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Uma Histria ntima do Desenho

Universidade Estadual Paulista UNESP Instituto de Artes

UMA HISTRIA NTIMA DO DESENHOSobre experincias de formao do desenho & dos desenhistas

Fernando Chui de Menezes

So Paulo 2010

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Uma Histria ntima do Desenho

Fernando Chui de Menezes

UMA HISTRIA NTIMA DO DESENHO: Sobre experincias de formao do desenho & dos desenhistas

Dissertao

Mestrado UNESP Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho Campus de So Paulo REA DE CONCENTRAO: ARTES VISUAIS Linha de Pesquisa: Ensino e Aprendizagem da Arte

Orientadora: Luiza Helena da Silva Christov Instituto de Artes Seo de Ps-Graduao Rua Dom Luis Lasagna, 400 CEP 04266-030 So Paulo/ SP

Desenho da capa: Fernando Chui de Menezes

2010

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Uma Histria ntima do Desenho

UMA HISTRIA NTIMA DO DESENHO: Sobre experincias de formao do desenho & dos desenhistas Fernando Chui de Menezes

UNESP Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho Campus de So Paulo REA DE CONCENTRAO: ARTES VISUAIS Linha de Pesquisa: Ensino e Aprendizagem da Arte

Banca Examinadora

________________________________________________________Orientadora: Profa. Dra Luiza Helena da Silva Christov - UNESP

____________________________________________________________________ Banca examinadora: Profa. Dra. Rosa Iavelberg - FEUSP

____________________________________________________________________ Banca examinadora: Profa. Dra. Rejane Galvo Coutinho - UNESP

Defesa aprovada em:______________________________________________________

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Dedico este trabalho a Luis, que ainda no desenha, mas aprende o mundo a cada segundo.

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Agradeo especialmente

A Luiza Helena da Silva Christov, pela luz e pela confiana. A Mrcia Tiburi, pelo amor e pela inspirao. A Regina Cndida Ellero Gualtieri pela leitura atenta. A Rejane Galvo Coutinho pelas dicas fundamentais. Capes, pela bolsa de estudos. A meu pai, Luis Carlos de Menezes, por me ensinar a aprender, todos os dias.

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Desenhar correr riscos. Luis Carlos de Menezes

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Resumo

O presente trabalho discute o processo de aprendizagem do desenho a mo livre e, particularmente, a construo de linguagens pessoais nessa forma de expresso. Entrevistas realizadas com dez desenhistas e a leitura de textos relacionados com o desenho e seu aprendizado do a base para ensaios reflexivos, que propem um olhar para esse aprendizado como experincia pessoal de cada sujeito, mas com possveis referncias para a compreenso das formas gerais de aprendizado do desenho, bem como de sua pedagogia. Alm da introduo e das notas finais, a dissertao tem cinco partes, tratando de temas como a relao entre desenho e corpo, o aprendizado por meio da cpia de desenhos, o prazer na construo pessoal de linguagens e o lugar possvel da tcnica no ensino do desenho com consideraes sobre a pedagogia do desenho e a sistematizao do processo de desenvolvimento do autor como professor de turmas de desenho a mo livre.

Palavras-chave: desenho, desenhistas, aprendizagem, memria, tcnica, cpia, linguagem.

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Abstract

The present work discusses the process of learning of free hand drawing and, particularly, the construction of personal languages in this form of expression. Interviews made with ten drawers and the reading of texts related to the drawing and its learning are the base upon which reflective essays are made, that propose a look at this learning as a personal experience of each individual person, but with possible references for the understanding of general ways of learning to draw as well as of its pedagogy. Besides the introduction e the final notes, this master dissertation has five parts dealing with questions as the relation between drawing and body, the learning by means of the copy of drawings, the pleasure in the personal construction of languages and the possible role of techniques in the teaching of drawing, with considerations on drawing pedagogy and a systematization of the process of development of the author as a teacher of classes of free hand drawing.

Key-words: drawing, drawers, learning, memory, technique, copy, language.

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SUMRIO

1. INTRODUO E APRESENTAO DO MTODO DE PESQUISA pg.11 I. Incio pg.12 II. Tema pg.14 III. Do processo de pesquisa pg.18 IV. Do ttulo: uma histria ntima pg.22

2. DESENHO E CORPO pg.24 I. Marcello Grassmann Vida e Sobrevida do Desenho pg.25 II. Paulo Ito O Aprendizado do Espao pg.35 III. Jos Glilton Desenho de Memria e Memria de Desenho pg.43 IV. O Corpo e a Memria de um Corpo pg. 48

3. CPIA E IDENTIDADE pg.54 I. Guto Lacaz Seus Mestres e seus DesenhosIdia pg.55 II. Eduardo Kickhoffel A Potica da Cpia pg.64 III. O Problema da Cpia pg.74

4. DESENHO & PRAZER - POTICAS PESSOAIS pg.94 I. Ana Elisa Dias Batista Virtuosismo e Narrativa pg.95 II. Maria Tomaselli A Esttica do Prazer pg. 104 III. Desenho e Prazer pg. 110

5.

DO ENSINO DO DESENHO pg.1189

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I. II. III. IV.

Alexandre Jubran O Tcnico e o Professor de Desenho pg.119 Edith Derdyk: A Linha didtica da artista-propositora pg.132 Eva Furnari Arte e Vontade pg.138 Desenho e Pensamento uma questo parte pg.146

6.

A SOMBRA DA TCNICA: Uma reflexo acerca de turmas de desenho livre formadas por jovens e adultos pg.151 I. II. III. IV. V. VI. VII. VIII. Notas iniciais pg.152 Luz e Sombra pg.153 Tcnica e Magia Gilbert Simondon pg.154 Mtodo pg.156 Conceitos de desenho pg.158 Por uma pedagogia do desenho pg.164 Percepo, Tcnica e Pensamento pg.169 Howard Gardner: Desenhos de deficientes visuais como evidncia conceitual pg.173 IX. X. XI. Didtica por 5 conceitos pg.174 O lugar do construtivismo na aula tcnica O Aberto pg.186 Observao sobre processos individuais pg.188

7.

NOTAS NTIMAS FINAIS - pg.190

8.

BIBLIOGRAFIA pg.199

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1. INTRODUO

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I. Incio

O desenho para mim, antes de tudo, uma paixo. Minha paixo infante e primordial, antes de todas as outras que se me revelaram ao longo da vida. A epgrafe inicial deste trabalho foi extrada de um poema no publicado de meu pai, que se tornou fsico e educador, mas que durante um longo perodo de sua vida foi um intenso desenhista nas horas vagas - tempo suficiente para me inspirar por toda a infncia a mergulhar nessa atividade. Desde criana, eu comecei a desenhar e nunca mais parei. Desenhar sempre ocupou em minha vida o lugar do prazer. Decorava meus cadernos com meus personagens cmicos, frutos de minha cpia constante de desenhos dos mais variados estilos de histrias em quadrinhos e desenhos animados; fazia animaes na borda dos livros grossos de matemtica, rabiscava seres a qualquer momento. Em minhas criaturas era fcil perceber um pouco da personagem Grana do cartunista Henfil, misturada com o Asterix de Uderzo, e Mickey Mouse de Walt Disney. Fiz alguns cursos voltados rea, como um de desenho de observao realizado no MAM (museu de arte Moderna) e um curso de desenho quando eu j tinha aproximadamente treze anos. Todavia minha formao maior de desenho

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Desenho que fiz poca da escrita final deste trabalho

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aconteceu de forma bastante autodidata e ldica, no perodo de infncia e pradolescncia. O desenho em minha infncia sempre foi algo to ritualstico quanto compulsivo, e assim se seguiu at hoje. Nunca me preocupei efetivamente com o sentido da palavra arte; jamais me importei realmente com o fato de ser ou no artista e o que este termo poderia vir a implicar. O que eu apreciava era o desenho, eu gostava era de desenhar - sempre me pareceu natural e divertido o ato de inventar imagens somente traando linhas rpidas sobre uma folha de papel qualquer. Curiosamente, o perodo em que cursei a faculdade de artes de 1992 a 1996 - deve ter sido a poca em que eu menos desenhei, sendo que ali o desenho no era sequer valorizado por meus professores e muito menos o prazer de inventar criaturinhas. Nesse perodo voltei-me msica, cuja linguagem j houvera me encantado na adolescncia cantando e tocando violo ou guitarra e, aps formar-me em licenciatura em artes plsticas, passei a viver como msico e professor de violo por cerca de dez anos. No incio do ano de 2007, fiz uma viagem para a Espanha que teve em mim o efeito de uma revoluo. Ao caminhar pelas ruas de Barcelona, deparei-me durante certa tarde (em um intervalo de no mximo uma hora) com uma amostra cultural plural e virtuosa, de artistas das mais diferentes linguagens, estilos e etnias. Havia pelo menos dez atores vestindo fantasias do universo mitolgico ao pop, um chins tocando solitrio um Erhu (um instrumento de duas cordas tocado com arco), um duo cigano de violonistas flamencos e um trio, tambm de origem cigana (mas de origem franco-belga) ao estilo mais puro do jazz de Django Reinhardt, grande guitarrista cigano dos anos 30 e 40; tudo isto cercado por um cenrio de ruas, casas e edifcios tombados, algo como um museu gtico a cu aberto; sem contar as filas enormes de pessoas, turistas e locais, visitando museus para verem mostras de obras de artistas como Picasso, Dali, Mir, Gaudi, etc. Ao retornar ao Brasil dessa viagem, percebi que aquele contato com a arte viva assim como com a arte tombada - nas ruas, e a experincia do olhar de perto para tantas obras no apenas me entreteve como um fazer turstico, mas fez com que alguma coisa se alterasse profundamente em minha percepo; o que exatamente eu no poderia descrever, mas ao interagir de maneira to intensa e profunda com as artes, questionei-me sobre a maneira como conduzia poca minha prpria relao com a arte e seu ensino, minha maneira de pensar o ensino e aprendizado13

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musical e meu afastamento do desenho. Nessa mesma tarde resolvi que regressaria s artes visuais e repensaria minha relao com a msica. Cancelei a inscrio de uma especializao em violo clssico que eu realizava j havia oito meses e procurei a Profa. Dra. Luiza Christov para conversar sobre um possvel processo de mestrado. Foi nesse ponto de minha vida que me aproximei novamente com paixo do desenho. Voltei a desenhar com constncia e a publicar em meu blog2 as imagens, juntamente a crnicas e poesias. A aproximao com Luiza Christov me trouxe s suas aulas que cursei como aluno especial e ao grupo de pesquisa RodaLnguas. Ao longo do processo de pesquisa do mestrado, de estudos pessoais e do dilogo com Luiza Christov, vus de nvoa se dissiparam descortinando meu objeto e pude mirar minha questo de maneira objetiva. Aquilo que se iniciou com meras suspeitas a respeito de questes sobre o aprendizado esttico apenas algum tempo depois pode definir - no desenho e no aprendizado de sua linguagem - a consistncia de um tema de investigao. Comecei nesse perodo a dar aulas de desenho livre e comunicao visual no SENAC .e, ao longo desse ano, fui deixando os espao em que atuava como professor de msica para me voltar arte/educao, especificamente ao desenho, e, sobretudo, ao meu prprio processo de viver e pensar o desenho, que resultou finalmente nesta dissertao.

II. Tema

Meu tema nesta pesquisa o desenho a mo livre e o olhar sobre os processos pessoais e intransferveis que levam os sujeitos a se desenvolverem nessa linguagem. Ressalto aqui meu recorte para evitar interpretaes e expectativas que podem escapar ao que quero tratar aqui sob um conceito especfico de desenho. Nesse sentido, que prefiro utilizar aqui o termo a mo livre ao termo artstico para evitar as questes de conceito relativas palavra arte. Entendo que o termo desenho a mo livre traz em si a idia de um processo de desenvolvimento pessoal na linguagem, ao mesmo tempo em que no se desprende

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http://fernandochui.blogspot.com/

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do ato essencial do desenho em si, a criao de imagens por linhas grafadas a mo por algum instrumento riscante sobre uma superfcie minimamente plana. importante declarar que a seriedade da pesquisa no poderia referir-se ao desenho tout court; e no exatamente ao chamado desenho artstico que pode ser interpretado de diversas maneiras, dependendo de prticas e discursos que o delimitam; nem o desenho em sua dimenso puramente tcnica o realizado com softwares utilizados por arquitetos at desenhos animados tridimensionais e que se oporia a esse chamado de artstico; tampouco o desenho como metfora daquilo que se nos delineia como idia de algo a ser realizado. Digamos que haja um mistrio no aprendizado do desenho e que, por isso, muitos o entendam como dom. De fato, o mistrio do desenho mistrio tambm para os prprios desenhistas. De uma forma geral, todos desconhecem o processo pelo qual se tornaram hbeis nessa rea. H quase que um elo perdido evolvendo a questo: muito se fez na pesquisa acadmica sobre o tema do desenho da criana e de seu aprendizado, porm encontrei pouqussimas referncias a respeito da educao do desenho de adultos. muito difcil encontrar uma explicao para o fato de que certos sujeitos aprendam a desenhar de maneira muito mais expressiva do que a mdia dos outros em seu grupo. Esbarraremos na delicada questo do talento ou dom e, mais adiante, na concepo do desenvolvimento de inteligncias especficas3. Para propor um pensamento sobre o ensino do desenho como j explicitado no no que se refere ao desenvolvimento cognitivo infantil, mas ao desenvolvimento de conceitos dessa linguagem optarei por no trabalhar diretamente a questo do talento - conceito que geralmente costuma ser um complicador dos processos de aprendizagem. Frases como no tenho o talento do meu colega, por isto desenho mal e no quero desenhar so comuns. No seria to fcil encontrar-se um aluno que rejeite de maneira to imperativa seus estudos de gramtica ou de geometria por conta de um colega que saiba escrever ou resolver problemas matemticos com

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Em contraposio idia de inteligncia como capacidade inata, geral e nica ligada essencialmente capacidade lgico e matemtica do sujeito -, Howard Gardner (1994), em sua teoria das Inteligncias Mltiplas, afirmou que o ser humano possui competncias intelectuais diferentes , e as distinguiu entre: inteligncia lingstica, inteligncia musical, inteligncia lgico-matemtica, Inteligncia Espacial, Inteligncia corporalcinestsica e as inteligncias pessoais.

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mais facilidade. Pois essas reas so admitidas pelo senso comum como reas de conhecimento, e no como dons inatos que, como sujeitos normais, no possuem. Esta pesquisa buscar indcios para a compreenso da forma com que se d o aprendizado dessa linguagem. Essa escolha implica tambm uma mudana de conceitos acerca da pesquisa do desenho em si. Ao tratarmos do desenho infantil, faz-se um estudo sobre as diferentes fases de desenvolvimento da criana e, dessa maneira, trata-se o desenho como meio de desenvolvimento cognitivo na formao geral do sujeito. Ao tratarmos o desenho em si, temos uma anlise da linguagem e da histria dessa linguagem. No obstante, ao tratarmos da experincia e da educao de adultos e tomarmos como ponto de partida para a discusso a experincia de aprendizado de profissionais da rea como o caso deste trabalho -, lidamos com o desenho no somente como meio para o desenvolvimento individual, mas, sobretudo como uma linguagem particular e um campo de conhecimento. Essa ltima recebe pouca ou nenhuma ateno da maior parte das escolas de ensino mdio e, muitas vezes, acaba por ser desprezada em sua pedagogia at mesmo por faculdades de arte e design. Ainda por outro lado, ao lidarmos com experincias de formao de uma srie de artistas, no se poderia deixar de lado a questo do quo indecifrvel o processo pelo qual somente algumas pessoas seguem o caminho da arte; observo que a maior parte dos sujeitos sequer se aplica a desenvolver a linguagem do desenho. Dentre os desenhistas, muitos aceitam a idia de possurem um dom, conceito presente em seu discurso de maneira explcita ou implcita, mas constante. Contudo, daqueles com quem conversei ao longo desta pesquisa, os que no se assumiram dessa forma trouxeram elementos mais esclarecedores para a questo do aprendizado sobre a qual este texto versa. Este texto divide-se essencialmente em cinco partes excluindo-se introduo e as notas finais. As primeiras quatro trazem entrevistas realizadas com nove desenhistas em diferentes nveis e reas de profissionalizao, e a busca de uma reflexo sobre questes que ali me parecerem subjacentes. Em cada entrevista busquei, em um primeiro momento, entender como se deu o desenvolvimento da tcnica e, em um segundo, como se comps o desenho de cada um, fenmeno expresso por estilos e processos de construo de linguagens pessoais. Por meio de discursos muito particulares, busquei pesquisar a partir da noo que cada um16

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desses artistas tem de si mesmo e do modo como compreendem seu prprio trabalho de desenho. A primeira parte traz meu relato das entrevistas realizadas com o renomado artista Marcelo Grassmann, com o artista de rua Paulo Ito e com Jos Glilton, um desenhista ainda no profissionalizado que ainda hoje trabalha como vigia noturno. Este captulo trata do tema do desenho e sua relao de construo a partir da experincia do desenhista com seu corpo. A segunda traz o dilogo que tive com o artista grfico Guto Lacaz, com o desenhista, bilogo e doutor em filosofia Eduardo Kickhfel Essa parte do texto traz uma das questes que se tornaram centrais em minha pesquisa, a discusso a respeito da cpia de outros desenhistas como forma de aprendizado da linguagem. Por essa razo busquei um cuidado reflexivo/analtico especial a esse tema, buscando respaldo cientfico no trabalho de Brent e Marjorie Wilson. A terceira parte das entrevistas traz minha narrativa desenvolvida a partir da conversa com a desenhista-gravadora Ana Elisa Dias, a pintora Maria Tomaselli. Esse captulo foca a questo do papel prazer no aprendizado do desenho, assim como os aspectos envolvidos na construo de poticas pessoais dentro de cdigos universais j estabelecidos nos campos de linguagem do desenho. A quarta parte inclina-se discusso sobre o ensino do desenho e a viso sobre esse tema para o ilustrador e professor de desenho Alexandre Jubran, a artista plstica Edith Derdyk e a autora de livros infantis Eva Furnari. Na ltima parte deste trabalho, trato de um pequeno estudo de caso realizado a partir de minhas experincias como docente no curso livre de Fundamentos do Desenho Artstico do Servio Nacional de Aprendizagem - SENAC - em sete turmas em particular. Ainda nesse pedao, busco refletir sobre meu mtodo e sobre a educao do desenho, em dilogo com os artistas que fizeram parte deste trabalho. Reitero que os temas que nomeiam cada parte deste trabalho vieram de um encontro entre algumas suspeitas levantadas por mim antes das entrevistas (e tambm ao longo de meu trabalho como docente) e, posteriormente, de temas que se fizeram recorrentes nas entrevistas e me pareceram relevantes pesquisa. A separao de artistas por tema se deu menos por uma discusso direcionada do mesmo nas entrevistas, e mais pela questo que me foi trazida primordialmente em cada discurso sobre os processos de aprendizado - at mesmo revelia da potica17

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pessoal dos artistas. Evidentemente, algumas questes - levantadas nas entrevistas e que busquei por fim problematiz-las - no seguiro rigorosamente o tema nomeado em cada captulo por terem vindo em meio conversa com os entrevistados e por conterem em si outras questes inerentes ao assunto desta pesquisa. Entre essas estaro temas como: as questes particulares do aprendizado pessoal dos entrevistados; a relao entre desenho, memria e corpo; o processo de construo de poticas pessoais; o desenho na infncia dos desenhistas e; a relao entre desenho e pensamento.

III. Do processo de pesquisa

Em um primeiro momento, pensei em conversar indistintamente com pessoas que me relatassem sua experincia com o desenho, ainda que tivessem, por ventura, cessado seu processo no desenho ainda na fase escolar. Mas a dificuldade de se traar um plano de entrevistas com um nmero alto de pessoas sem o tempo necessrio para sua anlise me desviou dessa idia. Aos poucos fui definindo que as entrevistas seriam realizadas com pessoas ligadas intensamente prtica do desenho. A inteno de analisar o discurso de dez desenhistas foi focar a reflexo sobre pessoas que, exatamente por no seguirem a trajetria comum de cessar seu processo de desenho em certo momento da infncia podem servir de referncia para a compreenso dos processos de aquisio dessa linguagem; margem das estatsticas que poderiam vir a estabelecer como regra o caminho oposto ao dessas pessoas, busquei observar os sujeitos como autores de si mesmos - e as suas subjetividades como a base desta pesquisa. Ao definir meu mtodo com base nas entrevistas, precisei definir tambm um critrio para a escolha dos entrevistados, sendo que um recorte seria inevitvel e, no entanto, seria interessante que agregasse pessoas que pudessem me ajudar a verificar minhas hipteses a respeito do processo de aprender a desenhar. De incio, cogitei a possibilidade de conversar com arquitetos e at engenheiros para discutir o desenho em suas reas, mas logo percebi que, dado o carter pragmtico do desenho em tais campos de trabalho, seria mais difcil abarcar18

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os conceitos que eu vinha perseguindo em minhas leituras. Nessa linha de pensamento, pensei finalmente em conversar com artistas de reas ligadas diretamente ao desenho por crer na possibilidade de encontrar vivo, nesses sujeitos, o interesse carter essencial no aprendizado - no ato de desenhar, no sentido de buscar - qui hermeneuticamente - a histria pessoal desse interesse em cada um dos entrevistados. O trabalho se deu com dez desenhistas em momentos e meios bastante distintos. Defini previamente que buscaria para as entrevistas

desenhistas/gravadores em atividade, chargistas, ilustradores de livros infantis, ilustradores/quadrinistas e artistas urbanos que trabalhassem com grafite(spray sobre parede) a mo livre, ou seja, no somente com stencil (moldes). Nesse

caminho contatei inicialmente os desenhistas/gravadores Marcello Grassmann, Ana Elisa Dias Batista, a autora de livros infantis Eva Furnari, o chargista/designer Guto Lacaz (devo dizer que Lacaz no se identifica com a expresso designer e tampouco propriamente um chargista, mas mantive aqui esses termos - com essa objeo - por conta da dificuldade de definir sua rea de atuao no desenho), o jovem grafiteiro Paulo Ito, o desenhista e filsofo Eduardo Kickhoffel e o experiente ilustrador, quadrinista e professor de desenho Alexandre Jubran. Em meio a esse processo deparei-me com um aluno de meu prprio curso de desenho do SENAC, o desenhista no profissional Jos Glilton, um homem de 35 anos que trabalhava como vigilante noturno de um edifcio, mas que tinha um talento surpreendente em criar paisagens hiper-detalhistas com caneta esferogrfica; por conta de sua origem incomum e pouca escolaridade, tornou-se sujeito de meu imediato interesse em seu processo de formao e resolvi inclu-lo entre as pessoas entrevistadas. Achei tambm interessante entrevistar a artista plstica Maria Tomaselli por conta de sua direta ligao com o desenho, algo evidenciado em sua pintura. J a entrevista realizada com a artista e professora Edith Derdyk foi a nica realizada aps a qualificao de mestrado; por constatar sua importncia no lugar da discusso do desenho no pas e por seu belssimo trabalho acerca da linha expressiva, considerei importante um dilogo com Derdik sobre a concepo presente em suas oficinas de desenho e seus livros sobre o tema.

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Importante enfatizar que, segundo o mtodo desenvolvido neste trabalho, o desenho de cada artista aqui entrevistado contemplado em sua dimenso processual. Os traos, estilos e temas visveis em cada obra foram percebidos no contexto de histrias pessoais, sem as quais no poderiam se desenvolver. Busquei, desde o incio das entrevistas at a escrita final deste texto, ressaltar algumas questes que, durante o processo, pareceram se evidenciar por demais, e que foram igualmente se modificando medida em que eu me defrontava com percepes que as reforavam ou contestavam: o corpo como referncia para esse aprendizado, o aprendizado inspirado em outros desenhos e o gosto pela prtica de desenhar. Essas foram, alm de temticas descobertas no processo de pesquisa, tambm as minhas hipteses quanto aos possveis lcus de investigao e inveno pedaggica. Outra questo que aos poucos notei ser de grande relevncia foi a do papel da tcnica no contexto do ensino de artes. Desde apresentaes para o grupo de pesquisa que integrei enquanto preparava essa dissertao, pude constatar a dificuldade que essa palavra sistematicamente evocava relativamente minha pesquisa. Isso j me convoca a explicitar meu lugar de pesquisador. Lugar que, por exemplo, no de algum que defende ou ataca a influncia dos valores do neoclassicismo francs, que igualmente no busca a crtica ao olhar modernista e tampouco se pretende vanguarda esttica e educacional. Tambm por isso valha a pena fazer uma breve contextualizao desse posicionamento relativamente histria da arte/educao no Brasil. A chegada da misso artstica francesa4 no Brasil no incio do sculo XIX e toda sua decorrncia no processo da educao artstica no pas foi analisada por Ana Mae Barbosa (2006) em seu livro Histria da Arte Educao no Brasil fato histrico tambm relembrado na fala de Edith Derdik. Barbosa expressa nesse trabalho a forma como esse momento histrico levou imposio dos valores neoclssicos e da idia da arte como tcnica e representao; onde o ensino, pautado pela ideologia liberal e pelo positivismo, visava uma pura preparao ao trabalho ou pesquisa cientfica. Essa posio que sobrevalorizava a questo tcnica e seu ensino foi amplamente criticada e contraposta cerca de um sculo depois com o advento do4

Refiro-me aqui ao grupo de artistas e artfices franceses que aportaram no Brasil no incio do sculo XIX liderados por Joachim Lebreton e amparados pelo governo de Dom Joo VI introduzindo o sistema de ensino superior acadmico e os ideais neoclssicos no pas.

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modernismo em autores influentes como Victor Lowenfeld. Esse perodo acabou por desenvolver uma nova forma de se pensar a educao em artes, sobretudo pautada por um novo parmetro: o da auto-expresso ou livre expresso pessoal em detrimento da antiga idia de tcnica. Essa mesma concepo levou praticamente eliminao, no ensino de arte que, importante notar, na escola sempre esteve essencialmente ligada ao desenho do trabalho tcnico, ou seja, da compreenso das linguagens artsticas em sua dimenso de campo de conhecimento que envolve, dessa forma, uma histria de conceitos a serem apreendidos. No meu caso - ao buscar a discusso sobre as questes de ensino tcnico em consonncia com o gesto expressivo -, constato outro ponto de origem: o lugar de incerteza. Afirmo um lugar de incerteza, todavia no a incerteza como gesto de insegurana, mas, ao contrrio, como convico pedaggica e, porque no, esttica ligada preservao do mistrio em toda e qualquer reflexo cientfica sobre temas que envolvem arte e sensibilidade. Porque todo grupo para o qual eu pude ter a experincia de docncia acabou por modificar minha percepo como educador de mim mesmo; porque toda aula planejada era por fim modificada em forma e, algumas vezes tambm em contedo, a cada encontro e revelao de um novo grupo, que sempre um novo organismo com novo ritmo, nova harmonia, e precisa de novos tpicos. O bilogo Humberto Maturana (2005), eu seu livro Emoes e Linguagem na Educao e na Cultura definiu o conceito de linguagem como o domnio das coordenaes consensuais de conduta (2005, p.24). Para ele, a linguagem o elemento que nos une, e no algo a nos separar. Em consonncia com o pensamento de Maturana, eu tive, sim, a ateno para o trabalho pedaggico com as chamadas tcnicas de desenho ainda mais sob a real demanda dos alunos que buscavam o curso livre do SENAC -, contudo no sob o enfoque de algo meramente instrumental, mas como um primeiro convite compreenso das linguagens recorrentes na histria do desenho e como possibilidade de ampliao prtica do repertrio de aes envolvidas no conceito de desenhar. Estimular o esforo do aprendizado de conceitos e tcnicas sem bloquear o desenvolvimento da expresso do gesto pessoal de cada aluno o diapaso que no adquire frmulas e metodologias fechadas. Se assim for, melhor seria que no21

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houvesse escolas, nem mestres aprende-se melhor com sua prpria dvida do que sob uma certeza absolutista. O professor deve se abrir como sujeito de mediao entre expresso e tcnica, e que possibilita uma educao para a liberdade como na concepo do educador Paulo Freire (2007) onde no possvel a neutralidade: onde no se liberta, se oprime. Por fim, ainda sobre o mtodo desenvolvido por mim nesta pesquisa, relembro Descartes (1989) que, em seu famoso Discurso do mtodo, elabora um tratado filosfico onde sistematiza seu mtodo de pesquisa de maneira no doutrinria, mas como um relato de sua experincia. Dessa forma, espelho minha narrativa e reflexo nas palavras do filsofo que, em primeira pessoa como se ntimo de ns -, enfatiza que no espera criar um sistema que todos sigam como uma frmula, mas algo a ser recebido como histria ou fbula (1989, p.8).

IV. Do Ttulo Uma Histria ntima

Ao lidar com um tema que envolve a educao esttica, fui percebendo aos poucos que seria necessrio definir-me esteticamente no trabalho e comecei a realizar uma srie de leituras j em busca desse sentido a ser desenhado tambm e, sobretudo na forma. Nessa empreitada, houve um momento definitivamente marcante, no somente na definio do objeto de pesquisa como tambm sob esse outro aspecto igualmente importante para a fundamentao de minhas idias: a forma. Em meio leitura de diferentes textos ligados de maneira mais ou menos direta com meu tema de pesquisa, entrei em contato com um livro que teve importncia crucial para o desenvolvimento desta tese. Trata-se de Uma Histria ntima da Humanidade, do historiador Theodor Zeldin. Nele, Zeldin se utiliza de uma estrutura de texto bastante peculiar onde parte de entrevistas que realizou com uma srie de mulheres de diferentes meios na Frana para abarcar questes e a respeito de cunho histrico e ideolgico. O autor trabalha sobre o ponto de partida do olhar sobre a vida singular para a reflexo sobre a sociedade, a poltica e a cultura em si. Exemplifico seu mtodo pelo captulo inicial onde ele conta a histria de uma empregada domstica negra e de sua forma de pensar e agir em seu contexto 22

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suas relaes profissionais e afetivas - para traar um paralelo com a histria da escravido e da herana dessa ideologia. Cada captulo segue fluido, fazendo elos entre histria pessoal e geral. A leitura dessa obra me provocou o desejo de escrita e fez-me perceber que havia ali o germe de meu processo nesta pesquisa. Desse mtodo, inspirei-me para conceber o meu; e desse ttulo, lancei o meu: Uma Histria ntima do Desenho. O nome trouxe a mim o conceito que me faltava, sendo que eu, mais passarinho que ornitlogo, no poderia lidar com o tema do desenho esse vo que mais dana do que planejamento areo sem t-lo em vista como um belo mistrio antes que uma equao a ser resolvida. Tambm gostaria de, antes de iniciar os textos das entrevistas, justificar o subttulo - Sobre experincias de formao do desenho & dos desenhistas. Devo salientar que considerei importante referir-me aos processos lidos em cada discurso, como processos de formao dos desenhos e no somente a formao dos desenhistas -, sob a crena de que, junto habilidade de desenhar e potica desenvolvida por cada sujeito, forma-se tambm o desenho em si, entidade que se descola do autor, assim como suas impresses digitais e sua caligrafia elemento diversas vezes citado por diferentes entrevistados.

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2. DESENHO E CORPO

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Obra de Marcelo Grassmann (2003)

I. Marcelo Grassmann Vida e Sobrevida do Desenho

No dia 31 de dezembro de 2004, Marcelo Grassmann, um dos maiores desenhistas-gravadores da histria das artes brasileiras sofreu um derrame que lhe tirou a habilidade da escrita. Cerca de quatro anos depois, no apartamento no bairro da Consolao em So Paulo, onde mora e produz seus trabalhos diariamente, Marcelo me concedeu a entrevista. No incio, fora um tanto reticente em me receber por conta de sua condio de sade, mas - aps uma pequena conversa ao telefone - convenci-o da importncia de seu depoimento para minha pesquisa e pude perceber que sua retrica e repertrio estavam em forma e que a conversa fluiria facilmente entre ns. Mais do que simplesmente falar de seu processo como desenhista, Marcelo especulou sobre o processo do desenho em si, desde suas experincias prpria histria da tcnica. - E o desenho, Marcelo? perguntei-lhe eu.

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- O desenho est bem vontade como se eu no tivesse tido nada. Nada, no. Eu tinha... Eu at hoje tenho problemas com a mo direita. Esses dois dedos Marcelo explicou-me, mostrando-me o indicador e o anular - so os mais importantes e ainda funcionam. Eu j vinha tendo problemas de coluna que me deixou praticamente sem andar. E depois tive um derrame e da ento a memria foi pro brejo, a coerncia s vezes me falta, eu fico falando, falando, falando para dizer uma coisa. - Mas agora voc escreve? - No escrevo nada mais. Disse-me esquecer as palavras e, ao tentar escrever, deixa-as incompletas, faltando letras. - Saem defeituosas sempre. Marcelo me mostrou o pequeno caderno pautado onde rabiscou pela primeira vez, aps o derrame. Algumas pginas com diversas tentativas de escrita de palavras em linhas tortas so folheadas minha frente at que chega a uma pgina com um desenho que qualquer conhecedor de seu trabalho reconheceria nele a sua autoria no momento em que o visse. O desenho trazia uma imagem bastante familiar em sua obra, uma espcie de torso que parecia ter sido inspirado mais em esculturas gregas do que em modelos vivos. O rosto sugeria um tipo infantil, menos uma criana do que um anjo. Mas o mais pessoal era o trao que, ainda que realizado com uma rstica caneta esferogrfica, trazia a mesma densidade de seus desenhos de outrora. A densidade de trao que somente grandes desenhistas possuem. Passei minutos apreciando seus traos no pequeno caderno, cujas linhas um pouco trmulas me remetiam s garatujas que todo sujeito faz em sua infncia; porm como que se estas pudessem tomar vontade de smbolos naqueles rabiscos. Esse relato, logo no incio de nossa conversa, me trouxe claridade uma questo: a relao entre a formao do desenho e a condio estabelecida entre esse e o corpo do desenhista. Perguntei-lhe sobre o seu processo de desenhar. - Olha, como funciona o processo temos que discutir aqui, pois eu tambm no tenho a mnima idia do mecanismo do desenho. Mais ou menos, voc projeta alguma coisa. No meu caso, ou eu parto de alguma coisa, alguma informao visual ou eu no parto de nada e parto j do meu arquivo inseparvel que a minha26

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cabea, quer dizer, tudo que eu vi, que eu gostei, admirei durante anos e fui acostumando a viso ao grafismo, ao desenho. Agora qual o mecanismo... Perguntei-lhe se desenhava com constncia, se acontecia em momentos especiais do dia ou se era mais raro hoje. - Estou fazendo minha terapia ocupacional. Eu no posso sair, s quando algum vem me buscar e me leva para algum lugar. Fui ver uma exposio do Goya aqui no MASP e no deu para ver, vi meia dzia de coisas s. Estou limitado fisicamente, tenho 83 anos. L eu andava, ainda mais era obrigado a andar porque seno haveria atrofia. um problema que j surgiu h uns quatro anos atrs e que o medico atribui prpria posio de desenhar e de gravar. O peso da cabea quando voc fica assim o tempo todo desenhando ou gravando muitas vezes com uma placa de cobre que tem um peso maior. Voc tem uma alavanca no seu pescoo e a coluna vai pro brejo. E da atinge debaixo para cima, os ps ficam dormentes e... parece relatrio mdico, n? Mas para poder explicar. Disse-lhe que para mim era importante saber. At porque acabava sendo o seu ofcio de desenho a mexer em toda sua relao com o corpo. - Exatamente continuou Marcelo -, o neurologista dizia: voc pode criar uma disciplina. Eu disse no, no meu trabalho, no d. No d para relaxar, a concentrao que voc cria por vontade, no que voc obrigado a fazer. Vai fazer nada e ficar aposentado e acabou? Mas no, voc tem vontade fazer coisas e quando te d essa vontade, voc fica tenso. A fala inicial de Marcelo no se referiu ao seu processo no desenho em si, mas s conseqncias de seu ofcio de artista sua condio fsica; essas primeiras linhas me indicaram a importncia de se refletir a respeito da relao existente entre a formao dos desenhistas em sua rea e a experincia corporal presente na ao dessa linguagem - no h o desenho sem o gesto do desenhista e esse gesto oriundo da sensibilidade particular de cada sujeito em uma experincia de mente e corpo. Marcelo seguiu em sua linha de pensamento, a respeito da criao esttica, no somente no desenho, mas de uma forma geral. - No fundo, o mistrio da criao igual em todas as atividades humanas, porque voc tem uma idia, como um problema de encanamento, voc comea a raciocinar sobre aquilo e vai procurar a razo de como consertar e como ajeitar e como voltar tudo ao normal. E a mesma coisa, voc tem uma idia, gostaria de27

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escrever alguma coisa que tem vagamente um esquema na cabea e depois voc elabora em cima daquilo. Por exemplo, a semelhana do processo criativo em geral, tudo muito parecido. Eu estava vendo um manuscrito na TV do Joseph Conrad 5 e ele mostrava as pginas do manuscrito. Cada trecho que ele escrevia, de dez linhas ele cortava oito. Voc via que ele tinha cortado, ou porque ele tava reelaborando em cima da frase ou ele tava em cima da idia, no sei ou se deixando levar por coisas, e s vezes o camarada pra e tem uma idia para continuao ou no tem idia nenhuma, fica bloqueado e isso pode acontecer para qualquer um. Porque voc nem sempre disponvel como um burocrata que vai, senta, faz seu servio e vai embora. Ento quando que comea um desenho? Marcelo associa o ponto de partida de um desenho a uma idia que tem, e que lhe traz motivao para elaborar sobre ela. Diz que seu trabalho fruto de uma observao grfica que toda criana tambm possui. - Quando voc pega um livro ilustrado, comea a decifrar o mundo atravs das ilustraes, das imagens que voc nem sabe o que so. Marcelo contou-me que um dos maiores impactos visuais que, desde a infncia, foi com as ilustraes de Dom Quixote e da divina Comdia, ambas obras de Gustave Dor. Marcelo explica que sua grande produtividade somente era possvel por ser apoiado por um grupo de oito ou dez gravadores que partiam dos desenhos de Dor sobre a Matriz para fazer as gravaes, e isto explica a obra gigantesca do autor. - Portanto uma transposio que no exata; uma outra linguagem, no a linguagem dos desenhos dele, mas ele esboava e tinha uma idia, acompanhava o gravador, dizia: eu quero aqui um escuro, ele podia comandar a coisa e dava uma certa unidade porque, mesmo sendo gravado por varias pessoas, tinha o trao, o grafismo dele que era o equivalente, vamos dizer, tua assinatura ou a tua escrita normal.

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Escritor de lngua inglesa, autor de obras como O Corao das trevas

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Ilustrao de Dom Quixote por Gustave Dor

Nesse momento, Marcelo trouxe tona duas questes para o desenho: o desenho como ponto de partida para uma obra artstica e o desenho como caligrafia particular de cada sujeito. Marcelo referiu-se memria como um arquivo de imagens artsticas ou no - do cotidiano desde a infncia. A seguir, reflete sobre o sentido da ilustrao. - O Odilon Redon ilustrou Flaubert. Havia uma polmica na Frana sobre se a ilustrao deveria existir ou no. Dizia-se que a imagem do Dor em Dom Quixote exclui qualquer um de criar suas imagens. No fazer a ilustrao o artista pode dar sua interpretao e essa imagem ficaria cerceada por essa viso. Marcelo conta que quando estava na escola profissional 13 anos tinha aula de modelagem. Modelava uma fruta, qualquer coisa, em barro e passava ao gesso, era entalhador. Ornatos, estilos da renascena, poca que se usou muito o ornamento, coisa que vem da Grcia. - Voc pode fazer uma salada com tudo e pode servir como ponto de partida, da decorao ou algo que quebre a monotonia. A motivao o vazio que voc tem e sua cabea pensando. Voc tem um papel em branco.

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O artista remete a conversa ao incio do desenho na China, onde faziam tecnicamente uma folha com bambu. Explica como cada materialidade leva a uma linguagem particular. - Nas cavernas, o desenho de animais seguia um vocabulrio que seguia nitidamente a lgica de ver o animal no em sua totalidade, mas em suas partes. Se eles tem chifres, se tem patas, etc. O ser humano tinha uma srie de smbolos, sobre coisas perigosas que j deixavam gravadas na rvore, se algo era bom ou no - eram linguagens grficas. Marcelo fala da relao entre o desenho e a caligrafia, em linguagem j estereotipada como uma escrita cuneiforme. - Havia uma linguagem grfica contando uma histria por escrito. Mas j havia a inteno de fazer um mundo informativo pela ilustrao. Todo documento histrico serviu-se do desenho como base. Hoje voc tem no computador uma espcie de leitura absolutamente livre, voc pode desenhar sem um lpis ou uma caneta. Perguntei-lhe sobre seu prprio processo, sobre como comeou sua formao nas artes. - Aos doze, treze anos eu j tinha conscincia do que eu queria fazer. Na escola de entalhao havia uma biblioteca com livros que a gente consultava. Havia uma capa de Vesalius - que era o primeiro anatomista - com um Ado e Eva que me marcou. So imagens desenhadas que te provocam. O que voc tem mo o bastante para ficar interessado numa figura e na mensagem que ela traz. Joana Darc: voc v a imagem e te deixa interessado na histria. As coisas te dizem mais, no consciente ou inconsciente, te conduzem a procurar determinadas formas que j foram feitas. Como a Madona que vem sempre sendo feita, mas de varias formas. No um esquema, uma sopa de letras. Uma escultura grega que no mais grega e passa a ser romana. A civilizao traz uma interpretao da imagem que vai variando. Marcelo refere-se novamente follha de papel. - Muitas vezes, mesmo os pintores costumam sujar um pouco a tela para poder quebrar essa pgina em branco. Escritor tambm fica olhando para a mquina de escrever, hoje em dia pro computador. Mas fica olhando e no consegue escrever mais. Aquele papel em branco que no sabe nem por onde comear. Contou-me sobre a histria da moeda que havia em um livro seu.30

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- Voc tem a cara do Nero, depois uma outra cara feita no Egito. O retrato toma feies das pessoas que ele conhece. Os japoneses fizeram muitas gravuras da chegada dos portugueses. muito curiosa essa deformao cultural, voc vai da China para a frica e a imagem vai tomando uma feio do que o cerca, a deformao ou informao dada conforme a deformao de culturas diferentes. Voc quer representar um drago chins, qualquer osso de dinossauro encontrado no lugar serve para a construo da imagem. A fala sobre o desenho se inclinou a sua poro envolvida no processo de assimilao da cultura pelos povos. - Todo processo criativo envolvido culturalmente, visualmente e ao mesmo tempo o que bate nas pessoas no cotidiano. Voc tem alguns autores de fico que escrevem sobre o macabro, como Alan Poe. Voc l uma historia que ele conta de uma pessoa enterrada viva, isso uma coisa. Agora se voc l no jornal de algum que joga o filho pela janela, isso no tem nenhum valor, a no ser o de um fato que comove e incomoda as pessoas. Uma pessoa morrer de fome me parece ser mais absurdo que ser jogada pela janela. Perguntei-lhe sobre a relao entre seu trabalho modernista e sua formao clssica, sobre se teria havido uma descoberta desse modernismo ao longo de seu processo de desenvolvimento de sua linguagem pessoal. - Na verdade, aconteceu exatamente ao contrrio. Eu tinha a fantasia, at interessante. Eu assistia um filme de Walt Disney, o FANTASIA, onde tem um monstro, uma figura sinistra, que ilustrava uma pea de Mussorgsky 6 e na aula de modelagem eu resolvi, por conta prpria, fazer um monstro tambm. E o professor fez uma observao interessante. A gente fazia coisas decorativas e ele vinha e falava suas impresses para cada aluno. No meu caso ele disse voc livre para fazer o que voc quiser, mas eu no posso julgar porque o teu imaginrio. E eu entendo isso, ou voc participa ou voc rejeita. Voc no pode avaliar uma coisa que foge ao seu padro de esttica. Algum olha o Van Gogh e diz que o cara louco, mas o trabalho, a pesquisa de toda uma vida como esse no tem nada de louco, tem sim uma coerncia imensa, mas de um ngulo, vamos dizer extico,6

Refere-se ao momento final do desenho animado da Disney FANTASIA - que traz animaes ilustrando grandes sinfonias e que a pea Night on Bald Montain de Modeste Mussorgsky, compositor russo do sculo XIX ilustrada pelo demnio Chernabog que vive no alto da montanha, e na noite de Hallowen vem atormentar as almas do vilarejo.

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particular. Cada um tem seu ponto de vista. como em Rashomon7 do Kurosawa que cada um conta sua verso de uma histria. Todo documento emocional possui suas deformaes normais. Marcelo tambm retomou a questo pessoal do desenho e referiu-se quilo que considerava uma dimenso narcisista do aprendizado, onde se tem a si prprio corpo fsico - como modelo e pretexto constante para a arte; desenha-se pois o prprio p, mo e rosto, diferentes dos outros. - Cada um que desenha um modelo d sua verso particular. Um d uma viso mais despojada, o outro, uma mais caricata. Outro traz uma coisa mais ertica, para outro interessa a composio, o esquema, o estilo. Marcelo se espanta como hoje se pode ter acesso a toda a histria da imagem em seu computador. Perguntei-lhe, nesse ambiente de globalizao, como ele via o lugar do desenho na vida das pessoas. Marcelo disse perceber que a quantidade de informao visual de hoje incrivelmente maior e que sabe que crianas copiam personagens de desenhos animados e filmes; no entanto, observa que existe algo na inclinao das pessoas para cada atividade, do desenho ao jogo de xadrez que no se explica na cultura, mas se revela no sujeito. Citou-me pessoas que conheceu com um ouvido musical absolutamente bem desenvolvido e pouqussimo interesse pelas artes visuais. Indaguei a Marcelo se pensava o desenho como uma rea especfica de inteligncia. Ele respondeu que no pensava dessa forma e compreendia o ato de desenhar mais no sentido de uma especializao iniciada por uma sensibilidade particular e individual. Comparou sensibilidade de um musicista de diferenciar aspectos de tcnica e estilo de violinistas ou a arquitetos capazes de avaliar um prdio. Argumentou que, se fosse por sua inteligncia em si, poderia ser capaz de perceber as coisas em outras linguagens das quais no tem intimidade. Marcelo refletiu em certo momento sobre a questo do talento e da criao de obra entre artistas. - Voc pe dez pessoas que gostam de pintar, quantas delas vo ser pintores? Entre esse que vo ser pintores, quantos realmente tero valor? E esse valor um valor subjetivo? um valor de mercado?7

Filme de Akira Kurosawa baseado em dois contos de Rynosuke Akutagawa e que tem uma estrutura de narrativa no-convencional, narrando um crime a partir de quatro testemunhos diferentes.

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Marcelo enfatiza que a avaliao de uma obra depende da formao e da cultura do sujeito, e que no se refere a esses termos como algo ligado sua suposta erudio, mas ao meio em que se formou e respectiva lgica vigente. - Se fosse por causa de lgica, o pessoal todo primitivo seria jogado fora porque eles so absolutamente ilgicos quanto tridimensionalidade e a fidelidade quanto temtica. Marcelo explica que o apartamento em que mora , na realidade, uma oficina constantemente desarrumada e que assim deve permanecer. - Se eu arrumar, no outro dia no encontro nada! Referiu-se a duas questes da arte e de seu aprendizado: a criatividade a tcnica. Marcelo expressou-me acreditar que a criatividade seja algo muito relativa, associada ao repertrio de influncias. Sobre sua tcnica, foi categrico em expressar: - No minha. como se eu estivesse usando um dicionrio... No obstante, logo em seguida fez a contrapartida de seu argumento, explicando que o mtodo pessoal acaba obedecendo a outros processos que escapam maneira como se aprendeu. - Voc intui, tudo intuio. Voc no se programa. Voc at pode se programar, mas pode no dar certo. Marcelo compreende a tcnica como uma busca pessoal dentro de um repertrio de metodologias vivenciadas anteriormente. Tambm argumentou que a tcnica a maneira de lidar com as caractersticas do meio em si em que as questes histricas so muitas vezes pontos determinantes para a evoluo de cada tcnica. Citou o inventor Cont - Nicolas-Jacques de Cont -, que deu nome ao notrio lpis de desenho, nascido em 1755, na Normandia, Frana. - Foi na poca Napolenica que a Inglaterra cortou o estoque (para a Frana) de uma pedra de grafite. Ento eles ficaram sem lpis. Esse Cont, muito vivo... Ele inventou, reinventou o lpis. Usou argila com algum pigmento e fazia brotinhos para escrever e desenhar. Perguntei-lhe sobre uma fala sua que eu havia lido em certa entrevista em que dizia que, a despeito de seu trabalho modernista, o primeiro contato com a pintura de Van Gogh, na poca em que cursava a escola de entalhao, no lhe agradara.33

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- Era uma linguagem que eu no estava acostumado. O que eu gostava era acadmico. Nesse momento expressou dialeticamente sua relao com a escola acadmica e clssica onde havia se formado na juventude. Citou uma afirmao de Picasso em seus ltimos anos que dizia que era uma pena que a academia se acabasse por ser capaz de gerar um antagonismo contra sua repetitividade. Compreendi em sua fala que a importncia do ensino de uma tradio poderia se fundamentar na prpria possibilidade de se rebelar contra ela. Marcelo no parte nunca de modelos, desenha essencialmente de memria. Aps a segunda hora da entrevista, Marcelo mostrou-me alguns de seus trabalhos recentes. Entre eles, alguns corpos nus acompanhados de imagens de caveiras e esqueletos estilizados. O desenhista brincou que poderia ser algo associado ao seu momento de vida. Disse-me no ter nenhuma previso em expor esses trabalhos de sua ltima safra. Marcelo confessou-me que andava muito interessado na produo de alguns artistas nas fases que precederam suas mortes; como exemplo, mostroume os ltimos desenhos de Goya. Marcelo me pareceu compreender o processo do artista acima do processo histrico da arte de seu tempo; ou seja, antes de entender o processo do artista a servio de escolas ou cobranas estticas do modelo vigente, Marcelo referia-se aos caminhos trilhados pelos artistas como processos pessoais fundamentais para a construo de sua obra. Uma de suas ltimas frases me trouxe com fora essa percepo: - Eu no sei se (como artistas) a gente regride ou progride. Mas s vezes a regresso mais interessante do que a progresso.

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Grafite de Paulo Ito

II. Paulo Ito O Aprendizado do Espao

Aos 11 anos, Paulo Ito teve uma doena - chamada de Sndrome de GuillainBarr8 ou polirradiculoneurite - que lhe deixou um ms sem andar e seis meses com srias dificuldades de locomoo. Aps essa poca realizou atividades em fisioterapia por muitos anos, algo que, em sua prpria impresso, ajudou muito a desenvolver sua percepo sobre o espao, o corpo e a aplicao em seu desenho. - A fisioterapia me deu muita conscincia do corpo, dos movimentos no espao. Anatomia, corpo humano. A habilidade figurativa do paulistano Paulo pode ser vista hoje em diversos muros da cidade de So Paulo. Praticamente feitos todos de memria. Realizou uma srie de trabalhos em que desenhava figuras femininas a fase das mulheres, como Paulo denomina - expe sua fluncia no corpo humano. Sobretudo um detalhe

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A sndrome de Guillain-Barr ou polirradiculoneurite aguda definida como uma inflamao aguda com perda da mielina - membrana de lipdeos e protena que envolve os nervos e facilita a transmisso do estmulo nervoso - dos nervos perifricos e, por vezes, de razes nervosas proximais e de nervos cranianos.

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na construo de seus desenhos o diferencia em meio ao cenrio do grafite: a criao de cenrios em perspectiva. Paulo diz que a me lhe conta de seus primeiros desenhos. - Comecei no abstrato! brinca Paulo se referindo s garatujas da primeira infncia. Diz que passou ao figurativo a desenhar figuras -, mas que, curiosamente, retornou ao abstrato por influncia de um amigo de classe no prprimrio, aos cinco anos. Contou-me que, pouco depois, nesse mesmo perodo, comeou a desenhar buscando a perspectiva, buscando assimilar sua tcnica j nessa fase de vida pictrica. - Crianas desenhavam carro com duas frentes. Eu achava errado... Aos dez anos, comeou a fazer um curso de pintura com a artista Patrcia Mattoso e que, nos finais de ano, faziam exposies no Museu de arte Moderna (MAM). Morou um tempo na Itlia. A me arquiteta. Recorda-se do av que se espelhava na arte acadmica, esculpindo mulheres na areia da praia. Essa pode ter sido uma referncia inicial para seu trabalho com desenhos de mulheres que deu a Paulo certa notoriedade no meio do grafite. - Mas eu s me lembrei disso s depois que ele faleceu. Nunca teve aulas de desenho tridimensional, mas costumava pensar constantemente em como as coisas se distribuam no espao. Paulo contou-me que o seu processo de desenho foi sempre muito autodidata. Teve, entretanto, uma parceira na infncia. - Desenhava sempre com minha irm. Ela virou cengrafa. Era uma parceria, meio que competio. Paulo tinha a idia de um dia vir a projetar automveis. Paulo me disse ter comeado desenhando paisagens, florestas, cenas medievais e que esse repertrio apareceu mais tarde no grafite. Sua irm desenhava coisas de menina. O desenhista enfatiza o fato de, em seu processo de formao do desenho, nunca ter copiado outros desenhistas. Tinha conscincia de sua individualidade artstica desde criana. - Eu nunca copiei. Achava mais legal (no copiar, desenhar de memria). Pensava que isso podia influenciar meu trao. As aulas de arte na escola eram muito livres, no havia aulas tcnicas.36

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- Era agradvel o fato de ser livre, para mim que no gostava de copiar. Acredita que o aprendizado do desenho com cpias de desenhos poderia dar resultados mais rpidos. Tinha um colega de turma que copiava muitos desenhos e que acabou certa poca se destacando mais do que ele na escola. - Ele produzia mais e ele tomou meu lugar... ri Paulo. Confessa ter - mesmo sem a prtica da cpia - muita influncia de Egon Schiele. Perguntei-lhe se tinha algum mtodo de trabalho no desenho atualmente. Disse-me que comea projetando tridimensionalmente a figura. - Primeiro eu posiciono tudo no espao em 3D antes de comear. Alguns artistas (no meio do grafite) no encaixam bem a imagem em 3D por praticarem apenas colagens. Mas se no estiver bem encaixado, quem olha vai se sentir incomodado. uma abstrao primeira. Retomei a questo inicial do tratamento de sua doena com a fisioterapia. - Fiz cinco anos de fisioterapia por preocupao de minha famlia e principalmente de minha me. Fiquei doente em 89, o tratamento se estendeu por muito tempo. Talvez de maneira desnecessria. Fiquei seis meses mancando. Aos onze anos! Um ms sem andar e seis meses andando muito pouco. E muito mais tempo ainda andando torto. Repetiu-me que o perodo de fisioterapia lhe ajudou a perceber o corpo e o espao. - Uso pouca referncia para figura humana. Paulo pensa no desenho como criao mais do que como algo da memria. Diz que uma das atividades que realizou em sua educao do desenho mais importantes nesse sentido foi um curso de histrias em quadrinhos que fez na adolescncia. Comeou aos onze anos, mas precisou para por conta de sua doena. Depois retornou aos treze e seguiu at os quinze anos. Contou-me que era uma oficina bastante aberta em termos de estilos e era realizada por um desenhista chamado Domingos Takeshita, o Take. Era colega de garotos que se tornaram profissionais e desenhistas hoje famosos como Fabio B e Gabriel Moon. Nessa poca desenvolveu sua criao, precisou aprender a pensar cenas. Ainda guarda alguns desenhos dessa poca, mostrou-me uma delas em que buscou mesclar diferentes linguagens. Will Eisner sua maior influncia nos quadrinhos.37

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Alguns de seus trabalhos realizados hoje so feitos somente no momento do grafite e no sofrem retoques posteriores. Uma de suas caractersticas mais evidentes e que o diferencia em estilo da maior parte dos grafiteiros o trao com a tcnica de perspectiva evidente. Comentei-lhe que o trao lembrava o do cartunista Laerte, com o que Paulo disse-me ser comum a comparao. A linha est sempre muito presente, preta e vigorosa. - No final, acho que eu sou um desenhista. A cor no vem primeiro, o trao vem antes. No final voc faz o que gosta. Paulo comeou a trabalhar paredes como suporte de seus desenhos em 1997, por insistncia de um amigo. - Achei que no ia dar certo. Somente trabalha em lugares autorizados. - J fiz em lugares proibidos, mas pouco. J at tomei um soco da polcia. Mas no a minha. Durante um tempo deu aulas de grafite para organizaes no

governamentais. Porm no se adaptou docncia dessa linguagem. - Eu no acho que sou bom professor. Tudo era muito livre. Alguns tm dificuldade de lidar com liberdade. Os moleques faziam o que queriam. Se faziam o Dragon Ball, eu perguntava porque voc escolheu isso? Quer usar esse trao, ok, mas muda o contexto, eu dizia. Tentei provocar um pouco. Eles no tem muita informao. Mesmo diversos artistas do grafite so ingnuos. Querem agir contra o sistema, mas usam as letras com um tipo de sombra de formas padronizadas, que voc v na embalagem de Sucrilhos. Na logomarca do Nescau. ingnuo ser contra o sistema e usar a mesma linguagem dele. Imagino que se possa usar uma letra estilizada, mas agressiva. No adianta fazer uma escultura de protesto em ouro, tem que fazer em merda. Tem que fazer com piche, com madeira queimada. Explica que seu meio traz uma arte com poltica. - A arte contm uma poltica. Quando o cara est fazendo a letra, ele est sendo publicitrio de alguma coisa. provocar, afinal. No seguindo o padro que se vai conseguir isso. Paulo contou-me que em sua educao nada foi imposto. Tenta trazer elementos de outras vertentes para a pintura na rua. Influncia da histria em quadrinhos aparece. Mas no um grande leitor de quadrinhos.38

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Teve a oportunidade de cursar a faculdade de Artes Plsticas na Unicamp, em Campinas. Essa formao acadmica, no to comum no grafite, trouxe-lhe novos elementos. - Meu ingresso na faculdade comeou no terceiro colegial quando eu percebi que eu no conseguia entender o lado de exatas. uma abstrao que vai alem da minha f, no consigo fechar os olhos e acreditar. No consigo seguir uma frmula. Eu nem queria fazer faculdade. No gostava de ir para a escola, no acreditava naquilo. Entrei cedo na Unicamp com dezoito anos. Pessoas gostaram muito do meu desenho e fiquei meio metido. No me desviava do meu foco. Aprendi coisas que eu no levava muito a srio tambm. Foi bastante difcil no final. Na faculdade, confessou que se aplicou pouco nos primeiros dois anos, porm seu desenho estava ativo: fora das aulas. - Eu conseguia enganar, pois gostavam do meu trabalho. Eu via uma pouco de aula e ia para a cantina. Ironicamente desenhar meus esboos, que faziam mais sentido para mim. Disse-me que em 1999 teve conflito com alguns professores por razo da demanda que esses faziam de uma exposio terica sobre o trabalho. - Eu falava muito pouco. Hoje em dia eu falo, mas antes eu no era a fim de me expor dessa maneira. Eu no estava preparado para isso. Perguntei-lhe sobre o trabalho reflexivo em sua obra. - Para mim, a mo pensou antes do crebro. preciso ter integridade quando se expe to integralmente. Paulo contou-me que tem contato com pessoas do grafite. Entretanto, diferentemente das origens do grafite ligadas ao movimento do Hip-Hop que uniam como seus quatro elementos o Rap, o DJ, o Break e Grafite -, no circulo do grafite paulistano h pouca ligao com as comunidades do hip-hop. Paulo disse que sua fase das mulheres foi uma pesquisa esttica, mas que cada vez mais se aproxima do trabalho que une seu desenho ao conceito. Hoje diz que muda um pouco o rumo de seus temas.

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- Banksy9 no tem estilo nenhum, conceitual, stencil10. Blue tambm desenha muito, mas tem muito contedo. Eu vou cada vez mais pro pensamento, mas meu trabalho desenho. Recentemente Paulo produziu junto a outros artistas - em parceria com o estilista Joo Pimenta no projeto Parcerias estampando algumas roupas com seus desenhos. Nesse trabalho, buscou idias interessantes, mais do que meras estampa. Uma das camisetas produzidas por ele traz uma bandeira do Brasil mal feita, com o escrito Amanh eu fao. Em outra a frase Je sui (Eu sou em francs), um trocadilho com a palavra Jesus. Esses trabalhos ele pensou por uma semana e executou em dois dias. Disse-me que pensa e desenha ao mesmo tempo. Todavia no desenha todos os dias, nem me disse ter uma disciplina rgida de trabalho. - Se desenhar o dia inteiro eu vou me irritar e nunca mais desenho. No dirio. Paulo diz que no se considera sequer um grafiteiro, mas que somente usa a tcnica do grafite para trabalhos. V-se primordialmente como um muralista, primordialmente um artista que prefere se abster de rtulos. Ao mesmo tempo, relaciona-se bem com outros grafiteiros. - A relao com outros artistas de rua melhor do que nunca. No grafite interessante, pois as pessoas se influenciam muito, especialmente os mais novos. J tem gente fazendo coisas parecidas com as minhas. Na faculdade Paulo usava aergrafo11. Comeou a usar spray em 2000. Ao comear a freqentar o ncleo do Aprendiz, teve acesso ao material usado no grafite. Aps a faculdade, veio para So Paulo e comeou a pintar portes de comrcio, ganhando cerca de 300 reais por ms. Paulo me confessou no ter encontrado espao para conversa com outros artistas, trilhou seu caminho esttico de maneira bastante solitria. - Sou uma pessoa suficientemente arrogante para manter meu individualismo no meio. Minha exposio mais recente trata do vandalismo, mas pessoas no

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Robert Banksy, artista de rua ingls, famoso por suas intervenes polticas nas paredes de diversas cidades no mundo. Alguns de seus trabalhos valem hoje mais do que as casas onde foram pintados. 10 Refere-se tcnica em que no se desenha a mo, mas usa-se um desenho pronto como modelo para se criar moldes que serviro para o grafite com sprays. 11 ferramenta de pintura com moldes que utiliza uma tcnica de uso do fluxo de ar associado tinta.

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querem necessariamente consumir isto. Minha exposio anterior, das mulheres, vendeu muito mais. Mas eu me sinto forte em saber que eu fiz isto e no morri. Paulo disse-me que o profissional tem funcionado, j tendo feito painis comerciais com desenhos populares como das meninas superpoderosas ou da Branca de Neve. - Sempre fui o cara dos diversos traos. Se eu puder negar um trabalho desses eu nego, mas s vezes aperta. Nunca corri atrs de um estilo nico. Minha liberdade de traos me ajuda a pagar as contas. Mas aqueles trabalhos autorais no eram passados para mim, por eu ser chamado para trabalhos mais tcnicos. Uma de suas falas me chamou muito a ateno para o conceito de arte de hoje e a confuso de significados que essa palavra costuma trazer. - O grafite na cena da arte uma proposta nova. O acadmico de hoje a herana de Duchamp, conceitual. E a volta ao figurativo, na arte de rua cabe conceito, funciona. Mas as galerias da nova velha arte acadmica tm medo. O Brasil pssimo lugar para pioneiros. Se no for reconhecido na Europa, no encontram espao aqui. S depois que os caras esto no MOMA. a parte do pas que ainda colnia. Os generais de escrivaninha so totalmente medrosos e formalizados, infelizmente. Refere-se arte conceitual como a velha nova arte e, mais alm, classifica a arte conceitual estimulada e produzida nas faculdades de arte como arte acadmica, termo outrora usado apenas para designar uma maneira de fazer arte ligada pintura at o sculo XIX. O desenho de Paulo faz parte de uma classe artstica de resistncia; a resistncia, por um lado ideolgica, e por outro, tambm a resistncia de uma forma de arte desvalorizada nos circuitos de arte. Longe de telas e de instalaes, seu suporte o muro. O que, de certa forma, tambm gera uma forma de instalao, em contraste com a cidade em movimento, remetendo qui s pinturas rupestres que eram no apenas desenhos ldicos pelas paredes, mas tambm espcies de templos. Assim, pude constatar na trajetria de Paulo Ito um processo de desenho profundamente ligado questo do corpo, desde a afinidade com o trabalho de perspectiva tcnica desenvolvida na renascena e que traz o corpo do sujeito

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como ponto de vista central

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- sua doena que o levou fisioterapia e o levou a

apurar seus sentidos com relao ao corpo e materialidade sua volta.

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Em contrapartida perspectiva isomtrica que no estabelecia um ponto de vista centrado no sujeito. Esta tcnica, bastante comum em gravuras japonesas, condizia com a ideologia da antiga sociedade oriental no centrada no sujeito, mas na idia de comunidade e no poder do Estado.

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Desenho de caneta esferogrfica de Jos Glilton

III. Jos Glilton Desenho de Memria e Memria de Desenho

Jos Glilton trabalha como segurana em um edifcio no Centro de So Paulo. Ele passa vrias horas em sua guarita todos os dias - boa parte do tempo desenhando paisagens. Em caneta esferogrfica. - Desenho com caneta BIC, desde que cheguei aqui. Descobri, era fcil de encontrar.

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Glilton veio para So Paulo do Cear aos dezenove anos. Aos trinta e cinco, divide o trabalho como segurana com o ofcio de desenhista: realiza desenhos por encomenda. Animais, paisagens urbanas, retratos. Teve alguns de seus desenhos expostos em alguns lugares como a Faculdade Armando lvares Penteado (FAAP). Conheci Jos Glilton no curso de fundamentos do desenho artstico que

ministro no Servio Nacional de aprendizagem (SENAC). Glilton havia obtido bolsa integral para o curso. Glilton lembra-se de ter comeado a desenhar aos sete anos. Tem a exata lembrana de um desenho que iniciou sua maneira de trabalhar. Uma professora dessa poca lhe pediu para desenhar o lugar onde morava na roa. Fez ento um desenho de uma fazenda com vacas comendo capim. - No tenho mais esse desenho, mas me lembro perfeitamente. Perguntei-lhe se conseguiria reproduzir o desenho ainda hoje. - Quando voc quiser. Glilton costumava desenhar sempre sozinho. - Minha me era professora do municpio, eu lia bastante. Livros, jornal notcias populares. Livros de historias infantis, Aos oito anos, passava horas desenhando cachoeiras, campos, sempre paisagens. Um detalhe: todos os desenhos so de memria. Nunca fez desenho de observao, parar diante de algo e desenhar. Criou uma relao com o espao. Vivia solto olhando a serra. Tinha por fim o gosto por desenhar. -Eu amo desenho! - Voc pensa antes de fazer os desenhos? -A gente pensa, todos pensamos, eu tambm penso. Eu tenho um monte de idias. Glilton me mostrou um desenho seu em uma folha de papel canson A3, todo realizado em caneta esferogrfica azul. A quantidade de elementos e linhas entrelaadas compondo tramas e texturas das mais diferentes qualidades visuais me deixou bastante espantado. - muito trabalhoso fazer um desenho desses mostrando um detalhe do seu trabalho levei 36 horas para acabar. -No sei se voc percebeu os detalhes do meu desenho, mas olha o trabalho que deu para fazer isso tudo.

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Aprendeu sozinho. Nenhum de seus familiares desenhava. Nunca teve oportunidade de estudar desenho, nem ao menos tinha um meio em que a arte ou mesmo as referncias grficas fossem muito ricas. Glilton diz que tem uma maneira de medir a qualidade de seu desenho. Gosta de, ao finalizar suas obras, tirar fotografias delas em cmeras digitais. -Se o desenho sai bem na fotografia, ento ele est bom. Eu gosto do meu trabalho porque ele bem real. Todos os meus trabalhos eu compraria regozija-se Glilton. Como em muitos casos, a despeito de Glilton no possuir formao sistemtica na rea artstica, a sua prtica de tantos anos fez com que apurasse sua prpria teoria esttica em dilogo com sua poca. A percepo de Glilton sobre a fotografia de seus desenhos me remeteu ao texto famoso de Walter Benjamin (1996) A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica em que o filsofo desenvolve o conceito de inconsciente ptico como as formas visuais no percebidas pela mente, mas captados pela fotografia. Glilton contou-me que o pessoal do prdio onde trabalha comeou a se enciumar com a ateno que est chamando com seu desenho. Disse-me que pretende aprender a lidar com informtica, com programas como photoshop e corel draw13. Seguiu demonstrando-me o apreo que tem por seu trabalho. Indica pedaos de seus desenhos em que v grande complexidade. Glilton expressa

constantemente seu orgulho com o desenho que realiza sem nenhuma formao na rea. Busquei, em minhas questes, compreender como se dera seu aprendizado inicial do desenho e perguntei-lhe diversas vezes sobre suas primeiras fontes de imagens. Depois de insistir na questo algumas vezes - sob a resposta constante de Glilton de que no havia nenhum comeo, que apenas havia meramente comeado a desenhar bem -, o artista revelou-me um fato que me trouxe alguma indicao nesse sentido. Glilton havia crescido por entre as montanhas e que, na serra, passava muito tempo observando paisagens fundas.

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Dois softwares comumente usados em ilustrao digital.

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Glilton, de famlia de muitos irmos e casa modesta, passava quase todo o dia no campo, e se criou em uma relao com a natureza, no meio da natureza. Tinha intensa relao com o meio da regio serrana. - Bem no fundo podia ver o mar azul, bem azul, s um fio... Argumentei-lhe que estas vises podiam ter lhe servido para constituir o repertrio de desenho de paisagens em perspectiva. - , pode ser. Eu amo perspectiva. Pensei ali que sua habilidade de criar texturas to diversas poderia ter relao direta com a quantidade de coisas da natureza de paisagens abertas com que conviveu boa parte da infncia. Ao mesmo tempo em que apresentou virtuosismo ao desenhar paisagens e cenas em perspectiva, demonstrava certa dificuldade com rostos e corpos humanos, elementos que no costumava desenhar e que costumava evitar nos desenho que fazia por no saber muito bem como fazer. Glilton no esconde a insatisfao de trabalhar fora da rea do desenho. Trabalhou, desde que chegou a So Paulo, como auxiliar de escritrio, frentista de posto de gasolina, faxineiro e agora vigia. - Mas eu sempre soube que esse no o meu lugar. Um arquiteto que o conhece disse-lhe para mostrar seu trabalho a instituies e comear a divulg-lo. Disse-me que cada vez mais pessoas tm visto e se admirado. Para complementar seu oramento, vende desenhos, apesar de ter certo apego por vrios deles. - Vendo desenhos por cem reais. - Esses trabalhos das pontes, quanto custam? aponto para um deles que retrata um viaduto com um mendigo se alimentando, em que me chama a ateno a tcnica de perspectiva e de luz e sombra. - Esses eu acho que no quero vender, no... Glilton bastante religioso, um cristo dedicado. Em 95, um pouco depois que seu pai morreu, Glilton foi para a Amaznia e viveu dois anos como missionrio em quatro estados, ensinando o Evangelho. Perguntei-lhe se j havia ensinado desenho tambm. - No, isso no. Isso eu carrego comigo. Glilton me disse no saber como descobriu a relao com paisagens e perspectiva.46

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- Apenas descobri. Sempre gostei de observar as coisas. Eu vejo nibus, avies e fico olhando o formato deles. No olhava desenhos, pois no tinha TV. Gostava de ler revistas e jornais. Perguntei-lhe de onde achava que vinham aquelas imagens. - Vem de mim, da minha cabea. Glilton resiste idia de ter incorporado imagens de algum lugar. Cultiva a idia de que seu repertrio no se fez a partir de nenhuma fonte, alm de sua prpria capacidade de criar desenhos. - Eu nasci com isto, desenvolvi isto. um dom de Deus. Espera mudar de condio de vida com o talento que Deus lhe deu.

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IV. O Corpo e a Memria de um Corpo

Os trs desenhistas primeiramente apresentados aqui trouxeram a esta pesquisa, por diferentes pontos, uma questo que se tornou central para a minha compreenso acerca dos caminhos a serem investigados: a relao intrnseca entre desenho e corpo. Marcelo Grassman e Paulo Ito trouxeram, de maneira quase oposta, a questo das aes e conseqncias sofridas pelo corpo a partir do esforo do desenho no caso de Marcelo - e, igualmente, do desenvolvimento do desenho a partir de certas condies dadas ao corpo no caso de Paulo. Grassmann, mesmo perdendo parte de suas faculdades cognitivas como a habilidade da escrita -, teve seu desenho intacto. Isto provavelmente ocorreu por razes neurofisiolgicas, acerca da parte do crebro afetada pela isquemia e que no me sinto em condies de incorrer a respeito. Todavia, suponho que isto esteja ligado ao fato de a prtica do desenho no ser ligada diretamente parcela intelectual da mente que cuida de nossa razo sistemtica, ou seja, a questes ligadas s nossas inteligncias lgicas e cartesianas, ou aos nossos sistemas lingsticos. O maior aprendizado do desenho, mesmo que se d por meios sistemticos no se funda essencialmente na lgica presente em equaes matemticas ou nos idiomas aprendidos em ambientes escolares notemos que Marcelo no perdeu a faculdade da fala, apenas a da escrita, e todos aprendemos a falar por imitao e no de maneira estruturada didaticamente. Alguns neurologistas qui explicariam que se trata de uma regio do crebro no afetada, o lado esquerdo que supostamente comanda nossas aes racionais.48

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O livro Desenhando com o lado direito do crebro (2003) de Betty Edwards baseou-se nas leituras das teorias de psicobiologia de Roger W. Sperry a respeito das funes dos hemisfrios cerebrais humanos um lado verbal, analtico e seqencial e outro, visual, perceptivo e simultneo, tornando-se famoso e sendo utilizado em diversas escolas. importante ressaltar que algumas pesquisas atuais sobre o crebro contestam essa teoria e afirmam que o crebro no funciona como um mapa, mas um todo que se organiza. Mais tarde, Betty Edwards lanaria edio revista e ampliada em que dizia perceber certas mudanas em sua maneira de conceber o ensino e respondia a certas crticas acerca de seu texto. No prefcio dessa nova edio, Edwards admitiu que seu mtodo no contemplasse o desenho em seu carter maior de expresso artstica, mas que serviria como treinamento da percepo para um desenho realista de observao - realizado a lpis e papel. Ao mesmo tempo em que considero louvvel ou esforo de professora de Betty Edwards, no me alinho com a direo que toma seu mtodo, temendo no mesmo a idia de separao entre intelecto e sensibilidade. Sem compreender os processos envolvidos no desenho expressivo, o mtodo se configura por meio de um conceito pobre de tcnica, em que apenas um aspecto tcnico a cpia - estimulado e pouco se avana para um entendimento mais pleno do desenho como manifestao esttica. Entendo que, em arte, a viso da tcnica fora da expresso se assemelha idia do corpo biolgico fora da cultura. Na compreenso construtivista de Jean Piaget (1990), o conhecimento no pode ser compreendido somente no sujeito-organismo (inatismo) e tampouco no objeto-meio

(ambientalismo), mas decorre das aes constantes entre os dois. A compreenso sistmica das coisas que comum na cincia contempornea da fsica moderna gentica nos ajuda agora a compreender o corpo como algo indissocivel de sua histria pessoal e arcaica, e tambm pode nos servir para uma re-significao da palavra tcnica. O desenho uma expresso possibilitada pelo gesto de um instrumento riscante sobre uma superfcie minimamente plana; e para tanto, a nica condio necessria o corpo capaz de impulsionar seus gestos; uma habilidade ligada memria de um corpo. Poderamos nos referir regio do crebro ligada memria de tais e tais aes do corpo humano ou buscar na medicina referncias para uma maior compreenso desses processos, mas seria impossvel buscar definir aqui as reais implicaes neurolgicas envolvidas nessa afirmao. Basta-me a49

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compreenso de que o desenho desenvolvido a partir de algo maior do que um olho que v e uma mo capaz se expressar em linhas. O olho, assim como a mo do desenhista, so sistemicamente ligados ao corpo do desenhista - passando pelo brao, ombro, tronco at o crebro e em constante relao com o mundo que nega e alimenta sua percepo de si mesmo. O erro pessoal de Degas

No livro Degas Dana Desenho, Paul Valery conta um dilogo que teve com Degas e cita a frase proferida pelo pintor impressionista: o desenho no a forma, mas a maneira de ver a forma (2003, p.159). Em contraposio idia de representao fidedigna dos objetos - que Degas chamava de Pr no lugar o artista trazia o conceito de desenho, em suas palavras a alterao particular que o modo de ver e executar de um artista impe a essa representao exata, aquela que o uso da cmara clara daria14, por exemplo, (2003, p. 160). Degas dizia que somente por esse tipo de erro pessoal (2003, p.160) que a representao realizada por meio de traos e sombras poderia ser chamada de arte. Nessa linha de pensamento a sugesto do desenho como mera representao e que os ideais neoclssicos introduzidos pela misso artstica francesa serviram para reforar seria certamente um grande empobrecimento da questo. Como se um mtodo que se propusesse a ensinar pessoas a fazer caricaturas pudesse ser chamado de o desenho. A representao naturalista ou hiper-realista apenas uma das formas em que o desenho se fez na histria. Tambm o desenho est associado forma como a cultura o assimila (algo explicitado no conceito de desenho cultivado de Rosa Iavelberg e que discutirei em captulos a seguir) -, mas, sobretudo forma como um corpo capaz de se desenvolver nessa linguagem diante da cultura. O erro pessoal descrito por Degas sempre oriundo de um corpo errante. Os cdigos do desenho se mantm, assim como os gestos de uma pessoa que acorda, sua forma de se mover. Como andar de bicicleta. Como um msico que no se recorda de uma cano, porm ao tocar seu instrumento seguindo a seqncia lida em uma partitura ou somente de memria 14

Nessa afirmao, refere-se tcnica utilizada por pintores em que uma caixa com um pequeno furo servia para projetar a imagem invertida em seu fundo, algo que os auxiliava na representao hiperrealista de suas obras pictricas.

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capaz de relembrar trechos perdidos em seu inconsciente por anos. Como uma cano que ouvamos na infncia e que se sabe a letra inteira no momento em que algum comea a cantarol-la. As conseqncias estticas dessas aes do corpo materializam-se na arte e no podem ser explicadas por um fator meramente neurolgico. A arte se d no erro, no acaso e na linguagem; e linguagem um fenmeno do campo da cultura, ou seja, relaciona-se tambm com a histria do corpo ao construir a linguagem. Paulo Ito disse ter desenvolvido muito no desenho a sua forma de desenhar pelo perodo longo de fisioterapia em que pode refletir sobre sua condio corporal. Ele no desenvolveu propriamente o desenho nessa situao nova, posto que j fosse habilidoso desde a infncia; todavia foi sua circunstncia corporal o fator preponderante que o levou a buscar em seu desenho a percepo adquirida e, principalmente, a experimentar por via do gesto desenhista, as inmeras situaes de trao que o fizeram criar um repertrio de perspectiva e anatomia at os dias de hoje. Utilizo a expresso memria do corpo - ainda que seja consciente de no estar me referindo exatamente a um conceito de memria comum, mas uma nova maneira de entender como o corpo se ajusta aos instrumentos e se expressa no espao/tempo - por uma percepo minha de que o corpo do desenhista se constri em meio a um processo geral de suas partes. Mas que corpo ser esse o do desenhista? Que inveno de si mesmo faz o corpo humano ao se debruar sobre o silncio de uma folha e delinear-se sobre um caminho inexato de linhas? Um corpo que se forma como um corpo-olho: curvado sobre a coluna cervical, afunilando-se ao brao mo que ser a via de escape do gesto que d luz o desenho. O mtodo pessoal de aprendizado no modifica o elemento principal do aprendizado do desenho: a ao do corpo sobre a superfcie e o desenvolvimento da expresso grfica desse corpo. As novas composies surgem como um resultado do repertrio e do processo de pensamento (no captulo final, discutirei a relao entre desenho e pensamento) do corpo desenhista. Em Fenomenologia da Percepo, Maurice Merleau-Ponty analisa o corpo usando-se do exemplo do instrumentista -, no como algo que residiria no pensamento ou no corpo objetivo, mas como um mediador de um mundo (2006,51

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p.201). Avalia que, ao se sentar em um rgo novo, um organista se adapta quele corpo por algo mais do que usualmente se chamaria de memria, mas uma unio entre seu corpo e a msica, estendendo valores afetivos e descobrindo fontes emocionais em um processo de criao de um espao expressivo (2006, p.202). Merleau-Ponty no entende a motricidade como uma serva da conscincia; afirma que um movimento somente ser aprendido pela compreenso do corpo, e por sua incorporao ao seu mundo. O filsofo entende que o corpo tem seu mundo e que os objetos ou o espao podem estar presentes ao nosso conhecimento sem estar presentes ao nosso corpo (2006, p. 193). Ao me referir memria de um corpo, buscarei o conceito de memria aliado a uma compreenso sistmica entre corpo, objeto e linguagem, opondo-me a uma suposta idia de memria como lembrana de alguma atividade previamente realizada pela pessoa. Memria que, segundo Fayga Ostrower, no pode ser compreendida como algo factual, mas como memria de vida vivida (2009, p.19).

Memria de desenho

O caso de Jos Glilton me remeteu a outra reflexo sobre o aprendizado do corpo do desenhista no espao. Constatei em Jos Glilton uma capacidade fora do comum de lembrar-se de detalhes das paisagens, reproduzindo-as em incontveis tramas a caneta esferogrfica. No obstante, pude perceber, no breve perodo em que ele foi meu aluno, que essa mesma memria no se aplicava a desenhos de observao e propores de corpos humanos. Glilton desenvolveu uma maneira de desenhar de memria algo que Brent e Marjorie Wilson chamaram de programas de desenho, conceito que discutirei com cuidado no captulo O Problema da Cpia, ao final da segunda parte das entrevistas -, ao mesmo tempo em que no era capaz de ter a mesma fluncia em outros estilos (todavia no tardou a se adaptar a essas novas maneiras de desenhar). Possua uma memria de certa ao pictrica, mas ainda no havia desenvolvido essa memria com relao a outras formas de desenho, quer dizer, ao

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possua o mesmo repertrio de memrias de desenho de corpos e rostos como o de paisagens. Ostrower (2009) supe que os processos de memria se baseiam na ativao de certos contextos e no em fatos isolados (2009, p.19). O chamado desenho de memria no jamais o desenho de alguma experincia que possamos ter tido sem o contato com o desenho. Ao contrrio, o desenho de memria a memria de nossa prpria experincia de desenho. Por essa razo, eu penso que o desenho de memria seria mais adequadamente chamado de memria de desenho. Essa mesma questo provavelmente se aplicaria a outras linguagens das artes, mas vejo no desenho uma condio bsica, verificvel nos estilos e caractersticas pessoais presentes na expresso individual dos corpos, como na caligrafia, na voz e na dana.

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3. CPIA E IDENTIDADE

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Desenho de Guto Lacaz

I. Guto Lacaz Seus mestres e seus desenhos-Idia

Guto Lacaz teve a sorte de, na infncia, ser vizinho de Ruy Jorge Pedreira. - O Ruy era bem mais velho que a gente - conta-me Guto. Com esse bem mais velho, ele se referiu no idade propriamente dita, mas idade relativa, sendo que Ruy cursava o colegial, enquanto que Guto e outros garotos ainda estavam no ginsio respectivamente o ensino fundamental e mdio na nomenclatura atual. Certo dia, Guto pediu a ele: - Ruy, desenha uma locomotiva detonando um nibus? E Guto mostra-me o desenho, ainda guardado cuidadosamente aps tantos anos, espantosamente bem feito. Guto me conta que levava o desenho para casa e passava a noite copiando o trabalho do amigo mestre.55

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Desenho de Ruy Jorge Pedreira feito sob pedido do amigo Guto Lacaz

Guto disse-me que Ruy, a despeito de sua fantstica habilidade com a caneta, no possua vaidade artstica. Apenas desenhava maravilhosamente. No havia poca, um iderio profissional que levasse jovens a ambicionar carreira na rea das artes e, portanto Ruy e tampouco Guto tinham projetos nesse sentido. Era ldico. Ruy era completamente autodidata. Gostava de inventar letras tipos e refazer capaz de discos de vinil. Tambm adorava projetar mquinas no desenho e lev-las posteriormente a modelos em cartolina. De famlia de pais luteranos, seu pai costumava fazer imagens ampliadas de cpias quadriculadas em papel crayon. Fazia desenhos em frente aos outros garotos, desenhos dificlimos que traava sem dificuldade no momento em que era feito o pedido dos amigos mais novos. Alguns desses desenhos foram guardados por Guto. Ruy fazia os desenhos e os presenteava aos garotos. Outra atividade de Ruy era a criao de jornais fictcios como O Burocrata que imprimia no mimegrafo. Guto passava dias copiando os diagramas inventados

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por Ruy. A preciso de Ruy com os pincis era notvel e pude constatar isto em cada desenho que Guto me mostrava. - Era assim: Ruy, faz isso para mim, Ruy, faz aquilo! Ruy, faz um mapa, Ruy faz a lio de Matemtica... E Guto diz ainda que Ruy no partia de imagem alguma, apenas de sua imaginao. Mostrou-me folhas em que havia uma srie de diagramas ilustrados com o ttulo COMO FAZER UMA BOMBA RELGIO. - O detalhismo e o planejamento eram to extremos como naturais a ele. E todos usavam jeans e ele era diferente, era mais formal nas roupas. Guto explica que Ruy, mais do que artista, era a imagem do cientista, talvez o tipo de cientista que se fez notrio na Renascena, unindo pesquisas, desenhos e engenharias. As mquinas que Ruy inventava com suas mltiplas transparncias e mecanismos eram imediatamente copiadas por Guto, que adorava desenhar, mas no tinha a facilidade do amigo. - Eu copiava tudo do Ruy, sem maldade, apenas admirao. bobagem lutar contra a cpia, voc tem que copiar. Guto pegava revistas e cartuns e copiava, copiava objetos e desenhava tambm letras e diagramas, ainda que assumindo no ser um artista tecnicamente virtuoso. - Gosto de desenhar, acima de ter talento para isso. Ruy Jorge Pedreira foi o primeiro mestre de Guto entre tantos. Esse que no se tornou artista por fim, voltando-se rea de administrao de empresas. Achei interessante notar que a relao de Ruy com o desenho estava absolutamente ligada composio de diagramas, esquemas visuais inspirados em capas de revistas, livros ou discos. A palavra Design e muito menos a profissionalizao desse termo estavam longe de fazer parte do imaginrio profissional desse tempo em que viviam, porm era sobre esse universo visual que compunha suas imagens. Na verdade, Guto sequer gosta da expresso DESIGN. Contou-me que sua gerao da escola tcnica e que as artes apareceram tardiamente em sua vida. Saiu da faculdade com vinte e um anos. - Design palavra pretensiosa vinda da dcada de 80, o que havia era desenho industrial, diagramas. Hobbys para final de semana.57

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Guto disse-me ter se espantado certo dia ao conversar com um amigo que lhe disse que h mais de 300 escolas de design no Brasil. -Virou uma praga. brinca Guto - Ningum nem sabe direito o que . Guto nasceu em 1948, e somente ao vinte e seis anos teve