito a partir da ontologia de Heidegger. Segundo Ricoeur, a filosofia

de Gadamer sintetiza dois movimentos: de um lado das hermenêuticas regionais à

hermenêutica geral e de outro lado, da epistemologia das ciências do espírito à

ontologia.41

Em sua principal obra, Verdade e Método (1960), Gadamer reparte a experiência

hermenêutica em três esferas: 1) A esfera estética: Na esfera estética a experiência de

ser apreendido precede e torna possível o exercício crítico do juízo; 2) A esfera histórica:

Na esfera histórica as tradições que precedem ao ser humano tornam possível exercitar

um método histórico no nível das ciências humanas e sociais e 3) A esfera da

Linguagem: A esfera da linguagem atravessa as duas anteriores e nela a co-pertença

precede e torna possível o tratamento científico da linguagem como um instrumento

disponível.42

Gadamer visou à descoberta do tipo de interpretação que pode ser encontrada

nas ciências humanas, sem, no entanto, se preocupar em encontrar métodos de

interpretação, pois para ele o método não é capaz de revelar a verdade. Entende que a

dialética da verdade é a antítese do método, porque no método o tema a investigar é

passível de controle e manipulação, enquanto na dialética as questões a serem

respondidas serão levantadas pelo próprio tema e a resposta é dada na medida em que

pertence ao tema e se situa nele. Assim, Gadamer encontrou na dialética a ferramenta

capaz de possibilitar a produção da interpretação, isto é, ao serem respondidas

questões suscitadas num texto, às respostas às perguntas são capazes de produzir a

interpretação.43

Gadamer pensou a hermenêutica como experiência e iniciou sua análise a partir

deste conceito. Seguindo o pensamento de Hegel44, segundo o qual, experiência �é um

41 RICOUER, HI, 2008, p. 46. 42 RICOEUR, HI, 2008, p. 46 e 111. 43 PALMER, 2006, p. 169-170. 44 HEGEL, Geog Wilhelm Friederich (1770-1831). O mais importante filósofo do idealismo alemão pós-kantiano e um dos que mais influenciou o pensamento de sua época e o desenvolvimento posterior da

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produto do encontro da consciência com o objeto�, Gadamer explicita que a experiência

refere-se ao acúmulo de compreensão, não sendo uma capacidade pessoal de

conhecimento, um dom, tampouco uma informação transmitida, mas é o conhecimento

do modo como as coisas são pelo que já se vivenciou. Ele também chama a experiência

de sabedoria e a relaciona com a história do homem e com o tempo, afirmando que a

verdadeira experiência diz respeito à historicidade, pois é individual e pertence à

natureza do homem e à sua história que ocorre no tempo, presente e passado,

projetando o futuro.

Em relação ao tempo, Gadamer destaca que pela experiência o homem pode

projetar o futuro e conseguir alcançar seus objetivos e pela experiência passada o

homem pode aprender que seus planos são incompletos. Nesta assertiva está a

estrutura da historicidade. Diz Gadamer: �A verdadeira experiência é a experiência da nossa

própria historicidade�.45 Sendo assim, toda a interpretação de uma obra do passado

consiste num diálogo entre o passado e o presente. A interpretação pressupõe uma pré-

compreensão determinada pela história que funde os horizontes do passado e do

presente com a intervenção da linguagem.

Ricoeur, comentando a obra de Gadamer, explicita que o conceito de fusão de

horizontes indica a distância da comunicação entre dois conceitos e significa que não

vivemos em horizontes fechados, nem em um único horizonte. Qualquer situação

histórica contém o seu próprio horizonte, sendo inadequada a concepção de um

horizonte isolado do presente. Por essa razão, um horizonte permanece em constante

processo de formação, pondo à prova os nossos preconceitos no encontro com o

passado, na tentativa de compreender partes de nossa tradição.46

Decorre daí a importância da tradição na hermenêutica de Gadamer, pois para

ele, a experiência hermenêutica pressupõe o processo de transmissão da tradição,

assim considerada uma essência unificadora do passado, presente e futuro e o objeto da

filosofia... Pode-se considerar a filosofia de Hegel como o último grande sistema da tradição clássica (JAPIASSU, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de filosofia, op. cit., p. 127). 45 GADAMER, Hans-Georg, 2007 apud PALMER, 2006, p. 199. 46 RICOEUR, HI, 2008, p. 49 e 125.

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pré-compreensão do ser humano. A compreensão ocorre a partir dos preconceitos, que

advém da realidade histórica do ser. A relação do intérprete com a tradição decorre do

próprio intérprete enquanto compreende e de modo contínuo transmite a tradição. Este

é o círculo hermenêutico entendido por Gadamer que �descreve a compreensão como a

interpretação do movimento de tradição e do movimento do intérprete.�47

Com Gadamer e sua obra Verdade e Método, a teoria hermenêutica deu um salto,

passando a ser a compreensão entendida como o modo de ser do próprio homem,

sendo a linguagem capaz de revelar as coisas mediante a participação humana nela.

Para Gadamer esta é a verdadeira base da experiência hermenêutica.

Ricoeur contesta o pensamento de Gadamer quanto à ocorrência de interpretação

a partir de uma dialética entre perguntas e respostas. Para o filósofo, com a escrita

não é possível haver interpretação mediante a utilização do diálogo, as perguntas e

respostas ao texto, do texto e para o texto. Para interpretar a escrita o leitor necessita de

outras técnicas para que os sinais escritos sejam capazes de decifrar a mensagem do

texto.48

Ao suscitar o pensamento dos filósofos aqui apontados (Schleiemacher, Dilthey,

Heidegger e Gadamer), Ricoeur indica o estado do problema hermenêutico, isto é, o

pano de fundo por ele encontrado e sobre o qual ele viria a abordar o assunto,

formando seu pensamento filosófico de modo que fosse significativo para o diálogo

entre as disciplinas semiológicas e exegéticas, conforme se abordará a seguir.

1.2. Uma parte da Contribuição dada por Ricoeur à Hermenêutica

Ricoeur aponta que todo esse levantamento por ele feito (o qual foi abordado no

tópico anterior) levou-o a antinomia, qual seja a oposição entre distanciamento

alienante e pertença, explicando que só é possível introduzir uma instância crítica em

47 GADAMER, 2007, p. 439. 48 RICOEUR, HI, 2008, p. 25.

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uma consciência de pertencimento, esta, definida pela recusa do distanciamento,

mediante o reconhecimento do distanciamento como constitutivo da história, assim

como o pertencimento. No entanto, Ricoeur entende que a esta problemática entre

distanciamento alienante e pertença escapa a problemática dominante do texto, pela

qual, segundo ele, produz-se o distanciamento. Para Ricoeur o texto é o paradigma do

distanciamento na comunicação porque revela um caráter da historicidade da

experiência humana, qual seja, que a experiência humana é uma comunicação na e pela

distância.49

Para elaborar a noção de texto, Ricoeur propõe uma organização da

problemática em torno de cinco temas, os quais segundo ele, em conjunto constituem

os critérios da textualidade, quais sejam: a) a efetuação da linguagem como discurso; b)

a efetuação do discurso como obra estruturada; c) a relação da fala com a escrita; d) a

obra de discurso como projeção no mundo; e) o discurso e a obra de discurso como

mediação da compreensão do si.

No entanto, considerando o foco deste trabalho, isto é, a análise da sentença

judicial sob a lente da filosofia Ricoeuriana, não se analisarão todos estes elementos,

tendo sido destacados apenas dois elementos que ajudarão a compreender a

linguagem no processo judicial, quais sejam: A efetuação da Linguagem como discurso

e a relação da fala com a escrita.

Antes de adentrar-se aos dois elementos da noção de texto que se pretende

analisar, há que se destacar que ao abordar a importância da filosofia do discurso,

Ricoeur pretendeu libertar a hermenêutica de seus preconceitos psicologizantes. Isto

porque, Segundo Ricoeur, a teoria hermenêutica oriunda dos pensamentos de

Schleiermacher e Dilthey teve por tendência a identificação da interpretação como

compreensão, entendida a compreensão como reconhecer a intenção do autor do texto.

Para Ricoeur tanto Schleiermacher como Dilthey atribuíram tarefa equivocada à

interpretação diante da impossibilidade de �compreender um autor melhor do que ele a

49RICOEUR, HI, 2008, p. 52-53.

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si mesmo compreendeu�50. Para Ricoeur, um texto escrito é uma forma de discurso e

não somente uma forma de comunicação intersubjetiva. Uma obra escrita não fica

adstrita ao horizonte de seu autor, mas se abre a um horizonte infinito. Na

interpretação o �diálogo� com o autor do texto é rompido e o texto se torna universal a

quem quer que saiba ler.

1.2.1. A Dialética do Evento e da Significação

Segundo Ricoeur, o distanciamento presente no discurso pode ser explicado

mediante a análise do que ele chama de dialética do evento e da significação.

No que tange ao evento, Ricoeur ensina que o discurso é o evento da

linguagem51, e este evento é composto de algumas características reunidas: Primeiro,

o discurso é um evento da linguagem porque �algo acontece quando alguém fala�.52

Segundo, o discurso é um evento porque se realiza temporalmente e no presente. O

discurso é ligado à pessoa que fala; alguém diz algo a outro e esta troca entre ouvinte e

locutor constitui a linguagem como comunicação53. Terceiro, o evento corresponde ao

ingresso do mundo na linguagem mediante o discurso. Este mundo corresponde à

troca realizada entre os interlocutores, estabelecendo-se o diálogo. E quarto: o discurso

se caracteriza pela predicação, uma vez que toda frase tem um predicado. Alguém diz

alguma coisa sobre algo para alguém. O discurso é sempre a respeito de algo, referindo-

se a um mundo que se pretende descrever54.

No que tange à significação do discurso, Ricoeur destaca que é ela que deve ser

compreendida e não o discurso, porque a significação permanece, mas o evento não. Isto

porque, segundo Ricoeur, na linguística do discurso o evento e a significação se

50 RICOEUR, TI, 2009, p. 38-39. 51 A afirmação de Ricoeur tem por base a distinção feita por F. Saussure entre langue e parole, que não é objeto deste estudo. RICOEUR, TI, 2009, p. 21. 52 RICOEUR, HI, 2008, p. 53. 53 RICOEUR, TI, 2009, p. 28. 54 RICOEUR, HI, 2008, p. 54.

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articulam um sobre o outro e ao ingressar no processo de compreensão há a

ultrapassagem do evento na significação, esta, típica do discurso. Sendo assim,

segundo Ricoeur, o primeiro distanciamento é o distanciamento do dizer no dito. Para

explicar esta questão, Ricoeur recorre às filosofias de Austin e Searle55, que defendem

que o ato do discurso se constitui por atos subordinados, hierarquicamente distribuídos

em três distintos níveis, quais sejam: Nível do ato locucionário ou locutório que diz

respeito ao ato de dizer; nível do ato ilocucionário ou ilocutório que diz respeito ao que

o indivíduo faz ao dizer e nível do ato perlocucionário ou perlocutório, que diz respeito

ao que se faz pelo fato de falar, ao efeito produzido pela fala.

Segundo Ricoeur, tais distinções feitas por Austin contribuem para a questão da

ultrapassagem pelo evento na significação uma vez que: O ato locucionário, ou

locutório é a exteriorização da ação do indivíduo. Ele �faz o que diz ao dizê-lo�56.

Sendo assim, uma frase se apresenta como enunciação. Ricoeur exemplifica este ato

com a questão da promessa, explicando que o ato da promessa implica em um

empenhamento específico do falante que ao dizer �prometo� se empenha em fazer o

que diz que irá fazer. Este ato é também chamado de ato preposicional porque a frase

pode ser identificada como proposição. Já o ato ilocucionário (ou ilocutório) é o que

diferencia uma ação, uma preposição, pois pelo ato ilocutório o indivíduo faz algo ao

dizer. Ricoeur cita como exemplo dar uma ordem. Ao dar uma ordem, o indivíduo faz

algo ao dizer (dar a ordem) e não �faz o que diz ao dizê-lo�. Tanto nos atos locutórios

como nos atos ilocutórios a gramática demonstra a intenção do ato. No caso dos atos

ilocutórios, não só a gramática auxilia na sua exteriorização, como também outros

procedimentos que indicam a força contida no ato, tais como a comunicação corporal

(gestos, entonação de voz, expressões fisionômicas, mímicas), além da reprodução dos

verbos imperativos, sinais gráficos, interjeições, também utilizados no discurso

escrito. Em ambos os casos, isto é, tanto nos atos locutórios como ilocutórios, o discurso

55 Ricoeur faz sua análise recorrendo à linguística é a teoria de Speech-act defendida pelos filósofos J. L. Austin e J. R. Searle, cujas filosofias não são objeto deste trabalho, salvo a abordagem que serviu de embasamento ao pensamento ricoeuriano. 56 RICOEUR, TI, 2009, p. 28.

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age pelo reconhecimento pelo ouvinte da intenção do locutor. Então, tais atos são

eventos porque têm a intenção de serem reconhecidos pelo que são: Enunciação,

predicação, ordem, desejo, promessa, etc. Quanto aos atos perlocutórios, diz Ricoeur

serem eles os menos comunicáveis do ato de fala porque são relativos ao discurso como

estímulo, isto é, no caso dos atos perlocucionários ou perlocutórios, o discurso age não

pelo reconhecimento pelo ouvinte da intenção do locutor, mas pelo estímulo

transmitido pelo locutor ao ouvinte, pelo sentir pelo ouvinte das emoções

transmitidas pelo locutor. Segundo Ricoeur, este três atos (locutório, ilocutório e

perlocutório) são aptos a tornar possível a escrita mediante a exteriorização do

intencional. A linguagem tira a experiência do privado e torna-a pública. Significar é

não só o que o locutor faz, mas o que a frase faz.57

Segundo Ricoeur, além dos três atos supra elencados, outra contribuição para a

dialética do evento e da significação é fornecida pelo ato interlocutório, ou seja, um ato

que é dirigido a alguém: um fala e outro ouve, formando um diálogo, que é estrutura

essencial ao discurso nos dizeres de Platão, este, citado por Ricoeur. Nesta estrutura do

diálogo há um indivíduo que fala algo a alguém, sendo este �algo� uma mensagem e o

�alguém� um ouvinte. Nesse sentido, o evento é a troca intersubjetiva entre locutor e

ouvinte. No diálogo são ligados os eventos do locutor e do ouvinte, em que um fala ao

outro o que quer dizer ajudando-o, mediante o uso dos dispositivos gramaticais

adequados, a identificar e compreender a mensagem. Por ser a maioria das palavras

polissêmicas, isto é, têm uma pluralidade de significados e interpretações possíveis, a

análise do contexto do discurso é a ferramenta a ser utilizada para a compreensão da

mensagem. Segundo Ricoeur, a função do diálogo é iniciar a função de filtragem do

texto.58 Embora Ricoeur faça uma análise mais minuciosa do diálogo, interessa a este

trabalho para análise posterior a situação do diálogo enquanto uma estrutura em que

um indivíduo fala, outro ouve e ambos se compreendem, alcançando o significado da

mensagem, ainda que suas ideias sejam divergentes.

57 RICOEUR, TI, 2009, p. 27-34 e RICOEUR. HI, 2008 p. 56-58. 58 RICOEUR, TI, 2009, p. 28-30.

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1.2.2 A Passagem da Fala à Escrita e o Mundo do Texto

Ao transformar um discurso oral num discurso escrito, ocorrem algumas

mudanças. A primeira mudança é relativa ao meio, ou seja, o discurso passa de oral

para escrito. Aquilo que antes era verbalizado através da fala e assimilado mediante a

audição, passa a ter uma inscrição, um registro. A passagem da fala para a escrita de

fato muda o meio, mas, mais que isso, fixa o conteúdo da fala. Transformar um discurso

oral num discurso escrito é, segundo Ricoeur, tirar algo que está no virtual para colocá-

lo perante um público abrangente, isto é, o discurso escrito se torna acessível a todo

aquele que sabe ler. O discurso oral se restringe ao modo do diálogo em que um fala

(locutor) e o outro escuta (ouvinte). Ainda que o discurso oral seja dirigido a várias

pessoas, ele fica restrito aquele público que o ouve. Além disso, o discurso oral

também ficará restrito à significação que o orador quer dar ao discurso. Já quando se

torna escrito, o discurso passa a ter alcance ilimitado. Sendo assim, a passagem da fala

para a escrita, além de mudar o canal de comunicação, isto é, passar do canal oral para o

canal escrito, liberta o texto da significação que o autor deu a ele. A escrita torna o

texto autônomo em relação a intenção do autor. Isto quer dizer que o que o texto

significa não mais coincide com aquilo que o autor quis dizer. 59

Segundo Ricoeur, a passagem da fala para a escrita fixa o discurso e não o evento

da fala. Assim, quando o discurso oral se torna escrito, o �dito� da fala é fixado e as

marcas materiais passam a transportar a mensagem. Saem as expressões corporais, os

gestos, as interjeições orais e permanecem em cena a gramática, os sinais gráficos, que

servirão para a inscrição e fixação do discurso. O discurso escrito fixa o dito da fala e

não o ato de falar. Isto quer dizer que a escrita separa os elementos constitutivos do

discurso visto no tópico anterior, quais sejam, evento e significação. O evento da fala,

enquanto evento (algo acontece quando alguém fala) não passa pela inscrição, mas a

significação deste evento, o "dito" esta sim passa pela inscrição. A escrita toma o lugar

59 RICOEUR, TI, 2009, p. 42 e RICOEUR, HI, 2008, p. 62.

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da fala e possibilita a compreensão da significação do discurso mesmo sem passar ele

pelo ato de fala.

Para demonstrar que a fixação da escrita é mais que uma mera fixação material,

Ricoeur enumera mudanças sociais e políticas relacionadas à invenção da escrita,

dentre elas, o nascimento do domínio político exercido pelo Estado diante da

possibilidade de transmissão de ordens a povos mais distantes sem distorções; o

nascimento da economia mediante a fixação escrita das regras de cálculo; a história

mediante a fixação dos arquivos; o nascimento da justiça e dos códigos jurídicos através

da fixação do direito como padrão de decisões. Nessa esteira de raciocínio aponta, então,

que a escrita não é somente a fixação de um discurso falado, mas é o pensamento

humano trazido à escrita sem o estágio da fala.

Uma vez que quando da passagem da fala para a escrita o texto torna-se

autônomo em relação a intenção do autor, a significação do texto e a significação mental

ou psicológica são destinos diferentes. O texto não mais tem o significado que o autor

quis lhe dar, mas é autônomo na medida em que cada leitor tem acesso ao significado

textual, isto é, o que o texto diz e não o que o autor intencionou dizer. Segundo

Ricoeur, esta autonomia do texto faz com que o �mundo do texto� ultrapasse o mundo

do autor.

Ricoeur define �mundo do texto� como o conjunto das referências abertas pelos

textos. Com base em Fregue, Ricoeur afirma que em toda a proposição é possível

distinguir o sentido e a referência. E ele explica: o sentido é o objeto real que a

proposição visa e a referência é a sua pretensão de atingir a realidade. Somente o

discurso, diz ele, aplica-se à realidade e exprime o mundo, porque a língua não possui

relação com a realidade. O sentido é imanente ao discurso, relacionando a função de

identificação e a função predicativa da frase, enquanto a referência exprime o

movimento em que a linguagem transcende a si mesma, relacionando a linguagem ao

mundo. Então, referir é o que o locutor faz quando aplica suas palavras à realidade.

Segundo Ricoeur, a dialética do sentido e referência diz alguma coisa sobre a

relação entre a linguagem e a condição ontológica do ser-no-mundo e explica: A

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linguagem não é um mundo, mas porque os indivíduos são afetados por situações no

mundo e porque se compreendem diante de tais situações, a experiência é trazida à

linguagem. Aponta Ricoeur que a noção de trazer a experiência à linguagem é a

condição ontológica refletida na linguagem na medida em que há uma postulação da

existência com base na identificação: o indivíduo pressupõe que algo deve existir para

que algo possa se identificar. 60

Para Ricoeur, quando o discurso se torna texto, ou seja, ao passar da fala para a

escrita, a referência é alterada. Isto porque, no discurso oral o locutor pode mostrar aos

seus ouvintes ou interlocutores uma realidade comum a eles ou situá-los nas situações

comuns a eles, na rede espaço-temporal a qual pertencem. Relatos com descrições da

realidade podem oferecer o equivalente da referência ostensiva no modo de como se lá

estivesse. Na passagem da fala para a escrita deixam de existir as condições concretas

do ato de mostrar e o indivíduo passa a ter um mundo e não apenas uma situação. O

texto liberta a sua referência dos limites da referência da situação e abre um conjunto de

referências, a qual Ricoeur denomina �mundo�.

Outra extensão do alcance de referência indicada por Ricoeur diz respeito à

literatura de ficção e poética, ou à escrita enquanto canal da literatura. Segundo

Ricoeur, quando não mais existem as condições concretas do ato de mostrar, se torna

possível o fenômeno chamado �literatura�. Nas literaturas de ficção e poética, �a

literatura parece glorificada em si mesma em detrimento da função referencial do

discurso ordinário�.61

Se por um lado Ricoeur afirma que a literatura abole as condições do ato de

mostrar a realidade, por outro Ricoeur aponta que não há discurso que seja totalmente

fictício, sem ir ao encontro de uma realidade em um nível mais fundamental que o

discurso descritivo. É a dimensão referencial da literatura que coloca o problema

hermenêutico mais fundamental apontado por Ricoeur, qual seja: Se não se pode definir

a hermenêutica pela procura das intenções psicológicas existentes por detrás do texto e

6060 RICOEUR. TI, p.36 61 RICOEUR. HI, p.65

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se não se pretende reduzir a interpretação à quebra de estruturas, o que permanece

para ser interpretado? A resposta que Ricoeur fornece a tal questão é: �interpretar é

explicitar o tipo de ser-no-mundo manifestado diante do texto�. O que deve ser

interpretado num texto é uma proposição de mundo, um mundo próprio ao texto, um

mundo que não corresponde a uma linguagem cotidiana, mas que constitui um

distanciamento entre o real e si mesmo, distanciamento este que a ficção introduz na

apreensão do real, pois são abertas novas possibilidades de ser-no-mundo na realidade

quotidiana.

1.3. A Hermenêutica Jurídica

Tomando-se por base os preceitos da hermenêutica filosófica analisadas nos

tópicos anteriores, a hermenêutica jurídica é uma hermenêutica especial desde os seus

primórdios e lida com as técnicas da interpretação da lei.

Carlos Maximiliano, ex-integrante da Corte Suprema e renomado jurista em

nosso país, assim ensina sobre hermenêutica jurídica:

A Hermenêutica Jurídica tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do direito. As Leis Positivas são formuladas em termos gerais; fixam regras, consolidam princípios estabelecem normas, em linguagem clara e precisa, porém ampla, sem descer a minúcias. É tarefa primordial do executor a pesquisa da relação entre o teto abstrato e o caso concreto, entre a norma jurídica e o fato social, isto é, aplicar Direito. Para o conseguir, se faz mister um trabalho preliminar: descobrir e fixar sentido verdadeiro da regra positiva; e, logo depois, o respectivo alcance, a sua extensão. Em resumo, o executor extrai da norma tudo o que na mesma se contém: é que se chama interpretar, isto é, determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito.62

Embora alguns juristas admitam que a hermenêutica não pode restringir-se aos

estreitos termos da Lei e que deve ser endereçada ao direito que a lei exprime como

forma de alcançar o objetivo da lei com clareza e segurança (já que a Lei tem limitações

62 MAXIMILIANO, 2005, p. 8.

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para bem exprimir o direito)63, a literatura dedicada à hermenêutica jurídica geralmente

trata dos métodos da interpretação da lei, sistematizando-os de modo a ensinar como se

pode/deve interpretar a lei. Nos cursos de Direito também é assim que a hermenêutica é

estudada: Como um compêndio de técnicas da interpretação da lei, se restringindo a

esta seara.

Diante desta realidade prática quanto ao ensino e aplicação da hermenêutica

jurídica, impõe-se a apresentação neste trabalho dos critérios e métodos utilizados na

hermenêutica jurídica, antes da discussão acerca de sua aplicação na sentença judicial,

o que será objeto da conclusão desta dissertação. 64

Para o já citado jurista Carlos Maximiliano, hermenêutica e interpretação não se

confundem: A hermenêutica perquire e ordena regras e a interpretação consiste na

aplicação destas regras para o bom entendimento dos textos legais.65

Rubens Limonge França ao tratar do tema transcreve o entendimento de

Pasquale Fiori segundo o qual, �a interpretação da lei é a operação que tem por fim

fixar uma determinada relação jurídica, mediante a percepção clara e exata da norma

estabelecida pelo legislador �. Prossegue França explicitando que nem sempre houve a

possibilidade de interpretar a lei, dizendo que ao tempo do Imperador Justiniano,

quem ousasse comentar sua compilação incorreria em crime de falso testemunho e suas

obras seriam sequestradas e destruídas. Tal determinação foi insculpida no Prefácio ao

Digesto.66 Em tempos modernos, porém, é unânime a ideia de que as leis podem ser

interpretadas a fim de que se adequem melhor aos casos concretos. Aliás, aplicar o

63 FRANÇA, R. Limonge. Hermenêutica Jurídica. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 4. 64 Os teóricos da Hermenêutica Jurídica que serão utilizados para essa análise são aqueles cujos manuais são utilizados nos cursos de Graduação de Direito que prepara os profissionais em suas diversas áreas, inclusive os juízes. 65 FRANÇA, 1999, p. 3-4. 66 Justiniano (482-565) foi Imperador Romano do Oriente do ano 527 até sua morte em 565. Assim que assumiu o poder Justiniano reorganizou o Direito Romano em dimensões legislativa, doutrinária e didática, criando o �corpus juris civilis�. Este livro era composto por quatro partes: O Código de Justiniano que continha toda a legislação romana revisada desde os primórdios, o Digesto ou Pandectas, que era composto pela Jurisprudência romana e os Institutos, que eram �novelas� ou �autênticas� que continham leis formuladas por Justiniano. Esta obra representou uma revolução jurídica e serviu de base ao direito civil moderno (MARKY, Thomas. Curso Elementar de Direito Romano. 6ª ed. São Paulo, 1992).

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direito significa enquadrar um caso concreto a uma norma jurídica adequada.67 Quanto

melhor for esmiuçada e compreendida a lei, melhor será sua aplicação.

E se as leis podem ser interpretadas, parece lógica a existência de um intérprete.

Nesse sentido há que se levar em conta que, quando da instauração de um processo

judicial, a aplicação do direito está relacionada ao aparecimento de uma terceira pessoa

imbuída da missão de solucionar um conflito entre pessoas e com o surgimento do

Estado moderno, o juiz se transforma num órgão desse Estado. Então, é o juiz o

intérprete da lei para aplicá-la ao caso concreto.

Maximiliano assim explica a tarefa da interpretação:

Incumbe ao intérprete aquela difícil tarefa. Procede à análise e também à reconstrução ou síntese. Examina o texto em si, o seu sentido, o significado de cada vocábulo. Faz depois obra de conjunto; compara-o com outros dispositivos da mesma lei, e com os de leis diversas, do país ou de fora. Inquire qual o fim da inclusão da regra no texto, e examina este tendo em vista o objetivo da lei toda e do Direito em geral. Determina por este processo o alcance da norma jurídica, e, assim, realiza, de modo completo, a obra moderna do hermeneuta. Interpretar uma expressão de Direito não é simplesmente tornar claro o respectivo dizer, abstratamente falando; é, sobretudo, revelar o sentido apropriado para a vida real, e conducente a uma decisão reta.68

Reconhecendo a difícil tarefa de interpretar, haja vista as atividades inseridas na

interpretação e, nos dizeres de Maximiliano representadas pelos verbos analisar,

comparar, examinar, revelar o sentido, há na hermenêutica jurídica classificações de

tipos de interpretação. A seguir se exporá a classificação clássica, a teor do ensinamento

de Rubens Limonge França.

Quanto ao agente de interpretação, ou seja, quem vai interpretar a Lei, classifica-

se a interpretação em Pública e Privada. Pública é a interpretação feita por órgãos

públicos: Executivo, Legislativo ou Judiciário. Privada é aquela feita por estudiosos e

teóricos do direito, chamados Doutrinadores, que exaram pareceres esmiuçados sobre

as leis, razão pela qual esta interpretação também é chamada Doutrinária.

67 MAXIMILIANO, 2005, p. 5. 68 MAXIMILIANO, 2005, p. 12.

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A interpretação pública é subdividida em: Interpretação autêntica, isto é, aquela

oriunda de quem elaborou a lei e que é levada a efeito mediante a confecção de

dispositivos corretivos/interpretativos que valem como lei nova. A título de exemplo

mencionamos que uma lei elaborada pela Câmara terá deste mesmo órgão o

pronunciamento exegético; Interpretação judicial, que é a interpretação realizada pelo

poder judiciário. Tal interpretação está ligada com as questões da jurisprudência, isto é,

o entendimento reiterado dos Tribunais sobre a interpretação da lei, tema este que será

tratado adiante; Interpretação Administrativa, que por sua vez se subdivide em

Regulamentar, isto é, aquela que tem por objeto normas gerais em relação à certas

normas ordinárias e Casuística, que é a interpretação que esclarece dúvidas que

surgem quando da aplicação das normas gerais ao caso concreto; por fim, a

interpretação pública se subdivide em interpretação usual, isto é, a interpretação que

advém do direito consuetudinário, que surge dos costumes de uma sociedade, normas

não escritas.69

A interpretação pode também ser classificada quanto à natureza. É assim

subdividida em Gramatical, Lógica, Histórica e Sistemática.70 A interpretação

gramatical tem por objeto o exame do significado de cada palavra que forma o fraseado

da norma. Esta modalidade de interpretação é a mais antiga forma de interpretar e num

determinado momento foi a única aceita pelo direito romano. Em tempos modernos,

esta modalidade de interpretação é considerada insuficiente para que o intérprete

obtenha um bom resultado de sua interpretação. Para tanto, ele necessita articular

outros elementos da intepretação juntamente com a interpretação gramatical. A

intepretação lógica investiga o sentido das locuções e orações do texto legal, fazendo

conexões entre elas. Historicamente se enquadra no momento da evolução da ciência

jurídica, isto é, o momento em que se adota na doutrina jurídica o conceito do

jurisconsulto do Império Romano Celso segundo o qual �conhecer as leis não é 69 FRANÇA, 1999, p. 5-8. 70 Carlos Maximiliano não concorda com a divisão da interpretação em gramatical e lógica, fundamentando seu pensamento no argumento de que atualmente a interpretação é uma só e não pode ser fracionada. Deve ser exercitada por vários processos no parecer de uns e aproveitar-se de elementos, dentre eles o gramatical e o lógico (MAXIMILIANO, 2005, p. 87).

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compreender suas palavras, mas o alcance da sua força.� A interpretação histórica

�indaga das condições de meio e momento da elaboração da norma legal, bem assim das

causas pretéritas da solução dada pelo legislador�, isto é, procuram a razão de ser da lei.

Por fim, a interpretação Sistemática busca resolver eventuais conflitos entre as normas,

atribuindo melhor significação aos princípios, normas e valores jurídicos, buscando com

isso, a solução de antinomias71 existentes no sistema jurídico.72

No que tange à sua extensão, a interpretação é classificada quanto à sua extensão

em Declarativa, Extensiva e Restritiva. A primeira diz respeito aos casos em que o

enunciado coincide com a sua amplitude, o que quer dizer que o sentido pretendido

pelo legislador foi alcançado e está nítido, dispensando-se outras técnicas para que o

sentido seja revelado. Na interpretação extensiva a expressão literal da lei indica

aparentemente extensão menor do que o sentido pretendido pelo legislador. Nesta

modalidade de classificação também se enquadra a situação de adaptação pelo

intérprete da intenção do legislador às novas exigências da realidade social, ou seja, o

intérprete estende a norma através da interpretação às novas realidades sociais. No

que tange à interpretação restritiva, e ao contrário da extensiva, é aquela em que o

intérprete conclui que o legislador usou expressões que dão à lei amplitude maior do

que o sentido que ele almejava.73

Há ainda a subdivisão da interpretação em Interpretação teleológica (finalidade),

não adotada por todos os doutrinadores que tratam da matéria.74 Diz-se teleológica a

interpretação que usa o entendimento sobre a finalidade da lei. A interpretação

teleológica consiste em revelar o fim da norma, o valor ou bem jurídico tutelado pelo

71 Antinomias Jurídicas são �incompatibilidades possíveis ou instauradas entre normas, valores ou princípios jurídicos pertencentes, validamente, ao mesmo sistema jurídico tendo de ser vencidas para a apresentação da unidade interna e coerência do sistema e para que se alcance a efetividade de sua teleologia constitucional.� (FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito - Técnica, Decisão, Dominação. São Paulo: Atlas, 1988). 72 FRANÇA, 1999, p. 8-9. 73 FRANÇA, 1999, p. 10-11. 74 FRANÇA não trata desta classificação. Maximiliano a apresenta como o método mais eficaz de interpretação, embora faça a ressalva que não se deve depositar confiança demasiada neste método, haja vista não haver processo infalível, nem absolutamente apto a substituir os outros (MAXIMILIANO, 2005, p. 128).

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ordenamento de determinado preceito. A título de exemplo, cita-se novamente o artigo

5º da antiga nominada Lei de Introdução ao Código Civil e atual Lei de Introdução às

Normas do Direito Brasileiro que contem uma exigência teleológica: �Na aplicação da

lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum�. A

interpretação teleológica e axiológica ativa a participação do interprete na configuração

do sentido.

De acordo com França, a hermenêutica é conjunto orgânico das regras de

interpretação, contando com três conjuntos de regras: Regras Legais, Regras Científicas

e as Regras da Jurisprudência. Esta definição se aproxima daquela dada por Pasquale

Fiori, uma vez que, tais regras aplicadas podem fixar uma determinada relação jurídica

mediante o aclaramento da norma criada pelo legislador. Por outro lado, esta definição

também pode se tornar distante da definição de Pasquale Fiori na medida em que ao se

pensar na hermenêutica apenas como um conjunto de regras de interpretação pré-

fixadas e enquadradas na modalidade legal, científica e de jurisprudência, pode-se

estar limitando a interpretação e prejudicando a fixação de uma determinada relação

jurídica.

As regras legais, como o próprio nome deixa claro, são as regras impostas pela lei:

Há lei que determina como interpretar e aplicar a lei. Nesse sentido menciona-se a Lei

de Introdução ao Código Civil (LICC) atualmente denominada Lei de Introdução ao

Direito Brasileiro prescreve regras para a interpretação das leis do país, seu modo de

vigência, dentre outros comandos gerais para a utilização da lei no direito brasileiro.

Dentre estas regras, destaca-se por importante para este trabalho os artigos quarto e

quinto que tratam da forma como o juiz deve aplicar a lei, devendo decidir os casos

concretos de forma a atender aos fins sociais e às exigências do bem comum e, em caso

de ser a lei omissa, decidir de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais

de direito. 75

75 FRANÇA, 1999, p. 21-22. Os conceitos de analogia, costumes e princípios gerais do direito serão tratados no capítulo 3.

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Quanto às regras científicas, são elas aquelas regras consolidadas por juristas,

estudiosos do direito, que analisam a lei e baseados em seus conceitos técnicos,

emitem parecer sobre a melhor interpretação para os artigos da lei. França exemplifica

estas regras científicas citando um autor do passado, o Imperador Justiniano que criou

o �Corpus Juris Civillis�, uma compilação composta por leis, doutrina e jurisprudência e

que serviu de base ao direito civil moderno.76

As Regras da Jurisprudência são muito importantes para este estudo. Isto porque,

a Jurisprudência, por ser o entendimento reiterado dos Tribunais sobre a aplicação da

Lei ao caso concreto de modo a embasar novas decisões judiciais e, em alguns caso,

uniformizá-las (como é o caso da súmula vinculante), é uma das formas interpretativas

mais usadas em nosso direito e tem direta ligação com a questão da argumentação. Há

um brocardo jurídico77 que diz: �Onde houver a mesma razão, aplica-se o mesmo

sentido� (ubi idem ratio, ibi idem jus).78 É comum que, ao se estudar um caso concreto, o

jurista consulte como têm sido as decisões dos tribunais sobre casos similares. Estas

decisões podem integrar o arrazoado a ser remetido ao juiz da causa, com o objetivo de

convencê-lo sobre a melhor forma de decisão acerca daquele litígio, uma vez que em

litígio semelhante, já houve uma decisão que corrobora a fundamentação do

peticionário. Estas decisões também podem ajudar a fundamentar a sentença a ser

proferida pelo juiz. Em outras palavras, ao pedir a intervenção do Estado para

solucionar um litígio, pode-se apresentar ao juiz decisões semelhantes que justificam a

interpretação da norma e do direito de acordo com a pretensão do peticionário, assim

como pode o juiz, ao decidir a causa, apresentar decisões semelhantes a dele já

proferidas em casos similares.

76 FRANÇA, 1999, p. 25-28. 77 Um brocardo (em latim: brocardus) é um princípio particularmente escrito em latim e que expressa concisamente um conceito. 78 Raimundo Bezerra Falcão ao comentar este brocardo jurídico destaca que só será válido se observada, também, a correta interpretação dos fatos, a fim de que se tenha um sentido ensejador de um certo grau de confiança na afirmação de que eles sejam idênticos. Prossegue dizendo que, em se tratando de vida humana, é vã a esperança de encontrarem-se fatos semelhantes (FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 262).

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Quando se acumulam decisões iguais, formando praticamente um consenso sobre

o modo de decidir uma questão sobre determinado assunto, o Tribunal pode criar um

enunciado com o entendimento, denominado Súmula. A súmula é uma preposição

clara e direta que sintetiza a decisão para todos os casos parecidos decididos da mesma

maneira.

No entanto, tais interpretações já exaradas pelos tribunais, quer sejam

jurisprudência, quer sejam súmulas não vinculam o juiz, que tem poder de livre

convencimento sobre a causa, conforme se verá no capítulo 3 com mais vagar. O Juiz, no

decorrer do processo judicial interpreta todos os argumentos lançados para, ao final,

prolatar sua decisão mediante a aplicação da lei, decidindo em favor de um, de outro,

ou de ambos os litigantes, sem ser obrigado a tomar a mesma posição já tomada pelos

Tribunais.

A exceção a esta regra de não vinculação está na chamada Súmula Vinculante

(prevista na Emenda Constitucional Nº 45/2004 que prevê a possibilidade de uma

súmula editada pelo Supremo Tribunal Federal mediante o preenchimento de alguns

requisitos79) que tem eficácia vinculante sobre decisões futuras em relação aos demais

órgãos do Poder Judiciário, com o objetivo de que uma mesma norma não seja

interpretada de formas distintas para situações idênticas, criando conflitos e distorções.

A súmula vinculante também tem por objeto desafogar o Supremo Tribunal Federal

que acumula casos idênticos e cujo desfecho já se pode conhecer.80

Por todas as regras previstas pelos doutrinadores para a aplicação da

hermenêutica, reafirma-se que parece que a hermenêutica jurídica está 79 A Emenda Constitucional Nº 45/2004 passou a prever dois requisitos para aprovação, revisão ou cancelamento da súmula: (a) quórum mínimo de dois terços dos membros do tribunal; (b) somente matéria constitucional, após reiteradas decisões, poderá ser objeto da súmula vinculante, ficando afastadas questões de outra natureza. Ainda, de acordo com o §1º do art. 103-A, da CF, �a Súmula terá por objetivo a validade, interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica�. 80 Não há consenso entre os juristas sobre a Súmula vinculante. Embora em vigor, há pareceres desfavoráveis no sentido de ser a súmula vinculante uma forma de violação ao princípio da livre convicção e independência do juiz (Notas 27 e 28: CAPEZ, Fernando. Súmula Vinculante. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/7710/sumula-vinculante, elaborado em 11/2005. Acesso em: 21 fev. 2012).

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equivocadamente engessada na interpretação de leis. Isto talvez se deva ao fato de se

estar num sistema dogmático em que a lei é feita para ser cumprida e não para ser

contestada em sua existência, se for formalmente válida.

Importante é destacar que o filósofo do direito Miguel Reale, há muito vêm

chamando a atenção para o fato de não poderem os profissionais do direito receberem o

sistema jurídico apenas como um sistema de proposições lógicas, mas entenderem

este sistema como um processo de integração dialética, que vai do fato à norma e da

norma ao fato. E que �o direito, visto na totalidade de seu processo, é uma sucessão de

culminantes momentos normativos, nos quais os fatos e os valores se integram

dinamicamente�, devendo ser a unidade concreta e a dinâmica objeto da hermenêutica

jurídica.81

Embora a Lei seja a vontade transformada em palavras82, na aplicação do direito

há muito mais o que interpretar e não somente a letra fria da lei. Ora, quando da

prolação da sentença por um juiz ele há que estar atento aos sentidos e às diversas

interpretações que lhe são postas à frente: Da Lei, De fatos, De vidas. Tais

interpretações (inclusive a da Lei) não se esgotam nas classificações (pública, privada,

gramatical, lógica, histórica, etc.) entabuladas pela hermenêutica jurídica clássica e

indicadas neste tópico.

Ao que parece, a hermenêutica jurídica trata a interpretação de modo mecânico,

ditando regras e classificações talvez sem levar em conta as diferenças dos indivíduos

principalmente quando suscita o uso da jurisprudência, tendo por base o brocardo:

�Onde houver a mesma razão, aplica-se o mesmo sentido�, isto é, em casos iguais,

decide-se de forma igual; em casos iguais, os fatos, a lei, as provas são igualmente

interpretados. Isto realmente não parece razoável. Embora existam autores que digam

que uma das funções da jurisprudência é humanizar a lei83, talvez nada haja de

humano quando se usa a mesma medida para julgar casos parecidos, sem, no entanto,

81 REALE, 2002, p. 580-581. 82 MAXIMILIANO, 2005, p. 23. 83 FRANÇA, 1999, p. 167.

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levar em conta que naquele problema levado ao judiciário há humanos envolvidos,

logo, as relações não são correspondentes.

O próprio fundamento do Supremo Tribunal Federal ao criar a Súmula

vinculante, dizendo ter esta medida o objetivo de que uma mesma norma não seja

interpretada de formas distintas para situações idênticas, criando conflitos e distorções,

não torna nada humana a interpretação da norma. Ora, o que é idêntico? Ousa-se

afirmar que nada é idêntico. O processo judicial lida com pessoas: As pessoas não são

idênticas. O processo judicial lida com fatos: Os fatos não são idênticos. O processo

judicial lida com argumentos: Os argumentos nem sempre são idênticos (salvo quando

suscitada a jurisprudência a título argumentativo). As nuances de um caso concreto, os

detalhes, nunca são iguais ao outro caso concreto. Então, não há como considerar uma

humanização da lei que não leva em conta as diferenças humanas e as peculiaridades de

cada caso, aí incluídas as peculiaridades de cada indivíduo.

Os casos que são levados ao judiciário para a intervenção de um terceiro, são

casos particulares, de indivíduos carentes de uma decisão justa e que buscam no

Poder Estatal a solução de seu conflito particular mediante a melhor e mais humana

aplicação da lei ao caso concreto. Antes da prolação da sentença judicial a lei atua como

orientação de conduta. Já a sentença judicial obriga de modo individual o cumprimento

da lei. É difícil achar respostas à problemática da humanização da aplicação da lei

quando se está diante do positivismo jurídico. No entanto, se os julgamentos dos

humanos são feitos por outros humanos, uma boa alternativa de melhorar a

interpretação e aplicação do direito ao caso concreto talvez fosse um melhor exame,

pelo juiz, de si mesmo, colocando-se no lugar do outro e, ao mesmo tempo mantendo a

distância necessária a um julgamento justo.

Não obstante, a Hermenêutica Jurídica há que encontrar um meio de interpretar

todo o contexto (e não somente a lei), de modo a aplicar o direito com o fito de uma

melhor convivência, para o bem estar comum e também o bem estar individual.

Segundo Maximiliano �A boa Hermenêutica depende mais, muito mais, de critério

jurídico do que da observância de regras fixas; a precisão matemática ou silogística foi

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um sonho da dogmática tradicional: não é raro dois grandes profissionais

compreenderem diferentemente o mesmo trecho.�84 . O conjunto de regras de que trata

a hermenêutica jurídica, conforme exposto neste tópico, não atende de modo suficiente

às demandas jurídicas porque limita a interpretação e não leva em conta o contexto e as

diferenças naturais de cada caso. Ademais, cada intérprete coloca na interpretação a sua

experiência, a sua visão de mundo, a sua vivência, razão pela qual, surgem

interpretações divergentes, pois as experiências dos intérpretes, assim como os sujeitos

da ação judicial, não são idênticas.

1.4. O Conceito de Justiça em Ricoeur

1.4.1. Ética e Moral

Ricoeur se preocupou em resgatar a ética como sabedoria prática, propondo

uma diferença conceitua entre a ética e a moral. Reservou o termo �ética� para indicar

a intenção de uma vida boa e o termo �moral� para indicar o lado obrigatório das ações

(o dever) marcadas pelas normas que as dirigem.

Para refletir sobre ética e moral, Ricoeur traz à lume os filósofos Aristóteles e

Kant. O primeiro no que diz respeito à perspectiva teleológica da ética e o segundo no

que tange à definição de moral como norma a seguir, um dever, isto é, uma

perspectiva deontológica. Então, a ética está diretamente relacionada ao que se estima

como bom, de acordo com a tradição aristotélica e a moral relacionada ao obrigatório,

conforme a tradição kantiana. 85

Ricoeur pauta a intenção ética em três termos igualmente importantes, ou seja,

sem qualquer hierarquia entre eles, quais sejam: �intenção de vida boa�, �com e para os

outros�, e, �instituições justas�.

Segundo Ricoeur, a expressão �vida boa�, de origem aristotélica designa uma

aspiração de viver bem, um cuidado: de si, do outro e da instituição. Para explicar este 84 MAXIMILIANO, 2005, p. 128. 85 RICOEUR, LI, 1995, p. 161.

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�cuidado� e sua importância para a intenção ética, Ricoeur associa o termo �si� à

�estima� no plano ético fundamental e ao �respeito� no plano moral. Para Ricoeur,

duas coisas são estimáveis em si mesmas: a primeira seria a capacidade de agir

intencionalmente e a segunda a capacidade de iniciativa.

Então, parece que por esse ponto de vista ricoeuriano, tanto a ética quanto à

moral dizem respeito a uma ação intencional do sujeito que pode mudar o curso da sua

história no mundo, tomando suas iniciativas, reconhecendo suas ações e se

responsabilizando pelos seus atos.

Segundo Ricoeur a estima de si é o momento reflexivo das ações. Cada

indivíduo apreciando as suas ações, aprecia a si mesmo como autor das ações,

assumindo-as e responsabilizando-se por elas, não simplesmente atribuindo às ações

forças da natureza ou sentindo-se meros instrumentos para agir.

O segundo componente da intenção ética proposta por Ricoeur é viver bem �com

e para os outros�. A este componente Ricoeur designa o nome de �solicitude�. Mas o

que seria a solicitude? Para Ricoeur a solicitude é a troca entre dar e receber.86 A

solicitude acrescenta o dado de que cada pessoa é única e insubstituível para a outra.

Cada um é insubstituível não a si mesmo, mas ao outro. Segundo Ricoeur, �é na

experiência do caráter irreparável da perda do outro amado que aprendemos, por transferência do

outrem para nós mesmos, o caráter insubstituível de nossa própria vida�.87

Para Ricoeur, a solicitude não anda separada da estima de si. Uma não pode ser

pensada sem a outra. A solicitude explicita a dimensão de diálogo explícita na estima

de si88. Ora, o ser humano não vive isoladamente, razão pela qual, na constituição do

sujeito está presente esta troca na convivência com o outro sujeito e com o mundo. É a

partir da relação com o outro que cada indivíduo se constitui como sujeito. O outro é,

então, constitutivo de cada indivíduo. É a partir do outro que constituo meu próprio

ser. Os indivíduos não se constituem de modo separado ou isoladamente. As

consciências individuais se constituem a partir do outro e com o outro.

86 RICOEUR, SMCO, 1990, p. 221. 87 RICOEUR, SMCO, 1990, p. 226. 88 RICOEUR, LI, 1995, p. 163.

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E quem é o outro? Para Ricoeur, o outro é o ser que pode dizer eu como eu e,

como eu, pode ser considerado um agente responsável pelos seus atos. Não fosse assim,

diz ele, as regras de reciprocidade não seriam possíveis, uma vez que na reciprocidade

as pessoas são consideradas insubstituíveis, umas às outras. Um estima o outro tanto

quanto estima a si.89

Há que se pensar, no entanto, em como ter em vista o outro, como manter uma

reciprocidade, como se manter uma relação de equilíbrio, se as pessoas por natureza

são diferentes, ou seja, há na vivência dos indivíduos uma desigualdade entre eles,

quer pelo modo de ser de cada um, quer pela posição em que se encontram. Ricoeur

não exclui a questão das desigualdades existentes na reciprocidade. Para ele, quando

a desigualdade advém do fato de estarem os indivíduos em posições diferentes, como,

por exemplo, o discípulo e o mestre, é através do reconhecimento pelo discípulo da

superioridade de seu mestre que se restabelece a reciprocidade. Quando a desigualdade

advém da fraqueza do outro, do seu sofrimento, cabe à compaixão restabelecer a

reciprocidade, pois o indivíduo que exercita a compaixão, na medida em que recebe

gratidão e reconhecimento, recebe mais do que dá. �A solicitude restabelece a igualdade

lá onde ela não é dada, como na amizade entre iguais�.90 Então, de acordo com Ricoeur,

estabelecer relação de reciprocidade com o próximo é restabelecer a igualdade. Por isso

a noção do outro, segundo Ricoeur, envolve o sentido de justiça. O viver bem de um

indivíduo para com o outro implica na vivência justa do todo. Desse modo, �o viver-

bem não se limita às relações interpessoais, mas estende-se à vida das instituições�.91

O terceiro termo da intenção ética de Ricoeur diz respeito às instituições justas:

�Vida boa, com e para o outro em instituições justas�.

Ricoeur define por instituição �todas as estruturas do viver em comum de uma

comunidade histórica, irredutíveis às relações interpessoais e, contudo, ligadas a elas

89 Idem. 90 Idem. 91 RICOEUR, LI, 1995, p. 164.

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num sentido específico, que a noção de distribuição � encontrada na expressão justiça

distributiva � permite esclarecer.�92

Segundo Ricoeur, as sociedades modernas ampliam incessantemente o campo

de aplicação da partilha igual ou da chamada igualdade aritmética. No entanto, diz ele,

que se levando em conta toda a variedade de bens a partilhar, nenhuma sociedade

funciona sob o modo de partilha igualitária. Somente a chamada igualdade

proporcional, igualdade que não é entre coisas, mas entre relações das coisas com as

pessoas, define a justiça que os medievais chamavam �distributiva�.93

Para Ricoeur, é possível compreender uma instituição como um sistema de

partilha. E esta ideia de distribuição, repartição, partilha, a ser feita por uma instituição

tira do foco a repartição entre amigos e estende a intenção ética a todos. A justiça

consiste, assim, em dar a cada um o que é seu, sendo este �cada um� o partidário no

sistema de distribuição.

Por conta desse sistema distributivo e das desigualdades que permeiam a

sociedade, é que Ricoeur aponta ser inevitável que a ideia de justiça se componha

também pela moral e não somente pela ética, sendo necessário submeter a intenção ética

à prova da norma. Sendo assim, Ricoeur faz um paradoxo entre ética e moral, num

sistema de correspondência que deságua na sabedoria prática.

A sabedoria prática consiste na invenção pelo sujeito autônomo de um

comportamento apropriado à singularidade de cada caso; porém, a autonomia terá de se

pautar pela regra da justiça e pela regra da reciprocidade, o que impede desde já que ela

seja a tomada de saída como autonomia auto-suficiente.94 De acordo com Ricoeur, esta

sabedoria prática torna-se possível na medida em que se institui um debate público

onde são feitas as avaliações que dão sentido às partilhas da sociedade.

92 RICOEUR, LI, 1995, p. 164. 93 RICOEUR, LI, 1995, p. 94. 94ROSSATO, Noeli Dutra. Viver Bem, ética e Justiça. Texto encaminhado para Revista Mente, Cérebro & Filosofia, vol. 11 � Presença do outro e interpretação: Ricoeur, Gadamer - Julho 2008. Disponível em: http://w3.ufsm.br Acesso em: 10 dez. 2012.

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1.4.2. O Conceito de Justiça

Segundo Ricoeur, o conceito de justiça constitui uma ideia reguladora que

preside uma prática social: a da justiça enquanto mecanismo institucional do Estado.

Nesta prática social são postos em jogo conflitos típicos que ocasionam a necessidade

da intervenção do Estado para decidir entre os interesses ou direitos opostos, o que

Ricoeur denomina como ocasiões da Justiça. E, para tanto, tem-se um aparelho

judiciário composto de corpo de leis, de Tribunais, de Juízes, aparato este com poder

de impor uma decisão de modo coercitivo, que Ricoeur chama de canais ou vias da

justiça. Uma das partes integrantes do modo como se opera a solução dos conflitos é

atividade comunicativa, uma vez que se utiliza da linguagem de modo dialógico para o

confronto dos argumentos pelas partes litigantes perante o juiz ou Tribunal, que Ricoeur

denomina argumentos da justiça. Tudo isso será visto de modo mais detalhado no

decorrer deste texto.

Ao apontar o sentido da justiça, Ricoeur diz ser preciso o reconhecimento de que

o ser humano é mais sensível à injustiça do que à justiça. Segundo Ricoeur esta

sensibilidade à injustiça decorre do fato de ser ela - a injustiça - predominante na

sociedade, enquanto a justiça escassa, tendo o homem uma visão maior daquilo que

falta às relações humanas do que uma visão de como organizá-las95.

Na sociedade fala-se muito mais das injustiças cometidas do que das justiças

cometidas. Aliás, não raras vezes se fala que não se fez justiça quando alguém não foi

severamente penalizado sobre algo que praticou, ainda que a lei não designe para

aquela ação pena tão severa. É assim que se vê nos casos de ocorrência de crimes: Os

indivíduos que integram a sociedade querem ver o criminoso severamente penalizado,

ainda que a lei preveja para o respectivo crime uma pena mais branda. E quando se

aplica a lei, aquela mais branda em que a situação se enquadra, a sociedade clama: É

injusto!

95 RICOEUR, LI, 1995, p. 90.

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No cotidiano e nas relações interindividuais, com certa frequência vê-se alguém

a dar uma explicação dizendo que age daquela forma porque não seria justo agir de

outra forma. Raramente se fala �é justo que se faça assim�, mas frequentemente se diz:

�Não é justo se fazer assim�, ou seja, é injusto!

A sensação de que algo é injusto parece emergir de situações conflituosas, isto é,

nas situações em que não se chega a um consenso ou a um resultado equilibrado para

as partes envolvidas. Se há conflito insolúvel é provável que uma das partes ou ambas

as partes tenham a sensação de injustiça.

Para Ricoeur o indivíduo penetra no campo do que é justo e do que é injusto sob

o modo de queixa, mesmo quando procura a justiça institucionalizada. O indivíduo faz

a queixa por aquilo que entende ter sido a ele injusto. Para pedir que se faça justiça,

parece ser necessário primeiro que se narre o que é injusto. Parte-se da queixa da

injustiça, para se chegar ao pedido de justiça.

Saber discernir o que é justo e o que é injusto parece não ser uma tarefa fácil.

Esta dificuldade não é relativa à modernidade, pois se perpetua desde os tempos

antigos. Segundo Ricoeur a ideia de injustiça movimenta o pensamento dos filósofos

desde os primórdios, a exemplo do que ocorreu nos diálogos de Platão e na ética

aristotélica, nos quais houve uma preocupação em nomear o injusto e o justo.96

Buscando a definição do vocábulo �injusto� nos dicionários de língua

portuguesa, vê-se que a maioria deles define injusto como o que é contrário à justiça, o

que leva a indagar, o que seria a justiça e o que poderia ser a ela contrária? Inicialmente,

há que se destacar que ao se falar de justiça, o que vem à mente é a justiça

institucionalizada, isto é, a instituição que soluciona conflitos e reparte papeis

buscando com isso dar a cada um o que é seu. A justiça institucionalizada é necessária

porque não se admite numa sociedade que se faça �justiça� com as próprias mãos, mas

que ela seja feita através da �justiça�. A primeira justiça aqui mencionada está ligada ao

predicado justo. A segunda, à instituição. E é por isso, por conta da institucionalização

da justiça, que se ouve dizer que alguém que se sentiu injustiçado vai demandar �na

96 RICOEUR, LI, 1995, p. 90.

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justiça� por seu direito. �Ir à justiça� neste contexto significa dizer valer-se do Poder

Judiciário para, por meio da decisão do Juiz, ver reconhecido o seu direito como forma

de se fazer justiça. Então, isto parece apontar que também para procurar o Poder

Judiciário enquanto meio para fazer justiça o indivíduo primeiramente se sente

injustiçado.

Segundo Ricoeur, a constituição da ideia de justiça decorre de concepções rivais

de justiça. Para ele o predicado �justo� parece atraído por um lado para o �bom� e por

outro lado para o �legal� e esta dialética bom/legal seria inerente ao papel de ideia

reguladora atribuído à ideia de justiça como prática social. 97

Legal e Bom aparecem à primeira vista como orientações opostas: uma, a do

bom advém de uma concepção teleológica, isto é, concepção consequencialista em que

as ações são boas em função de um fim. A outra, a do legal, advém de uma concepção

deontológica, segundo a qual as ações decorrem de um dever, da obrigação.

Esta diferença existente entre o legal e o bom leva a pensar se para existir um

predicado não pode existir outro ou se ambos andam juntos. Tudo que é legal é bom?

Tudo que é bom é legal? Pode algo ser legal e não ser bom? Pode algo ser bom e não

ser legal? Parece que a resposta a estes questionamentos seria no sentido que nem tudo

que é bom é legal e nem tudo que é legal é bom, havendo ações que podem ser ao

mesmo tempo legais e boas. Emerge deste raciocínio a reflexão acerca do que é o

�bom� e do que é o �legal.�

Falar sobre o legal remete ao conjunto de normas, de regras, que regulam a vida

da sociedade. Não se consegue imaginar uma comunidade sem regras, por menor que

ela seja. Há regras na família, no local de moradia quer seja condomínio ou rua, na

religião, nas associações, no partido político, na Cidade, no Estado, no País.

Provavelmente, ao se pensar no estabelecimento de regras, o fim a ser alcançado é a

convivência dos indivíduos de modo organizado e pacífico. A criação de regras

padroniza os comportamentos, não ficando a critério de cada indivíduo a

autolegislação, mas na mão de um poder soberano. E, levando-se em conta a falta de

97 Idem.

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consenso entre os indivíduos acerca do que é bom e é ruim, do que é certo e errado, do

que é justo e é injusto, é bem provável que se as regras não existissem se viveria num

caos. As regras na sociedade são também chamadas leis. Numa sociedade que edita leis,

todos sabem (ou deveriam saber) o que é legal e o que é ilegal, ainda que as coisas legais

não sejam necessariamente entendidas como boas e/ou entendidas como justas.

Volta-se a questão acerca do discernimento se tudo que é legal é bom e se é

justo; se as ações dos indivíduos podem ser consideradas justas e/ou boas pelo

simples fato de estarem calçadas na lei. Será que a justiça instituída ao aplicar a lei

promove a justiça? Seria possível se fazer justiça sem a aplicação da lei?

Segundo Ricoeur, a justiça sob o signo do bem é uma virtude. Ricoeur evocando

o quadrado medieval das virtudes cardeais, coloca a justiça como virtude ao lado da

prudência, da temperança e da coragem. Prossegue dizendo que considerar a justiça

uma virtude é admitir que ela contribui para a felicidade do ser humano, isto é, na

condição de virtude a justiça contribui para que a ação humana seja portadora de

intenção de uma vida boa. E por conta desta intenção de vida boa é que a justiça teria

concepção teleológica, ou seja, o seu telos seria viver bem 98.

No entanto, Ricoeur diz que o conceito de justiça como virtude comporta ao

mesmo tempo sedução e perturbação. Sedução porque a intenção de vida boa dá a

ação humana um sentido, uma significação. Perturbação porque não há consenso sobre

o que é efetivamente o bem e, desta falta de consenso emerge uma incerteza sobre o

que é o bem e o que é bom.99

Ricoeur critica a concepção de justiça de Aristóteles por entendê-la como

limitada, uma vez que para Ricoeur não basta uma análise de todas as virtudes para

se chegar à concepção teleológica da justiça. Ricoeur entende que por conta do traço

particular existente na justiça e que conduz do ponto de vista teleológico ao ponto de

vista deontológico, a justiça sempre constituiu um caso à parte nos tratados das

virtudes. Segundo Ricoeur, esta peculiaridade, este traço particular responsável por

98 RICOEUR, LI, 1995, p. 91. 99 Idem.

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fazer o elo entre a justiça como bem e a justiça como dever, conduzindo uma à outra, é

o formalismo, que o autor chama de �formalismo imperfeito�, ou seja, o ponto de

mediania, um equilíbrio, um termo médio entre dois extremos. Para explicar o que

entende por formalismo imperfeito, Ricoeur cita Aristóteles dizendo que �segundo a

Ética a Nicômaco de Aristóteles, a justiça é definida pelo frágil equilíbrio entre um excesso e

uma falta, um muito e um muito pouco, o que o leva a considerá-la como uma �mediania�, um

termo médio entre dois extremos�. O ponto de equilíbrio apontado por Aristóteles seria a

igualdade, ou isotés, princípio segundo o qual a justiça seria distributiva de bens e

encargos. Seria a justiça o meio do caminho entre o excesso de querer ter sempre mais

e a falta de não contribuir suficientemente aos encargos da Cidade.100

A questão da igualdade suscitada por Aristóteles leva a refletir em como se falar

em igualdade e distribuição igualitária de papéis se os indivíduos são diferentes. E

ainda, como se fazer essa distribuição de bens e encargos de tal maneira a se alcançar o

bem comum. Seria a justiça, enquanto instituição, responsável também pela

distribuição de papéis e encargos na sociedade? A sociedade instituída seria, por si só,

capaz de distribuir papéis aos indivíduos sem o auxílio da justiça? Ricoeur indica que

distribuir, partilhar e repartir são atividades institucionais, o que leva a crer que toda

sociedade, enquanto instituída reparte papéis tarefas, vantagens, desvantagens, honras

e encargos.

Ricoeur questiona a natureza das grandezas às quais se aplica a ideia de justiça

como igualdade. Questiona também, a que modalidades essa igualdade se aplica.

Diante de tais questionamentos, Ricoeur desenvolve a ideia de sociedade como sistema

de repartição mediante o destaque de dois corolários.

O primeiro seria a distinção da virtude da justiça para a virtude da amizade,

baseando-se no fato de a amizade ter diante de si um próximo e a justiça ter diante de si

um terceiro, desconhecido. Parece ser possível dizer que os indivíduos que exercitam a

amizade conhecem um ao outro e têm recíproca afinidade. Os indivíduos se

compreendem mutuamente e estabelecem uma relação de solidariedade em busca de

100 RICOEUR, LI, 1995, p. 92.

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viverem bem consigo, com o outro, com e na sociedade. Ricoeur segue a ideia

aristotélica sobre amizade para indicar o alcance da solicitude, elemento integrante da

intenção ética �Vida boa, com e para os outros em instituições justas�, o que se verá

com mais vagar no capítulo 3. Nesse contexto indica que a amizade transita entre a

perspectiva de vida boa e a justiça, sendo a primeira uma virtude aparentemente

solitária e a segunda uma virtude da pluralidade humana de caráter político.101

A amizade é exercitada face-a-face, entre pessoas próximas, sem necessidade de

intermediação enquanto a justiça é exercitada entre desconhecidos. Os que buscam a

justiça podem até se conhecer, mas entre eles não há amizade. Diz Ricoeur que �o outro

na justiça não é o outro na amizade, mas o cada um de uma distribuição justa�.102

O segundo corolário destacado por Ricoeur diz respeito à ligação do conceito de

distribuição à ideia de justiça, que levanta um falso debate entre sociedade e

indivíduos, ou seja, entre o viver coletivo e o viver individual. Com base no

pensamento de Durkheim103, Ricoeur aponta que a sociedade é a controladora das ações

individuais. O indivíduo aprende a seguir normas que não foram criadas por ele. As

normas estão dentro das possibilidades que a sociedade impõe e, caso o indivíduo

extrapole os limites impostos, estará sujeito a ser socialmente punido. Desta forma, o

viver coletivo se sobrepõe ao viver individual, fazendo com que a sociedade seja mais

que a soma de seus membros. Para contrapor este raciocínio de Durkheim, Ricoeur

faze referência ao individualismo metodológico de Max Weber, que em seus conceitos

de sociologia indicou somente a probabilidade de comportamento do indivíduo deste

ou daquele modo, não resolvendo a questão da sociedade como distribuição.

Ricoeur indica uma saída para o falso debate entre sociedade e indivíduos.

Segundo Ricoeur, para que exista uma instituição considerada como regra de

distribuição, é preciso que os indivíduos dela participem a fim de que seja possível

101 RICOEUR, SMCO, 1990, p. 213. 102 RICOEUR, LI, 1995, p. 92. 103Émile Durkheim (1858-1917). Sociólogo e filósofo francês considerado fundador da sociologia científica. Procurou elaborar uma ciência de fato social, marcada por uma preocupação ética, buscando caracterizar o fato social como fenômeno coletivo (JAPIASSU, Hilton; MARCONDES. Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 4ª ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 79).

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serem feitas análises das probabilidades aplicadas aos comportamentos individuais e

não ao todo. As relações sociais transcendem.

Expostos os dois corolários acerca da ideia de sociedade como sistema de

distribuição, Ricoeur retoma a questão suscitada acerca da natureza das grandezas

às quais se aplica a ideia de justiça como isotés ou igualdade, respondendo que tal

questão levanta a dificuldade de se saber o que é que define como bom a natureza

das coisas a partilhar e os beneficiários da partilha.104 Ricoeur aponta uma nova

dificuldade que se agrava nas sociedades modernas, qual seja, a questão das partilhas

desiguais e acaba por concluir pela igualdade proporcional em detrimento da igualdade

aritmética.

Segundo Ricoeur, as sociedades modernas ampliam incessantemente o campo

de aplicação da partilha igual ou da chamada igualdade aritmética. No entanto, diz ele,

que se levando em conta toda a variedade de bens a partilhar, nenhuma sociedade

funciona sob o modo de partilha igualitária. Somente a chamada igualdade

proporcional, igualdade que não é entre coisas, mas entre relações das coisas com as

pessoas, define a justiça que os medievais chamavam �distributiva�.105

Ricoeur pergunta se as dificuldades encontradas na ideia de igualdade

proporcional se encerrariam ao se passar do lado teleológico para o lado deontológico.

Seria possível se falar em justiça ou no predicado �justo�, ou em partilhas igualitárias

por simples obediência à lei, cortando o laço da virtude da justiça com a ideia do bem?106

A resposta é não.

Segundo Ricoeur, a concepção deontológica da justiça na qual as relações

morais, jurídicas e políticas são em conformidade com a lei, passou a valer para a teoria

da justiça sob o impulso da filosofia de Kant.107 A linha Kantiana ortodoxa defende que

somente pode receber o nome de �lei� as disposições jurídicas derivadas do Imperativo

Categórico formulado por Kant, a saber: �Age de tal modo que trates a humanidade na tua

104 RICOEUR, LI, p. 94. 105 RICOEUR, LI, p. 94. 106 RICOEUR, LI, p. 95. 107 RICOUER, LI, p. 95.

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pessoa ou na de outros não apenas como meio, mas sempre também como um fim em si�108Já de

acordo com a teoria do direito contida na �Metafísica dos Costumes�, diz Ricoeur, que

um número pequeno de leis pode ser considerado uma consequência direta e

indiscutível do Imperativo Categórico. As demais leis, ou seja, aquelas que não são

oriundas do Imperativo categórico, são aquelas advindas da atividade legislativa, dos

políticos imbuídos desta tarefa.109 Então, diferentemente da conformidade com a lei na

forma tratada por Kant, nas sociedades esta conformidade decorre da obediência às

normas editadas nas instituições legislativas institucionalizadas. Segundo Ricoeur o

fundamento escapa à razão prática e cai no controle do Poder Legislativo.

Ainda que as leis advindas da atividade legislativa sejam elaboradas visando o

bem comum, a partilha igualitária na sociedade e a igualdade dos cidadãos, a

formalização das leis como modo de organização social passa pela esfera teleológica e

chega à concepção deontológica, isto significa dizer que, com a finalidade de um bem

viver criam-se obrigações/ regras a serem seguidas por todos, ou nos dizeres de

Ricoeur: �a teoria da justiça passou para o lado deontológico, vale dizer, uma concepção

na qual todas as relações morais, jurídicas e políticas são postas sob a ideia de

legalidade, de conformidade com a lei.�110

Nesse sentido, tomando por referência esta passagem da concepção teleológica

para a concepção deontológica, há que se refletir se uma elimina a outra, isto é, se ao

formalizar a lei e seguir-se o positivismo jurídico, a ideia de bem, de intenção de vida

boa acaba sendo deixada de lado. Como fica a questão da prática social num

emaranhado de leis prontas a serem seguidas? E mesmo levando em conta que no

decorrer dos tempos novas leis surgem, outras são revogadas, será que este movimento

de criação, modificação e revogação de leis anda no mesmo passo das mudanças

inevitáveis da sociedade?

Segundo Ricoeur, a concepção deontológica da lei se firma no campo institucional

onde se aplica a ideia de justiça em função de uma união à tradição contratualista, 108 RICOEUR, LI, p. 95. 109 RICOEUR, LI, p. 96. 110 RICOEUR, LI, p. 96.

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segundo a qual certo conjunto de indivíduos consegue superar um estado primitivo

de natureza para chegar ao Estado de Direito.111 O contrato social é um modo fictício de

transformar os direitos naturais em direitos civis. Pelo contrato social fictício, os direitos

naturais do homem sobre todas as coisas que o cercam são transferidos a um Poder

Soberano.

Mas porque seria fictício? Ricoeur afirma que o contrato social é uma ficção

porque a liberdade do indivíduo pode ser chamada de �fato da razão� atestado pela

consciência. Assim e, considerando que a república não é um fato como a consciência e

precisa ter um fundamento, provavelmente, nunca a título definitivo, o contrato social

só pode ser uma ficção.112 Segundo Ricoeur, a ficção do contrato tem por objetivo

separar o justo do bom fazendo com que um compromisso prévio substitua o

processo de uma deliberação imaginária. Nessa hipótese, seria o contrato social o

formatador dos princípios da justiça.

O pensamento de Ricoeur indica que a problemática da fundação da república

se faz clara ao se deparar a formulação do contrato social nos modos pensados por

Rousseau e por Kant: no modo pensado por Rousseau113 a sociedade recorre a um

legislador para estabelecer as normas a serem seguidas. Já no modo pensado por Kant,

cada indivíduo tem a autonomia para autolegislar abandonando per si sua liberdade

natural e retomando-a como liberdade civil.

Ricoeur traz à baila o pensamento de John Rawls114 que, segundo ele, tenta dar

uma solução a esta polêmica entre as explicações das normas emanadas do Estado e

normas criadas por cada indivíduo para si (autolegislação) e assim o faz propondo como

chave do conceito de justiça a Equidade (tradução do termo fairness), que �caracteriza

a situação original do contrato do qual, supostamente, deriva a justiça das instituições

111 RICOEUR, LI, p. 96. 112 Idem. 114 RAWLS, John (1921-2002), filósofo do direito norte-americano, professor na Universidade de Harvard. Formulou uma teoria da justiça de forte conotação social, com ênfase na noção de justiça distributiva, bastante influente no contexto anglo-saxônico contemporâneo, opondo-se ao utilitarismo e ao individualismo e reelaborando a teoria do contrato social (JAPIASSU, Hilton; MARCONDES. Danilo, op. cit., p. 234).

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de base.�115 Segundo Ricoeur, para Rawls o contratualismo e o individualismo devem

andar juntos, de modo que haja um contrato original entre pessoas livres que queiram

promover seus interesses individuais.

Para Ricoeur o projeto de Rawls pode ser compreendido na medida em que é

contraposto ao projeto de Kant, segundo o qual a lei deriva do respeito à pessoa. No

entanto, sendo o princípio do respeito à pessoa humana abstrato, dele não pode

derivar um corpo de leis. Estas devem emanar do poder legislativo que dá um

conteúdo ao vazio deixado pelo princípio do respeito à pessoa humana, passando ao

positivismo jurídico.

Ricoeur reteve de Rawls a contribuição para solucionar o problema inerente aos

princípios da justiça que Rawls considera como derivados da deliberação numa

situação irreal sob o véu da ignorância116. Segundo Ricoeur, Rawls teria respondido

ao que chama de perigo interno da corrente deontológica, isto é, a passagem do

princípio abstrato ao positivismo jurídico, se na situação irreal da deliberação, fossem

produzidos princípios de justiça complexos suficientes para organizar o campo

social.117

Seriam os princípios da justiça derivados de deliberação numa situação

imaginária feita sob o véu da ignorância suficientes para articular o querer viver bem

de uma sociedade que não é imaginária, mas real? Ricoeur diz não duvidar que os

princípios oriundos de uma deliberação irreal possam conduzir a princípios mais

precisos do que aqueles emanados do imperativo abstrato do respeito às pessoas. No

entanto, permanece a distância entre os princípios legais da justiça e a prática jurídica. 115 RICOEUR, LI, p. 97. 116 O véu da ignorância constitui, na obra de Rawls, a descrição metafórica da barreira contra o uso de interesses parciais na determinação dos princípios da justiça. O véu da ignorância define a �posição original�. É como se as partes em causa tivessem de fazer um contrato acerca das estruturas sociais básicas, definindo, por exemplo, as liberdades que a sua sociedade permitirá e a estrutura econômica que irá aceitar, mas sem saber que papel elas próprias irão ocupar na sociedade. Rawls acredita que só deste modo, a partir de uma posição deste tipo, um sistema social pode satisfazer os requisitos da justiça. (REIS. Flávio Azevedo. A Posição original em Rawls. Primeiros Escritos, volume I, Nº 1, p.109, Fflech, USP, 2009. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/df/site/publicacoes/primeirosescritos/09.Flavio_Azevedo_Reis.pdf). Acesso em: 03 fev. 2013. 117 RICOUER, LI, 1995, p. 98.

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Esta distância indica a necessidade de se pensar sobre os desdobramentos que os

princípios da justiça devem encontrar numa discussão real, isto é, num espaço público

de manifestação.

Analisando os princípios da Justiça com base no pensamento de Rawls, Ricoeur

destaca em primeiro lugar serem os princípios da justiça princípios de distribuição. Por

essa vertente, o conceito de justiça se estende a distribuição de direitos, deveres por

um lado e benefícios e encargos por outro lado.

A distribuição de direitos e deveres e de benefícios e encargos, isto é, de

vantagens e desvantagens, seria de fácil compreensão se não houvesse várias formas de

repartição. Por conta dessa diversidade na forma de partilhas, parece ser inevitável o

surgimento do conflito, principalmente, pelo modo como se distribui na sociedade

todas as coisas sujeitas à distribuição (bens, serviços, encargos, responsabilidades,

autoridades, riquezas, benefícios, etc.) e quando da distribuição desigual. Ricoeur

aponta que na sociedade existe um fenômeno consensual-conflitivo. Consensual

porque se não houver um consenso nos processos de interesses opostos não há

estabilidade social e conflitivo porque havendo repartição desigual a alocação de

partes pode ser contestada.

Em segundo lugar, Ricoeur aponta que para Rawls existem dois princípios da

Justiça: o primeiro princípio seria aquele que assegura a igualdade de todos os cidadãos

diante da lei. �Cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso de

liberdades de base iguais para todos, que seja compatível com o mesmo sistema para os

outros.�118

No entanto, numa sociedade desigual, como tratar a todos com igualdade?

Segundo Ricoeur, o segundo princípio proposto por Rawls diz respeito à possível

solução para esta questão das partilhas desiguais na forma como antes evocada por

Aristóteles sob o título de �Igualdade Proporcional�, que consiste no tratamento igual

dos indivíduos e distribuição proporcional entre eles. Atribui-se benefícios maiores

aos mais necessitados e ônus progressivos aos menos necessitados. Então, entre as

118 RICOEUR, LI, p. 100.

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partilhas desiguais sempre há aquela mais justa que todas as demais, na medida em que

aumenta as vantagens dos mais favorecidos e compensa este aumento com a

diminuição de desvantagens dos menos favorecidos. Ricoeur resume este princípio

com a fórmula: maximizar a parte mínima (princípio maximin).

Ricoeur aponta a seguinte questão: Até que ponto os princípios da justiça,

principalmente aquele que trata da igualdade proporcional, exercem o papel de ideia

diretriz da justiça enquanto prática social apontando um vazio entre princípios da

justiça e a prática judiciária caracterizada por ocasiões ou circunstâncias da justiça,

meios e argumentos da justiça, conforme se verá a seguir.

1.4.3 Da Teoria à Prática da Justiça

No que tange ao contexto prático de justiça, diz Ricoeur que qualquer que seja o

sentido e o conteúdo de ideia de justiça, rege ela uma prática social formada por

ocasiões e circunstâncias, canais no plano institucional e os argumentos no nível de

discurso. A seguir, se destacará cada um desses pontos.

Por circunstâncias ou ocasiões da Justiça Ricoeur demonstra que quando

existem interesses opostos em que os indivíduos envolvidos não encontram entre eles

uma solução, surge a necessidade de se pedir a intervenção do Estado para decidir

sobre as reivindicações levantadas.

Os interesses opostos podem estar presentes em matérias inerentes aos mais

diversos ramos do direito. Quer tenham os conflitos natureza civil, comercial,

consumerista, penal, previdenciária, internacional ou seja relativo a qualquer dos

demais ramos do direito, em havendo intervenção estatal, a solução será buscada

mediante a instauração de processo.

Destarte, são submetidas à Justiça (enquanto instituição do Estado) os mais

diversos tipos de conflitos. Desde a dissolução de uma sociedade conjugal com a

repartição de seus bens (interesses individuais) até as questões inerentes à preservação

do planeta através do chamado direito ambiental (interesse de toda a sociedade). E,

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segundo Ricoeur, quando a justiça é chamada a decidir são revigoradas as concepções

teleológicas da justiça porque o que se espera da Justiça é uma correta distribuição,

dando a cada um o que é seu, ou em outras palavras, se espera da justiça a atribuição

para cada um de sua justa parte. 119

Retoma-se a questão no que tange à possibilidade de partilha igualitária.

Ricoeur aponta que as demandas levadas ao Judiciário para decisão são portadoras de

valores, de avaliações em termos de bens. Como se pode partilhar igualmente coisas que

não são iguais? E aqui se acrescenta: como se pode partilhar igualmente entre pessoas

que não são iguais e que, portadoras de diferentes valores, terão por iguais as partes

recebidas? Segundo Ricoeur, maximizando a parte mínima.

Mas maximizar a parte mínima não é uma tarefa fácil e talvez não se possa se

deter apenas neste preceito para a partilha. Isto porque, segundo Ricoeur, a maior

dificuldade está no fato de serem as coisas sujeitas à partilha heterogênea. Esta

heterogeneidade não se dá no campo das ideias, mas existe na prática. Não é possível

se falar na sociedade como um sistema de repartição sem considerar a dificuldade

gerada na partilha pelo fato de serem as coisas heterogêneas. E, por conta dessa

dificuldade, para efetivar-se a partilha não é suficiente ter ampla noção de repartição e

distribuição, mas é preciso estar atento a heterogeneidade real dos bens sociais

primários.

Segundo Ricoeur o esquema processual ao chegar ao princípio da maximização

da parte mínima, isto é, aumento de vantagens dos mais favorecidos e diminuição de

desvantagens dos menos favorecidos, traz a questão para uma realidade prática, qual

seja, a partilha, que sai do campo virtual para uma prática nada fácil por conta das

escolhas da ordem prioritária dos bens.

E a escolha desta ordem prioritária dos bens depende, não só de valores, como

também de consenso acerca da ética. Para Ricoeur, uma concepção puramente

processual de justiça que requer um desdobramento de uma teoria de valores,

dificilmente funciona numa sociedade desprovida de consenso acerca da ética. Ricoeur

119 RICOEUR, LI, p. 102.

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entende que, em que pese a dificuldade no consenso acerca da ética, as condições de

consenso não estão perdidas e dependem da capacidade dos cidadãos de conjugarem

os ensinamentos recebidos no passado, suas heranças cultural, religiosa e política.

Aponta, ainda, que o princípio não pode ser substituído pelo valor. Isto porque, o

valor tem um lado forte e um lado fraco. A fraqueza consiste no seu conceito abstrato e

a sua força consiste no fato de ser o valor o mediador entre o abstrato e o cotidiano. No

nível abstrato o consenso permanece forte � consenso de que pessoas não são coisas � e

no cotidiano surgem novas situações que carecem de decisão. Então, o que faz o abstrato

� onde há consenso � se comunicar com o cotidiano de novas situações é o valor.

Segundo Ricoeur, depende da qualidade da discussão pública avivar o consenso

através da interseção das diferentes heranças recebidas no passado, bem como das

convicções, desde aquelas que evoluem lentamente até as que evoluem de modo mais

rápido.

Integram os chamados Canais da Justiça o que neste trabalho se chama de Poder

Judiciário (e que Ricoeur chama de aparelho judiciário) o conjunto de leis escritas, os

tribunais aos quais é atribuída a função jurisdicional por meio de lei, bem como os

juízes, indivíduos dotados de independência e com a missão de pronunciar a sentença

em cada caso particular. Entenda-se por função jurisdicional o poder que tem o Estado

de intervir nos conflitos, aplicando o direito ao caso concreto, mediante a decisão de um

juiz por ele nomeado, decisão esta que tem força coercitiva.

Quando se falou das circunstâncias ou ocasiões da justiça, mencionou-se que

quando existem interesses opostos em que os indivíduos envolvidos não encontram

entre eles uma solução, surge a necessidade de se pedir a intervenção do Estado120 para

decidir sobre as reivindicações levantadas. Segundo Ricoeur, o aparelho judiciário

120 Ricoeur chama o Estado de �instância superior�. No entanto, não se utilizará aqui desta nomenclatura no mesmo sentido que Ricoeur lhe atribui uma vez que para o Poder Judiciário Instância Superior é aquela que julga o processo em grau de recurso e isto, num dado momento, pode confundir o leitor. Instância Superior no mundo jurídico trata-se do direito que tem o jurisdicionado ao duplo grau de jurisdição, ou seja, quando proferida uma sentença, têm as partes litigantes o direito a apresentar recurso a fim de que uma Instância Superior ao magistrado singular, isto é, o Colegiado do Tribunal, reveja a decisão proferida mantendo-a ou modificando-a.

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espera do Estado que ele garanta o seu bom funcionamento dentro de um espaço

específico e protegido no espaço público e que decida, pela via legislativa, sobre a

ordem de prioridades na partilha entre bens sociais primários concorrentes, uma vez

que as demandas judiciais, nos diferentes segmentos, não poderão ser satisfeitas ao

mesmo tempo e nem na mesma proporção.

Nesse sentido, diz Ricoeur, a ideia de justiça necessita da mediação política

para que seja alcançada a prática da justiça. A ordem de prioridades das partilhas

depende não só da discussão política, como também da decisão política, que assegura o

enquadramento global da lei.121

Além da mediação política, para Ricoeur abaixo do judiciário e, porque não

dizer, antes dele, existe uma base de discussão na sociedade civil. É nesse espaço

público que nascem as chamadas mentalidades.

Nas conversas havidas nas relações interpessoais, no debate público

interindividual ou coletivo é que são ponderadas as avaliações que dão significado aos

bens e papéis distribuídos na sociedade e por ela atribuídos a indivíduos como

direitos. É no debate público que é estabelecida a ordem das prioridades entre os bens

a serem partilhados. Segundo Ricoeur, a justiça como instituição não poderia existir

numa sociedade na qual não se pudesse discutir e na qual faltasse a prática do exercício

oral e informal do julgamento, que acaba sendo formalizado na figura do judiciário.

Nesse diapasão há que se refletir em o porquê de certas leis serem criadas.

Algumas, de fato, inovam na sociedade. São pensadas, editadas e aprovadas no meio

político organizando a sociedade de modo inovador ou recriminando condutas antes

aceitáveis. Outras, no entanto, e quem sabe a maioria delas, refletem tão somente um

juízo que já existe na sociedade ou uma prática dela decorrente.

Nesse mesmo sentido parece ser possível se afirmar que as decisões judiciais, o

modo de interpretação do direito, o modo de repartição dos bens, a atribuição do

direito a este ou a aquele também decorre deste debate público. Os juízes, imbuídos de

prolatar a sentença em cada caso concreto o fazem tomando por base avaliações sobre

121 RICOEUR, LI, p. 104.

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cada caso, tanto avaliações legais, como pessoais e sociais. E estas avaliações são

também oriundas do espaço público, do debate entre indivíduos, das conversas

interpessoais acerca daquilo que é socialmente aceitável ou não.

Então, ao afirmar que o debate público está abaixo do Estado, Ricoeur parece não

querer determinar a posição inferior do debate, mas a sua anterioridade a todo o

processo formal.

Ricoeur idealiza um quadro explicativo sobre a Justiça: No alto e acima, o

estado; embaixo e na base, o espaço público de discussão e entre os dois o processo

judicial.

Ricoeur embora não use a nomenclatura processo judicial como se faz neste

trabalho, indica claramente que o processual a que se refere não é aquele irreal dos

contratualistas, mas a pratica judiciária consistente na operação que rege a sequência

leis-cortes e tribunais-sentenças e juízes. Os conflitos submetidos ao Estado guardam a

justa distância das paixões, dos interesses próprios. O juiz prolata a sentença com o

objetivo de fazer a partilha, dando a cada um a sua justa parte e por isso, segundo

Ricoeur, ele aparece como uma figura instituída tanto do distanciamento entre o

judiciário e político, entre o judiciário e o conflito aberto e entre as partes litigantes.

Já se viu neste texto as circunstâncias da justiça e os canais da Justiça. Uma

terceira dimensão constitutiva da prática social judiciária, segundo Ricoeur, são os

argumentos da Justiça.

Ricoeur destaca que ao se buscar a justiça mediante a utilização da instituição,

ou seja, ao se chamar o Estado para intervir em um conflito, há necessidade da

utilização da linguagem. Como visto nos parágrafos precedentes, na medida em que

existe um debate público dele decorrendo a ordem de prioridades a se estabelecer nas

partilhas, o estatuto dos valores, a significação de bens, etc., o discurso da justiça está

em ação, ou seja, a linguagem atua na prática judiciária.

Mas não somente na seara do debate público que a linguagem é atuante na

prática judiciária. O modo como se pleiteia a intervenção do Estado para dirimir um

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conflito é através da linguagem. Segundo Ricoeur, �todo o procedimento judiciário, da

lei à pronunciação da sentença não é mais que um longo discurso.�122

Ademais, quando o conflito é submetido ao Estado, este, �diz o direito�, e o

poder de dizer o direito está revestido de atividade argumentativa, pois quem diz, diz

algo a alguém. Neste caso o Estado, mediante a prolação da sentença pelo juiz diz o

direito às partes litigantes. A sentença pronuncia o direito situando as partes no seu

justo lugar.

E o processo judicial nessa perspectiva é uma troca de argumentos, de uma

parte e de outra parte, argumentos estes que serão devidamente analisados pelo juiz

que prolatará a sua sentença com base nos argumentos de uma das partes ou

parcialmente, de ambas as partes. Por essa razão, segundo Ricoeur o processo judicial é

uma continuidade da atividade comunicativa da sociedade, constituindo o uso

dialógico da linguagem mediante lógica e ética inseparável uma da outra.123

Segundo Ricoeur, o discurso da justiça ilustra o lugar da argumentação, em que

pese não ser ela por si só suficiente à resolução da demanda, uma vez que num

processo se exige a produção de provas, quer sejam elas formuladas mediante a

apresentação de documentos, perícias ou depoimentos de testemunhas. Mas, diz

Ricoeur, que ainda que a prova seja rigorosamente produzida, a argumentação não

perde seu espaço, pois tem o poder de seduzir e agradar de acordo com a

conveniência da parte.

De certa forma pode-se dizer que a argumentação nunca tem fim, pois sempre

cabe um �mas�. Sempre pode haver controvérsias acerca de uma afirmação, tanto assim

que são cabíveis apelos a instâncias superiores (Tribunais) das decisões prolatadas pelo

juiz monocrático, quer sejam essas decisões prolatadas no início, meio ou final do

processo. Por outro lado, a argumentação pode ser considerada finita na medida em

que o julgamento é exercido numa situação particular. No entanto, como dito

anteriormente, o juiz ao prolatar a decisão o fará apontando as justificativas (prós ou

122 RICOUER, LI, 1995, p. 106. 123 RICOEUR, LI, 1995, p. 107.

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contras) contidas na argumentação e dará razão a uma ou a outra parte, ou ainda, a

ambas as partes.

As questões sobre a argumentação existentes no processo judicial serão

examinadas com mais vagar no próximo capítulo, quando da demonstração da

utilização da linguagem no processo judicial, usando-se a lente da filosofia ricoeuriana

para compreendê-la.

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CAPÍTULO II

A LINGUAGEM NO PROCESSO JUDICIAL

2.1. Introdução

Como se viu no capítulo anterior, para Ricoeur define a hermenêutica como �a

teoria das operações da compreensão em sua relação com a interpretação de textos�.124

Segundo Ricoeur, na prática social que a justiça, o discurso está em ação

primeiro no debate público que estabelece a ordem das prioridades na partilha entre

os bens segundo certos valores socialmente estabelecidos, seguindo em ação no modo

como se pleiteia a intervenção do Estado para dirimir um conflito, uma vez que os atos

do processo judicial se dão através de discursos. Mais ainda afirma Ricoeur que �todo

o procedimento judiciário, da lei à pronunciação da sentença não é mais que um longo

discurso.�125

As narrativas processuais feitas pelo autor e pelo réu visam ao convencimento

do juiz, daí porque se usa uma argumentação que pode agradar e convencer. Aponta

Ricoeur que o processo ilustra o lugar da argumentação e, ainda que para a

prolação da sentença haja a necessidade de provas, como se verá no decorrer desta

dissertação, a argumentação não perde lugar ou importância. Segundo Ricoeur, no

processo judicial se encontram presentes as condições lógicas e psicológicas para um

debate que tem por objeto o convencimento do juiz, que prolatará uma sentença

declarando o direito de uma, de outra, ou de ambas as partes, conforme o caso.126

O autor, ao fazer seu pedido inicial, faz um discurso dirigido ao juiz com suas

pretensões de aplicação da lei ao seu caso concreto. Ele apresenta suas razões de pedido,

seus argumentos, sua fundamentação legal que embasa seus argumentos e o seu 124 RICOEUR, HI, 2008, p. 23. 125 RICOEUR, LI, 1995, p. 106. 126 RICOEUR, LI, 1995, p. 107.

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pedido. De igual modo, o réu ao ofertar sua resposta apresenta suas razões impeditivas,

modificativas ou extintivas da não concessão do pedido do autor. O juiz ao prolatar a

sentença, apresenta um discurso sobre o acolhimento ou desacolhimento da pretensão

do autor.

Os discursos integrantes do processo judicial têm uma linguagem própria que,

com a prática se torna de uso automático pelos operadores do direito, mas que,

tomando a devida distância dela, de um lado se perceberá como é diferente de escrever

uma petição. O seu vocabulário peculiar faz com que a petição seja um texto diferente

de outros textos da literatura. Por outro, há muitas semelhanças entre uma narração

num processo e a narração de uma história descritiva de fatos, mas neste caso, os fatos

narrados desencadeiam num pedido, ou seja, a história é contada, mas não há a

conclusão da história como desfecho do caso. Na petição, os fatos narrados são a causa

de um (ou mais) pedido (s) a ser(em) feito(s). O juiz ao prolatar a sentença indicará o

desfecho da história, a favor ou contra o pedido feito na petição inicial.

A petição inicial conta uma história, isto é, faz uma a descrição dos fatos que

levam o autor a pleitear o que entende por seu direito, sujeitando esta história à

interpretação do juiz. O réu, ao apresentar sua defesa, conta a sua história. O Juiz, ao

sentenciar conta as histórias, ou seja, narra as alegações feitas pelo autor e pelo réu e dá

o seu desfecho ao pleito e a história, prolatando a sentença judicial.

Então, não só a petição inicial, mas o processo judicial como todo é formado por

narrativas de histórias recheadas de argumentos. Tendo acabado o diálogo extrajudicial

entre as partes, os fatos ocorridos entre os litigantes precisam ser contados ao terceiro

que julgará a causa.

O discurso escrito que pode dar subsídio à pretensão do autor e do réu é uma

narrativa histórica. O autor conta a sua história e pede ao juiz que dê a ela um �final

feliz�, isto quer dizer, aquele final que entende ser mais justo mediante a aplicação da

lei e reconhecimento de seu pretenso direito. O réu, por seu turno, também conta uma

história. Esta, via de regra, impeditiva da concessão do direito pretendido pelo autor. O

réu muitas vezes com seus argumentos, desdiz o que disse o autor, dá outra versão à

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história e sugere outro final, diferente daquele final pretendido pelo autor e, por

conseguinte, mais justo segundo ele, réu.

Do ponto de vista da linguagem jurídica a petição inicial pertence ao gênero

textual do requerimento, porque sempre contém um requerimento, uma pretensão a

ser alcançada, um pedido, bastando ao autor narrar os fatos constitutivos de seu direito

e que fundamentam o seu pedido e os fundamentos de seu pedido 127 enquanto a

resposta do réu, isto é, a contestação, faz uso dos recursos da argumentação. 128 Os

requisitos para a confecção de uma petição inicial estão previstos no Código de

Processo Civil, artigo 282. São eles: O juiz ou tribunal a que é dirigida; os nomes,

prenomes, estado civil, profissão, domicílio e residência do autor e do réu; o fato e os

fundamentos jurídicos do pedido; o valor da causa; o requerimento para citação do réu.

Pois bem, não é possível pensar na narrativa �do fato� sem com isso, contar uma

história. Tal história terá seus protagonistas (autor e réu) e desencadeará em um pedido

fundamentado na lei, na doutrina ou na jurisprudência (os fundamentos jurídicos do

pedido).

Mas por que existe essa diferenciação na forma de elaboração do discurso

jurídico em relação aos demais discursos narrativos?

Responde-se a esta pergunta com base nos ensinamentos da Profa. Maria José

Constantino Petri. Segundo ela, o discurso jurídico é um discurso diferenciado porque é

organizado segundo um propósito (acusar, defender, testemunhar). É um discurso

contendo argumentos e estratégias, que prima pela lógica, pois o operador do direito

raciocina (e narra) sobre fatos e sobre normas, adequando uns aos outros, isto é, os fatos

às normas. O discurso jurídico busca a interpretação da norma e sua adequação aos

valores semânticos de seus termos.129

127 Segundo a doutrina jurídica, a teoria predominante para a causa de pedir é a teoria da substanciação ou substancialização prevista no artigo 282 do CPC, segundo a qual, a petição inicial deve conter os fatos e fundamentos jurídicos, ou seja, cabe ao autor alegar os fatos constitutivos de seu direito. Tal teoria também é marcada pelo brocardo jurídico �Dá-me os fatos que te darei o direito�(Da Mihi factum, dabo tibi jus). 128 PETRI, M. José Constantino. Manual da Linguagem Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 129 PETRI, M. José Constantino. Argumentação Linguística e Discurso Jurídico. São Paulo: Selinunte, 1994, p. 95-97.

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Assim, neste capítulo pretende-se examinar a utilização da linguagem no

processo judicial e sua importância para a prolação da sentença pelo juiz de direito sob

a lente da filosofia ricoeuriana e não sob a lente das teorias jurídicas. Aborda-se, de

início, a questão da existência do diálogo no processo judicial tomando por base a

afirmação de Ricoeur no sentido de que �a hermenêutica tem início quando termina o

diálogo�. 130

Ato contínuo, examinar-se-á com mais vagar o processo judicial como narrativa

histórica, levando em conta as ponderações de Ricoeur na obra �Tempo e Narrativa�,

bem como os sentimentos presentes no processo judicial, a significação do discurso, a

passagem da fala à escrita, a verdade no processo judicial, tudo isso dentro do

princípio dos �argumentos da justiça�.

2.2. Há Diálogo no Processo Judicial?

Embora o pensamento de Ricoeur não esteja limitado ao contexto do processo

judicial, sendo muito mais amplo ousa-se tomar a frase �A hermenêutica começa onde

o diálogo acaba�131 como ponto de partida para se pensar na importância da

hermenêutica no processo judicial.

Primeiro, ao que parece, quando se chega a instaurar um processo judicial

buscando a intervenção do Estado para a solução de um conflito entre duas ou mais

pessoas, quer sejam pessoas físicas ou jurídicas, provavelmente é porque o diálogo

entre as partes terminou, ou quem sabe, nunca foi possível e por isso talvez nunca tenha

sequer começado. Seria razoável que duas ou mais pessoas que conseguissem travar

um diálogo, ainda que este diálogo fosse permeado por ideias divergentes, ao invés de

resolverem elas mesmas os seus problemas mediante a troca de argumentos e

negociações preferissem a busca da intervenção de um terceiro desconhecido para

130 RICOEUR, TI, 2009, p. 50. 131 Idem.

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resolver, decidir e determinar os caminhos para as suas vidas? Provavelmente por ter

terminado o diálogo entre as partes, surgiu a necessidade da instauração de processo

judicial para dirimir o conflito. Acabou o diálogo e começa o processo judicial mediante

o lançamento do conflito a um terceiro que o interpretará e formará sua convicção para

decidir a quem cabe o direito.

Em segundo lugar findo o diálogo entre as partes possuidoras de interesses

individuais em conflito, e, uma vez buscada a intervenção do poder judiciário para

solução do conflito, nasce, no entender desta pesquisadora, outro modo de diálogo:

agora não mais sozinhas as partes litigantes, mas com a mediação de um terceiro: O

Juiz.

Não se sabe se é correto dizer que o Processo Judicial é um confronto entre as

partes através do �diálogo� com o Juiz para dirimir o conflito. Isto porque, quando se

pensa em um diálogo ideal parece se tratar de uma consensualidade entre as partes que

se dispõem a uma conversa em que cada indivíduo tem a liberdade de expressar seu

ponto de vista divergente em relação ao seu interlocutor para chegarem a um consenso

ou simplesmente para troca de opiniões divergentes. Nesse tipo de diálogo consensual,

não há a necessidade de intermediação de um terceiro para que este diálogo se torne

possível.

Nesse sentido, o processo judicial não é algo amistoso, tampouco consensual

entre as partes. Explica-se: Um indivíduo, por exemplo, que tem um crédito a receber

preferiria recebê-lo diretamente de seu devedor, sem necessitar pedir ao Estado para

determinar o pagamento pelo devedor, a penhora de seus bens e outros atos decorrente.

O devedor, por seu turno, preferiria não ser acionado judicialmente para o pagamento,

até porque isto lhe acarreta outro ônus. Um empregado que prestou serviços durante

anos numa empresa talvez preferisse receber aquilo que entende ter direito sem a

necessidade de intermediação do poder judiciário. A empresa, por seu turno, preferiria

não ter que responder o processo. O criminoso, ainda que saiba que seus atos são

tipificados como crime no direito pátrio, não deve se realizar ao ser preso e processado

criminalmente. Um indivíduo que contribuiu durante anos para o Instituto da

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Previdência, provavelmente preferiria não ter que recorrer ao poder judiciário para ver

reconhecido o seu direito a aposentadoria.

Parece que, no processo judicial existe o diálogo do juiz com as partes, mas não

mais o diálogo das partes, salvo naqueles momentos específicos em que o juiz promove

a tentativa de conciliação. De um modo em geral, talvez seja correto dizer que as partes

não mais dialogam no processo judicial haja vista a necessidade de um mediador.

Assim, embora o processo judicial seja na maioria das vezes voluntarioso, ele

decorre de uma pretensão resistida entre indivíduos. Após a instauração do processo

e, no decorrer dele, podem as partes chegar a uma composição amigável, conforme

prevê a legislação vigente. No entanto, sua raiz é conflitiva, porque mesmo que se faça

acordo, o processo se iniciou por conta da existência de um conflito.

O Processo Judicial decorre de interesses divergentes entre as partes. Quando

não há composição amigável a divergência permanece até o final do processo, e muitas

vezes a ultrapassa, já que uma das partes litigantes restará insatisfeita com o resultado,

tendo em vista que o juiz decidirá a favor de uma das partes, ou o autor, ou o réu e,

ainda que decida a favor das duas partes � dando razão parcial a uma e a outra �

provavelmente restarão ambas insatisfeitas, pois o autor ao ingressar com o pedido

persegue a satisfação de sua totalidade.

Por outro lado, não se pode olvidar que, sendo o processo judicial formado por

discursos argumentativos, não haverá argumentação se não houver quem leia ou escute

esta argumentação. Diz Perelman que �para argumentar é preciso ter apreço pela

adesão do interlocutor, pelo seu consentimento, pela sua participação mental�132.

Olhando por este prisma, talvez possa se pensar que a argumentação no processo

judicial não é feita somente para ser ouvida pelo juiz, na qualidade de mediador, mas

também pela outra parte. A argumentação de uma parte pode ser aceita pela outra parte

ou por ela repudiada. No entanto, quer para aceitá-la, quer para repudiá-la, as partes

têm de ouvir /ler a argumentação uma da outra.

132 PERELMAN, 2005, p. 18.

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Nesse diapasão, levando em conta o pensamento de Perelman e considerando

este pensamento no processo judicial (em que pese sua amplitude e extensão muito

além dos pequenos muros da seara judicial), poderia se dizer que pode haver diálogo

no processo judicial, na medida em que uma parte fala e precisa ser pela outra ouvida.

Tal raciocínio, em princípio, contraria aquele anterior que se fez com base no

pensamento de Ricoeur. Disse Perelman: ... não basta falar ou escrever, cumpre ainda

ser ouvido, ser lido. Não é pouco ter a atenção de alguém, ter uma larga audiência, ser

admitido a tomar a palavra em certas circunstâncias, em certas assembleias, em certos

meios.133

A leitura dos escritos de uma parte no processo pela outra parte, não só integra a

compreensão do litígio e a necessidade para se montar as estratégias de ataque e de

defesa, como também se torna obrigação às partes, na medida em que a cada fala de

uma parte a outra pode ter a palavra para contra argumentá-la. Ora, só pode contra

argumentar uma alegação quem ouviu ou leu esta alegação.

Explica-se: O autor faz a petição inicial narrando os fatos, o direito que entende

possuir e seu pedido. O réu, para responder aos termos propostos da ação, terá de ler o

pedido escrito do autor e contra argumentá-lo. Após, o juiz abrirá a oportunidade para o

autor se manifestar sobre os argumentos do réu. Depois, parte-se para a produção de

provas, em que cada parte poderá argumentar e contra argumentar as provas que

pretende produzir. Ato contínuo o juiz proferirá a sentença e cada parte também poderá

se manifestar contra argumentando os fundamentos da sentença mediante a

interposição de recurso.

Ao se olhar para esta dinâmica, parece estar clara a existência de um diálogo,

desde que considerado diálogo um falar e o outro ouvir, independentemente da

consensualidade e consenso entre as partes. Então, até poderia se dizer que terminado

o diálogo extrajudicial e na ausência de consenso entre as partes, deu-se início a um

diálogo judicial, este, com fim previsto para quando o juiz proferir o seu veredito e der

a sua interpretação sobre tudo que viu e ouviu processualmente. Então, neste segundo

133 PERELMAN, 2005, p. 19.

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momento, retoma-se a aplicação do pensamento de Ricoeur: �A hermenêutica começa

onde o diálogo acaba�.

Independentemente de aceitar-se o processo judicial um diálogo ou não, é

evidente a presença da comunicação em seu desenrolar, pois, do início ao fim do

processo judicial cada parte tem direito de dirigir-se ao juiz fazendo alegações,

retrucando e respondendo às alegações da outra, contestando dados e documentos ou

com eles concordando, conforme entenda ser o cabimento de seu direito. Esta

comunicação é, então, formada por diversas fases, cada uma delas implicando em

interpretações, como se mostrará a seguir.

Então, quer se entenda haver diálogo, que se entenda não haver diálogo, o

processo judicial implica uma hermenêutica para alcançar sua função de distribuição

da justiça.

2.3 O Processo Judicial como Narrativa

Agora serão consideradas as narrativas que ocorrem no decorrer do processo

judicial até a prolação da sentença.

Reitere-se que, dentro do quadro da justiça como prática social proposto por

Ricoeur destacam-se três elementos: As circunstâncias da Justiça, os canais da Justiça e

os argumentos da justiça. Aqui se aborda a linguagem no processo judicial,

considerando os argumentos da justiça.

O processo judicial tem iniciativa por quem quer ver seu direito reconhecido, de

modo que chama um terceiro para intervir na situação conflituosa a se manifestar

mediante um julgamento acerca de quem está com a razão, de acordo com as

convicções deste terceiro acerca do que leu e ouviu.

Os conflitos que são levados ao Poder Judiciário (este, integrante dos Canais da

Justiça que, nos dizeres de Ricoeur é o conjunto de leis escritas, os tribunais aos quais é

atribuída a função jurisdicional por meio de lei, bem como os juízes) se reportam a fatos

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ocorridos no passado que darão, no presente e/ou no futuro, o direito a uma das partes

ser atendida em sua pretensão. Ainda que se admita que algumas causas judiciais têm

por fito decisões preventivas, isto é, decisões proibitivas de atos futuros antes mesmo

de terem ocorrido iguais no passado, tais fatos com repercussão no futuro têm por

origem um fato ocorrido no passado.

Então, ao que tudo indica, no processo judicial, passado, presente e futuro se

encontram para que a sentença prolatada distribua corretamente a justiça. Este encontro

do passado, do presente e do futuro se dá no decorrer do processo que tem por objetivo

precípuo a busca da verdade dos fatos.

Há assim no processo judicial uma narrativa histórica feita pelas partes. Cada

uma delas narra no processo os fatos ocorridos que embasam a sua respectiva

pretensão. Sendo assim, a mesma história é contada de modo diferente pelas partes, e

às vezes, outras versões dela aparecem com a oitiva das testemunhas. Há a

reconstrução das falas, das ações, da identidade dos agentes dessas ações, nem sempre

exatamente na mesma ordem em que ocorreram, mas numa forma de reconstrução dos

acontecimentos relativos ao litígio e importantes para o seu deslinde.

A narrativa da história e sua reconstrução pelas partes são fundamentais para que

o juiz analise o litígio que está em suas mãos para julgamento. Não parece possível a

compreensão do problema gerador do litígio, sem que haja uma articulação dos fatos

ocorridos preteritamente e que culminaram com a discórdia levada ao judiciário para

resolução.

Em Tempo e Narrativa, Ricoeur examina a relação entre os dois temas do título,

ou seja, o tempo e a narrativa, sob a tese de que o acesso à experiência humana do

tempo se dá através da narrativa, e esta, torna o tempo humano. A reflexão é extensa e

não se pretende aqui explorá-la por não ser o foco deste estudo. O assunto em si merece

uma dissertação. No entanto, aqui se tomará algumas de suas ideias para esclarecer o

ligar da narrativa no processo judicial.

Diz Ricoeur que a frase narrativa indica quem faz, o que faz, como faz, em que

circunstâncias faz e a quem faz. Nesse sentido, toda narrativa pressupõe que o

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narrador e seu auditório tenham familiaridade com os termos que indiquem agente,

objetivo, circunstância, meio, conflito, sucesso e fracasso.134

No processo judicial há uma narração dos fatos, do modo como se sucederam, de

acordo com uma sequência e uma ordem. Trata-se de um momento presente em que se

fala dos momentos passados. O narrador conhece o agente, a circunstância, o objetivo, e

faz a narrativa de modo que seja mais verossímil possível, atrelando a fala aos

acontecimentos. Esta verossimilhança da narrativa tem importância na medida em que

o processo judicial busca a verdade dos fatos, tendo cada parte a missão de convencer

o juiz da história que integra o direito pretendido.

A questão da narrativa é importante para a compreensão da linguagem no

processo judicial vez que o que se busca no processo judicial é a verdade dos fatos, de

modo que ao prolatar a sentença, o juiz, sabendo da história ocorrida, declare o direito

de uma ou de outra parte. A reconstrução da história no processo judicial é uma tarefa

desempenhada em função do caso que está sob análise. O passado está em permanente

processo de reinterpretação, tendo em vista um futuro, isto é, a prolação de uma

sentença que, conforme se verá neste trabalho, decorre das inúmeras interpretações

feitas pelo juiz. As histórias contadas no processo também são interpretadas pelo juiz,

que as analisará e se convencerá daquela que lhe parecer mais verossímil.

O juiz é um terceiro, um ouvinte ou destinatário da história contada. Um

indivíduo que não participa do passado da história, mas participa do seu futuro, na

medida em que dá um fechamento à história conflituosa a partir da prolação da

sentença. O passado da história que lhe é narrado no processo judicial, serve para que,

remontando os fatos ocorridos, se convença desta ou daquela versão, não só com base

nos argumentos expostos nas narrativas, mas também nas provas produzidas acerca das

versões das histórias narradas.

No terceiro volume de Tempo e Narrativa, Paul Ricoeur aponta que o tempo se

torna humano pelo entrecruzamento da história e da ficção. Por este entrecruzamento,

Ricoeur entende ser �a estrutura fundamental tanto ontológica como epistemológica,

134 RICOUER, TN, p. 98-99.

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em virtude da qual a história e a ficção concretizam suas respectivas intencionalidades

tomando de empréstimo a intencionalidade da outra.135

O entrecruzamento entre o histórico e o ficcional quer dizer que a narrativa

histórica faz menção a fatos passados e toma por empréstimo da narrativa ficcional a

intenção de contextualizar e de dar significado aos seus relatos, de modo que conte o

passado para o destinatário da narração que terá a possibilidade de aceita-lo como

plausível.136

Nesse sentido, Ricoeur em sua obra A Memória, a História e o Esquecimento faz

uma diferenciação das tarefas do juiz e do historiador. Para Ricoeur tanto o historiador

como o juiz de direito ocupam um lugar de �terceiro� em relação aos lugares ocupados

pelos protagonistas de um fato relatado. E este lugar de terceiro deve ser revestido de

imparcialidade, ou seja, o terceiro deve ser totalmente neutro, não dando espaço nem

para a complacência nem para qualquer outra paixão.137

A comparação feita por Ricoeur é separar o processo judicial da crítica

historiográfica que se inicia no âmbito dos arquivos. Tanto o historiador como o juiz

estão engajados na descoberta da verdade através do exame de narrativas, de

documentos e de outras provas.

O testemunho tanto para o historiador como para o juiz é peça fundamental ao

seu trabalho. Como se verá mais tarde neste trabalho, no processo judicial o testemunho

oral é tornado escrito e arquivado no processo para consulta posterior.

Segundo Ricoeur o juiz e o historiador têm traços que andam juntos, quais sejam:

a preocupação com a prova e o exame crítico da credibilidade das testemunhas.

Ricoeur cita as palavras de Luigi Feragioli, presentes na obra de Carlo Ginzburg: �O

processo é, por assim dizer, o único caso de �experimentação historiográfica� � nele as

fontes intervêm de vivo, não só porque são recolhidas diretamente, mas também porque

135 RICOEUR, TN, v. 3, p. 311. 136 ROSSETI, op. cit., p. 158. 137 RICOEUR, MHE, 2010, p. 330.

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são confrontadas umas com as outras, submetidas a exames cruzados e incitadas a

reproduzir, como num psicodrama, o caso que está sendo julgado.�138

Nesse sentido, tanto o juiz como o historiador levantam dúvidas, analisando os

depoimentos de testemunhos e neles encontrando possíveis falsificações, retirando-lhes

a credibilidade ou, se reputados verdadeiros, dando-lhes credibilidade. Os fatos

ocorridos e que deram origem ao processo judicial são recontados, quer de modo

escrito, quer de modo oral, sendo a história reconstruída e posta sob a análise do juiz.

O passado é representado no presente com vistas a um futuro (prolação da sentença

com distribuição da justiça).

A sentença prolatada pelo juiz tem um caráter definitivo, na medida em que é

imediatamente aplicável quando dela não caiba mais recursos. Segundo Ricoeur, este é

o mais evidente ponto de diferença entre o historiador e o juiz: O que foi julgado só

pode ser contestado pela opinião pública, mas não pode ser julgado novamente. O juiz

põe fim a um litígio, julga, decide, diz o direito. O historiador não pode fazer o

mesmo. Sua obra é sempre submetida a um processo infindável de revisões que faz da

escrita da história uma perpétua reescrita.139

O historiador desenvolve sua crítica historiográfica que se inicia no âmbito dos

arquivos, sem ter ele qualquer pretensão ou mesmo função de dirimir conflitos. A

reconstrução que ele faz do passado não tem por objetivo a prolação de uma decisão,

contrariamente ao que ocorre com o juiz. Por conta dessa diferenciação talvez se possa

indagar se o historiador e o juiz ouvem os depoimentos com os mesmos ouvidos e se o

olhar deles para os fatos ocorridos têm igual direção. A resposta a esta indagação

parece ser não. O historiador tem olhares e ouvidos para os fatos e não precisa atentar

para as suas consequências futuras. Ainda que se trate de um conflito, não lhe compete

qualquer decisão sobre o assunto. Diferentemente, o juiz olha para os fatos e os apura

na perspectiva de decidir o futuro das partes mediante a prolação da sentença.

138 GINZBURG, Carlo. Le Juge et l�historien, Paris, Verdier, 1997, apud RICOEUR, MHE, 2010, p. 332. 139 RICOEUR, MHE, 2010, p. 335.

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Caberá ao juiz as interpretações adequadas das histórias contadas, dos

depoimentos colhidos, dos documentos anexados, para ao final, proferir uma decisão

dando razão a uma das partes ou a ambas as partes.

2.4 O Sentimento no Processo Judicial

Ainda no âmbito dos argumentos da justiça, propõe-se pensar aqui no discurso

jurídico um pouco além do teor das definições contidas nos manuais de linguagem

jurídica. Primeiro, porque como já foi dito anteriormente e se repetirá no decorrer desta

dissertação, o processo judicial tem por horizonte intermediário a busca da verdade,

então, o discurso jurídico, com todas as suas técnicas, tem por objetivo mostrar a

verdade, ainda que existam diferentes interpretações da mesma verdade. Então, ainda

que a verdade apareça nos discursos do processo judicial permeada de argumentação

retórica, é a verdade um horizonte, pois é a partir dela que o juiz poderá proferir uma

decisão que distribua corretamente a justiça.

Segundo, porque o discurso jurídico contém o sentimento de justiça

entranhado no coração do peticionário. Quem se dirige ao Poder Judiciário para pleitear

um direito, clama seja feita a justiça, indicando este clamor em seu discurso oral ou

escrito. Conforme já explicitado no capítulo 1, segundo Ricoeur o ser humano é mais

sensível à injustiça.

Na prática social são postos em jogo conflitos típicos que ocasionam a

necessidade da intervenção do Estado para decidir entre os interesses ou direitos

opostos, o que no quadro proposto por Ricoeur ele denomina �ocasiões da justiça�.

Assim, ao submeter um conflito ao Estado para que este diga o direito, parece

haver uma tentativa de restauração da ordem, do discernimento entre o bem e o mal,

do certo e do errado, do justo e do injusto.

O sentimento de justiça é que faz o peticionário narrar os fatos capazes de

desencadear de modo lógico, um pedido de aplicação da lei, ou ainda, argumentar

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contra aqueles fatos que foram narrados na petição inicial. Como o processo judicial

tem por objetivo intermediário a busca da verdade, para se alcançar a verdade no

processo judicial é necessário estar a parte postulante movida pelo sentimento de

justiça. Isto porque, aquele que pede o amparo judicial, seja porque viu seu direito

lesado, seja porque está sendo acusado de ter lesado o direito de outro sem tê-lo feito,

intentará mostrar que justo é aquilo que pleiteia, porque narra a verdade que, no

seu entender, conduz para que haja um resultado justo para si.

De igual modo, parece que o sentimento de justiça é que move (ou deveria

mover) o juiz a prolatar a sentença contra ou a favor do autor. O juiz ao prolatar a

sentença descortinou a verdade dos fatos e, então, dá o fechamento na historia que

lhe foi narrada. Sendo assim, uma vez alcançada a verdade, o discurso que

corresponde à sentença deveria ser muito mais do que um discurso técnico e frio com o

qual muitas vezes se depara no dia-a-dia o operador do direito, mas um discurso

humano e acalorado pelo sentimento de justiça diretamente ligado à verdade

encontrada no decorrer do processo, não só mediante as narrativas, mas também

consoante as provas contidas no processo judicial.

Conforme já se falou no capítulo I, Ricoeur ao refletir acerca dos princípios da

Justiça aponta que o ser humano é mais sensível ao sentimento de injustiça do que ao

sentimento de justiça. Segundo Ricoeur, esta sensibilidade à injustiça decorre do fato de

ser ela - a injustiça - predominante na sociedade, haja vista que os indivíduos que

convivem em sociedade têm uma visão mais apurada em relação ao que falta para as

relações humanas, não tendo a mesma visão quanto à organização dessas relações

humanas.140

Isto leva a refletir sobre o sentimento de injustiça contido no processo judicial e

como este sentimento poderia se exteriorizar. A hipótese aqui descrita é que o processo

judicial carrega em seus discursos sentimentos que se revelam mediante a utilização

de termos, a concatenação das palavras, as exclamações, as interrogações, pontuações

140 RICOEUR, LI, 1995, p. 90.

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em geral, alternância entre palavras com letras maiúsculas e minúsculas, repetição de

alguma expressão ou afirmativa, itálicos, negritos, sublinhado, etc.

Neste sentido, as pontuações gráficas podem manifestar na escrita diversos

sentimentos, tais como, revolta por fato ocorrido, por ação ou omissão de alguém,

sentimento de lamentação, sentimento de tristeza, sentimento de desigualdade, dentre

outros. A reunião de tais sentimentos que dizem respeito à injustiça fazem com que as

palavras escritas com as suas pontuações expressem o sentimento de justiça. Sendo

assim, os escritos de um processo transpiram sentimento de justiça, este, formado por

uma reunião de outros sentimentos que transpiram primeiramente o sentimento de

injustiça, do qual decorre o sentimento de Justiça.

Nesse passo, destaca-se que não somente no processo judicial o sentimento de

injustiça gera o sentimento de justiça: Não raro o indivíduo se depara com

reportagens de telejornais, debates entre profissionais de determinado ramo do direito e

consultas a profissionais especializados e/ ou profissionais que estão a serviço do

Estado sobre determinado fato ou ato que ocorreu na sociedade e causou perplexidade,

partindo daí a discussão sobre ser tal ato/fato injusto para, a partir disto, pensar-se no

que seria justo.

O advogado ao redigir uma petição ao juiz em que quer enfatizar, por exemplo, a

inocência de seu cliente, geralmente vai repetir muitas vezes em seu discurso que seu

cliente é inocente, e ainda, por vezes, colocará esta afirmativa em letras maiúsculas

seguidas de exclamações, enfatizando que ele � o cliente � É INOCENTE!!! Cita-se

ainda a empresa que se defende num processo trabalhista alegando que os pedidos

feitos pelo autor são improcedentes porque ela � empresa � nada deve ao ex-

empregado. O discurso elaborado pelo advogado é recheado de palavras como

�improcedente�, �indevido�, �descabida a pretensão�, �impugna-se veementemente�,

etc. Tais palavras e expressões além de serem combativas, talvez revelem o sentimento

do texto conforme o modo como serão grifadas, pontuadas, etc.141

141 O leitor pode estar se perguntando se esta forma de redação descrita nos dois parágrafos precedentes não poderia ser somente uma estratégia de convencimento do juiz ao invés de um sentimento. Pode ser

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Nos depoimentos de testemunhas e, quando da passagem da fala para a escrita,

as transcrições não são feitas com as ênfases dadas na entonação de voz do falante, nem

em suas expressões. Embora haja pontuação gráfica, estas raramente representam as

interjeições faladas no decorrer do depoimento. As palavras faladas são convertidas em

texto e, salvo a memória do juiz que colheu o depoimento, quem lê o escrito raramente

enxerga na transcrição o nervosismo, a ansiedade, a fúria e todos os demais sentimentos

que carregava a fala do depoente.

Os discursos orais no processo judicial são � via de regra - restritos a

depoimentos de testemunhas e debates orais, e ainda, todos os discursos orais são

convertidos em escrita. Ainda assim parece ser possível pensar a construção do

discurso escrito e o sentimento de justiça presente no texto com base na análise dos

atos de fala feita por J. L. Austin, retomada por Ricoeur.

O advogado ao redigir o pedido inicial ou, do outro lado, apresentar os

argumentos defensivos de seu cliente está expressando por escrito um conjunto de

sentimentos que visam à demonstração da verdade, alcançando a compreensão do

julgador. O advogado escolhe as palavras, a forma da narrativa, mostra seu

inconformismo com uma situação, demonstra o quanto injusto é algo.

Talvez o sentimento contido nos escritos processuais fique adstrito às razões

subscritas pelos advogados, que necessitam convencer o juiz de que seu cliente tem o

direito, seu cliente está com a razão, seu cliente diz a verdade, ou ainda, que a outra

parte não tem direito ao que pleiteia. Diz-se isto em relação aos escritos dos advogados

levando-se em conta que o processo judicial também é composto por pareceres técnicos

e depoimento de testemunhas. Os pareceres técnicos processuais, ou seja, os laudos

periciais médicos, contábeis, de engenharia, etc., provavelmente não carregam

sentimentos, já que são técnicos e imparciais e dizem respeito a uma constatação. O

sentimento, estratégia e convencimento ou ambas as coisas, dependendo de cada caso e de cada profissional. No entanto, a hipótese aqui cogitada é aquela em que o operador do direito tem intimamente suas convicções acerca do direito de seu cliente e faz a defesa colocando em seus escritos seus mais profundos sentimentos de justiça sobre o caso.

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perito constata algo a pedido do juiz. Nesta constatação, ao que parece, não há

motivação que denote sentimentos de justiça, pois o que predomina é a técnica142.

O depoimento da testemunha é carregado de sentimentos, o que faz atentar

para a passagem da fala para a escrita no processo judicial e sua importância, como se

verá adiante de modo mais detalhado.

Com relação à transcrição do depoimento testemunhal, diz Ricoeur que esta

transformação da fala em escrita é o momento do arquivamento do depoimento e o seu

ingresso na história. O que é falado se tornará escrito e ficará registrado. A escrita fixa

um conteúdo. E a passagem da fala para a escrita, segundo Ricoeur, muda o discurso

em pelo menos dois aspectos que interessam a este trabalho. A mudança mais óbvia é o

meio: Passa do meio oral para o meio escrito. O segundo aspecto da mudança é o que é

escrito se torna acessível a todo aquele que sabe ler, tendo um alcance ilimitado,

enquanto aquilo que é falado tem destinatário (s) limitado(s).143

O momento do arquivo é o momento do ingresso na escrita da operação historiográfica. O testemunho é originariamente oral; ele é escutado, ouvido. O arquivo é escrita. Ela é lida, consultada. Nos arquivos, o historiador profissional

é um leitor.144

Já se disse neste trabalho que o processo judicial contém história contada tanto

por quem ingressou com o processo, como por quem nele se defende. E, esta história

fica registrada de modo escrito, para ao final, ser relida, analisada e sentenciada pelo

juiz.

De fato, o testemunho é ouvido e transcrito, ou seja, escreve-se o testemunho

para que fique registrado. Este registro compreende a fixação da fala. Com razão

Ricoeur ao demonstrar que à medida que o depoimento testemunhal é escrito ele pode

ser arquivado e posteriormente consultado, a exemplo do que se faz na historiografia.

142 O juiz não está adstrito a julgar conforme o resultado pericial, mas segundo seu livre convencimento. A perícia é prova técnica auxiliar do juiz. Pode ele acatá-la ou não, conforme suas convicções baseadas nos argumentos das partes e das demais provas colhidas nos autos. 143 RICOEUR, TI, 2009, p. 42-45. 144 RICOUER, MHE, 2010, p. 176.

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No entanto, em se tratando da questão do sentimento da fala, do momento do

depoimento, dos gestos, das feições, das exatas palavras faladas com seus pontos e

vírgulas, todas estas características talvez não sejam transcritas juntamente com as

palavras. E isto traz consequências às decisões a serem prolatadas.

Os sentimentos presenciados quando da colheita do depoimento, talvez fiquem

na memória do juiz que os colheu. O juiz analisa o depoimento de uma testemunha

levando em conta elementos psicológicos. Para considerar ou desconsiderar um

depoimento, há toda uma análise psicológica em torno das falas. Para que esta análise

psicológica do momento do depoimento não seja em vão, na legislação pátria há a

determinação de que o juiz que colhe as provas é o que deverá prolatar a sentença, sob

pena de nulidade da decisão.145

Por outro lado, levando-se em conta o assoberbamento do judiciário, não se pode

descartar que não necessariamente no ato de julgar o juiz se lembrará dos gestos,

feições, modos de fala ocorridos durante o depoimento, mas levará em conta aquilo

que foi registrado, escrito. Ademais, ainda que este juiz prolator da sentença tenha se

convencido pela forma como a testemunha depôs oralmente (quer porque se recorda

dos detalhes, quer porque prolata a sentença em seguida ao depoimento), a sentença

poderá ser passível de recurso ao Tribunal, onde será examinada por um colegiado de

juízes, que se deterá tão somente ao que foi escrito simplesmente porque desconhece o

ato de fala já que não se encontrava presente.

Então, por todo o exposto, a passagem da fala para a escrita é elemento

importante para análise do processo judicial, e é o que será visto em seguida.

145 Tal assunto é juridicamente tratado como o Princípio da Identidade Física do Juiz e está insculpido no artigo 132 do Código de Processo Civil: �O juiz titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, caso em que passará os autos ao seu sucessor. Parágrafo Único: Em qualquer hipótese, o juiz que proferir a sentença, se entender necessário, poderá mandar repetir as provas já produzidas.

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2.5. A Passagem da Fala à Escrita no Processo Judicial

A passagem da fala à escrita é de grande importância no processo judicial.

�Aquilo que não está nos autos não está no mundo�146, logo, para que seja levado em

conta no processo, toda e qualquer fala, todo e qualquer discurso, toda e qualquer

argumentação necessita estar registrada no processo judicial para se analisada.

Ricoeur, ao tratar da passagem da fala à escrita, deixa claro que a transformação

do discurso oral para o discurso escrito implica numa mudança preliminar e óbvia, que

é a alteração do seu meio ou canal. Isto quer dizer que o discurso proferido e veiculado

através da fala passa a ser escrito, isto é, o canal que antes a utilização da voz humana

para a pronúncia das palavras que em conjunto geravam um sentido, agora passa a ser

fixado mediante palavras escritas. 147

Levando-se em conta a necessidade de registros processuais, as audiências

realizadas com o juiz são tomadas por termo, ou seja, são transcritas e ficam registradas.

Os discursos orais proferidos em audiência, os requerimentos ali feitos, os depoimentos,

tudo é transcrito, nada permanece �ao vento�, nada permanece no virtual, mas passa a

ser registrado.

Então, neste momento se pretende fazer uma análise dessa problemática da

passagem da fala à escrita e suas interpretações, tomando-se como referência a fase

processual de colheita de provas testemunhais, pois embora as testemunhas façam seus

discursos de modo oral, como todos os demais atos do processo são transformados em

discursos escritos.

A testemunha � via de regra148 � é pessoa que viu, ouviu, presenciou, vivenciou

os fatos que são objeto da discussão processual e podem ser peças chave para

146 Trata-se de brocardo jurídico oriundo do latim: �Non quod est in actis non est in mundo� e é o brocardo que caracteriza a Verdade Formal do processo judicial, o que será visto em tópico próprio. 147 RICOEUR, TI, p. 43. 148 Diz-se via de regra porque no processo penal há a testemunha de bons antecedentes, isto é, aquela que nada viu acerca do crime, mas que comparece em juízo para narrar acerca da boa conduta do acusado. Há também peritos que por fazerem laudos relativos às questões do processo são chamados a depor como testemunhas.

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comprovarem os fatos constitutivos (ou impeditivos) do deferimento do pleito do autor.

Presume-se que a testemunha que é ativada em depoimento judicial ali está para falar

aquilo que sabe, aquilo que presenciou, aquilo que vivenciou149. A testemunha verbaliza

a sua versão daquilo que sabe, usando sua voz como canal para, mediante respostas

às perguntas, fazer a sua narrativa dos fatos que lhe são arguidos. Ora, se a testemunha

vai repetir algo que já vivenciou ou presenciou, que viu ou ouviu alguém falar, não

estaria ela interpretando os fatos ao narrá-los?

Por força do princípio do livre convencimento atribuído ao juiz, tem ele a

faculdade de convencimento de acordo com seus princípios e percepções individuais.

Também se espera do juiz a imparcialidade durante todo o processo judicial. Antes de

prolatar a sentença, o juiz não pode se posicionar a favor de uma ou de outra parte,

conforme se verá em tópico próprio. Sendo assim, será considerado o discurso oral da

testemunha sob três aspectos hermenêuticos.

O primeiro seria o sentido da possibilidade de a fala da testemunha - que,

enquanto discurso oral pode carregar certeza, revolta, passividade, abuso, desconfiança

e todo tipo de emoção - não ser meio hábil a fazer com que o juiz continue imparcial

até o término da colheita das provas, após o que proferirá a sentença. O depoimento oral

de uma testemunha, carregado de sentimentos, pode fazer o juiz enveredar

precocemente para um lado processual, viciando previamente as demais provas orais

que serão colhidas?

O segundo diz respeito à condução do procedimento de arguição da testemunha.

Em linhas gerais, após fazer os alertas de praxe (ou seja, que aquele indivíduo está ali

para colaborar com a justiça, que não pode mentir sob pena de responder a processo

penal por crime de falso testemunho, razão pela qual deverá responder somente com

fatos que sejam realmente de seu conhecimento) o juiz passa a inquirir a testemunha

acerca dos fatos que são objeto da discussão processual. A dinâmica é: o juiz pergunta à

testemunha e ela responde. Se a testemunha não compreender a pergunta, pode pedir 149 Diz-se �presume-se� porque não raramente � por serem falhos os seres humanos � pode alguém comparecer em juízo para de forma simulada dizer sobre o que não sabe e nem viu, com a mesma aparente certeza de quem sabe e de quem viu.

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ao juiz que a repita. De igual modo, se a testemunha responder e o juiz não entender a

resposta ou com ela não se satisfizer, pode reperguntar. Dada a resposta pelo

depoente, o juiz � via de regra � repete o que ele falou ditando a fala para que seu

assistente (escrevente judiciário) transforme a fala � agora não mais da testemunha, mas

do juiz repetindo o que disse a testemunha - em discurso escrito.

Esta dinâmica depende assim de várias interpretações. De um lado a testemunha

necessita interpretar o que lhe perguntou o juiz. O juiz, por sua vez, ao ouvir a

testemunha, interpreta a sua fala e a transmite, ditando as palavras, de acordo com a

sua compreensão, para transformá-las em forma escrita.

Considerando que o juiz dita a resposta colocando nela sua interpretação, no

caso de a testemunha interpretar que aquela fala do juiz não corresponde à sua fala,

poderá corrigir o juiz informando-o sobre o que quis dizer. �Eu disse isso e não

aquilo�.

Aponta-se aqui para a problemática desta dinâmica. Primeiro a quantidade de

interpretações presentes num curto espaço de tempo e, talvez, realizadas de uma forma

quase que automática, sem qualquer ponderação ou reflexão acerca do que se está

sendo feito. Segundo a transformação do sentimento da fala quando ela se transforma

em escrita, conforme já se viu em tópico anterior.

Um terceiro aspecto hermenêutico que se vislumbra nesse procedimento de

conversão do discurso oral em discurso escrito, diz respeito à releitura que será feita

destes escritos em outros momentos processuais. A decisão processual é tomada com

base naquilo que está nos autos. Efetivamente o depoimento testemunhal está nos

autos, porém, de forma escrita e não mais oral.

Embora a lei preveja, em muitos casos, o julgamento das causas em uma única

audiência, o assoberbamento do poder judiciário não permite esta metodologia ágil e

raramente os julgamentos são proferidos na mesma sessão em que se ouviu as

testemunhas. Sendo designada outra data para julgamento, o juiz necessitará fazer uma

releitura de tudo quanto foi pedido e provado. Nesta ocasião os textos se sujeitam a uma

nova interpretação, evidente no caso do juiz não mais se lembrar das nuances havidas

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na audiência (os sentimentos manifestos, os gestos, os olhares, etc.), conforme se

analisou em tópico anterior.

Ricoeur separa a significação textual da significação mental ou psicológica. O

texto pode descontextualizar-se e se recontextualizar numa nova situação. Esta

operação decorre do ato de ler. Pela leitura, o texto se liberta de seu autor e passa a ter

sua própria autonomia. 150 O texto se liberta da intenção mental do autor e dos limites

de referência da situação. E estas referências abertas pelos textos, Ricoeur denomina

�mundo do texto�. Para ele, mundo é o conjunto de referências desvendadas por todo

tipo de texto. Então, quando o discurso se torna texto, a escrita altera a referência. No

discurso oral, a problemática se resolve pelo modo de se produzir (ou reproduzir) o

discurso, o modo ostensivo da fala, a ênfase dada as palavras, etc. A referência se faz

pelo poder de mostrar uma realidade comum aos interlocutores. Já no discurso escrito,

há um problema diferente pelo fato de haver um mundo presente comum entre escritor

e leitor. Não há na modalidade escrita os mesmos mecanismos de revelação da

referencia de mundo.

Quando um discurso passa da fala à escrita, a escrita torna o texto autônomo,

independente em relação ao seu autor, isto quer dizer que o texto não coincide mais

com aquilo que o autor quis dizer. Segundo Ricoeur, �graças à escrita o mundo do texto

pode fazer explodir o mundo do autor.�151 A escrita é a substituição da voz humana

por sinais materiais e gramaticais, razão pela qual, o discurso humano ao fixar-se na

escrita é profundamente afetado na sua função comunicativa. A escrita toma o lugar da

fala e corresponde ao pensamento humano sem o estágio intermediário da linguagem

falada.

Se um indivíduo repete oralmente o discurso, ainda que seu conteúdo seja o

mesmo, as palavras não serão as mesmas, os gestos, as expressões, os olhares lançados

ao falar não serão os mesmos. Na medida em que o discurso passa da fala à escrita, há

uma fixação do discurso, desaparecendo os gestos, as emoções, as expressões e os

150 RICOEUR, HI, 2008, p. 63. 151 RICOEUR, HI, 2008, p. 62.

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sentimentos colocados na fala. As palavras não contêm emoção por si só, e ainda que os

sinais gráficos queiram demonstrar o sentimento, conforme mencionado neste trabalho,

vai depender do leitor dar-lhes ou não esta característica. Aquilo que parece uma

simples mudança de modalidade � da oral para a escrita � é, segundo Ricouer, um fator

que acarreta várias outras consequências, inclusive, quanto à compreensão.

Assim, para Ricoeur a tarefa hermenêutica consiste em discernir o mundo do

texto e não o que o autor do texto quis dizer. Para Ricoeur, �interpretar é explicitar o

tipo de ser-no-mundo manifestado diante do texto�152. A tarefa hermenêutica não é a

investigação e a revelação das intenções psicológicas contidas e ocultas no texto. O que

deve ser interpretado num texto é a proposição de mundo.153 Segundo o pensamento

de Ricoeur, o mundo do texto não é, portanto, o da linguagem corriqueira do

quotidiano. O mundo do texto promove um distanciamento e é por meio do

distanciamento o que a ficção gera uma nova apreensão da realidade: pela ficção, pela

poesia, ampliam-se inovadoras possibilidades de ser-no-mundo.154

Em se tratando do processo judicial, especificamente, em se tratando do

depoimento das testemunhas, não há que se falar nem em ficção, nem em poesia, já que

o que se busca é a verdade, assim considerada verdade como correspondência (como se

verá em tópico próprio). A testemunha vai falar aquilo que sabe sobre o assunto objeto

do processo. Sabe por que viu, porque participou. No entanto, ainda que não se

compare à ficção e nem à poesia, aquilo que será narrado pela testemunha e transcrito

nos autos será interpretado pelo leitor, de acordo com a sua proposição de mundo.

152 RICOEUR, HI, 2008, p. 65. 153 RICOUER. Do Texto a Acção � Ensaios de Hermenêutica II, Tradução de Alcindo Cartaxo e Maria José Sarabando. Portugal: Res, 1989, p. 62. 154 RICOEUR, HI, 2008, p. 66.

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2.6. O Esquema de Comunicação de Jakobson e o Processo Judicial

Sendo o processo judicial formado por discursos escritos, quer aqueles que

foram originalmente escritos, quer aqueles que foram orais e se transformaram em

escritos, para esclarecer o gênero literário que compõe o processo judicial e a forma

de sua inscrição, se fará uma comparação entre e mensagem e código estudada por

Ricoeur no esquema de comunicação estabelecido por Jakobson.

Nessa perspectiva, entende-se que no processo judicial a �mensagem� é o que

foi escrito, o conteúdo, o discurso registrado em forma narrativa. O �código� diz

respeito à forma como os registros foram feitos, isto é, o que foi usado para a

produção do discurso.

O processo judicial tem toda uma técnica própria para a sua inscrição, a

codificação utilizada inclui no discurso processual uma forma de literatura narrativa,

conforme já se falou neste trabalho. Menciona-se somente narrativa porque os demais

gêneros literários apontados pelo filósofo, quais sejam, poesia e ensaio, provavelmente

não estão presentes no processo judicial.

Isto porque, o ensaio é uma composição sobre determinado tema sem a análise de

fatores empíricos comprováveis. O ensaio é um exercício do próprio julgamento do

autor e suas inclinações. O processo judicial não pode ser meramente um exercício

das inclinações do autor, tampouco do seu julgador. Os discursos escritos do processo

judicial têm por fundamento os fatos, as provas e a lei aplicada ao caso concreto e não

as inclinações das partes ou do juiz.

Quanto à poesia, embora alguns artigos de Lei soem aos ouvidos desta

pesquisadora como poesia, como por exemplo, o artigo 5º da Constituição Federal, não

se pode chamar o discurso jurídico de poesia por conta do lugar e da função poética,

na visão de Jakobson, para quem a poesia diz respeito a versos rimados, sendo umas

poesias veiculadas à função referencial da linguagem, outras vinculadas à função

emotiva, outras à função conativa.

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Ricoeur, retomando a classificação de fala estabelecida por J. L. Austin,

considera que todas as classes de fala, isto é, ordens, desejos, perguntas, advertências,

promessas, além de dizerem algo fazem algo ao dizer, produzindo efeitos pelo que

disseram. Como se sabe, são estes atos classificados por Austin como atos locutórios,

isto é, aqueles que dizem algo; ilocutórios, isto é, atos que fazem algo e perlocutórios,

isto é, os que produzem efeitos.155

Ora, a análise feita por Ricoeur é rica e abrangente e não se quer empobrecê-la

trazendo para o âmbito do processo judicial como uma mera aplicação, porque talvez

nem seja possível fazê-lo. O que se pretende ao evocar a classificação de fala

estabelecida por Austin e retomada por Ricoeur é analisar o processo judicial sob

esta lente, na tentativa de melhor compreensão acerca do que ocorre no processo

judicial.

Sendo assim, poder-se-ia dizer que os atos ilocutórios no processo judicial são

aqueles que despertam não só a compreensão, mas o sentimento de justiça. Eles

fazem algo ao dizer. Os escritos produzidos no processo (e para o processo) têm o

objetivo de fazer não só com que o juiz compreenda a história, mas também que se

convença de que daquela narrativa decorre o direito perseguido pelo autor ou pelo

réu. Assim, a escrita do processo faz algo ao dizer. A escrita busca ser demonstrativa

da verdade e convincente, fazendo com o juiz defira ao peticionário o direito

perseguido por ele.

O ato ilocutório não somente ocorre quando o escritor alcança um objetivo, qual

seja, de fazer o juiz compreender e se convencer do direito de quem o persegue. Este

fazer algo também pode ter efeito contrário: Fazer com que o juiz não se convença. O

não convencimento do juiz não retira da escrita a função de fazer algo. Neste caso a

escrita não fez o juiz se convencer, mas continuou fazendo algo.

Nesta mesma esteira de raciocínio, as partes ao produzirem seus escritos

encaminhando seus pedidos ao juiz praticam atos locutórios e ilocutórios. Locutórios

porque seus escritos dizem algo. As palavras contidas nos escritos, o fraseado, as

155 RICOEUR, TI, 2009, p. 28.

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proposições têm significados. Ilocutórios porque os escritos fazem algo ao dizer. As

partes se utilizam do processo judicial para fazerem seus pedidos ao juiz. Estes

escritos têm efeitos, fazem algo, por isso são ilocutórios. Os efeitos gerados pelo que

se escreveu, pediu, negou, alegou, etc. são atos perlocutórios.

O juiz, por sua vez, quando profere uma decisão também está praticando atos

locutórios e ilocutórios, porque a sentença proferida diz algo (locutório) e isto que ela

diz gera efeitos (ilocutórios). Tais efeitos são atos perlocutórios.

Como já foi dito, o processo é formado por diversos discursos, que podem ser

analisados como constituídos por atos locutórios, ilocutórios e perlocutórios, que

ampliam a noção de significação do discurso, que se analisará a seguir.

2.7. A Significação do Discurso no Processo Judicial

Ricoeur faz uma ampla análise sobre a significação do discurso. Retoma-se aqui

o que já foi analisado no capítulo 1 acerca da composição do discurso.

Conforme visto no capítulo 1, para Ricoeur o discurso é composto pelo binômio

evento e significação, sendo o evento composto por algumas características reunidas,

dentre elas: o acontecer de algo mediante a fala de alguém (�algo acontece quando

alguém fala�156), a temporalidade, a ligação à pessoa que fala e troca entre ouvinte e

locutor (um fala, outro escuta).157 Além disso, segundo Ricoeur, o evento corresponde

ao ingresso do mundo na linguagem mediante o discurso. Este mundo corresponde à

troca realizada entre os interlocutores, estabelecendo-se um diálogo em que alguém diz

alguma coisa sobre algo para alguém. No que tange à significação do discurso, Ricoeur

destaca que é ela que deve ser compreendida e não o discurso, porque a significação

permanece, mas o evento não.

Para melhor elucidar a questão da significação Ricoeur subdivide a significação

em objetiva e subjetiva. Por significação objetiva entende a significação da enunciação,

156 RICOEUR, HI, 2008, p. 53. 157 RICOEUR, TI, 2009, p. 28.

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do conteúdo proposicional, isto é da frase composta por sujeito e predicado e que

transmite um sentido mediante a junção das palavras. E ainda demarca outra

subdivisão na significação objetiva explicando que pode ela significar �o que� do

discurso e �acerca de que� do discurso. �O que� é o seu sentido, ou seja, o que é dito e

�acerca do que� a sua referência, acerca do que se diz. Por significação subjetiva diz ser

o que o locutor fez ao dizer, a sua intenção de reconhecimento pelo ouvinte. 158

Não é tarefa fácil pensar o processo judicial e seus escritos tomando-o sob a lente

desta análise feita por Ricoeur. Aqui se tentará fazê-lo refletindo que a significação

objetiva do discurso processual no que tange ao significado, ou seja, ao �o que�, pode

ser as manifestações escritas do processo: as petições, as sentenças, os despachos

judiciais (decisões interlocutórias), as atas, os laudos, as contestações, os recursos. Isto é

o que é dito no processo judicial.

Conforme já explanado, tudo que é dito no processo judicial se não estiver escrito

tornar-se á escrito e o que não estiver escrito não estará no processo. Para que o �dizer�

esteja no processo é necessário que se escreva as chamadas �peças processuais�, isto é,

manifestações escritas das partes através de seus advogados, manifestações dos

peritos, além das atas (onde se transcreve o que ocorreu nas audiências), as decisões

interlocutórias do juiz, a sentença final, etc.

Como disse Ricoeur, �o sentido é imanente ao discurso e objetivo no sentido de

ideal�159. Em se tratando do processo judicial há um horizonte a ser alcançado e sem o

discurso escrito, sem o dito, sem as peças processuais adequadas, sem os laudos, sem os

despachos, sem a sentença, o ideal processual que corresponde à busca e

reconhecimento ou não de um direito - não será alcançado.

Em se tratando da referência, isto é, �acerca do que se diz�, é provável que

guarde total dependência à forma como o assunto objeto do processo judicial será nele

tratado, ao modo de narrar as minúcias de cada caso, ao modo de contar a história da

qual desencadeará um pedido, à forma de suscitar o artigo de lei para que se defira o

158 RICOEUR, TI, 2009, p. 34-35. 159 RICOEUR, TI, 2009, p. 25.

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pedido, etc. Para se escrever acerca de algo, o locutor/escritor se vale da linguagem e,

articulando as palavras, as vírgulas, os pontos, os parágrafos, as interjeições, monta

um encadeamento lógico acerca do que pretende dizer, sempre em busca de alcançar o

objetivo processual de reconhecimento do direito perseguido. O escritor escolhe as

palavras, escolhe sua melhor colocação para a formação das frases, escolhe as

melhores frases e elabora um discurso fazendo com que a articulação das palavras

transmita uma mensagem.

No que tange à significação subjetiva, ou seja, o resultado da ação de dizer do

locutor refletida no ouvinte, para analisá-la tem-se primeiro que refletir sobre quem

seria o ouvinte, o alvo do discurso no processo judicial. Quem é o ouvinte no processo

judicial? Seria somente o juiz a quem as petições são dirigidas, a quem os laudos são

encaminhados, ou o(s) ouvinte (s) seria(m) as partes litigantes? Entende-se que existe

uma dinâmica em que todos os participantes do processo judicial mudam seu

posicionamento conforme o caminhar do processo. Ora, ao escrever a petição inicial,

a parte � através de seu advogado � é o locutor e o juiz e a parte contrária, são os

ouvintes. Quando a parte contrária se defende daquilo que foi dito na petição inicial,

ela - a parte contestante - é a locutora, sendo o juiz e a parte autora os ouvintes.

Quando o perito apresenta o seu laudo, ele é o locutor e as partes e o juiz são os

ouvintes. Quando o juiz transcreve as atas de audiência, bem como quando prolata os

despachos, as decisões interlocutórias e a sentença final ele é o locutor e as partes

litigantes as ouvintes.

Este revezamento de papéis não retira de cada locutor a intenção do

reconhecimento do seu discurso pelo ouvinte nem a força do ato linguístico. Talvez

simplesmente cada locutor intente ser reconhecido por seu ouvinte, sabendo que no

momento seguinte ele deixará de ser locutor e passará a ser ouvinte.

No processo judicial, ainda que se saiba que os locutores se valham da

linguagem processual própria, com técnicas jurídicas e vocabulários peculiares às

práticas processuais e forenses, nem por isso a linguagem deixa de exteriorizar o ser-no-

mundo de cada locutor e sua compreensão das situações do mundo. Explica-se: Se

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fosse o escrito processual somente um amontoado de palavras que não refletissem o

estar no mundo do locutor, as peças processuais seriam absolutamente iguais e

engessadas. Então, por exemplo, para um pedido do famoso �habeas corpus�160

imagina-se que bastaria o impetrante ter acesso a um formulário pré-montado, com

palavras previamente escolhidas de modo genérico, adicionar o nome do impetrante e

a assinatura do advogado, remetendo-o à autoridade competente, que por sua vez

também teria um formulário previamente montado com as opções de deferimento e

indeferimento e justificativas generalizadas para tal.

Numa outra reflexão exemplificativa, se poderia pensar na existência de uma

sentença matriz a ser aplicada a todos os pedidos sobre o mesmo assunto. Assim, todos

os pedidos de despejo por falta de pagamento teriam uma sentença pré-montada; todas

as reclamações trabalhistas; todas as ações de cobrança e assim sucessivamente. O

aparelho judiciário seria como uma máquina em que se aperta o botão do tipo de

problema e sairia um extrato da sentença solucionadora.

No entanto, não é assim que funciona e a linguagem dos escritos processuais

exprime a experiência de cada locutor, os seus mais diversos sentimentos, inclusive o

sentimento de injustiça, consoante já se narrou, toda a sua experiência de vida, o modo

como compreende o mundo e as situações do mundo. Toda a técnica jurídica processual

que venha a ser utilizada nos escritos de um processo não consegue retirar da

linguagem esta dimensão da experiência do locutor. Nesse sentido, parece que o

sentido de referência ao locutor aqui examinado ultrapassa as possibilidades

contempladas por Ricoeur.

160 Habeas Corpus é a medida que visa proteger o direito de ir e vir. É concedido sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Quando há apenas ameaça a direito, o Habeas corpus é preventivo. Disponível em: <http://estudandoodireito.blogspot.com.br/2006/05/definio-habeas-corpus-habeas-data.html>. Acesso em: 02 mai. 2012.

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2.8. A Busca pela Verdade no Processo Judicial

Dentro do quadro proposto por Ricoeur da justiça como prática social composta

por ocasiões da justiça, canais da justiça e argumentos da justiça, continua-se a se

tratar neste tópico, assim como nos demais tópicos deste capítulo, dos argumentos da

justiça.

Neste tópico se examinará a busca da verdade no processo judicial e para tanto,

se partirá do conceito de retórica. Isto porque, chama a atenção no processo judicial a

vasta argumentação utilizada por cada parte, através de seus advogados, na tentativa

de convencer o juiz acerca da sua versão dos fatos. Seria esta argumentação escrita a

indicação da verdade ou mera retórica?

Para examinar a questão, há que se levar em conta o conceito de retórica.

Segundo o dicionário de filosofia de Japiassu, retórica é a arte de utilizar a linguagem

de forma persuasiva em um discurso para convencer um indivíduo (ou um público) de

algo. Trata-se numa primeira visada de uma técnica argumentativa baseada na

habilidade de emprego da linguagem para convencer os ouvintes.161

Para Reboul a retórica é �a arte de persuadir pelo discurso�.162 Segundo Reboul,

Aristóteles definiu a retórica como a �a arte de achar os meios de persuasão que

cada caso comporta�163. Escreveu Aristóteles: �A retórica é uma forma de

comunicação, uma ciência que se ocupa dos princípios e das técnicas de comunicação.

Não de toda comunicação, obviamente, mas daquela que tem fins persuasivos�.164

Então, para estes filósofos, a retórica não é aplicada a todos os discursos, mas somente

aos discursos que visem à persuasão.

161 JAPIASSU e MARCONDES, 2006, p. 240. 162 REBOUL, 2004, p. 24. 163 ARISTÓTELES. Rhétorique, Les Belles-Lettres. 3 vols., trad. Fr. M. Dufour, 1967 apud REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 24. 164 ARISTÓTELES, Retórica, v. VIII, Tomo I. Obras Completas de Aristóteles. Coordenação de António Pedro Mesquita. 2ª Ed. Revista. Revisão de Texto Levi Condinho, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Portugal, 2005. Disponível em: <http://br.librosintinta.in/retorica-aristoteles-pdf.html>. Acesso em: 15.02.2012.

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Comparando as definições descritas nos parágrafos precedentes, verifica-se que

a primeira � de Japiassu - define a retórica como arte de usar a linguagem de modo

persuasivo para convencer. A segunda � de Reboul - diz tratar-se de arte de persuadir

pelo discurso. E como já se mencionou nesta dissertação que cada parte tem por

horizonte convencer o juiz de sua versão dos fatos e de seu direito, surge a

problemática sobre a existência de diferença entre persuadir e convencer. Seria

persuadir a mesma coisa que convencer? Ou são conceitos diferentes, cabendo a

expressão �persuadir para convencer� mencionada por Japiassu na definição retro

transcrita?

Embora alguns dicionários de língua portuguesa indiquem as palavras persuadir

e convencer como sinônimas, existe na filosofia a discussão sobre a diferenciação entre

os atos de persuasão e convencimento. Olivier Reboul definiu �persuadir� como levar a

crer e �convencer� como levar a compreender. E desta definição outro desdobramento

surge: A diferença entre crer e compreender.

Novamente consultando-se o dicionário para a definição dos vocábulos,

encontra-se no Dicionário Abbagnanno as seguintes características da noção de crença:

Na filosofia contemporânea, a noção de crença é marcada pelas seguintes características: 1) A crença é atitude de adesão a uma noção qualquer; 2) Essa adesão pode ser mais ou menos justificada pela validade objetiva da noção ou não se justificar de modo algum; 3) A própria adesão transforma a noção em regra de comportamento (o que Peirce chamava de �hábito de ação�); 4) Como regra de comportamento, em alguns campos a crença pode produzir sua própria realização ou seu próprio desmentido.165

Então de acordo com algumas das características apontadas pode-se dizer que

levar a crer é fazer alguém aderir a algo de modo justificado ou não, sendo esta

adesão capaz de transformar a noção de regra de comportamento. Se persuadir é,

segundo Reboul, levar a crer, uma das hipóteses de abrangência da palavra persuasão

seria a de levar outra pessoa a adesão de algo, de alguma ideia, de alguma noção.

165 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução da 1ª. Edição Brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi. Revisão da tradução e tradução dos novos textos: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 219.

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Examinada a questão da crença, resta ainda tratar do convencimento. Segundo

Reboul, convencer é levar a compreender.

Conforme se mencionou no capítulo 1, para Emerich Coreth, compreender

significa apreender o sentido, num universo em que o sentido é aquilo que é

significativo em um contexto e tem uma significação originária da linguagem.166 Ao se

examinar o estado em que Ricoeur encontrou o problema hermenêutico, foi

demonstrado que segundo Ricoeur, a teoria hermenêutica oriunda dos pensamentos de

Schleiermacher e Dilthey teve por tendência a identificação da interpretação como

compreensão, entendida a compreensão como reconhecer a intenção do autor do texto.

Para Ricoeur tanto Schleiermacher como Dilthey atribuíram tarefa equivocada à

interpretação diante da impossibilidade de �compreender um autor melhor do que ele a

si mesmo compreendeu�167. Para Ricoeur, um texto escrito é uma forma de discurso e

não somente uma forma de comunicação intersubjetiva, ou seja, um texto não é um

modo de comunicação em que o ouvinte (ou leitor) busca a compreensão do autor e

não a do texto e segundo Ricoeur, um texto se abre a um horizonte infinito, não

podendo ficar restrito à compreensão de seu autor (daquilo que o autor quis dizer).

Então, compreender, para Ricoeur, não é reconhecer a intenção do autor do texto, e

nem um modo de conhecimento, mas é um modo de ser.168 Nesse sentido levar a

compreender não é fazer com que o destinatário da mensagem (ou ouvinte) reconheça a

intenção do autor, mas fazer com que reconheça o que aquele texto diz.

Destarte, a diferenciação entre persuadir e convencer na forma como proposta

por Reboul, isto é, persuadir como levar a crer e convencer como levar a compreender,

parece não ser suficiente à composição da lente para exame da persuasão e do

convencimento no processo judicial. No entanto, ao se fazer um casamento entre a

ideia de Reboul e a de Perelman a lente fica mais nítida.

Isto porque, para o filósofo belga Chaim Perelman a diferenciação entre

convencimento e persuasão também não é tão simples e tem a ver, por um lado, com o 166 CORETH, 1973, p. 50-51. 167 RICOEUR, TI, 2009, p. 38- 39. 168 RICOEUR, CI, 1969, p. 8.

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tipo de auditório a quem se dirige o discurso e por outro, com a razão. Para Perelman

uma argumentação persuasiva é aquela que só vale para um auditório particular, ao

passo que uma argumentação convincente é a que se pretende válida para todo ser

dotado de razão169. Destaque-se, no entanto, que Perelman ao apresentar a diferença

entre persuadir e convencer deixa claro não haver uma definição precisa por conta das

diferenças entre os auditórios. Diz Perelman:

Nosso ponto de vista permite compreender que o matiz entre os termos convencer e persuadir seja sempre impreciso e que, na prática deva permanecer assim. Pois ao passo que as fronteiras entre a inteligência e a vontade, entre a razão e o irracional, podem constituir um limite preciso, a distinção entre diversos auditórios é muito mais incerta, e isso ainda mais porque o modo como o orador imagina os auditórios é o resultado de um esforço sempre suscetível de ser retomado.

Nessa esteira de raciocínio se poderia dizer que: levar a crer (persuadir) é fazer

alguém e/ou um público especifico, um auditório específico aderir a certa ideia ou

noção. Levar a compreender (convencer) seria usar de argumento com alcance a todo

ser dotado de razão, independentemente do tipo de auditório a que pertença o receptor

da mensagem.

Nesse sentido, convém examinar a que auditório o discurso no processo judicial

é dirigido. Se o foco das partes, representadas por seus advogados é �convencer� o juiz

de sua versão como verdadeira, pode o juiz ser considerado um auditório? E em caso

positivo, levando-se em conta as características individuais de cada juiz, seria cada

juiz um auditório diferente? Ou poderia se considerar os juízes como um tipo de

auditório, independentemente das diferenças existentes nas características pessoais e

individuais de cada um? E ainda: seriam os juízes um auditório específico a ser sujeito

à persuasão ou, por ser o juiz dotado de razão, pode ele de aderir a qualquer

argumentação convincente válida?

169 PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação. A Nova Retórica. Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 31.

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As perguntas acima não têm respostas precisas. De acordo com o pensamento

de Perelman, se levado em conta o fato de ser o juiz um ser racional, capaz de aderir a

toda e qualquer argumentação válida, a argumentação levada ao juiz deve convencê-lo.

Cumpre aqui esclarecer que Perelman indica como �válido� o conjunto de fatos e

verdade que todo homem deve aceitar. Mas e se a argumentação for válida em outros

aspectos que não o legal, mas for contra a lei, pode ele aderir? A resposta é não. O juiz

não pode decidir contrariamente a lei. No entanto, vislumbra-se a hipótese de também

não ser adequado afirmar que o juiz é persuadido, comparando-o a um auditório

particular. Se cada indivíduo tem suas peculiaridades, então, cada juiz seria um

auditório particular desconhecido do orador visto terem características pessoais

diferentes. Como disse Perelman, a diferenciação entre os diversos auditórios é incerta

também porque depende do modo como o orador imagina os auditórios.

Ainda que o juiz não possa aderir a uma argumentação válida contra a lei,

conclui-se que a expressão que mais se aproxima da realidade do processo judicial é

�convencer�, pois o juiz usará a razão para aderir as argumentações válidas, aí

consideradas aquelas válidas para si, como indivíduo e, concomitantemente, legais.

Ademais, considerando a diferenciação entre crer e compreender, também se mostra

mais plausível que a função da retórica seja �convencer� o juiz e não persuadi-lo, uma

vez que o juiz deve ser levado a compreender sobre algo que lhe será explicado. Não

será somente levado a crer, mas deve ser levado a compreender, formando seu

convencimento respaldado em argumentos, nas provas, nas demonstrações feitas

durante o processo judicial, quer documentais, quer testemunhais ou periciais, levando

em conta para proferir a decisão a lei, todas as nuances que envolvem cada caso em sua

especificidade e individualidade e não somente a crença pela crença, dissociada do

conhecimento, das provas, da demonstração Desse modo, adota-se a nomenclatura

�convencimento� do juiz, pelo que, a retórica será considerada como a arte da

linguagem que visa convencer, no caso do processo judicial, convencer o juiz.

Vencida a discussão acerca da diferenciação entre persuadir e convencer, retoma-

se a questão da argumentação retórica no processo judicial. Sendo a retórica a arte da

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linguagem com uma finalidade, seria plausível dizer que os argumentos redigidos

pelos advogados são argumentos retóricos que independem da verdade e visam

somente o convencimento ou tais argumentos servem para revelar a verdade dos fatos

� como correspondência - mediante a utilização de palavras adequadas com o fito de

convencer? E o depoimento das testemunhas? Qual seria a importância da retórica

para o depoimento testemunhal?

Comentando o livro �A retórica� de Aristóteles, Reboul destaca que a retórica é

útil porque dela se pode esperar o que se espera de todas as técnicas: um serviço.170

Passa-se então a examinar sobre o tipo de serviço que a retórica presta ao processo

judicial.

Inicialmente para se pensar sobre esta questão do serviço prestado pela retórica,

parece ser necessário reiterar que no processo judicial há uma tentativa de busca da

verdade. Com base na verdade apurada é que o juiz decidirá o conflito.

A doutrina jurídica atribui à verdade dupla face: �Verdade Formal� e �Verdade

Real�. A primeira diz respeito às provas produzidas nos autos, à verdade encontrada,

correspondente ao que foi demonstrado no processo judicial. O brocardo jurídico �o

que não está nos autos, não está no mundo� (quod non est in actis non est in mundo)

expressa o princípio da verdade formal, na medida em que indica os limites da prova

utilizável pelo julgador para proferir sua decisão, ou seja, a prova constante dos autos. A

segunda, verdade real diz respeito ao princípio da livre iniciativa probatória, através do

qual, o juiz não está obrigado a se satisfazer apenas com as provas levadas ao processo

pelas partes ou por ela solicitadas, podendo assumir uma postura ativa na sua

produção. O juiz tem a liberdade de determinar a juntada de documentos que sabe

existir ou presume a existência, de ouvir testemunha sequer apontada pelas partes, de

realizar perícias não requisitadas, etc., desde que pertinentes ao fato. A �verdade real�

trata-se daquilo que o juiz enxerga além do que está materializado no processo,

determinando novas diligências para averiguar a verdade existente além do que está

inicialmente declarado. Sendo assim, �verdade formal� e �verdade real� acabam se

170 REBOUL, 2004, p. 25.

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misturando, haja vista que a verdade formal em tese, está formalmente nos autos e a

verdade real, aquela que está além dos autos, será trazida ao processo de acordo com as

determinações de produção de provas pelo juiz, tornando-se verdade formal.171

Não se pretende analisar minuciosamente todas as possibilidades e definições do

conceito de verdade na filosofia, tampouco se prender a questão técnica jurídica de

distinção entre verdade real e verdade formal. Não é este o foco deste trabalho. Há que

se reconhecer que o tema verdade é de uma profundidade tamanha que mereceria

uma dissertação exclusiva para se tentar abarcar um pouco de sua abrangência.

Pretende-se aqui considerar o conceito de verdade, entendida a verdade como

correspondência entre o que foi alegado e os fatos ocorridos.

Em se tratando do processo judicial não se pode negar que tudo que ali

acontece, desde a narrativa dos fatos, a produção de provas � quer documentais, quer

periciais, quer orais, pedidas pelas partes ou pelo juiz - até a prolação da sentença é

uma tentativa de se encontrar a verdade como correspondência entre o que foi alegado

e o que aconteceu de fato, para atribuir o direito a quem o detém por força da verdade.

Assim, por exemplo, se o ex-empregado ingressa com processo judicial visando ser

reconhecido o seu direito à percepção de indenização decorrente de dano moral por ter

sido humilhado por seu superior hierárquico, o empregador será chamado para

responder ao processo e tudo que ocorrer no processo terá por horizonte apurar se

aquele chefe agia de modo a humilhar e constranger o ex-empregado. Ou seja: o

horizonte do processo é a apuração da correspondência entre o alegado e que de fato

ocorreu. E não importa que se tenha num mesmo processo vários pedidos, diversas

pretensões coligadas a um mesmo assunto. A apuração da verdade abrangerá uma por

uma das pretensões. Pode-se encontrar verdade em determinados pedidos e falsidades

em outros ou ainda, verdade ou falsidade em todos os pedidos.

Segundo a definição contida no dicionário de Abbagnano acerca do vocábulo

�verdade�, é possível distinguir cinco conceitos fundamentais de verdade: (1) A 171 O princípio da verdade real é típico do processo penal, já que no processo civil o juiz � via de regra �fica adstrito a �verdade� levada aos autos pelas partes , ou seja, verdade formal. CAPEZ, Fernando. Processo Penal, 17 ed. São Paulo: Damásio de Jesus, 2007, p. 40.

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verdade como correspondência; (2) A verdade como revelação; (3) A verdade como

conformidade a uma regra; (4) A verdade como coerência; (5) A verdade como

utilidade, é provável que ao se refletir sobre o depoimento testemunhal se encontre a

verdade nestes mais diversos conceitos. No entanto, para o exame aqui proposto, se

considerará a verdade somente como correspondência.

Assim diz o dicionário acerca dessa da verdade como correspondência:

O conceito de V. como correspondência é o mais antigo e divulgado. Pressuposto por muitas das escolas pré-socráticas, e pela primeira vez, explicitamente formulado por Platão com a definição do discurso verdadeiro que dá no Crátilo �Verdadeiro é o discurso que diz as coisas como são; falso é aquele que as diz como não são�(Crat. 385 b. v. Sof. 262 e; Fil. 37 c). Por sua vez Aristóteles dizia: �Negar aquilo que é e afirmar aquilo que não é, é falso, enquanto afirmar o que é e negar o que não é, é a verdade� (Met., IV, 7. 1011 b 26ss v. V, 29, 1024 b 25). Aristóteles enunciava também as duas teses fundamentais dessa concepção de verdade. A primeira é que a verdade está no pensamento ou na linguagem, não no ser ou na coisa (Met., IV, 4, 1027 b 25). O segundo é que a medida da V. é o ser ou a coisa, não o pensamento ou o discurso: de modo que uma coisa não é branca porque se afirme com V que é assim, mas afirma-se com V. que é assim porque ela é branca(Met., IX, 10, 1051 b 5)...

Examinando a questão da verdade processual, verifica-se que nem sempre as

coisas aparecem como são; nem sempre se afirma o que é e se nega o que não é. Por

isso, ou seja, porque nem sempre se diz o que é, que se falou anteriormente � e aqui

convém repetir - que o que acontece no processo judicial acaba por ser uma tentativa

de encontrar a verdade, não havendo garantia de que este fim será alcançado.

Como bem disse Aristóteles �Negar aquilo que é e afirmar aquilo que não é, é

falso, enquanto afirmar o que é e negar o que não é, é a verdade�.172 Num processo

judicial que tem por horizonte a busca da verdade, as partes litigantes deveriam

afirmar o que é e negar o que não é, no entanto, por equívoco ou com o fito de se

defender ou ainda, fazer valer um direito inexistente, por vezes negam aquilo que é e

afirmam o que não é, tornando falsa (s) a(s) versão (ões) apresentada(s).

172 ARISTÓTELES. Metafísica, vol. II, Ensaio Introdutório. Texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale. Tradução Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2002, p. 179 (Met. IV, 7. 1011 b, 25).

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Aquilo que é falso pode ser entendido como verdade e, através da sentença

judicial, pode passar a valer como verdade, mesmo sendo um entendimento

equivocado, advindo daí as consequências de se tomar por verdade o que era falso.

Para melhor compreensão cita-se um caso prático: Diz-se muito que �prova de

pagamento é recibo�. Assim, se uma pessoa é cobrada judicialmente por uma dívida que

pagou mas cujo recibo não teve o cuidado de guardar por um tempo, certamente será

condenado a pagar ao pretenso credor do valor cobrado. Ora, mas neste caso a verdade

é que o credor recebeu e o devedor já pagou. O fato de o devedor não provar o

pagamento não transforma a verdade do pagamento em mentira. No entanto, o que se

tomará por verdade será a inadimplência do devedor. Independentemente da questão

probatória, o que se evoca é que a realidade não foi alterada, tomou-se por verdade o

que era mentira. Como disse Aristóteles �de modo que uma coisa não é branca porque

se afirme com verdade que ela assim é, mas afirma-se com verdade que ela é branca

porque é�. 173 Sendo assim, ainda que se tome uma alegação falsa por verdade, isto não

alterará a realidade: a verdade continuará sendo verdade e a mentira continuará sendo

mentira, ainda que tomada por verdade.

No parágrafo anterior se exemplificou que um argumento falso pode ser

acolhido por falta de provas, o que não o torna verdadeiro, mas é tomado por

verdadeiro. No tanto, nem sempre as alegações falsas são acolhidas como verdadeiras

pela falta de prova daquilo que de fato seria a verdade. Pode-se �provar� uma mentira

e esta ser tomada por verdade, como se verá adiante.

Para o reconhecimento da verdade no processo judicial não bastam argumentos,

nem explicações isoladas. É necessária a produção da prova daquilo que se alega e se

argumenta. Para convencer o juiz, como já se mencionou num dos parágrafos

anteriores, a parte há que levá-lo a compreender.

Por este motivo, e considerando que o juiz prolatará a sentença com base naquilo

que foi levado a crer durante o desenrolar do processo judicial, é preciso examinar a

questão da colheita de provas, notadamente, as testemunhais.

173 ABBAGNANO, op. cit., p. 995-996.

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Para provar os fatos � quer sejam os constitutivos de direito ou os impeditivos,

extintivos ou modificativos do direito � durante o processo judicial as partes indicam e

requerem a produção de suas provas.174 As provas podem ser documentais,

testemunhais e periciais.175 As provas produzidas serão essenciais à formação do

convencimento do julgador, uma vez que visam à demonstração e comprovação de

fatos alegados pelo autor ou réu.

Vale ressaltar que a prova tem por objeto a comprovação do fato e não do

direito em questão. Quem decide pela existência ou inexistência do direito perseguido

é o julgador, que forma seu convencimento de acordo com a comprovação ou não dos

fatos. É por isso que o brocardo jurídico que diz �Dá-me os fatos, que eu te darei o direito�

é usualmente suscitado nas demandas judiciais, já que as partes em litígio comprovam

(ou não) os fatos e o juiz a partir deles e das provas produzidas (ou não) decide acerca

do direito.

Os argumentos levados a efeito nas peças processuais podem ser acompanhados

dos documentos que os embasam, mas, na ausência de documentos ou caso este não

sejam suficientes, os argumentos são sustentados por depoimentos de testemunhas, que

são chamadas a confirmar ou negar os fatos relatados pelo autor e pelo réu. Destarte, o

depoimento testemunhal é de grande importância no processo judicial e é aplicado em

quase todos os tipos de processo (civil, penal, trabalhista), ofertando-se às partes

produzirem prova de suas alegações mediante a narrativa de terceiros que não sejam as

próprias partes litigantes e que têm por missão a narrativa daquilo que sabem por que

viram.

174 O juiz também pode determinar a realização de prova que entender cabível para a formação de seu convencimento. 175 A prova pericial é o relatório técnico realizado por profissional indicado pelo juiz, ou seja, com neutralidade e conhecimento técnico sobre determinado assunto. Este relatório também chamado Laudo, auxiliará o juiz no seu convencimento sobre as questões versadas no litígio. Assim, se a questão discutida é inerente a doença adquirida no trabalho, por exemplo, o perito será um médico, que avaliará se o autor da demanda é portador da moléstia alegada e se esta moléstia guarda relação com o serviço executado. Se a questão a ser discutida tiver cunho contábil, o juiz nomeará um perito contador e assim sucessivamente.

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Levando-se em conta que este trabalho visa a análise da presença da

interpretação nas decisões judiciais, é de extrema importância esclarecer o depoimento

testemunhal, suas formas e consequências, visto que tais depoimentos servirão ao

convencimento do juiz e, por conseguinte, o embasamento da decisão judicial.

Então, no que tange à situação específica da produção de prova mediante a oitiva

de testemunhas - ou seja, oitiva de indivíduos que não são partes no processo mas que

têm conhecimento com os fatos objeto da discussão - viram os fatos, participaram de

alguma forma para a ocorrência dos fatos e cujas narrativas orais, chamadas no

processo de depoimentos, podem ajudar no convencimento do juiz acerca da existência

ou inexistência do direito do autor, no processo judicial ela é feita na modalidade face-

a-face. A testemunha responde oralmente às perguntas � também orais � que lhe são

feitas pelo juiz, razão pela qual, pode-se considerar o depoimento testemunhal como um

verdadeiro diálogo entre o juiz e a testemunha, até porque, se a testemunha não

entender o que lhe foi perguntado, pode dizer isso ao juiz, assim como pode corrigi-lo

na hipótese de ele repetir o que a testemunha disse com diferente sentido, no entender

do depoente.

Ricoeur diz que:

É diante de alguém que a testemunha atesta a realidade de uma cena à qual diz ter assistido, eventualmente como ator ou como vítima, mas no momento do testemunho, na posição de um terceiro com relação a todos os protagonistas da ação.176

Ricoeur trata do tema do testemunho sem focar somente sua utilidade judicial,

mas vislumbrando sua presença em outras searas. Indica que, independentemente de

onde será utilizado, o testemunho, remete a uma história do passado com narrativas e

artifícios retóricos.

Para começar, o testemunho tem várias utilidades: o arquivamento em vista da consulta por historiadores é apenas uma delas, para além da prática do testemunho na vida cotidiana e paralelamente a seu uso judicial sancionado pela

176 RICOEUR, MHE, 2010, p. 173.

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sentença de um tribunal. Além disso, no próprio interior da esfera histórica o testemunho não encerra a sua trajetória com a constituição dos arquivos, ele ressurge no fim do percurso epistemológico no nível da representação do passado por narrativas, artifícios retóricos, colocação em imagens. Mais do que isso, sob certas formas contemporâneas de depoimento suscitadas pelas atrocidades em massa do século XX, ele resiste não somente à explicação e à representação, mas até à colocação em reserva nos arquivos, a ponde manter-se deliberadamente à margem da historiografia e de despertar dúvidas sobre sua intenção veritativa.177

A testemunha relata o passado por ela vivenciado. Ela estava no local onde algo

ocorreu, ela escutou algo, ela viu algo, ela narra o o que de alguma forma vivenciou

reconstruindo as imagens, os lugares, os trajes, os ambientes de trabalho, e, muitas

vezes, descreve detalhes que passaram despercebidos por outros indivíduos. O

depoimento convincente de uma testemunha pode fazer com que arquivos antes

registrados (quer historiográficos, quer processuais) sejam postos em dúvidas.

Ao tratar da questão do testemunho em tópico anterior, já se destacou a questão

da passagem da fala para a escrita neste momento processual, em que o depoimento

testemunhal passa do modo oral para o modo escrito, ficando registrado no processo.

Já se falou, também, que para a prolação da sentença este registro será consultado,

assim como poderá ser consultado pelos advogados, pelas partes, pelo Tribunal em

caso de recurso e, sendo o processo público, por qualquer leitor que queira consultá-lo.

E ainda, foi analisada a situação da narrativa dos fatos pretéritos no momento presente

para repercussão no futuro.

Aqui se pretende ir um pouco além examinando a dificuldade que envolve o

testemunho no que tange ao discernimento acerca da verdade. Como anteriormente

visto, o horizonte intermediário do processo judicial é a busca da verdade. As provas

levadas ao processo, quer documentais, quer periciais ou testemunhais, visam mostrar

essa verdade. No entanto, no que se refere à testemunha, põe-se em questão a detecção

da verdade em seu depoimento. Como saber se a narrativa da testemunha é verdadeira?

Como acreditar que aquilo que está sendo dito de fato ocorreu ou são as impressões da

177 RICOEUR, MHE, 2010, p. 173.

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testemunha sobre o que ocorreu? Como saber se a testemunha está negando aquilo que

é e afirmando aquilo que não é?

Ricoeur aborda o núcleo do sentido do testemunho colocando na balança a

confiança e a suspeita. �Até que ponto o testemunho é confiável�?178. No caso do

processo judicial, por um lado, o juiz precisa confiar na testemunha para acolher seu

depoimento como forma de embasar a decisão, por outro, a testemunha precisa gerar

credibilidade sobre aquilo que está falando. E compete ao juiz as análises acerca da

confiança e da suspeita, pois tem por lei o livre convencimento. Só ele, juiz, pode fazer a

balança da confiança e da suspeita e decidir se o testemunho é ou não confiável com

base em suas convicções.

No entanto, nem sempre a testemunha fala a verdade, ainda que tenha

prometido dizer a verdade e diga estar com ela compromissado. Então, não raro,

mentiras são tomadas por verdades por conta de uma a narrativa falsa de uma

testemunha, que faz passar a sua narrativa por verdadeira e convence o juiz de sua fala.

Considere-se a situação hipotética de um ex-empregado que reclamou contra

seu empregador pleiteando indenização por assédio moral, mesmo sendo este assédio

inexistente. Na audiência para produção de prova testemunhal este ex-empregado pode

levar até o juiz duas ou três pessoas, previamente por ele ensaiadas, que, na qualidade

de testemunhas narrarão a existência de um assédio inexistente, como se verdadeiro

fosse o ato, de modo a convencer o juiz de um fato mentiroso, que passa a ser tomado

por verdadeiro. Ainda que o empregador tenha testemunhas dizendo o contrário, o

juiz pode formar seu convencimento com base nas testemunhas apresentadas pelo ex-

empregado, já que o juiz tem por lei a prerrogativa do livre convencimento e, ao medir

os depoimentos, pode acreditar mais naqueles prestados pelas testemunhas levadas

pelo ex-trabalhador, que podem expor as narrativas de modo a lograr êxito no

convencimento do juiz, ainda que não estejam falando a verdade. Este é um exemplo em

que a mentira pode ser provada e tomada por verdade. Diz-se isto para salientar que

nem só por falta de provas - conforme se afirmou antes - se toma a mentira por

178 RICOEUR, MHE, 2010 p. 171.

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verdade. Também pelo falsear das provas pode ocorrer o mesmo. Ou até mesmo, pela

falta de credibilidade dada pelo juiz às provas verdadeiras (porque tem o livre

convencimento), podem-se acolher as falsas.

E nem se pense ser absurda a questão do falseamento da verdade pela

testemunha uma vez que a legislação pátria prevê como crime o testemunho falso,

pois, na prática, muitos falsos testemunhos ocorrem e a falsidade não é detectada, não

havendo nestes casos penalização.

Esclarece Ricoeur que a testemunha com credibilidade é aquela que mantém seu

testemunho no tempo, que mantém o que narrou.

A testemunha confiável é aquela que pode manter seu testemunho no tempo. Essa manutenção aproxima o testemunho da promessa, mais precisamente da promessa anterior a todas as promessas, a de manter a promessa, de manter a palavra... A testemunha deve ser capaz de responder por suas afirmações diante de quem quer que lhe peça conta delas.179

Em se tratando de depoimento judicial, e salvo no processo penal e alguma outra

exceção, na maioria dos processos judiciais, a testemunha é chamada a depor uma única

vez. Sendo assim, não pode o juiz analisar a veracidade e credibilidade do depoimento

pela manutenção dele no tempo. Na maioria das vezes, o momento do diálogo entre a

testemunha e o juiz é único e daquele momento o juiz colherá suas impressões, sem

outros encontros.

O juiz tem a prerrogativa do livre convencimento e tem os seus critérios próprios

e pessoais para acreditar em alguém ou em algo. Sendo assim e considerando um único

encontro de juiz e testemunha � via de regra - caindo por terra a possibilidade de

verificar-se a veracidade do depoimento por sua manutenção no tempo, não existe

qualquer fórmula universal, pronta e eficaz do modo de se dizer algo ao juiz, quer de

forma escrita, quer verbalmente, que garanta o seu convencimento acerca do que está

sendo dito. Salienta-se, no entanto, a força do discurso e a forma como ele é proferido o

que provavelmente pode ser grande instrumento influenciador para este convencimento

179 RICOEUR, MHE, 2010, p. 174.

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sobre a verdade, ou sobre o que será tomado por verdade, embora também não sejam

uma fórmula mágica, uma vez que, por mais convincente que seja o discurso, outros

elementos nortearão a decisão do juiz.

Então, levando-se em conta que a mentira pode existir no processo judicial e

pode vir a ser acolhida em detrimento da verdade, pergunta-se: teria Aristóteles razão

quando, ao tratar da Retórica, disse que �o verdadeiro e o justo são por natureza mais

fortes que seus contrários?�180 Não seria o ato de convencimento do juiz � quer pela

verdade, quer pela mentira � uma arte relativa ao convencimento alheio,

independentemente da natureza dita forte do verdadeiro e do justo? Seria mesmo a

natureza do verdadeiro e do justo forte e predominante? Parece que não. Diante do

princípio do livre convencimento atribuído ao juiz, a natureza do verdadeiro e do justo

pode não ser predominante, na medida em que alegações falsas podem ser tomadas

por verdadeiras, sendo, muitas vezes, o convencimento do juiz resultado da arte do

convencimento alheio.

Uma testemunha que vai depor em juízo, ainda que esteja falando a verdade, se não o

fizer de modo convincente não alcançará o intento. E aqui não estou me referindo ao uso de

técnicas prévias de retórica, argumentação, de oratória. Um indivíduo com a voz trêmula,

com respostas que passam a sensação de incerteza do que se diz, com equívocos constantes

na fala (ou seja, contradições) ou ainda, com olhares desviantes do seu interlocutor (o juiz),

provavelmente não transmitirá ao juiz segurança em seu depoimento, não tendo o seu

discurso o poder de convencimento. Um depoente que, ao contrário, responda com firmeza

ao que lhe for perguntado, fitando os olhos no interlocutor, narrando de modo preciso os

fatos arguidos, ou seja, usando a linguagem com arte (ainda que não possua uma técnica

aprendida nas escolas, mas seja esta arte inerente ao seu modo de ser), provavelmente terá

mais chances de convencer ao juiz de que está falando a verdade, ainda que dela não esteja se

valendo. Não é à toa que na maioria das vezes ouve-se mais de uma testemunha para cada

parte processual, a fim de que o depoimento de uma seja ratificado pelo depoimento da outra

180 ARISTÓTELES. Rhetorique, Les Belles-Lettres, 3 vols., trad. R. M. Dufour, 1967, apud REBOUL, 2004, p. 25.

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ou não. Mas isto não é uma regra. Uma única testemunha firme no seu depoimento, que use

a arte para proferir o seu discurso pode valer mais que duas ou três testemunhas não

investidas de retórica, convencendo o juiz de sua versão dos fatos.

Importante salientar que, embora as partes litigantes levem testemunhas em

audiência própria para sua oitiva, as testemunhas são consideradas do juiz e não das

partes, já que servirão ao convencimento do juiz, razão pela qual não podem ser

contaminadas pelas partes e ou terceiros interessados no deslinde da demanda deste ou

daquele modo.

Em que pese esperar-se da testemunha somente a verdade, diz-se no meio

jurídico que �a testemunha é a prostituta das provas�, pois, por interesse voltado para A

ou para B, ou ainda, instruída por A ou por B pode dizer de modo às vezes convincente,

aquilo que não sabe, aquilo que não viu, aquilo sobre o que não ouviu falar, mas que ali

diz saber, convencendo o juiz de uma mentira que será tomada por verdade e gerará

consequências que seriam indevidas quando da prolação da sentença, mas que tornar-

se-ão devidas por força da decisão judicial. Por esse motivo, ou seja, para não haver

contaminação da testemunha por interesse pessoal, a lei determina que antes de depor a

testemunha declare se tem relações de parentesco com a parte, ou interesse no objeto do

processo (art. 414 CPC). Ao que parece este dispositivo legal quando recitado ao

depoente não é suficiente a demovê-lo de responder ao juiz de acordo com o seu

interesse caso assim tenha ajustado com a parte. A questão do parentesco, via de regra,

é facilmente descoberta e raramente contestada pelo depoente por conta de sobrenomes

comuns, documentos, etc. Já as relações de amizade, inimizade e interesses em geral

nem sempre são detectadas e/ou confessadas, ou ainda, provadas e segue-se um

depoimento contaminado, sem que o juiz saiba ou sequer se dê conta de sua falsidade.

Por um lado, o atolamento do judiciário não permite que se estenda demais numa

oitiva. Por outro lado, aquele que estiver disposto a quebrar a promessa de falar a

verdade e tiver capacidade retórica, repetirá inúmeras vezes a mesma fala, ainda que

seja o falsear da verdade. Talvez não haja solução para a detecção do falsear da verdade.

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O depoimento testemunhal é de grande importância à decisão judicial. O Juiz,

valendo-se de critérios subjetivos, pode depositar confiança na palavra de outrem, ou

simplesmente, ignorá-la. E, segundo Ricoeur, dar crédito a palavra de outrem faz do

mundo social um mundo compartilhado.

[...] trata-se de uma competência do homem capaz: o crédito outorgado à palavra de outrem faz do mundo social um mundo intersubjetivamente compartilhado. Esse compartilhamento é o componente principal do que podemos chamar �senso comum�.181

O juiz para proferir sua decisão não somente se utiliza do senso comum

decorrente de um compartilhamento do mundo, como também no crédito que dá a

palavra de outrem (especificamente partes, testemunhas e envolvidos diretamente no

processo judicial) e o faz de acordo com seus critérios, por força da livre convicção que

a lei lhe confere. Isto quer dizer que o juiz pode dar a um depoimento mais valor que ao

outro; pode confiar mais em uma palavra que em outra; pode crer em uma e

desacreditar a outra, desde que fundamente os motivos que levaram à sua convicção e

a partilha, a distribuição da justiça, será feita de acordo com o que ele foi levado a

compreender.

Conclui-se que a retórica presta um serviço no processo judicial e não somente

mediante o uso de argumentos nos textos escritos, mas também na produção das

provas. Em todos os discursos processuais, quer orais ou escritos os litigantes, seus

advogados, as testemunhas se valem da retórica para convencer o juiz acerca dos fatos

narrados por cada um. Saliente-se, por fim, que o juiz também se vale da retórica para

proferir seus despachos e a sentença final, sempre elencando os fundamentos que o

levaram a decidir desta ou daquela forma, pois, dentre outras razões, sua sentença

poderá ser passível de reexame pelo Tribunal e o colegiado de juízes também deverá

ser convencido de que os argumentos esposados na sentença objeto do reexame foram

condizentes com os fatos e provas dos autos, tendo distribuído corretamente a justiça.

181 RICOEUR, MHE, 2010, p. 175.

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CAPÍTULO III

O INTÉRPRETE NO PROCESSO JUDICIAL: O JUIZ

3.1. Introdução

[...] efetivamente, o papel do juiz é muito mais difícil e complexo, e .... o juiz, moral e politicamente, é bem mais responsável por suas decisões do que haviam sugerido as doutrinas tradicionais. Escolha significa discricionariedade, embora não necessariamente arbitrariedade; significa valoração e �balanceamento�; significa ter presentes os resultados práticos e as implicações morais da própria escolha; significa que devem ser empregados não apenas os argumentos da lógica abstrata, ou talvez os decorrentes da analise lingüística puramente formal, mas também e sobretudo aqueles da historia e da economia, da política e da ética, da sociologia e da psicologia. E assim o juiz não pode mais se ocultar, tão facilmente, detrás da frágil defesa da concepção do direito como norma preestabelecida, clara e objetiva, na qual pode basear sua decisão de forma �neutra�. E envolvida sua responsabilidade pessoal, moral e política, tanto quanto jurídica, sempre que haja no direito abertura para escolha diversa. E a experiência ensina que tal abertura sempre ou quase sempre esta presente.�182

Neste capítulo, se considerará o indivíduo que faz as interpretações no

processo judicial e é essencial ao funcionamento do Poder Judiciário: O Juiz, o

magistrado. Pergunta-se se quem julga é um ser humano investido de pura técnica

jurídica, sendo esta técnica suficiente para o exercício do mister de julgar ou se, por

ser um pessoa como todas as outras, sujeita aos mesmos erros e paixões e formas de

constituição de identidade, necessite buscar diariamente novas interpretações de

significados a fim de ser apto a solucionar os mais variados tipos de conflito, dando

nova direção às vidas que se apresentam a ele na busca de seus direitos.

Esta questão é importante haja vista o trabalho do juiz como intérprete no

processo judicial. Cabe a ele fazer interpretações desde o início até o fim do processo.

Como já se viu em capítulo anterior, no desenrolar do processo há a interpretação de

182 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1993, p. 33.

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gestos, falas, sentimentos. Há um modo de comunicação e interpretação próprias

envolvido no processo judicial. Nada é tão simples como parecem crer alguns juristas

e operadores do direito como reconheceu Cappelletti.

Nos capítulos anteriores foi visto como o processo judicial caminha até a

prolação da sentença. As interpretações que envolvem os atos processuais, a

necessidade de provas, os sentimentos, a importância da linguagem, o discurso

presente no processo judicial e a possibilidade de não resolução dos problemas

processuais de interpretação pela chamada hermenêutica jurídica.

Para os que trabalham no dia a dia na operação do direito pode ser que a tarefa

de julgar tenha entrado numa rotina que faz com que não se pense mais em suas

implicações. Não é difícil se perguntar a um operador do direito qual é a função do

juiz e obter-se como resposta: �Aplicar a lei ao caso concreto�. E, de fato, esta é uma

tarefa do juiz, mas não é a única e também não é tão simples e nem automática como

dá a entender esta fala que é repetida em forma de reza, sem envolvimento de

qualquer raciocínio acerca deste ato.

E por ser o ato de julgar realizado por uma pessoa, o juiz, é que faz-se necessário

se pensar em quem julga: Quem é o juiz, o que ele faz, qual a sua formação, como

lida com os problemas que envolvem o exercício de sua função.

Segundo Lazarini, entende-se por magistratura o conjunto de juízes que integram

o Poder Judiciário. Os magistrados, também conhecidos por juízes, exercem seu poder

de julgar como dever para com a sociedade e buscam a aplicação da lei tendo como

meta a realização do bem comum.183

Prossegue o supracitado autor definindo o juiz e sua atividade:

A atividade profissional de distribuir a Justiça é no Brasil, exercida só por magistrados, pertencentes ao Poder Judiciário. Magistrado, em direito, é o juiz concursado, vitalício, que exerce ou já exerceu a autoridade administrativa e a função de julgar, em 1º. e 2º graus ou em grau especial de jurisdição, sujeito a normas especificas do Estatuto da Magistratura, representando, pois, em grau especial de jurisdição, sujeito a normas específicas do Estatuto da Magistratura,

183 LAZZARINI, Álvaro. Magistratura: Deontologia, Função e Poderes do Juiz. Publicado em Caderno de Jurisprudência da Ematra XV, v.1. n.4., jul/ago. 2005, p. 119.

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representando, pois, diretamente o Poder Judiciário do qual é membro.....Hoje se usam indiferentemente os vocábulos magistrado e juiz, referentes às pessoas que exercem as funções judicantes, embora não sejam considerados sinônimos perfeitos...184

Doravante se referirá ao juiz como magistrado ou juiz e se deterá especificamente

à sua função de julgar de modo monocrático ou singular às causas, isto é, o juiz a que

se refere neste trabalho é aquele de Primeira Instância, que acompanha o processo

judicial desde o seu nascimento e profere a sentença. Faz-se esta distinção porque há

os Tribunais de Segunda Instância que, sendo compostos por Turmas ou Câmaras de

juízes, reexaminam as sentenças prolatadas pelos juízes singulares, quando instados

pelas partes a fazê-lo mediante a interposição de competente recurso. Não se pode

olvidar que os Ministros que compõem os Tribunais Superiores, como Superior Tribunal

de Justiça, Tribunal Superior do Trabalho, Tribunal Superior Eleitoral e a Corte Maior, o

Supremo Tribunal Federal, também são juízes e se enquadram nos perfis aqui

analisados. No entanto, o foco aqui é o trabalho do juiz de Primeira Instância,

especificamente na sua função de condutor do processo e prolator da sentença,

deixando-se de lado sua função administrativa.185

Para melhor se entender a função o juiz, faz-se a seguir uma breve explanação

sobre a ação judicial e a sua forma procedimental, para depois se pensar nas relações

entre sua função juiz e sua identidade pessoal.

Depois, se examinará e se discutirá essas relações da perspectiva da hermenêutica

de Ricoeur, com destaque para o horizonte da vida boa apontado por ele.

3.2. A Ação Judicial e a Atuação do Juiz

Qualquer pessoa com capacidade civil pode solicitar a prestação jurisdicional,

isto é, pedir a intervenção do órgão judicial na decisão de um conflito mediante o uso

184 LAZZARINI, 2005, p. 119. 185 Os juízes podem assumir atividades administrativas, tais como, a Presidência de um Tribunal, a participação em corregedoria da magistratura, dentre outras. Estas funções não serão analisadas neste trabalho.

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de seu direito de ação. Ao se exercitar o direito de ação provoca-se a jurisdição, que

por sua vez se exerce através do complexo de atos que é o processo judicial,

nomenclatura que vem sendo adotada neste trabalho desde o seu início.

A ação judicial é o direito público exercido perante o Estado-Juiz, visando a

prestação da tutela jurisdicional, entendendo-se por tutela jurisdicional �a composição

obtida pela intervenção dos órgãos jurisdicionais, substituindo a vontade das partes na

decisão do litígio, através de uma sentença de mérito que aplique o direito material

previsto na norma genérica de conduta ao caso concreto�. 186

A ação judicial é iniciada por qualquer pessoa187 que, via de regra, através de

um advogado 188, dirige ao Juiz o pedido de apreciação pelo Poder Judiciário da sua

pretensão, geralmente oriunda de um conflito de interesses. A Ação Judicial é

instrumentalizada através do chamado processo judicial, isto é, a ação judicial se

materializa mediante o processo judicial, que é um conjunto de atos concatenados

formados pelos sujeitos do processo, isto é, as partes (sujeito ativo e sujeito passivo) e

o juiz189, sendo este o representante do Estado obrigado a gerir a relação processual

entre os demais sujeitos de modo imparcial.

O indivíduo que dá início a ação, isto é, forma o polo ativo é chamado de autor

e contra quem a ação é intentada (polo passivo) é chamado réu190. Autor e réu são

186 BARROSO, Carlos Eduardo Ferraz de Matos. Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 187Diz o artigo 7º do CPC: �Toda pessoa que se acha no exercício dos seus direitos tem capacidade para estar em juízo.� �A capacidade processual ou capacidade de estar em juízo está intimamente ligada ao conceito de capacidade civil. �As pessoas físicas têm essa capacidade quando se acham no pleno exercício de seus direitos (CPC, art.7º). Trata-se dos maiores de dezoito anos que não se encontram em nenhuma das situações nas quais a lei civil os dá por incapazes para os atos da vida civil (CC, arts. 3º e 4º)� (STJ 1ª Turma, RESP 266, 219-RJ-AgRg., rel.Min.Luiz Fux, j.27.04.04, negaram provimento, v.u. DJU 31.5.04.p.176; citando Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civil, vol.II, p. 284 (NEGRÃO. Teotônio. GOUVÊA, José Roberto F. Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor. 37 ed. São Paulo: Saraiva, atualizada até 10.02.2005). 188 Há processos que independem da presença de advogado para seu início, como por exemplo, os civis de pequeno valor (Juizados Especiais), Trabalhistas, dentre outros. 189 Segundo ensinamento de CARNELUTTI, o juiz não é parte, sendo partes aqueles que estão perante o juiz para serem julgados. Menciona ainda que há juristas que definem o juiz como supraparte, estando por isso no alto e as partes embaixo (CARNELUTTI, op.cit., p. 32). 190 As nomenclaturas podem mudar conforme o tipo de ação. Nas ações trabalhistas o autor é reclamante e o réu, reclamado. A ação de execução, o autor é exequente e o réu executado. Na reconvenção usa-se o

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partes no processo judicial e assim se referirá a elas daqui por diante, ou seja,

�partes�. O advogado é o interlocutor entre as partes e o juiz. É ele � advogado � que

postula e defende os direitos dos cidadãos perante o Poder Judiciário, dirigindo-se ao

Juiz em nome das partes. O Juiz é o indivíduo que recebe o pedido de reconhecimento

de direito pretendido pelas partes e que conduz o processo judicial até que seja

prolatada a sentença, quando se diz estar a prestação jurisdicional entregue pelo Poder

Judiciário, isto é, com a prolação da sentença o Estado dá o seu parecer sobre o conflito

para o qual se pediu a sua intervenção.

O processo judicial é um confronto entre as partes com a mediação do Juiz,

tendo ele a função de dirimir o conflito. Cada parte tem direito de dirigir-se ao juiz

fazendo alegações, retrucando e respondendo às alegações da outra, contestando dados

e documentos ou com eles concordando, conforme entenda ser o cabimento de seu

direito. No processo judicial cada parte tem oportunidade de manifestar seus pontos de

vista de forma escrita (do início ao fim) e oral (em audiência previamente designada

para tanto).

Cabe ao Juiz examinar cada pedido feito durante o processo judicial, proferir

despachos e decisões interlocutórias191, presidir audiências na tentativa de conciliação,

oitiva das partes e demais produções de provas (fase chamada tecnicamente de

instrução processual), dando um fechamento nisso tudo com a prolação de sentença

em que, considerando as interpretações por ele feitas durante o desenrolar da causa,

aplicará a lei ao caso concreto que lhe foi apresentado, deferindo o pedido a uma das

partes, a ambas as partes ou a nenhuma das partes, conforme cada caso.

O juiz tem garantias e responsabilidades processuais e civis. Além disso, a lei

indica como deve ser em termos processuais a sua atuação, listando os poderes, os

termo reconvinte e reconvindo. Na exceção de Incompetência usa-se excipiente e excepto, etc. No entanto, neste trabalho se usará a nomenclatura autor e réu de modo genérico para se referir ao polo ativo (autor) e polo passivo (réu), sem se deter ao tipo de ação. 191 Os atos processuais do juiz consistem em sentenças, decisões interlocutórias e despachos. Sentença é o ato pelo qual o juiz põe fim ao processo; decisão interlocutória é o ato pelo qual o juiz no curso do processo, resolve questão incidente; despachos são todos os demais atos do juiz praticados no processo de ofício ou a requerimento da parte, a cujo respeito a lei não estabelece outra forma (artigo 162 do Código de Processo Civil).

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deveres e as responsabilidades do juiz em capítulo próprio de Código de Processo Civil

(Capítulo IV), já tendo sido alguns artigos aqui mencionados. Então, ao mesmo tempo

em que o juiz tem poderes de decisão, tem deveres com os outros. Os poderes

processuais do juiz não são privilégios ou vantagens a ele outorgadas, mas se destinam

a uma atuação justa, se configurando garantias às partes e aos advogados e por isso

também chamados �poderes-deveres�.192

Assim, o juiz dirige o processo conforme as disposições legais, havendo normas

específicas no Ordenamento Jurídico pátrio que ditam a sua conduta e os procedimentos

processuais a serem por ele adotados, não ficando ao seu bel prazer o modo de condução do

processo em geral, marcação de audiências, colheita de provas, prolação de decisão,

recebimentos de recursos e etc. Isto não quer dizer que o juiz tenha que atuar sem liberdade e

com limitadíssimo poder diretivo, pois, conforme se verá nos parágrafos seguintes deste

texto, tem o juiz a prerrogativa de livre convencimento, de liberdade de escolha de

procedimentos a serem adotados (ainda que dentro de certos limites), de preenchimento de

lacunas eventualmente existentes na lei. Estas normas procedimentais servem para dar um

norte a todos os envolvidos (juiz e partes processuais), bem como para uniformizar a forma

de atuação em toda a nação, tanto nas Cidades mais desenvolvidas, como naquelas

subdesenvolvidas, tornando igualitária a forma procedimental como modo também de

ajudar a tornar imparcial a conduta do juiz, sem privilégios procedimentais a classes sociais,

políticas, religiões, etnias, etc. O artigo 125 do Código de Processo Civil deixa claro competir

ao juiz: Assegurar às partes igualdade de tratamento, velar pela rápida solução do litígio,

prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça e tentar, a qualquer tempo

conciliar as partes. Quanto à aplicação da norma e, na falta desta, prossegue o Código

determinando que:

O juiz não se exime de sentenciar ou despachar193 alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais. Não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito� (artigo 126 CPC).

192 LAZZARINI, 2005, p. 123. 193 Despachos são atos praticados no processo de ofício ou a requerimento da parte (artigo 162 CPC)

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Nesse mesmo sentido repete o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil -LICC

� (denominada recentemente de �Lei de Introdução ao Direito Brasileiro): �Quando a

lei for omissa, o juiz decidirá o caso inspirado na analogia, nos costumes e nos

princípios gerais do direito�. A doutrina dominante prevê que os meios para

preenchimento de lacunas conforme aqui citados são hierárquicos, ou seja, o juiz

obedece a uma sequência ordenada, não podendo o juiz se valer deles de forma

aleatória. Explica-se a seguir cada uma dessas ferramentas:

Por analogia entende-se a adaptação a um evento concreto não previsto pelo

legislador de regra jurídica relativa a um caso previsto, desde que em ambos ocorra

semelhança e os mesmos motivos jurídicos para solucioná-los de forma igual. Esta

regra existe no ordenamento jurídico brasileiro e foi herdada da afirmativa dos romanos

de que �onde houver o mesmo fundamento haverá o mesmo direito ou onde impera a

mesma razão deve prevalecer a mesma decisão� (Ubi eadem mratio ibi idem jus ou Ubi

eadem legis ratio ibi eadem dispositio). Cabe salientar que exceção a esta regra se encontra

no Direito Penal, onde não há lacunas já que �não há crime sem lei anterior que o defina, não

há pena sem prévia cominação legal� (artigo 3º do Código Penal). Assim, toda conduta

humana para ser criminosa deve estar prevista na lei penal. Então, a analogia só

poderá ser aplicada se for para beneficiar o réu, nunca para agravar sua pena.194

Por costume entende-se um elemento supletivo da norma formado por dois

elementos: o uso e a convicção jurídica. É, então, o costume, a norma jurídica que

decorre de prática ao longo do tempo uniformizada, que seja pública e geral em relação

a determinado ato. 195.

Por princípios gerais do direito entende-se enunciados normativos gerais, muitas

vezes de valor universal, que orientam a compreensão do ordenamento jurídico e

servem para a elaboração, aplicação, integração, alteração ou supressão das normas. São

194 MOTA, Silvia. Introdução ao Estudo do Direito. Disponível em: www.silviamota.com.br/direito/artigos/metodoanalogico.htm Acesso em: 10 nov. 2011. Nesse mesmo sentido: MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil � parte geral. 36 ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 40-41. 195 GOMES. Orlando. Introdução ao Direito Civil. Coordenador: Edvaldo Brito. 19 ed. São Paulo: Forense, 2008, p. 39-40.

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ideias de justiça, liberdade, igualdade, democracia, dignidade, etc. Os princípios gerais

do direito contêm múltipla natureza: a) São decorrentes das normas; b) derivam das

ideias políticas e sociais vigentes; c) são reconhecidos pelas nações civilizadas.196

Além do preenchimento de lacunas mediante a aplicação das ferramentas supra

elencadas e previstas em lei, pode, ainda, o juiz aplicar regras de experiência comum.

Tal aplicação está consolidada no artigo 335 do CPC que reza �em falta de normas

jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas

pela observação do que ordinariamente acontece e ainda, as regras de experiência

técnica, ressalvado, quando a esta, o exame pericial.�

Quanto à formação do seu convencimento, cabe ao juiz de ofício, por sua livre

iniciativa ou a requerimento de qualquer parte processual, a determinação das provas

que serão produzidas e necessárias à busca pela verdade processual, tendo o poder de

indeferir as diligências que entender inúteis ou meramente protelatórias. Tais provas,

quer requeridas pelas partes, quer indicadas pelo juiz de oficio, serão livremente

apreciadas pelo juiz, ou seja, o juiz atentará aos fatos e circunstâncias constantes no

processo.

O juiz tem livre convencimento sobre a prova. Ele dá à prova o valor que

entender pertinente, baseado em suas convicções. Pode, por exemplo, entender como

imprestável o depoimento de uma testemunha pelo fato de sua fala ser frágil e não lhe

transmitir confiança. Pode, ainda, indicar que este ou aquele documento não é hábil a

provar alguma circunstância. Pode acolher ou não o laudo elaborado por um perito. A

única restrição que se faz ao livre convencimento do juiz é que ele indique na sentença

os motivos que lhe formaram o convencimento.

Porque o juiz tem livre convencimento e precisa indicar os motivos embasadores

de sua decisão é que o mesmo juiz que colher a prova (esta, produzida em audiência,

salvo disposição especial em contrário197) será aquele responsável pelo julgamento, o

que é chamado de �princípio da identidade física do juiz�. Tal regra tem exceções,

196 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro � Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 76. 197 Sobre as �Provas� vide capítulos VI e VII e do CPC, artigos 332 a 456.

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sendo razões para a causa ser julgada por outro juiz se aquele que colheu as provas (ou

seja, oitiva de testemunhas, oitiva de partes, etc) estiver convocado, licenciado,

aposentado, afastado por qualquer motivo, promovido, circunstâncias em que passará o

processo para outro proceder ao julgamento.

Para que esta questão do princípio da identidade do juiz fique clara, faz-se

necessário salientar que numa Vara (cível, criminal, trabalhista) pode haver mais de um

juiz: o titular e o substituto. Via de regra, eles dividem o serviço que é dirigido àquela

vara, ficando cada um com uma quantidade de processos sob sua responsabilidade.

Por outro lado, juízes se ausentam por férias, faltas e afastamentos em geral (doença,

maternidade, paternidade, licença prêmio, etc.). Daí a importância do princípio

mencionado, a fim de que outro juiz que eventualmente esteja naquela jurisdição198 não

atue como sentenciador em processo em que não se convenceu mediante a oitiva das

partes e análise das provas. Cabe ainda ressaltar que, em qualquer hipótese, pode o juiz,

se entender necessário, mandar repetir as provas já produzidas.199

Além dos princípios supra elencados, quais sejam �livre convencimento do juiz�

e �identidade física do juiz�, tem ainda o juiz a prerrogativa de escolher, dentro de

certos limites, a providência a ser adotada com base na oportunidade e conveniência em

face de determinada situação não regulada em lei expressamente. Trata-se do �princípio

do poder discricionário do juiz�, ou seja, um poder cautelar geral em que o juiz pode

autorizar a prática de atos ou determinar a abstenção de determinados atos não

previstos em lei, como meio de garantir às partes que não sofram lesão aos seus

direitos antes do julgamento definitivo da causa.200

Mas quem é este representante do Poder Judiciário que aprecia estas ações

judiciais? Como ele se forma? Como ele age para distribuir corretamente a justiça

dando a cada um o que é seu, aplicando a lei ao caso concreto e promovendo justiça

social, como se verá adiante?

198 Por Jurisdição entende-se dizer o direito (júris dictio) mediante o dever do Estado de solucionar conflitos submetidos ao seu crivo (In: BARROSO, op. cit., p. 39). 199 Sobre o livre convencimento do juiz e o Princípio da Identidade do Juiz, vide artigos 131 e 132 do CPC. 200 Sobre Poder Discricionário do Juiz, vide artigos 266, 793, 798, 799 e 866 do CPC.

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Como é constituída a sua identidade funcional? E a sua identidade pessoal?

Será que as identidades funcional e pessoal andam juntas ou de modo separado? Como

se combinam no fazer próprio do juiz?

São muitas questões intrigantes. De um lado, se pensa no homem/mulher

técnico, com notável saber jurídico, saber sem o qual não é possível a condução do

processo e a prolação da sentença, tanto assim que necessita provar ter conhecimento

jurídico mediante aprovação em concurso público. Por outro lado, tem-se que o litígio

se passa entre indivíduos que buscam no Estado a solução do conflito. Ainda que seja

um indivíduo investido da missão de solucionar o conflito pelo Estado, o juiz não

deixa de ser uma pessoa.

Para refletir sobre essas questões apontadas, se examinará primeiramente a

identidade funcional do juiz considerando o que a lei diz acerca desta função, os

requisitos para exercê-la e a forma de ingresso.

3.3. A Formação da Identidade

3.3.1. A Identidade Funcional

Com base no entendimento do jurista Dalmo de Abreu Dallari no sentido de que

o Juiz �não decide nem ordena como indivíduo e sim na condição de agente público,

que tem uma parcela de poder discricionário, bem como de responsabilidade e de poder

de coação para a consecução de certos objetivos sociais�,201 pretende-se destacar de

início as características funcionais do juiz.

Quanto à preparação técnica, para ser Juiz é necessário formar-se, primeiramente,

em Bacharel em Direito, tal como fazem os demais operadores do direito (ou seja,

advogados, promotores, procuradores do Estado/Município/República, etc.).

Posteriormente, é preciso prestar Concurso Público específico para tornar-se o agente

julgador do Poder Judiciário, a serviço do Estado, na missão de julgar os conflitos.

201 DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 88.

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A magistratura é uma carreira e, o ingresso na carreira, se dá mediante

nomeação, após concurso público de provas e títulos, organizado e realizado com a

participação do Conselho Secional da OAB (arts. 93, I da CF, e 78 da LOMN), e cujo

cargo inicial será juiz substituto202 (art. 93, I da CF). É permitida por lei a exigência de

inscrição no concurso mediante o título de habilitação em curso oficial de preparação

para a magistratura (Art. 78, parágrafo 1º da LOMN). Os candidatos serão submetidos

a investigações relativas aos aspectos morais e sociais, e a exame de sanidade física e

mental (parágrafo 2º). Após as investigações, são indicados para a nomeação, em

número correspondente às vagas, nomeando-se mais dois juízes para cada vaga, sempre

que possível (parágrafo 3º).

O juiz, no ato da posse, deverá apresentar uma declaração pública com a relação

de seus bens, e prestará o compromisso de desempenhar com retidão as funções do

cargo, cumprindo a Constituição Federal e as Leis do País (art. 79 da LOMN).

Como se vê pela disposição legal supracitada, há um conjunto de exigências

para a escolha do ocupante do cargo de juiz face à responsabilidade que lhe recairá às

mãos. E não é só. Visando dar ao juiz condições de exercer com eficiência suas

funções, a Lei orgânica da Magistratura Nacional (LOMN) e a Constituição Federal

(CF) conferem ao juiz algumas garantias que lhe possibilitam imparcialidade e

independência. São elas:

(a) - Liberdade de expressão: o magistrado não pode ser punido ou

prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir, salvo

nos casos de propriedade ou excesso de linguagem (artigo 41 da LOMN). Isto quer dizer

que o juiz tem independência para decidir e exercer sua função com liberdade

202 Juiz substituto é o nome do cargo ocupado pelo magistrado, até sua promoção a titular, desde quando passa a responder pela presidência de determinada Vara. Antes da promoção a titular, o juiz substituto atende às convocações do Presidente do Tribunal, quer para substituir, quer para auxiliar, na área de jurisdição da Corte, de acordo com as necessidades do serviço (FAVA, Marcos Neves. É inamovível o juiz substituto? (Disponível em <www. http://www.trt02.gov.br/geral/tribunal2/Legis/CLT/Doutrina/MNF_09_09_06_4.html,>. Consultado em: 04.10.2012).

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intelectual, sendo livre para fazer as interpretações que entender necessárias, não

podendo ser punido em seu desempenho ou sofrer abusivos processos civis ou penais

em sua prática profissional.

Eventuais temores e opressões poderiam inibir a prática de julgar, daí porque a

lei confere esta proteção. No entanto, independência não significa dizer que o juiz pode

se exceder. A imunidade prevista neste artigo não tem caráter absoluto, mas sim

relativo. O juiz não fica isento de evitar expressões inadequadas e destempero verbal.

Se por sua posição pode exigir do advogado, promotores de justiça, etc. certa conduta

ética e comportamental que concorra para a finalidade do processo, não pode ele estar

isento, daí porque a lei ressalva o uso de propriedade ou excesso de linguagem ao tratar

da liberdade de expressão.203

(b) Vitaliciedade: o magistrado somente perderá o cargo mediante

ação penal por crime comum ou de responsabilidade e mediante procedimento

administrativo para a perda do cargo nas hipóteses de exercício, ainda que em

disponibilidade, de qualquer outra função, salvo um cargo de magistério superior,

público ou particular; de recebimento, a qualquer título e sob qualquer pretexto, de

percentagens ou custas nos processos sujeitos a seu despacho e julgamento e de

exercício de atividade político-partidária. A vitaliciedade no primeiro grau204 somente

será adquirida após dois anos de exercício da função, dependendo a perda do cargo

nesse período de deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado, e, nos demais

casos, de sentença judicial transitada em julgado.205 São vitalícios a partir da posse os

ministros do Supremo Tribunal Federal, os Ministros do Superior Tribunal de Justiça,

os Ministros do Superior Tribunal Militar e os Ministros e Juízes do Tribunal Superior

203 PELUSO, Vinícius de Toledo Piza; GONÇALVES, José Wilson. Comentários à Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Coordenação Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 124. 204 Juiz de Primeiro Grau é sinônimo de Juiz de Primeira Instância, ou seja, é o magistrado que em primeiro lugar julga as causas e de cujas decisões há recurso para a instância imediatamente superior (Segunda Instância ou Segundo Grau). 205 Diz-se transitada em julgado a sentença sobre a qual não caibam mais recursos. Assim, a coisa julgada é a imutabilidade da sentença e de seus efeitos formais e materiais. Sobre o assunto vide BARROSO, op. cit., p. 224.

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do Trabalho e dos Tribunais Regionais do Trabalho. São vitalícios após dois anos de

exercício da função os Juízes Federais, os Juízes Auditores e Juízes Auditores Substitutos

da Justiça Militar da União; os Juízes do Trabalho titulares e substitutos; os Juízes de

Direito e os Juízes substitutos da Justiça dos Estados, do Distrito Federal e dos

Territórios, bem assim os Juízes Auditores da Justiça Militar dos Estados.206

(c) Inamovibilidade: O juiz não pode ser movido de um lugar para

outro sem o seu consentimento, salvo em caso de penalidade disciplinar, hipótese em

que O Tribunal ou seu órgão especial poderá determinar, por motivo de interesse

público, em escrutínio secreto e pelo voto de dois terços de seus membros efetivos: a

remoção de Juiz de instância inferior.207

(d) Irredutibilidade de Vencimentos: Os vencimentos dos

magistrados são irredutíveis, sujeitos, entretanto, aos impostos gerais, inclusive o de

renda, e aos impostos extraordinários.

Além disso, e também com o objetivo de assegurar a imparcialidade e a

independência do juiz, a Constituição Federal Brasileira consagra o �princípio do juiz

natural� significando do que a designação do juiz se dá anteriormente à ocorrência dos

fatos levados a julgamento e feita de forma desvinculada de qualquer acontecimento

concreto ocorrido ou que venha a ocorrer. �Juiz natural� é aquele que está previamente

encarregado como competente para o julgamento de determinadas causas abstratamente

previstas.

Em que pese o supra mencionado �princípio do juiz natural�, a lei também

estabelece hipóteses em que o juiz não pode atuar no processo por impedimento ou

206 Art. 22, II da LOMN, e art. 95, I da CF. 207 Vide art. 30 e art. 45 da LOMN. Muito se discutiu se a inamovibilidade atingia somente os juízes titulares ou também seria garantida aos juízes substitutos. Em maio de 2012, o Supremo Tribunal Federal por maioria de 8 votos a 1, ao julgar mandado de segurança do juiz substituto de Mato Grosso decidiu anular decisão do Conselho Nacional de Justiça e assegurou que não só os juízes titulares, mas também os substitutos � ainda não titulares de varas ou de comarcas � a garantia da inamovibilidade prevista no artigo 95 da Constituição, como forma de garantir a independência e a imparcialidade dos magistrados. MS 27958. Disponível em: <http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=207689>. Acesso em: 04 out. 2012.

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suspeição. Tais hipóteses estão elencadas nos artigos 134 e 135 do Código de Processo

Civil. São elas: (i) quando for parte; (ii) quando tiver intervindo no processo como

mandatário da parte, perito, tenha funcionado como Ministério Público ou tenha

prestado depoimento como testemunha; (iii) que tenha conhecido em primeiro grau de

jurisdição, tendo-lhe proferido sentença ou decisão; 208 (iv) quando for cônjuge, parente,

consanguíneo ou afim de alguma das partes em linha reta ou na colateral até o terceiro

grau; (v) quando o advogado da parte for o seu cônjuge ou qualquer parente seu,

consanguíneo ou afim, em linha reta ou em linha colateral até o segundo grau. (vi)

quando alguma das partes for credora ou devedora do juiz; (vii) quando amigo íntimo

ou inimigo capital de qualquer das partes; (viii) quando herdeiro presuntivo, donatário

e empregador de alguma das partes; (ix) quando receber dádivas antes ou depois de

iniciado o processo; aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa ou

subministrar meios para atender às despesas do litígio.

Ao recusar a causa por motivo de suspeição, o juiz tem a opção de não explicitar

o motivo, declarando-se suspeito por motivo de foro íntimo.209 Por outro lado, caso o

juiz não se declare suspeito ou viole o dever de abstenção, a lei também garante à

parte a recusa do juiz (artigos 137 e 304 do CPC). Sendo assim, a parte que se sentir

prejudicada por ser conhecedora de algum motivo embasador de impedimento ou

suspeição do juiz poderá argüir esta condição na primeira oportunidade em que lhe

couber se manifestar no processo, fundamentando seu pedido de afastamento do

magistrado e juntando documentos comprobatórios de suas alegações, se houverem.

Após o julgamento deste incidente a causa retoma o seu curso.210

O juiz tem responsabilidades civis advindas de sua função. Ele responderá por

perdas e danos quando, no exercício das suas funções proceder com dolo ou fraude, ou

208 O dispositivo se refere ao juiz de Segunda Instância ou Segundo Grau que em Primeira Instância ou Primeiro Grau sentenciou ou decidiu no processo. 209 Vide parágrafo único do artigo 135 do Código de Processo Civil. 210 Nos processos de natureza civil, o próprio juiz da causa recebe o pedido de suspeição ou impedimento e o julga, cabendo recurso desta decisão. Nos processos trabalhistas, o Tribunal de cada região é o órgão competente para julgar o pedido de suspeição ou impedimento do juiz monocrático.

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se recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, procedimento que deva ordenar de

ofício, ou a requerimento da parte.211

Quanto à ética funcional do juiz, há pouco mais de quatro anos foi editada norma

designando como deve ser sua conduta, qual seja o Código de Ética da Magistratura

Nacional (CEMN)212. De acordo com o preâmbulo de referido código, tal norma é

�instrumento essencial para os juízes incrementarem a confiança da sociedade em sua

autoridade moral� e se faz necessária porque �é fundamental para a magistratura

brasileira cultivar princípios éticos, pois lhe cabe também função educativa e exemplar

de cidadania face aos demais grupos sociais.�213

Os artigos que seguem ao preâmbulo tratam do exercício da função do

magistrado, apontando que sua conduta deve ser norteada por princípios de

independência, de imparcialidade, de conhecimento e capacitação, de cortesia, da

transparência, do segredo profissional, da prudência, da diligência, da integridade

profissional e pessoal, da dignidade, da honra e do decoro.

No que tange à independência, diz o Código que o juiz deve ser eticamente

independente sem interferir na atuação de outro colega, desenvolvendo suas atividades

sem receber indevidas influências externas e estranhas à convicção que deve formar

para a solução dos casos que lhe sejam submetidos, devendo denunciar qualquer

interferência que limite sua independência. Esta independência implica na vedação ao

juiz de participar de atividade político-partidária (artigos 4 a 7).

Quanto à imparcialidade, diz o código no artigo 8º:

O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo processo uma distância equivalente das partes e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito.

211 Vide art. 133 Código de Processo Civil � CPC, no mesmo sentido art. 49, I e II da LOMN. 212 Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/codigo-de-etica-da-magistratura>. Acesso em: 04 out. 2012. 213 Código de Ética da Magistratura Nacional. Aprovado na 68ª Sessão Ordinária do Conselho Nacional de Justiça, do dia 06 de agosto de 2008, nos autos do processo Nº 2008290000007337.

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Segue a lei dizendo que deve o juiz tratar as partes de modo igualitário, �vedada

qualquer espécie de injustificada discriminação�. E, ao que parece, na tentativa de

explicar esta estranha expressão �injustificada discriminação� (porque dá a impressão

de que pode o juiz discriminar havendo justificativa para tal, não deixando a lei claro o

sentido da palavra discriminação) segue a lei tratando de duas � e apenas duas -

hipóteses em que não se considera tratamento discriminatório injustificado: a) a

audiência concedida a apenas uma das partes ou seu advogado, contando que se

assegure direito à parte contrária caso seja solicitado e b) o tratamento diferenciado que

resulte de lei (artigos 8 e 9).

Quanto à transparência, preceitua o Código que o juiz deve atuar com

transparência, documentando seus atos sempre que possível e mesmo quando não for

legalmente previsto, a fim de favorecer a publicidade, ressalvados os casos de sigilo.

E ainda, indica o dever de comportar-se de forma prudente e equitativa em sua relação

com os meios de comunicação, cuidando para que não sejam prejudicados direitos e

interesses legítimos das partes e procuradores, bem como, abstendo-se de emitir

opinião sobre processo pendente de julgamento, ainda que de outro colega, ou fazer

juízo depreciativo sobre votos, decisões interlocutórias ou finais de órgãos judiciais,

podendo, no entanto, fazer tais críticas no processo respectivo, em exposição

doutrinária ou no exercício do magistério (artigos 10 a 12).

Ainda quanto à transparência, diz a lei que o juiz deve evitar comportamentos

de busca injustificada e desmesurada por reconhecimento social, principalmente a

autopromoção em publicação de qualquer natureza, cumprindo a ele ostentar conduta

positiva e de colaboração para com os órgãos de controle e aferição de seu desempenho

profissional(artigos 13 e 14).

Os artigos 15 a 18 tratam da integridade pessoal e profissional do juiz, e, ao que

parece é um dos poucos, quiçá o único momento da lei em que se considera seu dever

ético fora dos muros forenses, indicando que deve o juiz conciliar sua função com os

seus interesses da vida privada. Nesses artigos diz-se, por exemplo, que os

magistrados devem se comportar na vida privada de modo a dignificar a função e que

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sua conduta fora da atividade jurisdicional contribui para que os cidadãos tenham

confiança na judicatura. Os artigos 20 a 27 tratam da conduta do magistrado quanto à

dedicação e diligência no exercício de suas funções, quanto à cortesia para com os

colegas, advogados, Ministério Público, partes, testemunhas e público, quanto à

prudência em suas decisões e quanto ao sigilo profissional sobre dados ou fatos que

tenha tomado conhecimento no exercício de sua atividade.

Só depois de ter tratado de toda esta parte de deveres a cumprir, apresenta a lei

os artigos acerca do conhecimento e capacitação do magistrado, dizendo que a exigência

de conhecimento e capacitação dos juízes tem por fundamento o direito da sociedade à

obtenção de um serviço de qualidade na administração de justiça, indicando que �um

magistrado bem formado é o que conhece o Direito vigente e desenvolveu as

capacidades técnicas e as atitudes éticas adequadas para aplicá-lo corretamente� (artigo

30)� E ainda, que a formação contínua do magistrado deve abranger as matérias

jurídicas e os conhecimentos e técnicas que possam favorecer o melhor cumprimento

das funções judiciais artigos (29 a 31).

Destaca-se o artigo porque posteriormente se examinará esta visão de boa

formação do magistrado, adiantando, porém, que ao que parece, para o legislador

(neste caso, o Conselho Nacional de Justiça) o juiz é formado somente por capacidades

técnicas, tanto assim que segue a lei dizendo que sua formação contínua deve abranger

não só matérias jurídicas como conhecimentos e técnicas para o exercício da função

No entanto, e, talvez de modo contraditório, diz o artigo 32 que a capacitação

dos juízes adquire uma intensidade especial no que se relaciona com as matérias, as

técnicas e as atitudes que levam à máxima proteção dos direitos humanos e ao

desenvolvimento dos valores constitucionais, não explicitando, no entanto, de que se

trata esta intensidade especial. Não diz o artigo em que é melhor que os outros o

magistrado que possui este conhecimento com intensidade especial, tampouco como se

mede esta intensidade.

Como se disse no parágrafo anterior, o artigo parece contraditório com as demais

disposições do código que tratam da capacitação puramente técnica, uma vez que ao

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considerar como capacitação com intensidade especial as matérias de proteção aos

direitos humanos (e aqui não se pensa naqueles direitos estritos descritos em lei, mas

num âmbito geral), o legislador parece lembrar que o magistrado precisa mais do que

técnicas jurídicas para exercer sua função. No entanto, por não ser claro o artigo, fica ao

arbítrio do intérprete esta visão, inclusive, a interpretação do que sejam os direitos

humanos, se em sentido amplo ou se aqueles apontados por lei.

Concluindo a parte da lei que trata do conhecimento e da capacitação, diz os

artigos 33 a 36 que o magistrado deve facilitar e promover a formação de outros

membros do órgão judicial, manter uma atitude de colaboração ativa em todas as

atividades que conduzem à formação judicial e esforçar-se para contribuir com seus

conhecimentos teóricos e práticos para melhor desenvolvimento do direito e

administração da justiça, sendo seu dever atuar para que a instituição que faz parte

ofereça os meios para que sua formação seja permanente.

O penúltimo capítulo do Código de Ética diz respeito à dignidade, honra e

decoro. Dita a norma que é vedado ao juiz o procedimento incompatível com a

dignidade, a honra e o decoro de suas funções e ainda, que não deve exercer atividade

empresarial, exceto na condição de acionista ou cotista e desde que não exerça o

controle ou gerência. Segue a lei dizendo ser atentatório à dignidade do cargo de juiz

qualquer ato ou comportamento do juiz no exercício profissional que implique

discriminação injusta ou arbitrária de qualquer pessoa ou instituição (artigos 37 a 39).

Mais uma vez indica a lei a discriminação injusta, parecendo haver discriminação justa.

Enfim, o último capítulo do Código de Ética da Magistratura traz disposições

finais que tratam da data da entrada em vigor, da obrigação dos Tribunais de

entregarem ao juiz por ocasião de sua posse um exemplar do Código e ainda, diz que os

preceitos nele contidos complementam os deveres funcionais que emanam da

Constituição Federal, do Estatuto da Magistratura214 e das demais disposições legais.

214 Além da Lei Orgânica da Magistratura e do Código de Ética mencionados neste trabalho, há o Estatuto da Magistratura que trata de quase todos os assuntos tratados pela Lei Orgânica da Magistratura e pelo Código de Ética e outros assuntos concernentes à composição da magistratura judicial, traje a ser usado,

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Após tratar de toda a parte técnica jurídica que envolve a função de juiz

devidamente descrita em lei, há que se perguntar se esta formação exigida, os

concursos, a pesquisa acerca da moral do juiz, as garantias concedidas por lei, enfim,

todas as características funcionais que se destacou até aqui, os direitos, os deveres

impostos, a ética indicada no código respectivo, são suficientes à formação de um

profissional competente, assim entendido aquele que cumpre condignamente o papel

atribuído pelo Estado como seu representante na solução de conflitos, em outras

palavras, se são suficientes para o exercício de sua função, para a prática da justiça.

Será que todo este preparo técnico-jurídico, por si só, é suficiente à função

exercida pelo juiz? Seria necessário algum outro preparo, algum outro requisito para o

exercício da função? E, em caso positivo, qual seria(m) este(s) requisito(s)? É possível

se pensar que o Código de Ética pode não contemplar, oferecer solução para todas as

questões implicadas na função do juiz?

Todo esse questionamento é relevante considerando não ser o juiz uma máquina,

com engrenagens automáticas a produzir decisões acerca da vida alheia mediante o

acionamento de um controle. Como se disse no preâmbulo deste capítulo a missão de

�aplicar a lei ao caso concreto� não é tão simples não é mera aplicação mecânica.

As normas que tratam do exercício da função do juiz aqui vistas, Lei Orgânica da

Magistratura e Código de Ética da Magistratura, ou seja, normas que indicam a

formação necessária e que tratam da conduta inerente ao cargo do juiz, não parecem

resolver toda a problemática envolvida na questão do julgamento porque indicam como

tarefa simples o cumprimento dos quesitos ali contidos, parecendo deixar de lado a

condição humana do magistrado e as implicações desta condição.

O juiz é um ser humano como os outros, uma pessoa que está sujeita às mesmas

paixões que os demais seres humanos, não podendo se despir da condição humana

para ocupar a posição de juiz. O juiz, enquanto humano, não está acima daquele que é

julgado, mas, para exercer a função é colocado numa posição de superioridade, acima

possibilidade de faltas, ausências, dispensas para participação em congressos e simpósios, foro competente para julgar ações contra os magistrados, nomeações, aposentadorias, dentre outros.

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das partes. Simbolicamente, esta superioridade se revela na disposição das partes e do

juiz na sala de audiências: O juiz fica à frente e acima das partes (num desnível superior

do chão). As partes ficam uma à sua direita e outra à sua esquerda (não existindo uma

regra absoluta para indicar quem fica à esquerda e quem fica à direita, se autor ou réu).

Efetivamente, sua superioridade vem do poder de decidir que lhe é atribuído.

Então, pergunta-se sobre as relações entre o profissional e o homem. E, ao se

analisar essas relações, pelo menos três considerações devem ser levadas em conta. A

primeira delas é a consideração sobre a falibilidade, uma vez que como humano o juiz

está sujeito as mesmas paixões que aqueles que são julgados. A norma diz que o juiz é

imparcial, diligente, prudente, cônscio de seus deveres. É possível esta pretensa

�perfeição� num ser falível? A segunda consideração diz respeito a separação entre

pessoa e profissional, na medida em que recai sobre ele a exigência de se colocar

enquanto profissional acima de quem está sendo julgado. Ao proceder assim, não

estaria retirando de si, ainda que de modo ilusório (porque não é possível), sua condição

humana? Estar investido do poder de julgar torna o juiz um humano diferenciado? E,

uma terceira consideração: se o juiz se vê como humano ao exercer sua função, seria

possível proferir sentenças acertadas se colocando nesta condição de igualdade com

aqueles que estão sendo julgados?

A questão do lado humano do juiz parece ser mais bem compreendida quando

se pensa na formação da identidade pessoal. Todos os seres humanos passam por uma

formação de sua identidade pessoal, independentemente da função profissional que um

dia virão a exercer. Esta formação da identidade pessoal é que se abordará a seguir.

3.3.2. A Identidade Pessoal

Ainda que se leve em conta todas as garantias concedidas ao juiz por lei,

conforme se tratou no tópico anterior, tendo em vista a grande responsabilidade que

pesa sobre seus ombros, é importante pensar nas condições que precisa ter para

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desempenhar bem o seu papel de juiz, fora aquelas técnicas que já se considerou e que

estão presentes na legislação pátria vigente.

Agora será examinado o juiz como pessoa, como homem/mulher, sujeito às

mesmas paixões que qualquer outro ser humano e ainda, sujeito aos mesmos litígios

os quais poderá julgar.

Os conflitos que são levados ao Poder Judiciário são conflitos humanos, alguns

muito comuns, outros menos comuns, alguns exóticos, mas todos humanos e serão

julgados por um humano.

A questão de ser o conflito julgado por um homem coloca questões: se por um

lado pode se pensar que, sendo o juiz também um homem pode vir a compreender

o que se passa com as partes, os sentimentos envolvidos em cada litígio e em cada

discurso, a melhor forma de solucionar o conflito, por outro lado, ser humano faz do

juiz um ser falível, sujeito a contradições, talvez nem sempre disposto a novos

aprendizados e/ou portador de visão de mundo suficientemente ampla para a

compreensão das causas que lhe são postas para julgar.

Luis Carlos Figueiredo diz que Giovanni Pico Della Mirandola (1943-1494) em

Oratio de hominis dignitate concordava com os que reconheciam o homem como o mais

maravilhoso de todos os seres da criação, apenas discordando das razões

costumeiramente dadas para esta avaliação. Segundo Figueiredo, Mirandola expõe que

o Criador ao criar o homem inventou um ser �a quem nada pertence naturalmente�, um

ser com �natureza indeterminada�, para colocá-lo no centro do mundo.

Segundo Figueiredo a concepção de �centro do mundo� expressa no texto de

Mirandola não é mais o centro com dimensão ontológica, mas o lugar daquele que tudo

pode, mas nada é, o lugar privilegiado do não ser:

O centro está assim ocupado pelo não, e esta negatividade estrategicamente localizada acabará desestabilizando todo o Universo e superando a possibilidade de concebê-lo na forma fechada e perfeita do círculo.215

215 FIGUEIREDO, L. C., 1992, p. 23.

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Mirandola, segundo Figueiredo, entende que Deus deu ao homem livre arbítrio

para escolher sua própria identidade, e por isso o criou com natureza indeterminada,

colocando-o no meio do mundo para olhar para o mundo e fazer suas escolhas,

inclusive escolher sua própria identidade.

Figueiredo investigando uma concepção de natureza humana do século XVI, a

de Pico dela Mirandola, conclui que o homem é pura negatividade: não tem lugar

determinado, não tem tarefa específica, não tem aspecto que lhe seja próprio, não tem

lei natural para reger o comportamento, cabendo a ele determinar suas próprias leis.

Um ser que nasce sem natureza certa e habita num mundo aberto às suas escolhas e que

por isso deve se preocupar desde o seu nascimento, sobretudo com sua liberdade e sua

destinação, bem como deve depender sempre mais de sua consciência do que do juízo

dos outros e, apesar disso, ser capaz de se relacionar com os outros para, neste

confronto com o outro, construir a sua própria identidade.216

A construção da identidade pessoal, ainda que por escolha, não parece ser um

processo simples. Encontrar a própria identidade exige uma reflexão sobre si mesmo.

O ser humano para conseguir se autodefinir precisa de uma reflexão sobre si e ainda,

sobre o outro.

Segundo Charles Taylor, a identidade do ser humano é complexa, multifacetada

e vinculada à orientação moral. O ser humano é moldado pelo que julga serem

compromissos universalmente válidos. O ser humano revela quem ele é naquilo que é

importante para ele, naquilo que faz e na avaliação do que faz. Saber quem se é equivale

a estar orientado no espaço moral do que vale e do que não vale à pena fazer. 217

Conhecer a sua própria identidade mediante a resposta à pergunta �Quem sou

eu?� não parece simples, o ser humano tem múltiplas possibilidades, e por isso talvez

não seja possível a qualquer homem se definir por completo por um único enunciado.

Apesar disso, aquilo que se diz ser, ou seja, o enunciado que se usa para se autodefinir

ou para definir o outro pode ser uma das características individuais mais relevantes. 216 FIGUEIREDO, L. C. A Invenção do Psicológico. São Paulo: Escuta/Educ, 1992, p. 24. 217 TAYLOR, Charles. As fontes do Self: A construção da Identidade Moderna. Trad. Adail Ubirajara Sobral e Dinah de Abreu Azevedo. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2005.

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133

Aquilo que se diz ser, segundo mostra Taylor, tem a ver com a visão individual

das condutas consideradas válidas, das responsabilidades quanto aos atos praticados,

daquilo que é considerado certo e errado, das coisas reputadas como importantes para

si, daquilo que tem sentido para cada um. E cada indivíduo desenvolve a sua

orientação moral de acordo com o seu horizonte, de acordo com a sua visão de mundo.

Não raramente se responde à pergunta �quem sou eu?� com a indicação do

nome e da genealogia �Sou Maria, filha de Joana e José, neta de Isaura e Joaquim�.

Talvez esta indicação da genealogia decorra da importância de se indicar a que

família pertence, qual o seu lugar no mundo a partir de sua família. Para Taylor,

responder dessa forma, dando nome e genealogia, ainda não satisfaz completamente à

pergunta.

Outra forma de responder parcialmente à pergunta �quem sou eu?� segundo

Taylor, é dando indicativos de algum compromisso moral ou espiritual, ou seja,

compromissos universalmente válidos em certo contexto (ser desta ou daquela religião,

deste ou daquele grupo social, deste ou daquele partido político). Segundo Taylor,

quando as pessoas fornecem estas informações para se identificarem, estão indicando

a posição que defendem em questão sobre o que é bom, sobre o que é admirável ou

sobre o que é de valor. Se um indivíduo diz ser católico, está indicando nesta fala não

só seu tipo de compromisso espiritual, como também qual é a sua postura moral, já que

a religião católica defende certos princípios morais. O mesmo ocorre se o indivíduo se

diz protestante: sabe-se que a religião protestante defende preceitos morais diferentes

daqueles apregoados pela religião católica.

Um indivíduo também indica a sua posição moral quando diz ser deste ou

daquele grupo social, desta ou daquela nação, porque as características das nações e dos

grupos sociais expressam posições. Um indivíduo nascido num país do oriente carrega

consigo tradições e concepções diferentes do indivíduo nascido no ocidente. Um

indivíduo que se declara anarquista deixa claro seu posicionamento na sociedade, bem

como as questões que defende como válidas.

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A definição da identidade de uma pessoa envolve não só a sua posição em

assuntos morais e espirituais como também alguma referência a uma comunidade

definitória e uma não exclui a outra. Uma pessoa pode se identificar como um

protestante nascido no oriente; ou um brasileiro anarquista. Assim diz Taylor:

Defino quem sou ao definir a posição a partir da qual falo na árvore genealógica, no espaço social, na geografia das posições e funções sociais, em minhas relações íntimas com aqueles que amo, e, de modo também crucial, no espaço de orientação moral e espiritual dentro do qual são vividas minhas relações definitórias mais importantes.218

Segundo Taylor, há pessoas que perdem esse tipo de identificação e passam a

não saber a significação das coisas, entrando na chamada �crise de identidade�. Na

crise de identidade, o indivíduo diz não saber quem é, porque veio ao mundo, o que

faz na vida, porque age desse ou daquele modo. Para Taylor, esta crise de identidade

pode ser vista como uma incerteza da posição em que o indivíduo se coloca no

mundo.219

Taylor diz que situações como a narrada acima em que as pessoas passam a não

saber o significado das coisas, mostram o vínculo existente entre a identidade e uma

espécie de orientação.

Saber quem se é equivale a estar orientado no espaço moral, um espaço em que surgem questões acerca do que é bom ou ruim, do que vale e do que não vale a pena fazer, do que tem sentido e importância para o indivíduo e do que é trivial e

secundário.220

E segue perguntando sobre o porquê da existência deste vínculo entre identidade

e orientação moral identificando, em primeiro lugar, que este vínculo tem seu lugar na

história. O ser humano desde os primórdios formula interrogações morais

fundamentais. E, mesmo estando na modernidade, continua a fazê-lo, no entanto, de

218 TAYLOR, 2005, p. 54. 219 Idem. 220TAYLOR, 2005, p. 44.

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forma diferente porque no passado as questões universais eram indiscutíveis,

diferentemente do que ocorre na modernidade.

Ademais, a pergunta �Quem?� situa um interlocutor numa sociedade de

interlocutores, que responde por si mesmo. Ao telefone se pergunta �quem fala?�.

Pode-se perguntar �quem é aquela pessoa?�, �quem é você?� E as respostas virão na

forma de nome, às vezes acompanhado por outro tipo de identificação relacional.

Assim, uma pessoa pode responder seu nome, e se intitular parente desta ou daquela

outra pessoa. Ou então, pode dizer seu nome acompanhado de sua profissão, sua

função, seu papel social. Pode-se perguntar �quem é aquela pessoa?� e a resposta ser:

�É um artista de tal emissora de televisão�. Ao responder a pergunta �quem� o

indivíduo se situa na sociedade e situa também o outro. Ao responder à pergunta

�quem� o ser humano se situa num espaço dentro do qual encontra seu caminho e

identifica o sentido das coisas para si.

Não raramente o indivíduo se depara socialmente com esta pergunta �quem?�

de forma agressiva e arrogante. Quantas vezes, ao ser interpelado, chamado a atenção

ou provocado, um indivíduo ergue a voz e pergunta ao seu interlocutor: �Você sabe

com quem você está falando?�, parecendo querer dizer com isso que é uma pessoa

diferenciada, importante e talvez se colocando numa condição de superioridade frente

aos outros indivíduos.

Segundo Taylor, se o indivíduo é capaz de responder sobre si mesmo, sabe em

que posição se encontra. Por isso tende naturalmente a falar de sua orientação

fundamental em termos de quem é. Uma vez definida a posição a partir da qual o

indivíduo responde, fica definida sua identidade.221

Taylor ainda considera que o ser humano existe fazendo distinções, escolhas. Ao

pensar, agir, julgar, o ser humano está distinguindo, avaliando situações, fazendo

escolhas de acordo com seus critérios pessoais. Assim, segundo as avaliações de cada

um, há uma forma de vida mais plena que outra, mais profunda, mais digna, etc.

Estas escolhas marcam o sujeito com os seus desejos e inclinações, formando sua ética.

221 TAYLOR, 2005, p. 46.

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O conjunto de discriminações (aqui e doravante a palavra tem sentido de

discernimento, distinção, diferenciação), avaliações, escolhas, constitui padrões de

julgamento de todo ser humano. As avaliações envolvem sentimentos e enunciados.

Fazendo avaliações o indivíduo pode responder às perguntas que faz para si mesmo,

acerca do que é certo e errado, do que é bom ou mal.222

Para Charles Taylor, todas as escolhas humanas envolvem o que ele chama de

avaliações fortes. Estas avaliações são diferenciações acerca do certo ou errado, melhor

ou pior, mais elevado ou menos elevado, bem e mal, não existindo identidade humana

sem este tipo de discriminação e padrão de julgamentos. Ricoeur, comentando Charles

Taylor na já citada obra O Justo, entende a expressão �avaliações fortes� como �as

estimativas mais estáveis da consciência comum, estimativas que, com sua estrutura

binária, exprimem, cada uma a seu modo, aquilo que se acaba de chamar de

discriminação entre bem e mal.�223

Segundo Ricoeur, as avaliações fortes consistem num trabalho reflexivo com

estrutura binária, conferindo às acepções de bem e mal um número considerável de

variantes. Uma possível forma de fazer a distinção entre o bem e o mal é com

�avaliações fortes� do bem e do mal, do certo e do errado, do moral e do imoral, do

digno e do indigno, do honroso e do vergonhoso, etc. Prossegue Ricoeur dizendo que o

termo avaliação exprime o fato de que a vida humana não é neutra no sentido moral,

mas tão logo seja submetida a exame, passa pela separação entre o que é sentido como

melhor e aquilo que é pior. 224

Ricoeur, fazendo referência a Taylor e com ele concordando no sentido de que a

pergunta �Quem sou eu?� norteia a busca da identidade pessoal, encontra uma

possível resposta desta pergunta �quem sou eu?� nas modalidades de adesão com as

quais se responde à solicitação das �avaliações fortes�. Nesse sentido, Ricoeur entende

222 TAYLOR, 2005, p. 35. 223 RICOEUR, O Justo, 2008, p. 200. 224 Idem.

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ser possível uma correspondência entre as variantes do bem e do mal, bem como ser

possível uma orientação no espaço moral.225

Segundo Taylor, espaço moral é o espaço de indagações acerca do bem e do

mal, onde o ser humano toma alguma posição acerca dessas indagações. Falar de

orientação moral pressupõe a existência de um espaço moral no interior do qual o ser

humano estabelece o seu caminho. Se o indivíduo necessita se situar num espaço

definido por distinções qualitativas, significa que a posição na qual se encontra em

relação a estas distinções é importante para ele. Assim escreve Taylor:

O que emerge de tudo isso é que pensamos nessa orientação moral fundamental como essencial para se ser um interlocutor humano capaz de responder por si mesmo. Mas falar de orientação é pressupor um análogo espacial dentro do qual encontramos nosso caminho. Compreender nossa condição em função de encontrar ou perder a orientação no espaço moral é tomar como ontologicamente básico o espaço que nossas configurações buscam definir. A pergunta é: por meio de que definição de configuração posso encontrar meu rumo no espaço moral? Em outras palavras, julgamos básico que o agente humano exista num espaço de indagações. E essas são as questões para as quais nossas definições de configurações são as respostas, proporcionando o horizonte no interior do qual sabemos onde estamos e

que sentido têm as coisas para nós.226

Diz Taylor que cada ser humano define o que é importante e o que não é

importante para si. É a identidade que permite ao humano as discriminações, inclusive

as que dependem das avaliações fortes. 227

Taylor propõe o resgate da presença do bem na constituição da identidade do

sujeito mediante a análise do pano de fundo da vida, ou seja, o quadro que dá sentido

às avaliações das ações e às respostas das perguntas que o sujeito faz para si mesmo.

Fazem parte deste quadro de avaliações as concepções sobre a ética, sobre a moral,

sobre bem e o mal, sobre o certo e o errado, etc. Só com a presença deste pano de

fundo, segundo Taylor, o ser humano é capaz de fazer avaliações.228

225 RICOEUR, O Justo, 2008, p. 201. 226 TAYLOR, 2005, p. 46. 227 TAYLOR, 2005. p. 47. 228 TAYLOR, 2005, p. 47.

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Nesse sentido ao se analisar a identidade pessoal do juiz, como um indivíduo

como os demais, conclui-se que faz parte da identidade do juiz uma avaliação de si

mesmo, a sua posição, a sua orientação moral. O juiz, assim como os demais indivíduos,

faz escolhas que envolvem avaliações decorrentes da diferenciação entre certo e errado,

melhor ou pior, bem e mal. Estas avaliações são feitas com base no pano de fundo da

vida, e são um trabalho reflexivo do indivíduo.

As interpretações feitas pelo juiz no decorrer do processo judicial serão feitas a

partir de sua identidade pessoal, as reflexões e avaliações que ele é capaz de fazer de si

mesmo e do outro.

3.4. O Juiz e a Sabedoria Prática

Carnelutti em seu livro As misérias do processo Penal afirma que nenhum homem,

se pensasse no que ocorre para julgar outro homem aceitaria ser juiz. Para ele, ser juiz

constitui um drama. Carnelutti ilustra este drama trazendo à baila a Bíblia Sagrada

naquele episódio do Evangelho de João em que tendo sido uma mulher apanhada em

adultério e fadada a ser apedrejada por conta da determinação nesse sentido da lei

local, foi levada pelos discípulos ao Mestre Jesus, e este, sem dar muita importância ao

pecado da mulher diz a eles que aquele que não tivesse pecado poderia atirar a

primeira pedra. Ora, o juiz é homem e como tal está sujeito a situações conflituosas

semelhantes àquelas que julga. Carnelutti diz que o juiz é, ao mesmo tempo, parte e

não parte, constituindo uma contradição. É parte porque é homem. Não é parte porque

as partes estão diante dele para serem julgadas, constituindo esta contradição um

drama.229

O juiz ao proferir uma sentença faz avaliações e escolhas. Conforme se

examinou no capítulo 2, ao ouvir duas testemunhas, o juiz pode entender serem

ambos os depoimentos verdadeiros, serem ambos os depoimentos falsos ou ainda, ser

229 CARNELUTTI, Francesco. As misérias do Processo Penal, trad. José Antônio Cardinalli. São Paulo: Conan, 1995, p. 32.

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um depoimento mais verdadeiro que o outro. Ao ler os escritos dos advogados que se

dirigem ao juiz para narrarem a versão de seus respectivos clientes, o juiz avalia qual

versão apresentada, na sua concepção, é mais correta que a outra, ou mais dentro da lei

que a outra. Ao final, balizado num conjunto de avaliações feitas durante o processo, o

juiz proferirá a sentença dizendo, com base na lei, quem tem razão naquela demanda.

Se por um lado as decisões judiciais têm que guardar obediência ao positivismo

jurídico � a Constituição Federal, as Leis Ordinárias, as Leis complementares,

regulamentos, portarias e todas as demais normas reguladoras � por outro lado, tem o

juiz suas convicções pessoais acerca do que é bom, legal e justo.

Retoma-se aqui o que já se examinou no primeiro capítulo no que diz respeito ao

pensamento ricoeuriano sobre ética e moral.

Ricoeur nos permite pensar na ética como sabedoria prática. Reservou o termo

�ética� para indicar a intenção de uma vida boa e o termo �moral� para indicar o lado

obrigatório das ações (o dever). Para Ricoeur a intenção ética pode ser definida em três

termos quais sejam: �intenção de vida boa�, �com e para os outros�, e, �instituições

justas�.

Segundo Ricoeur, a expressão �vida boa� é tipicamente aristotélica. É uma

aspiração, um tipo de vida que se busca e que inclui um cuidado de si, cuidado do outro

e cuidado da instituição. Para explicar este �cuidado� e sua importância para a ética,

Ricoeur associa o termo �si� a �estima� no plano ético fundamental e ao �respeito� no

plano moral. Para Ricoeur, as capacidades de escolha e de introduzir mudança no

curso das coisas, são estimáveis em si mesmas. Para Ricoeur a estima de si é o momento

reflexivo, pois na medida em que o indivíduo aprecia suas ações ele aprecia a si mesmo

como agente.

Os dois outros termos que compõem a intenção ética segundo Ricoeur são �com e

para os outros� e �instituições justas�. Ricoeur designa para o segundo termo �com e

para os outros� o nome de solicitude e, para ele, este termo está diretamente ligado ao

primeiro �vida boa� na medida em que a estima de si e a solicitude dialogam. Isto

porque, segundo Ricoeur si implica o outro de si. Um indivíduo só pode dizer do

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outro se ele se estimar a si mesmo como outro. O segredo da solicitude é a

reciprocidade. A solicitude é a troca entre dar e receber. No que tange às �instituições

justas�, �instituição� para Ricoeur tem sentido de viver em conjunto. �Instituição� é

todo agrupamento de pessoas que partilham deveres, direitos, rendimentos,

patrimônios, responsabilidades e poderes. Neste diapasão, cita-se como exemplo de

instituições a empresa, a família, a igreja, os poderes executivo, legislativo e judiciário, o

sindicato e a universidade. E a justiça, consiste neste contexto em atribuir a cada um a

sua parte, sendo o cada um o destinatário de uma partilha justa.230

Em que pese não haver dentre os três termos �intenção de vida boa�, �com e

para os outros� e �instituições justas� hierarquia, ou seja, um não é mais importante

que o outro, mas se complementam entre si na concepção de ética de Ricoeur, neste

tópico se deterá na �intenção de vida boa�, porque interessa examinar se o juiz ao

prolatar a sentença leva em conta a intenção de vida boa ou somente a aplicação da lei.

Volta-se, então, para as questões inerentes à ética e à moral. Para Ricoeur, tanto

a ética quanto à moral dizem respeito a uma ação intencional do sujeito que pode

mudar o curso da sua história no mundo, tomando suas iniciativas, reconhecendo suas

ações e se responsabilizando pelos seus atos. A vida boa corresponde ao conjunto de

metas a serem alcançadas, tornando o indivíduo mais realizado ou menos realizado em

seu viver na medida em que se aproxime ou não das metas. A intenção de vida boa está

presente na prática cotidiana. É no dia-a-dia que cada indivíduo toma iniciativas, faz

escolhas, alcança ou não suas metas.

Segundo Ricoeur, a intenção de vida boa envolve o sentido de justiça como

prática social. A ideia de justiça é uma virtude na via da vida boa e rege uma prática

social. Para ele o predicado �justo� é atraído por um lado para o �bom� e por outro

lado para o �legal� e esta dialética bom/legal seria inerente ao papel de ideia

reguladora atribuído à concepção de justiça. 231

230 RICOEUR, LI, 2005, p. 91, 163-164. 231 RICOEUR, LI, 1995, p. 91-92.

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Pode-se dizer que o �bom� está relacionado à ética, à vida boa, enquanto o

�legal� está relacionado à moral, às normas. Ainda que �legal� e �bom� apareçam à

primeira vista como orientações opostas (porque o �bom� advém de uma concepção

em que as ações são boas em função de um fim e o �legal� advém de uma concepção

segundo a qual as ações decorrem de um dever), esta oposição leva a pensar se para

existir um predicado não pode existir o outro ou se ambos andam juntos. Volta-se às

questões: Tudo que é legal é bom? Tudo que é bom é legal? Pode algo ser legal e não

ser bom? Pode algo ser bom e não ser legal? E mais: tudo que é legal e bom é

necessariamente justo? As ações dos indivíduos podem ser consideradas justas e/ou

boas pelo simples fato de estarem calçadas na lei? Será que a justiça instituída ao aplicar

a lei promove a justiça? Seria possível se fazer justiça sem a aplicação da lei?

Refletindo sobre esta relação entre o bom e o legal na prolação de uma sentença,

se considerado o ensino jurídico no sentido de ser da competência do juiz �aplicar a

lei ao caso concreto�, ao se proferir a sentença estaria sendo levado em conta somente o

�legal�. A prolação da sentença teria uma concepção meramente deontológica. Mas

persiste o questionamento: Considerando o pensamento de Ricoeur no sentido de que o

justo atrai os predicados �bom� e �legal�, é a sentença prolatada uma sentença justa se

levar em conta somente o legal? Seria possível a um magistrado prolatar a sentença

pensando não somente no �legal�, mas também no �bom� ou é possível pensar somente

no �bom� ainda que o �bom� não seja �legal�?

Diante da prevalência da corrente do positivismo jurídico, não é possível se

prolatar uma sentença pensando somente no �bom� se o �bom� não for �legal�. Então

o �bom� deve passar pelo crivo da norma. Para Ricoeur ao primeiro componente da

intenção ética, isto é, �a intenção de vida boa� corresponde, do lado da moral, à

exigência de universalidade. Sendo assim a passagem pela norma somada à intenção de

vida boa torna-se �sabedoria prática�. Conforme se examinou no capítulo 1, a sabedoria

prática consiste na criação pelo sujeito autônomo de um comportamento apropriado à

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singularidade de cada caso.232 De acordo com Ricoeur, esta sabedoria prática torna-se

possível na medida em que se institui um debate público onde são feitas as avaliações

que dão sentido às partilhas da sociedade. É no debate público que surgem as regras

universais que serão respeitadas pela coletividade.

Para Ricoeur, no plano ético, ou seja, da busca pela vida boa, �justo é o aspecto do

bom relativo ao outro�. Em relação à moral, ou seja, no plano da obrigação, do dever,

�justo se identifica com o legal�. E, no plano da sabedoria prática, onde para cada caso se

aplica um julgamento, conforme a situação, o justo não é nem o bom, nem o legal.

Ricouer o chama de �equitativo�, e explica como sendo �a figura assumida pela idéia de

justo nas situações de incerteza e de conflito.�233 Esta equidade é o meio do caminho entre o

bom e o legal. E chegar a este ponto de equilíbrio só é possível, segundo Ricoeur,

através da sabedoria prática.

A sabedoria prática transcende a norma e tem como referência principal o viver bem

em conjunto, não se detendo somente ao que é bom para os indivíduos e nem somente ao

que está na norma, ao que é legal, mas busca um ponto de equilíbrio entre estes dois

aspectos, de modo que entre o legal e o bom se encontre o que é justo, próprio a uma

situação determinada, tendo em vista o horizonte maior de uma vida boa para todos.

Saliente-se que as decisões judiciais têm consequências para o outro, e este

outro pode não ser aquele que está litigando, mas o outro da sociedade que colherá

frutos (ainda que não saiba) de decisões judiciais tomadas. Há decisões proferidas em

ações que interessam à coletividade e que atingem toda a sociedade de modo imediato,

como, por exemplo, aquelas em que se determina que uma porcentagem de certo

serviço cujos trabalhadores estejam em movimento grevista deva funcionar, aquelas

em que proíbem determinada operadora de telefonia de vender produtos e serviços por

um tempo, etc. Há decisões que são proferidas em causas que interessam somente às

partes litigantes, mas que, paulatinamente podem servir à sociedade, na medida em

232ROSSATO, Noeli Dutra. Viver Bem, ética e Justiça. Texto encaminhado para Revista Mente, Cérebro & Filosofia, vol. 11 � Presença do outro e interpretação: Ricoeur, Gadamer - Julho 2008. Disponível em: <http://w3.ufsm.br>. Acesso em: 10 dez. 2012. 233 RICOEUR, O Justo, 2008, p. 20.

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que as partes litigantes, tendo aprendido alguma lição da agrura processual pela qual

passaram e da sentença proferida, podem vir a modificar seu comportamento na

sociedade. Exemplifica-se ao trazer à baila que, um passado não muito distante, não se

discutia o assédio moral na relação trabalhador/empregador, tampouco o

comportamento desrespeitoso ao empregado era indenizável. Hoje, após muitas

decisões judiciais determinando o pagamento de indenizações a ex-empregados que

sofreram assédio moral, muitos empregadores já mudaram o comportamento com os

seus empregados, formando com isso uma vida melhor: o trabalhador tratado de forma

respeitosa pode trabalhar melhor, pode produzir mais, pode fazer bem aos membros

de sua família, que por sua vez podem fazer o bem a outro, etc.

Ricoeur explicita o modo como se opera o julgamento feito pelo juiz e o lugar

que ocupa na sociedade:

Neste aspecto, o caso das instituições judiciárias é peculiar, mas peculiarmente favorável a uma determinação mais rigorosa do �cada um� segundo a instituição: Com a instituição do tribunal, o processo põe em confronto partes que são constituídas como �outras� pelo procedimento judiciário; ou melhor, a instituição se encarna na personagem do juiz, que, colocado como terceiro entre as partes do processo, desempenha o papel de terceiro em segundo grau; ele é o operador da justa distância que o processo institui entre as partes. O juiz, na verdade, não é o único que desempenha essa função de terceiro em segundo grau. Mesmo sem cedermos a um pendor excessivo pela simetria, poderíamos dizer que o juiz está para o jurídico assim como o mestre de justiça está para a moral e para o príncipe, ou como qualquer outra figura personalizada do poder soberano está para a política. Mas é apenas na figura do juiz que a justiça se dá a reconhecer como �primeira virtude nas instituições sociais�.234

Pode-se supor que na medida em que o juiz passar por um processo de reflexão, e

avaliar suas ações em termos de boas (éticas) e obrigatórias (moral), bem como agir de

forma solícita (com e para o outro) com a perspectiva de vida boa para si e para o outro, e

ainda, na medida em que se puser sensível às diferenças dos seres humanos, às diferenças

das circunstâncias, agindo de modo condizente com cada diferença conforme a prática

social, a justiça enquanto instituição estará a caminho de ser uma instituição justa.

234 RICOEUR, O Justo, 2008, p. 9.

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CONCLUSÃO

Esta dissertação teve por objetivo o exame das interpretações ocorridas no

processo judicial até a prolação da sentença pelo juiz.

De acordo com o pensamento de Paul Ricoeur, o conceito de justiça constitui uma

idéia reguladora que preside uma prática social, qual seja a da justiça enquanto

instituição social. À medida que na vida social existem conflitos que não se resolvem

entre as partes, há a necessidade de intervenção do Estado para mediar os interesses

opostos e aplicar o direito. Sendo assim, a aplicação do direito está relacionada ao

aparecimento de um terceiro, que é o Estado, representado pelo juiz. No entanto,

segundo Ricoeur, antes do aparelho judiciário existe uma base de discussão acerca da

justiça na sociedade civil. Nas conversas, nas relações interpessoais, no debate público

são ponderadas as avaliações que dão significado aos bens distribuídos na sociedade.

Segundo Ricoeur, é na sociedade que se iniciam os debates e os julgamentos informais

que posteriormente serão formalmente levados ao judiciário. E quando tais debates são

levados ao judiciário, o são na forma de processo judicial. Quer sejam conflitos coletivos,

quer sejam conflitos entre indivíduos particulares, o acionamento do Poder Judiciário se

dá mediante a instauração do processo judicial.

Partindo de nossa hipótese inicial de que neste processo ocorrem múltiplas

interpretações e que estas são decisivas para o seu resultado final, a sentença do juiz,

buscamos analisar essas interpretações ocorridas no processo judicial, recorremos à

hermenêutica filosófica e parte da contribuição dada a ela por Paul Ricoeur. Como se

viu, Ricoeur desenvolveu sua teoria hermenêutica levando em conta os trabalhos de

Schleiermacher, Dilthey, Heidegger e Gadamer, propondo fosse a hermenêutica liberta

dos preconceitos psicologizantes. Segundo Ricoeur, na interpretação o �diálogo� com o

autor do texto é rompido e o texto se torna universal a quem quer que saiba ler. Pela

leitura, o texto se liberta do autor e passa a ter a sua própria autonomia e abre um

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conjunto de referências a qual ele chama �mundo do texto�. Considerando que o

processo judicial é formado por textos escritos e examinando o processo judicial sob a

lente ricoeuriana, tem-se que as interpretações ali feitas não se limitam a desvendar o

que o autor dos textos quis dizer.

O principal intérprete no processo judicial é o juiz e, no que constituiu outra

dimensão de nossa hipótese inicial, consideramos que, além das dimensões técnicas,

estariam presentes em suas interpretações as suas avaliações morais e sua intenção ética.

Considerando que, segundo Ricoeur, um texto escrito é uma forma de discurso

diferente da comunicação oral entre pessoas, procuramos examinar em que sentido é ou

não o processo judicial uma forma de diálogo, considerando diálogo a comunicação

entre duas pessoas em que uma fala e a outra escuta. Dessa perspectiva o juiz é um

interlocutor mediador, que recebe os argumentos e pedidos das partes, interpreta seu

sentido e sua validade e lhes dá a resposta cabível.

Para elucidar esta estrutura, traz-se a lume que, de acordo com o Ricoeur, todo

discurso, oral ou escrito, pode ser analisado como sendo formado pela dialética entre

evento e significação. É evento porque algo acontece quando alguém fala; deste

acontecimento Ricoeur destaca quatro características: é um realizado no presente,

ligado à pessoa que fala, dirige-se a um ouvinte e diz sobre algo a alguém. E no processo

judicial temos estas características do evento. A parte - através do advogado � peticiona

ao juiz sobre algo ligado a si, no presente. Quanto à significação, segundo Ricoeur, é ela

que se visa no falar e no escutar, é ela que permanece, para além do acontecimento da

fala. No processo judicial também aparece esta característica. O que o juiz busca é a

compreensão do significado do que lhe está sendo apresentado, para além da forma

imediata de sua enunciação. As partes apresentam a ela suas versões e o juiz usa de sua

reflexão e de seu discernimento para concordar ou não com as argumentações de uma

ou de outra parte.

Nesse aspecto, muito importante para a compreensão das interpretações que

ocorrem no processo judicial é o exame que foi aqui feito acerca da busca da verdade,

uma vez que o processo judicial tem por finalidade intermediária o encontro da

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verdade, assim considerada a verdade como correspondência entre o que alegam as

partes e o que de fato aconteceu. Para que o juiz diga o direito necessário é que ele

descubra quem diz a verdade e quem tem razão. Tal descoberta é feita mediante a

interpretação dos argumentos e das provas, quer orais, quer escritas. Por conta dessa

busca pela verdade é que no processo judicial passado, presente e futuro se entrelaçam

conflituosamente numa narrativa que pretende ser coerente, capaz de sustentar as

reivindicações das partes. Com o fito de justificar e validar seu ponto de vista e seus

direitos, as partes buscam narrar ao juiz os fatos do modo como se sucederam, de

acordo com uma sequencia própria. As histórias contadas no processo são, como

aprendemos com Ricoeur, composições narrativas passíveis de interpretação, sendo que

o juiz as analisa e se deixa convencer por aquela que lhe parece mais verossímil.

Mais uma vez, aqui, conclui-se que o poder de livre convencimento dado ao juiz é

a chave da questão interpretativa. O juiz vai se convencer de acordo com os parâmetros

da lei e de acordo com suas avaliações éticas e morais acerca das situações. Ademais,

mais importante do que a narrativa feita pelas partes para o encontro da verdade, é a

consideração das provas, notadamente a oitiva das testemunhas. Como o processo

judicial é formado por textos escritos, os testemunhos orais se tornam textos escritos.

No entanto, com base nas investigações de Ricoeur, podemos dizer que, ao passar o

depoimento da fala para a escrita, o texto não coincide mais com aquilo que o locutor

quis dizer. Também desaparecem os gestos, as emoções, as expressões e os sentimentos

colocados na fala, elementos com os quais as testemunhas e, muitas vezes as partes, dão

sentido e força ao que querem dizer. O texto escrito abre outro problema de

interpretação. Sendo assim, muito embora a legislação determine que o mesmo juiz que

colhe as provas é o que prolata a sentença, conclui-se que o juiz ao reler os depoimentos

para fundamentar sua decisão leva muito mais em conta o que lê do que o que ouviu. É

o que está registrado que é considerado para fins da prolação da sentença. Os gestos, as

emoções, as expressões utilizadas no depoimento oral ficam para trás, às vezes sequer

são lembrados pelo magistrado que os presenciou, e, ainda que intimamente possam ser

considerados para ajudar no convencimento do juiz, se lembrados, dificilmente servirão

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de fundamentação à sentença se não tiverem sido registradas de alguma forma.

Conclui-se que nem sempre a verdade é descoberta e levada em consideração, que uma

mentira pode ser tomada por verdade, seja porque a própria testemunha mentiu, seja

porque a testemunha falou a verdade, mas não convenceu o juiz acerca do que estava

dizendo. Por conta de todas essas situações, pode-se ver o quanto está presente a

interpretação no processo judicial e quão complexa é sua participação nele.

Foi por conta da tomada de consciência da problemática da interpretação no

processo judicial que durante esta dissertação se examinou a hermenêutica jurídica já

com a indicação conclusiva que ora se retoma de que esta disciplina, considerada uma

hermenêutica específica, não é suficiente, em seus princípios técnicos, para dar conta das

muitas dimensões das interpretações que ocorrem no processo judicial. Lembremos o

conceito jurídico de hermenêutica dado por França, segundo o qual a hermenêutica �é

o conjunto orgânico das regras de interpretação contando com três conjuntos de regras:

Regras Legais, Regras Científicas e Regras de Jurisprudência.�235 As regras legais são

aquelas impostas por leis, isto é, há lei que determina como interpretar e aplicar as leis.

As regras científicas são as regras consolidadas por juristas, que com base em seu

conceito técnico, emitem parecer sobre a forma de interpretação e as regras de

jurisprudência são aquelas que embasam novas decisões levando em conta casos iguais

(�onde houver a mesma razão, aplica-se o mesmo sentido�). A partir desta lembrança e

de tudo quanto foi examinado neste trabalho, parece-nos evidente que a hermenêutica

jurídica não dá conta das inúmeras dimensões envolvidas nas interpretações que

ocorrem no processo judicial, uma vez que as interpretações realmente feitas

ultrapassam as esferas legal, científica e de jurisprudência.

A interpretação que ocorre no processo judicial é uma interpretação dos discursos

de indivíduos e das situações em que estão inseridos em cada caso particular. O

conjunto de regras que a hermenêutica jurídica apresenta acaba tendo seu alcance

restrito à interpretação da lei, evidente, por exemplo, quando se trata das regras em que

uma lei dita como interpretar outras leis. No entanto, no caso das regras científicas e de

235 FRANÇA, 1999, p. 10-11.

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jurisprudência não parece tão óbvio assim, na medida em que tais regras causam a falsa

impressão de que são levadas em conta situações do cotidiano para a consolidação das

regras científicas e de jurisprudência. Diz-se falsa impressão porque, por mais que se

imagine que as regras científicas são criadas pelos juristas a partir de casos concretos

e/ou de necessidade de organização da sociedade desta ou daquela forma e que as

regras de jurisprudência tenham por objeto a aplicação do mesmo sentido onde houver

a mesma razão (iubi idem rario, ibi idem jus), a sociedade é dinâmica, e enquanto se

consolida uma regra de interpretação novas situações já surgiram. Então, tais regras

também acabam por ser limitar à interpretações de leis já postas e a respectiva utilização

nos casos concretos desse ou daquele modo.

Ademais, quanto às regras de jurisprudência, pela conhecida fórmula jurídica

romana �onde há a mesma razão aplica-se o mesmo direito�236, a reiteração uniforme e

constante de uma decisão sempre no mesmo sentido serve ao julgamento de outros

casos semelhantes. Por mais que isto pareça lógico, e, por mais que na prática se

estabeleça uma semelhança entre os casos práticos capaz de atribuir a um caso a

mesma fundamentação dada em outro caso, não se pode olvidar que um fato não é

igual ao outro, cada qual guarda suas peculiaridades. Um indivíduo não é igual ao

outro e, por mais que possam praticar atos parecidos, cada um tem suas motivações,

seus interesses, seu modo de ver a vida, razão pela qual, embora a jurisprudência tenha

a sua serventia, a sua aplicação imoderadamente, ou seja, se não consideradas as

peculiaridades de cada caso, pode fazer com que um julgamento não alcance o justo.

De acordo com Miguel Reale, o sistema jurídico não pode ser percebido apenas como

um sistema de proposições lógicas, mas como um processo de integração dialética que

vai do fato à norma e da norma ao fato.237 E �o fato� nunca será o mesmo. Os fatos

podem guardar semelhanças, mas cada fato é um fato, cada agente é um indivíduo

diferenciado. No processo judicial como um todo, como nosso trabalho pretende ter

mostrado, é evidente que as interpretações não estão adstritas à interpretação da lei,

236 FALCÃO, 1997, p. 262. 237 REALE, 2002, p. 580.

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como sugerem as regras da hermenêutica jurídica. Há que se ressaltar no entanto que,

embora não abarquem todas as interpretações feitas no processo judicial, as regras da

hermenêutica jurídica têm suma importância, fundamentando o entendimento do juiz e

garantindo-lhe alguma objetividade.

Por tudo que se examinou nessa dissertação e considerando a complexidade do

ato de interpretar, conclui-se que não é suficiente ao juiz que ele saiba o direito, o

ordenamento jurídico, a codificação pátria, a jurisprudência dominante, as Súmulas

editadas pelos Tribunais e as formas procedimentais para que tenha condições

suficientes para julgar. A formação pessoal do juiz também dará a ele subsídios

necessários para a prolação da sentença. Tais subsídios, advindos da formação de sua

identidade, somados aos seus conhecimentos técnicos, podem contribuir para que o juiz

tenha uma sabedoria prática capaz de fazer com que profira uma sentença justa, dando

a cada um o que é seu. Embora os Estatutos da Magistratura e o respectivo Código de

Ética sejam compostos por vasta abordagem acerca do conhecimento técnico necessário

ao juiz e sua postura enquanto tal, a própria lei abre caminho para que a identidade

pessoal do juiz possa prevalecer, para o bem ou para o mal, no julgamento, na medida

em que confere a eles os poderes do livre convencimento. O juiz é livre para fazer suas

avaliações e dar mais crédito a este ou aquele argumento, a esta ou àquela prova, a este

ou aquele depoimento. A sentença a ser prolatada gerará efeitos não só entre as partes,

mas também para a sociedade como um todo, logo, podemos pensar que a sentença

haveria que visar um bem comum. O juiz interpreta para sentenciar e vai, na prática,

fazê-lo também de acordo com seus preceitos éticos e morais. As interpretações feitas

pelo juiz no decorrer do processo judicial serão feitas também a partir de sua identidade

pessoal, das reflexões e avaliações que ele é capaz de fazer de si mesmo e do outro.

No entanto, mesmo tendo a tomada de consciência da liberdade do juiz quanto às

interpretações e julgamento, permanece a questão do que é justo, do que é legal, do que

é moral e do que é ético, porque é cediço que o juiz não pode julgar contra a lei. Mesmo

considerando que o juiz tem o poder do livre convencimento e profere suas decisões a

partir da sua identidade pessoal, refletindo sobre si e sobre o outro, em busca de um

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bem comum, o que pode ser considerada uma decisão justa e como age para conciliar

seus preceitos éticos e morais com os preceitos legais? Ricoeur nos dá subsídios para

responder a este questionamento, pois para ele, o justo atrai os predicados �bom� e

�legal�, de modo de que com a junção dos dois predicados chega-se à sabedoria

prática, isto é, para cada caso se aplica um julgamento, conforme a situação. É o que

Ricoeur chama de meio caminho entre o bom e o legal porque transcende a norma e

tem como referência principal o viver bem em conjunto, não se detendo somente ao que

é bom para os indivíduos e nem somente ao que está na norma, mas buscando um

ponto de equilíbrio entre estes dois aspectos, de modo que entre o legal e o bom se

encontre o que é justo, próprio a uma situação determinada.

Todo o aprendizado jurídico pelo qual passou o Juiz não lhe garante tal sabedoria

prática, tampouco a certeza de aplicação correta da justiça e nem a sensatez nas

interpretações que desembocarão na sentença. Tal sabedoria não é encontrada na Lei e

nem em manuais. Podemos pensar que se o juiz se valer apenas da Lei sem ter em vista

o horizonte da vida boa, abstendo-se de agir de modo reflexivo, de olhar ao redor e de

considerar o horizonte de uma vida boa para todos, não desempenhará bem o seu

papel de distribuir corretamente a justiça, dando a cada um o que é seu e nem fará do

Poder Judiciário uma instituição justa, que busca satisfazer as pessoas que se dirigem a

esta instituição na busca de solução de seus conflitos interpessoais, e não estará

contribuindo para uma sociedade igualmente justa e propensa a maior igualdade entre

os indivíduos.

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