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O HUMANO, O SELVAGEM E O CIVILIZADO DISCURSO SOBRE A NATUREZA EM MOÇAMBIQUE COLONIAL, 1876-1918MARCOS VINICIUS SANTOS DIAS COELHO
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Universidade Federal da Bahia
Faculdade De Filosofia e Cincias HumanasPrograma de Ps Graduao Multidisciplinar em Estudos tnicos eAfricanos
MARCOS VINICIUS SANTOS DIAS COELHO
O HUMANO, O SELVAGEM E O CIVILIZADODISCURSO SOBRE A NATUREZA EM MOAMBIQUE COLONIAL, 1876-1918
Salvador, 2009
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MARCOS VINICIUS SANTOS DIAS COELHO
O HUMANO, O SELVAGEM E O CIVILIZADODISCURSO SOBRE A NATUREZA EM MOAMBIQUE COLONIAL, 1876-1918
Salvador2009
Dissertao apresentada ao Programa Multidisciplinarem Estudos tnicos e Africanos, Faculdade deFilosofia e Cincias Humanas, Universidade Federal daBahia, como requisito para o grau de Mestre emEstudos tnicos e Africanos.
Orientador: Prof. Dr. Valdemir Donizette Zamparoni.
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Biblioteca CEAOUFBA
C672 Coelho, Marcos Vinicius Santos Dias.O humano, o selvagem e o civilizado: discursos sobre a natureza em Moambique
colonial 1876-1918 / por Marcos Vinicius Santos Dias Coelho. - 2009.129f.
Orientador: Prof Dr. Valdemir Zamparoni.Dissertao (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e
Cincias Humanas, 2009.
1. Natureza e Civilizao Moambique - Histria. 2. Moambique Histria
1876-1918. 3. Moambique - Civilizao - Influncias africanas. 4. Moambique -Civilizao - Influncias europias. 5. Portugal - Colnias - frica. I. Zamparoni,Valdemir, 1957- II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e CinciasHumanas. III. Ttulo.
CDD 967.902
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MARCOS VINICIUS SANTOS DIAS COELHO
O HUMANO, O SELVAGEM E O CIVILIZADODISCURSO SOBRE A NATUREZA EM MOAMBIQUE COLONIAL, 1876-1918
Salvador, ___ de Dezembro de 2009.
Banca Examinadora :
________________________________________________Prof. Dr. Valdemir Donizette Zamparoni (orientador)
Universidade Federal da Bahia
__________________________________________________Prof. Dr. Osmundo Santos de Arajo Pinho
Universidade Federal do Recncavo da Bahia
__________________________________________________Prof. Dr. Jacques Depelchin
University of Berkeley
Dissertao apresentada ao Programa Multidisciplinarem Estudos tnicos e Africanos, Faculdade deFilosofia e Cincias Humanas, Universidade Federal daBahia, como requisito para o grau de Mestre emEstudos tnicos e Africanos.
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AGRADECIMENTOS
Proceder esta parte do trabalho certamente a mais fcil, embora no a mais
cmoda. Pode-se incorrer no erro de esquecer pessoas que, de alguma forma contriburam
direta ou indiretamente com a consecuo deste trabalho, a estes me desculpo
antecipadamente. Antes das pessoas, devo agradecer Fundao de Apoio Pesquisa do
Estado da Bahia (FAPESB), pelo suporte financeiro dado a esta investigao.
Feito isto, fica a incerteza de por onde comear os agradecimentos. Em primeiro
lugar a meus pai e me: Ana e Edvaldo. Eles foram responsveis pela formao existencial
deste autor, que finaliza seu primeiro trabalho de flego. Segundo, como sem a graduao,
esta pesquisa sequer teria comeado, agradeo ao meu amigo de infncia, ou melhor, irmo
Alain Santiago por ter me apoiado nos momentos mais difceis da minha graduao, seja
moral, seja materialmente. Obrigado por ter sempre acreditado. Tambm outra amiga-irm
que me socorreu aos 46 minutos do segundo tempo: Adriana Reis. Amigo-irmo e amiga-
irm de infncia, h tanto tempo juntos que so responsveis por todas as vitrias
alcanadas. J que estou falando dos irmos, agradeo tambm a Ana Paula e seu
companheiro Luis Cludio, que em muitas ocasies me socorreram em momentos desufoco. Tambm agradeo a meu irmo caula, Leonardo por ter, no momento crucial,
estado junto a nosso pai. Tambm devo lembrar dos meus tios Valter, Jaime, Bernadete,
Jacira e Irandete, incentivadores, apoiadores e celebradores da vida. Tambm agradeo
minha tia Ldia e minha prima Ftima, ambas foram trechos importantes desta jornada.
Daqui, posso ir direto aos colaboradores acadmicos. Devo agradecer a todos
aqueles que contriburam com este trabalho no seu nascedouro, lendo e criticando, quando
esta obra era ainda um projeto. Entre estes, posso relacionar o professor Muniz Ferreira, oscolegas Rogrio Santos e Fabio Alexandria, a amiga Mariele Arajo. Todos eles, em meio
s suas responsabilidades, dedicaram um precioso tempo de suas vidas para auxiliar o ainda
no graduado que pretendia trilhar uma vida acadmica.
J no processo propriamente dito, gostaria de agradecer professora Florentina
Souza e aos professores Nicolau Pars, Jacques Depelchin, Marcelo Bittencourt, Joclio
Teles, com quem tive a oportunidade de ampliar um pouco mais meus conhecimentos.
Tambm agradeo aos meus colegas e minhas colegas de turma, companheiros e
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companheiras do prazer de frequentar aulas acaloradas para depois refrescar as ideias
tarde, na rua da Lama e/ou no Lder. Em especial, agradeo a Sergio Mangue e Fabio
Baqueiro. O primeiro por dividir as primeiras incertezas e escolhas que este trabalho
percorreu, mas tambm por partilhar as reflexes que mais tarde amadureceram e se
consolidaram no trabalho que ora se conclui. O segundo, por quebrar muitos galhos
devido a minha distncia de Salvador, entregando relatrios e suportes deste tipo, mas
tambm trocando ideias.
No posso esquecer o professor Valdemir Zamparoni, responsvel pela orientao
deste trabalho, mas tambm pela minha iniciao nos caminhos da Histria da frica.
Zamparoni, quando eu era ainda um nefito nos estudos da Histria, me convidou e pagou
com recursos prprios seis meses de bolsa em uma pesquisa que me abriu os olhos para
este tema fascinante. Alm disso, foi um grande suporte em muitos momentos desta, ainda
muito recente, vereda acadmica que trilho. Nos momentos de incertezas, de aflio, de
cansao, de desespero me dispensou um apoio moral muito importante, mesmo a
quilmetros de distncia. Entretanto, deu-me muitos puxes de orelha haja vista minha
escrita deficiente fruto de uma pssima formao educacional bsica , teimosia
empedernida e demais problemas que desnecessrio relatar.Por fim agredeo a algum muito especial e tambm muito paciente que aturou o
mau humor, a tenso, a irritao, a dificuldade econmica, a chatice. Ainda assim, esta
pessoa contribuiu com ideias, carinho, apoio e dedicao. Algum que briga, reclama, mas
tambm chora junto e puxa para cima. Trilhar esse caminho com esse algum foi a coisa
mais compensadora. Ela estava no incio e tambm leu o projeto, acompanhou-me em
algumas aulas, partilhou a angstia dos trabalhos de final de curso, repartiu as dificuldades
e as alegrias. Discutiu e concordou e no poucas vezes discordou. Corrigiu texto, sugeriu
bibliografia, deu idias; algumas seguidas, outras no. Muito desta concluso tem sua
marca indelvel. Obrigado, Fernanda, por ter a persistncia e a pacincia de viver comigo
este processo to desgastante.
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Resumo
O objeto desta investigao circunscreveu-se a mapear as representaes a respeito domundo natural elaborado por um grupo de colonizados, conceitualmente definido comofilhos da terra. Para tanto, analisou-se o discurso de um dos mais destacados filho daterra: Joo Albasini. Tal reflexo escolheu o contexto de implantao colonial no sudesteafricano, ao sul do pas hoje conhecido como Moambique, considerando 1876, comomarco inicial e 1918 como marco final de suas fronteiras temporais norteadoras. Nestesentido, investigou-se e analisou-se as influncias culturais africana e europeia quepossivelmente contribuiram para a elaborao destas representaes. Para delimitar ainfluncia africana, foi analisado o relato etnogrfico Usos e costumes dos Bantude autoriade um missionrio suo: Herni Alexarder Junod. J a influncia europeia foi investigada apartir da interpretao do discurso de portugueses que estiveram envolvidos em debatessobre a colonizao, bem como na implantao e consolidao da empresa colonial. Asconcluses aqui apresentadas evidenciam que, atravs do processo colonial, os europeusconseguiram pelo menos na dimenso analisada impor sua perspectiva de mundo. Porsua vez, foi possvel demonstrar quais eram as representaes sobre a natureza elaboradaspor certos povos africanos que viviam nesta regio antes da ocupao europeia.
Palavras-chave: Moambique, Colonialismo, Natureza, Civilizao e Selvagem.
Abstract
This researchs object covered the representation about natural world drew by a colonizedgroup conceptually defined as filhos da terra (homelands sons). Thus, it was analyzed adiscourse of one the most prominent filho da terra: Joo Albasini. It has chosen thecolonial consolidation process between 1876 and 1918 as historic timeframes in the todaysouthern Mozambique. In pursuit this goal, the African and European cultural influences,which contributed to drawing the natural world representation above, were investigated andanalyzed. In a way to bind the African cultural influence, it was precede the analysis ofLifein a South African Tribe, by the Swiss missionary: Henri Alexander Junod. To find out theEuropean one, the discourse produced by some Portuguese, who had involved in debatesabout colonization as well as in the colonial enterprise implantation and consolidation, wasinterpreted. The conclusions presented here evidence that throughout the colonial process,
the Europeans reached at least in the analyzed dimension impose their worldview. Onthe other hand, it could shows what were the certain African peoples representation aboutnature in this region, before European occupation.
Key-words: Mozambique, Colonialism, Nature, Civilization, Savage.
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Sumrio
ndice de ilustraes 8
Introduo 11
1. O discurso de junod, a religio e a natureza para os tsongas 231.1 Henri Junod: missionrio, pai da antropologia sul-africana 241.2 Os tsongas: a criao de uma etnia 331.3 A religio e as possibilidades de uma abordagem histrica dos tsongas 441.4 A viso dos tsonga sobre o mundo natural 481.4.1 Humano versusnatureza 501.4.2 Um poder incontrolvel 51
1.4.3 Reserva de recursos para a sobrevivncia 521.4.4Um ambiente hostil 541.4.5 Espelho da sociedade humana 55
2. O mundo natural: vises sobre uma nova tradio portuguesa nocolonialismo em frica 642.1A frica selvagem e a Europa civilizada 662.2 Vises portuguesas sobre o mundo natural em frica 682.2.1 Diocleciano Fernandes das Neves:ambiguidades das vises do mundo natural antes da ocupaoo 712.2.2 Serpa Pinto e a introduo da cincia para observao da natureza 76
2.2.3 Oliveira Martins: relaes entre darwinismo social e nacionalismo imperial 852.2.4 Antonio Enes e as bases do Projeto Colonial 872.3 As vises portuguesas da natureza e as tradies inventadas 91
3. Joo Albasini: discurso sobre a natureza selvagem da civilizao 943.1 O Brilho das Luzes 943.2 Loureno Marques: um novo centro poltico para um novo grupo social 993.3 Os filhos da terra: pequena reflexo conceitual sobre um grupo social 1033.4 Joo Albasini: o mais destacado filho da terra 1063.5 A civilizao e o selvagem 112
Consideraes Finais 124
Referencias bibliogrficas 126
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NDICE DE ILUSTRAES
MAPASMapa 1: Mapa contemporneo de Moambique 10
Mapa 2: Etnias do sul de Moambique 37
Mapa 3: Possesses e ambies portuguesas na frica 70
FIGURASFigura 1: O orculo dos ossinhos 57
Figura 2: Consulta ao orculo 61Figura 3. Joo Albasini 107
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Mapa 1: Mapa Contemporneo de Moambique.
MOAMBIQUE
FRICA DO SUL
ZIMBBUE
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INTRODUOOs homens fazem sua prpria
histria, mas no a fazem comoquerem; no a fazem sobcircunstncias de sua escolha, esim, sob aquelas com que sedefrontam diretamente, ligadas etransmitidas pelo passado.
Karl Marx
O trabalho que aqui se apresenta visa suscitar a reflexo sobre o papel das
representaes a respeito do mundo natural presentes no discurso elaborado por um
importante personagem africano Joo Albasini depois do contato colonial. Tal reflexo
escolheu o contexto de implantao colonial no sudeste africano, ao sul do pais, hoje
conhecido como Moambique; considerando 1876 como marco inicial e 1918 como marco
final de suas fronteiras temporais norteadoras. 1876 foi escolhido por ser o ano em que
Loureno Marques (atual Maputo, capital de Moambique), localidade onde atuou Joo
Albasini, foi elevada condio de vila. O crescimento desta regio est estreitamente
relacionado com o desenvolvimento social e econmico promovido pelas mudanas das
relaes entre a Europa e a frica no perodo em questo. J 1918 final da PrimeiraGuerra Mundial, evento que provocou transformaes, mesmo na frica, como a sada da
Alemanha da condio de metrpole colonizadora , foi escolhido por ter ocorrido, por
conta de problemas da prpria guerra. A venda do jornal, que uma das fontes mais
importantes para esta pesquisa O Africano, resultou na transformao do perfil editorial
deste jornal.
Para alcanar tal objetivo, este estudo teve que enfrentar alguns obstculos. Os mais
relevantes estariam ligados aos problemas da metodologia multidisciplinar, ao limite
imposto pelas fontes e distncia geogrfica entre o local onde o trabalho foi desenvolvido
e a localidade onde os eventos histricos estudados aconteceram. Antes de discorrer sobre
as solues trilhadas para contornar tais obstculos, cabe delinear algumas condies que
orientaram este estudo. Condies, no necessariamente escolhidas, sem as quais este
trabalho no teria logrado xito. Se fazer histria intervir na construo do conhecimento,
eis sob quais condies este trabalho foi desenvolvido.
Era recorrente, no perodo anterior ao sculo XIX, a utilizao de expedies
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cientficas para catalogar as novidades e excentricidades encontradas pelo mundo. Era uma
tarefa da histria natural descrever o ambiente, o homem e os animais num todo
relacionado e coerente.1J nos meados do sculo XIX, com uma orientao cientificista,
frica acorreram inmeros cientistas e exploradores com a finalidade de mapear o
territrio, delimitar o curso dos rios, catalogar as espcies animais e vegetais da regio,
alm de registrar os usos e costumes da populao.2No importava aos observadores o
fato de que aquelas pessoas viviam em outra realidade natural e scio-cultural. Para eles,
urgia a necessidade de pr fim escravido e disciplinar o homem livre ao trabalho
regulado pelo tempo abstrato dos relgios. Evidentemente com o intuito de melhor explorar
sua fora de trabalho.3
Neste momento, no campo do conhecimento, ocorreu uma separao entre o homem
e a natureza. A natureza passou a ser tudo que estava em movimento, sem depender da ao
humana, enquanto a humanidade era concebida como um fenmeno exterior natureza.
Esta separao proporcionara a diviso da realidade entre Histria e Natureza.4 Esta
diferenciao conceitual passou a se posicionar em dois campos diferentes do
conhecimento: de um lado, as cincias biolgicas e do outro, as cincias humanas. Ainda
assim persistiram interpenetraes entre esses dois campos como, por exemplo, aantropologia que tentava explicar, a partir das caractersticas biolgicas de cada espcie
humana, uma funo de acordo com a sua capacidade.5
Se a industrializao modificou a relao entre homem e natureza a ponto de se ter
produzido um campo de conhecimento para cada um desses objetos, no sculo XX
aconteceu outra mudana. A busca da legitimidade cientfica baseada na objetividade
perseguida pelas cincias humanas, entre meados e fim do sculo XIX, passou a ser objeto
de severa crtica. Neste mesmo perodo, a Histria passou por uma transformao na forma
de elaborar seus objetos de estudo. Iniciava-se uma preocupao totalizante da realidade
social em vez da anlise de uma histria poltica ou factual, baseada exclusivamente
1LECLERC, Gerard. Crtica da Antropologia. Lisboa: Estampa, 1973, p. 13-4.2Id. Ibid., p. 17-8.3CAMACHO, Brito. A preguia indgena. In: ENNES, Antonio et alii. Antologia Colonial Portuguesa I Poltica e Administrao. Lisboa: Agncia Geral das Colnias, 1946, p. 191-4.4VIANA, Jos M. M. e MONTEIRO, Rosa C. Natureza vida Ambiente: diversas histrias. RevistaEsboos, n. 13. p. 36, s/d.5SCHWARZ, Llia M. O espetculo das raas:
cientistas, instituies e questo racial no Brasil 1870-1930.So Paulo: Cia das Letras, 1993.
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em documentos isentos que supostamente falavam por si.6 Esta transformao inseriu
novas preocupaes metodolgicas referentes investigao do desenvolvimento humano,
como as relaes possveis e necessrias entre as diversas disciplinas voltadas para o estudo
das sociedades.7A perspectiva geogrfica foi muito importante para uma das abordagens
analticas das aes humanas. Esta, por sua vez, passou a considerar a interferncia
recproca entre a humanidade e o ambiente natural que as envolviam.8Um dos estudos mais
significativos nesta acepo foi a anlise feita por Braudel das estruturas quase imveis do
desenvolvimento poltico, econmico e social, no incio da era moderna, consagrada em O
Mediterrneo.9As categorias temporais de anlise foram instauradas como longa, mdia e
curta duraes. A ltima relacionava-se aos eventos polticos e epidrmicos da histria,
motivados por necessidades imediatas de conflitos polticos, econmicos e sociais. Por sua
vez, os eventos na curta durao eram condicionados s estruturas que o limitavam. Estas
estruturas produto da mdia durao engendravam relaes sociais conformadas em
periodos mais longos; ademais os costumes culturais, polticos e econmicos, por ela
consolidados, sofriam transformaes lentas. Por fim, a longa durao circunscrita em meio
ao cenrio geogrfico o clima, o relevo e as atividades produtivas condicionavam o
sugimento destas estruturas.10
Embora mantendo seu foco sobre o homem, essa tendnciapermitiu o surgimento de novas abordagens que valorizavam a relao da humanidade com
o ambiente que a envolvia.
As concepes sobre o mundo natural uma entre as possibilidades de abordagem
para os recentes estudos da histria ambiental.11 Donald Woster pleiteia que a histria
ambiental um dos maiores esforos para tornar a Histria um campo de conhecimento
mais abragente do que costumava ser, desde que, a partir de meados do sculo XIX,
assumiu sua forma mais contempornea.12Conquanto seja muito pretenciosa a aspirao de
Woster, sua reflexo sobre como fazer histria ambiental permitiu a visualizao de alguns
6BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revoluo francesa da historiografia.So Paulo:Ed da UNESP, 1991, p. 18-22.7BURKE, 1991, p. 23-5.8Ibid., p. 25.9Ibid., p. 46.10Ibid., p. 46-51.11WOSTER, Donald. Para fazer histria ambiental. Estudos Histricos, n.8, vol.4, Rio de Janeiro, p. 202.1991.12Ibid., p. 198-9.
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caminhos a serem seguidos nesta proposta de trabalho.
Este campo da histria comeou a ser elaborado por volta de 1970, concomitante
organizao de movimentos ambientalistas ao redor do mundo. Embora tenha emergido a
partir de uma finalidade moral e orientada por princpios polticos, a histria ambiental
consolidou-se como uma perspectiva acadmica que ultrapassou suas primeiras motivaes
polticas e morais. Desta forma, a histria ambiental elegeu como foco de investigao a
relao entre as sociedades humanas e o ambiente natural que as envolvia, buscando
perceber as interferncias mtuas desta relao.13
Haveria trs possibilidades de abordagem para o estudo da histria ambiental. A
primeira seria aquela relacionada exclusivamente com os processos naturais, tanto com os
fenmenos inorgnicos quanto com os orgnicos. Nesta abordagem pode-se mesmo incluir
o organismo humano, que possui uma diversidade de relaes com a natureza, podendo ser,
por exemplo, presa e predador, hospedeiro e parasita. A segunda possibilidade estaria
circunscrita interao entre a natureza e a esfera socioeconmica da humanidade. Focam-
se neste caso as tcnicas desenvolvidas pelas distintas sociedades para adaptar sua
existncia ao meio em que vivem, bem como a distribuio social do poder de interferir no
ambiente. Por fim, estaria a possibilidade do estudo voltado para o puramente humano, quese preocupa em desvelar as ideias que, em diferentes pocas, as diferentes sociedades e
indivduos elaboraram a respeito da natureza. Woster afirma ainda que nas investigaes
sobre as concepes humanas sobre a natureza que foram elaborados os trabalhos mais
interessantes da histria ambiental.14No coincidncia a semelhana entre a proposta de
Woster e as definies de Braudel, tendo em vista que o trabalho do primeiro est listado
como referncia na obra do segundo. Orientando-se na ltima perspectiva proposta por
Woster, de alguma forma similar a curta durao de Braudel, esta investigao se
consolidou.
Durante o perodo compreendido entre o final do sculo XVII e o incio do XIX,
ocorrera uma transformao na Europa. As mudanas econmicas e o paulatino processo de
industrializao na Inglaterra desencadearam uma reelaborao das representaes sobre o
mundo natural. O enriquecimento de um setor social radicado nos centros urbanos, ligado a
13WOSTER, 1991, p. 199-200.14Ibid., p. 201-2.
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atividades de produo em larga escala, transformava o cenrio ambiental urbano. Este
novo cenrio passava a ser visto como insalubre. Viso esta que impulsionava o referido
setor enriquecido a buscar lugares, onde o contato com uma vida mais buclica
proporcionasse-lhes o reconforto espiritual e o necessrio descanso.15
Na Frana do final do sculo XVIII, devido saturao do estilo aguadamente
racional, comeava a aparecer em meio aos abastados, a necessidade de isolarem-se em
casas de campo em contato com a natureza. Os relatos de viagem das sociedades
primitivas anunciavam inocncia e felicidade queles que retornavam natureza. Tal
costume se transformou em moda para a alta nobreza da Frana. Claro que esta natureza era
controlada, planejada e decorada esteticamente por paisagistas e mantidas por jadineiros,
embora se tentasse fazer parecer que se tratava da materializao da simples realidade
natural.16
O marqus Joseph Gaspard de Maniban refugiava-se em uma casa de campo, sem
nenhum fim lucrativo, onde desfrutava uma vida frugal, em meio aos jardins e parques
onde se deleitava apreciando os prazeres do campo, entre os quais o frescor que vem das
margens do Garonne.17 A fuga para o campo no outono, sozinho em uma estadia
confortvel era outra forma como Diderot estabelecia a sua privacidade. Neste lugarningum o obrigava a nada e tinha tempo livre para fazer o que bem entendesse. Tambm
podia desfrutar da companhia de pessoas seletas com idias iguais s suas. Alis,
companhias necessrias para evitar o tdio da vida urbana.18A indicao destas mudanas
reclama outra referncia relevante para esta reflexo, Keith Thomas e seu trabalho O
homen e o mundo natural. Nesta obra, foi demonstrado como o desenvolvimento industrial
ocorrido na Inglaterra transformou as concepes sobre a natureza naquela sociedade.19
Havia pouca distino nos setores populares, entre pessoas e animais. Fosse por
trabalharem juntos sol a sol, fosse por empregarem na linguagem nomes de animais para
demonstrar sentimento de satisfao ou reprovao. Mesmo entre as classes mais altas
15 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanas de atitude em relao s plantas e osanimais 1500-1800. So Paulo: Companhia das Letras, 1988, passim.16CASTAN, Nicole. O pblico e o particular. In: ARIS, Phellipe e CHARTIER, Roger . Histria da vidaprivada, 3: da Renascena ao Sculo das luzes. So Paulo: Companhia das Letras. 1991, p. 441-2.17Ibid., p. 440-1.18Ibid., p.434-5.19THOMAS, 1988, p. 111.
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ocorriam casos de se nomear pessoas com nomes de animais, como no caso de uma rainha
inglesa que assim apelidava seus ministros.20As analogias e metforas lingusticas eram
intercambiadas entre humanos e animais, em uma demonstrao enftica da relao de
semelhana entre eles.21A relao entre homens e outros animais levou setores das classes
mdias a formar uma idia sobre a inteligncia, o carter e a personalidade dos animais.
Fundamentou-se o reconhecimento de que alguns animais deviam receber considerao
moral. Geralmente quem escreveu sobre os animais foram intelectuais importantes da
Inglaterra.22Na verdade, toda essa discusso intelectual j era parte do senso comum em
meio s pessoas simples que acreditavam nos valores dos animais que com elas
trabalhavam.23 No sculo XVIII, a combinao das concepes populares e eruditas
resultou no ataque tese que distinguia os homens dos demais animais, curiosamente
possibilitando a emergncia das teorias racistas, no final deste sculo.24
possvel que a atribuio da inexistncia de grandes diferenas entre o humano e o
animal ou melhor, o reconhecimento de que o homem um animal tenha sido
influenciada pela anatomia comparada, onde se estudavam os corpos de animais e percebia-
se a grande semelhana com os corpos humanos. Os monogenistas, corrente afiliada s
teorias criacionistas, designavam os demais humanos negros e amerndios por inmerascaractersticas depreciativas, enquanto o europeu era o nico portador de qualidades nobres.
J o poligenismo passou a ser mais amplamente cotejado por setores sociais mdios,
concomitante consolidao das ideias de que no havia diferena entre homens e demais
animais. Isto porque a existncia de homens em outras regies fora da Europa permitia ao
europeu manter-se no topo da linha evolutiva, enquanto os demais povos permaneciam
mais prximos ainda dos animais.25Neste processo, foi consolidada a ideia de que o negro
era o humano mais prximo dos animais, uma vez que os europeus tinham sido elevados
categoria de superior entre os humanos. Tais concepes foram a base para a antropologia
fsica, alicerce das ideias que sustentavam que os negros estavam mais prximos dos
20THOMAS, 1988. p. 118.21Ibid., p. 119.22Ibid., p. 144.23Ibid., p. 151.24Ibid., p. 161.25Ibid., p. 162.
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orangotangos que dos europeus.26 Desta forma, Thomas demonstrou como o
desenvolvimento econmico, cientfico e cultural viabilizou a emergncia de uma nova
concepo sobre os animais, o que transformou as vises sobre os outros seres humanos
no europeus.
Orientando-se nos mtodo de Thomas e Woster, buscou-se aqui refletir como que, a
partir das teias sociais construdas entre europeus e africanos, na ento colnia portuguesa
de Moambique, foram elaboradas as novas representaes sobre a natureza, a partir da
anlise do discurso de um dos mais destacados atores sociais de sua poca: Joo Albasini.
H de salientar que essas ideias possuam relaes ntimas com as condies materiais de
existncia referenciada em um contexto histrico colonial particular. Por isso, fez-se
necessrio estudar as matrizes que influenciaram o pensamento deste ator. As duas
vertentes mais influentes seriam a africana e a europia, haja vista que Joo Albasini era
fruto desta interao. Portanto, para entender o arcabouo cultural de Albasini, procedeu-se
investigao das duas matrizes culturais que o influenciaram. Este percurso determinou a
diviso desta investigao em trs captulos.
No primeiro captulo, buscou-se fazer uma anlise do relato etnogrfico de Henri-
Alexander Junod: Usos e costumes dos Bantu com vistas a delimitar as vises de naturezade matriz africana. Esta fonte, embora permeada de teorias evolucionistas e proselitistas
tpicas do seu tempo, permitiu a esta investigao uma percepo da complexidade da
dinmica cultural que ordenava os diversos povos que viveram ao sul do rio Save, no
territrio hoje compreendido entre Moambique e a frica do Sul. A relevncia dada a esta
fonte foi motivada pelo carter qualitativo e quantitativo das informaes nela contidas.
Atravs deste dados foi possvel perceber quais eram e se haviam concepes sobre a
natureza produzidas pelos africanos que habitavam esta regio e o quanto elas se
diferenciavam das ideias dos europeus. Buscava-se nessa anlise mapear qual teria sido o
grau de influncia das representaes produzidas por estes povos nos argumentos
discursivos do mais destacado filho da terra. Importante neste captulo, foi a descoberta
sobre a centralidade das concepes de mundo natural para a religio entre tsongas.
Resultado que no constava das preocupaes iniciais da investigao. Vale esclarecer que
os ancestrais de Joo Albasini, eram em sua maioria, de origem tsonga.
26THOMAS, 1988, p. 162-3.
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No segundo captulo, privilegiaram-se fontes impressas de portugueses que
mantiveram alguma relao com o processo de colonizao na frica. A depender do
perodo, foram usadas crnicas, relatrios oficiais, relatos de viagens de exploradores e
textos tericos sobre o carter biologicamente inferior dos africanos. Tal anlise poderia se
estender de forma mais ampla e sistemtica, incluindo uma gama maior de fontes e
pensadores, mas devido ao tempo que a pesquisa teve que obedecer foi necessrio um
recorte arbitrrio que excluiu fontes importantes. Este captulo procurou demonstrar quais
eram as idias sobre a natureza desenvolvida nos discursos de portugueses que tiveram
algum interesse relacionado frica, objetivando perceber em que medida tal discurso teria
influenciado nosso personagem. Investigou-se ainda se houve e quais foram as mudanas
que ocorreram em tais concepes pari-passo a ocupao do continente africano. Tal
esforo anlitico referenciou-se no entendimento de que estas ideias eram uma das matrizes
que compunham o argumento que justificava a conquista colonial, atravs da dicotomia:
civilizado versus selvagem. Aqui pontuou-se, de acordo com Eric Hobsbawm, que o
conceito inveno de tradies era apropriado para a perspectiva sobre a representao de
natureza criada neste discurso.
No ltimo captulo, utilizou-se como fonte o jornal O Africano, de 1909 1918,uma vez que neste ano ocorreu a venda deste jornal e, por conseguinte, a mudana do seu
perfil editorial. O Africano foi um dos porta-vozes do Grmio Africano de Loureno
Marques, agremiao poltica (auto-proclamada cultural), onde reuniam-se os filhos da
terra com inteno de organizar suas foras para a defesa, tanto dos seus prprios
interesses, quanto dos direitos dos habitantes locais mais expoliados, de quem julgavam-se
representantes.27 O jornal referido era editado pelos irmos Joo e Jos Albasini,
personagens destacados na sociedade laurentina de Loureno Marques do incio do
sculo XX. Com esta fonte, pretendeu-se delinear as representaes sobre o mundo natural
que sub-repticiamente emergiam das suas pginas no discurso de Joo Albasini. Do
discurso de Albasini busca-se mapear as vises sobre a natureza que circulavam na Colnia
Portuguesa de Moambique, no incio do sculo XX, em meio a esse grupo racial e
27ZAMPARONI, Valdemir D. Gnero e trabalho domstico numa sociedade colonial: Loureno Marques,Moambique, c. 1900-1940. Afro-sia, Salvador, n. 23, p. 156-7, 1999; Id., As escravas perptuas & oensino prtico: raa, gnero e educao em Moambique colonial 1910-1930. Estudos Afro-Asiticos, Riode Janeiro, v. 03, p. 462, 2003.
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culturalmente mestio, com o intuito de perceber quais aspectos do pensamento moderno j
estavam presentes nestas elaboraes. Bem como perceber quais aspectos das matrizes
africanas e europias consolidaram-se entre as idias dos filhos da terra.
Para finalizar esta introduo, faz-se necessrio voltar aos meios buscados para
solucionar os obstculos impostos pelas pesquisa. O primeiro obstculo teria sido a
distncia geogrfica entre o lugar do evento pesquisado e o desenvolvimento da
investigao. Para solucionar este problema, procurou-se trabalhar com fontes impressas
existentes no Brasil sobre a regio pesquisada. Foi analisado, para elaborao do terceiro
captulo, o jornal O Africano, constante da coleo do Prof. Dr. Valdemir Zamparoni,
digitalizado pelo Centro de Digitalizao da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas,
da Universidade Federal da Bahia. Para o segundo captulo foi consultado o romance do
comerciante Diocleciano Fernandes das Neves, Itinerrio de uma viagem caa dos
elephantes; o romance do explorador portugus Alexandre de Serpa Pinto, Como Atravessei
a frica; o relatrio de Antonio Enes,Moambique; todos do Real Gabinente Portugus de
Leitura, no Rio de Janeiro. J o primeiro captulo foi baseado no relato etnogrfico de
Henri Junod. Esta soluo esbarrou na validade desta fonte para o objeto investigado: a
concepo dos tsongas sobre a natureza.Para Silvia Lara, devido quantidade de textos existentes, os historiadores precisam
inventar suas fontes. Inventar no significa criar, mas fazer perguntas que possibilitem tais
textos oferecer informaes para entender o passado. Os relatos escritos esto circunscritos
experincia de vida daqueles que os produziram. Trazem, por conseguinte, a marca das
motivaes, interesses e finalidades das pessoas que os elaboraram.28 O documento
transforma-se em fonte a partir do momento que o investigador da histria elege o que quer
saber sobre o passado e elabora suas questes. Se o documento no traz explicitamente as
informaes buscadas pelos historiadores, h que se criar meios de retirar destes
documentos as informaes desejadas. Este o processo de inventar fontes. Ou seja,
analisar documentos que foram escritos com outras motivaes e finalidades que no a
buscada pelo historiador.29
28LARA, Silvia H. Os documentos textuais e as fontes do conhecimento histrico. Anos 90, Porto Alegre, v15, n. 28, p. 18, 2008.29Ibid., p. 18-9.
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Quando se quer descobrir algo sobre determinado assunto, deve-se procurar
documentos que tenham algum tipo de relao com o assunto investigado, alm de
identificar qual a relao com o contedo do documento. Ademais, necessrio saber
quem o produziu. Este o mtodo mais usado, embora no signifique que no existam
problemas em tal metodologia.30 So duas as crticas principais a esse procedimento.
Primeiro, preciso fazer a crtica ao etnocentrismo do documento. Tal procedimento traz a
iluso de que as distores podem ser corrigidas atravs de instrumentos de apoio como os
conhecimentos histricos, antropolgicos e lingusticos. Segundo, seria conhecer melhor os
autores que escreveram sobre o assunto para que seja possvel delimitar a subjetividade da
autoria e dirimir a falsificao ideolgica decorrente dos interesses pessoais e sociais dos
autores. A iluso neste caso relaciona-se com a idia de que os documentos produzem a
histria e de que os historiadores so capazes de alcanar a verdade contida em tais
documentos.31
Os crticos desta postura pontuam que os documentos no permitem entender o
passado, mas apenas o discurso que eles encerram. Ou seja, os registros discorreriam mais
sobre os autores e as formas discursivas do que sobre os eventos a que se remetem.32Esta
postura traz o problema de reduzir a reflexo ao texto, ou seja, h uma preocupao emcada passo da produo do texto; desde s intenes do autor, passando pelo significado da
terminologia, tanto descritiva dos eventos, quanto classificadora das pessoas, at a traduo
cultural e lingustica utilizadas. Os procedimentos da anlise e crtica da produo textual
tm sido to exaustivos que chegam a ser o nico objeto da pesquisa histrica. Ou seja, a
busca por corrigir as distores textuais termina por deixar de lado o pensar e fazer da
histria.33
Embora apresentando as duas tendncias de forma esquemtica, a autora pontua que
discorda das duas posies. O que em muito esta pesquisa concorda com ela. Para Lara, o
que no se pode desconsiderar que alm deste processo e contedo, o texto possui uma
dimenso material que, junto ao processo que logrou elabor-lo, devem constar da anlise
do historiador. Este cuidado historiogrfico no implica que o pesquisador necessite trocar
30LARA, 2008, p. 19.31Ibid., p. 20.32Ibid., p. 20-1.33Ibid., p. 21.
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o objeto ou deixar de fazer histria social. Ao invs disso, este conjunto de consideraes
sobre o texto permite ampliar o escopo da compreenso e do entendimento dos eventos
protagonizados pelas pessoas no passado. Sem tal anlise combinada, o historiador no
consegue inventar suas fontes.34
Pode parecer bvio para alguns historiadores, os problemas aventados por Lara, mas
para os que no so historiadores estas observaes se fazem necessrias. Afinal, este
trabalho inventou a sua fonte ao eleger uma parte do relato etnogrfico, que no foi
registrado com a inteno de historiografar a sociedade em questo. Muito menos,
atravs do referido relato, evidenciar concepes dos tsongas sobre a natureza. Foram as
questes desta investigao que logram obter respostas onde as informaes se propunham
responder outras perguntas. Como ficou implcito na reflexo que ora acaba de se
explicitar, este um dos problemas decorrentes da dificuldade de comunicao entre as
disciplinas. Por isso h que finalizar analisando as solues ou a insolubilidade desta ltima
barreira.
A interdisciplinaridade adquiriu notoriedade no campo da histria, embora haja
dificuldades em sua aplicao. Dois so os motivos. Primeiro, porque cada disciplina tem
seu conjunto de metodologias. Segundo, porque h uma disputa por hegemoniaepistemolgica entre as disciplinas. Isto provoca o entrincheiramento disciplinar dos
estudiosos, a partir do conjunto de metodologias de sua disciplina, em seus campos de
conhecimento.35Essa discusso de Ki-Zerbo refere-se aos estudos da frica antiga onde
existia a necessidade de uma maior convergncia de vrios campos do conhecimento para
tornar inteligveis os eventos do passado. Entretanto, esta reflexo muito pertinente para
qualquer investigao acadmica.
Na pesquisa que ora se conclui, embora tenham sido eleitas apenas fontes
impressas, foram usadas obras onde constam reflexes importantes de alguns antroplogos.
Entretanto, h que se considerar a dificuldade que a disciplinaridade impe aos intelectuais
formados em departamentos disciplinares, mormente pesquisadores nefitos, como os
mestrandos. No desejar que o pesquisador de histria se transmute em antroplogo,
34LARA, 2008, p. 21-2.35 KI-ZERBO, Joseph. Os mtodos interdisciplinares utilizados nesta obra. In: KI-ZERBO, Joseph(Coord.). Histria Geral da frica - I. Metodologia e pr-histria da frica . So Paulo: tica/UNESCO,1982, p. 367.
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socilogo, aps cursar quatros ou cinco disciplinas que no so de sua formao bsica,
deveria tambm ser parte da postura multidisciplinar. Afinal, um trabalho historiogrfico
que dialoga com crticos literrios, antroplogos e socilogos, no pode ser considerado
estritamente disciplinar, o que no significa que no seja histrico.
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1. O DISCURSO DE JUNOD, A RELIGIO E A NATUREZA PARAOS TSONGAS
Antes de acercar-se do tema deste captulo, necessrio clarificar algumas questes
referentes abordagem aqui proposta. O foco deste estudo preocupava-se em refletir sobre
quais seriam as representaes sobre o mundo natural, elaboradas pelos povos que viveram
na regio sul do pas que hoje se conhece por Moambique, no sudeste do continente
africano; com vistas a identificar o quanto estas representaes influenciaram as percepes
modernas sobre a natureza, elaboradas em Moambique por pessoas como Joo Albasini.
Tambm buscava perceber como tal legado influenciou o pensamento sobre a naturezadepois do advento colonial.
Optou-se por trazer este captulo como primeiro, devido anterioridade dos
africanos. Ou seja, suas concepes sobre qualquer fenmeno haveriam de ser a base para o
entendimento da vida social africana, permanecendo influente mesmo depois do contato
com os colonizadores europeus. O perodo que este captulo circunscreve abrange as
ltimas dcadas do sculo XIX, bem como o incio do XX. Foi durante este perodo que
estes povos elaboraram, recriaram ou ainda inventaram a sua identidade.
Entretanto, por tratar-se de um grupo que no deixou relatos escritos da sua
experincia histrica, foi necessrio para esta investigao utilizar o registro produzido
por um missionrio que estudou de forma extenuante muitos aspectos da vida deste grupo.
No se pode ignorar, contudo, os problemas decorrentes do uso destes registros, haja vista
tratar-se da perspectiva de um missionrio europeu dos finais do sculo XIX, envolvidas
em motivaes polticas, cientficas e religiosas que lhes so prprias. O que motiva o
enfrentamento de tais dificuldades neste trabalho a necessidade de dar relevo, visibilidade
ou simplesmente de suscitar a discusso sobre as vises de mundo de um povo ou grupo
de povos que foi subalternizado , apagada depois da implantao colonial.
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1.1 Henri junod: missionrio, pai da antropologia sul-africana36
A Sua ocidental, torro onde nescera Henri-Alexander Jonud, sofreu
transformaes em suas velhas estruturas sociais, da mesma forma que em toda a Europa
ocorreram reviravoltas polticas durante todo o sculo XIX. Estas reviravoltas estiveram
circunscritas aos embates entre a emergncia de novas ideias iluministas anti-religiosas, ao
questionamento do renascimento cristo e a laicizao do Estado nacional suio.37
As relaes entre o clero e o Estado na Sua eram muito ntimas. Em 1803, depois
de ocorrida a emancipao do domnio de Napoleo, houve grandiosa celebrao das
igrejas pela eleio do primeiro Grande Conselho. Alm disso, o Estado possua, por volta
de 1820, muitos pastores em seu quadro de funcionrios.38Um movimento de contestao a
antigas prticas religiosas renascimento religioso logrou trazer ao seio desta sociedade
discusses tanto polticas, quanto religiosas, sobre a liberdade de crena, uma vez que este
movimento havia sido alvo de rigorosa represso, sendo proibida a existncia de
comunidades religiosas desta natureza. Ainda assim, foram criadas, por pessoas simpticas
e envolvidas no renascimento religioso, instituies vrias; entre as quais as escolas
dominicais. Estas escolas se espalharam e disseminaram ainda mais reflexesquestionadoras contra as antigas prticas religiosas.39
Entre os quetionamentos poder-se-ia citar a necessidade de um renascimento
individual, a divulgao da mensagem crist entre todas as naes, bem como a promoo
contnua da reforma religiosa. Existia ainda a convico de que as sociedades que no
haviam sido infestadas pelas inovaes da civilizao eram mais propcias a um
ressurgimento do verdadeiro cristianismo.40 Como as misses preocupavam-se
fundamentalmente com as populaes rurais consideradas neste perodo mais puras queas modernizadas bem como com a evangelizao de povos primitivos ao redor do
36 Segundo Patrick Harries, historiador sul-africano que desenvolveu um trabalho substancial sobre HenriJunod, Max Gluckaman ao visitar a regio onde as misses suas desenvolviam seu trabalho prestou umahomenagem pstuma ao missionrio que fundamentou as bases da antropologia sul-africana. HARRIES,Patrick. Junod e as sociedades africanas: impacto dos missionrios suos na frica austral. Maputo:Paulinas, 2007, p. 1.37Ibid., p. 39.38Ibid., p. 14.39Ibid., p. 1440Ibid., p. 15.
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mundo, a atividade missionria se constitua como um dos ramos do renascimento
religioso.41
A atividade missionria ganhara repercusso devido a sua relao com este
inextrincvel processo histrico e foi um dos fatores que contribuiram para o surgimento da
identidade nacional sua. Este pas era dividido entre diferentes classes, religies e lnguas.
Por ao dos missionrios, a frica tornou-se uma imagem invertida da Sua onde os
suos se miravam na construo de sua identidade nacional. O apelo foi to bem sucedido
que logrou receber um enorme apoio. Tal apoio era perceptvel pelo crescimento da
arrecadao financeira para suporte das misses, no final do sculo XIX. Da mesma forma,
as concorridas audincias, onde celebrava-se a despedida de missionrios com viagem
marcada para frica, era outro fator que confirmava o envolvimento das pessoas nesta
empreitada religiosa.42
As escolas dominicais ajudaram a reforar ainda mais tal envolvimento, uma vez
que todo primeiro domingo do ms os alunos eram expostos a informaes do continente
negro. O contedo do material impresso utilizado para educao das crianas
lEducation Christiene era permeado de informaes sobre a topografia, as plantas, os
animais e os costumes das pessoas onde as misses estavam sediadas.43
Os africanos eramdescritos a um s tempo como vtimas e obstculos civilizao. No primeiro caso, as
imagens de alcoolismo, prostituio e demais vcios do capitalismo era o teor mais
enfatizado.44 No segundo, descreviam-se imagens de selvageria perpetrada por chefes
saguinrios e assassinos adeptos escravido. As duas imagens eram teis aos interesses
missionrios, pois sensibilizavam os suos, incetivando-os a contribuirem com a
manuteno material das misses. Tambm destacava a virilidade e desprendimento do
valor civilizacional destes missionrios, enquanto disseminadores dos verdadeiros valores
da civilizao.45 Henri Junod, em 1884, dirigiu uma pea de teatro onde tais imagens
africanas foram encenadas, ou seja, foi uma das crianas formadas com essas
41HARRIES, 2007, p. 1542Ibid., p. 39-40.43Ibid., p. 42-4.44Ibid., p. 44.45Ibid., p. 46.
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representaes sobre a frica.46
Alm de formar o imaginrios das crianas, e por tabela, dos pais suos, esta
representao da frica serviu ainda para preencher a lacuna da evoluo compreendida
entre os humanos e os animais, inaugurada com a emergncia da histria natural.47 As
descobertas geolgicas punham em xeque as explicaes genesacas sobre a origem do
mundo, aumentando a idade da humanidade em milharess de anos. Junto a isso, surgiram as
teorias darwinistas que propunham uma origem nica para todos os seres vivos. Tais
inovaes levaram tambm os suos a se preocuparem com sua origem pr-histrica. As
primeiras teorias buscavam mapear linguisticamente as primeiras populaes supostamente
suas. Estas populaes eram descritas como semelhantes s representaes sobre os
africanos sanguinrios que circulavam entre os materiais impressos usados nas escolas
dominicais.48Estas idias estavam disseminadas por toda Europa. Acreditava-se que, como
um anatomista podia, a partir de alguns pedaos de ossos, reconstituir um animal, da
mesma forma, os fillogos conseguiriam reconstruir as lnguas. De tal forma que, atravs
das tradies africanas, acrediatva-se poder descobrir as origens do homem.49
A frica, ainda assim, era vista como um lugar onde se podia disseminar o
cristianismo renascente. O modo de vida simples dos africanos e as poucas necessidadesmateriais contrastavam com a Sua desenvolvida, onde os tentculos do capitalismo
haviam se expandido at para as vilas retiradas nos alpes. Era mais provvel converter os
africanos ao renascimento religioso que os europeus influenciados pelo materialismo
incuo e a civilizao degenerada.50 Mesmo porque a presena europia no continente
africano estava tambm degenerando os africanos, de tal forma, que aqueles que haviam
tido contato com os europeus adquiriam modos de vida muito mais degenerados que os
africanos que viviam isolados.51Urgia, portanto, recuperar estes espaos e sua populao
para no acontecer na frica o que estava acontecendo na Sua. Ao promover a
disseminao das luzes, e por conseguinte, a religio verdadeira, os missionrios suos
tambm espiavam os erros cometidos pelos cristos na frica; espiando erros cometidos no
46HARRIES, 2007, p. 47.47Ibid., p. 49.48Ibid., p. 49-50.49Ibid., p. 52.50Ibid., p. 56-7.51Ibid., p. 57.
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passados e construindo seu ethos enquanto nao.52 Desta forma, a identidade sua se
constituu enquanto humanitarismo neutro, tendo como um dos aspectos importantes a
atividade missonria. O reforo das misses sua caracterstica de neutralidade latreava-se
no empreendimento do apoio aos africanos primitivos e explorados, permitindo emergir
uma identidade nacional onde antes apenas existiam divises.53
As misses protestantes passaram a atuar na regio de Moambique s a partir das
duas ltimas dcadas do XIX. Os protestantes traziam famlias e buscavam aprender a
lngua local com a inteno de publicar livros religiosos e didticos em tais lnguas.
Alfabetizar em lngua local era a prtica comum entre os missionrios protestantes. Para
tanto, eles estabeleciam formas escritas para lnguas antes apenas orais. Ensinavam ainda as
lnguas europias como segunda lngua para que os indgenas pudessem estabelecer
relaes com os valores e modos de vida ocidentais.54
Henri-Alexander Junod foi um missionrio suo que viveu na regio entre o sul de
Moambique e o leste da antiga Repblica do Transval de 1888, quando os portugueses
possuam um pequeno controle sobre chefias independentes, at 1896, quando a conquista
do sul de Moambique foi concluda. Junod chegou e ter que se defender das acusaes de
colaboracionismo com os chefes africanos aps a vitria dos portugueses. Entretanto, estahostilidade dos portugueses fortaleceu a posio dos africanos junto Misso Sua,
sanando possveis suspeitas em relao misso.55 Esteve presente ainda de 1913 at
1920.56Entre 1896 e 1913, Junod teve que se manter fora dos domnios portugueses por
problemas com a administrao colonial.57 Em 1895, quando dirigia a Misso Sua,
recebeu a visita do lorde James Bryce, que era amigo de outro lorde SirJames Frazer, de
Oxford. Tal encontro mudou suas atividades de investigao. Antes sua preocupao era a
52HARRIES, 2007, p. 60-1.53Ibid., p. 68.54 ZAMPARONI, Valdemir D. Deus branco almas negras: colonialismo, educao, religio e racismo emMoambique 1910-1940. http://www.codesria.org/Links/Research/luso/zamparoni.pdf, p. 2. s/d.55 GAJANIGO, Paulo Rodrigues. O Sul de Moambique e a Histria da Antropologia: Os usos eCostumes dos Bantos, de Henri Junod. Dissertao de Mestrado. Capinas: Unicamp, 2006, p. 25.56HARRIES, Patrick. The Antropologist as historian and aid to the historian in Mozambique: the work ofH.A. Junod. Conference on: The Interaction of Historyand Antropology in Southern Africa, University ofManchester. 1980, p. 04. Manuscrito se encontra no Centro de Estudos Africanos N 9/K 967.9 Moambique.57 O Estado colonial desconfiava das aes perpetradas pelos missionrios de igrejas missionriasestrangeiras, por isso tentava coibir o funcionamento destas em seu territrio alegando que estasdesnacionalizavam os indgenas. ZAMPARONI, op. cit., p. 2-3.
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entomologia. Aps a visita de Bryce, Junod percebeu que o homem [era] infinitamente
mais interessante que o inseto!.58
A converso do missionrio para a Antropologia estava relacionada tanto com a
emergncia deste campo de estudo na conturbada Sua da poca, quanto com a sua
experincia em meio aos africanos da sua misso. Existiam duas tendncias para estes
estudos, a antropologia fsica e a social.59A primeira estava orientada pelos estudos sobre
craniologia dos povos africanos. Enquanto a segunda preocupava-se em entender as origens
da religio e outros aspectos sociais, por via do estudo da mitologia e dos ritos funerrios,
tanto dos povos africanos quanto de outros povos primitivos ao redor do mundo.60
Como estudante, Junod visitou a Alemanha em 1885, e pode sentir o clima de
investigao existente naquele pas. Em Berlim, desenvolveu interesse por filosofia,
histria natural e geografia social. Esta experiencia influenciaria seus estudos sobre
antropologia.61 J na frica em 1889, comeou a enveredar-se sobre os costumes dos
africanos. Embora inicialmente rejeitasse as prticas africanas como demonacas, sua
vivncia entre os africanos transformou sua perspectiva, ao passo que tambem deslocava
seu foco da histria natural para o estudo das lnguas, das tradies orais e finalmente, para
os costumes dos povos locais.62
Em frica estavam ocorrendo muitas transformaes decorrentes da presena
europia. A conquista portuguesa do Reino de Gaza, a descoberta de minrios preciosos no
Transval e a ampliao de Loureno Marques em virtude da sua importncia como porto
para escoamento desse minrio e de outros produtos produzidos localmente provocaram
transformaes sociais e econmicas nos povos da regio.63Como Junod via a frica como
o lugar onde era possvel observar os lampejos do alvorecer da civilizao vacilante, mas
determinado em seu progresso , cabia recolher estas informaes antes que elas se
58 JUNOD, Henri A. Usos e costumes dos Bantu. Tomo I. Maputo: Arquivo Histrico de Moambique,1996, p. 21.59HARRIES, 2007, p. 235.60Ibid.61Ibid., p. 235-36.62Ibid., p. 236.63 Para um panorama detalhado das transformaes polticas, sociais e econmicas, ver ZAMPARONI,Valdemir. Entre Narros e Mulungos Colonialismo e paisagem social em Loureno Marques (1890-1940). Tese de Doutoramento. So Paulo: USP, 1998, p. 142-175; SERRA, Carlos. Histria deMoambique. Maputo: Livraria Universitria, 2000, p. 359-383; NEWITT. Malyn. Histria deMoambique. Lisboa: Publicaes Europa-Amrica, 1997, p. 294-5.
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perdessem no contato com os europeus.64
Em 1909, numa das minhas viagens Europa, encontrei, a bordo dopaquete que nos levava, trs indgenas que iam, suponho, para a Inglaterrapor motivos polticos. Senti um grande prazer em falar com eles. Um eradiretor dum jornal indgena, outro chefe cristo, e o terceiro dirigia umacasa de educao, fundada por ele prprio. Tentei um belo dia obter delesalgumas informaes etnogrficas. Nunca sofri insucesso to completo emminha carreira! O diretor de jornal era duma famlia wesleyana, e nuncavivera entre pagos. O chefe cristo estava mais bem informado, mas, pormotivos que no desvendou, no se disps a comunicar o que sabia. Odiretor do colgio era muito inteligente; declarou logo de comeo queexistia feitiaria entre os brancos do mesmo modo que entre os indgenas
da frica do Sul, e que isso no passava, afinal de contas, duma forma demesmerismo. (...) Deixei-os, com um sentimento de melancolia, pensandocomo eram diferentes dos meus informadores tsongas, o Mbhoza, oTobana e mesmo o Elias.65
Junod relatava que sua tarefa etnogrfica era a de documentar uma civilizao
estagnada, registrar o que j existia, ou seja, o normal; em vez daquilo que fosse
inovador, ou seja, a exceo. Por isso se decepcionara ao encontrar indgenas sem
relaes com suas culturas.66A transformao deste interesse era tambm permeada pela
ao dos portugueses, uma vez que Junod via ameaadas as culturas locais, por aodaqueles europeus.67 Neste movimento, Junod deixou seus estudos entomolgicos e sua
perspectiva negativa em relao ao africanos para iniciar suas investigaes preocupado em
registrar, e tambm defender, a cultura dos africanos com quem se ocupava.
A antropologia na altura era controlada por homens como Frazer que interpretava,
na metrpole, os dados etnogrficos recolhidos pelos homens locais, como Junod. O
Sistema Bantu de famlia estava em rpido processo de desintegrao - prova disto eram
os trs africanos a caminho da Inglaterra - e urgia que fossem recolhidos dados quecatalogassem, sob uma perspectiva da cincia, sua estrutura e funcionamento. Era vital
registrar a vida cotidiana dos povos iletrados para que, na posteridade, seus descendentes
pudessem entender seu passado.68
64HARRIES, op. cit., p. 53.65JUNOD, 1996, Tomo I, p. 22.66Ibid., p. 21.67HARRIES, 2007, p. 238.68HARRIES, 1980, p. 01.
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Era possvel que estes indgenas, por causa de quem tnhamos vindo para africa, aproveitassem com um estudo desse gnero e viessem mais tarde aser-nos gratos por saberem o que haviam sido na sua vida primitiva.69
O arcabouo subjetivo de Henri Junod no diferia, em termos significativos, dos
antroplogos da sua poca. Baseado na teoria social da evoluo, Junod buscava
demonstrar que muitas instituies estabelecidas entre os povos do sudeste da frica eram
conseqncias de um processo evolutivo. Como a evoluo era inevitvel, urgia a coleta
dos costumes primitivos. A poligamia era um exemplo desta perspectiva da teoria da
evoluo:
Qual a origem deste costume? Podia pretender-se que se trate dumvestgio do velho sistema de casamento por grupos, supondo terem osBantu passado tambm por este estdio de evoluo familiar. Em dadapoca todos os homens dum grupo teriam considerado como suas todas asmulheres de outro grupo, e vice-versa. O temor do matlulana70 teriaacabado com a poliandria, e s a poligamia sobreviveu.71
Tais idias eram tambm motivo de preocupao de um antroplogo social suo
chamado Bachofen, com quem Junod havia tido contato. Ele buscava compreender como a
importncia da figura do tio podia ser um vestgio do estgio matriarcal da evoluo da
famlia. Hoje considerada como um conhecimento do seu tempo, servia na altura para
fundamentar as idias dos primeiros antroplogos.72 Neste sentido, vale salientar que o
amadorismo contribuiu fortemente para uma fundamentao slida da Antropologia. Esta
possua o mesmo estatuto que aquele quando, no final do sculo XVIII, surgia como
disciplina. Alm disso, a antropologia, com seu pretendido estatuto de cincia, embora
tentasse, no conseguia substituir os relatos dos missionrios, padres e etngrafosamadores, pois tendia a desculpar-se cientificamente rotulando tais registros como
69JUNOD, 1996, Tomo I, p. 21.70Tabu que probe dois irmos manter relaes sexuais com a mesma mulher, enquanto um deles estiver vivo.71JUNOD, 1996, Tomo I, p. 260.72Segundo Gajanigo, Junod foi a principal fonte usada por Radcliffe-Brown para elaborao do artigo Themothers brother in South frica. Na segunda edio da etnografia sobre os tsongas, Junod fez reparos aoartigo de Radcliffe-Brouwn. Entretanto, este ignorou formalmente as crticas de Junod. Diante disto, Gajanigoindica haver indcios suficientes para afirmar que Junod deu uma enorme contribuio para os estudos sobreparentesco, embora esta contribuio tenha sido pouco destacada em virtude do posicionamente de Radcliffe-Brown neste debate. Entretanto pontua. GAJANIGO, 2006, p. 65-79.
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aberraes, mediocridades, horrores e asneiras.73 Outro ponto de convergncia entre
missionrios e antroplogos que ambos eram versados na mesma epistemologia ocidental;
sua divergncia era de carter prtico. Os missionrios estavam orientados para a tarefa da
converso e integravam seu conhecimento sobre as comunidades locais em seus princpios
teolgicos para a salvao. J os antroplogos queriam contribuir para a histria da
humanidade, dando especial ateno para as particularidades regionais, interpretando-as
metodologicamente atravs de anlises que possibilitassem generalizaes conceituais.74
Junod tambm apresentou representaes Liga das Naes a favor dos povos
colonizados e nutria grande simpatia pelos explorados.75Existem documentos crticos sobre
o colonialismo portugus em seus trabalhos no-etnogrficos ou no-cientficos e em sua
correspondncia privada. Em uma carta a Virgile Rossel, fez uma anlise brilhante das
causas da Guerra Luso-Gaza, atravs da qual tentou justificar sua posio pr-Gaza 76, o que
resultara em sua remoo de Moambique, em 1896.77Em um relato sobre os ritos sexuais
de purificao, ainda que tentasse relativizar tais prticas, enfatizando a seriedade destas
cerimnias para essas sociedades, possvel observar os preconceitos comuns que
permeavam as vises europias, quando salienta que tais noes coletivas sobre a moral
eram obscuras:
um assunto extremamente curioso e misterioso. Para compreend-lobem, necessrio penetrar profundamente a mentalidade banta e esqueceras nossas prprias concepes da vida conjugal! Espero que nenhum dosmeus leitores fique escandalizado por cerimnias evidentementerealizadas com a maior seriedade e que so uma verdadeira aspirao
73 MUDIMBE, V. Y. The invention of Africa: gnosis, philosophy and the order of knowledge .Bloomington and Indianpolis: Indiana University Press, 1988, pp 64.74Ibid., p. 65.75A Sua, sendo considerada uma nao neutra, foi escolhida para sediar organizaes internacionais como aLiga das Naes, depois do fim da Primeira Guerra Mundial. Antes j havia sido criada por suos a CruzVermelha e a Agencia Internacional para a Defesa dos Nativos. Esta ltima, depois que a Liga das Naespassou a ter sede em Genebra, ganhou grande destaque, mudando o nome para Organizao Internacionalpara Defesa do Nativos, embora houvesse quem desejasse Cruz Negra. Junod, desde formado, era scio daAgncia e tornou-se seu presidente em 1929. HARRIES, 2007, p. 66.76 O Imprio de Gaza foi fundado em torno de 1821 por Sochangana ou Manicusse e compreendia umterritrio de aproximadamente de 250 a 300 mil km2 . Estendia-se do Incomti ao Zambeze, no sul da regiohoje conhecida por Moambique. S foi derrotado pela conquista portuguesa em 1895, com a captura do seultimo imperador, o Gungunhana. SERRA, 2000, p. 90; PELISSIER, Ren. Histria de Moambique:formao e oposio 1854-1918. Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p. 185-7;. ZAMPARONI, 1998, p. 20-1 e37-8.77HARRIES, 1980, p. 04.
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pureza, tal como concebida por uma tribo ainda mergulhada nas noesobscuras da moral coletiva.78
Henri Junod produziu um relato etnogrfico enorme, fruto de muito trabalho, onde
registrou trinta anos de histria de Moambique. Tal relato - com mais de mil laudas - est
dividido em dois tomos e seis partes que tratam da vida do indivduo; da vida da famlia e
da povoao, da vida nacional, da vida agrcola e industrial; da vida literria e artstica e da
vida religiosa e supersties. Se como etngrafo, Junod repetiu os mesmos erros que seus
contemporneos, fez um trabalho extremamente relevante para os historiadores. Embora
estes tenham que estar cientes sobre o carter do relato, bem como sobre a formao do seu
autor. Entretanto, no se deve descartar uma fonte por causa de tais obstculos.
Uma abordagem historiogrfica que se disseminou nas ltimas dcadas aponta para
uma preocupao em reconstruir a histria dos subalternizados.79Entretanto, quanto mais
antiga a reconstruo da histria destas pessoas, mais difcil ser encontrar fontes para tal
reconstruo,80mormente quando as pessoas em questo viviam em sociedades grafas. O
uso de depoimentos orais de pessoas comuns pode ser usado como fonte para preencher
esta lacuna, embora no se devam priorizar apenas as pessoas comuns, mas todos os atores
sociais.81 mesmo possvel utilizar a antropologia e a sociologia para conceber este tipo de
abordagem histrica.82Daqui decorre a relevncia da etnografia de Henri Junod.
Em vez de concentrar seus estudos sobre sociedades exticas, instituies sociais ou
aspectos dessas sociedades em pequena escala, o trabalho de Junod sobre os tsongas era
holstico em sua concepo. Sua abordagem na coleta dos dados etnogrficos influenciou,
segundo Harries, os historiadores africanos mais contemporneos a mudarem de uma
narrativa histrica dos eventos, para a histria dos acontecimentos que no foram
selecionados por sua suposta singularidade e importncia, mas por sua compatibilidade comoutros fatos.83 A etnografia de Junod se concentrou no homem e na mulher comum e,
consequentemente contribuiu, mesmo sem o querer, para o tipo de historiografia que iria
78JUNOD, 1996, Tomo I, p. 150.79SHARPE, Jim. A histria vista de baixo. In: BURKE, Peter.A escrita da histria: novas perspectivas.So Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 40-1.80SHARPE, 1992, p. 42-3.81Ibid., p. 48-9.82Ibid., p. 53-483HARRIES, 1980, p. 11.
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surgir mais de meio sculo depois de seus escritos e que ficou conhecida como histria
dos subalternizados ou histria de baixo. Junod j ensaiava tal modelo num perodo em
que a historiografia sobre a frica estava restrita histria da explorao e da
colonizao.84
1.2 Os tsongas85: a criao de uma etnia
O conceito etnia possui muitos significados. Oriundo do termo francs ethnie, derivado
do grego ethnos, que significa povos, foi usado no fim do sculo XIX para designar
diferentes raas, bem como aplicado para definir os povos primitivos.86 Contribuiu,
assim, para criar uma barreira entre raas, sendo umas classificadas como inferiores,
enquanto outras superiores. Outro problema foi o uso inapropriado do conceito pelos
administradores coloniais em frica. Neste caso, etnia foi utilizado para substituir o
conceito de tribo e dividir populaes africanas para otimizar a dominao colonial.
Acreditava-se que determinadas caractersticas fsicas e culturais eram particulares e
serviam para diferenciar as tribos umas das outras.87Entretanto, aps a crtica elaborada
por Franz Boas que negava a existncia da relao entre tipos biolgicos e formasculturais tais convices foram abandonadas pela maioria dos etnlogos,88 mas no
necessariamente no mbito da administrao colonial.
Podemos delimitar duas possibilidades de uso do conceito para este captulo. A
primeira busca mapear os caminhos pelos quais os diferentes grupos humanos trilharam na
construo das suas identidades coletivas; sem que para isso fosse necessrio o uso da
hierarquia de uns em relao aos outros.89 A segunda, claramente diferenciando etnia e
nao, delimita etnia, com o significado de etapa inicial prpria das sociedades no84HARRIES, 1980, p. 10-1.85Este etnnimo pode ser tambm grafado como thonga. Tal variao pode ocorrer em edies diferentes deuma mesma obra. Um exemplo a obra do prprio Henri Junod, Usos e Costumes dos Bantucuja edioportuguesa est grafada thonga enquanto na moambicana encontra-se a grafia tsonga.86DE HEUSCH, Luc. Lethnie. The vicissitudes of a concept. Social Antropolgy, n.8, (2): p. 99, 2000.87GODELIER, Maurice. O conceito de Tribo. Crise de um conceito ou crise dos fundamentos empricos daAntropologia? In:Horizontes da Antropologia. Lisboa: Edies 70, s/d, p. 130-40.88Ibid.89WEBER, Max. Economia e Sociedade. Vol. 1. Braslia: Editora da UnB, 1991, p. 267; BARTH, Fredrik.Grupos tnicos e suas Fronteiras. In: POUTIGNAT, Phelippe e STREIFF-FENART, Jocelyne. Teoria daetnicidade. So Paulo: UNESP, 1998, p. 195 e DE HEUSCH, 2000, p. 113-4.
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desenvolvidas; enquanto nao, como estgio superior de sociedades complexas que
superaram o primitivo.90
Uma das acepes em relao ao conceito a que considera como sendo tnica a
comunidade que congrega pessoas de descendncia comum, que partilham no s a
pertinncia raa como tambm os valores e um destino que os distinguem das
comunidades vizinhas. Neste sentido, tal procedimento coletivo expressaria a relao de
alteridade entre as comunidades, podendo ser depreciativo ou reverente. Sendo a escolha da
forma dependente da relao de poder poltico, militar, econmico e cultural que a outra
coletividade expressa.91
Outra possibilidade para a demarcao da etnicidade so as fronteiras tnicas. Nesta
anlise, o ator social indivduo que age dentro (e porque no dizer, fora) de um grupo
tnico ganha maior relevncia. este ator social que define sua relao com a identidade
tnica que melhor atende seus interesses sociais, polticos e econmicos. Porm,
independentemente das aes dos atores sociais, das transformaes culturais ou
fenotpicas ocorridas dentro do grupo tnico, as fronteiras entre as identidades de grupo
permaneceriam existindo.92 Sendo um ponto de inflexo para o conceito, tal abordagem
problematizou o postulado que foi durante muito tempo defendido como base declassificao das etnias de que as identidades se assentavam no princpio de que uma raa
equivaleria a uma cultura e uma linguagem, bem como uma sociedade equivaleria a uma
entidade coletiva que discrimina as demais. Esta problematizao crtica idia de
isolamento cultural como requisito para a formao dos grupos tnicos.93til para analisar
o dinmico processo de formao das identidades coletivas, esta perspectiva evidencia
ainda como ocorreu a manuteno destas fronteiras permanentes, ainda que no estticas.
H ainda uma opo que utiliza etnia como ponto inicial do processo de formao
das naes. Tal uso, logo de incio, evidencia problemas. Esta anlise baseia-se no princpio
de que o mundo hodierno um mundo de naes e que este princpio a um s tempo
uma realidade e uma aspirao.94 Isto porque, em sua maioria, os Estados-Naes
90SMITH, Anthony D. The Ethnic Origins of Nations. Oxford: Blackwell Publishers, 1986, p. 129.91WEBER, op.cit., p. 267.92BARTH, op. cit., p. 195.93BARTH, 1998, p 190.94SMITH, op. cit., p. 129
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modernos so compostos por outras naes e/ou minorias tnicas. Isso quer dizer que as
naes comportam em seu interior outras naes e/ou grupos tnicos, que foram dominados
e/ou anexados por outros grupos mais poderosos. Sendo que todos aspiram tornarem-se
e/ou manterem-se naes independentes.95 Essa elaborao visa fundamentar uma teoria
sobre a origem das naes e sustenta que, no modelo ocidental, foi o Estado que promoveu
a organizao dos Estados-naes modernos; enquanto no modelo oriental teriam sido as
etnias que desempenharam tal papel.96
Ainda na mesma perspectiva, o conceito de nao teve origem no processo
denominado de Revolues Ocidentais que transformou e desenvolveu tais naes. As
revolues estariam dividas em trs esferas que consistiriam em: 1)- revoluo da diviso
do trabalho; 2)- revoluo administrativa e 3)- revoluo cultural. O que no se
evidencia o critrio usado para conceituar etnia. Uma noo seguindo um dos exemplos
da relao entre naes e etnias evidencia-se quando os catales so definidos como
nao, enquanto os galegos so definidos como etnia. Tendo em vista o processo histrico
que resultou na formao da nao espanhola, sabe-se que, tanto os catales quanto os
galegos foram durante o fim da Idade Mdia gradativamente anexados pelos reinos de
Arago e Castela.97
Porque os galegos seriam uma etnia enquanto os catales, uma nao?Pode-se, a partir de tais reflexes, perceber o carter arbitrrio e hierarquizante do conceito,
no qual etnia a etapa inicial do processo evolutivo das sociedades consideradas naes.
Um argumento, que sustenta tal idia, afirma que nas sociedades consideradas
civilizaes tradicionais africanas, a aplicao do termo nao deve ser feita com cuidado.
Entretanto, os conceitos de nacionalidade e nacionalismo, por terem atravessado todo o
pensamento e histria europias no sculo XIX e ressurgido nos Blcs e no Cucaso, aps
o fim do sistema comunista, so teis para anlise das sociedades europias.98Se o conceito
de nao, bem como o de etnia, foram criados pelos europeus, porque estes aplicam o
primeiro para autodefinio, e o segundo para definir os outros grupos humanos,
geopoliticamente submetidos ou supostamente inferiores no sistema capitalista mundial?
95SMITH, 1986, p. 130.96Ibid., p. 130-1.97 COTAZAR, Fernando Garcia de e VESGA, Jos Manuel Gonzles. Histria da Espanha: uma brevehistria. Lisboa: Editorial Presena, 1997, p. 156-182.98DE HEUSCH, 2000, p. 113-4.
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Um argumento contrrio a esse uso do conceito, com o qual a abordagem aqui proposta
concorda, estabelece que desconhecendo e negando a histria dos povos, foram a
etnologia e o colonialismo que, apressados em classificar e nomear, encarregaram-se de
fixar as etiquetas tnicas99, sem negar, contudo, que tais povos estabeleciam e
reconheciam distintas identidades entre si.
Da anlise acima podemos delimitar duas possibilidades de uso embora existam
outras no abordadas nesta reflexo para o conceito. A primeira busca mapear os
caminhos pelos quais os diferentes grupos humanos, atravs de experincias histricas
diversas, trilharam na construo das suas identidades coletivas, sem que para isso fosse
necessrio o uso da hierarquia de uns em relao aos outros. A segunda, claramente
diferenciando etnia e nao, d etnia o significado de etapa inicial prpria das sociedades
no desenvolvidas, e ao segundo, o estgio superior de sociedades complexas que
superaram este estgio primitivo. Os tsongas, enquanto identidade tnica, formaram-se,
em maior grau, por influncia do uso no hierarquizante, embora elementos da teoria
evolutiva tenha desempenhado um papel significativo em sua elaborao.
Neste sentido, pode-se afirmar que os tsongas so uma identidade tnica construda
por missionrios, na virada do sculo XIX para o XX. Foi mais o produto do ambientesocial e intelectual destes missionrios do que uma realidade objetiva. S emergiu aps o
desenvolvimento de uma pequena burguesia local alfabetizada em uma lngua franca
sistematizada por missionrios, que se estendeu para alm das fronteiras das unidades
polticas pr-capitalista:100
A tribo tsonga compe-se dum grupo de populaes bantu estabelecidasna costa oriental da frica do Sul, desde as proximidades da baa de Santa
Lcia, na costa do Natal, at ao rio Save, a norte. Encontram-se poisTsongas em quatro dos actuais estados da frica do Sul: no Natal(Amatongalndia), no Transval (distrito de Lidemburgo, do Zoutpansberge do Waterberg), na Rodsia, e principalmente na Colnia de Moambique(distritos de Loureno Marques e Inhambane e Provncia de Manica eSofala).Os Tsongas confrontam ao sul com os Zulus e os Swazis; a oeste com osMabis, os Lautis e outros cls Suthu-pedis; ao norte com os Vendas e os
99ZAMPARONI, 1998, p. 379.100HARRIES, Patrick. Exclusion, classification and internal colonialism: the emergence of ethnicity amongthe Tsonga-Speakers. In: VEIL, Leroy. The Creation of Tribalism in Southern Africa. Berkley: Universityof California Press, 1989, p. 82.
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Nyais no Zoutpansberg e na Rodesia e os Ndraws perto do Save; e a lestecom os Tongas, perto de Inhambane, e os Copis ao norte da foz do
Limpopo.101
Mapa 2: Etnias do sul de Moambique. Changana, tsua e ronga soconsiderados sub-grupos dos tsongas. Adaptado de SERRA, 2000, p. 17
Assim Junod definiu geograficamente os tsongas (ver Mapa: 2).
102
Focandoprincipalmente suas linhas limtrofes com outros povos e/ou acidentes geogrficos, parece
mais a definio de um Estado-Nao europeu. H argumentos que afirmam que existiam
fronteiras aos moldes europeus nas unidades polticas no continente africano, antes da
101JUNOD, 1996, Tomo I. op. cit, pp 33-4.102A anlise aqui apresentada pretende seguir a ordem organizacional do texto de Junod. Ou seja, no implicaque foi exatamente nesta ordem que o missionrio concebeu intelectualmente a nao tsonga, mas como ele adescreveu em seu relato etnogrfico.
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presena colonial, mas no exatamente este o debate que importa aqui.103O que importa
que quaisquer que tenham sido tais fronteiras, elas no envolviam somente pessoas da
mesma etnia, lngua e cultura; mas uma diversidade de grupos e pessoas, muitas vezes, de
origens diferentes:104
Como veremos, no h verdadeira unidade nacional entre os Tsongas. Maltm conscincia de que formam uma nao bem definida, e nem sempretm um nome comum para a designar. O nome Tsonga foi-lhe dado pelosinvasores Zulus ou Angnis, que reduziram servido a maioria dos seuscls entre 1815 e 1830. A origem deste termo zulu provavelmente otermo Rhonga, que significa Oriente (vurhonga=alvorada), e pelo qual os
cls dos arredores de Loureno Marques tinham o costume de sedesignar.105
No af de ver resolvido o problema do territrio e da designao, Junod reconhece
que ela no existia antes da sua classificao. Entretanto, devido sua experincia com as
unificaes polticas europeias, na segunda metade do sculo XIX, buscou identificar esta
entidade poltica africana a partir do trip: uma raa, uma cultura e uma lngua. O territrio
tambm foi delimitado pelo etngrafo/missionrio. Vale ressaltar que esta identificao foi
permeada pelos conceitos de nacionalismo da poca que valorizava a linguagem comoelemento central para a classificao de grupos e das caractersticas nacionais.106
Em um sub-tpico denominado Caracteres tnicos da tribo tsonga, Junod
dividiu-os em trs aspectos: 1 Lngua dos Tsonga, composta pos seis dialetos e com
vocabulrio original; 2 Caracteres mentais dos Tsongas, definindo essencialmente como
sossegado e brando em seus aspectos culturais e de comportamento; 3 Caracteres
fsicos dos Tsongas, descrio confusa como podemos perceber:107
No conjunto seu aspecto parece-se ao dos Zulus. No que se refere estatura, varia muito dum indivduo para o outro. Encontram-se entre osTsongas cuja face apresenta nitidamente o tipo negro: lbios grossos, narizachatado, malares salientes; e no mesmo dia no mesmo stio, vem-se
103DPCKE, Wolfgang. A vida longa das linhas retas: cinco mitos sobre as fronteiras na frica Negra.Revista Brasileira de Poltica Internacional. n. 42 (1), p. 78-80, 1999.104Ibid., p. 81105JUNOD, 1996, Tomo I, p. 34-5.106HARRIES, 1980, p. 9-10.107JUNOD, 1996, Tomo I, p. 48-52.
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outros indivduos que pertencem ao mesmo cl e que tm a cara maiscomprida, os lbios finos e o nariz ponteagudo. Parece que h dois tipos
entre eles: o tipo grosseiro, provavelmente mais espalhado entre aspopulaes primitivas e que se conservou muito acentuado entre os Copisda costa, e o tipo mais fino, que era talvez o dos invasores.108
Pode-se perceber que conceitos como mais fino e grosseiro so referenciados
nas concepes hierarquizantes das categorias mentais de Junod. E tambm bvio que os
conceitos axiologicamente melhores se aproximam dos europeus, enquanto os piores se
distanciam. Junod tentava desta forma preencher os requisitos para transformar os tsongas
em uma unidade poltica, em uma nao. E embora no percebesse, engasgava-se em uma
das variantes do trip: a raa. Outro fator complicaria um pouco mais a delimitao dos
tsongas enquanto nao:
Que significa para ele [tsonga] o tiku, a nao? Como j dissemos, o quechamamos nao, tiku, no a tribo em seu conjunto, que compreendevrias centenas de milhares de pessoas, mas o cl especial a que elepertence. No h sentimento de unidade nacional na tribo como tal; a suaunidade encontra-se s na linguagem e em certos costumes comuns atodos os cls. Por isso a verdadeira unidade o cl.109
Apesar de muitos destes cls terem sido submetidos por um reino nguni Gaza
poderoso, a trajetria dos tsongas foi diferente da percorrida por outros povos, como os
zulus; tambm ngunis que durante muito tempo viveram em organizaes polticas e
sociais, centralizadas por um Estado belicista. A partir de 1775, esse povo mudou suas
motivaes guerreiras. Possivelmente por conta da presso demogrfica, algumas
povoaes foram levadas a conquistar seus vizinhos e assim formaram pequenos reinos. Foi
pela agregao destes reinos que Shaka se consolidou como o mais poderoso dos
imperadores da regio e dominou uma rea de cerca de 130.000 quilmetros e cerca de
100.000 indivduos. Shaka organizou uma nao a partir do conjunto das unidades polticas
108JUNOD, 1996, Tomo I, p. 52.109Idem. pp. 325. Junod estabeleceu uma tipificao dos nveis de organizao poltica entre os tsongas. Nestatipificao, atriboera a totalidade de uma nao; o cleram as unidades nacionais menores designadas pelonome de um chefe antigo, mas que ainda assim pertencessem mesma tribo; osgrupos eram a unio devrios cls, que falavam uma mesma variao da lngua tsonga. Uma interpretao possvel a de que os
tiku seriam os clsde uma forma geral; ou os gruposonde houvesse um sentimento de unidade. JUNOD,1996, Tomo I, p. 34.
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que sujeitou. Seu principal instrumento foi o exrcito.110 A nao zulu se constituiu por
inmeros cls leais ao rei. As pessoas pertenciam ao rei. No perodo anterior da histria dos
ngunis, a lealdade poltica coincidia com a filiao de parentesco. Assim, o conjunto das
unidades polticas zulu designava-se originariamente abakwazulu, ou seja, descendentes de
Zuluum, considerado o ancestral fundador dos zulus. Tal termo designou durante muito
tempo, os descendentes de zulu, embora depois tenha se tornado mais amplo e passado a
significar todas as pessoas que se sujeitam ao rei zulu.111
Contrariamente ao que havia ocorrido aos zulus no processo de centralizao
poltica, aqueles povos denominados como tsongas por Junod, eram na verdade uma
variedade de povos que ocupavam uma vasta regio no leste da frica meridional. Algumas
vezes tributrios de chefias mais poderosas, tentavam a todo custo manter as suas
independncias. Por isso, sua lealdade nacional, ou sentimento de pertena, estava
circunscrita aos ancestrais do chefe do seu cl. Esses povos, posteriormente generalizados
com uma nica identidade no formavam um grupo tnico at o fim do sculo XIX, muito
menos uma nao.112 Vale salientar que outros fatores, anteriores e posteriores ao
missionria, contriburam para essa elaborao tnica.
Os fatores anteriores foram as ondas migratrias de todo o sculo XIX e incio doXX. Uma das primeiras foi ocasionada pela expanso do Estado zulu, que atingiu o sul de
Moambique, em 1820. Um dos grupos liderados por Manicusse ou Soshangana ocupou o
baixo Limpopo.113Outra onda de migrao ocorreu entre 1858-62, ocasionada pela guerra
civil em Gaza e por reviravoltas ecolgicas. Razias do herdeiro derrotado Maueva, filho
de Sochangana de Gaza para a costa e norte da Delagoa Bay (nome com o qual os
ingleses denominavam a Baa de Maputo), bem como os ataques do seu irmo Muzila,
vencendor da guerra civil na regio sul e sudoeste de Moambique mantiveram inabalada
a migrao para o Transvaal, at 1870.114Tambm a descoberta de ouro e diamantes nesta
rea provocou o aumento da migrao, que j era uma prtica comum com destino s
110GLUCKMAN, Max. O Reino dos zulo na frica do Sul. In: FORTES, M e EVANS-PRITCHARD, E. E.Sistemas Polticos Africanos. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1981, p. 64-5.111Ibid., p. 69-70.112HARRIES, 1989, p. 82.113SANTOS, Gabriela A. dos. Reino de Gaza: o desafio portugus na ocupao do sul e Moambique(1821-1897). Dissertao de Mestrado, So Paulo: USP, 2007, p 36-9; LIESEGANG, Gerhard. LourenoMarques antes de 1895. Boletim do Arquivo Histrico de Moambique, Maputo, n. 2, p. 33, 1987.114NEWITT, 1997, p. 313.
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plantaes de cana-de-acar do Natal.115Alm disso, problemas naturais como seca, fome
e varola aumentaram a fuga de pessoas da regio.116
Esses migrantes levaram consigo diferentes alimentos assim como diferentes formas
de prepar-los, fazendo com que isto se tornasse um sinal de distino cultural entre eles,
assim como de estigmatizao, enquanto estrangeiros. A ltima grande migrao de
refugiados durante o sculo XIX consistiu no xodo de pessoas para o norte e o leste do
Transvaal, aps a derrota do ltimo movimento de resistncia contra os portugueses em
1897.117 J no sculo XX, o movimento de pessoas oriundas de Moambique para o
Transvaal consistia em uma busca de melhoria de vida, a partir da venda de sua fora de
trabalho para as minas de ouro desta regio.118
Esse longo perodo de migrao exigia espao de assentamento para os migrantes.
Os problemas polticos e sociais decorrentes da luta pela terra circunscrevem os fatores
posteriores. Devido expanso do Estado Africnder para o nordeste do Transvaal,
estabeleceu-se uma poltica de controle, no sentido de inviabilizar a formao de chefias
poderosas. Embora os migrantes e/ou seus descentes tivessem adquirido terra com uma
certa facilidade, essa realidade mudou no final do XIX, com a expanso da prospeco de
ouro. A valorizao da terra obrigou o Estado boer a criar reservas para tais africanos,numa tentativa de melhor control-los.119 Poltica que terminou por viabilizar o
fortalecimento de chefias africanas, que se tornaram locais de aglutinao para os africanos
que conseguiam ascender economicamente, a partir da lgica capitalista. Entre os mais bem
sucedidos grupos de africanos encontravam-se os shanganas.120
A mudana do cenrio econmico e poltico passou a favorecer os fazendeiros
brancos pobres, atravs de subsdios do Estado. Isto em conjunto com as crises ecolgicas
que ocasionavam secas, obrigou os produtores africanos a deixarem suas terras. Todas essas
mudanas conjunturais deterioram a posio dos chefes africanos, motivando sua clientela a
115NEWITT, 1997, p. 300; ZAMPARONI, 1999, p. 148-9.116HARRIES, 1989, p. 83.117Aps a captura do imperador de Gaza, houve um movimento de resistncia presena portuguesa. Em1897, Maguiguana, um antigo general do Gungunhana, organizou o ltimo levante blico contra osportugueses no sul de Moambique. PELISSIER, 1994, p. 314-23.118HARRIES, op. cit., p. 83-4.119HARRIES, 1989, p. 92-4.120Etnnimo shangana , juntamen