130
 Universidade Federal da Bahia Faculdade De Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós Graduação Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos MARCOS VINICIUS SANTOS DIAS COELHO O HUMANO, O SELVAGEM E O CIVILIZADO DISCURSO SOBRE A NATUREZA EM MO ÇAMBIQUE COLONIAL, 1876-1918 Salvador, 2009

dissertacao_MVSDCoelho

Embed Size (px)

DESCRIPTION

O HUMANO, O SELVAGEM E O CIVILIZADO DISCURSO SOBRE A NATUREZA EM MOÇAMBIQUE COLONIAL, 1876-1918MARCOS VINICIUS SANTOS DIAS COELHO

Citation preview

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    1/130

    Universidade Federal da Bahia

    Faculdade De Filosofia e Cincias HumanasPrograma de Ps Graduao Multidisciplinar em Estudos tnicos eAfricanos

    MARCOS VINICIUS SANTOS DIAS COELHO

    O HUMANO, O SELVAGEM E O CIVILIZADODISCURSO SOBRE A NATUREZA EM MOAMBIQUE COLONIAL, 1876-1918

    Salvador, 2009

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    2/130

    2

    MARCOS VINICIUS SANTOS DIAS COELHO

    O HUMANO, O SELVAGEM E O CIVILIZADODISCURSO SOBRE A NATUREZA EM MOAMBIQUE COLONIAL, 1876-1918

    Salvador2009

    Dissertao apresentada ao Programa Multidisciplinarem Estudos tnicos e Africanos, Faculdade deFilosofia e Cincias Humanas, Universidade Federal daBahia, como requisito para o grau de Mestre emEstudos tnicos e Africanos.

    Orientador: Prof. Dr. Valdemir Donizette Zamparoni.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    3/130

    3

    Biblioteca CEAOUFBA

    C672 Coelho, Marcos Vinicius Santos Dias.O humano, o selvagem e o civilizado: discursos sobre a natureza em Moambique

    colonial 1876-1918 / por Marcos Vinicius Santos Dias Coelho. - 2009.129f.

    Orientador: Prof Dr. Valdemir Zamparoni.Dissertao (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e

    Cincias Humanas, 2009.

    1. Natureza e Civilizao Moambique - Histria. 2. Moambique Histria

    1876-1918. 3. Moambique - Civilizao - Influncias africanas. 4. Moambique -Civilizao - Influncias europias. 5. Portugal - Colnias - frica. I. Zamparoni,Valdemir, 1957- II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e CinciasHumanas. III. Ttulo.

    CDD 967.902

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    4/130

    4

    MARCOS VINICIUS SANTOS DIAS COELHO

    O HUMANO, O SELVAGEM E O CIVILIZADODISCURSO SOBRE A NATUREZA EM MOAMBIQUE COLONIAL, 1876-1918

    Salvador, ___ de Dezembro de 2009.

    Banca Examinadora :

    ________________________________________________Prof. Dr. Valdemir Donizette Zamparoni (orientador)

    Universidade Federal da Bahia

    __________________________________________________Prof. Dr. Osmundo Santos de Arajo Pinho

    Universidade Federal do Recncavo da Bahia

    __________________________________________________Prof. Dr. Jacques Depelchin

    University of Berkeley

    Dissertao apresentada ao Programa Multidisciplinarem Estudos tnicos e Africanos, Faculdade deFilosofia e Cincias Humanas, Universidade Federal daBahia, como requisito para o grau de Mestre emEstudos tnicos e Africanos.

    .

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    5/130

    5

    AGRADECIMENTOS

    Proceder esta parte do trabalho certamente a mais fcil, embora no a mais

    cmoda. Pode-se incorrer no erro de esquecer pessoas que, de alguma forma contriburam

    direta ou indiretamente com a consecuo deste trabalho, a estes me desculpo

    antecipadamente. Antes das pessoas, devo agradecer Fundao de Apoio Pesquisa do

    Estado da Bahia (FAPESB), pelo suporte financeiro dado a esta investigao.

    Feito isto, fica a incerteza de por onde comear os agradecimentos. Em primeiro

    lugar a meus pai e me: Ana e Edvaldo. Eles foram responsveis pela formao existencial

    deste autor, que finaliza seu primeiro trabalho de flego. Segundo, como sem a graduao,

    esta pesquisa sequer teria comeado, agradeo ao meu amigo de infncia, ou melhor, irmo

    Alain Santiago por ter me apoiado nos momentos mais difceis da minha graduao, seja

    moral, seja materialmente. Obrigado por ter sempre acreditado. Tambm outra amiga-irm

    que me socorreu aos 46 minutos do segundo tempo: Adriana Reis. Amigo-irmo e amiga-

    irm de infncia, h tanto tempo juntos que so responsveis por todas as vitrias

    alcanadas. J que estou falando dos irmos, agradeo tambm a Ana Paula e seu

    companheiro Luis Cludio, que em muitas ocasies me socorreram em momentos desufoco. Tambm agradeo a meu irmo caula, Leonardo por ter, no momento crucial,

    estado junto a nosso pai. Tambm devo lembrar dos meus tios Valter, Jaime, Bernadete,

    Jacira e Irandete, incentivadores, apoiadores e celebradores da vida. Tambm agradeo

    minha tia Ldia e minha prima Ftima, ambas foram trechos importantes desta jornada.

    Daqui, posso ir direto aos colaboradores acadmicos. Devo agradecer a todos

    aqueles que contriburam com este trabalho no seu nascedouro, lendo e criticando, quando

    esta obra era ainda um projeto. Entre estes, posso relacionar o professor Muniz Ferreira, oscolegas Rogrio Santos e Fabio Alexandria, a amiga Mariele Arajo. Todos eles, em meio

    s suas responsabilidades, dedicaram um precioso tempo de suas vidas para auxiliar o ainda

    no graduado que pretendia trilhar uma vida acadmica.

    J no processo propriamente dito, gostaria de agradecer professora Florentina

    Souza e aos professores Nicolau Pars, Jacques Depelchin, Marcelo Bittencourt, Joclio

    Teles, com quem tive a oportunidade de ampliar um pouco mais meus conhecimentos.

    Tambm agradeo aos meus colegas e minhas colegas de turma, companheiros e

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    6/130

    6

    companheiras do prazer de frequentar aulas acaloradas para depois refrescar as ideias

    tarde, na rua da Lama e/ou no Lder. Em especial, agradeo a Sergio Mangue e Fabio

    Baqueiro. O primeiro por dividir as primeiras incertezas e escolhas que este trabalho

    percorreu, mas tambm por partilhar as reflexes que mais tarde amadureceram e se

    consolidaram no trabalho que ora se conclui. O segundo, por quebrar muitos galhos

    devido a minha distncia de Salvador, entregando relatrios e suportes deste tipo, mas

    tambm trocando ideias.

    No posso esquecer o professor Valdemir Zamparoni, responsvel pela orientao

    deste trabalho, mas tambm pela minha iniciao nos caminhos da Histria da frica.

    Zamparoni, quando eu era ainda um nefito nos estudos da Histria, me convidou e pagou

    com recursos prprios seis meses de bolsa em uma pesquisa que me abriu os olhos para

    este tema fascinante. Alm disso, foi um grande suporte em muitos momentos desta, ainda

    muito recente, vereda acadmica que trilho. Nos momentos de incertezas, de aflio, de

    cansao, de desespero me dispensou um apoio moral muito importante, mesmo a

    quilmetros de distncia. Entretanto, deu-me muitos puxes de orelha haja vista minha

    escrita deficiente fruto de uma pssima formao educacional bsica , teimosia

    empedernida e demais problemas que desnecessrio relatar.Por fim agredeo a algum muito especial e tambm muito paciente que aturou o

    mau humor, a tenso, a irritao, a dificuldade econmica, a chatice. Ainda assim, esta

    pessoa contribuiu com ideias, carinho, apoio e dedicao. Algum que briga, reclama, mas

    tambm chora junto e puxa para cima. Trilhar esse caminho com esse algum foi a coisa

    mais compensadora. Ela estava no incio e tambm leu o projeto, acompanhou-me em

    algumas aulas, partilhou a angstia dos trabalhos de final de curso, repartiu as dificuldades

    e as alegrias. Discutiu e concordou e no poucas vezes discordou. Corrigiu texto, sugeriu

    bibliografia, deu idias; algumas seguidas, outras no. Muito desta concluso tem sua

    marca indelvel. Obrigado, Fernanda, por ter a persistncia e a pacincia de viver comigo

    este processo to desgastante.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    7/130

    7

    Resumo

    O objeto desta investigao circunscreveu-se a mapear as representaes a respeito domundo natural elaborado por um grupo de colonizados, conceitualmente definido comofilhos da terra. Para tanto, analisou-se o discurso de um dos mais destacados filho daterra: Joo Albasini. Tal reflexo escolheu o contexto de implantao colonial no sudesteafricano, ao sul do pas hoje conhecido como Moambique, considerando 1876, comomarco inicial e 1918 como marco final de suas fronteiras temporais norteadoras. Nestesentido, investigou-se e analisou-se as influncias culturais africana e europeia quepossivelmente contribuiram para a elaborao destas representaes. Para delimitar ainfluncia africana, foi analisado o relato etnogrfico Usos e costumes dos Bantude autoriade um missionrio suo: Herni Alexarder Junod. J a influncia europeia foi investigada apartir da interpretao do discurso de portugueses que estiveram envolvidos em debatessobre a colonizao, bem como na implantao e consolidao da empresa colonial. Asconcluses aqui apresentadas evidenciam que, atravs do processo colonial, os europeusconseguiram pelo menos na dimenso analisada impor sua perspectiva de mundo. Porsua vez, foi possvel demonstrar quais eram as representaes sobre a natureza elaboradaspor certos povos africanos que viviam nesta regio antes da ocupao europeia.

    Palavras-chave: Moambique, Colonialismo, Natureza, Civilizao e Selvagem.

    Abstract

    This researchs object covered the representation about natural world drew by a colonizedgroup conceptually defined as filhos da terra (homelands sons). Thus, it was analyzed adiscourse of one the most prominent filho da terra: Joo Albasini. It has chosen thecolonial consolidation process between 1876 and 1918 as historic timeframes in the todaysouthern Mozambique. In pursuit this goal, the African and European cultural influences,which contributed to drawing the natural world representation above, were investigated andanalyzed. In a way to bind the African cultural influence, it was precede the analysis ofLifein a South African Tribe, by the Swiss missionary: Henri Alexander Junod. To find out theEuropean one, the discourse produced by some Portuguese, who had involved in debatesabout colonization as well as in the colonial enterprise implantation and consolidation, wasinterpreted. The conclusions presented here evidence that throughout the colonial process,

    the Europeans reached at least in the analyzed dimension impose their worldview. Onthe other hand, it could shows what were the certain African peoples representation aboutnature in this region, before European occupation.

    Key-words: Mozambique, Colonialism, Nature, Civilization, Savage.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    8/130

    8

    Sumrio

    ndice de ilustraes 8

    Introduo 11

    1. O discurso de junod, a religio e a natureza para os tsongas 231.1 Henri Junod: missionrio, pai da antropologia sul-africana 241.2 Os tsongas: a criao de uma etnia 331.3 A religio e as possibilidades de uma abordagem histrica dos tsongas 441.4 A viso dos tsonga sobre o mundo natural 481.4.1 Humano versusnatureza 501.4.2 Um poder incontrolvel 51

    1.4.3 Reserva de recursos para a sobrevivncia 521.4.4Um ambiente hostil 541.4.5 Espelho da sociedade humana 55

    2. O mundo natural: vises sobre uma nova tradio portuguesa nocolonialismo em frica 642.1A frica selvagem e a Europa civilizada 662.2 Vises portuguesas sobre o mundo natural em frica 682.2.1 Diocleciano Fernandes das Neves:ambiguidades das vises do mundo natural antes da ocupaoo 712.2.2 Serpa Pinto e a introduo da cincia para observao da natureza 76

    2.2.3 Oliveira Martins: relaes entre darwinismo social e nacionalismo imperial 852.2.4 Antonio Enes e as bases do Projeto Colonial 872.3 As vises portuguesas da natureza e as tradies inventadas 91

    3. Joo Albasini: discurso sobre a natureza selvagem da civilizao 943.1 O Brilho das Luzes 943.2 Loureno Marques: um novo centro poltico para um novo grupo social 993.3 Os filhos da terra: pequena reflexo conceitual sobre um grupo social 1033.4 Joo Albasini: o mais destacado filho da terra 1063.5 A civilizao e o selvagem 112

    Consideraes Finais 124

    Referencias bibliogrficas 126

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    9/130

    9

    NDICE DE ILUSTRAES

    MAPASMapa 1: Mapa contemporneo de Moambique 10

    Mapa 2: Etnias do sul de Moambique 37

    Mapa 3: Possesses e ambies portuguesas na frica 70

    FIGURASFigura 1: O orculo dos ossinhos 57

    Figura 2: Consulta ao orculo 61Figura 3. Joo Albasini 107

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    10/130

    10

    Mapa 1: Mapa Contemporneo de Moambique.

    MOAMBIQUE

    FRICA DO SUL

    ZIMBBUE

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    11/130

    11

    INTRODUOOs homens fazem sua prpria

    histria, mas no a fazem comoquerem; no a fazem sobcircunstncias de sua escolha, esim, sob aquelas com que sedefrontam diretamente, ligadas etransmitidas pelo passado.

    Karl Marx

    O trabalho que aqui se apresenta visa suscitar a reflexo sobre o papel das

    representaes a respeito do mundo natural presentes no discurso elaborado por um

    importante personagem africano Joo Albasini depois do contato colonial. Tal reflexo

    escolheu o contexto de implantao colonial no sudeste africano, ao sul do pais, hoje

    conhecido como Moambique; considerando 1876 como marco inicial e 1918 como marco

    final de suas fronteiras temporais norteadoras. 1876 foi escolhido por ser o ano em que

    Loureno Marques (atual Maputo, capital de Moambique), localidade onde atuou Joo

    Albasini, foi elevada condio de vila. O crescimento desta regio est estreitamente

    relacionado com o desenvolvimento social e econmico promovido pelas mudanas das

    relaes entre a Europa e a frica no perodo em questo. J 1918 final da PrimeiraGuerra Mundial, evento que provocou transformaes, mesmo na frica, como a sada da

    Alemanha da condio de metrpole colonizadora , foi escolhido por ter ocorrido, por

    conta de problemas da prpria guerra. A venda do jornal, que uma das fontes mais

    importantes para esta pesquisa O Africano, resultou na transformao do perfil editorial

    deste jornal.

    Para alcanar tal objetivo, este estudo teve que enfrentar alguns obstculos. Os mais

    relevantes estariam ligados aos problemas da metodologia multidisciplinar, ao limite

    imposto pelas fontes e distncia geogrfica entre o local onde o trabalho foi desenvolvido

    e a localidade onde os eventos histricos estudados aconteceram. Antes de discorrer sobre

    as solues trilhadas para contornar tais obstculos, cabe delinear algumas condies que

    orientaram este estudo. Condies, no necessariamente escolhidas, sem as quais este

    trabalho no teria logrado xito. Se fazer histria intervir na construo do conhecimento,

    eis sob quais condies este trabalho foi desenvolvido.

    Era recorrente, no perodo anterior ao sculo XIX, a utilizao de expedies

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    12/130

    12

    cientficas para catalogar as novidades e excentricidades encontradas pelo mundo. Era uma

    tarefa da histria natural descrever o ambiente, o homem e os animais num todo

    relacionado e coerente.1J nos meados do sculo XIX, com uma orientao cientificista,

    frica acorreram inmeros cientistas e exploradores com a finalidade de mapear o

    territrio, delimitar o curso dos rios, catalogar as espcies animais e vegetais da regio,

    alm de registrar os usos e costumes da populao.2No importava aos observadores o

    fato de que aquelas pessoas viviam em outra realidade natural e scio-cultural. Para eles,

    urgia a necessidade de pr fim escravido e disciplinar o homem livre ao trabalho

    regulado pelo tempo abstrato dos relgios. Evidentemente com o intuito de melhor explorar

    sua fora de trabalho.3

    Neste momento, no campo do conhecimento, ocorreu uma separao entre o homem

    e a natureza. A natureza passou a ser tudo que estava em movimento, sem depender da ao

    humana, enquanto a humanidade era concebida como um fenmeno exterior natureza.

    Esta separao proporcionara a diviso da realidade entre Histria e Natureza.4 Esta

    diferenciao conceitual passou a se posicionar em dois campos diferentes do

    conhecimento: de um lado, as cincias biolgicas e do outro, as cincias humanas. Ainda

    assim persistiram interpenetraes entre esses dois campos como, por exemplo, aantropologia que tentava explicar, a partir das caractersticas biolgicas de cada espcie

    humana, uma funo de acordo com a sua capacidade.5

    Se a industrializao modificou a relao entre homem e natureza a ponto de se ter

    produzido um campo de conhecimento para cada um desses objetos, no sculo XX

    aconteceu outra mudana. A busca da legitimidade cientfica baseada na objetividade

    perseguida pelas cincias humanas, entre meados e fim do sculo XIX, passou a ser objeto

    de severa crtica. Neste mesmo perodo, a Histria passou por uma transformao na forma

    de elaborar seus objetos de estudo. Iniciava-se uma preocupao totalizante da realidade

    social em vez da anlise de uma histria poltica ou factual, baseada exclusivamente

    1LECLERC, Gerard. Crtica da Antropologia. Lisboa: Estampa, 1973, p. 13-4.2Id. Ibid., p. 17-8.3CAMACHO, Brito. A preguia indgena. In: ENNES, Antonio et alii. Antologia Colonial Portuguesa I Poltica e Administrao. Lisboa: Agncia Geral das Colnias, 1946, p. 191-4.4VIANA, Jos M. M. e MONTEIRO, Rosa C. Natureza vida Ambiente: diversas histrias. RevistaEsboos, n. 13. p. 36, s/d.5SCHWARZ, Llia M. O espetculo das raas:

    cientistas, instituies e questo racial no Brasil 1870-1930.So Paulo: Cia das Letras, 1993.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    13/130

    13

    em documentos isentos que supostamente falavam por si.6 Esta transformao inseriu

    novas preocupaes metodolgicas referentes investigao do desenvolvimento humano,

    como as relaes possveis e necessrias entre as diversas disciplinas voltadas para o estudo

    das sociedades.7A perspectiva geogrfica foi muito importante para uma das abordagens

    analticas das aes humanas. Esta, por sua vez, passou a considerar a interferncia

    recproca entre a humanidade e o ambiente natural que as envolviam.8Um dos estudos mais

    significativos nesta acepo foi a anlise feita por Braudel das estruturas quase imveis do

    desenvolvimento poltico, econmico e social, no incio da era moderna, consagrada em O

    Mediterrneo.9As categorias temporais de anlise foram instauradas como longa, mdia e

    curta duraes. A ltima relacionava-se aos eventos polticos e epidrmicos da histria,

    motivados por necessidades imediatas de conflitos polticos, econmicos e sociais. Por sua

    vez, os eventos na curta durao eram condicionados s estruturas que o limitavam. Estas

    estruturas produto da mdia durao engendravam relaes sociais conformadas em

    periodos mais longos; ademais os costumes culturais, polticos e econmicos, por ela

    consolidados, sofriam transformaes lentas. Por fim, a longa durao circunscrita em meio

    ao cenrio geogrfico o clima, o relevo e as atividades produtivas condicionavam o

    sugimento destas estruturas.10

    Embora mantendo seu foco sobre o homem, essa tendnciapermitiu o surgimento de novas abordagens que valorizavam a relao da humanidade com

    o ambiente que a envolvia.

    As concepes sobre o mundo natural uma entre as possibilidades de abordagem

    para os recentes estudos da histria ambiental.11 Donald Woster pleiteia que a histria

    ambiental um dos maiores esforos para tornar a Histria um campo de conhecimento

    mais abragente do que costumava ser, desde que, a partir de meados do sculo XIX,

    assumiu sua forma mais contempornea.12Conquanto seja muito pretenciosa a aspirao de

    Woster, sua reflexo sobre como fazer histria ambiental permitiu a visualizao de alguns

    6BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revoluo francesa da historiografia.So Paulo:Ed da UNESP, 1991, p. 18-22.7BURKE, 1991, p. 23-5.8Ibid., p. 25.9Ibid., p. 46.10Ibid., p. 46-51.11WOSTER, Donald. Para fazer histria ambiental. Estudos Histricos, n.8, vol.4, Rio de Janeiro, p. 202.1991.12Ibid., p. 198-9.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    14/130

    14

    caminhos a serem seguidos nesta proposta de trabalho.

    Este campo da histria comeou a ser elaborado por volta de 1970, concomitante

    organizao de movimentos ambientalistas ao redor do mundo. Embora tenha emergido a

    partir de uma finalidade moral e orientada por princpios polticos, a histria ambiental

    consolidou-se como uma perspectiva acadmica que ultrapassou suas primeiras motivaes

    polticas e morais. Desta forma, a histria ambiental elegeu como foco de investigao a

    relao entre as sociedades humanas e o ambiente natural que as envolvia, buscando

    perceber as interferncias mtuas desta relao.13

    Haveria trs possibilidades de abordagem para o estudo da histria ambiental. A

    primeira seria aquela relacionada exclusivamente com os processos naturais, tanto com os

    fenmenos inorgnicos quanto com os orgnicos. Nesta abordagem pode-se mesmo incluir

    o organismo humano, que possui uma diversidade de relaes com a natureza, podendo ser,

    por exemplo, presa e predador, hospedeiro e parasita. A segunda possibilidade estaria

    circunscrita interao entre a natureza e a esfera socioeconmica da humanidade. Focam-

    se neste caso as tcnicas desenvolvidas pelas distintas sociedades para adaptar sua

    existncia ao meio em que vivem, bem como a distribuio social do poder de interferir no

    ambiente. Por fim, estaria a possibilidade do estudo voltado para o puramente humano, quese preocupa em desvelar as ideias que, em diferentes pocas, as diferentes sociedades e

    indivduos elaboraram a respeito da natureza. Woster afirma ainda que nas investigaes

    sobre as concepes humanas sobre a natureza que foram elaborados os trabalhos mais

    interessantes da histria ambiental.14No coincidncia a semelhana entre a proposta de

    Woster e as definies de Braudel, tendo em vista que o trabalho do primeiro est listado

    como referncia na obra do segundo. Orientando-se na ltima perspectiva proposta por

    Woster, de alguma forma similar a curta durao de Braudel, esta investigao se

    consolidou.

    Durante o perodo compreendido entre o final do sculo XVII e o incio do XIX,

    ocorrera uma transformao na Europa. As mudanas econmicas e o paulatino processo de

    industrializao na Inglaterra desencadearam uma reelaborao das representaes sobre o

    mundo natural. O enriquecimento de um setor social radicado nos centros urbanos, ligado a

    13WOSTER, 1991, p. 199-200.14Ibid., p. 201-2.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    15/130

    15

    atividades de produo em larga escala, transformava o cenrio ambiental urbano. Este

    novo cenrio passava a ser visto como insalubre. Viso esta que impulsionava o referido

    setor enriquecido a buscar lugares, onde o contato com uma vida mais buclica

    proporcionasse-lhes o reconforto espiritual e o necessrio descanso.15

    Na Frana do final do sculo XVIII, devido saturao do estilo aguadamente

    racional, comeava a aparecer em meio aos abastados, a necessidade de isolarem-se em

    casas de campo em contato com a natureza. Os relatos de viagem das sociedades

    primitivas anunciavam inocncia e felicidade queles que retornavam natureza. Tal

    costume se transformou em moda para a alta nobreza da Frana. Claro que esta natureza era

    controlada, planejada e decorada esteticamente por paisagistas e mantidas por jadineiros,

    embora se tentasse fazer parecer que se tratava da materializao da simples realidade

    natural.16

    O marqus Joseph Gaspard de Maniban refugiava-se em uma casa de campo, sem

    nenhum fim lucrativo, onde desfrutava uma vida frugal, em meio aos jardins e parques

    onde se deleitava apreciando os prazeres do campo, entre os quais o frescor que vem das

    margens do Garonne.17 A fuga para o campo no outono, sozinho em uma estadia

    confortvel era outra forma como Diderot estabelecia a sua privacidade. Neste lugarningum o obrigava a nada e tinha tempo livre para fazer o que bem entendesse. Tambm

    podia desfrutar da companhia de pessoas seletas com idias iguais s suas. Alis,

    companhias necessrias para evitar o tdio da vida urbana.18A indicao destas mudanas

    reclama outra referncia relevante para esta reflexo, Keith Thomas e seu trabalho O

    homen e o mundo natural. Nesta obra, foi demonstrado como o desenvolvimento industrial

    ocorrido na Inglaterra transformou as concepes sobre a natureza naquela sociedade.19

    Havia pouca distino nos setores populares, entre pessoas e animais. Fosse por

    trabalharem juntos sol a sol, fosse por empregarem na linguagem nomes de animais para

    demonstrar sentimento de satisfao ou reprovao. Mesmo entre as classes mais altas

    15 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanas de atitude em relao s plantas e osanimais 1500-1800. So Paulo: Companhia das Letras, 1988, passim.16CASTAN, Nicole. O pblico e o particular. In: ARIS, Phellipe e CHARTIER, Roger . Histria da vidaprivada, 3: da Renascena ao Sculo das luzes. So Paulo: Companhia das Letras. 1991, p. 441-2.17Ibid., p. 440-1.18Ibid., p.434-5.19THOMAS, 1988, p. 111.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    16/130

    16

    ocorriam casos de se nomear pessoas com nomes de animais, como no caso de uma rainha

    inglesa que assim apelidava seus ministros.20As analogias e metforas lingusticas eram

    intercambiadas entre humanos e animais, em uma demonstrao enftica da relao de

    semelhana entre eles.21A relao entre homens e outros animais levou setores das classes

    mdias a formar uma idia sobre a inteligncia, o carter e a personalidade dos animais.

    Fundamentou-se o reconhecimento de que alguns animais deviam receber considerao

    moral. Geralmente quem escreveu sobre os animais foram intelectuais importantes da

    Inglaterra.22Na verdade, toda essa discusso intelectual j era parte do senso comum em

    meio s pessoas simples que acreditavam nos valores dos animais que com elas

    trabalhavam.23 No sculo XVIII, a combinao das concepes populares e eruditas

    resultou no ataque tese que distinguia os homens dos demais animais, curiosamente

    possibilitando a emergncia das teorias racistas, no final deste sculo.24

    possvel que a atribuio da inexistncia de grandes diferenas entre o humano e o

    animal ou melhor, o reconhecimento de que o homem um animal tenha sido

    influenciada pela anatomia comparada, onde se estudavam os corpos de animais e percebia-

    se a grande semelhana com os corpos humanos. Os monogenistas, corrente afiliada s

    teorias criacionistas, designavam os demais humanos negros e amerndios por inmerascaractersticas depreciativas, enquanto o europeu era o nico portador de qualidades nobres.

    J o poligenismo passou a ser mais amplamente cotejado por setores sociais mdios,

    concomitante consolidao das ideias de que no havia diferena entre homens e demais

    animais. Isto porque a existncia de homens em outras regies fora da Europa permitia ao

    europeu manter-se no topo da linha evolutiva, enquanto os demais povos permaneciam

    mais prximos ainda dos animais.25Neste processo, foi consolidada a ideia de que o negro

    era o humano mais prximo dos animais, uma vez que os europeus tinham sido elevados

    categoria de superior entre os humanos. Tais concepes foram a base para a antropologia

    fsica, alicerce das ideias que sustentavam que os negros estavam mais prximos dos

    20THOMAS, 1988. p. 118.21Ibid., p. 119.22Ibid., p. 144.23Ibid., p. 151.24Ibid., p. 161.25Ibid., p. 162.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    17/130

    17

    orangotangos que dos europeus.26 Desta forma, Thomas demonstrou como o

    desenvolvimento econmico, cientfico e cultural viabilizou a emergncia de uma nova

    concepo sobre os animais, o que transformou as vises sobre os outros seres humanos

    no europeus.

    Orientando-se nos mtodo de Thomas e Woster, buscou-se aqui refletir como que, a

    partir das teias sociais construdas entre europeus e africanos, na ento colnia portuguesa

    de Moambique, foram elaboradas as novas representaes sobre a natureza, a partir da

    anlise do discurso de um dos mais destacados atores sociais de sua poca: Joo Albasini.

    H de salientar que essas ideias possuam relaes ntimas com as condies materiais de

    existncia referenciada em um contexto histrico colonial particular. Por isso, fez-se

    necessrio estudar as matrizes que influenciaram o pensamento deste ator. As duas

    vertentes mais influentes seriam a africana e a europia, haja vista que Joo Albasini era

    fruto desta interao. Portanto, para entender o arcabouo cultural de Albasini, procedeu-se

    investigao das duas matrizes culturais que o influenciaram. Este percurso determinou a

    diviso desta investigao em trs captulos.

    No primeiro captulo, buscou-se fazer uma anlise do relato etnogrfico de Henri-

    Alexander Junod: Usos e costumes dos Bantu com vistas a delimitar as vises de naturezade matriz africana. Esta fonte, embora permeada de teorias evolucionistas e proselitistas

    tpicas do seu tempo, permitiu a esta investigao uma percepo da complexidade da

    dinmica cultural que ordenava os diversos povos que viveram ao sul do rio Save, no

    territrio hoje compreendido entre Moambique e a frica do Sul. A relevncia dada a esta

    fonte foi motivada pelo carter qualitativo e quantitativo das informaes nela contidas.

    Atravs deste dados foi possvel perceber quais eram e se haviam concepes sobre a

    natureza produzidas pelos africanos que habitavam esta regio e o quanto elas se

    diferenciavam das ideias dos europeus. Buscava-se nessa anlise mapear qual teria sido o

    grau de influncia das representaes produzidas por estes povos nos argumentos

    discursivos do mais destacado filho da terra. Importante neste captulo, foi a descoberta

    sobre a centralidade das concepes de mundo natural para a religio entre tsongas.

    Resultado que no constava das preocupaes iniciais da investigao. Vale esclarecer que

    os ancestrais de Joo Albasini, eram em sua maioria, de origem tsonga.

    26THOMAS, 1988, p. 162-3.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    18/130

    18

    No segundo captulo, privilegiaram-se fontes impressas de portugueses que

    mantiveram alguma relao com o processo de colonizao na frica. A depender do

    perodo, foram usadas crnicas, relatrios oficiais, relatos de viagens de exploradores e

    textos tericos sobre o carter biologicamente inferior dos africanos. Tal anlise poderia se

    estender de forma mais ampla e sistemtica, incluindo uma gama maior de fontes e

    pensadores, mas devido ao tempo que a pesquisa teve que obedecer foi necessrio um

    recorte arbitrrio que excluiu fontes importantes. Este captulo procurou demonstrar quais

    eram as idias sobre a natureza desenvolvida nos discursos de portugueses que tiveram

    algum interesse relacionado frica, objetivando perceber em que medida tal discurso teria

    influenciado nosso personagem. Investigou-se ainda se houve e quais foram as mudanas

    que ocorreram em tais concepes pari-passo a ocupao do continente africano. Tal

    esforo anlitico referenciou-se no entendimento de que estas ideias eram uma das matrizes

    que compunham o argumento que justificava a conquista colonial, atravs da dicotomia:

    civilizado versus selvagem. Aqui pontuou-se, de acordo com Eric Hobsbawm, que o

    conceito inveno de tradies era apropriado para a perspectiva sobre a representao de

    natureza criada neste discurso.

    No ltimo captulo, utilizou-se como fonte o jornal O Africano, de 1909 1918,uma vez que neste ano ocorreu a venda deste jornal e, por conseguinte, a mudana do seu

    perfil editorial. O Africano foi um dos porta-vozes do Grmio Africano de Loureno

    Marques, agremiao poltica (auto-proclamada cultural), onde reuniam-se os filhos da

    terra com inteno de organizar suas foras para a defesa, tanto dos seus prprios

    interesses, quanto dos direitos dos habitantes locais mais expoliados, de quem julgavam-se

    representantes.27 O jornal referido era editado pelos irmos Joo e Jos Albasini,

    personagens destacados na sociedade laurentina de Loureno Marques do incio do

    sculo XX. Com esta fonte, pretendeu-se delinear as representaes sobre o mundo natural

    que sub-repticiamente emergiam das suas pginas no discurso de Joo Albasini. Do

    discurso de Albasini busca-se mapear as vises sobre a natureza que circulavam na Colnia

    Portuguesa de Moambique, no incio do sculo XX, em meio a esse grupo racial e

    27ZAMPARONI, Valdemir D. Gnero e trabalho domstico numa sociedade colonial: Loureno Marques,Moambique, c. 1900-1940. Afro-sia, Salvador, n. 23, p. 156-7, 1999; Id., As escravas perptuas & oensino prtico: raa, gnero e educao em Moambique colonial 1910-1930. Estudos Afro-Asiticos, Riode Janeiro, v. 03, p. 462, 2003.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    19/130

    19

    culturalmente mestio, com o intuito de perceber quais aspectos do pensamento moderno j

    estavam presentes nestas elaboraes. Bem como perceber quais aspectos das matrizes

    africanas e europias consolidaram-se entre as idias dos filhos da terra.

    Para finalizar esta introduo, faz-se necessrio voltar aos meios buscados para

    solucionar os obstculos impostos pelas pesquisa. O primeiro obstculo teria sido a

    distncia geogrfica entre o lugar do evento pesquisado e o desenvolvimento da

    investigao. Para solucionar este problema, procurou-se trabalhar com fontes impressas

    existentes no Brasil sobre a regio pesquisada. Foi analisado, para elaborao do terceiro

    captulo, o jornal O Africano, constante da coleo do Prof. Dr. Valdemir Zamparoni,

    digitalizado pelo Centro de Digitalizao da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas,

    da Universidade Federal da Bahia. Para o segundo captulo foi consultado o romance do

    comerciante Diocleciano Fernandes das Neves, Itinerrio de uma viagem caa dos

    elephantes; o romance do explorador portugus Alexandre de Serpa Pinto, Como Atravessei

    a frica; o relatrio de Antonio Enes,Moambique; todos do Real Gabinente Portugus de

    Leitura, no Rio de Janeiro. J o primeiro captulo foi baseado no relato etnogrfico de

    Henri Junod. Esta soluo esbarrou na validade desta fonte para o objeto investigado: a

    concepo dos tsongas sobre a natureza.Para Silvia Lara, devido quantidade de textos existentes, os historiadores precisam

    inventar suas fontes. Inventar no significa criar, mas fazer perguntas que possibilitem tais

    textos oferecer informaes para entender o passado. Os relatos escritos esto circunscritos

    experincia de vida daqueles que os produziram. Trazem, por conseguinte, a marca das

    motivaes, interesses e finalidades das pessoas que os elaboraram.28 O documento

    transforma-se em fonte a partir do momento que o investigador da histria elege o que quer

    saber sobre o passado e elabora suas questes. Se o documento no traz explicitamente as

    informaes buscadas pelos historiadores, h que se criar meios de retirar destes

    documentos as informaes desejadas. Este o processo de inventar fontes. Ou seja,

    analisar documentos que foram escritos com outras motivaes e finalidades que no a

    buscada pelo historiador.29

    28LARA, Silvia H. Os documentos textuais e as fontes do conhecimento histrico. Anos 90, Porto Alegre, v15, n. 28, p. 18, 2008.29Ibid., p. 18-9.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    20/130

    20

    Quando se quer descobrir algo sobre determinado assunto, deve-se procurar

    documentos que tenham algum tipo de relao com o assunto investigado, alm de

    identificar qual a relao com o contedo do documento. Ademais, necessrio saber

    quem o produziu. Este o mtodo mais usado, embora no signifique que no existam

    problemas em tal metodologia.30 So duas as crticas principais a esse procedimento.

    Primeiro, preciso fazer a crtica ao etnocentrismo do documento. Tal procedimento traz a

    iluso de que as distores podem ser corrigidas atravs de instrumentos de apoio como os

    conhecimentos histricos, antropolgicos e lingusticos. Segundo, seria conhecer melhor os

    autores que escreveram sobre o assunto para que seja possvel delimitar a subjetividade da

    autoria e dirimir a falsificao ideolgica decorrente dos interesses pessoais e sociais dos

    autores. A iluso neste caso relaciona-se com a idia de que os documentos produzem a

    histria e de que os historiadores so capazes de alcanar a verdade contida em tais

    documentos.31

    Os crticos desta postura pontuam que os documentos no permitem entender o

    passado, mas apenas o discurso que eles encerram. Ou seja, os registros discorreriam mais

    sobre os autores e as formas discursivas do que sobre os eventos a que se remetem.32Esta

    postura traz o problema de reduzir a reflexo ao texto, ou seja, h uma preocupao emcada passo da produo do texto; desde s intenes do autor, passando pelo significado da

    terminologia, tanto descritiva dos eventos, quanto classificadora das pessoas, at a traduo

    cultural e lingustica utilizadas. Os procedimentos da anlise e crtica da produo textual

    tm sido to exaustivos que chegam a ser o nico objeto da pesquisa histrica. Ou seja, a

    busca por corrigir as distores textuais termina por deixar de lado o pensar e fazer da

    histria.33

    Embora apresentando as duas tendncias de forma esquemtica, a autora pontua que

    discorda das duas posies. O que em muito esta pesquisa concorda com ela. Para Lara, o

    que no se pode desconsiderar que alm deste processo e contedo, o texto possui uma

    dimenso material que, junto ao processo que logrou elabor-lo, devem constar da anlise

    do historiador. Este cuidado historiogrfico no implica que o pesquisador necessite trocar

    30LARA, 2008, p. 19.31Ibid., p. 20.32Ibid., p. 20-1.33Ibid., p. 21.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    21/130

    21

    o objeto ou deixar de fazer histria social. Ao invs disso, este conjunto de consideraes

    sobre o texto permite ampliar o escopo da compreenso e do entendimento dos eventos

    protagonizados pelas pessoas no passado. Sem tal anlise combinada, o historiador no

    consegue inventar suas fontes.34

    Pode parecer bvio para alguns historiadores, os problemas aventados por Lara, mas

    para os que no so historiadores estas observaes se fazem necessrias. Afinal, este

    trabalho inventou a sua fonte ao eleger uma parte do relato etnogrfico, que no foi

    registrado com a inteno de historiografar a sociedade em questo. Muito menos,

    atravs do referido relato, evidenciar concepes dos tsongas sobre a natureza. Foram as

    questes desta investigao que logram obter respostas onde as informaes se propunham

    responder outras perguntas. Como ficou implcito na reflexo que ora acaba de se

    explicitar, este um dos problemas decorrentes da dificuldade de comunicao entre as

    disciplinas. Por isso h que finalizar analisando as solues ou a insolubilidade desta ltima

    barreira.

    A interdisciplinaridade adquiriu notoriedade no campo da histria, embora haja

    dificuldades em sua aplicao. Dois so os motivos. Primeiro, porque cada disciplina tem

    seu conjunto de metodologias. Segundo, porque h uma disputa por hegemoniaepistemolgica entre as disciplinas. Isto provoca o entrincheiramento disciplinar dos

    estudiosos, a partir do conjunto de metodologias de sua disciplina, em seus campos de

    conhecimento.35Essa discusso de Ki-Zerbo refere-se aos estudos da frica antiga onde

    existia a necessidade de uma maior convergncia de vrios campos do conhecimento para

    tornar inteligveis os eventos do passado. Entretanto, esta reflexo muito pertinente para

    qualquer investigao acadmica.

    Na pesquisa que ora se conclui, embora tenham sido eleitas apenas fontes

    impressas, foram usadas obras onde constam reflexes importantes de alguns antroplogos.

    Entretanto, h que se considerar a dificuldade que a disciplinaridade impe aos intelectuais

    formados em departamentos disciplinares, mormente pesquisadores nefitos, como os

    mestrandos. No desejar que o pesquisador de histria se transmute em antroplogo,

    34LARA, 2008, p. 21-2.35 KI-ZERBO, Joseph. Os mtodos interdisciplinares utilizados nesta obra. In: KI-ZERBO, Joseph(Coord.). Histria Geral da frica - I. Metodologia e pr-histria da frica . So Paulo: tica/UNESCO,1982, p. 367.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    22/130

    22

    socilogo, aps cursar quatros ou cinco disciplinas que no so de sua formao bsica,

    deveria tambm ser parte da postura multidisciplinar. Afinal, um trabalho historiogrfico

    que dialoga com crticos literrios, antroplogos e socilogos, no pode ser considerado

    estritamente disciplinar, o que no significa que no seja histrico.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    23/130

    23

    1. O DISCURSO DE JUNOD, A RELIGIO E A NATUREZA PARAOS TSONGAS

    Antes de acercar-se do tema deste captulo, necessrio clarificar algumas questes

    referentes abordagem aqui proposta. O foco deste estudo preocupava-se em refletir sobre

    quais seriam as representaes sobre o mundo natural, elaboradas pelos povos que viveram

    na regio sul do pas que hoje se conhece por Moambique, no sudeste do continente

    africano; com vistas a identificar o quanto estas representaes influenciaram as percepes

    modernas sobre a natureza, elaboradas em Moambique por pessoas como Joo Albasini.

    Tambm buscava perceber como tal legado influenciou o pensamento sobre a naturezadepois do advento colonial.

    Optou-se por trazer este captulo como primeiro, devido anterioridade dos

    africanos. Ou seja, suas concepes sobre qualquer fenmeno haveriam de ser a base para o

    entendimento da vida social africana, permanecendo influente mesmo depois do contato

    com os colonizadores europeus. O perodo que este captulo circunscreve abrange as

    ltimas dcadas do sculo XIX, bem como o incio do XX. Foi durante este perodo que

    estes povos elaboraram, recriaram ou ainda inventaram a sua identidade.

    Entretanto, por tratar-se de um grupo que no deixou relatos escritos da sua

    experincia histrica, foi necessrio para esta investigao utilizar o registro produzido

    por um missionrio que estudou de forma extenuante muitos aspectos da vida deste grupo.

    No se pode ignorar, contudo, os problemas decorrentes do uso destes registros, haja vista

    tratar-se da perspectiva de um missionrio europeu dos finais do sculo XIX, envolvidas

    em motivaes polticas, cientficas e religiosas que lhes so prprias. O que motiva o

    enfrentamento de tais dificuldades neste trabalho a necessidade de dar relevo, visibilidade

    ou simplesmente de suscitar a discusso sobre as vises de mundo de um povo ou grupo

    de povos que foi subalternizado , apagada depois da implantao colonial.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    24/130

    24

    1.1 Henri junod: missionrio, pai da antropologia sul-africana36

    A Sua ocidental, torro onde nescera Henri-Alexander Jonud, sofreu

    transformaes em suas velhas estruturas sociais, da mesma forma que em toda a Europa

    ocorreram reviravoltas polticas durante todo o sculo XIX. Estas reviravoltas estiveram

    circunscritas aos embates entre a emergncia de novas ideias iluministas anti-religiosas, ao

    questionamento do renascimento cristo e a laicizao do Estado nacional suio.37

    As relaes entre o clero e o Estado na Sua eram muito ntimas. Em 1803, depois

    de ocorrida a emancipao do domnio de Napoleo, houve grandiosa celebrao das

    igrejas pela eleio do primeiro Grande Conselho. Alm disso, o Estado possua, por volta

    de 1820, muitos pastores em seu quadro de funcionrios.38Um movimento de contestao a

    antigas prticas religiosas renascimento religioso logrou trazer ao seio desta sociedade

    discusses tanto polticas, quanto religiosas, sobre a liberdade de crena, uma vez que este

    movimento havia sido alvo de rigorosa represso, sendo proibida a existncia de

    comunidades religiosas desta natureza. Ainda assim, foram criadas, por pessoas simpticas

    e envolvidas no renascimento religioso, instituies vrias; entre as quais as escolas

    dominicais. Estas escolas se espalharam e disseminaram ainda mais reflexesquestionadoras contra as antigas prticas religiosas.39

    Entre os quetionamentos poder-se-ia citar a necessidade de um renascimento

    individual, a divulgao da mensagem crist entre todas as naes, bem como a promoo

    contnua da reforma religiosa. Existia ainda a convico de que as sociedades que no

    haviam sido infestadas pelas inovaes da civilizao eram mais propcias a um

    ressurgimento do verdadeiro cristianismo.40 Como as misses preocupavam-se

    fundamentalmente com as populaes rurais consideradas neste perodo mais puras queas modernizadas bem como com a evangelizao de povos primitivos ao redor do

    36 Segundo Patrick Harries, historiador sul-africano que desenvolveu um trabalho substancial sobre HenriJunod, Max Gluckaman ao visitar a regio onde as misses suas desenvolviam seu trabalho prestou umahomenagem pstuma ao missionrio que fundamentou as bases da antropologia sul-africana. HARRIES,Patrick. Junod e as sociedades africanas: impacto dos missionrios suos na frica austral. Maputo:Paulinas, 2007, p. 1.37Ibid., p. 39.38Ibid., p. 14.39Ibid., p. 1440Ibid., p. 15.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    25/130

    25

    mundo, a atividade missionria se constitua como um dos ramos do renascimento

    religioso.41

    A atividade missionria ganhara repercusso devido a sua relao com este

    inextrincvel processo histrico e foi um dos fatores que contribuiram para o surgimento da

    identidade nacional sua. Este pas era dividido entre diferentes classes, religies e lnguas.

    Por ao dos missionrios, a frica tornou-se uma imagem invertida da Sua onde os

    suos se miravam na construo de sua identidade nacional. O apelo foi to bem sucedido

    que logrou receber um enorme apoio. Tal apoio era perceptvel pelo crescimento da

    arrecadao financeira para suporte das misses, no final do sculo XIX. Da mesma forma,

    as concorridas audincias, onde celebrava-se a despedida de missionrios com viagem

    marcada para frica, era outro fator que confirmava o envolvimento das pessoas nesta

    empreitada religiosa.42

    As escolas dominicais ajudaram a reforar ainda mais tal envolvimento, uma vez

    que todo primeiro domingo do ms os alunos eram expostos a informaes do continente

    negro. O contedo do material impresso utilizado para educao das crianas

    lEducation Christiene era permeado de informaes sobre a topografia, as plantas, os

    animais e os costumes das pessoas onde as misses estavam sediadas.43

    Os africanos eramdescritos a um s tempo como vtimas e obstculos civilizao. No primeiro caso, as

    imagens de alcoolismo, prostituio e demais vcios do capitalismo era o teor mais

    enfatizado.44 No segundo, descreviam-se imagens de selvageria perpetrada por chefes

    saguinrios e assassinos adeptos escravido. As duas imagens eram teis aos interesses

    missionrios, pois sensibilizavam os suos, incetivando-os a contribuirem com a

    manuteno material das misses. Tambm destacava a virilidade e desprendimento do

    valor civilizacional destes missionrios, enquanto disseminadores dos verdadeiros valores

    da civilizao.45 Henri Junod, em 1884, dirigiu uma pea de teatro onde tais imagens

    africanas foram encenadas, ou seja, foi uma das crianas formadas com essas

    41HARRIES, 2007, p. 1542Ibid., p. 39-40.43Ibid., p. 42-4.44Ibid., p. 44.45Ibid., p. 46.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    26/130

    26

    representaes sobre a frica.46

    Alm de formar o imaginrios das crianas, e por tabela, dos pais suos, esta

    representao da frica serviu ainda para preencher a lacuna da evoluo compreendida

    entre os humanos e os animais, inaugurada com a emergncia da histria natural.47 As

    descobertas geolgicas punham em xeque as explicaes genesacas sobre a origem do

    mundo, aumentando a idade da humanidade em milharess de anos. Junto a isso, surgiram as

    teorias darwinistas que propunham uma origem nica para todos os seres vivos. Tais

    inovaes levaram tambm os suos a se preocuparem com sua origem pr-histrica. As

    primeiras teorias buscavam mapear linguisticamente as primeiras populaes supostamente

    suas. Estas populaes eram descritas como semelhantes s representaes sobre os

    africanos sanguinrios que circulavam entre os materiais impressos usados nas escolas

    dominicais.48Estas idias estavam disseminadas por toda Europa. Acreditava-se que, como

    um anatomista podia, a partir de alguns pedaos de ossos, reconstituir um animal, da

    mesma forma, os fillogos conseguiriam reconstruir as lnguas. De tal forma que, atravs

    das tradies africanas, acrediatva-se poder descobrir as origens do homem.49

    A frica, ainda assim, era vista como um lugar onde se podia disseminar o

    cristianismo renascente. O modo de vida simples dos africanos e as poucas necessidadesmateriais contrastavam com a Sua desenvolvida, onde os tentculos do capitalismo

    haviam se expandido at para as vilas retiradas nos alpes. Era mais provvel converter os

    africanos ao renascimento religioso que os europeus influenciados pelo materialismo

    incuo e a civilizao degenerada.50 Mesmo porque a presena europia no continente

    africano estava tambm degenerando os africanos, de tal forma, que aqueles que haviam

    tido contato com os europeus adquiriam modos de vida muito mais degenerados que os

    africanos que viviam isolados.51Urgia, portanto, recuperar estes espaos e sua populao

    para no acontecer na frica o que estava acontecendo na Sua. Ao promover a

    disseminao das luzes, e por conseguinte, a religio verdadeira, os missionrios suos

    tambm espiavam os erros cometidos pelos cristos na frica; espiando erros cometidos no

    46HARRIES, 2007, p. 47.47Ibid., p. 49.48Ibid., p. 49-50.49Ibid., p. 52.50Ibid., p. 56-7.51Ibid., p. 57.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    27/130

    27

    passados e construindo seu ethos enquanto nao.52 Desta forma, a identidade sua se

    constituu enquanto humanitarismo neutro, tendo como um dos aspectos importantes a

    atividade missonria. O reforo das misses sua caracterstica de neutralidade latreava-se

    no empreendimento do apoio aos africanos primitivos e explorados, permitindo emergir

    uma identidade nacional onde antes apenas existiam divises.53

    As misses protestantes passaram a atuar na regio de Moambique s a partir das

    duas ltimas dcadas do XIX. Os protestantes traziam famlias e buscavam aprender a

    lngua local com a inteno de publicar livros religiosos e didticos em tais lnguas.

    Alfabetizar em lngua local era a prtica comum entre os missionrios protestantes. Para

    tanto, eles estabeleciam formas escritas para lnguas antes apenas orais. Ensinavam ainda as

    lnguas europias como segunda lngua para que os indgenas pudessem estabelecer

    relaes com os valores e modos de vida ocidentais.54

    Henri-Alexander Junod foi um missionrio suo que viveu na regio entre o sul de

    Moambique e o leste da antiga Repblica do Transval de 1888, quando os portugueses

    possuam um pequeno controle sobre chefias independentes, at 1896, quando a conquista

    do sul de Moambique foi concluda. Junod chegou e ter que se defender das acusaes de

    colaboracionismo com os chefes africanos aps a vitria dos portugueses. Entretanto, estahostilidade dos portugueses fortaleceu a posio dos africanos junto Misso Sua,

    sanando possveis suspeitas em relao misso.55 Esteve presente ainda de 1913 at

    1920.56Entre 1896 e 1913, Junod teve que se manter fora dos domnios portugueses por

    problemas com a administrao colonial.57 Em 1895, quando dirigia a Misso Sua,

    recebeu a visita do lorde James Bryce, que era amigo de outro lorde SirJames Frazer, de

    Oxford. Tal encontro mudou suas atividades de investigao. Antes sua preocupao era a

    52HARRIES, 2007, p. 60-1.53Ibid., p. 68.54 ZAMPARONI, Valdemir D. Deus branco almas negras: colonialismo, educao, religio e racismo emMoambique 1910-1940. http://www.codesria.org/Links/Research/luso/zamparoni.pdf, p. 2. s/d.55 GAJANIGO, Paulo Rodrigues. O Sul de Moambique e a Histria da Antropologia: Os usos eCostumes dos Bantos, de Henri Junod. Dissertao de Mestrado. Capinas: Unicamp, 2006, p. 25.56HARRIES, Patrick. The Antropologist as historian and aid to the historian in Mozambique: the work ofH.A. Junod. Conference on: The Interaction of Historyand Antropology in Southern Africa, University ofManchester. 1980, p. 04. Manuscrito se encontra no Centro de Estudos Africanos N 9/K 967.9 Moambique.57 O Estado colonial desconfiava das aes perpetradas pelos missionrios de igrejas missionriasestrangeiras, por isso tentava coibir o funcionamento destas em seu territrio alegando que estasdesnacionalizavam os indgenas. ZAMPARONI, op. cit., p. 2-3.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    28/130

    28

    entomologia. Aps a visita de Bryce, Junod percebeu que o homem [era] infinitamente

    mais interessante que o inseto!.58

    A converso do missionrio para a Antropologia estava relacionada tanto com a

    emergncia deste campo de estudo na conturbada Sua da poca, quanto com a sua

    experincia em meio aos africanos da sua misso. Existiam duas tendncias para estes

    estudos, a antropologia fsica e a social.59A primeira estava orientada pelos estudos sobre

    craniologia dos povos africanos. Enquanto a segunda preocupava-se em entender as origens

    da religio e outros aspectos sociais, por via do estudo da mitologia e dos ritos funerrios,

    tanto dos povos africanos quanto de outros povos primitivos ao redor do mundo.60

    Como estudante, Junod visitou a Alemanha em 1885, e pode sentir o clima de

    investigao existente naquele pas. Em Berlim, desenvolveu interesse por filosofia,

    histria natural e geografia social. Esta experiencia influenciaria seus estudos sobre

    antropologia.61 J na frica em 1889, comeou a enveredar-se sobre os costumes dos

    africanos. Embora inicialmente rejeitasse as prticas africanas como demonacas, sua

    vivncia entre os africanos transformou sua perspectiva, ao passo que tambem deslocava

    seu foco da histria natural para o estudo das lnguas, das tradies orais e finalmente, para

    os costumes dos povos locais.62

    Em frica estavam ocorrendo muitas transformaes decorrentes da presena

    europia. A conquista portuguesa do Reino de Gaza, a descoberta de minrios preciosos no

    Transval e a ampliao de Loureno Marques em virtude da sua importncia como porto

    para escoamento desse minrio e de outros produtos produzidos localmente provocaram

    transformaes sociais e econmicas nos povos da regio.63Como Junod via a frica como

    o lugar onde era possvel observar os lampejos do alvorecer da civilizao vacilante, mas

    determinado em seu progresso , cabia recolher estas informaes antes que elas se

    58 JUNOD, Henri A. Usos e costumes dos Bantu. Tomo I. Maputo: Arquivo Histrico de Moambique,1996, p. 21.59HARRIES, 2007, p. 235.60Ibid.61Ibid., p. 235-36.62Ibid., p. 236.63 Para um panorama detalhado das transformaes polticas, sociais e econmicas, ver ZAMPARONI,Valdemir. Entre Narros e Mulungos Colonialismo e paisagem social em Loureno Marques (1890-1940). Tese de Doutoramento. So Paulo: USP, 1998, p. 142-175; SERRA, Carlos. Histria deMoambique. Maputo: Livraria Universitria, 2000, p. 359-383; NEWITT. Malyn. Histria deMoambique. Lisboa: Publicaes Europa-Amrica, 1997, p. 294-5.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    29/130

    29

    perdessem no contato com os europeus.64

    Em 1909, numa das minhas viagens Europa, encontrei, a bordo dopaquete que nos levava, trs indgenas que iam, suponho, para a Inglaterrapor motivos polticos. Senti um grande prazer em falar com eles. Um eradiretor dum jornal indgena, outro chefe cristo, e o terceiro dirigia umacasa de educao, fundada por ele prprio. Tentei um belo dia obter delesalgumas informaes etnogrficas. Nunca sofri insucesso to completo emminha carreira! O diretor de jornal era duma famlia wesleyana, e nuncavivera entre pagos. O chefe cristo estava mais bem informado, mas, pormotivos que no desvendou, no se disps a comunicar o que sabia. Odiretor do colgio era muito inteligente; declarou logo de comeo queexistia feitiaria entre os brancos do mesmo modo que entre os indgenas

    da frica do Sul, e que isso no passava, afinal de contas, duma forma demesmerismo. (...) Deixei-os, com um sentimento de melancolia, pensandocomo eram diferentes dos meus informadores tsongas, o Mbhoza, oTobana e mesmo o Elias.65

    Junod relatava que sua tarefa etnogrfica era a de documentar uma civilizao

    estagnada, registrar o que j existia, ou seja, o normal; em vez daquilo que fosse

    inovador, ou seja, a exceo. Por isso se decepcionara ao encontrar indgenas sem

    relaes com suas culturas.66A transformao deste interesse era tambm permeada pela

    ao dos portugueses, uma vez que Junod via ameaadas as culturas locais, por aodaqueles europeus.67 Neste movimento, Junod deixou seus estudos entomolgicos e sua

    perspectiva negativa em relao ao africanos para iniciar suas investigaes preocupado em

    registrar, e tambm defender, a cultura dos africanos com quem se ocupava.

    A antropologia na altura era controlada por homens como Frazer que interpretava,

    na metrpole, os dados etnogrficos recolhidos pelos homens locais, como Junod. O

    Sistema Bantu de famlia estava em rpido processo de desintegrao - prova disto eram

    os trs africanos a caminho da Inglaterra - e urgia que fossem recolhidos dados quecatalogassem, sob uma perspectiva da cincia, sua estrutura e funcionamento. Era vital

    registrar a vida cotidiana dos povos iletrados para que, na posteridade, seus descendentes

    pudessem entender seu passado.68

    64HARRIES, op. cit., p. 53.65JUNOD, 1996, Tomo I, p. 22.66Ibid., p. 21.67HARRIES, 2007, p. 238.68HARRIES, 1980, p. 01.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    30/130

    30

    Era possvel que estes indgenas, por causa de quem tnhamos vindo para africa, aproveitassem com um estudo desse gnero e viessem mais tarde aser-nos gratos por saberem o que haviam sido na sua vida primitiva.69

    O arcabouo subjetivo de Henri Junod no diferia, em termos significativos, dos

    antroplogos da sua poca. Baseado na teoria social da evoluo, Junod buscava

    demonstrar que muitas instituies estabelecidas entre os povos do sudeste da frica eram

    conseqncias de um processo evolutivo. Como a evoluo era inevitvel, urgia a coleta

    dos costumes primitivos. A poligamia era um exemplo desta perspectiva da teoria da

    evoluo:

    Qual a origem deste costume? Podia pretender-se que se trate dumvestgio do velho sistema de casamento por grupos, supondo terem osBantu passado tambm por este estdio de evoluo familiar. Em dadapoca todos os homens dum grupo teriam considerado como suas todas asmulheres de outro grupo, e vice-versa. O temor do matlulana70 teriaacabado com a poliandria, e s a poligamia sobreviveu.71

    Tais idias eram tambm motivo de preocupao de um antroplogo social suo

    chamado Bachofen, com quem Junod havia tido contato. Ele buscava compreender como a

    importncia da figura do tio podia ser um vestgio do estgio matriarcal da evoluo da

    famlia. Hoje considerada como um conhecimento do seu tempo, servia na altura para

    fundamentar as idias dos primeiros antroplogos.72 Neste sentido, vale salientar que o

    amadorismo contribuiu fortemente para uma fundamentao slida da Antropologia. Esta

    possua o mesmo estatuto que aquele quando, no final do sculo XVIII, surgia como

    disciplina. Alm disso, a antropologia, com seu pretendido estatuto de cincia, embora

    tentasse, no conseguia substituir os relatos dos missionrios, padres e etngrafosamadores, pois tendia a desculpar-se cientificamente rotulando tais registros como

    69JUNOD, 1996, Tomo I, p. 21.70Tabu que probe dois irmos manter relaes sexuais com a mesma mulher, enquanto um deles estiver vivo.71JUNOD, 1996, Tomo I, p. 260.72Segundo Gajanigo, Junod foi a principal fonte usada por Radcliffe-Brown para elaborao do artigo Themothers brother in South frica. Na segunda edio da etnografia sobre os tsongas, Junod fez reparos aoartigo de Radcliffe-Brouwn. Entretanto, este ignorou formalmente as crticas de Junod. Diante disto, Gajanigoindica haver indcios suficientes para afirmar que Junod deu uma enorme contribuio para os estudos sobreparentesco, embora esta contribuio tenha sido pouco destacada em virtude do posicionamente de Radcliffe-Brown neste debate. Entretanto pontua. GAJANIGO, 2006, p. 65-79.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    31/130

    31

    aberraes, mediocridades, horrores e asneiras.73 Outro ponto de convergncia entre

    missionrios e antroplogos que ambos eram versados na mesma epistemologia ocidental;

    sua divergncia era de carter prtico. Os missionrios estavam orientados para a tarefa da

    converso e integravam seu conhecimento sobre as comunidades locais em seus princpios

    teolgicos para a salvao. J os antroplogos queriam contribuir para a histria da

    humanidade, dando especial ateno para as particularidades regionais, interpretando-as

    metodologicamente atravs de anlises que possibilitassem generalizaes conceituais.74

    Junod tambm apresentou representaes Liga das Naes a favor dos povos

    colonizados e nutria grande simpatia pelos explorados.75Existem documentos crticos sobre

    o colonialismo portugus em seus trabalhos no-etnogrficos ou no-cientficos e em sua

    correspondncia privada. Em uma carta a Virgile Rossel, fez uma anlise brilhante das

    causas da Guerra Luso-Gaza, atravs da qual tentou justificar sua posio pr-Gaza 76, o que

    resultara em sua remoo de Moambique, em 1896.77Em um relato sobre os ritos sexuais

    de purificao, ainda que tentasse relativizar tais prticas, enfatizando a seriedade destas

    cerimnias para essas sociedades, possvel observar os preconceitos comuns que

    permeavam as vises europias, quando salienta que tais noes coletivas sobre a moral

    eram obscuras:

    um assunto extremamente curioso e misterioso. Para compreend-lobem, necessrio penetrar profundamente a mentalidade banta e esqueceras nossas prprias concepes da vida conjugal! Espero que nenhum dosmeus leitores fique escandalizado por cerimnias evidentementerealizadas com a maior seriedade e que so uma verdadeira aspirao

    73 MUDIMBE, V. Y. The invention of Africa: gnosis, philosophy and the order of knowledge .Bloomington and Indianpolis: Indiana University Press, 1988, pp 64.74Ibid., p. 65.75A Sua, sendo considerada uma nao neutra, foi escolhida para sediar organizaes internacionais como aLiga das Naes, depois do fim da Primeira Guerra Mundial. Antes j havia sido criada por suos a CruzVermelha e a Agencia Internacional para a Defesa dos Nativos. Esta ltima, depois que a Liga das Naespassou a ter sede em Genebra, ganhou grande destaque, mudando o nome para Organizao Internacionalpara Defesa do Nativos, embora houvesse quem desejasse Cruz Negra. Junod, desde formado, era scio daAgncia e tornou-se seu presidente em 1929. HARRIES, 2007, p. 66.76 O Imprio de Gaza foi fundado em torno de 1821 por Sochangana ou Manicusse e compreendia umterritrio de aproximadamente de 250 a 300 mil km2 . Estendia-se do Incomti ao Zambeze, no sul da regiohoje conhecida por Moambique. S foi derrotado pela conquista portuguesa em 1895, com a captura do seultimo imperador, o Gungunhana. SERRA, 2000, p. 90; PELISSIER, Ren. Histria de Moambique:formao e oposio 1854-1918. Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p. 185-7;. ZAMPARONI, 1998, p. 20-1 e37-8.77HARRIES, 1980, p. 04.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    32/130

    32

    pureza, tal como concebida por uma tribo ainda mergulhada nas noesobscuras da moral coletiva.78

    Henri Junod produziu um relato etnogrfico enorme, fruto de muito trabalho, onde

    registrou trinta anos de histria de Moambique. Tal relato - com mais de mil laudas - est

    dividido em dois tomos e seis partes que tratam da vida do indivduo; da vida da famlia e

    da povoao, da vida nacional, da vida agrcola e industrial; da vida literria e artstica e da

    vida religiosa e supersties. Se como etngrafo, Junod repetiu os mesmos erros que seus

    contemporneos, fez um trabalho extremamente relevante para os historiadores. Embora

    estes tenham que estar cientes sobre o carter do relato, bem como sobre a formao do seu

    autor. Entretanto, no se deve descartar uma fonte por causa de tais obstculos.

    Uma abordagem historiogrfica que se disseminou nas ltimas dcadas aponta para

    uma preocupao em reconstruir a histria dos subalternizados.79Entretanto, quanto mais

    antiga a reconstruo da histria destas pessoas, mais difcil ser encontrar fontes para tal

    reconstruo,80mormente quando as pessoas em questo viviam em sociedades grafas. O

    uso de depoimentos orais de pessoas comuns pode ser usado como fonte para preencher

    esta lacuna, embora no se devam priorizar apenas as pessoas comuns, mas todos os atores

    sociais.81 mesmo possvel utilizar a antropologia e a sociologia para conceber este tipo de

    abordagem histrica.82Daqui decorre a relevncia da etnografia de Henri Junod.

    Em vez de concentrar seus estudos sobre sociedades exticas, instituies sociais ou

    aspectos dessas sociedades em pequena escala, o trabalho de Junod sobre os tsongas era

    holstico em sua concepo. Sua abordagem na coleta dos dados etnogrficos influenciou,

    segundo Harries, os historiadores africanos mais contemporneos a mudarem de uma

    narrativa histrica dos eventos, para a histria dos acontecimentos que no foram

    selecionados por sua suposta singularidade e importncia, mas por sua compatibilidade comoutros fatos.83 A etnografia de Junod se concentrou no homem e na mulher comum e,

    consequentemente contribuiu, mesmo sem o querer, para o tipo de historiografia que iria

    78JUNOD, 1996, Tomo I, p. 150.79SHARPE, Jim. A histria vista de baixo. In: BURKE, Peter.A escrita da histria: novas perspectivas.So Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 40-1.80SHARPE, 1992, p. 42-3.81Ibid., p. 48-9.82Ibid., p. 53-483HARRIES, 1980, p. 11.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    33/130

    33

    surgir mais de meio sculo depois de seus escritos e que ficou conhecida como histria

    dos subalternizados ou histria de baixo. Junod j ensaiava tal modelo num perodo em

    que a historiografia sobre a frica estava restrita histria da explorao e da

    colonizao.84

    1.2 Os tsongas85: a criao de uma etnia

    O conceito etnia possui muitos significados. Oriundo do termo francs ethnie, derivado

    do grego ethnos, que significa povos, foi usado no fim do sculo XIX para designar

    diferentes raas, bem como aplicado para definir os povos primitivos.86 Contribuiu,

    assim, para criar uma barreira entre raas, sendo umas classificadas como inferiores,

    enquanto outras superiores. Outro problema foi o uso inapropriado do conceito pelos

    administradores coloniais em frica. Neste caso, etnia foi utilizado para substituir o

    conceito de tribo e dividir populaes africanas para otimizar a dominao colonial.

    Acreditava-se que determinadas caractersticas fsicas e culturais eram particulares e

    serviam para diferenciar as tribos umas das outras.87Entretanto, aps a crtica elaborada

    por Franz Boas que negava a existncia da relao entre tipos biolgicos e formasculturais tais convices foram abandonadas pela maioria dos etnlogos,88 mas no

    necessariamente no mbito da administrao colonial.

    Podemos delimitar duas possibilidades de uso do conceito para este captulo. A

    primeira busca mapear os caminhos pelos quais os diferentes grupos humanos trilharam na

    construo das suas identidades coletivas; sem que para isso fosse necessrio o uso da

    hierarquia de uns em relao aos outros.89 A segunda, claramente diferenciando etnia e

    nao, delimita etnia, com o significado de etapa inicial prpria das sociedades no84HARRIES, 1980, p. 10-1.85Este etnnimo pode ser tambm grafado como thonga. Tal variao pode ocorrer em edies diferentes deuma mesma obra. Um exemplo a obra do prprio Henri Junod, Usos e Costumes dos Bantucuja edioportuguesa est grafada thonga enquanto na moambicana encontra-se a grafia tsonga.86DE HEUSCH, Luc. Lethnie. The vicissitudes of a concept. Social Antropolgy, n.8, (2): p. 99, 2000.87GODELIER, Maurice. O conceito de Tribo. Crise de um conceito ou crise dos fundamentos empricos daAntropologia? In:Horizontes da Antropologia. Lisboa: Edies 70, s/d, p. 130-40.88Ibid.89WEBER, Max. Economia e Sociedade. Vol. 1. Braslia: Editora da UnB, 1991, p. 267; BARTH, Fredrik.Grupos tnicos e suas Fronteiras. In: POUTIGNAT, Phelippe e STREIFF-FENART, Jocelyne. Teoria daetnicidade. So Paulo: UNESP, 1998, p. 195 e DE HEUSCH, 2000, p. 113-4.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    34/130

    34

    desenvolvidas; enquanto nao, como estgio superior de sociedades complexas que

    superaram o primitivo.90

    Uma das acepes em relao ao conceito a que considera como sendo tnica a

    comunidade que congrega pessoas de descendncia comum, que partilham no s a

    pertinncia raa como tambm os valores e um destino que os distinguem das

    comunidades vizinhas. Neste sentido, tal procedimento coletivo expressaria a relao de

    alteridade entre as comunidades, podendo ser depreciativo ou reverente. Sendo a escolha da

    forma dependente da relao de poder poltico, militar, econmico e cultural que a outra

    coletividade expressa.91

    Outra possibilidade para a demarcao da etnicidade so as fronteiras tnicas. Nesta

    anlise, o ator social indivduo que age dentro (e porque no dizer, fora) de um grupo

    tnico ganha maior relevncia. este ator social que define sua relao com a identidade

    tnica que melhor atende seus interesses sociais, polticos e econmicos. Porm,

    independentemente das aes dos atores sociais, das transformaes culturais ou

    fenotpicas ocorridas dentro do grupo tnico, as fronteiras entre as identidades de grupo

    permaneceriam existindo.92 Sendo um ponto de inflexo para o conceito, tal abordagem

    problematizou o postulado que foi durante muito tempo defendido como base declassificao das etnias de que as identidades se assentavam no princpio de que uma raa

    equivaleria a uma cultura e uma linguagem, bem como uma sociedade equivaleria a uma

    entidade coletiva que discrimina as demais. Esta problematizao crtica idia de

    isolamento cultural como requisito para a formao dos grupos tnicos.93til para analisar

    o dinmico processo de formao das identidades coletivas, esta perspectiva evidencia

    ainda como ocorreu a manuteno destas fronteiras permanentes, ainda que no estticas.

    H ainda uma opo que utiliza etnia como ponto inicial do processo de formao

    das naes. Tal uso, logo de incio, evidencia problemas. Esta anlise baseia-se no princpio

    de que o mundo hodierno um mundo de naes e que este princpio a um s tempo

    uma realidade e uma aspirao.94 Isto porque, em sua maioria, os Estados-Naes

    90SMITH, Anthony D. The Ethnic Origins of Nations. Oxford: Blackwell Publishers, 1986, p. 129.91WEBER, op.cit., p. 267.92BARTH, op. cit., p. 195.93BARTH, 1998, p 190.94SMITH, op. cit., p. 129

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    35/130

    35

    modernos so compostos por outras naes e/ou minorias tnicas. Isso quer dizer que as

    naes comportam em seu interior outras naes e/ou grupos tnicos, que foram dominados

    e/ou anexados por outros grupos mais poderosos. Sendo que todos aspiram tornarem-se

    e/ou manterem-se naes independentes.95 Essa elaborao visa fundamentar uma teoria

    sobre a origem das naes e sustenta que, no modelo ocidental, foi o Estado que promoveu

    a organizao dos Estados-naes modernos; enquanto no modelo oriental teriam sido as

    etnias que desempenharam tal papel.96

    Ainda na mesma perspectiva, o conceito de nao teve origem no processo

    denominado de Revolues Ocidentais que transformou e desenvolveu tais naes. As

    revolues estariam dividas em trs esferas que consistiriam em: 1)- revoluo da diviso

    do trabalho; 2)- revoluo administrativa e 3)- revoluo cultural. O que no se

    evidencia o critrio usado para conceituar etnia. Uma noo seguindo um dos exemplos

    da relao entre naes e etnias evidencia-se quando os catales so definidos como

    nao, enquanto os galegos so definidos como etnia. Tendo em vista o processo histrico

    que resultou na formao da nao espanhola, sabe-se que, tanto os catales quanto os

    galegos foram durante o fim da Idade Mdia gradativamente anexados pelos reinos de

    Arago e Castela.97

    Porque os galegos seriam uma etnia enquanto os catales, uma nao?Pode-se, a partir de tais reflexes, perceber o carter arbitrrio e hierarquizante do conceito,

    no qual etnia a etapa inicial do processo evolutivo das sociedades consideradas naes.

    Um argumento, que sustenta tal idia, afirma que nas sociedades consideradas

    civilizaes tradicionais africanas, a aplicao do termo nao deve ser feita com cuidado.

    Entretanto, os conceitos de nacionalidade e nacionalismo, por terem atravessado todo o

    pensamento e histria europias no sculo XIX e ressurgido nos Blcs e no Cucaso, aps

    o fim do sistema comunista, so teis para anlise das sociedades europias.98Se o conceito

    de nao, bem como o de etnia, foram criados pelos europeus, porque estes aplicam o

    primeiro para autodefinio, e o segundo para definir os outros grupos humanos,

    geopoliticamente submetidos ou supostamente inferiores no sistema capitalista mundial?

    95SMITH, 1986, p. 130.96Ibid., p. 130-1.97 COTAZAR, Fernando Garcia de e VESGA, Jos Manuel Gonzles. Histria da Espanha: uma brevehistria. Lisboa: Editorial Presena, 1997, p. 156-182.98DE HEUSCH, 2000, p. 113-4.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    36/130

    36

    Um argumento contrrio a esse uso do conceito, com o qual a abordagem aqui proposta

    concorda, estabelece que desconhecendo e negando a histria dos povos, foram a

    etnologia e o colonialismo que, apressados em classificar e nomear, encarregaram-se de

    fixar as etiquetas tnicas99, sem negar, contudo, que tais povos estabeleciam e

    reconheciam distintas identidades entre si.

    Da anlise acima podemos delimitar duas possibilidades de uso embora existam

    outras no abordadas nesta reflexo para o conceito. A primeira busca mapear os

    caminhos pelos quais os diferentes grupos humanos, atravs de experincias histricas

    diversas, trilharam na construo das suas identidades coletivas, sem que para isso fosse

    necessrio o uso da hierarquia de uns em relao aos outros. A segunda, claramente

    diferenciando etnia e nao, d etnia o significado de etapa inicial prpria das sociedades

    no desenvolvidas, e ao segundo, o estgio superior de sociedades complexas que

    superaram este estgio primitivo. Os tsongas, enquanto identidade tnica, formaram-se,

    em maior grau, por influncia do uso no hierarquizante, embora elementos da teoria

    evolutiva tenha desempenhado um papel significativo em sua elaborao.

    Neste sentido, pode-se afirmar que os tsongas so uma identidade tnica construda

    por missionrios, na virada do sculo XIX para o XX. Foi mais o produto do ambientesocial e intelectual destes missionrios do que uma realidade objetiva. S emergiu aps o

    desenvolvimento de uma pequena burguesia local alfabetizada em uma lngua franca

    sistematizada por missionrios, que se estendeu para alm das fronteiras das unidades

    polticas pr-capitalista:100

    A tribo tsonga compe-se dum grupo de populaes bantu estabelecidasna costa oriental da frica do Sul, desde as proximidades da baa de Santa

    Lcia, na costa do Natal, at ao rio Save, a norte. Encontram-se poisTsongas em quatro dos actuais estados da frica do Sul: no Natal(Amatongalndia), no Transval (distrito de Lidemburgo, do Zoutpansberge do Waterberg), na Rodsia, e principalmente na Colnia de Moambique(distritos de Loureno Marques e Inhambane e Provncia de Manica eSofala).Os Tsongas confrontam ao sul com os Zulus e os Swazis; a oeste com osMabis, os Lautis e outros cls Suthu-pedis; ao norte com os Vendas e os

    99ZAMPARONI, 1998, p. 379.100HARRIES, Patrick. Exclusion, classification and internal colonialism: the emergence of ethnicity amongthe Tsonga-Speakers. In: VEIL, Leroy. The Creation of Tribalism in Southern Africa. Berkley: Universityof California Press, 1989, p. 82.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    37/130

    37

    Nyais no Zoutpansberg e na Rodesia e os Ndraws perto do Save; e a lestecom os Tongas, perto de Inhambane, e os Copis ao norte da foz do

    Limpopo.101

    Mapa 2: Etnias do sul de Moambique. Changana, tsua e ronga soconsiderados sub-grupos dos tsongas. Adaptado de SERRA, 2000, p. 17

    Assim Junod definiu geograficamente os tsongas (ver Mapa: 2).

    102

    Focandoprincipalmente suas linhas limtrofes com outros povos e/ou acidentes geogrficos, parece

    mais a definio de um Estado-Nao europeu. H argumentos que afirmam que existiam

    fronteiras aos moldes europeus nas unidades polticas no continente africano, antes da

    101JUNOD, 1996, Tomo I. op. cit, pp 33-4.102A anlise aqui apresentada pretende seguir a ordem organizacional do texto de Junod. Ou seja, no implicaque foi exatamente nesta ordem que o missionrio concebeu intelectualmente a nao tsonga, mas como ele adescreveu em seu relato etnogrfico.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    38/130

    38

    presena colonial, mas no exatamente este o debate que importa aqui.103O que importa

    que quaisquer que tenham sido tais fronteiras, elas no envolviam somente pessoas da

    mesma etnia, lngua e cultura; mas uma diversidade de grupos e pessoas, muitas vezes, de

    origens diferentes:104

    Como veremos, no h verdadeira unidade nacional entre os Tsongas. Maltm conscincia de que formam uma nao bem definida, e nem sempretm um nome comum para a designar. O nome Tsonga foi-lhe dado pelosinvasores Zulus ou Angnis, que reduziram servido a maioria dos seuscls entre 1815 e 1830. A origem deste termo zulu provavelmente otermo Rhonga, que significa Oriente (vurhonga=alvorada), e pelo qual os

    cls dos arredores de Loureno Marques tinham o costume de sedesignar.105

    No af de ver resolvido o problema do territrio e da designao, Junod reconhece

    que ela no existia antes da sua classificao. Entretanto, devido sua experincia com as

    unificaes polticas europeias, na segunda metade do sculo XIX, buscou identificar esta

    entidade poltica africana a partir do trip: uma raa, uma cultura e uma lngua. O territrio

    tambm foi delimitado pelo etngrafo/missionrio. Vale ressaltar que esta identificao foi

    permeada pelos conceitos de nacionalismo da poca que valorizava a linguagem comoelemento central para a classificao de grupos e das caractersticas nacionais.106

    Em um sub-tpico denominado Caracteres tnicos da tribo tsonga, Junod

    dividiu-os em trs aspectos: 1 Lngua dos Tsonga, composta pos seis dialetos e com

    vocabulrio original; 2 Caracteres mentais dos Tsongas, definindo essencialmente como

    sossegado e brando em seus aspectos culturais e de comportamento; 3 Caracteres

    fsicos dos Tsongas, descrio confusa como podemos perceber:107

    No conjunto seu aspecto parece-se ao dos Zulus. No que se refere estatura, varia muito dum indivduo para o outro. Encontram-se entre osTsongas cuja face apresenta nitidamente o tipo negro: lbios grossos, narizachatado, malares salientes; e no mesmo dia no mesmo stio, vem-se

    103DPCKE, Wolfgang. A vida longa das linhas retas: cinco mitos sobre as fronteiras na frica Negra.Revista Brasileira de Poltica Internacional. n. 42 (1), p. 78-80, 1999.104Ibid., p. 81105JUNOD, 1996, Tomo I, p. 34-5.106HARRIES, 1980, p. 9-10.107JUNOD, 1996, Tomo I, p. 48-52.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    39/130

    39

    outros indivduos que pertencem ao mesmo cl e que tm a cara maiscomprida, os lbios finos e o nariz ponteagudo. Parece que h dois tipos

    entre eles: o tipo grosseiro, provavelmente mais espalhado entre aspopulaes primitivas e que se conservou muito acentuado entre os Copisda costa, e o tipo mais fino, que era talvez o dos invasores.108

    Pode-se perceber que conceitos como mais fino e grosseiro so referenciados

    nas concepes hierarquizantes das categorias mentais de Junod. E tambm bvio que os

    conceitos axiologicamente melhores se aproximam dos europeus, enquanto os piores se

    distanciam. Junod tentava desta forma preencher os requisitos para transformar os tsongas

    em uma unidade poltica, em uma nao. E embora no percebesse, engasgava-se em uma

    das variantes do trip: a raa. Outro fator complicaria um pouco mais a delimitao dos

    tsongas enquanto nao:

    Que significa para ele [tsonga] o tiku, a nao? Como j dissemos, o quechamamos nao, tiku, no a tribo em seu conjunto, que compreendevrias centenas de milhares de pessoas, mas o cl especial a que elepertence. No h sentimento de unidade nacional na tribo como tal; a suaunidade encontra-se s na linguagem e em certos costumes comuns atodos os cls. Por isso a verdadeira unidade o cl.109

    Apesar de muitos destes cls terem sido submetidos por um reino nguni Gaza

    poderoso, a trajetria dos tsongas foi diferente da percorrida por outros povos, como os

    zulus; tambm ngunis que durante muito tempo viveram em organizaes polticas e

    sociais, centralizadas por um Estado belicista. A partir de 1775, esse povo mudou suas

    motivaes guerreiras. Possivelmente por conta da presso demogrfica, algumas

    povoaes foram levadas a conquistar seus vizinhos e assim formaram pequenos reinos. Foi

    pela agregao destes reinos que Shaka se consolidou como o mais poderoso dos

    imperadores da regio e dominou uma rea de cerca de 130.000 quilmetros e cerca de

    100.000 indivduos. Shaka organizou uma nao a partir do conjunto das unidades polticas

    108JUNOD, 1996, Tomo I, p. 52.109Idem. pp. 325. Junod estabeleceu uma tipificao dos nveis de organizao poltica entre os tsongas. Nestatipificao, atriboera a totalidade de uma nao; o cleram as unidades nacionais menores designadas pelonome de um chefe antigo, mas que ainda assim pertencessem mesma tribo; osgrupos eram a unio devrios cls, que falavam uma mesma variao da lngua tsonga. Uma interpretao possvel a de que os

    tiku seriam os clsde uma forma geral; ou os gruposonde houvesse um sentimento de unidade. JUNOD,1996, Tomo I, p. 34.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    40/130

    40

    que sujeitou. Seu principal instrumento foi o exrcito.110 A nao zulu se constituiu por

    inmeros cls leais ao rei. As pessoas pertenciam ao rei. No perodo anterior da histria dos

    ngunis, a lealdade poltica coincidia com a filiao de parentesco. Assim, o conjunto das

    unidades polticas zulu designava-se originariamente abakwazulu, ou seja, descendentes de

    Zuluum, considerado o ancestral fundador dos zulus. Tal termo designou durante muito

    tempo, os descendentes de zulu, embora depois tenha se tornado mais amplo e passado a

    significar todas as pessoas que se sujeitam ao rei zulu.111

    Contrariamente ao que havia ocorrido aos zulus no processo de centralizao

    poltica, aqueles povos denominados como tsongas por Junod, eram na verdade uma

    variedade de povos que ocupavam uma vasta regio no leste da frica meridional. Algumas

    vezes tributrios de chefias mais poderosas, tentavam a todo custo manter as suas

    independncias. Por isso, sua lealdade nacional, ou sentimento de pertena, estava

    circunscrita aos ancestrais do chefe do seu cl. Esses povos, posteriormente generalizados

    com uma nica identidade no formavam um grupo tnico at o fim do sculo XIX, muito

    menos uma nao.112 Vale salientar que outros fatores, anteriores e posteriores ao

    missionria, contriburam para essa elaborao tnica.

    Os fatores anteriores foram as ondas migratrias de todo o sculo XIX e incio doXX. Uma das primeiras foi ocasionada pela expanso do Estado zulu, que atingiu o sul de

    Moambique, em 1820. Um dos grupos liderados por Manicusse ou Soshangana ocupou o

    baixo Limpopo.113Outra onda de migrao ocorreu entre 1858-62, ocasionada pela guerra

    civil em Gaza e por reviravoltas ecolgicas. Razias do herdeiro derrotado Maueva, filho

    de Sochangana de Gaza para a costa e norte da Delagoa Bay (nome com o qual os

    ingleses denominavam a Baa de Maputo), bem como os ataques do seu irmo Muzila,

    vencendor da guerra civil na regio sul e sudoeste de Moambique mantiveram inabalada

    a migrao para o Transvaal, at 1870.114Tambm a descoberta de ouro e diamantes nesta

    rea provocou o aumento da migrao, que j era uma prtica comum com destino s

    110GLUCKMAN, Max. O Reino dos zulo na frica do Sul. In: FORTES, M e EVANS-PRITCHARD, E. E.Sistemas Polticos Africanos. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1981, p. 64-5.111Ibid., p. 69-70.112HARRIES, 1989, p. 82.113SANTOS, Gabriela A. dos. Reino de Gaza: o desafio portugus na ocupao do sul e Moambique(1821-1897). Dissertao de Mestrado, So Paulo: USP, 2007, p 36-9; LIESEGANG, Gerhard. LourenoMarques antes de 1895. Boletim do Arquivo Histrico de Moambique, Maputo, n. 2, p. 33, 1987.114NEWITT, 1997, p. 313.

  • 5/19/2018 dissertacao_MVSDCoelho

    41/130

    41

    plantaes de cana-de-acar do Natal.115Alm disso, problemas naturais como seca, fome

    e varola aumentaram a fuga de pessoas da regio.116

    Esses migrantes levaram consigo diferentes alimentos assim como diferentes formas

    de prepar-los, fazendo com que isto se tornasse um sinal de distino cultural entre eles,

    assim como de estigmatizao, enquanto estrangeiros. A ltima grande migrao de

    refugiados durante o sculo XIX consistiu no xodo de pessoas para o norte e o leste do

    Transvaal, aps a derrota do ltimo movimento de resistncia contra os portugueses em

    1897.117 J no sculo XX, o movimento de pessoas oriundas de Moambique para o

    Transvaal consistia em uma busca de melhoria de vida, a partir da venda de sua fora de

    trabalho para as minas de ouro desta regio.118

    Esse longo perodo de migrao exigia espao de assentamento para os migrantes.

    Os problemas polticos e sociais decorrentes da luta pela terra circunscrevem os fatores

    posteriores. Devido expanso do Estado Africnder para o nordeste do Transvaal,

    estabeleceu-se uma poltica de controle, no sentido de inviabilizar a formao de chefias

    poderosas. Embora os migrantes e/ou seus descentes tivessem adquirido terra com uma

    certa facilidade, essa realidade mudou no final do XIX, com a expanso da prospeco de

    ouro. A valorizao da terra obrigou o Estado boer a criar reservas para tais africanos,numa tentativa de melhor control-los.119 Poltica que terminou por viabilizar o

    fortalecimento de chefias africanas, que se tornaram locais de aglutinao para os africanos

    que conseguiam ascender economicamente, a partir da lgica capitalista. Entre os mais bem

    sucedidos grupos de africanos encontravam-se os shanganas.120

    A mudana do cenrio econmico e poltico passou a favorecer os fazendeiros

    brancos pobres, atravs de subsdios do Estado. Isto em conjunto com as crises ecolgicas

    que ocasionavam secas, obrigou os produtores africanos a deixarem suas terras. Todas essas

    mudanas conjunturais deterioram a posio dos chefes africanos, motivando sua clientela a

    115NEWITT, 1997, p. 300; ZAMPARONI, 1999, p. 148-9.116HARRIES, 1989, p. 83.117Aps a captura do imperador de Gaza, houve um movimento de resistncia presena portuguesa. Em1897, Maguiguana, um antigo general do Gungunhana, organizou o ltimo levante blico contra osportugueses no sul de Moambique. PELISSIER, 1994, p. 314-23.118HARRIES, op. cit., p. 83-4.119HARRIES, 1989, p. 92-4.120Etnnimo shangana , juntamen