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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁDEPARTAMENTO DE LÍNGUA E LITERATURA VERNÁCULAS

    CENTRO DE LETRAS E ARTESCURSO DE MESTRADO EM LETRAS

    LUIZ GUILHERME DOS SANTOS JUNIOR

    TRA[D]IÇÃO E O JOGO DA DIFERENÇA EM MARAJÓ, DEDALCÍDIO JURANDIR

    BELÉM2006

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    LUIZ GUILHERME DOS SANTOS JÚNIOR

    TRA[D]IÇÃO E O JOGO DA DIFERENÇA EM MARAJÓ, DEDALCÍDIO JURANDIR

    Dissertação apresentada para obtenção de grau deMestre em Teoria Literária, Departamento delíngua e literatura vernáculas, Centro de Letras eArtes, Universidade Federal do Pará.Área de Concentração: Estudos Literários

    Orientadora: Profª. Drª. Marlí Tereza Furtado.

    BELÉM2006

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    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Biblioteca do CLA/UFPA - Belém - Pará – Brasil

    _______________________________________________________________

    Santos Junior, Luiz Guilherme de.TRA[D]IÇÃO E DIFERENÇA EM MARAJÓ, DE DALCÍDIO

    JURANDIR / Luiz Guilherme dos Santos Junior;orientadora, Marlí Tereza Furtado. – 2006.

    Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal doPará, Centro de Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação emLetras, Belém, 2006.

    1. Literatura Comparada. 2. Jurandir, Dalcídio, 1909-1979. Marajó. Crítica e interpretação. I. Título.

    CDD - 20. ed. 809

    _______________________________________________________________

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    LUIZ GUILHERME DOS SANTOS JÚNIOR

    TRA[D]IÇÃO E O JOGO DA DIFERENÇA EM MARAJÓ, DEDALCÍDIO JURANDIR

    Dissertação apresentada para obtenção de grau de

    Mestre em Teoria Literária, Departamento delíngua e literatura vernáculas, Centro de Letras eArtes, Universidade Federal do Pará.Área de Concentração: Estudos LiteráriosOrientadora: Profª. Drª. Marlí Tereza Furtado.

    Data de aprovação: 24/10/2006Banca Examinadora:

    Marlí Tereza Furtado

    _______________________________OrientadoraDoutoraUniversidade Federal do Pará

    Andrea Ciacchi________________________________MembroDoutorUniversidade Federal da Paraíba________________________________

    José Guilherme Fernandes________________________________MembroDoutorUniversidade Federal do Pará

    Luis Heleno Montoril Del Castilo________________________________SuplenteDoutor

    Universidade Federal do Pará

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    RESUMO

    Este trabalho, que escolheu como tema a presença da tradição no romance  Marajó deDalcídio Jurandir, procura investigar como a escritura do romance citado dialogaintertextualmente com a tradição literária, mitológica e oral, sem anular o caráter social daficção dalcidiana. Defendo a hipótese de que o jogo intertextual presente na obra não está afavor de uma exaltação das fontes ou como mera transposição de influências, mas se projetacomo diferença. A base teórica do trabalho se fundamentou, sobretudo, a partir das discussõessobre “fonte” e “influência” estabelecidas pela literatura comparada nas figuras de autorescomo Tania Franco Carvalhal e Silviano Santiago e de algumas considerações de escritoresimportantes da literatura moderna como T. S. Eliot e Jorge Luis Borges, reconhecidos comoos iniciadores das discussões acerca do legado da tradição, retomada pela literaturamodernista. A escolha da literatura comparada possibilitou a presente leitura, uma abertura

    teórica em que entram em cena, na abordagem, a Psicanálise freudiana, a escritura-jogo deRoland Barthes, Júlia Kristeva e Jacques Derrida, além de outros pressupostos analíticos depesquisadores da ficção de Dalcídio Jurandir como os professores Vicente Salles, MarliTereza Furtado, Paulo Nunes, Audemaro Taranto Goulart e Pedro Maligo e estudiosos datradição como Anthony Giddens, Homi Bhabha, Stuart Hall e Walter Benjamin.

    Palavras-chave: Tradição, Marajó, intertextualidade, jogo, diferença, literatura comparada.

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    RESUMÉ

    Ce travail, qui a comme sujet la  présence  de la tradition , dans le roman  Marajó  deDalcídio Jurandir, entreprend de chercher comment le titre du roman mentionné, dialogue,d’une façon intertextuelle, avec la tradition littéraire, mythologique et verbale, sans annuler lecaractère social de la fiction de Dalcídio. Ils se proposent, de cette manière, à défendrel'hypothèse dont le jeu intertextuel, présent dans l'œuvre, n'est pas pour une exaltation dessources ou comme une simple transposition d'influences, mas il se présente commedifférance.  La base théorique du travail s'est basée dans les discussions sur "source" et"influence" établies par la littérature comparée dans les figures d'auteurs comme TaniaCarbalhal et Silviano Santiago et de quelques considérations d'auteurs importants de lalittérature moderne, tels que T. S. Eliot et Jorge Luis Borges, reconnus comme les amorcesdes discussions concernant le legs de la tradition, reprise par la littérature moderniste. Le

    choix de la littérature comparée a rendu possible a cette lecture, une ouverture théorique danslaquelle on a sur scène, l'abordage, et la Psychanalyse freudienne, l'écriture-jeu de RolandBarthes, Júlia Kristeva et Jacques Derrida, et d’autres présuppositions analytiques dechercheurs de la fiction de Dalcídio Jurandir comme les enseignants Vicente Salles, MarlíTereza Furtado, Paulo Nunes, Audemaro Taranto Goulart et Pedro Maligo et des studieux dela tradition comme Anthony Giddens, Stuart Hall e Walter Benjamin .

    Mots clés: Tradition, Marajó, intertextualité, jeux, différance, littérature comparée.

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    Para France, minha imagem edipiana e Dani,minha esposa amorosa.

    Em memória: Manuel Natividade, meu Avô

    inesquecível e Rômulo Santana, eterno amigo

    do Mestrado em Letras.

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    AGRADECIMENTOS

    À Coordenação do Curso de Mestrado e à Drª Marlí Tereza Furtado, pela fiel

    contribuição para a pesquisa sobre Dalcídio Jurandir na Amazônia, pela orientação sincera,

    intervenções de grande valia e compreensão diante do caminho teórico que o trabalho seguiu.

    Ao Dr. Joel Cardoso, pelas “provocações” literárias, pelo incentivo nos momentos

    mais difíceis de minha caminhada intelectual e profissional no mestrado da UFPA.

    Ao Dr. Latuf Mucci, pelas suas palavras confortadoras minutos antes de minha defesa.

    Ao Dr. Luis Heleno Montoril Del Castilo, pela iniciação na teoria derridiana e nos

    pressupostos teóricos de Gilles Deleuze e Félix Guattari.

    Ao Dr. Ernani Chaves, pela iniciação na obra de Sigmund Freud e Jacques Lacan,

    além de indicações psicanalíticas importantes presentes em Marajó.

    Ao Dr. Evando Nascimento, Professor de Juiz de Fora, incentivador dos estudos sobre

    Jacques Derrida no Brasil, e um dos primeiros leitores de meu trabalho.

    Aos meus amigos do Mestrado da UFPA: Edílson Pantoja, Rômulo Santana, Jorge

    Almir, Salomão Laredo, Maria Domingas, Gustavo Lopes e Regina Isabel (Bibliotecária).

    Ao amigo e Mestre eterno, Professor José Cabral.

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    Primeiro, ninguém pensa que as obras e os cantos poderiam ser

    criados do nada. Eles estão sempre ali, no presente imóvel damemória. Quem se interessaria por uma palavra nova, nãotransmitida? O que importa não é dizer, mas redizer e, nesse redito,dizer a cada vez, ainda, uma primeira vez.

    Conversação infinita – Maurice Blanchot

    O jabuti que só possuía uma casca branca e mole deixou-se morder pela onça que o atacava. Morder tão fundo que a onça ficou pregadano jabuti e acabou por morrer. Do crânio da onça o jabuti fez seuescudo.

    Quarup – Antonio Callado

     Nunca fomos catequizados. Vivemos através de umdireito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia.

    Ou em Belém do Pará.

     Manifesto Antropófago – Oswald de Andrade

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    SUMÁRIO

    RESUMO 

    RESUMÉ 

    DESCENDO PELA TOCA DO COELHO..........................................................................10

    1 - A TRADIÇÃO TEÓRICA................................................................................................19

    1.1 - As preliminares do Jogo...................................................................................................19

    1.2 - Tradição/Traição e o Jogo da Diferença...........................................................................24

    2 - A TRADIÇAO LITERÁRIA DA AMAZÔNIA............................................................29

    2.1 - Por Certos Caminhos e Cenas de um Ciclo literário amazônico......................................29

    2.2 - Dalcídio Jurandir e a Tra[d]ição do Romance de 30........................................................34

    2.3 -  Marajó: Cí rculo de uma Tra[d]ição.................................................................................40

    3 - A TRA[D]IÇÃO E O “KLAMM” DOS COUTINHOS.................................................44

    3.1 - Coutinho, o Incesto e o Centauro.....................................................................................44

    3.2 - Missunga, Ulisses e a Omissão.........................................................................................51 

    3.3 - Alaíde e a Tra[d]ição das Sereias.....................................................................................57

    3.4 - Orminda e a Tra[d]ição das Silvanas................................................................................62

    3.5 - A Tra[d]ição dos Contos de Fadas....................................................................................73

    4 - A TRA[D]IÇÃO DOS CONTADORES E MALAZARTES...........................................76

    4.1- Guita e a Lua na Caixa de Fósforos...................................................................................76

    4.2 - Ciloca: Tra[d]ição e Malandragem...................................................................................82 

    4.3 - Ramiro e a Tra[d]ição dos desvalidos..............................................................................87

    4.4 - Seu Felipe e o último Navio Encantado...........................................................................93

    O DEPOIMENTO DE ALICE 98

    REFERÊNCIAS 101

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    DESCENDO PELA TOCA DO COELHO

    ...olhou para as paredes do poço e notou que estavam cobertasde guarda-louças e prateleiras de livros.

    Lewis Carroll – Alice no país das maravilhas

    O interesse pelo estudo da vida e da obra de Dalcídio Jurandir (1909–1979) surgiu

    no ano de 1998, quando entrei no curso de Letras da Universidade Federal do Pará e tive a

    oportunidade de assistir, naquele ano, à defesa da dissertação de mestrado do Professor Paulo

    Nunes. Esse interesse foi maior quando percebi, a partir dos apontamentos pessoais desse

    estudioso, que a ficção de Jurandir estava muito além de qualquer enquadramento regionalista

    ou a favor de um discurso ufano sobre a Amazônia. Depois de realizada a leitura de dois

    livros do ficcionista, Chove nos campos de Cachoeira  (1941) e  Marajó (1947), iniciei uma

    busca de outros trabalhos teóricos sobre a sua obra. Minha surpresa foi que existiam raros

    trabalhos sobre o primeiro romance e quase nenhum sobre o de 1947.

    Com o avanço das pesquisas sobre o ficcionista, principalmente depois da

    dissertação de Paulo Nunes, começaram a surgir outros estudos que fizeram parte do primeiro

    “Colóquio” sobre Dalcídio Jurandir, no ano de 2001, homenageando os 60 anos do romance

    Chove nos campos de Cachoeira. A partir do evento e do reconhecimento do valor da obra doescritor, vários outros estudiosos passaram a ler e a estudar o autor, de modo a dar-lhe ar de

    novo “fenômeno” da Literatura Brasileira.

    Esse entusiasmo em relação a Dalcídio Jurandir abriu caminho para que, no ano

    de 2003, fosse possível a realização de meu trabalho de conclusão de curso que intitulei  A

    desmitologização do imaginário popular em Marajó, de Dalcídio Jurandir ; um título

    diferente, mas que já trazia os rastros necessários para um trabalho de maior amplitude e

    ousadia.Com minha entrada no mestrado em 2004, busquei dar continuidade à pesquisa

    sobre o romance  Marajó. De forma embrionária, a proposta do anteprojeto era pesquisar a

    influência das tradições populares nesse romance; mas o que acabou me surpreendendo, com

    o decorrer das leituras da obra, foi a sua abertura e o diálogo, não apenas com o popular, mas

    também com escrituras “estranhas” ao contexto amazônico.

    Quando comecei a cumprir as disciplinas optativas e obrigatórias do mestrado,

    iniciei o rastreamento daquelas que mais encontravam identificação com minha proposta depesquisa. Nessa busca, três disciplinas me chamaram bastante a atenção:  Metodologia do

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    Ensino da Literatura, Literatura e Psicanálise e Seminário de Literatura Regional.1 

    Na primeira delas, o professor ministrante, com um espírito crítico e polêmico, em

    alguns momentos, me fez – mesmo afetando minhas concepções mais íntimas sobre literatura

    – refletir que a escritura literária é uma espécie de Phármakon, para lembrar Jacques Derrida

    (1997, p.14), isto é, assim como pode ser o “antídoto”, pode ser também o “veneno”.2 O lema

    do professor era atrativo: fazer da Literatura uma “Provocação”, termo da hermenêutica de

    Hans Robert Jauss (apud ZILBERMAN, 1989, p.68), para demonstrar que ela (Literatura) é

    uma ciência capaz de ter seu próprio método e objeto de pesquisa, a linguagem literária. A

    partir de suas “provocações” freqüentes, entendi que a teoria é um veículo e não um fim, que

    ela não é eficaz em todos os momentos e por isso, às vezes, precisa ser repensada, mesmo que

    para isso tenhamos que “pagar o preço” da incompreensão.A disciplina  Literatura e Psicanálise  possibilitou um diálogo mais consciente

    entre os limites da Psicanálise diante do texto literário. A base teórica freudiana representou

    mais um olhar sobre a escritura literária que abriu chaves de leitura essenciais para o

    entendimento de algumas relações edipianas na escritura de Marajó.

    Já a proposta da última disciplina era estudar as manifestações literárias do

    “Extremo Norte” e suas implicações regionais e universais. O estudo e aprofundamento de

    teorias vindas de correntes francesas e de autores como Jacques Derrida, Gilles Deleuze eFélix Guattari, além de Roland Barthes foram cruciais para ampliar meu olhar no tocante aos

    estudos da Literatura de expressão amazônica, já que esses estudiosos ampliam as concepções

    relacionadas à escritura literária, fornecendo uma base teórica que, aplicada no contexto da

    produção literária amazônica é capaz de inverter o discurso que re-afirma a superioridade das

    literaturas “centrais” sobre as “periféricas”.

    Nesse período, a  Literatura Comparada também foi um descobrimento, pois seu

    estudo possibilitou a expansão necessária para explicar ou buscar explicações sobre alguns“enigmas” da escritura do romance  Marajó. Unidas essas forças, me propus a fundamentar

    teoricamente meu trabalho, sobretudo a partir da teoria comparativa e alguns conceitos

    1 As disciplinas foram ministradas, respectivamente, pelos Professores Doutores: Joel Cardoso, Ernani Chaves eLuis Heleno Montoril Del Castilo. A escolha dessas disciplinas como cerne de meu trabalho não tenta, de formaalguma, desmerecer as outras disciplinas cumpridas no decorrer do mestrado.2 Segundo Derrida, em  A Farmácia de Platão (1997, p.7), a escritura literária reserva “sempre uma surpresa àanatomia ou à fisiologia de uma crítica que acreditaria dominar o jogo, vigiar de uma vez todos os fios, iludindo-se, também, ao querer olhar o texto sem nele tocar, sem pôr as mãos no ‘objeto’, sem se arriscar a lhe acrescentaralgum novo fio, única chance de entrar no jogo tomando-o entre as mãos”. Quando o teórico francês afirma que

    a escritura pode ser um antídoto ou um veneno, ele quer ressaltar que não é possível dominar todas as variantesde um texto com uma “fórmula”. Nesse sentido, o que poderia ser a “cura” para um texto ou o seudesvendamento, acaba se tornando ineficaz, “envenenando” o próprio leitor, ao projetar uma imagem unilateraldesse texto.

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    teóricos dos autores estudados nas disciplinas. 

    A dedicação e o estudo dos textos dessas disciplinas foram cruciais para o

    estabelecimento da metodologia que deveria seguir em minha pesquisa. O caminho mais

    acertado era me basear na Literatura Comparada, na perspectiva de Tania Franco Carvalhal e

    de Silviano Santiago que procuram transcender a busca anterior da teoria comparada de

    “fontes” ou “influências”, como dívidas contraídas das escrituras anteriores. Desse modo, no

    trabalho, verifiquei a relação entre o romance Marajó e a tradição literária, mitológica e oral,

    com o objetivo de encontrar convergências e, sobretudo, diferenças entre os textos. De certo

    modo, até o momento de escolha do campo teórico que deveria seguir, não tinha percebido a

    complexidade da pesquisa que dialogava bem mais com os estudos comparados, pois a

    pluralidade de vozes em Marajó me conduzia a uma intensa intertextualidade.3 Segundo Carvalhal (2001, p.51), é o conceito de intertextualidade proposto por

    Julia Kristeva, no livro Introdução à Semanálise, que indiretamente vai abalar as concepções

    anteriores sobre “fonte” e “influência” e apontar um novo caminho para os estudos das

    relações “dialógicas” que se estabelecem entre escrituras de tempos e espaços diferentes,

    obrigando, desse modo, a um tratamento “diferente” do problema. Para a estudiosa, o que

    entra em discussão no momento presente é entender como o “texto segundo” se relaciona com

    o anterior ou “texto[s] primeiro[s]”. Por isso, o “fenômeno” passa a ser discutido como um“procedimento natural e contínuo de reescrita dos textos”.

    A atitude do comparatista, a partir dessa nova perspectiva, é entender o porquê das

    relações entre textos diversos e do processo de apropriação, não mais como passividade ou

    mimese, mas como “repetição diferencial” em que a presença de uma tradição literária em

    uma escritura posterior tem um caráter não de continuidade, mas sim de “traição” ao original.4 

    Dessa maneira, o posicionamento do pesquisador frente a esse fenômeno não é estabelecer

    equivalência entre os textos ou eleger qualquer papel de valor entre eles, porém analisar deque maneira uma determinada escritura [re]significa essa tradição em seu contexto ficcional.

    3  Os estudos da Psicanálise freudiana foram de grande relevância para minha “interpretação” do romance Marajó, principalmente, quando analiso a convergência entre os temas mitológicos com os personagensdalcidianos. Ressalto, nesse sentido, o trabalho pioneiro do professor Ernani Chaves (Revista  Asas da Palavra)no tocante a aplicação da psicanálise na escritura de Dalcídio Jurandir, presente no artigo “Rio-Mar: imagens deSoure em Marajó, de Dalcídio Jurandir” (2004, p.47-51).4  Nesse sentido, é importante ressaltar o ponto de vista de Jacques Derrida (2002, p.38) em Torres de Babelsobre a questão da originalidade, que dialoga com a proposta de leitura que desenvolvo no tocante à escrituradalcidiana: “a dívida não engaja a restituir uma cópia ou uma boa imagem, uma representação fiel do original:

    este, o sobrevivente, está ele mesmo em processo de transformação. O original se dá modificando-se, esse domnão é o de um objeto dado, ele vive e sobrevive em mutação: pois na sobrevida, que não mereceria esse nome seela não fosse mutação e renovação do vivo, o original se modifica. Mesmo para as palavras solidificadas existeainda uma pós-maturação”.

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    Outro dado não menos importante nessa relação constante entre os textos é que o resultado

    nunca é passivo, pois, “sendo os textos um espaço onde se inserem dialeticamente estruturas

    textuais, eles são um local de conflito, que cabe aos estudos comparados investigar numa

    perspectiva sistemática de leitura intertextual” (CARVALHAL, 2001, p.53).

    Saindo desse contexto teórico, pode-se afirmar que esse jogo intertextual entre

    tradição e diferença5, em que há uma nítida incorporação de escrituras anteriores, iniciou-se

    no contexto literário da Amazônia, numa perspectiva mais ampla, com Dalcídio Jurandir em

    seu primeiro romance Chove nos campos de Cachoeira  (1941), considerado pelo próprio

    autor, como o embrião de todo o Ciclo do Extremo Norte.6  

    Nesse romance, que venceu de início o concurso Vecchi/Dom Casmurro em 1940,

     já é possível notar uma preocupação do ficcionista paraense em “mover” a sua escritura paraalém das referências propriamente regionalistas. Como “signos em rotação”, para lembrar o

    título do livro de Octavio Paz, a obra já tenciona marcar a diferença  dentro do cânone

    amazônico e brasileiro, ao “citar” escrituras modelares como o Morro dos Ventos Uivantes, de

    Emily Brönte (epígrafe do romance), O Corvo, de Edgar Allan Poe, o Conde de Monte Cristo,

    de Alexandre Dumas,  As Mil e Uma Noites, o Primo Basílio, de Eça de Queiroz,  Amor de

    Perdição, de Camilo Castelo Branco, entre outros da tradição literária brasileira nas figuras de

    Olavo Bilac, Raimundo Corrêa, Gonçalves Dias e Castro Alves.7

     Nota-se, desde o primeiro romance do Ciclo do Extremo Norte, uma preocupação

    estética em que não está em evidência apenas uma “prática de leitura” do escritor, mas o papel

    do leitor enquanto um elemento tão participante na criação do texto quanto o próprio autor,

    como ensina Roland Barthes (2002, p.23):

    5  Segundo o conceito de Derrida (apud NASCIMENTO, 1972b, p.13): “A différance é o que faz com que o

    movimento da significação seja apenas possível se cada elemento dito ‘presente’, aparecendo na cena dapresença, se relacionar com outra coisa diferente dele próprio, guardando em si a marca do elemento passado elogo se deixando escavar pela marca de sua relação com o elemento futuro, o rastro não se relacionando menoscom o que se chama futuro do que com o que se chama passado, e constituindo o que se chama presente pelarelação mesma com o que não é ele: de forma alguma ele, ou seja, nem mesmo um passado ou um futuro compresentes modificados”.6 Dalcídio Jurandir esclarece que o romance Chove nos campos de Cachoeira é a matriz de todo o Ciclo por eleconcretizado ( Asas da Palavra, 1996, p.28). No capítulo segundo, explicito cronologicamente os romances quecompõem o que se configurou como o Ciclo do Extremo Norte.7  A presença constante de citações de obras e autores no texto de Chove nos Campos de Cachoeira, aponta,sobretudo, para uma dimensão intertextual que dialoga com os apontamentos teóricos de Antoine Compagnonem sua obra O Trabalho da Citação. Segundo o estudioso francês (1996, p.41), “a citação é um operador trivialde intertextualidade. Ela apela para a competência do leitor, estimula a máquina da leitura, que deve produzir um

    trabalho, já que, numa citação, se fazem presentes dois textos cuja relação não é de equivalência nem deredundância. Mas esse trabalho depende de um fenômeno imanente ao sentido conduzindo a leitura, porque háum desvio, ativação de sentido: um furo, uma diferença de potencial, um curto-circuito. O fenômeno é adiferença, o sentido é a sua resolução”.

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    Na cena do texto não há ribalta: não existe por trás do texto ninguém ativo (oescritor) e diante dele ninguém passivo (o leitor); não há um sujeito e umobjeto. O texto prescreve as atitudes gramaticais: é o olho indiferenciado deque fala um autor excessivo (Ângelus Silesius): “O olho por onde eu vejoDeus é o mesmo olho por onde ele me vê”.8 

    Assim, de um modo mais radical, por exemplo, Jorge Luis Borges e Julio Cortazar

    tencionam “re-significar” a tradição universal, levando ao extremo a idéia de “leitor-criador”

    apregoada por Barthes. Por outro lado, Chove nos campos de Cachoeira também não exclui a

    presença da tradição oral – perceptível sobremaneira em  Marajó, conforme se depreende do

    estudo de Vicente Salles (1978) – que exerce um papel fundamental na estilística do texto a

    partir de referências a canções e a outros dados de cunho popular.9 

    A leitura e a pesquisa do segundo romance do Ciclo do Extremo Norte,  Marajó,

    publicado em 1947, mas escrito no final dos anos trinta, confirmou esse fenômeno

    intertextual, demonstrando que Dalcídio Jurandir procura dar continuidade a uma

    experimentação estética.  No entanto, são menos evidentes na tessitura desse romance a

    “citação” de obras com seus respectivos títulos, ao contrário do que acontece em Chove nos

    campos de Cachoeira. Aparentemente, o que poderia estar, em termos de conteúdo manifesto,

    ausente no romance, está, em termos de “conteúdo latente”, ainda mais aglutinado,

    complexo.10

      Essa marca da ficção de  Marajó  pode ser entendida a partir do que LeylaPerrone-Moisés (1979, p.211) chama de a não fronteira entre os textos. Segundo a autora, o

    escritor diante do texto alheio “nada declara, pode dialogar com outros escritores sem os

    chamar pelo nome, utiliza os bens alheios como se fossem seus. Quando muito, pisca o olho

    8 Raros são os momentos em que Dalcídio Jurandir fala de suas leituras pessoais; mas em um texto escrito porele sobre o poeta Antonio Tavernard (1998, p.41-3), é possível demarcar algumas dessas leituras. Entre elasdestaco  A Gaya Ciência  e  Assim falou Zaratustra, de Nietzsche, o Cronwell, de Vítor Hugo, Os IrmãosKaramazov, de Dostoievski e Quincas Borba, de Machado de Assis. 9  Eduardo Coutinho (2003, p.19), na obra  Literatura Comparada na América Latina, afirma que “o

    comparatismo vem pondo em xeque seus pressupostos básicos, de teor etnocêntrico, e reformulandoconstantemente seus cânones. Nessa trilha, vêm conquistando espaço gradativamente não só as literaturas atéentão tidas como periféricas, como as do chamado Terceiro Mundo, quanto outras formas de registro atérecentemente relegadas a plano secundário: as manifestações folclóricas ou populares e a chamada ‘literaturaoral’”.10 É importante ressaltar que esse “conteúdo latente” da escritura dalcidiana está presente em  Ribanceira (1978,p.33), último livro do Ciclo do Extremo Norte, em que surgem referências indiretas na figura do Coletor Federalquando este em “Noite de sábado, anda [...] todo de luto pela praia, com a caveira na mão num surdo monólogo”;cena que nos remete a  Hamlet   (1988, ATO V, p.117-126), de William Shakespeare. Em outra passagem domesmo romance (1978, p.48), é possível notar nas palavras de um personagem-Intendente uma referênciaparodiada da Odisséia, de Homero: “— Eu queria ver-e-não-ver a quase noiva, aquela desventurada que meesperava na Paraíba fiando rede. Lá na Paraíba fiando. Esperando-me, esperando-me, durante os anos naFaculdade. Por feiosa e sem fortuna não tinha pretendentes. Colei grau, soavam as harpas aqui no Paraíso. Fugi

    daquela Panélope noiva e me vi de pijama e dores na tripa a bordo do vaticano subindo o Xingu, engolindo elixirparegórico. Com quarenta graus ia me atirando no Xingu não fosse me agarrarem na proa. Não me amarrei nomastro quando as tais cantavam. O herói agora tropeça nos pardieiros, capina três cemitérios” [Grifo meu].

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    ao leitor, que não exige dele o que requer do crítico: que defina muito claramente de quem e

    do que fala”. 

    De posse dessa característica da construção estética de  Marajó, o segundo passo

    da pesquisa foi realizar um levantamento da bibliografia existente sobre a tradição. Nessa

    revisão bibliográfica, indubitavelmente, o texto que se tornou a grande “inspiração” para o

    desenvolvimento da presente abordagem foi o artigo Chão de Dalcídio, do já referido Vicente

    Salles, publicado originalmente no ano de 1978. Nele, o pesquisador analisa a trajetória de

    alguns personagens do romance  Marajó, em contraponto com outros que aparecem em contos

    e romances populares da Europa. Sua principal analogia é entre o romance de origem popular

     Dona Silvana e os dramas vividos por Orminda, quando o pesquisador afirma que

    vislumbramos neste romance algo que nos parece extremamente valioso einovador na técnica da ficção brasileira: a sua estrutura é basicamente aestrutura de um dos mais difundidos exemplares do nosso romanceiro. Orimance  “Dona Silvana”, tradição ibérica que se incorporou ao folclorebrasileiro (SALLES, 1978, p.369).

    O ponto de vista de Salles é extremamente valioso, pois, a partir de seus estudos

    aprofundados sobre o folclore, ele depreende uma das “faces” do romance: o jogo intertextual

    com o “rimance”  D. Silvana.11

      Contudo, verifica-se nesse artigo que sua comparação nãoutiliza qualquer conceito, categoria literária ou teoria para fundamentar o seu “achado”,

    deixando, por isso, um questionamento para os trabalhos posteriores: “No caso particular

    deste romance de Dalcídio Jurandir, cabe aprofundar a análise do propósito manifestado pelo

    romancista de seguir a trilha temática do romance tradicional” (SALLES, 1978, p.371).12 

    A problemática levantada por Salles representa, na verdade, a ponta do “fio de

    Ariadne”, pois a escritura de  Marajó  guarda outras significações em sua estrutura que

    ampliaram a pesquisa e também me fizeram questionar a “pluralidade” do romance e, como

    11 Outra importante pesquisa no âmbito do “Imaginário popular”, em específico, na ficção de Dalcídio Jurandir éo trabalho de Marlí Tereza Furtado (2003, p.131-8) em que a estudiosa analisa “A incorporação Estética doImaginário Popular” no Ciclo do Extremo Norte, presente em romances como Chove nos campos de Cachoeira,

     Marajó, Três Casas e Um Rio e  Belém do Grão Pará. O trabalho de pesquisa da autora é dividido com aProfessora Maria de Fátima do Nascimento que analisa a incorporação do “Imaginário Popular” na obra deBenedito Monteiro.12  A pergunta formulada por Vicente Salles, respondida parcialmente por ele naquele momento, se configuracomo uma hermenêutica literária. Segundo Jauss (apud, ZILBERMAN, 1989, p.68), a hermenêutica “conheceessa relação de pergunta e resposta a partir de sua prática interpretativa, quando se trata de compreender umtexto do passado na sua alteridade, ou seja: recuperar a pergunta para a qual ele, inicialmente, foi a resposta,

    construindo, a partir daí, o horizonte existencial de perguntas e respostas, dentro do qual a obra originalmente seinseriu”. Nesse sentido, subjacente à minha análise do romance Marajó, parto da assertiva de Jauss (1994, p.26)sobre a literatura que, segundo o teórico alemão “cumpre-se primordialmente no horizonte de expectativa dosleitores, críticos e autores, seus contemporâneos e pósteros, ao experimentar a obra”.

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    afirma Barthes (1970, p.127) em sua análise sobre a novela Sarrasine de Balzac, analisar “a

    sua possibilidade infinita (circular) de ser transcrito”.13 

    Os apontamentos de Paulo Nunes (1998, p.31), em sua  Aquonarrativa: uma

    leitura de Chove nos campos de Cachoeira, de Dalcídio Jurandir , vieram despertar ainda

    mais essa “suspeita”:

    Dalcídio Jurandir estava atento à modernidade do romance ocidental, à modade Stendhal, Proust, Joyce, entre outros escritores [...]. Desse modo, oromance de Dalcídio está demarcado de um lado por Stendhal, Proust eJoyce (romances da metrópole) e, de outro, por Dostoievsky e Tolstoi(romances do campo), os últimos, russos, que, nos idos da segundo metadedos oitocentos, constituíram-se descobertas relativamente novas aos leitoresda Europa Ocidental.

    Cabe observar que as opiniões de Vicente Salles e Paulo Nunes aparentemente se

    contradizem, pois o primeiro depreende na ficção de Jurandir uma “influência” de caráter

    folclórico-popular, enquanto que Nunes ressalta com mais ênfase o intertexto com autores

    consagrados do cânone ocidental. A aparente contradição não se justifica, mas são

    complementares, já que se direcionam para uma amplitude da ficção de Dalcídio Jurandir que

    se “apropria” de uma tradição, não demarcada apenas pelo legado literário europeu, mas

    levando em consideração uma tradição oral já trabalhada na Amazônia por Inglês de Sousa.Dos autores pesquisados, aquela que melhor sintetizou os dois pensamentos

    anteriores foi a Professora Marlí Tereza Furtado, em sua pesquisa sobre a  Incorporação

    estética do Imaginário Popular em Dalcídio Jurandir , quando a estudiosa faz um breve

    traçado sobre as propostas do Modernismo de 1922 e as transformações do romance moderno

    brasileiro, que, segundo ela, conseguiu fazer um diálogo entre o imaginário popular brasileiro

    e as novas diretrizes da Antropofagia que tinha como principal proposta, a “devoração” e a

    “assimilação” do estrangeiro (FURTADO, 2003, p.132). Na esteira dessa proposta, têm-se,como exemplos, o Macunaíma, de Mário de Andrade e Cobra Norato (poesia), de Raul Bopp.

    O efeito dessas transformações na ficção de Dalcídio Jurandir está nessa abertura

    de sua escritura para as inovações estéticas fundadas não apenas pela Antropofagia de Oswald

    de Andrade, mas também pelo sopro “desconstrutor” das Vanguardas Européias, com um

    adendo importante de que essas inovações estéticas não anulam o caráter ideológico de sua

    ficção, já que o período em que o autor se instaura – Romance de 30 – se propõe a questionar

    13  Entendo que o mais importante na análise literária não é, simplesmente, explicar o texto ou obter umaexplicação final, única e definitiva sobre a significação da obra, mas como afirma Barthes (2000, p.183), “entrar,pela análise (ou o que se parece com uma análise), no jogo do significante, na escrita: numa palavra, realizar,pelo trabalho, o plural do texto”.

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    as estruturas sociais e culturais do Brasil.14 Esses temas, relacionados ao contexto histórico-

    social de cada país, geralmente de uma tradição Realista, persistiram no contexto Modernista.

    Entretanto, segundo Davi Arrigucci Jr. (1979, p.121), os temas ganharam maior

    “profundidade e amplitude de enfoque que somente procedimentos técnicos muitos mais

    complexos poderiam permitir”, como o uso do monólogo interior, a simultaneidade das cenas

    narrativas e a paródia.

    Feito esse apanhado crítico, a proposta central da presente dissertação é fazer uma

    análise sobre os rastros  da tradição presentes em  Marajó  e como o romance atua como

    [re]escrita dessa tradição. Desse modo, percebe-se que a técnica de apropriação e

    transformação estética de fontes literárias e populares, presente no romance, não se sobrepõe

    às reflexões sociais sobre a Amazônia em seu contexto histórico-social, mas as redimensiona. O trabalho está dividido em quatro capítulos, além de sub-capítulos alinhados da

    seguinte forma.

    No capítulo I, “A tradição teórica”, é feita uma discussão acerca dos estudos sobre

    “fonte” e “influência” na literatura moderna latino-americana em que se reflete sobre os

    pontos de vista de autores como Antonio Candido, Haroldo de Campos, Silviano Santiago e

    Tania Franco Carvalhal. Em seguida, abordam-se alguns pontos sobre a formação da

    Literatura Comparada no Brasil e suas contribuições para os novos estudos deintertextualidade, na tentativa de re-pensar a idéia de “dependência” e “originalidade” dentro

    do cânone literário. Em seguida, estudam-se as relações entre tradição e modernidade, através

    dos pressupostos de Antoine Compagnon e de autores importantes da literatura universal,

    como T. S. Eliot e Jorge Luis Borges. Além disso, aprofunda-se o debate sobre a “dívida” e a

    originalidade do artista diante de uma tradição indelevelmente presente no diálogo com o

    romance moderno, para, em seguida, debaterem-se breves reflexões sobre a retomada da

    tradição feita por Dalcídio Jurandir em sua escritura ficcional, além de explicitar algunsconceitos sobre o tema, presentes nos estudos de Stuart Hall, Anthony Giddens e Silviano

    Santiago.

    No capítulo II, “A tradição literária da Amazônia”, é exposto um retrospecto sobre

    a tradição literária da Amazônia, a partir dos autores como Inglês de Sousa, Abguar Bastos,  

    Clóvis Gusmão e Bruno de Menezes, com a análise de alguns pontos de convergência entre

    eles e Dalcídio Jurandir, no tocante aos temas que envolvem o imaginário social e mítico da

    14 De forma embrionária, em meu artigo intitulado “Tradição e crítica social em  Marajó, de Dalcídio Jurandir”(2005, p.250-5), já demarco algumas idéias sobre o assunto. Ver referência completa do artigo ao final dotrabalho.

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    região, além das diferenças essenciais entre a ficção dalcidiana e a escritura literária desses

    autores. Na continuidade do capítulo, dá-se lugar a algumas notas sobre a trajetória literária e

    política de Dalcídio Jurandir e sobre a composição do Ciclo do Extremo Norte, debate que

    deu suporte à discussão de algumas questões sobre a relação entre o ficcionista do Norte e o

    chamado Romance de 30. Parto, desse modo, dos estudos realizados por Antonio Candido e

    João Luiz Lafetá, que abordam as transformações estéticas e ideológicas que estavam em jogo

    na cena do romance brasileiro da época. No término do capítulo, são tecidas algumas

    considerações sobre o romance  Marajó, atentando, principalmente, para seu caráter de

    “escritura” a partir da teoria barthesiana. Faço em seguida algumas considerações sobre a

    composição estruturante do romance dalcidiano, que rompe com os padrões comuns da escrita

    naturalista do século XIX.Dando prosseguimento, no capítulo III, “A tradição e o ‘Klamm’ dos Coutinhos”,

    procedo à análise do romance  Marajó, demarcando, primeiramente, alguns pressupostos

    teóricos a partir dos estudos comparados, acerca da retomada de certos temas e figuras

    lendárias e mitológicas feita por escrituras atuais. Nesse sentido, fixo a abordagem nos

    personagens Coronel Coutinho, Missunga, Alaíde e Orminda.

    No último capítulo, “A  Tra[d]ição dos contadores e  Malazartes” analiso o

    percurso de quatro personagens a partir de alguns fios temáticos que os unem: o contarhistórias e o fato de alguns deles se aproximarem bastante do estereótipo do malandro

    proposto por Roberto da Matta e Antonio Candido em seus estudos sobre a malandragem,

    sem, entretanto, deixar de estabelecer possíveis jogos comparativos com a tradição popular e

    mitológica. Finalizo o capítulo com algumas considerações sobre o embate entre tradição e

    modernidade, em que discuto esse processo, a partir dos pressupostos teóricos de Anthony

    Giddens, Homi Bhabha e Stuart Hall, no contexto ficcional do romance, tendo como foco o

    personagem seu Felipe, em quem se aplica o conceito de narrador popular conforme WalterBenjamin.

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    1 – A TRADIÇÃO TEÓRICA1.1 – As preliminares do jogo

     Alice estava começando a se cansar de ficar sentada ao lado

    da irmã à beira do lago, sem ter nada para fazer: uma ou duasvezes ela tinha espiado no livro que a irmã estava lendo, mas olivro não tinha desenhos, nem diálogos. “E de que serve umlivro”, pensou Alice, “sem desenhos ou diálogos?”

    Lewis Carroll – Alice no país das maravilhas

    Pensar em uma autenticidade da literatura latino-americana e principalmente da

    literatura de expressão amazônica é lidar com problemas relacionados ao discurso colonial de

    dependência cultural, econômica e literária. A respeito dessa realidade, Antonio Candido

    (1979, p.352-3) afirma que

    as nossas literaturas latino-americanas (como também as da América doNorte) são, basicamente, galhos das metropolitanas. E se atestarmos osmelindres do orgulho nacional, veremos que, apesar da autonomia que foramadquirindo em relação a estas, ainda são em grande parte reflexas.

    Candido se refere à dependência secular da literatura dos trópicos em comparação

    à Europa, isto é, ramificações de um modelo canônico instituído pela relação que seestabeleceu a partir da colonização das Américas do Sul e do Norte. Desse modo, tem-se uma

    possível dívida com as literaturas européias, no tocante a influência marcante do “modelo”

    literário europeu, exportado para suas colônias. Contudo, segundo Haroldo de Campos (1989,

    p.12), em O seqüestro do Barroco na formação da literatura brasileira, Antonio Candido

    deixa antever em seu discurso um “ideal metafísico de entificação nacional”. Analisando o

    contraponto feito por este teórico, sem desmerecer as proposições teóricas do autor de  A

    Formação da Literatura Brasileira, vê-se que a crítica feita por Campos quer, sobretudo,

    desconstruir a autonomia absoluta das literaturas “centrais” em relação à literatura brasileira.

    Um exemplo clássico na Literatura Brasileira é o poeta baiano Gregório de Mattos Guerra que

    foi analisado por uma parte da crítica literária como um plagiador dos espanhóis Gôngora e

    Quevedo. Porém, com o advento da Literatura Comparada no Brasil, a partir da década de 50,

    o “olhar” sobre a sua produção ganhou novo fôlego, pois o que se denominava “plágio” em

    sua obra foi interpretado, mais tarde, por Augusto de Campos (apud CAMPOS, 1989, p.75),

    como os primeiros “suspiros” da literatura antropofágica brasileira, isto é, a assimilação da

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    literatura ibérica como diferença e a impossibilidade de uma pretensa pureza ou autenticidade

    de um discurso ufano-nacional em nossas letras.15 

    Num sentido mais histórico, dentro dos estudos brasileiros de Literatura

    Comparada, alguns autores se destacam como pioneiros nas discussões que envolvem as

    questões de “dependência” e “autenticidade”, como Haroldo de Campos, Roberto Schwarz e

    Silviano Santiago (NITRINI, 1997, p.211). Entre esses teóricos, destaco a relevância da

    construção teórica de Silviano Santiago para as discussões aqui desenvolvidas. Em seu artigo

     Apesar de dependente, universal, o teórico admite que é inevitável pensar em

    “independência” quando na verdade tem-se um discurso acadêmico enraizado no caráter

    imitativo das literaturas latino-americanas, além do velho discurso de influência literária

    herdada da Europa que reafirma a supremacia da  fonte  como verdadeiro modelo universal(SANTIAGO, 1982, p.20). Sobre essa perspectiva de um discurso que exalta a “fonte” em

    detrimento de suas “ramificações”, n’O entre-lugar do discurso latino-americano, Santiago

    (1978, p.20) demarca que

    a  fonte  torna-se a estrela intangível e pura que, sem se deixar contaminar,contamina, brilha para os artistas dos países da América Latina, quando estesdependem da sua luz para o seu trabalho de expressão. Ela ilumina os

    movimentos das mãos, mas ao mesmo tempo torna os artistas súditos do seumagnetismo superior. O discurso crítico que fala das influências estabelecea estrela como único valor que conta. Encontrar a escada e contrair a dívidaque pode minimizar a distância insuportável entre ele, mortal, e a imortalestrela: tal seria o papel do artista latino-americano, sua função na sociedadeocidental.

    Percebe-se nas palavras do estudioso um tom  de ironia quanto ao discurso

    corrente sobre a literatura nos trópicos. Por isso, ele reforça a necessidade de

    declarar a falência de tal método implica a necessidade de substituí-lo porum outro em que os elementos esquecidos, negligenciados, abandonadospela crítica policial serão isolados, postos em relevo, em benefício de um

    15  Na busca de uma afirmação nacional para a literatura brasileira é importante, segundo Haroldo de Campos(1992, p.237), “de se pensar a diferença, o nacionalismo como movimento dialógico da diferença (e não comounção platônica da origem e rasoura acomodatícia do mesmo): o dês-caráter, ao invés do caráter; a ruptura, emlugar do traçado linear; a historiografia como gráfico sísmico da fragmentação eversiva, antes do que comohomologação tautológica do homogêneo. Uma recusa da metáfora substancialista da evolução natural,gradualista, harmoniosa. Uma nova idéia de tradição (antitradição), a operar como contraevolução, como

    contracorrente oposta ao cãnon prestigiado e glorioso”. Atente-se, desse modo, para as palavras de Oswald deAndrade em relação a Gregório de Mattos: “foi sem dúvida uma das maiores figuras de nossa literatura. Técnica,riqueza verbal, imaginação e independência, curiosidade e força em todos os gêneros, eis o que marca a sua obrae indica desde então os rumos da literatura nacional” (apud CAMPOS, 1989, p.9)

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    novo discurso crítico, o qual por sua vez esquecerá e negligenciará a caça àsfontes e às influências e estabelecerá como único valor crítico, a diferença(loc. cit. 1978).

    Entretanto, dentro desse debate, surgem as seguintes perguntas: como é possível

    uma autenticidade diante da influência inevitável da literatura européia? Seria possível uma

    literatura autêntica na América Latina, sem recorrer ao regionalismo literário ou ao

    fechamento em modelos ufanistas? Esses são alguns dos pontos mais importantes para

    repensar a literatura latino-americana, mais precisamente a literatura brasileira, dentro do

    contexto literário do cânone mundial, pois envolvem não apenas a busca de uma autenticidade

    literária, mas uma forma de resistir, ou melhor, de se relacionar com a “influência” européia.

    Nesse contexto, é inevitável não citar o projeto antropofágico de Oswald de Andrade, que

    representa um “revide” da Literatura Brasileira em relação à européia, isto é, um movimento

    de agressão contra o discurso colonizador para assimilar apenas o que é útil. Além disso, a

    Antropofagia oswaldiana apregoa a [re]versão de todo o processo de colonização literária

    exercido pelo “modelo” europeu, pois, conforme Haroldo de Campos (1992, p.234-5),

    ela não envolve uma submissão (uma catequese), mas uma ‘transculturação’:

    uma visão crítica da história como função negativa (no sentido de Nietzche),capaz tanto de apropriação como de expropriação, desierarquização,desconstrução. Todo passado que nos é ‘outro’ merece ser negado. Valedizer: merece ser comido, devorado.

    Percebe-se na citação que a busca de uma autenticidade para a literatura nos

    trópicos não está na negação total do legado europeu, mas sim na apropriação e na

    [re]significação dessa herança, para então se pensar na diferença.16 Assim, pode-se afirmar

    que a autenticidade da literatura latino-americana está na diferença, no entre-lugar   de sua

    construção estética “movediça”, e não num fechamento radical nacionalista.17 Pode-se dizer

    16 Dessa forma, como explica Santiago (1975, p.114-5), “chegado é o momento de deixar cair tanto a história quese quer retrospectiva, que enfatiza apenas a obediência e a tradição, como ainda certos conceitos como o deorigem e evolução (no sentido teleológico), ou de aprimoramento – conceitos todos que apenas pedem uma visãolinear e unívoca do fenômeno literário. Chegado é o momento de começar a investigar novas possibilidades deformalização do problema da passagem de um determinado sistema retórico, em vias de esgotamento, para outroque se pretende novo e original. O encaixe é antes de mais nada um instante de ruptura, de reorganização;ruptura com relação ao objeto ou objetos anteriores, como ainda é a partir do encaixe que se começa a pensar adiferença”.17 Machado de Assis (1873) no ensaio “Instinto de nacionalidade”, já em pleno século XIX questionava as bases

    de uma literatura “autenticamente nacional”, presa somente aos elementos comuns de uma região. Em umdeterminado ponto de seu texto em que comenta a produção romanesca brasileira, ele afirma com veemência:“Devo acrescentar que neste ponto manifesta-se às vezes uma opinião, que tenho como errônea: é a que séreconhece espírito nacional nas obras que tratam de assunto local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito os

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    que o surgimento da  Antropofagia  foi um grande salto nos estudos comparativos, pois foi

    possível antever um diálogo inevitável com a intertextualidade. A partir desse ponto de vista,

    rompeu-se com uma influência unilateral possibilitando essa [re]versão em que a Literatura

    Brasileira poderia ser exportada não como “modelo”, mas como possibilidade de [re]pensar o

    cânone, como, por exemplo, assegura Santiago (1978, p.54) no tocante à relação entre O

    Primo Basílio, de Eça de Queirós, e Madame Bovary, de Flaubert, relação esta que não visa a

    estabelecer o débito do escritor português para com o francês, “mas o enriquecimento que ele

    trouxe para o romance de Ema Bovary; se não enriquecimento, pelo menos como  Madame

     Bovary se apresenta mais pobre diante da variedade de O Primo Basílio”.

    Esse referido confronto entre “literaturas periféricas” e “centrais” surge como uma

    discussão em que os pontos principais são as relações estéticas entre literaturas diversas.Nesse sentido, na América Latina, um dos exemplos clássicos, citado pela maioria dos

    teóricos, é o escritor argentino Jorge Luís Borges, que, em seu conto Pierre Menard, autor

    del Quijote, reflete sobre o papel do escritor latino-americano no contexto da literatura

    universal. No texto de Borges, o personagem Pierre Menard representa “a metáfora ideal para

    bem precisar a situação e o papel do escritor latino-americano, vivendo entre a assimilação do

    modelo original, isto é, entre o amor e o respeito pelo já-escrito, e a necessidade de produzir

    um novo texto que afronte o primeiro e muitas vezes o negue” (SANTIAGO, 1978, p.25).O desejo de Pierre Menard é escrever o Quixote, isto é, “produzir algumas páginas

    que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes”

    (BORGES, 1999, p.493). O resultado desse trabalho, segundo o próprio narrador é que “o

    texto de Cervantes e o de Menard são verbalmente idênticos, mas o segundo é quase

    infinitamente mais rico. Mais ambíguo, dirão seus detratores; mas a ambigüidade é uma

    riqueza (op. cit. 1999, p.496).18 

    Entre as possíveis leituras desse conto de Borges, chama atenção do leitor aevidência de que é impossível uma tradução que recomponha fielmente o significado do texto

    de Miguel de Cervantes. A tradução de Menard é idêntica quanto ao significante, entretanto,

    perde-se o significado, pois Menard escreve em outro contexto histórico, cultural e ficcional.

    cabedais da nossa literatura”. Em ou momento do mesmo texto ele ratifica sua opinião: “Não há dúvida que umaliteratura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a suaregião; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antesde tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate deassuntos remotos no tempo e no espaço”.18  “Anulando o princípio da identidade, Borges nega a originalidade, nega que algo do muito que foi escritopossa considerar-se patrimônio individual de um autor. O livro não tem realidade e só se impõe por suamultiplicação possível. Assim como cada mito só tem sentido em confronto com os demais, cada livro só terásignificação em relação com outro” (JOSEF, 1986, p.264).

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    Vista por esse prisma, a tradução está dentro de uma categoria intertextual, em que a

    assimilação representa um rompimento com o texto original de Cervantes, não em seu

    significante, mas em seu significado.19 Dessa maneira, é preciso dizer que nesse processo de

    incorporação estética de tradições literárias modelares, entra em cena, inevitavelmente, a

    diferença. Mesmo diante de um processo de transcrição quase total de um texto – como

    Oswald de Andrade fez em seus Poemas da colonização, em que ele “transcreve”, na íntegra,

    passagens da Carta de Pero Vaz de Caminha –, o “significado” da escritura primeira não é

    restabelecido.20  Neste sentido, de acordo com Carvalhal (2003, p.19), o estudo da

    intertextualidade tornou-se essencial para as investigações literárias, levando em consideração

    a “polifonia” dos textos, já que ela “aponta para a sociabilidade da escrita literária, cuja

    individualidade se afirma no cruzamento de escritas anteriores”. Além disso, explica a autora:

    A contribuição do conceito [de intertextualidade] para os estudos deliteratura comparada é decisiva, pois modificou as leituras dos modos deapropriação, das absorções e das transformações textuais, alterando oentendimento da mobilidade contínua dos elementos literários e revertendo acompreensão das tradicionais noções de fontes e influências. (Colchete meu)

    Esse novo direcionamento dos estudos intertextuais tem como conseqüência um

    questionamento do cânone e de sua “imobilidade”. Outra conseqüência desses estudos é a

    possibilidade de transitar “livremente” entre outras correntes teóricas, como a Psicanálise, os

    Estudos Culturais, a crítica Histórica e Sociológica, entre outras, já que a própria Literatura

    Comparada move-se “entre várias áreas, apropriando-se de diversos métodos, exigidos pelos

    objetos que coloca em relação” (CARVALHAL, 2003, p.35).21 

    A análise comparativa e intertextual que é proposta neste trabalho não tem por

    19 Carvalhal (2001, p.67) esclarece algo importante quanto à interpretação do conto de Borges ao dizer que “areprodução de Menard logra outros sentidos interpretativos, graças ao novo contexto em que ela é relançada. Odeslocamento no tempo e no espaço resulta, portanto, benéfico. Ao copiar o  Dom Quixote, Menard o reconstrói.Sob a pena de um autor deste século, as idéias de Cervantes surgem com uma nova roupagem; ganhaminterpretações renovadoras, que somente um leitor do século XX lhes poderia dar”.20 Em  Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, Deleuze e Guattari (1995, p.11-2) desconstroem  a idéia de umsignificado adjacente ao texto quando dizem que “Não se perguntará nunca o que um livro quer dizer,significado ou significante, não se buscará nada compreender num livro, perguntar-se-á com o que ele funciona,em conexão com o que ele faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz emetamorfoseia a sua, com que corpos sem órgãos ele faz convergir o seu”. O ponto de vista dos teóricosfranceses acaba dialogando com a proposta da intertextualidade ao enfatizar uma pluralidade do texto queengendra suas possibilidades significativas e polifônicas, típicas do romance moderno.21 Levando em consideração que no romance Marajó está presente uma “circulação infinita da linguagem”, para

    usar a expressão de Barthes (1970, p.127) sobre o texto literário, a multiplicidade teórica usada em meu estudoestá em consonância com a abertura teórica proposta pela Literatura Comparada. Ressaltam-se, desse modo, asmultifaces da literatura que, segundo o mesmo Barthes (1997, p.18), “assume muitos saberes”; capacidade estaque para o teórico francês representa a primeira força da literatura.

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    objetivo rastrear influências na ficção de Dalcídio Jurandir, mas analisar como o romance

     Marajó  [re]escreve e [re]significa criticamente (diferença) essa tradição literária,

    independente se a “fonte” é a oralidade ou escrituras basilares do cânone universal.

    1.2 – Tradição/Traição e o Jogo da Diferença 

    Para baixo, para baixo, para baixo. A queda nunca ia chegarao fim?

    Lewis Carroll – Alice no país das maravilhas

    T. S. Eliot (1888-1965) poeta anterior a Jorge Luis Borges, em seu famoso

    trabalho sobre  A tradição e o talento individual, de 1917, foi o primeiro autor a desenvolver

    reflexões acerca da “tradição” e da “dívida” dos escritores em relação ao passado. Suas

    discussões compreendem os campos da poética e da crítica literária que impulsionaram o

    desenvolvimento dos estudos comparativos (CARVALHAL, 2001, p.61). Eliot explica em

    seu artigo que a originalidade de um artista está em seu conhecimento aprofundado da

    tradição dos artistas que o precederam, portanto, o autor d’ A terra desolada  via com

    naturalidade essa presença, pois se tratava de reconhecer e estudar a herança artística anterior

    como uma estratégia de busca de uma diferenciação. Desse modo, tradição e modernidade não

    se separam e se reinscrevem como totalidade em que o artista tem um olhar que oscila entre

    os diversos tempos. Esse ponto de vista se institui como um dos grandes paradoxos da

    modernidade e da arte modernista, como afirma Octavio Paz (apud COMPAGNON, 1996,

    p.10), n’Os Cinco Paradoxos da Modernidade:

    esse paradoxo anuncia o destino da modernidade estética, contraditória em si

    mesma: ela afirma e nega ao mesmo tempo a arte, decreta simultaneamentesua vida e sua morte, sua grandeza e sua decadência. A aliança doscontrários revela o moderno como negação da tradição, isto é,necessariamente tradição da negação; ela denuncia sua aporia ou seuimpasse lógico.

    Dessa maneira, esclarece Compagnon (1996, p.10) que “o termo moderno

     justaposto à tradição evoca sobretudo a traição, traição da tradição, mas também repúdio

    incansável de si mesmo”, fenômeno marcante na construção estética de  Marajó.22 Portanto,

    22 Eneida Maria de Souza (1988, p.24), em  A Pedra Mágica do Discurso, chama esse processo ardiloso de umato de lembrar-esquecer , ao se referir às acusações feitas por Raymundo Moraes em relação ao  Macunaíma, de

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    quando apresento no título de meu estudo um  jogo que envolve uma tradição/traída,

    questiona-se a autonomia e a autoria de outros textos, de uma herança popular ou mitológica,

    quando tomados de empréstimo pela escritura dalcidiana.23 

    As reflexões basilares de Eliot e de Compagnon têm um grande significado dentro

    dos estudos sobre a tradição na arte em geral, pois vislumbra a possibilidade de [re]ver o

    passado com vistas de modificá-lo no presente a partir de uma consciência artística

    vanguardista que não rejeita o antigo, mas o re-dimensiona de maneira crítica. Então, onde

    está a originalidade do criador? Pode-se dizer que está no grau de subversão causado pelo

    artista moderno capaz de lançar outro olhar sobre o passado, mas também uma crítica em

    relação à permanência do cânone. Partindo desse raciocínio, a tradição está sempre em

    profunda transformação e sendo [re]visitada pela modernidade literária.Como foi afirmado no primeiro capítulo, Jorge Luis Borges representa na

    América Latina, junto com outros mestres da literatura moderna latino-americana, aquele que

    faz uma ampla reflexão sobre o papel do artista diante da “influência”. A presença de ícones

    da literatura universal nos textos do escritor argentino é marcante; são “referências vindas de

    obras variadas. Os textos são recheados de repetições de outras obras ou da própria, na

    consecução de uma poética fundada na leitura, na identificação primeira do escritor como

    leitor” (PINTO, 1998, p.177).Ainda segundo Júlio Pimentel Pinto (1998, p.190), a tradição em Borges tem um

    propósito claro, pois significa

    Tradição pela criação – já antes indicada, do presente em direção ao passado– de uma rede de influências que sustentam o texto, ancorando-o numatrajetória de autores e obras, situando-o dentro da história literária,identificando seus precursores e sucessores. Um movimento que corre emmão dupla, com o precursor determinando seus sucessores e um auto-

    denominado sucessor inventando seus precursores. Trata-se da produção deuma tradição para nela inserir seus textos, algo que fica claro em Borgesquando proclama repetidas vezes o nome dos autores, fundamentalmenteclássicos, dos quais extrai suas questões e preocupações, sejam elas estéticasou temáticas. (Grifo do autor)

    Mário de Andrade, que teria plagiado as lendas colhidas por Koch-Grüberg. Esse ato ( lembrar-esquecer ),tradição, traição, está em consonância com o projeto do Modernismo Brasileiro diante de uma dependênciasecular exercida pelo cânone literário e pela cultura européia. É  preciso destacar, no entanto, que tal ato nãoimplica a destruição de uma memória literária e cultural acumulada, mas uma [re]leitura, uma transgressão ouuma [re]versão dessa herança.23 Harold Bloom em Um Mapa da Desleitura (1995, p.43), refletindo sobre a dialética que envolve a tradição,

    afirma que a superação de uma obra ou de um passado literário anterior corresponde ao assassinato do PaiSagrado pelos filhos rivais, numa alusão ao que Freud expõe em seu Totem e Tabu. Desse modo, afirma-se queas relações que envolvem tradição e modernidade caminham sempre por uma trilha tortuosa em que entram em

     jogo, a transgressão do ensinamento, a tentativa de um apagamento da origem e a traição do modelo inicial.

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     Dalcídio Jurandir demonstra essa preocupação em demarcar possíveis “leituras”

    da tradição, como foi exemplificado em Chove nos campos de Cachoeira. Tal experimentação

    estética representa um grande salto na escritura ficcional do escritor amazônico, que nodesenvolver de outras obras do Ciclo vai se tornar mais complexa e aglutinada. Falando sobre

    o romance Marajó, percebe-se a continuação desse trabalho estético, mas as referências sobre

    a tradição se “perdem” na escritura, na qual apenas encontram-se alguns rastros, pistas,

    “linhas de fuga”.

    Excluindo os pesquisadores da obra de Dalcídio Jurandir citados no princípio do

    trabalho, raros são aqueles que discutiram ou estudaram como a tradição se articula na ficção

    dalcidiana. Entre eles, Adonias Filho pode ter sido o pioneiro, em  Modernos ficcionistasbrasileiros (1965). Nesse livro, o autor faz um balanço sobre o romance de 30 no Brasil, em

    que enquadra Dalcídio Jurandir, e enfatiza a continuidade da tradição nas letras brasileiras ao

    afirmar (1965, p.33) que

    o romance brasileiro de hoje — em seus caminhos mais largos, suas linhasmais flagrantes, suas tendências mais ostensivas —, não se opõe à tradição eessa tradição continua sobretudo no círculo dos movimentos temáticos. Naenorme variação das órbitas, da extroversão mais aberta ao intimismo mais

    fechado, o que se verifica é a continuidade mesma da tradição. Não seráapenas  histórica, porém, essa tradição. Conseqüência das raízes sociais,resultantes por sua vez dos produtos que o engendraram o complexo culturalbrasileiro, ela se afirma à sombra dos movimentos temáticos e das constantesliterárias. Dir-se-ia que o romance, na dependência de suas próprias raízes,não pôde superar a tradição na base dos valores decisivos.24 

    O ponto de vista do autor sobre o romance moderno brasileiro parece convergir

    para uma idéia de repetição sumária da tradição, além de excluir as referências externas

    vindas da Europa, como, por exemplo, as Vanguardas. O que fica entendido a partir da citação

    é uma rígida dependência em relação ao passado brasileiro, como repetição inevitável.

    Analisando bem as palavras de Adonias Filho, verifica-se que o seu olhar sobre a tradição está

    baseado na idéia de que a tradição é simplesmente o "o ato de passar algo para outra pessoa,

    ou de passar de uma geração a outra geração. Assim, através do elemento dito ou escrito algo

    é entregue" (BORNHEIM, 1997, p.18). Essa maneira de entender a tradição no romance

    brasileiro é problemática, pois traz certa herança vinda dos estudos folclóricos do século XIX.

    A idéia de uma permanência “viva” da tradição também é defendida por Câmara Cascudo

    24 Adonias Filho (1965, p.35) enquadra Dalcídio Jurandir em uma “tradição documentária herdada dos autos econtos populares, que, em se manifestando literariamente, comprova um dos processos da ficção brasileira”.

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    (1978, p.27) em suas pesquisas sobre cultura popular e oralidade no Brasil, quando ele afirma

    que o termo significa “transmitir, passar adiante, o processo do conhecimento ágrafo”; isso

    inclui, sobretudo, as lendas e os mitos.

    Com o advento dos Estudos Culturais e seu diálogo com as pesquisas da

    Literatura Comparada, foi possível repensar a tradição e trazê-la para as discussões sobre a

    dialética, que envolvem a herança literária do passado e as propostas vanguardistas do início

    do século XX. Assim, cabe destacar alguns conceitos sobre o tema, começando com alguns

    apontamentos teóricos de Stuart Hall e Anthony Giddens.

    Hall é considerado, hoje, um dos teóricos mais preocupados com os processos

    culturais na pós-modernidade e com o papel da tradição dentro das transformações sociais.

    Em seu estudo sobre a desconstrução do popular , presente em seu livro  Da  Diáspora (2003,p.259-0) ele estabelece que

    a tradição é um elemento vital da cultura, mas ela tem pouco a ver com amera persistência das velhas formas. [...] Esses arranjos em uma culturanacional-popular não possuem uma posição fixa ou determinada, ecertamente nenhum significado que possa ser arrastado, por assim dizer, nofluxo da tradição histórica, de forma inalterável. Os elementos da tradição não só podem ser organizados para se articular a diferentes práticas eposições e adquirir um novo significado e relevância.

    Na citação, percebe-se o caráter de mutação da cultura e a visão de que se torna  

    improvável uma idéia fixa (persistência das velhas formas) que não permita uma articulação

    entre diferentes tradições (hibridismo). Essa articulação, segundo ele, pode construir um novo

    significado ou, conforme suas próprias palavras, “uma nova dissonância”.

    Giddens (1997, p.80), também um dos importantes estudiosos da tradição e da

    modernidade, confirma a idéia de Hall quando assegura que, indubitavelmente, “a tradição é

    uma orientação para o passado, de tal forma que o passado tem uma pesada influência ou,

    mais precisamente, é constituído para ter uma pesada influência sobre o presente”. Assim

    como Hall, o referido estudioso (1997, p.82) não acredita na persistência das velhas formas,

    “mas no trabalho contínuo de interpretação que é realizado para identificar os laços que ligam

    o presente ao passado”.

    O que esse novo olhar sobre a tradição pode oferecer aos estudos comparados e o

    desenvolvimento da presente análise sobre o romance Marajó? Para responder essa questão é

    necessário unir esses conceitos e configurá-los dentro do Modernismo brasileiro,precisamente do período que vai da Semana de Arte Moderna até a Geração de 45. Seguem-

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    se, então, algumas considerações de Silviano Santiago sobre a “permanência do discurso da

    tradição no modernismo”. Em seu estudo, o autor de Vale quanto pesa (1997, p.115-7) retoma

    o pensamento teórico de Eliot, mas sua análise vai enfatizar o trabalho de Octavio Paz, Os

     filhos do barro, em que este teórico aborda dois tipos de tradição: a da ruptura e da analogia.

    No Brasil, fica mais evidente que o discurso da tradição, desde o início do Modernismo, está

    mais relacionado à “analogia”. Desse ponto de vista, o que os primeiros modernistas

    buscavam era um retorno a uma tradição nacional, mas não com fins de “resgate” e sim com a

    possibilidade de repensá-la dentro de uma ótica modernista e de uma revolução estética. Um

    bom exemplo é o já referido Oswald de Andrade, em sua busca “utópica” de “Pindorama” e

    um horizonte para os novos caminhos da Literatura Brasileira, sintonizada às transformações

    vanguardistas.Os modernistas brasileiros não vão aderir à tradição da ruptura proposta pelo

    Futurismo de Marinetti, que pregava a destruição das bibliotecas e a morte do passadismo

    (HELENA, 1996, p.18). Na mente dos artistas, o mais coerente era o jogo da intermediação

    ou o entre-lugar ; pois já não era mais possível uma busca utópica de uma identidade nacional

    pura como queria, por exemplo, Policarpo Quaresma do romance de Lima Barreto, que,

    segundo Alfredo Bosi (1973, p.98), “encarna a obsessão nacionalista, o fanatismo xenófobo”.

    A originalidade artística brasileira naquele momento estava em sua capacidade de“deslocamento” e “englobamento”, de articulação entre a tradição brasileira, a tradição

    européia e as propostas experimentais das Vanguardas Européias.

    Em relação ao gênero poético, um exemplo clássico de retorno à tradição é a

    retomada feita por Carlos Drummond de Andrade do tema da “máquina do mundo”, de Os

     Lusíadas de Camões. Essa retomada parece uma quebra com a postura seguida em seus livros

    Sentimento do mundo, Rosa do povo e Claro enigma. No caso da poesia, “o apelo à tradição

    no Modernismo vai estar sempre próximo do rompimento do poeta com uma linha departicipação política do tipo marxista” (PAZ apud SANTIAGO, 1997, p.124).

    Como será explicado no decorrer do desenvolvimento, nota-se que a escritura de

    Dalcídio Jurandir, ao retomar a tradição, não “obscurece” o caráter social que marca seu estilo

    e de outros escritores como Graciliano Ramos e José Lins do Rego, contemporâneos de

    Dalcídio. Seu posicionamento artístico diante da tradição abrange não apenas o diálogo com a

    literatura estrangeira ou com as vanguardas, mas também um “compromisso” de renovar a

    Literatura Amazônica, incorporando mitos, lendas, contos populares, redimensionados

    esteticamente e dialeticamente.

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    2 - A TRADIÇAO LITERÁRIA DA AMAZÔNIA

    2.1 - Por Certos Caminhos e Cenas de um Ciclo literário Amazônico

     Alice não ficou nem um pouco machucada e levantou-se numsegundo. Olhou para cima, mas estava tudo escuro no alto.

    Lewis Carroll – Alice no país das maravilhas

    No decorrer deste capítulo, não pretendo aprofundar o estudo sobre a tradição

    literária da Amazônia, pois, seria preciso refazer um caminho tortuoso por fontes literárias

    que não estão disponíveis, no contexto da história literária da região Norte. Além disso, faltam

    estudos sobre a literatura amazônica e sobre a história literária para que seja possível entendercomo se realizou a evolução dos estilos de época e como os escritores se comportaram com

    relação a eles.25 Entretanto, isso não é um impedimento para “eleger” um cânone ou mesmo

    algumas breves anotações literárias que antecederam o surgimento de Dalcídio Jurandir nas

    letras amazônicas.26  Entre esses autores, destacam-se Inglês de Sousa, Clóvis Gusmão,

    Abguar Bastos e Bruno de Menezes.

    Inglês de Sousa é considerado, segundo Vicente Salles (1990, p.7), o “primeiro

    romancista da Amazônia”, com um Ciclo  (Cenas da Vida do Amazonas) de obras

    fundamentais que questionam as relações latifundiárias e incorporam mitos e lendas do

    imaginário popular, configurando uma proposta bem definida sobre a interação desses

    elementos com a escritura literária. Isso é confirmado por Paulo Maués Corrêa em suas

    pesquisas sobre o autor, que, segundo ele, incorpora em seus contos,  “entes” da mitologia

    amazônica como a mãe d'água, o curupira, a cobra grande, o boto, entre outros. Sobre esse

    modo de apropriação da tradição oral, Corrêa (2003, p.48) afirma que “não se trata de mera

    citação que visa simplesmente a moldar o cenário das narrativas para realçar o exotismo da

    região”.

    Na opinião de vários estudiosos sobre a Literatura de Expressão Amazônica, uma

    das grandes interfaces de Dalcídio Jurandir vem da tradição inglesiana. No entanto, a escritura

    dalcidiana surge no cenário amazônico, com um apuramento estético mais amplo a partir das

    “influências” literárias da Europa.

    25  Sobre essa discussão, ver meu ensaio  Literatura Paraense: autores e obras  (2006, p.93-9), apresentado nodécimo encontro do IFNOPAP e publicado no livro  Revisitando o Marajó: Um arquipélago sob a ótica da

    ciência, educação, cultura e biodiversidade; uma publicação organizada pela Professora Maria do SocorroSimões.26 Meu intuito não é “rastrear” influências, mas contextualizar o escritor Dalcídio Jurandir dentro de um processoliterário e cultural da Amazônia.

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    No século XX, a figura de Clóvis Gusmão é marcante, não como poeta, mas como

    um intelectual que abriu as letras amazônicas para o cenário do Modernismo nacional.

    Segundo algumas informações de Aldrin Moura de Figueiredo (1998, p.307-8), esse

    intelectual, no ano de 1929, no Rio de Janeiro, era um dos colaboradores da  Revista

     Antropofágica. Ao lado de Oswald de Andrade e Raul Bopp, ele se propôs a repensar a

    articulação entre as propostas vanguardistas e as tradições folclóricas da Amazônia, sem a

    preocupação de “resgatar” essas manifestações, mas com o objetivo de “marcar” o caráter

    nacional da cultura brasileira através da “diferença”. O poeta fazia parte de um grupo literário

    ainda no Pará, perto dos anos 20, chamado “Os Novos”, que tinha contatos com as

    informações literárias vindas da capital federal e da Europa. Clóvis Gusmão pode ser

    considerado o primeiro a levar até as “últimas conseqüências” o trabalho de incorporaçãoestética do imaginário popular amazônico, sobretudo em suas publicações para a  Revista

     Antropofágica. Ele, na companhia dos antropófagos, pregava que “manifestações populares,

    festas religiosas, lendas interioranas, crenças indígenas e africanas – tudo isso poderia ser

    mastigado e deglutido, gerando um caldo cultural representativo do que poderia ser uma

    legítima síntese cultural do país” (op. cit. 1998, p.309).27 

    No estudo sobre o romance  Marajó, esse processo de “devoração crítica do legado

    cultural universal”, tomando de empréstimo as palavras de Haroldo de Campos (1992, p.234),está presente na obra a partir do espírito da Antropofagia, com o objetivo de reintegrar a

    Amazônia em um contexto nacional e universal, através de uma literatura sem os resíduos

    românticos e naturalistas do passado. Entretanto, em harmonia com esse projeto estético,

    havia a necessidade de questionar a história amazônica e brasileira a partir de um

    conhecimento aprofundado da cultura popular e da tradição dos povos ribeirinhos e

    interioranos, um dos prováveis motivos que levaram Dalcídio Jurandir a afirmar em uma de

    suas entrevistas que sua ficção: “Foi a tentativa inicial de transmitir, em termos de ficção, oque vive, sente e sonha o homem marajoara” ( Asas da Palavra, 1996, p.28).

    Outro intelectual importante desse período e que fazia parte da “Associação dos

    Novos” foi Abguar Bastos, autor de uma trilogia amazônica em que figuram os romances:

    Terra de Icamiaba  (1932), Certos Caminhos do Mundo  (1936)  e Safra  (1937).28  Uma

    27 Segundo Joaquim Inojosa (1994, p.121), Clóvis Gusmão fazia parte de um grupo de renovadores das letras noPará. Na companhia de Bruno de Menezes, De Campos Ribeiro, Eneida de Moraes, entre outros, traçaram osnovos rumos da literatura amazônica.28  Abguar Bastos foi autor de um Manifesto literário intitulado Flami-n’-Assú (em tupi, significaria “grandechama”). A proposta do Manifesto, segundo Marinilce Oliveira Coelho (2005, p.80), “incorporou um traçoromântico em suas reivindicações, pois o tema da independência da cultura nacional aproxima-se, de uma formaou de outra, do tópico encontrado no nacionalismo europeu desde o Pré-romantismo”.

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    temática comum entre os três romances é a luta social pela terra diante do latifúndio e da

    natureza “selvagem” da Amazônia. No prólogo de seu primeiro romance, lançado antes dos

    anos 30, Abguar Bastos (1934, p.5) afirma que:

    Fiz um livro n’Amazônia. Ajustei símbolos à realidade. Procurei o homemna paisagem da vida, mas fixei a vida no panorama da terra. Andei, vi,perscrutei. Três anos contaram os passos do autor no vale imenso eprofundo. Nada é novo, contudo. As histórias estão tatuadas nas gentes,trabalhadas nas pedras, calcadas nas árvores, delineadas na terra, submersasnas águas. Todos podem lê-las convenientemente. É questão de quererdescer ao chão e escutar, com amor, os corações subterrâneos. Aí estão aslegendas remotas, os mitos sagrados, os hieróglifos eternos, os totenspropiciatórios. Aí estão os homens e os bichos, a música e as figuras, os

    hábitos e as cerimônias. Tudo é relevo quando conscientemente analisado.Não há mistérios. Há silêncio nas interpretações.

    Essa longa citação do autor projeta algumas reflexões sobre a Amazônia a partir

    de uma ótica sociológica. Portanto, Abguar Bastos, em sua visão da Amazônia rompe com a

    idéia de “mistério”, mas instaura o “silêncio das interpretações”, em que o artista, diante

    disso, ajusta os “símbolos à realidade”. Esse olhar sobre a Amazônia, através da ficção, tem

    suas origens29 na escritura literária de Inglês de Sousa, quando, ficcionalmente, o escritor de

    Óbidos já fazia críticas à situação social dos tapuios, como, por exemplo, em seu romance

     História de um Pescador  (1876), em que é possível encontrar uma crítica sólida em relação a

    esse contexto quando o narrador, de certa forma, ironiza alguns autores que vêem a Amazônia

    apenas em sua superfície:

    Os autores desses livros não chegam a ver senão a superfície das cousas.Demais eles não conhecem as nossas condições de existência! Sabeis o que éser pobre no Amazonas? É ser escravo. É pior do que isso. O escravo tem

    seguro o alimento, e portanto a vida. O miserável tapuio nada tem de segurono mundo. N’uma terra em que não impera a lei, n’uma terra que o governodespreza, quando devia cuidar grandemente dela, quem tem a força temrazão e direito, quem tem a certeza do pão quotidiano é um ente feliz. Sãosempre injustamente acusados os tapuios. Não se fartam de dizer que sãoindolentes e preguiçosos, que não se sabem aproveitar dos vastíssimosrecursos que lhe oferece a natureza!... [...] O mal do Amazonas está nesseshomens vis e infames, que se locupletam com sangue alheio, nesses homenssem pundonor, sem alma nem coração, e que têm, entretanto, o apoio do

    29  As aspas não são para demarcar uma ironia em relação a Inglês de Sousa, mas sim para subentender o

    apregoado “apagamento da origem” de que nos fala a Professora Eneida Maria de Souza (1991, p.35). Pode-se,além disso, pensar a questão da “origem” a partir do que Roland Barthes chama de “disseminar as suas marcassegundo fórmulas irreconhecíveis, tal como se disfarça uma mercadoria roubada” (apud PERRONE-MOISÉS,1979, p.214).

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    governo, que os alimenta, honra e robustece. O mal do Amazonas está naescravidão do trabalho, que o governo central criou com o fim de ter eleiçõesvitoriosas (DOLZANI, 1990, p.49-0).

    Nessa passagem do romance de Inglês de Sousa, publicado sob o pseudônimo de

    Luiz Dolzani, o narrador ressalta algumas idéias que vão ser retomadas por Abguar Bastos a

    partir do olhar modernista, como as diferenças sociais, o estereótipo do homem amazônico,

    “indolente” e “preguiçoso”, e o próprio “silêncio” diante do poder do latifúndio. Analisando a

    concepção que alguns intelectuais tiveram sobre a Amazônia, será possível verificar que essa

    opinião foi

    timbrada pela reverberação do Verbo, na tentativa de desvelar uma Naturezaopulenta e vitoriosa, quer pela herança primeira dos cronistas do séc. XVI,como Carvajal, reforçada pela caravana daqueles do século XIX, Spix eMartius, Agassiz e outros, quer pela herança de Euclides da Cunha, cujoestilo ressumbra na grandiloqüência de uma leva de autores deste século queambientaram seu universo fictício na região (FURTADO, 2002, p.11).

    Bruno de Menezes (1893-1993), folclorista, poeta e romancista escreveu obras

    importantes como  Batuque  (Poesia – 1931),  Maria Dagmar (Novela – 1950), Candunga

    (Romance – 1954),  Boi Bumbá –  Auto Popular  (Folclore – 1958), entre outros trabalhos na

    área da cultura popular. O escritor paraense representa um dos grandes expoentes do

    Modernismo brasileiro ao lado de Abguar Bastos e Clóvis Gusmão, este companheiro de

    geração do escritor.30 Foi um pesquisador que muito contribuiu para a história do negro no

    Pará, assim como Vicente Salles e, além disso, desenvolveu uma coleta considerável de

    lendas e expressões populares da Amazônia. O diálogo do autor, com a obra de Dalcídio

    Jurandir, é marcante e essa “influência” surge com grande ênfase em algumas obras do Ciclo

    do Extremo Norte como Três Casas e Um Rio e Chão dos Lobos, em que o enfoque do Boi

    Bumbá apresenta uma pesquisa sólida sobre a negritude e as relações de poder, presentes

    nesse Auto popular. Segundo Francisco Paulo Mendes (1993, p.10), mestre dessa geração,

    Bruno de Menezes com  Maria Dagmar  e Candunga inaugura a narrativa realista com “uma

    preocupação social e na constatação das injustiças sofridas duramente pelas classes não

    privilegiadas, obra de ficção que encontraria, mais tarde, entre nós, em Dalcídio Jurandir um

    brilhante e talentoso continuador”.

    30 Bruno de Menezes foi diretor da revista  Belém Nova, responsável pela divulgação das propostas modernistasno Pará. Seu lançamento foi no dia 15 de setembro de 1923, durando até no ano de 1929 (COELHO, 2005, p.71).

  • 8/17/2019 Dissertacao_TradicaoJogoDiferenca

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    Dentro desse processo de crítica em relação à situação do homem amazônico,

    Inglês de Sousa, Abguar Bastos e o próprio Bruno de Menezes, como afirma Paulo Mendes,

    “prepararam” o caminho para o advento da ficção de Dalcídio Jurandir, que, seguindo os

    passos do romance moderno e dos estudos sobre o contexto cultural do extremo Norte, vai

    “explorar”, através da literatura, uma nova história cultural e literária da Amazônia. Como

    afirma Vicente Salles (1992, p.368), “Não é possível escrever a história social paraense sem o

    conhecimento da obra de Dalcídio Jurandir”.

    Logo na epígrafe de  Marajó, o autor inicia seu questionamento sobre o olhar dos

    cronistas em relação à Amazônia ao retirar um trecho de uma “Carta ao Rei”, escrita pelo

    Padre Antonio Vieira, que ressalta a idéia de um “inferno verde” e labiríntico:

    Na grande boca do rio das Amazonas está atravessada uma ilha de maiorcomprimento e largueza que todo o reino de Portugal...

    ..................................................................É a ilha toda composta de um confuso e intrincado labirinto de rios ebosques espessos; aqueles com infinitas entradas e saídas, estes sem entradanem saída alguma... [grifo meu]

    A presença dessa epígrafe em  Marajó  pode ser lida como uma crítica a uma

    tradição formulada a partir do olhar do conquistador e da catequese. Nesse sentido, a literaturafunciona como um contra-discurso da história.31  É oportuno lembrar também que no

     Manifesto Antropófago de 1928, Oswald de Andrade (1980, p.82)