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MARIA LUIZA STRIFFLER DE SOUZA GONÇALVES OS DESAFIOS TEÓRICOS DA HISTÓRIA SOB O PRISMA DA PINTURA, LITERATURA E DO CINEMA NO CONTEXTO DA INTERTEXTUALIDADE DA OBRA MOÇA COM BRINCO DE PÉROLA CURITIBA 2011

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  • MARIA LUIZA STRIFFLER DE SOUZA GONALVES

    OS DESAFIOS TERICOS DA HISTRIA SOB O PRISMA DA PINTURA, LITERATURA E DO CINEMA NO CONTEXTO DA INTERTEXTUALIDADE DA OBRA MOA COM BRINCO

    DE PROLA

    CURITIBA 2011

  • MARIA LUIZA STRIFFLER DE SOUZA GONALVES

    OS DESAFIOS TERICOS DA HISTRIA SOB O PRISMA DA PINTURA, LITERATURA E DO CINEMA NO CONTEXTO DA INTERTEXTUALIDADE DA OBRA MOA COM BRINCO

    DE PROLA

    Dissertao apresentada como requisito para a obteno do Grau de Mestre ao Curso de Mestrado em Teoria Literria do Centro Universitrio Campos de Andrade UNIANDRADE.

    Orientador: Profa. Dra. Cristiane Busato Smith

    CURITIBA 2011

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus, pela minha inspirao e iluminao no percurso do meu trabalho, pelo fortalecimento diante das vrias atribulaes e realizaes que encontrei no meu caminho.

    Aos meus amados pais Heinz e Liria (in memorium), pelo amor, e os pelos incentivos de sempre trilhar o caminho da luz, e da verdade. Ao meu esposo Roberto e aos meus filhos Ricardo e Fernanda, pelo carinho e amor incondicional, repleto de compreenso e estmulos para trilhar a minha jornada de certeza e incertezas.

    A minha querida e amada irm Angela, e Claude, por fazerem parte da minha vida, me incentivando e proporcionando momentos mgicos.

    Profa. Dra. Cristiane Busato Smith, minha orientadora, pelas sugestes e orientaes que tornaram possvel a concluso desta dissertao.

    Profa. Dra. Vernica Daniel Kobs, minha coorientadora, querida mestre que acreditou no meu projeto e caminhou junto para essa realizao, sempre presente, inspirando e orientando de forma magistral. Pelo carinho, pelas palavras acolhedoras, repletas de confiana, e por me fazer acreditar que a nica forma de chegar ao impossvel acreditar que possvel conquistar os nossos objetivos e sonhos.

    Profa. Dra. Naira de Almeida Nascimento, por fazer parte desse processo de conhecimento na qualificao, contribuindo com sugestes pertinentes e enriquecedoras.

    Profa. Dra. Edna Polese, membro da banca examinadora, pela gentileza em trocar ideias e apontar novos caminhos.

    s professoras doutoras Mail Marques de Azevedo, Sigrid Renaux, Brunilda Reichmann, Anna Stegh Camati, e Vernica Daniel Kobs, pelo meu crescimento pessoal e pelo enriquecimento cultural com as disciplinas ministradas.

    professora Ana Maria Cordeiro Vogt, diretora da UNIANDRADE, amiga presente e incentivadora dos nossos projetos de vida. Ao Colgio Militar de Curitiba (CMC) pelo apoio no meu crescimento profissional. s queridas amigas Simone Brescansin Mattar, Cludia Regina Kawka Martins, Maria Terezinha Knabben e Daniele M. Castanho Birck, que estiveram sempre ao meu lado acompanhando minha trajetria, me fortalecendo com palavras amigas e afeto incondicional.

  • SUMRIO

    RESUMO............................................................................................................................. vii

    ABSTRACT ...................................................................................................................... vii

    INTRODUO ................................................................................................................. .. 1 1. PANORAMA HISTRICO DO CENRIO HOLANDS.................................................... 9 1.1 HISTRIA E ARTE..................................................................................................... . 14 1.1.1 Redescoberta de Vermeer ....................................................................................... 26

    2 VERMEER DE DELFT................................................................................................... 29

    2. 1 AS ALEGORIAS EMBLEMTICAS DE VERMEER: A F E A HISTRIA ................. 33 2.1.1 Pintura de retrato e gnero....................................................................................... 45

    2.2 ENTRE ARTE PICTRICA E PALAVRAS: O PAPEL DAS PALAVRAS NAS IMAGENS ...............................................................................................................................................48

    2.3 MOA COM BRINCO DE PROLA PINTURA E LIVRO.............................................60 2.3.1 Quadro a quadro Moa com brinco de prola......................................................76

    3. A CONSTRUO DOS SENTIDOS................................................................................81 3.1 LITERATURA, A ARTE DAS PALAVRAS / CINEMA, A ARTE VISUAL........................ 85

    3.2 PALAVRA E IMAGEM: DO ROMANCE PARA O FILME............................................... 87

    3.3 MOA COM BRINCO DE PROLA: PINTURA, ROMANCE, FILME E HISTRIA.......91 3.3.1 A narrativa feita de imagens.....................................................................................123

    CONSIDERAES FINAIS.................................................................................................144 REFERNCIAS ................................................................................................................ 149 ANEXO.................................................................................................................................156

    vi

  • RESUMO

    Esta dissertao tem por objetivo analisar as relaes texto/imagem e as representaes pictrica, flmica e literria. A abordagem tem como base uma pintura feita no sculo XVII, pelo holands Johannes Vermeer, intitulada Moa com brinco de prola, que originou o romance e, posteriormente, a produo flmica de mesmo ttulo. A partir desses processos de transposio, faz-se uma anlise intertextual que resulta em reflexes sistematizadas sobre adaptaes cinematogrficas que privilegiam a pintura e a literatura como textos-fonte. Por meio da instrumentao terica da ekphrasis, ser analisada a relao entre os aspectos verbal, no-verbal e os diferentes sistemas sgnicos. O romance e o filme, por meio de descries ekfrsticas, transpem o fazer artstico de Vermeer e, ao mesmo tempo, recuperam fatos significativos da vida do pintor, o que, na literatura, resulta em um trabalho pertencente ao gnero knstlerroman. Todo esse processo permite uma anlise pormenorizada das pinturas de mulheres silenciosas, no mundo pictrico de Vermeer, que compem a sociedade holandesa do sculo XVII. A base terica deste estudo investigativo compreende: estudos de Claus Clver e Liliane Louvel, para a anlise do processo ekfrstico; textos de Robert Schneider, Svetlana Alpers, Ernst Gombrich e Arnold Hauser, para a abordagem pictrica; apontamentos de Robert Stam acerca das relaes intertextuais da literatura com o cinema; e estudos de Marc Ferro e Jacques Le Goff, para tratar do cruzamento entre arte e Histria.

    PALAVRAS-CHAVE: Histria. Pintura. Literatura. Cinema. Intertextualidade. Ekphrasis.

    vii

  • ABSTRACT

    The purpose of the present essay is the analysis of the text-image relations and the pictorial, filmic and literary representations. The approach is made on the basis of a painting from the 17th century of the Dutch Johannes Vermeer entitled Girl with a pearl earring, which originated the novel and then the filmic production with the same title. On the basis of these transposition processes an intertextual analysis is made which results in systemized reflections about cinematographical adaptations that privilege literature as their fountain-texts. Through the theoretical application of the ekphrasis, we present an analysis of the relations between the verbal, nonverbal and the different sign systems. Through ekphrastic descriptions, the novel and the film transpose Vermeers artistic making and at the same time recover significant facts from the painters life, which in literature results in a work pertaining to the genre knsttlerroman. All this process permits a detailed analysis of the painting of silent women, in Vermeers world, that compose the Dutch society of the 17th century. The theoretical basis of this research study include: studies of Claus Clver and Liliane Louvel, for the analysis of the ekphrastic process; texts of Robert Schneider, Svetlana Alpers, Ernst Gombrich and Arnold Hauser, for the pictorial approach; notes of Robert Stam about the intertextual relations between literature and cinema; and studies of Marc Ferro and Jacques Le Goff about the intersection of art and history.

    KEY WORDS: History. Painting. Literature. Cinema. Intertextuality. Ekphrasis.

    viii

  • 1

    INTRODUO O holands Johannes Vermeer (1632-1675) considerado pela crtica como o

    pintor do silncio. Suas telas so primorosas, pela intimidade e elegante

    luminosidade que emanam de atividades triviais de pessoas annimas. Apenas 35

    quadros do artista chegaram contemporaneidade, mas acredita-se que tenha

    produzido entre 44 e 54 pinturas, 40 delas representando mulheres. No havia

    crianas nos seus cenrios, diferentemente do contexto domstico da arte italiana. A

    representao da mulher em suas pinturas era vista como objeto da ateno do homem. O artista na sociedade patriarcal do sculo XVII representou mulheres

    em seu cotidiano, dando-lhes voz e emoo: mulheres no ambiente familiar, lendo,

    escrevendo, vestindo-se ou envolvidas no trabalho domstico. A mulher tornou-se o

    tema principal da pintura descritiva do artista, que imortalizou suas musas no tempo

    e espao pictrico.

    O presente trabalho tem por objetivo analisar a trajetria pictural de Vermeer sobre as mulheres, pelo dilogo entre pintura, literatura, cinema e Histria no

    contexto poltico, econmico, social e cultural da sociedade holandesa do sculo

    XVII. Em razo de a pintura ser a base para as adaptaes literria e flmica, foi

    necessrio recortar as cenas do filme e trabalhar com detalhes dos quadros de

    Vermeer, para anlis-los com maior profundidade, a fim de consolidar as

    comparaes entre as diferentes artes e seus respectivos recursos.

    O ponto de partida das anlises apresentadas nesta dissertao o olhar

    de Johannes Vermeer expresso em Moa com brinco de prola, obra pictrica que

    se transformou em fonte de inspirao para obras de outros campos da arte, entre

    as quais as narrativas literria e flmica homnimas, que tambm so objetos deste estudo.

  • 2

    Vermeer pertenceu guilda de pintores de So Lucas, em Delft (Holanda), uma das provncias dos Pases Baixos. A Holanda se transformou em uma nao

    estruturada politicamente (sculo XVI), composta por uma sociedade diversificada, com uma prspera burguesia financeira e industrial. Segundo H. W. Janson (2007, p. 748), a f protestante reformada impulsionou economicamente a nao. Nesse contexto, a arte se populariza, o cotidiano retratado e a pintura de gnero

    inserida na sociedade da poca.

    Desde a verdadeira revoluo causada pelos historiadores participantes da

    francesa coles des Annales, a cincia histrica tem incorporado como seus objetos (e sujeitos) no apenas os grandes fatos e personagens polticos, mas tambm as ideias, os costumes e as mentalidades de cada perodo. Hoje, as fontes de que os historiadores dispem para produzir seus conhecimentos sobre o passado vo muito

    alm dos documentos escritos, preservados nos arquivos histricos.

    Consequentemente, os meios de que os estudiosos se utilizam para transmitir suas

    ideias sobre o desenvolvimento da Histria deixam de ser apenas os livros e as

    produes acadmicas.

    Partindo desta perspectiva, pode-se considerar que a literatura muito mais

    que um fenmeno esttico; pode ser caracterizada como uma manifestao cultural

    que permite ao leitor vislumbrar uma infinidade de possibilidades de abarcar o

    contexto histrico de um determinado perodo. A partir dessa modalidade de anlise,

    a funo do historiador, portanto, privilegiada. Carlo Ginzburg explica que um

    historiador busca mtodos para produzir um efeito de verdade em seu texto seu

    discurso histrico, na maioria das vezes, utiliza a narrativa caracteriza as

    descries como um vis para a vivacidade, ou a enargeia, ou seja, clareza e

  • 3

    nitidez garantindo ao texto, e ao fato histrico que est sendo narrado uma

    verdade histrica (GINZBURG,1989, p. 219). O presente se fortalece por meio das lembranas, que so resgatadas sob

    um novo prisma, registradas na memria coletiva para enaltecer esse passado.

    Portanto, a tradio histrica se articula e se desarticula, permitindo um novo espao

    para uma Histria tambm renovada.

    O cinema, por sua vez, se apropriou da literatura, que detinha o poder

    simblico de narrar histrias para seduzir seu leitor. A interao da literatura com o

    cinema possibilitou a adaptao flmica de vrias obras, envolvendo grandes

    produes cinematogrficas. Marc Ferro (1976) apresenta o filme como uma importante fonte para revelar tanto aquilo que o autor busca expressar que est

    contido na narrativa, nas ideias sobre determinados personagens, nos fatos, nas

    prticas ou ideologias quanto para se perceber o que no se queria mostrar, como

    os modos de narrar uma histria, a maneira utilizada para marcar as passagens do

    tempo e os planos da cmera. Sendo assim, seria possvel penetrar, de acordo com

    Ferro, em "zonas ideolgicas no-visveis" da sociedade (FERRO, 1976, p. 203-204). Na obra Cinema e Histria, Marc Ferro (1992) enfatiza que o historiador tambm deve ficar atento aos procedimentos aparentemente utilizados para exprimir

    durao ou, ainda, figuras de estilo que transcrevem deslocamentos no espao, pois

    estes podem, sem inteno do cineasta, revelar zonas ideolgicas e sociais das

    quais ele no tinha necessariamente conscincia, ou que ele acreditava ter rejeitado. Jorge Nvoa e Cristiane Nova, em Interfaces da Histria, consideram que

    [...] toda imagem histrica, na medida em que ela produto de seu tempo e carrega consigo, mesmo que de forma indireta, sub-reptcia e muitas vezes inconsciente para quem a produziu, as ideologias, as mentalidades, os costumes,

  • 4

    os rituais e os universos simblicos do perodo em que foi produzida. (NVOA; NOVA, 1998, p. 10)

    Portanto, ao inserir paralelamente e de forma harmnica signos

    pertencentes a diferentes campos semiticos, o cinema pode ser utilizado como

    instrumento de anlise da sociedade que produziu determinada imagem permitindo

    um novo formato esttico de representao.

    A expresso Histria cultural da imagem, utilizada por Peter Burke, tem

    como objetivo enfatizar a reconstruo consciente ou inconsciente de regras ou convenes [...] que reagem percepo e interpretao de imagem numa

    determinada cultura (BURKE, 2004, p.227). Dessa forma, pode-se verificar que so infinitas as possibilidades de leitura da pintura, da literatura e do cinema, na medida

    em que permitem a reconstruo de gestos, vesturio, arquitetura e principalmente

    do cotidiano da sociedade abordada.

    , ento, nessa perspectiva por permitir uma abordagem a partir das evidncias histricas, que auxiliam na interpretao e na recriao de vrios

    significados que sero apresentadas as anlises das obras intituladas Moa com

    brinco de prola: a pintura de Johannes Vermeer, o romance de Tracy Chevalier e o

    filme do diretor Peter Webber.

    Tracy Chevalier, por meio de descries ekfrsticas, transpe para o

    romance as produes pictricas de Vermeer, na voz da protagonista Griet, num

    romance classificado como knstlerroman. Na transposio flmica, Peter Webber

    apresenta o pintor Johannes Vermeer, enfatizando a esttica. O diretor recupera as

    sensaes visuais, permitindo que o espectador seja levado pela imagem na construo visual de um momento histrico recortado da Histria da arte.

  • 5

    Em Moa com brinco de prola, o estudo da relao entre pintura, literatura

    e cinema transcende fronteiras, possibilitando abordagens intertextuais que

    esclarecem diferentes aspectos de criao, em que a pintura tem a responsabilidade

    de mediar a relao entre a obra literria e sua adaptao cinematogrfica. Portanto,

    pode-se considerar que a adaptao flmica partiu de um guia de imagens fornecido

    pelo romance, que, por sua vez, se apropriou do universo pictrico de Vermeer,

    recriando uma realidade do sculo XVII. Assim, a diretriz deste trabalho

    demonstrar de que forma uma obra pertencente a um determinado sistema sgnico

    pintura originou duas novas obras, de linguagens distintas romance e filme ,

    estabelecendo um dilogo intertextual e intersemitico entre elas. Dessa forma,

    utilizo a pintura Moa com brinco de prola para fazer a reconstruo historiogrfica

    do perodo da Era do Ouro Holandesa do sculo XVIII, panorama que

    enriquecido pelas diferenas e semelhanas do quadro com o filme. Esse processo

    nos d a possibilidade de adentrarmos ao perodo histrico de Vermeer, com seus

    hbitos e costumes, que se transformam em fonte para a pesquisa historiogrfica na

    contemporaneidade.

    No primeiro captulo, faz-se uma explanao sobre o panorama histrico da

    Holanda, paralelamente a uma anlise da Histria da arte no contexto vivido por

    aquele pas no sculo XVII, destacando-se o papel de Vermeer junto sociedade burguesa.

    No segundo captulo, analisa-se a pintura descritiva de Johannes Vermeer,

    a partir de um breve enfoque sobre sua vida e sua trajetria artstica. Recuperam-se as principais fases artsticas do pintor e as tcnicas de composio pictrica, com

    incidncia em Moa com brinco de prola, pormenorizando essa tela. Em suas

    pinturas, Vermeer no demonstrava interesse pela questo temporal, mas sim pelo

  • 6

    espao que o rodeava. A abordagem espacial de Vermeer nas pinturas privilegia o

    aspecto da luminosidade, o uso da cmara escura e a utilizao de objetos que possam refletir o contexto social e cultural em que suas obras foram concebidas.

    No terceiro captulo, explora-se a relao entre pintura, literatura, cinema e

    Histria, abordando a transposio da pintura ao romance e do romance ao filme.

    Dar-se- destaque pintura que inspirou a autora a escrever o romance histrico

    sobre uma jovem do sculo XVII, que resultou em uma narrativa de forte componente visual. Analisa-se, ento, a adaptao cinematogrfica feita pelo diretor

    Peter Webber, que tem como texto-fonte o romance de Tracy Chevalier e,

    consequentemente, a obra pictrica. Nesse contexto, as obras de arte so

    apresentadas e analisadas a partir do olhar de Griet. Sobre a construo pictrica

    dos quadros de Vermeer, a anlise enfatiza o processo ekfrstico, permitindo uma

    revisitao pormenorizada s pinturas de mulheres silenciosas, personagens reais

    da burguesia holandesa do sculo XVII que Vermeer incorporou ao seu universo

    artstico

    As bases tericas desta pesquisa concentram-se nos estudos de Claus

    Clver e Liliane Louvel, para anlise do processo ekfrstico; para as reflexes sobre

    literatura, utilizam-se os tericos Roman Jakobson e Vitor M. de Aguiar e Silva; as

    discusses sobre a associao entre as artes e a Histria utilizam-se dos

    pressupostos tericos de Marc Ferro, Jacques Le Goff; a abordagem pictrica

    fundamenta-se nos estudos de Robert Schneider, Svetlana Alpers, Ernst Gombrich e

    Arnold Hauser; e o trabalho com as relaes intertextuais da literatura e do cinema

    explora as teorias de Robert Stam.

    No estabelecimento do elo entre literatura, pintura, cinema e Histria, os

    estudos de Stam tambm so tidos como referencial. Pois, para o terico,

  • 7

    [...] o cinema, enquanto meio de comunicao, est aberto a todos os tipos de simbolismo e energias literrias e imagsticas, a todas as representaes coletivas, correntes ideolgicas, tendncias estticas e ao infinito jogo de influncias no cinema, nas outras artes e na cultura de modo geral. [...] a intertextualidade do cinema tem vrias trilhas. A trilha da imagem herda a histria da pintura e as artes visuais, ao passo que a trilha do som herda toda histria da msica, do dilogo e a experimentao sonora. A adaptao, neste sentido consiste na ampliao do texto-fonte atravs desses mltiplos intertextos. (STAM, 2008, p. 24)

    Entre trabalhos j realizados sobre a pintura, o livro e o filme Moa com brinco de prola, destacam-se: a dissertao de mestrado de Miriam Vieira Art and new

    media [manuscrito]: Vermeers work under different semiotic systems (2007) , que analisa a nfase ao aspecto visual provocado pelas tradues intersemiticas feitas

    a partir da obra do mestre holands Johannes Vermeer; e o artigo de Penia

    Guedes A busca de identidade numa obra em que arte, histria e fico se

    misturam: os discursos e intertextos de Moa com brinco de prola, de Tracy

    Chevalier , no qual a autora analisa o jogo intertextual estabelecido com a pintura Moa com brinco de prola, abordando a questo terica da metafico

    historiogrfica.

    O diferencial deste trabalho em relao queles citados acima que a

    anlise de trs artes distintas pintura, literatura e cinema valoriza as

    peculiaridades de cada uma, alm de relacion-las pela explorao do tema da

    subjetividade feminina. O presente estudo tambm prioriza a narrativa da cultura visual que se constri a partir da ekphfrasis, no apenas como realidade histrica,

    mas como realidade da criao artstica.

    Esse processo transmitido pelo prisma feminino da jovem Griet e pelo olhar masculino de Vermeer. No romance, Griet d voz ao trabalho silencioso de

    Vermeer, conduzindo o leitor visualizao do espao da arte. Na produo flmica,

  • 8

    Griet apresenta o mundo pictrico de Vermeer de forma sutil, com gestos e olhares,

    enfatizando as qualidades visuais. Segundo Liliane Louvel, o texto visto como

    portador da descrio pictural que se oferece como matria para fornecer belos

    efeitos de enquadramento, cercando com uma borda a descrio pictural (LOUVEL, 2006, p. 205). Dessa forma, o fato de a presena de um pintor figurar em um texto narrativo serve de alerta ao leitor/observador sobre a qualidade pictural da

    descrio. O resgate dessas imagens passar pelo olhar, atravs de recortes das

    obras, permeando e legitimando espaos e temporalidades refletidos na esttica da

    arte como espelho da cultura.

  • 9

    1. PANORAMA HISTRICO DO CENRIO HOLANDS O perodo entre os sculos XI e XIV, conhecido como Baixa Idade Mdia,

    considerado um marco de transformaes polticas, econmicas, sociais e culturais

    no contexto da Europa Ocidental. A sociedade europeia iniciava um processo de

    mudanas: vivenciava um crescimento urbano, em funo de uma revitalizao do

    trfico mercantil, novas rotas comerciais se consolidavam e feiras itinerantes

    surgiam para atender a uma nova ordem econmica.

    Neste cenrio poltico e econmico, voltamo-nos para uma nova sociedade,

    a holandesa, que se transformou em um centro financeiro da Europa. Em 1360,

    Amsterd adere Liga Hansetica1, o que estimulou sua atividade comercial,

    permitindo o florescimento de novos empreendimentos, como a criao de indstrias

    de tecidos e cervejas, no apenas em Amsterd, mas em outras cidades prximas. Na metade do sculo XVI, questes polticas, religiosas e econmicas abalaram

    Amsterd e os chamados Pases Baixos, denominados 17 provncias, que abragiam

    as atuais Blgica, Holanda e Luxemburgo. No sculo XVI, Amsterd se transformou

    em um refgio para os perseguidos religiosos, acolheu a burguesia progressista e

    tambm os judeus expulsos da Pennsula Ibrica, da Alemanha do Leste da Europa, sobretudo comerciantes. Nesse contexto, os Pases Baixos foram privilegiados com

    um desenvolvimento comercial, sustentado pelo esprito calvinista, religio que,

    diferentemente do catolicismo, v na riqueza um sinal da graa divina.

    Durante o sculo XVII, a repblica dos Pases Baixos Unidos, na busca de

    sua independncia do jugo espanhol, passa por vrias crises polticas e militares. Ernst H. J. Gombrich explica que os holandeses

    1 Em 1356 a Liga Hansetica foi formalmente organizada, agrupando cerca de 150 cidades de vrias

    reas do Sacro Imprio. Sob a liderana de Lbeck, as cidades da liga adotaram uma poltica externa comum, caracterizada pela intransigente defesa de seus privilgios. Na segunda metade do sculo XIV e o final do sculo XV, a Hansa manteve a exclusividade do trfego martimo pelos mares Bltico e do Norte.

  • 10

    [...] rebelaram-se contra seus governantes catlicos, os espanhis, e a maioria dos habitantes de suas prsperas cidades mercantis aderiu ao credo protestante. O gosto desses mercadores protestantes da Holanda era muito diferente do que predominava do outro lado da fronteira. Esses homens eram comparveis, em suas concepes, aos puritanos ingleses: devotos, trabalhadores incansveis, parcimoniosos, a quem desagradava, em sua grande maioria, a pompa exuberante dos costumes e as maneiras meridionais. (GOMBRICH, 2000, p. 299)

    Em 1579, sob a liderana de Guilherme, o Taciturno, apenas sete provncias

    do Norte (setentrionais) tornaram-se independentes do poder espanhol de Felipe II. Pelo acordo poltico a Unio de Utrecht, passaram a se chamar Repblica das

    Provncias Unidas, reconhecida oficialmente em 1648, aps a assinatura de Paz de

    Westfalia com o Tratado de Mnster.

    Filipe II era visto como um soberano progressista, queria impor um sistema

    absolutista nos Pases Baixos, um sistema de Estado centralizado e de controle

    econmico. A Holanda (pertencente provncia do norte protestante) sublevou-se contra a imposio absolutista espanhola. J as provncias meridionais catlicas

    foram incorporadas pelo poder espanhol. A burguesia queria preservar sua

    autonomia nas cidades e, consequentemente, manter seus privilgios. Podemos

    considerar que se tratou de uma revoluo de conservadores. Arnold Hauser, em

    Histria social da arte e da literatura, destaca que os holandeses no se

    sublevaram contra a Espanha por serem protestantes, embora o individualismo da f

    protestante possa ter intensificado o mpeto da rebelio (HAUSER, 1998, p. 480). A vitria das provncias setentrionais (Holanda, Zeelndia, Utrecht, Frsia, Groninga, Overijssel e Gueldres), que defendiam ainda conceitos medievais de liberdade e um sistema obsoleto de autogoverno regional (HAUSER, 1998, p. 480), era iminente.

    Dessa forma, encontramos em Hauser embasamento para compreender

    como a crena religiosa contribuiu para a estruturao poltica dos Pases Baixos

  • 11

    A ideia catlica relacionou-se a com a ideia de monarquia to naturalmente quanto o protestantismo indentificou-se com a Repblica no norte. O catolicismo derivou de Deus a soberania do governante, de acordo com o princpio da representao do fiel pelo Estado espiritual; o protestantismo, por outro lado, com suas crenas em que todos os homens so filhos de Deus, era essencialmente hostil autoridade. Mas a escolha de denominao adaptava-se, com frequencia, ao ponto de vista poltico. (HAUSER, 1998, p. 479)

    Assim, os Estados setentrionais conseguiram estabelecer uma unio de

    cidades distintas das provncias meridionais (as cidades do sul perderam o sistema de autogoverno local). No sul, o governo estrangeiro levou vitria da cultura palaciana sobre a cultura da classe mdia urbana, enquanto no norte a realizao

    da independncia nacional significou a preservao da cultura burguesa (HAUSER, 1998, p. 481).

    Figura 1 Mapa das Provncias dos Pases Baixos Fonte: www.essentialvermeer

    As Provncias Unidas passam a ter hegemonia martima e comercial,

    proporcionando fora poltica e econmica. De certa forma, a posio geogrfica da

    Holanda contribuiu para que o pas se transformasse num centro de comrcio

    mundial. Sua localizao junto ao Mar do Norte privilegiava o acesso de vrias embarcaes comerciais, e o fato de ser cortado pelos principais rios Reno e

  • 12

    Mosa considerados vias importantes de navegao do norte europeu permitiu a

    facilidade de comunicao e transporte, mais do que em outras naes do

    continente. A partir do sculo XVII, a Holanda era considerada a mais populosa e

    rica das sete provncias. Seymour Slive destaca a importncia da provncia

    holandesa. Vista como [...] centro do imprio colonial, frequentemente seus

    mercadores e banqueiros contribuam mais para o oramento da repblica do que as

    outras seis provncias juntas (SLIVE, 1998, p. 3). Sendo assim, os investimentos e os estmulos na rea econmica e cultural permitiram o desenvolvimento holands.

    Nesse cenrio prspero, destacamos a cidade de Delft (fig. 1), foco desta pesquisa, da qual iremos analisar o contexto histrico, poltico, econmico, social e religioso,

    por meio das obras e da vida artstica de Jan Van Der Meer Van Delf ou, como ficou

    conhecido na Histria da arte, Johannes Vermeer, pintor e chefe da Guilda de So

    Lucas, uma corporao que agrupava artistas, artesos e negociantes de arte na

    cidade de Delft. Acredita-se que essa influncia veio de seu pai, Reynier Jansz

    (1591), natural da Anturpia. Em Amsterd era caffawercher (tecelo de l), especializado no comrcio da seda e produtor de caffa2. Esse ofcio requeria

    qualidades de preciso e habilidade, bem como um sentido esttico e o

    relacionamento com artistas e negociantes de arte, o que pode ter influenciado em

    Vermeer a sensibilidade e perspiccia para a arte. Vermeer tinha uma predileo por

    esse material, que encontramos com frequncia em suas pinturas. Acredita-se que

    lhe trazia boas recordaes de infncia.

    Segundo Norbert Schneider, Reynier Jansz, aps contrair matrimnio com

    Digna Baltens (1615), fixou-se em Delft, onde arrendou uma estalagem cujo smbolo era uma raposa, numa aluso ao seu nome. Continuou a ter relaes com o

    2 Uma refinada fazenda de seda. Era uma espcie de um fino cetim, frequentemente usado para

    confeccionar roupas, cortinas e coberturas para o mobilirio.

  • 13

    comrcio da seda, embora se mantivesse sobretudo como negociante de arte

    (SCHNEIDER, 2007, p. 7). Registrou-se como marchand, ao ser admitido na Guilda de So Lucas de Delft, onde teve contato com artistas renomados. O fato de fazer

    parte da guilda contribuiu para que o filho Vermeer criasse um vnculo com pessoas

    ligadas arte. Participavam dessa associao pintores de vrios gneros, vidreiros,

    comerciantes, ceramistas, negociantes de arte. Para cumprir o estatuto de ingresso

    na Guilda So Lucas, era exigido que passasse como aprendiz por seis anos junto a um artista reconhecido pela Guilda. O jovem aprendiz era preparado para seu ofcio. Quando admitido na Guilda, foi-lhe permitido assinar e vender suas produes.

    No caso de Vermeer, Lisa Vergara, na obra Perspective on women in art of

    Vermeer, defende a teoria da possibilidade de Vermeer ter estudado em Amesterd

    ou em Utrech antes de ser admitido na Guilda So Lucas.

    Vermeer was required to pay an entrance fee of six guilders when he was admitted to the Guild of Saint Luke in 1653 (December). Normally, new admitees into the guild whose father had been members as was the case with Vermeer were required to pay three guilders, provided that they had trained for two years a master of the guild. According to Van de Veen (1996) the only plausible explanation for the higher admission fee is that Vermmers training had occurred outside of Delft3. (VERGARA, 2001, p. 56)

    Acredita-se que o contato de Vermeer com o artista Carol Fabritius, discpulo

    de Rembrandt no perodo de 1640 e fixou residncia em Delft em 1650, tenha

    influenciado nas tcnicas pictricas, em relao s investigaes sobre perspectiva,

    3 Vermeer teve de pagar uma taxa de inscrio de seis florins quando foi admitido na Corporao de

    S. Lucas em dezembro de 1653. Normalmente, os novos membros da corporao cujos pais haviam sido membros e esse era o caso de Vermeer deviam pagar trs florins, desde que por dois anos tivessem treinado um artista da corporao. De acordo com Van de Veen (1996), a nica explicao plausvel para a taxa de inscrio mais elevada que o treinamento de Vermeer havia ocorrido fora de Delft. (VERGARA, 2002, p. 56). Trad. Mariano Kawka.

  • 14

    tratamento da luz e solidez das suas composies. A relao profissional com

    Fabritius foi relevante para a formao pictrica de Vermeer. Aps a morte de

    Fabritius em uma exploso no paiol em Delft (1654), foi encontrada em um obiturio a seguinte frase que descreve o pintor de Delft, Vermeer, como o sucessor de

    Fabritius: A Fnix (Carel Fabritius) partiu deste mundo/ No meio da vida e da fama/ Um novo mestre surgiu das cinzas/ Vermeer seguir-lhe- os passos (SCHNEIDER, 2007, p. 13).

    Gombrich salienta que o maior desses mestres nasceu uma gerao

    depois de Rembrandt. Foi ele Jan Vermeer van Delft (1632-75). [...] Vermeer foi um trabalhador lento e meticuloso (GOMBRICH, 2000, p. 311). No foi um pintor de muitas obras. No total foram 35 quadros, pelos quais Vermeer conseguiu a

    completa e laboriosa preciso na reproduo de contexturas, cores e formas

    (GOMBRICH, 2000, p.311). Portanto, mediante esse quadro histrico holands, ser analisada a

    trajetria pictrica de Vermeer, atravs da pintura, literatura e do filme.

    1.1 HISTRIA E ARTE

    A arte vista como uma manifestao da expresso humana em todos os

    tempos, razo pela qual representa a cultura de um determinado perodo histrico

    do qual so extrados pensamentos e aes. Sendo assim, a Histria da arte fornece

    uma base significativa para o estudo da Histria das Civilizaes.

    Segundo Enrico Schaeffer (1950, p. 86), novas correntes espirituais exerceram influncias sobre a arte. No perodo da Renascena, identificamos duas

    correntes artsticas: a ideologia pag e a crist. A partir dos sculos XV-XVI, a

    Europa conheceu um extraordinrio desenvolvimento cultural, com nova viso do

    homem e de suas obras, uma nova cultura antropocntrica. Para os Humanistas,

  • 15

    s importava o que acontecia neste mundo, transformado pela ao do homem. A

    noo de pecado foi minimizada e a moralidade redefinida no sentido de uma

    conscincia psicolgica, mais de acordo com os objetivos prticos da ao do homem na Terra.

    A arte do Renascimento expressa as preocupaes surgidas em sua poca

    com o desenvolvimento comercial e urbano. Seus temas so a dignidade, a

    individualidade e a racionalidade do homem.

    Arnold Hauser define o elemento fundamental para a nova concepo

    renascentista de arte, visto como

    [...] a descoberta do conceito de gnio, e a ideia de que a obra de arte a criao de uma personalidade autocrtica, de que essa personalidade transcende a tradio, a teoria, a regra, at a prpria obra; mais rica e mais profunda do que a obra e impossvel de expressar adequadamente em qualquer forma objetiva. (HAUSER, 1998, p. 338)

    Essa nova fase permitiu que o homem buscasse sua independncia, o

    poder sobre sua realidade, sua originalidade e espontaneidade. O senso crtico

    aflorou, rompendo com a cultura autoritria da Idade Mdia. Nesse sentido, a arte se

    emancipa dos dogmas eclesisticos arcaicos por um breve perodo.

    As preocupaes intelectuais se sobrepem s exigncias espirituais e dogmticas, o saber sobre o agir, as veleidades sobre as decises. O imenso apetite de cultura inverte os limites impostos pela f dos sculos precedentes. O esprito se abre a todos os domnios do conhecimento humano; [...]. O mundo dos intelectuais comea a se instalar no terreno, com uma retomada de admirao pelas antigas obras pags, um desejo de usufruir os bens presentes [...]. O Cu no esquecido, por certo, mas, por enquanto, no h pressa. (MINOIS, citado em WOORTMANN, 2011, p. 5)

  • 16

    A partir do sculo XV, perodo denominado quattrocento, a Igreja se insere no contexto artstico e transforma-se em grande mecenas, por passar a empregar

    artistas e a incentivar a pintura sacra. A Roma crist se sobrepe Grcia pag,

    criando assim as bases espirituais da Renascena. Independentemente dessa

    superioridade da Santa Igreja, a Europa presenciou o despertar artstico que repercutiu em vrios mbitos da sociedade. Como representantes e incentivadores

    da cultura, podemos citar os burgueses os nobres e os membros eclesisticos.

    Segundo Schaeffer (1950, p. 75-76), a Histria da humanidade, como a Histria da arte, nos ensina que os perodos clssicos, em todos os tempos e de

    todos os povos, so curtos e claramente limitados, quase sempre. As guerras

    religiosas, a reforma e contrarreforma, bem como as mudanas sociais que foram

    responsveis pela modificao do processo histrico dos sculos XVI e XVII, so

    vistas como o fim da liberdade espiritual do cinquecento, constituindo, ao mesmo

    tempo, a causa de novas correntes espirituais e artsticas, formando a base de um

    novo estilo, o chamado Barroco (SCHAEFFER, 1950, p.76). Segundo Hauser, a Histria da arte do sculo XVI consistiria, pois, em repetidos choques entre

    maneirismo e barroco (HAUSER, 1998, p. 374). O conflito entre o maneirismo e o barroco seria mais de cunho sociolgico do que histrico. O maneirismo era visto

    como [...] um estilo artstico de uma classe aristocrtica, essencialmente culta e

    internacional; o barroco, como a expresso de uma tendncia mais popular, mais

    emocional e nacionalista (HAUSER, 1998, p. 374). As lutas espirituais refletiram no apenas sobre a arte, mas tambm sobre o

    pensamento filosfico e mais ainda sobre o desenvolvimento poltico e social do

    perodo (sculo XVI) no que se refere liberdade de pensamento. A influncia da

  • 17

    filosofia grega possibilitou a heresia e a apostasia da Igreja Catlica, em pases como Sua, Frana, Holanda, Inglaterra e Alemanha.

    A Europa do sculo XVI passou por um perodo conturbado, o da Reforma

    Religiosa, cujo movimento teve incio com uma onda de indignao contra a corrupo da Igreja, [...] a avareza do clero, o comrcio de indulgncias e de ofcios eclesisticos (HAUSER, 1998, p. 382). Para contra-atacar, a Igreja Catlica, por intermdio da Ordem dos Jesutas, buscou reconquistar seus fiis. A

    Contrarreforma foi uma reafirmao doutrinria e uma reorganizao institucional.

    Significou tambm um profundo revigoramento da espiritualidade e do sentimento

    religioso dos membros da Igreja Catlica. Dessa forma, surge um novo esprito de fanatismo e hostilidade Renascena, os artistas so condicionados pela Santa

    Igreja a produzir apenas a forma cannica, e a arte profana passa a ser proibida, deixando de ser valorizada como arte.

    O Conclio de Trento (1545) condenou e desaprovou todo e qualquer sensualismo na arte. Enfim, a Contrarreforma apenas consentiu

    [...] arte desempenhar o maior papel concebvel no culto divino, desejava no s manter-se fiel tradio crist da Idade Mdia e da Renascena (idolatria), a fim de enfatizar desse modo seu antagonismo com a Reforma, ser benevolente com a arte, ao passo que os hereges lhe eram hostis, mas tambm, acima de tudo, usar a arte como arma contra as doutrinas da heterodoxia. (HAUSER, 1998, p. 395)

    O projeto utilizado pela Santa Igreja para propagar o catolicismo foi por intermdio da arte, com o intuito de alcanar, persuadir e dominar, de forma sutil e

    apurada, a grande massa de catlicos e ex-catlicos. Para causar maior comoo,

    adotou-se ento o estilo Barroco, momento em que entraram em cena o naturalismo

    de Caravaggio e o emocionalismo dos Carracci. Territrios como Flandres, parte da

    Alemanha (Sacro Imprio Romano Germnico), Polnia e ustria so recuperados

  • 18

    do ponto de vista religioso. A Holanda fica dividida entre catlicos e puritanos, e a

    Inglaterra passa a ser Anglicana.

    Jean Delumeau, em sua obra Nascimento e afirmao da reforma, utiliza a

    teoria marxista para justificar o processo reformista do ponto de vista econmico:

    Para Marx, o mundo religioso apenas o reflexo do mundo real, e o Protestantismo foi essencialmente uma religio burguesa. Com o mesmo esprito, Engels viu na Reforma o resultado da decomposio do mundo feudal. Dessa maneira, Lutero e Mntzer teriam surgido no momento em que nascia o capitalismo. (MARX e ENGELS, citados em DELUMEAU, 1989, p. 256)

    Nos pases onde se encontrava a maior concentrao de burgueses, o

    protestantismo se fortaleceu com a entrada de uma nova ordem econmica o

    capitalismo, que proporcionou uma abertura no apenas no contexto econmico,

    mas tambm no social e poltico.

    Em Histria da arte, Ernst Hans Josef Gombrich explica como o processo

    histrico da Reforma interferiu na produo pictrica dos pases protestantes:

    [...] grande crise foi provocada pela Reforma. Muitos protestantes objetavam existncia de quadros ou esttuas de santos em igrejas e consideraram-nos um sinal de idolatria papista. Assim, os pintores nas regies protestantes perderam suas melhores fontes de renda: a pintura de retbulos. Os mais rigorosos entre os calvinistas censuravam at outras espcies de luxo, como as alegres decoraes de casas, e mesmo quando estas eram permitidas em teoria, o clima e o estilo das construes eram usualmente imprprios para os grandes afrescos decorativos, como a nobreza italiana encomendava para seus palcios. Tudo o que restava como fonte regular de renda para os artistas era a ilustrao de livros e a pintura de retratos, e era duvidoso que isso bastasse para ganhar decentemente a vida. (GOMBRICH, 2000, p. 264)

    Nesse contexto, as obras cannicas de cunho religioso deixam de ser

    produzidas em larga escala e, para a arte pictrica no sucumbir, artistas buscaram

  • 19

    outras formas para divulgar e vender suas pinturas. Conforme Gombrich, era natural

    que

    [] os artistas setentrionais, que j no eram necessrios para pintar retbulos e outras obras de devoo, tentassem encontrar um mercado para as suas reconhecidas especialidades e fizessem pinturas cujo principal objetivo era exibir a sua estupenda habilidade na representao da superfcie das coisas. (GOMBRICH, 2000, p.270)

    Especificamente na Holanda, encontraremos como destaque a pintura de

    interior e de gnero. Hauser justifica o estilo adotado:

    O destino da arte na Holanda no decidido, portanto, pela Igreja, nem pelo monarca ou por uma sociedade cortes, mas por uma classe mdia que adquire importncia mais em consequncia do grande nmero de membros abastados do que pela extraordinria riqueza dos indivduos. [...] embora no haja na Holanda uso para uma arte no estilo grandiloquente, como era solicitada na Frana e Itlia [...] o gosto clssico-humanista, cuja tradio nunca morrera completamente [...]. (HAUSER, 1998, p. 484)

    No sculo XVII encontramos na Holanda categorias sociais abastadas, que

    destinavam seus recursos financeiros (investimentos) aquisio de artigos mobilirios e de decorao, sobretudo quadros. Neste cenrio tambm encontramos

    parte da populao de baixa renda investindo em pinturas. Era comum a aquisio

    de quadros, pois davam um status de respeitabilidade e embelezavam as

    residncias. Em contrapartida, futuramente poderiam ser revendidos. Portanto, os

    perodos que compreendem a Histria da arte so vistos como produto de uma

    poca, de uma cultura ou ideologia. Desta forma a arte constri modelos explicativos

    que justificam o estilo adotado em uma determinada poca. A ciso que ocorreu entre o mundo protestante e o catlico permitiu a diviso nos estilos da arte. Como

  • 20

    vimos anteriormente, o mundo protestante adotou uma postura mais comercial,

    voltada para uma burguesia progressista, e o mundo catlico, com o intuito de

    resgatar o seu rebanho, adotou uma arte mais emotiva e colocou diante dos olhos

    de seus fiis todo o esplendor e o seu poder. Para isso, nenhum estilo poderia servir

    melhor do que o Barroco do sculo XVII (SCHAEFFER, 1950, p. 86). Heinrich Wlfflin (1864-1945) estabelece uma diferenciao entre a arte

    clssica da Renascena (sculo XVI) e a arte do barroco (sculo XVII). Wlfflin define a arte clssica como uma arte de horizontais e verticais, bem proporcionadas,

    em que os elementos so visveis com toda clareza e preciso. O barroco, pelo

    contrrio, tem a tendncia no de exterminar aqueles elementos, mas de fazer

    visveis os contrastes e as oposies existentes (WLFFLIN, citado em SCHAEFFER, 1950, p.87). A relao entre o espao e o contedo aparentemente casual no barroco. Portanto, a diferena clara e objetiva: a arte renascentista baseia-se nas linhas e nos espaos claros e puros; a barroca tem formas mais

    exageradas e pomposas. O uso de contrastes, cores fortes e claras, um estilo de

    luxo e o uso de ouro so considerados a marca do estilo barroco.

    O esprito helenista da renascena, da liberdade e da alegria, passa a ser

    questionado. Com a Contrarreforma, a Igreja utiliza a arte para emocionar os seus fiis. As imagens sacras retratam os sofrimentos e torturas dos santos, enaltecendo

    o herosmo e a dor. Gombrich justifica a postura da Santa Igreja para enaltecer os cones sacros:

    Quanto mais os protestantes pregavam contra a ostentao nas igrejas, mais empenhada a Igreja Romana estava em recrutar o poder do artista. Assim, a Reforma e toda a molesta questo das imagens e seu culto, que tinham influenciado to frequentemente o curso da arte no passado, tambm tiveram um efeito indireto sobre o desenvolvimento do barroco. O mundo catlico descobrira

  • 21

    que a arte podia servir a religio de um modo que superava a simples tarefa que lhe fora atribuda nos comeos da Idade Mdia a tarefa de ensinar a Doutrina a pessoas que no sabiam ler. Agora, poderia ajudar a persuadir e converter aqueles que talvez tivessem lido demais. Arquitetos, pintores e escultores foram convocados para transformar igrejas em grandiosas exibies cujo esplendor e viso quase nos cortam a respirao. O que imporia nesses interiores so menos os detalhes do que o efeito de conjunto. (GOMBRICH, 2000, p. 315)

    A iconografia sacra e a arquitetura exuberante representaram uma luta da

    cultura esttica entre catolicismo e protestantismo. O catolicismo representado pelo

    papa e pelo alto clero torna-se [...] mais oficial e corteso, em contraste ao

    protestantismo, que cada vez mais classe mdia (HAUSER, 1998, p.456-57). Na figura 2, abaixo, a pintura da Piet, a expresso de sentimentos visvel:

    sugere uma dramatizao na cena, a luz no natural, mas produzida para guiar o

    olhar do observador at o ponto principal da obra, Jesus Cristo. A pintura barroca

    enaltece o sentimento e proporciona ao observador a possibilidade de individualizar

    cada gesto retratado em suas mincias, gerando uma comoo espiritual. Permite,

    assim, atingir o objetivo central da Santa Igreja.

    Figura 2 - Piet 1599-1600, de Annibale Carracci Fonte: Museo Nazionale di Capodimonte, Npoles.

  • 22

    Segundo Gombrich, Annibale Carracci

    [...] se esmerou em no nos recordar os horrores da morte e as agonias da dor. O quadro to simples e harmonioso no arranjo quanto o de um pintor renascentista. Contudo, no o confundiramos facilmente com uma pintura da Renascena. O modo como a luz joga sobre o corpo do Salvador todo o apelo s nossas emoes bem diferente: barroco. fcil qualificar semelhante quadro como sentimentalista, mas no devemos esquecer para que finalidade ele foi pintado. um retbulo para ser contemplado em orao e devoo, com velas ardendo diante dele. (GOMBRICH, 2000, p. 278)

    Em relao aos Pases Baixos, especificamente a Holanda protestante, H.

    W. Janson (2001, p.749) explica que o barroco veio da Anturpia para a Holanda pela obra de Rubens4, e de Roma pelo contato com Caravaggio e seus discpulos.

    Caravaggio foi considerado o primeiro pintor a representar gente annima a fazer

    coisas comuns [...] para mostrar as aes dessas pessoas em seus respectivos

    ambientes (SLIVE, 1998, p. 123). A pintura holandesa do sculo XVII tinha a finalidade da fotografia. Ricos comerciantes queriam ser retratados da forma mais

    fiel, ss ou acompanhados pelos seus familiares, e eram exigentes nos detalhes. A

    arte holandesa teve um cunho mais comercial do que cultural, pelo fato de a

    Holanda ser uma nao de mercadores, lavradores e marinheiros. A Holanda

    seiscentista produziu um nmero significativo de artistas voltados para uma pintura

    de gnero. A f protestante reformada no privilegiava uma arte sacra. Os artistas

    holandeses no se beneficiavam das grandes encomendas pblicas do Estado e da

    4 [...] a arte de Rubens representa a vitria da tcnica sobre o sentimento [...] pintor do campo

    catlico [...] Rubens se guindou sua posio mpar. Aceitou encomendas dos jesutas em Anturpia e dos governantes catlicos de Flandres, do Rei Lus XIII da Frana, [...], do Rei Filipe III, da Espanha, e do Rei Carlos I da Inglaterra, que lhe conferiu o grau de cavaleiro. Quando viajava de corte em corte como hspede de honra, era frequentemente encarregado de delicadas misses polticas e diplomticas, destacando-se dentre elas a de conseguir uma reconciliao entre a Inglaterra e a Espanha no interesse do que hoje chamaramos um bloco "reacionrio". Entrementes, manteve-se em contato com os humanistas de seu tempo e sustentou longa correspondncia em latim erudito sobre questes de arqueologia e arte. Seu autorretrato com a espada de gentil-homem mostra que tinha perfeita conscincia de sua posio mpar. (GOMBRICH, 2000, p. 288)

  • 23

    Igreja, comuns no mundo catlico. De modo geral, as autoridades municipais e os rgos cvicos apoiavam as artes. O papel do colecionador particular se transforma

    no suporte principal do pintor (JANSON, 2001, p. 748). A arte barroca no vinculada diretamente com a pintura holandesa do

    sculo XVII. Ela sofre algumas modificaes seguindo traos mais clssicos.

    Encontramos maior influncia barroca nos pases catlicos absolutistas do que em

    geral na repblica protestante das Provncias Unidas.

    Seymour Slive (1998, p.1) assinala que o distanciamento da Holanda em relao ao movimento barroco (justificado por fatores nacionais e culturais) pelo menos to significativo quanto a participao nele. Somente na Holanda

    encontramos o fenmeno de um Realismo generalizado e sem paralelo, quer em

    abrangncia, quer em intimismo (inspirada na vida cotidiana). A arte pictrica holandesa representa de forma sublime a vida, a natureza, o campo e a cidade,

    formando um conjunto de registros que contribuem para a reconstruo da cultura. A pintura no vista apenas como uma transposio. Existia uma

    organizao esttica, na qual se realavam ou suprimiam traos. Destaca-se

    Johannes Vermeer, que, dotado de criatividade, no quadro Vista de Delf, Slive

    (1998, p. 1) explica que as nuvens e a luz no eram modelos estticos; devem ser vistas como obra da imaginao do artista. O fato de a grande maioria dos pintores

    holandeses retratarem naturezas mortas e o cotidiano da sociedade no desmerece

    a arte por si s. Todos tinham acesso produo pictrica, e cada indivduo tinha a

    oportunidade de ter uma obra em sua casa.

    Em uma visita Holanda em 1641, John Evelny5 observou que era comum

    lavradores investirem duas ou trs libras em pinturas. As casas estavam repletas de

    5Membro da Sociedade Real inglesa, escritor, cientista e jardineiro de renome, defensor do

    agroflorestamento. Em seu dirio, onde observa e descreve os hbitos, costumes da sociedade holandesa, descreve sua chegada a Roterdo, em 13 de agosto de 1641. (LEO, 2000, p. 141-142).

  • 24

    quadros vendidos nas feiras. Dessa forma, os quadros tornaram-se uma mercadoria

    cujo comrcio obedecia lei da oferta e da procura. Portanto, era comum o artista trabalhar para o mercado e no para clientes individuais (EVELNY, citado em JANSON, 2001, p. 748). Para complementar a informao referente venda de quadros nas feiras e mercados pblicos, a contribuio de Peter Mundy6 de grande

    valia. Em seus relatos destaca:

    Quanto arte da pintura e ao gosto do povo por quadros, acho que nenhuma outra gente os supera, e no pas tem havido muitos homens excelentes nesse ofcio, alguns deles no presente, como Rembrandt e outros. Em geral, todo mundo se esfora para enfeitar suas casas, especialmente a sala da frente ou da rua, com peas caras. Aougueiros e padeiros no ficam muito atrs em suas lojas, que so belamente decoradas; e muitas vezes os ferreiros, [...] os artesos tm uma ou outra pintura na forja ou banca. esse o conceito geral que os nativos do pas tm da pintura e da a propenso e o prazer que sentem por ela. (MUNDY, citado em SLIVE, 1998, p. 5)

    O mercado de arte holands foi extremamente diversificado. A mudana

    nesse pas emergente e plurirreligioso foi lenta. A pintura seiscentista valorizou o

    gosto do carter burgus, abordando os efeitos do espao e da luz, a importncia

    das paisagens e dos interiores e a singular reticncia que, nas obras dos maiores

    artistas holandeses, transforma-se em profunda introspeco (SLIVE, 1998, p. 6). O mercado da arte no seu sentido restrito arte produzida por artistas

    formados em escolas de arte, legitimados pela crtica, pelo Estado e pelo prprio

    mercado cobre uma procura muito especfica, nomeadamente as necessidades de

    legitimao do Estado atravs da criao e administrao de um patrimnio cultural

    ou do investimento de particulares com vistas valorizao especulativa.

    6Capito da marinha mercante inglesa em viagem a Amsterd em 1640.

  • 25

    A historiadora de arte Svetlana Alpers, em sua obra A arte de descrever

    (1999, p. 28), ao apresentar uma anlise diferenciando a arte italiana da arte holandesa, aborda a tradio setentrional do sculo XVII, que pertence a uma arte

    descritiva distinta da arte narrativa italiana. Segundo a autora, o modo pictrico

    descritivo holands prioriza cenrios domsticos, paisagens e retratos de pessoas

    de vrias categorias sociais, primando pela forma realista e emprestando o modo

    pictrico das fotografias (ALPERS, 1999, p.30). A ideia da imagem esttica captura a alma do modelo, registra as nuances da perspectiva pictrica, como se

    pudssemos perceber em uma anlise visual a percepo do mundo retratado em

    movimento.

    Na Holanda, a cultura visual 7 era comum no mbito social: o olho era o

    instrumento fundamental da autorrepresentao, e a experincia visual um modo

    fundamental de autoconscincia (ALPERS, 1998, p. 39). As imagens esto projetadas em todas as partes, impressas em livros, nos tecidos, nas tapearias, emolduradas nas residncias. Retratando o cotidiano, a pintura holandesa

    documenta ou mesmo representa o comportamento dessa sociedade,

    diferentemente da dos italianos, que enaltece os feitos heroicos e histricos,

    considerados eventos nicos.

    Mikhail Bakhtin, em Esttica da criao verbal (1997, p. 246), afirma que os sentimentos externos, as emoes internas, as especulaes e os conceitos

    abstratos se concentram em torno do olho que v como centro, como primeira e

    ltima instncia. Tudo o que substancial pode e deve ser visvel; tudo o que

    invisvel no substancial. notvel a importncia que Goethe atribua cultura do olho, e em que profundidade situava esta cultura. Em toda a parte o olho que v

    7 Termo usado por Michael Baxandall (BAXANDALL, citado em ALPERS, 1998, p. 39).

  • 26

    procura e encontra o tempo: a evoluo, a formao, a histria. Por trs do que est

    concludo, transparece, com excepcional evidncia, o que est em evoluo e em

    preparao (GOETHE, citado em BAKHTIN, 1997, p. 248). Portanto, constata-se uma nova concepo de arte, uma anlise descompromissada voltada para o meio

    social, para o cotidiano.

    Segundo Hauser, [...] a obra forma uma unidade indivisvel; o espectador

    quer estar apto a abranger toda a extenso [...] num nico relance de olhos [...]

    abarcar todo o espao de uma pintura organizada de acordo com os princpios da

    perspectiva central com uma nica olhada (HAUSER, 1998, p. 281). Partindo dessa premissa da cultura do olho, iremos conhecer o contexto

    histrico da sociedade holandesa do sculo XVII, explorando o poder da

    personalidade, a energia intelectual e espontaneidade do indivduo [...] a expresso

    suprema da natureza do esprito humano e de seu poder sobre a realidade

    (HAUSER, 1998, p. 339), buscando essa realidade atravs das produes pictricas de Johannes Vermeer.

    1.1.1 Redescoberta de Vermeer

    Jan Vermeer van Delft, no sculo XIX, reapresentado ao mundo da arte por

    Etienne-Joseph-Thophile Thor (1842), jovem francs, poltico e jornalista. Thor, que adotou o pseudnimo William Brger (burgus), era admirador de arte, especificamente da pintura. Segundo Schneider (2007), Brger-Thor, em suas viagens a vrios pases, como Inglaterra, Blgica, Holanda e Sua, pesquisou sobre

    pintura holandesa do sculo XVII, analisando o seu realismo e estilo. Seu interesse

    na obra de Vermeer a quem denominou minha esfinge ocorreu aps a visita ao

    Mauritshuis, em Haia, quando ficou fascinado com o quadro Vista de Delft. Elaborou,

  • 27

    ento, um trabalho minucioso sobre a pintura holandesa, especificamente sobre

    Vermeer, restaurando a reputao internacional do artista.

    O pintor, considerado um dos trs maiores representantes da Idade de Ouro

    da pintura holandesa, tambm foi referenciado pelos impressionistas no ltimo tero

    do sculo XIX, sendo comparado a Rembrandt e Frans Hals. Os impressionistas

    destacavam a simplicidade e as particularidades estticas luz e cor usadas por

    Vermeer, a quem chamaram de o mestre de Delft, em suas pinturas. Vincent van

    Gogh, em 1888, escreve uma carta a mile Bernard (pintor e escritor impressionista) enaltecendo a harmonia nas cores das obras de Vermeer:

    um facto que nos poucos quadros que ele pintou podemos encontrar toda a gama de cores, mas o amarelo-limo, o azul-claro e o cinzento-claro so uma caracterstica sua, tal como a harmonia do preto, do branco, do cinzento e do rosa o so em Velsquez. (SCHNEIDER, 2007, p. 88)

    A literatura clssica do Modernismo tambm se rendeu a esttica visual de

    Vermeer. Em 1921, Marcel Proust, em Em busca do tempo perdido (volume V), A prisioneira, descreve a admirao de seu personagem Bergotte (escritor, em fase terminal), quando este se depara com o quadro Vista de Delft em uma exposio:

    Finalmente, ele encontrava-se diante do Vermeer, que to vivo tinha na sua memria, diferente de tudo quanto ele conhecia, mas no qual, graas ao artigo do crtico, reconhecia pela primeira vez as figurinhas vestidas de azul, constatando, alm disso, que a areia tinha uma tonalidade rosa, e por fim, tambm a preciosa matria da pequena parede amarela. A sensao de vertigem aumentou; cravou o olhar como uma criana numa borboleta amarela que desejasse apanhar no precioso canto da pequena parede. Assim deveria eu ter escrito, pensou ele. Os meus ltimos livros so demasiado secos, deveria ter usado mais cor, tornado a minha linguagem to preciosa em si mesma como o este pequeno canto de parede amarela [...] Para o escritor que enfrentava a morte, o pormenor torna-se na prpria definio da arte: [...] este canto amarelo da parede, feito com tanta

  • 28

    percia e subtileza consumada por um pintor que permanece para sempre desconhecido e insuficientemente identificado pelo nome Vermeer. (PROUST, citado em SCHNEIDER, 2007, p. 88)

  • 29

    2. VERMEER DE DELFT

    O sculo XX por meio de pesquisadores como Pieter T. A. Swillens, em

    Johannes Vermeer, painter of Delft: 1632-1675, e principalmente como o economista

    John Michael Montias, em seu livro Vermeer and his millieu: A web social history

    resgatou um dos maiores representantes da arte pictrica do sculo XVII da

    Holanda. Eles reuniram dados sobre a vida e carreira artstica de Vermeer,

    pesquisaram em arquivos e documentos (testamentos, escrituras, penhoras e inventrios) do sculo XVII, na Holanda, e principalmente no maior acervo documental artstico, os trinta e cinco quadros deixados pelo artista.

    Maurice Halbwachs, em seu livro A memria coletiva (2004, p. 75), observa que a memria se apoia no passado vivido, permitindo a constituio de uma

    narrativa sobre o passado do sujeito de forma viva e natural, mais do que sobre o passado apreendido pela Histria escrita oficial. O levantamento documental feito

    por Montias proporciona uma abrangncia de fatos e dados que permite resgatar o

    perodo histrico: o que justifica ao historiador estas pesquisas de detalhe que o detalhe somado ao detalhe resultar num conjunto, esse conjunto se somar a outros conjuntos, [...] e merece ser enfatizado e transcrito na mesma medida (HALBWACHS, 2004, p. 89). Jacques Le Goff (1984, p. 45) complementa afirmando que, como o passado no a Histria, mas o seu objeto, tambm a memria no a Histria, mas um dos seus objetos e simultaneamente um nvel elementar de elaborao histrica.

    Marc Bloch salienta que a diversidade dos testemunhos histricos quase

    infinita. Tudo o que o homem diz ou escreve, tudo o que fabrica, tudo o que toca

    pode e deve informar-nos sobre ele (BLOCH, citado em LE GOFF, 1984, p. 110). Nos registros da Nieuwe Kerk (Igreja Nova) de Delft foi apurado, em 1625, que o pai

  • 30

    de Vermeer adotou oficialmente o nome de Vermeer, mas no h registro oficial que

    justifique a alterao no sobrenome. Vermeer era o segundo filho de Janz Vos e de sua esposa Digna Baltens. Pressupe-se que pertenciam classe mdia baixa. Em

    outubro de 1632, Vermeer foi batizado na Nieuwe Kerk8 em Delft, templo da Igreja Protestante, situado na Praa do Mercado de Delft (a segunda igreja da cidade). Passou sua infncia na estalagem Mechelen9, que seu pai havia comprado com o

    intuito de melhorar a renda familiar.

    O ano de 1653 visto como um marco na vida do pintor Vermeer. Em 20 de

    abril contrai matrimnio com Catharina Bolnes, filha de Maria Thins descendente

    de uma famlia rica e com muitas propriedades. Inicialmente Maria Thins no

    concordou com o casamento, provavelmente pela dificuldade econmica e educao

    religiosa dos Vermeer (calvinistas), diferente da famlia Bolnes (catlica). Segundo Schneider (2007, p. 8), um amigo comum, Leonaert Bramer, intercedeu a favor de Vermeer junto a Maria Thins. Provavelmente, Vermeer se converteu ao catolicismo para conseguir a aprovao de sua sogra, pois, pelo Conclio de Trento, a Igreja Catlica no reconhecia a unio matrimonial entre catlicos e protestantes. A Igreja Catlica prezava o dogma do matrimnio como parte dos sete sacramentos, ao

    contrrio da Igreja Protestante. Aps o casamento, foram morar na estalagem Mechelen. Logo em seguida

    mudaram-se para a residncia de Maria Thins, em Oude Langendijk, o bairro dos papistas. Segundo Vergara, Vermeers marriage, outside the familys religion and

    social class, was exceptional. It entailed a move from the lower, artisan class of his

    8 Em 1584, Guillerme de Orange foi enterrado dentro da igreja, em um mausolu desenhado por

    Hendrick e Pieter de Keyser. Desde ento, os membros da Casa de Orange-Nassau tm sido enterrados na cripta real desse templo. 9 Foi comprada pelo pai de Vermeer, em 1641. Situada no lado norte da praa do Mercado, a

    estalagem foi construda no sculo XVI. Frequentavam a estalagem clientes ricos, e a burguesia de Delft. (SCHNEIDER, 2007, p. 7).

  • 31

    Reformed parents to the higher social stratum of the Catholic in-laws, and from

    Delfts Market Square to its papists Corner, the Catholic quarter of the city10

    (VERGARA, 2001, p. 56). Tiveram um casamento estvel e feliz. Dos quinze filhos, quatro faleceram. Vermeer tinha como profisso a pintura. Na maior parte do tempo

    era negociante de arte, tendo exercido por duas vezes o cargo de Hoofdman

    (sndico) da Guilda de So Lucas (1662/63 1670/71). Os primeiros trabalhos de Vermeer traduzem um estilo mais religioso, mitolgico. Maria Thins possua um

    pequeno acervo de quadros que Vermeer empregou como claves interpretandi,

    chaves interpretativas dos seus prprios quadros, entre os quais inclua A alcoviteira

    (fig. 3), de Dirck van Baburen, e um quadro de um Cristo na Cruz, [...] que aparece em pano de fundo na Alegoria da F (fig. 4) de Vermeer (SCHNEIDER, 2007, p.10).

    Figura 3 A alcoviteira (1622), de Figura 4 A alegoria da f (1660-1674), Dick Baburen de Vermeer

    Fonte: www.essentialvermeer.com Fonte: www.essentialvermeer.com

    10 O casamento de Vermeer fora da religio de sua famlia e, tambm fora de sua classe social, foi

    excepcional. Isto ocasionou uma mudana para o filho de arteso/pintor da classe baixa protestante para a camada social alta de seus sogros catlicos. Alm disso, ele saiu da Praa do Mercado de Delft para a Esquina do Papista, o quarteiro catlico da cidade (VERGARA, 2001, p. 56). Trad. Daniele M. Castanho Birck.

  • 32

    Tambm era comum Vermeer usar peas de vesturios nos seus quadros. O

    casaco de cetim amarelo com bordadura de arminho de sua esposa se tornou um

    marco em vrios quadros. Por vezes alterava as cores com o intuito de encontrar

    outros matizes. Os objetos domsticos sempre eram includos em seus cenrios. Adaptava seus mobilirios para chegar perfeio do espao.

    A contribuio do acervo de Maria Thins, mesmo que indireta, permitiu a

    formao e o desenvolvimento artstico de Vermeer. Maria Thins propiciou a

    Vermeer uma estabilidade econmica, dando-lhe maior segurana. Sua produo

    seguia um ritmo, produzia uma mdia de dois quadros por ano. O universo pictrico

    de Vermeer evoluiu, sua produo no atendia a um grande pblico e o artista

    passou a produzir sob encomenda.

    Vermeer utilizou como inspirao cenrios do cotidiano ambientes internos

    das residncias, pessoas comuns, paisagens e desenvolveu um estilo de pintura

    que priorizava o retrato e o gnero. Foi apadrinhado por Pieter Claez van Ruijven, cidado ilustre de Delft. Acredita-se que este tenha adquirido boa parte de sua

    produo pictrica. Vermeer deixou como legado cultural trinta e cinco quadros, que

    se encontram em mos de colecionadores e em museus de vrios continentes.

    Figura 5 - Cidade plana de Delft, de Joh Blaeu's

    Mapa da cidade de Delft Fonte: www.essentialvermeer

  • 33

    1. Mechelen Vermeer's father's inn where the painter was born and raised.

    2. St. Luke's Guild the guild of Delft's artisans and artists.

    3. The Little Street the presumed location of Vermeer's Little Street.

    4. Maria Thin's House Vermeer's mother-in-law's house & where Vermeer lived after Mechelen.

    5. Stadthuis Delft City Hall.

    6. Jesuit Church Vermeer's mother-in-law's house and Vermeer's residence.

    7. Oude Kerk Delft's oldest parish church founded about 1246 and Vermeer's burial place.

    8. Nieuwe Kerk second parish church of Delft founded in 1496. 9. 'Flying Fox' Vermeer's birthplace and his father's inn.

    10 View of Delft by Fabritius the point from which Fabritius painted his own View of Delf.t

    No mapa de Delft11 (fig. 5), podemos ter uma visualizao do espao trabalhado, tanto na produo literria quanto na produo flmica. Os cenrios

    apresentados neste mapa sero significativos para a produo textual.

    2.1 AS ALEGORIAS EMBLEMTICAS DE VERMEER: A F E A HISTRIA Dois dos quadros de Vermeer diferem tematicamente das outras produes

    pictricas. Podem ser classificados como realistas, por estarem mais relacionados

    com o cotidiano. Ambos contm elementos alegricos: um retrata a personificao

    da f A alegoria da f (1660 -1670) (fig. 4), de orientao catlica; o outro

    11 1. Mechelen: Hospedaria do pai de Vermeer, onde o pintor nasceu e foi educado.

    2. Corporao de So Lucas: A corporao dos artesos e artistas de Delft. 3. A Pequena Rua: A presumida localizao da Pequena Rua de Vermeer. 4. Casa de Maria Thins: A casa da sogra de Vermeer, onde Vermeer morou depois de Mechelen. 5. Stadthuis: Prefeitura de Delft. 6. Igreja Jesuta: Casa da sogra de Vermeer e residncia de Vermeer. 7. Oude Kerk: A mais antiga parquia de Delft, fundada por volta de 1246 e lugar de sepultamento de Vermeer. 8. Nieuwe Kerk: A segunda igreja paroquial de Delft, fundada em 1496. 9. Raposa Voadora: Lugar de nascimento de Vermeer e hospedaria de seu pai. 10. Vista de Delft por Fabritius: O ponto de onde Fabritius pintou a sua prpria Vista de Delft. Trad. Mariano Kawka.

  • 34

    representa a musa Clio com seus atributos A arte da pintura (1662-1668) (fig. 13). As semelhanas entre as duas pinturas so impressionantes, e o cenrio retratado

    idntico. Os objetos utilizados nas pinturas se repetem: a tapearia, no lado esquerdo, a disposio da cadeira, o destaque para as vigas e, principalmente, a

    perspectiva do pintor em relao protagonista. Presume-se que a encomenda de A

    alegoria da f tenha sido feita pelos padres da Misso Jesutica de Delft, pois o

    simbolismo se aproxima da iconografia jesutica. A. J. Barnouw, em 1914, defendeu a teoria de que Vermeer utilizou o livro Iconologia de Cesare Ripa (traduzido para o neerlands em 1644) para trabalhar os elementos alegricos na produo desse quadro (BARNOUW, citado em SCHNEIDER, 2007, p.79).

    Cesare Ripa descreve:

    A F representada atravs de uma mulher sentada, segurando reverentemente um clice na mo direita e apoiando a esquerda sobre um livro pousado numa slida pedra angular que representa Cristo. Aos seus ps, tem o Mundo. Est vestida de azul-celeste, com um manto carmim. Por trs da pedra angular, jaz uma serpente esmagada e a Morte, com as suas flechas quebradas. Perto, est uma ma, a origem do pecado. Por trs dela, pende de um prego uma coroa de espinhos [...]. (RIPA, citado em SCHNEIDER, 2007, p. 79)

    Constata-se, na pintura (fig. 4), que Vermeer no seguiu risca as indicaes de Ripa. As indicaes do manto carmim e da coroa de espinhos so

    expostas na parede do quadro, que representa a Crucificao de Cristo simplificada

    de Jacob Jordaens (fig. 6).

  • 35

    Figura 6 - Quadro da Crucificao. Figura 7- Tapearia. Detalhe da pintura A alegoria da f (fig. 4). Detalhe da pintura A alegoria da f (fig. 4).

    Fonte: www.essentialvermeer.com Fonte: www.essentialvermeer.com

    Os detalhes atribudos tapearia retratada acima so significativos. No

    quadro a tapearia foi puxada para trs, em forma de repoussoir um recurso

    usado, entre os sculos XVI e XIX, pelos artistas que pintavam na tela uma figura ou

    um objeto no extremo do primeiro plano, usado como contraste para aumentar a iluso de profundidade (MICHAELIS, 2008). Vermeer pretendia dar obra uma dramaticidade, com o intuito de realar a cena. Esto presentes os sinais na imagem

    da cmara escura, uma forma arredondada e a tcnica de pointills para destacar a

    textura spera da tapearia (fig. 7). Martin Bailey (1995, p.118) descreve a figura da F em pose teatral, uso

    exagerado da dramatizao. O globo terrestre de Hondius (1618) o mesmo retratado em O gegrafo, de Vermeer, onde a F descansa o p no globo terrestre,

    especificamente no continente asitico.

    A sua inscrio no globo (fig. 8) enaltece o Prncipe Maurcio de Nassau-Orange (1567-1625), que no perodo era governador da Holanda. Evidente que as intenes de Vermeer eram polticas, demonstrando sua ligao Casa dos

    Orange. Da mesma forma, na tapearia encontramos smbolos herldicos desse

    governador, laranja e a flor-de-lis da Burgndia (fig. 9).

  • 36

    Figura 8- O globo de Hondius Figura 9 Tapearia Detalhe da pintura A alegoria da f (fig. 4). Detalhe da pintura A alegoria da f (fig. 4).

    Fonte: www.essentialvermeer.com Fonte: www.essentialvermeer.com

    No cho est a ma mordida que representa o pecado; a serpente

    esmagada simboliza a vitria do bem sobre o mal (fig. 10). O simbolismo da maioria dos objetos est relacionado ao culto e dogma catlico: o livro sagrado sobre a mesa, o clice dourado da eucaristia e o crucifixo (fig. 11).

    Figura 10 A serpente e a ma Detalhe da pintura A alegoria da f (fig. 4). Fonte: www.essentialvermeer.com

    Figura 11- Clice, crucifixo e a Bblia. Detalhe da pintura A alegoria da f (fig. 4). Fonte: www.essentialvermeer.com

  • 37

    A passagem mais cativante da pintura o globo de vidro pendente na viga

    do teto, que Vermeer provavelmente buscou no livro de emblemas de Willem

    Heinsius, de 1636, no qual o globo descrito como smbolo do poder e da razo. Na

    bola de vidro, Vermeer conseguiu retratar esse poder, utilizando a tcnica da

    luminosidade e o jogo de luz com muita perfeio a partir da gravura (fig.12): um menino (que representa a pureza da criana) segurando uma esfera que reflete o sol, a vastido do universo e a f do homem (SCHNEIDER, 2007, p.79).

    Figura 12 Willem Heinsius Fonte: www.essentialvermeer.com

    O quadro A arte da pintura12 de Vermeer (fig. 13) visto por muitos historiadores como um testamento do artista. Segundo Schneider (2007, p. 81), os amadores deram ao quadro um ttulo que no se adapta ao tema iconogrfico.

    [...] a jovem que enverga um manto de seda azul, uma saia amarela e uma coroa de folhas, e que segura um trombone na mo direita e livro de capa amarela na esquerda, no , de forma alguma, uma alegoria da arte de pintar [...]; ela e

    12 No ano de 1676, o quadro passou das mos da viva Catharina Bolnes para as de sua me, Maria

    Thins, a fim de liquidar as suas dvidas. A partir desse episdio, o quadro descrito como a Arte da pintura. Anteriormente a pintura havia recebido vrios nomes, como, por exemplo, Em louvor da arte da pintura.

  • 38

    nisso no h qualquer dvida a Musa Clio, a Musa da Histria. (SCHNEIDER, 2007, p. 81)

    Figura 13 - A arte da pintura (1666-1668), de Vermeer

    Museu Kunsthistorisches, Viena Fonte: www.essentialvermeer.com

    O tema abordado na pintura (fig. 13) por Vermeer tem um cunho poltico, e a presena da Musa Clio demonstra a sua inteno de destacar um feito histrico. O

    espao utilizado pressupe que seja de seu estdio, em funo da presena da mesa de carvalho (mencionada no inventrio de Maria Thins). A forma como disponibiliza os objetos no cenrio conduz o observador a um acontecimento histrico grandioso.

    O objetivo central dos pintores holandeses era captar, sobre uma superfcie, uma grande quantidade de conhecimentos e informaes sobre o mundo. O

    contexto histrico era retratado pelas imagens.

  • 39

    A presena do mapa representando a Holanda setentrional e meridional

    reporta a uma imagem de um passado em que todas as provncias formavam um

    pas. Independentemente desse fato, o mapa dentro da pintura d a impresso de

    ser uma pea de pintura por direito prprio (ALPERS, 1999, p. 243). Em muitas pinturas do sculo XVI e XVII, encontram-se mapas representados nas pinturas.

    Acredita-se que o fato de os holandeses terem uma economia voltada para o

    comrcio martimo, utilizando-se das Companhias de Comrcio Ocidental e Oriental,

    contribuiu na produo de cartas. Outro fator apresentado por Alpers (1999), no qual a cartografia est relacionada reproduo da Holanda em funo de fatores

    sociais, econmicos e polticos.

    A Holanda setentrional era o nico lugar da Europa da poca onde mais de cinquenta por cento da terra era de propriedade de camponeses. Diferentemente de outros pases [...] na prtica era fcil fazer o levantamento topogrfico da terra numa situao que no apresentava nenhuma ameaa aos arrendatrios ou a quem quer que fosse. (ALPERS, 1999, p. 286-287)

    Isso de certa forma explica a demanda de produes cartogrficas na

    Holanda, representadas nas produes pictricas dos sculos XVI XVII. Pode-se

    considerar o papel do mapa como algo grandioso e imponente, que coloca o mundo

    ou lugares do mundo diante do olhar do observador, que, por sua vez, pode transpor

    o espao imaginrio que o cerca. O mapa reproduzido na pintura A arte da pintura

    (fig. 13), por apresentar uma smula da arte cartogrfica da poca, foi considerado pelos historiadores de arte como o mais complexo no conjunto das obras de Vermeer. Segundo Alpers, a representao do mapa (fig. 14) difere de outros mapas das pinturas de Vermeer:

    Em qualquer outra obra do pintor existe um mapa, que cortado pela borda da pintura. Mas aqui somos induzidos a v-lo sob uma luz diferente. Embora ele seja

  • 40

    roado por um pedao da tapearia e uma pequena rea seja escondida pelo candelabro, a extenso total desse enorme mapa torna-se plenamente visvel na parede. [...] Vermeer une irrevogavelmente o mapa sua arte de pintar ao apor a ele o seu nome I Ver-Meer. [...] Em nenhuma outra pintura Vermeer reivindica que o mapa da sua prpria autoria. (ALPERS, 1999, p. 245- 246)

    Figura 14 Cartografia Figura 15 Musa Clio Detalhe da pintura A arte da pintura (fig. 13). Detalhe da pintura A arte da pintura (fig. 13).

    Fonte: www.essentialvermeer.com Fonte: www.essentialvermeer.com

    A carta (fig. 14) que cobre grande parte da parede da pintura A arte da pintura foi desenhada por Claes Jansz Visscher (Piscator)13, em torno de 1692. O que chama a ateno no contexto da pintura que Vermeer privilegiou um perodo

    histrico passado um retorno geografia poltica holandesa. A carta mostra as

    dezessete antigas provncias, e no a regio da Repblica das Provncias Unidas.

    Esse fato corresponde ao perodo anterior ao tratado de paz assinado com a

    Espanha, em 1609. A carta tem nos dois lados a pintura das cidades holandesas. A

    inscrio Oceanus Germanicus faz referncia Casa dos Habsburgo. direita a

    13 A famlia Visscher era uma proeminente famlia de editores holandeses de mapas que tocaram seu

    negcio por aproximadamente um sculo. A histria cartogrfica dos Visscher se inicia com Claes Jansz Visscher, filho de um carpinteiro de navios que estabeleceu sua firma de edio e publicao de mapas em Amsterd, prximo s oficinas de Pieter van den Keer e Jodocus Hondius.[...] Muitos fazem hipteses de que Visscher pode ter sido um dos pupilos de Hondius e, quando fazemos uma anlise mais prxima do tema, isso parece lgico e plausvel. Os primeiros mapas de Claes Janz Visscher aparecem por volta de 1620 e incluem numerosos mapas individuais, bem como um Atlas compilado com mapas de vrios cartgrafos e do prprio Visscher. [...]. H tambm muitos outros mapas que carregam a assinatura "Piscator", que uma verso latinizada do nome Visscher, e normalmente apresenta a imagem de um velho pescador. (Biblioteca digital Mapas histricos USP. Disponvel em: )

  • 41

    expresso Germania Inferior o antigo nome latino da Holanda. Se observarmos o

    mapa direita, verifica-se um vinco uma dobra vertical que representa a fronteira

    entre a Holanda protestante e a regio catlica de Flandres, controlada politicamente

    pelos espanhis.

    James A. Welu chamou ateno para o fato de Clio (fig. 15) segurar o trombone em frente vista da corte holandesa em Haia, que era a residncia da

    Casa de Orange (o trombone era o smbolo tradicional da glria, ou fama; Clio deriva etimologicamente do grego Klos, ou fama) (WELU, citado em SCHNEIDER, 2007, p.82). Vermeer teve a inteno de homenagear a Casa de Orange. Historicamente o perodo trabalhado na pintura se reporta administrao da Casa de Orange14,

    especificamente no momento em que havia perdido a sua autoridade. Aps um

    longo perodo no incio da Guerra Franco-Holandesa de 1672-78, retorna ao poder

    Guilherme III, assumindo o supremo comando militar. Esses fatos intrigam os

    pesquisadores, pois se acreditava que a datao do quadro seria dos anos 60, mas,

    pelos fatos apresentados, teria sido produzido no ltimo tero de 1673.

    Alpers destaca a importncia dada ao mapa por Ortelius, na introduo ao

    seu Theatrum orbis terrarum (1606): Os mapas que so colocados como certos culos diante dos nossos olhos sero guardados por mais tempo na memria e

    deixaro uma impresso mais funda sobre ns (ALPERS, 1999, p. 299). Isso

    14 Em l653, Jan de Witt (1625-1672), grande pensionrio da Holanda, tinha excludo a Casa de

    Orange do governo do estado com o decreto Acte vans seclusie. Com o Edicto Eterno (1667), foi retirado mesmo o posto militar de comandante-chefe ao jovem governador Guilherme III (1650-1702). Tudo isso, que os seguidores do partido do governador sentiram como uma humilhao se alterou de repente quando o partido do regente Jan de Witt, pela pouco hbil conduo da guerra contra a Frana, passou a ficar numa posio defensiva em termos de poltica interna. O exrcito de Lus XIV, que penetrou nos Pases Baixos, foi rechaado por Witt apenas com a abertura dos diques, o que deixou o pas inundado. Esse ato, contudo, causou enormes danos agricultura. Entre a populao, cresceu o descontentamento contra Witt. Ele e seu irmo Cornelis foram assassinados por uma multido furiosa. Isso sucedeu a 20 de agosto de 1672. Nessa fase, todas as esperanas se orientavam ento para o jovem governador Guilherme III. (SCHNEIDER, 2007, p. 83).

  • 42

    realmente ficou explcito na pintura de Vermeer, pois a iluminao dada ao mapa

    dentro da pintura foi instigante e conduziu o observador a um passado glorioso,

    enaltecendo o nacionalismo holands.

    Figura 16 Lustre Figura 17 A mscara Detalhe da pintura A arte da pintura (fig. 13). Detalhe da pintura A arte da pintura (fig. 13).

    Fonte: www.essentialvermeer.com Fonte: www.essentialvermeer.com

    Segundo Schneider (2007, p. 84), outro indcio seria o lustre (fig. 16) com a guia de duas cabeas dos Habsburgos. Vermeer incluiu em sua pintura vrios

    smbolos da dinastia dos Habsburgos como homenagem memria do antigo

    Imprio da Burgndia, no qual Guilherme I de Orange teve um papel importante

    como lder da resistncia. A presena de Clio (fig. 15), musa da Histria, teve um valor emblemtico nas vitrias militares, principalmente contra a Frana, na disputa

    pelo Franco-Condado (que a Frana conquistou somente na primavera de 1674). A imagem de Clio est presente no tmulo da Casa de Orange na Nieuwe Kerk de

    Delft, e aos ps da escultura de mrmore de Guilherme I, na lpide do tmulo, surge

    a fama com um trombone (SCHNEIDER, 2007, p. 84). Com relao mscara (escultura) (fig. 17) sobre a mesa, Vermeer poderia

    ter sugerido duas hipteses como anlise: a questo da rivalidade entre as artes,

    pintura e escultura a teoria do Paragone, discutida por Leonardo da Vinci, na qual

    Vermeer defende veementemente a pintura como arte por questes lgicas; a

  • 43

    homenagem a Guilherme I, baseada na cabea da figura tumular, ou numa

    mscara de terracota de Hendrick de Keyser, existente no Prisenhof em Delf

    (SCHNEIDER, 2007, p. 84). As interpretaes do quadro, considerado um louvor arte da pintura (fig.

    13), so infinitas. A contribuio histrica retratada por Vermeer, tanto do ponto de vista artstico quanto histrico, representou um marco na anlise visual, pois o artista

    utilizou vrios signos interpretativos, proporcionando inmeras vertentes para a

    anlise iconogrfica.

    Sandra J. Pesavento refere-se origem de Clio:

    No Monte Parnasso, morada das Musas, uma delas se destaca. Fisionomia serena, olhar franco, beleza incomparvel. Nas mos, o estilete da escrita, a trombeta da fama. Seu nome Clio, a musa da Histria. Neste tempo sem tempo que o tempo do mito, as musas, esses seres divinos de Zeus e de Mnemsine, a Memria, tm o dom de dar existncia quilo que cantam. E, no Monte Parnasso, cremos que Clio era uma filha dileta entre as Musas, pois partilhava com sua me o mesmo campo do passado e a mesma tarefa de fazer lembrar. Talvez, at, Clio superasse Mnemsine, uma vez que, com o estilete da escrita, fixava em narrativa aquilo que cantava, e a trombeta da fama conferia notoriedade ao que celebrava. (PESAVENTO, 2003, p. 7)

    Figura 18 - Clio Figura 19 O pintor annimo Detalhe da pintura A arte da pintura (fig. 13). Detalhe da pintura A arte da pintura (fig. 13).

    Fonte: www.essentialvermeer.com Fonte: www.essentialvermeer.com

  • 44

    Como no quadro Alegoria da F (fig.4), as evidncias levam a crer que Vermeer utilizou o livro sobre Iconologia de Cesare Ripa para retratar Clio (fig. 18), na obra A arte da pintura. Vermeer destacou todos os cones que representaria Clio:

    a coroa de louro que representa a vitria; a trombeta na mo direita que referencia

    fama; o livro amarelo da sabedoria, no qual esto registradas as vitrias militares

    descritas por Tucdides; o vestido azul poderia enaltecer o mundo real dos feitos da

    humanidade. A pintura em destaque com a Musa da Histria no centro da alegoria

    foi valorizada por Vermeer, com a inteno de enfatizar a importncia da Histria

    nas artes visuais, bem como o cone que representa os feitos hericos. Trazer para

    a contemporaneidade a mitologia por meio da pintura representou um desafio para

    Vermeer, pois, segundo Pesavento (2003, p.7), o tempo pertencia aos homens e no mais aos deuses. Nesse sentido Vermeer redescobriu Clio, como imagem

    figurativa, com o intuito de registrar o passado e deter a autoridade da fala sobre os

    fatos, homens e datas de um outro tempo, assinalando o que deve ser lembrado e

    celebrado (PESAVENTO, 2003, p. 7). Finalmente nos reportamos ao pintor annimo sentado em frente ao seu

    cavalete origem da obra (fig. 19). A imagem do pintor em frente a uma tela iniciada vista como smbolo de concetto, definido a partir da retrica barroca como

    um agrupamento de imagens, uma expresso figurada que encontra na pintura o

    seu paradigma [...] forma extrema da metfora esse milagre espiritual que nos

    permite ver um objeto em outro (OLIVEIRA, 2010), uma inspirao artstica. Em relao ao traje do artista, trata-se de uma roupa do sculo XV. Vermeer

    induz o observador a estabelecer uma conexo entre a arte de seu tempo e a dos

    perodos dos grandes mestres. Se observarmos o artista iniciando uma pintura,

    encontraremos no lado direito superior a mo do artista repousando num mahl stick

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    instrumento em que o artista apoia a mo para pintar os detalhes. A ponta do

    basto acolchoada e, dessa forma, pode repousar sobre a tela sem danific-la.

    Sobre a pintura inicial na tela, encontramos vrias definies: o artista enaltecendo

    Clio como foco de sua pintura, ou mesmo a coroa de louro pintada, simbolizando o

    triunfo da arte.

    Aps as primeir