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Distância e Divisão na Ásia Oriental A China sozinha pode ter sido responsável por um terço da manufatura global, o que não iria durar. Cem anos depois, um novo imperador destruiu os diários de nave- gação de Zheng He e reduziu a frota a um décimo de seu tamanho, acredi- tando que os custos das expedições ao exterior ultrapassavam os benefícios. A China entrou em séculos de isolamento autoimposto, rompido de maneira infame e prejudicial pelos britânicos durante as Guerras do Ópio no século XIX. A era de isolacionismo da Ásia Oriental A China não foi a única que tentou isolar-se do resto do mundo. No Japão, Tokugawa Iemitsu promulgou o “Edito do País Fechado de 1635” e a “Exclusão dos Portugueses, de 1639”, efetivamente fechando o país às influências externas pelos dois séculos seguintes. Os editos não só impediam os estrangeiros de entrar no Japão, mas também proi- biam os japoneses de ir para o exterior. A rejeição de tudo o que era ocidental estendeu-se à tecnologia. Numa ten- tativa extraordinária de preservar sua cultura e hierarquia social, o Japão gra- dualmente aboliu as armas de fogo em favor da espada samurai, mais elegante e simbólica. Esses exemplos extremos mostram a vasta divisão entre os países da Ásia Oriental, especialmente após o século XVII. Os estudiosos não concordam plenamente quanto aos efeitos econô- micos dessa divisão. Alguns afirmaram que a redução dos padrões de vida foi significativa durante os períodos Qing e Tokugawa. Outros acreditam que é mais correto caracterizar essas socie- dades como economias estagnadas em vez de em declínio. Em todo caso, o nível dos salários no Japão e na China no início do século XIX era muito infe- rior ao de Londres ou Amsterdã, até em termos reais, talvez em até 50%. 1 Adam Smith já havia percebido isso: “A diferença entre o preço monetário do trabalho na China e na Europa é ainda maior do que entre o preço monetário da subsistência; pois a recompensa real do trabalho é mais alta na Europa do que na China”. 2 Smith estava certo. Mesmo antes da Revolução Industrial, certas partes da Europa haviam avançado além da Ásia nos seus padrões de vida. Ele também estava certo ao escrever sobre a China como economia unificada. Os man- darins chineses mantinham registros excepcionais dos salários pagos aos armeiros e outros artesãos que presta- vam serviços para o governo. Isso mos- tra pouca diferença regional, apesar das vastas distâncias dentro da China imperial. Somente as áreas menos den- sas e escassamente povoadas do norte tinham salários um pouco mais altos. Em meados do século XIX, os salá- rios reais em Cantão e Tóquio, as cida- des mais avançadas da Ásia, eram iguais somente aos de pequenas cidades euro- péias como Milão e Leipzig. Em outros lugares da Ásia Oriental, os padrões de vida eram ainda mais baixos. Os antigos estados tributários chineses haviam sido colonizados, e os países asiáticos estavam ainda mais divididos (ver mapa G3.1). Pouco depois, a maior parte da Europa passou pela Revolução Industrial, e a “grande divisão” entre a Europa e a Ásia ampliou-se, com gran- des avanços dos salários e do produto interno bruto (PIB) europeus. Segundo Angus Maddison (2006), a parcela da Ásia Oriental no PIB global, que era em torno de 40% entre 1500 e 1800, caiu para menos de 15% por volta de 1950. Cinqüenta anos de integração asiática Avancemos para os dias de hoje. As economias da Ásia Oriental tor- naram-se integradas por uma densa gama de redes de produção regionais. Essas cadeias de fornecimento come- çaram com a terceirização das mul- tinacionais japonesas nos anos 1980, conforme os custos dos salários e da terra na densa área de produção de Tóquio tornavam-se proibitivos para a manufatura competitiva. Na realidade, a concentração econômica em Hong Kong, na China, no Japão, na Repú- blica da Coréia, e em Taiwan, resultou em transbordamento – primeiro para países de renda média no Sudeste Asi- ático, e depois para a China, à medida que as barreiras da ideologia econô- mica foram reduzidas. Recentemente, Quando o Almirante Zheng He trouxe uma girafa para Nanquim em 1415, acreditou-se que era um animal celeste, associado a grande paz e prosperidade. Isso também marcou o apogeu da influência chinesa na Ásia Oriental e na riqueza da região com rela- ção ao resto do mundo. Naquela época, a China era provavelmente a maior economia do mundo, dispunha do mais alto padrão material de vida, com florescimento das artes e da educação, e avanços numa gama de tecnologias. Sua capacidade naval havia permitido viagens para lugares tão distantes como a África. Geografia em Movimento

Distância e Divisão na Ásia Orientalsiteresources.worldbank.org/INTWDR2009INPOR/Resources/GIM... · como economia unifi cada. Os man-darins chineses mantinham registros ... asiáticos

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Distância e Divisão na Ásia Oriental

A China sozinha pode ter sido responsável por um terço da manufatura global, o que não

iria durar. Cem anos depois, um novo imperador destruiu os diários de nave-gação de Zheng He e reduziu a frota a um décimo de seu tamanho, acredi-tando que os custos das expedições ao exterior ultrapassavam os benefícios. A China entrou em séculos de isolamento autoimposto, rompido de maneira infame e prejudicial pelos britânicos durante as Guerras do Ópio no século XIX.

A era de isolacionismo da Ásia OrientalA China não foi a única que tentou isolar-se do resto do mundo. No Japão, Tokugawa Iemitsu promulgou o “Edito do País Fechado de 1635” e a “Exclusão dos Portugueses, de 1639”, efetivamente fechando o país às infl uências externas pelos dois séculos seguintes. Os editos não só impediam os estrangeiros de entrar no Japão, mas também proi-biam os japoneses de ir para o exterior. A rejeição de tudo o que era ocidental estendeu-se à tecnologia. Numa ten-tativa extraordinária de preservar sua cultura e hierarquia social, o Japão gra-dualmente aboliu as armas de fogo em favor da espada samurai, mais elegante e simbólica.

Esses exemplos extremos mostram a vasta divisão entre os países da Ásia Oriental, especialmente após o século XVII. Os estudiosos não concordam

plenamente quanto aos efeitos econô-micos dessa divisão. Alguns afi rmaram que a redução dos padrões de vida foi signifi cativa durante os períodos Qing e Tokugawa. Outros acreditam que é mais correto caracterizar essas socie-dades como economias estagnadas em vez de em declínio. Em todo caso, o nível dos salários no Japão e na China no início do século XIX era muito infe-rior ao de Londres ou Amsterdã, até em termos reais, talvez em até 50%.1

Adam Smith já havia percebido isso: “A diferença entre o preço monetário do trabalho na China e na Europa é ainda maior do que entre o preço monetário da subsistência; pois a recompensa real do trabalho é mais alta na Europa do que na China”.2

Smith estava certo. Mesmo antes da Revolução Industrial, certas partes da Europa haviam avançado além da Ásia nos seus padrões de vida. Ele também estava certo ao escrever sobre a China como economia unifi cada. Os man-darins chineses mantinham registros excepcionais dos salários pagos aos armeiros e outros artesãos que presta-vam serviços para o governo. Isso mos-tra pouca diferença regional, apesar das vastas distâncias dentro da China imperial. Somente as áreas menos den-sas e escassamente povoadas do norte tinham salários um pouco mais altos.

Em meados do século XIX, os salá-rios reais em Cantão e Tóquio, as cida-des mais avançadas da Ásia, eram iguais somente aos de pequenas cidades euro-

péias como Milão e Leipzig. Em outros lugares da Ásia Oriental, os padrões de vida eram ainda mais baixos. Os antigos estados tributários chineses haviam sido colonizados, e os países asiáticos estavam ainda mais divididos (ver mapa G3.1). Pouco depois, a maior parte da Europa passou pela Revolução Industrial, e a “grande divisão” entre a Europa e a Ásia ampliou-se, com gran-des avanços dos salários e do produto interno bruto (PIB) europeus. Segundo Angus Maddison (2006), a parcela da Ásia Oriental no PIB global, que era em torno de 40% entre 1500 e 1800, caiu para menos de 15% por volta de 1950.

Cinqüenta anos de integração asiática

Avancemos para os dias de hoje. As economias da Ásia Oriental tor-naram-se integradas por uma densa gama de redes de produção regionais. Essas cadeias de fornecimento come-çaram com a terceirização das mul-tinacionais japonesas nos anos 1980, conforme os custos dos salários e da terra na densa área de produção de Tóquio tornavam-se proibitivos para a manufatura competitiva. Na realidade, a concentração econômica em Hong Kong, na China, no Japão, na Repú-blica da Coréia, e em Taiwan, resultou em transbordamento – primeiro para países de renda média no Sudeste Asi-ático, e depois para a China, à medida que as barreiras da ideologia econô-mica foram reduzidas. Recentemente,

Quando o Almirante Zheng He trouxe uma girafa para Nanquim em 1415, acreditou-se que era um animal celeste, associado a grande paz e prosperidade. Isso também marcou o apogeu da infl uência chinesa na Ásia Oriental e na riqueza da região com rela-ção ao resto do mundo. Naquela época, a China era provavelmente a maior economia do mundo, dispunha do mais alto padrão material de vida, com fl orescimento das artes e da educação, e avanços numa gama de tecnologias. Sua capacidade naval havia permitido viagens para lugares tão distantes como a África.

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Rebelião muçulmana1862-77 Rebelião Nien

1853-68

Território chinês perdido

Tributários chineses perdidos

Rebeldes de Taiping, 1853–64

Mapa G3.1 A Ásia dividida: o conflito em meados do século XIX

Fonte: www.fordham.edu/halsall.

cadeias de fornecedores se concentra-ram na China, e grandes montadoras em Guangdong e Shenzhen. À medida que a China amadureceu, ela também se tornou exportadora de bens intermedi-ários e de capital. A China é hoje o prin-cipal parceiro comercial do Japão e da República da Coréia, e mais da metade das suas importações em rápido cresci-mento provêm da Ásia Oriental.

Hoje o comércio intrarregional na Ásia Oriental aproxima-se daquele dentro da União Européia (EU), cres-cendo consistentemente mais rápido que o comércio entre a Ásia Oriental e as outras regiões do mundo. Os países

da Ásia Oriental são a fonte de quase dois terços de todo o investimento estrangeiro na região. Até a tecnologia está começando a ser criada dentro da região, especialmente nas indústrias de exportação cruciais como a de ele-trônicos. Os países da Ásia Oriental estão empenhados na remoção das divisões entre si na forma de barreiras comerciais e outros custos de fronteira. Eles começaram com logística de pri-meira classe, nos portos e aeroportos – embora restrita às vezes às zonas eco-nômicas especiais. E continuaram com melhorias da infraestrutura leve, como reformas alfandegárias e isenções de

visto dentro da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN).

A queda da divisão entre os países da Ásia Oriental coincidiu com o cres-cimento veloz num amplo espectro desde a República Democrática Popular do Laos, com renda per capita de US$ 500 em 2006, até Cingapura, com renda per capita de quase US$ 30 mil. Dentro da Ásia Oriental, as rendas estão con-vergindo lentamente: os países pobres estão crescendo mais rápido que os paí-ses ricos. A maioria dos países da Ásia Oriental seguiu caminhos semelhantes, começando pela intensifi cação agrícola e industrialização rural, seguidas pela expansão urbana e pelas exportações de bens manufaturados. Houve apren-dizado no exterior – de novas tecnolo-gias e novas instituições. As exportações tornaram-se tecnologicamente mais complexas. Os países de renda média especializaram-se na produção de componentes, enquanto os países asiá-ticos ricos agregaram valor por meio de inovação, divulgação de marca e maior sofi sticação tecnológica.

À medida que a região cresceu, ela desenvolveu uma dinâmica que reforça o crescimento. A ASEAN, a China, o Japão e a República da Coréia são uma massa econômica comparável à Amé-rica do Norte nos anos 1990. À medida que o centro de gravidade da economia global se desloca para o Cinturão do Pacífi co, o acesso ao mercado global para todos na Ásia Oriental melhorou.

O grau de comércio intrarregional na Ásia Oriental pode ser considerado surpreendente, dada a história de rela-ções políticas antagônicas entre mui-tos países da região. No Hemisfério Ocidental, os efeitos econômicos dos confl itos entre os países foram supe-rados pelas instituições formais dos sistemas jurídicos codificados e dos acordos políticos que regiam as tran-sações comerciais próximas e podiam ser facilmente expandidos para acomo-dar o crescimento veloz do comércio e das fi nanças. Na Ásia Oriental, essas instituições demoraram mais para se desenvolver. Em lugar delas, uma longa

Geografi a em Movimento 195

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história de redes sociais, comunidades e instituições informais – com raízes nas migrações milenares do sudeste da China para o Sudeste Asiático – propor-ciona a confi ança que sustenta a inte-gração internacional moderna de bens e dinheiro (ver mapa G3.2).

A integração por vir – o duplo desafi o da distância e da divisão

Olhando para o futuro, a região enfrenta desafi os no seu caminho de rápida integração.

O deslocamento da densidade eco-nômica para o norte coloca um desafi o especial para o Sudeste Asiático. Como ele pode continuar a ser uma força eco-nômica signifi cativa na região? Talvez uma resposta esteja no desenvolvi-mento das cidades globais. As princi-pais metrópoles do Sudeste Asiático precisam se transformar em “lugares

aderentes”, que atraem e retêm o talento global. Enquanto isso, a integração da Índia e da Austrália na região pode alte-rar a dinâmica de lugar, compensando em certa medida o deslocamento para o norte do centro de gravidade econô-mico da Ásia.

Os problemas encontrados pelos países distantes dos principais mercados da região repercutem nas áreas atrasa-das dentro dos países. Pobreza signifi ca-tiva persiste na Ásia Oriental, com altas taxas em áreas como o oeste da China, o sul e o leste das Filipinas, o nordeste da Tailândia e os platôs centrais do Vietnã. A disparidade entre a renda per capita das províncias mais ricas e as mais pobres da China – desprezível sob as dinastias imperiais do passado – saltou para 13.1:1 (comparada a 2.1:1 nos Estados Unidos). Embora muitas pessoas tenham-se mudado para mais perto das áreas prósperas, superar as

distâncias geográfi cas que isolam essas populações ainda é considerado um desafi o importante.

Dentro dos países da Ásia Orien-tal, as pessoas estão se mudando para os mercados, e os mercados estão se desenvolvendo onde as pessoas estão concentradas. A urbanização é extensa e veloz na maioria dos países, e acres-centará talvez 25 milhões de morado-res às cidades por ano nas próximas duas décadas. A maioria dessas pessoas se mudará para cidades de pequeno e médio portes com menos de 1 milhão de habitantes, não para as principais áreas metropolitanas. Administrar essas pequenas cidades de maneira efi ciente e integrá-las às economias nacionais será uma tarefa crucial para reduzir a distân-cia e sustentar o crescimento.

Enquanto isso, a Ásia Oriental ainda enfrenta questões estratégicas sobre a maneira de remover as divisões entre os países da região. O processo a duas velo-cidades da ASEAN mostra como a inte-gração profunda é difícil para os países com rendas e estruturas econômicas diferentes. Nenhum processo formal de integração econômica reúne todas as economias da região. Uma primeira ten-tativa de lançar um diálogo regional foi a Cúpula da Ásia Oriental, em Kuala Lum-pur, na Malásia, em dezembro de 2005. A cúpula pediu estabilidade fi nanceira, segurança energética, erradicação da pobreza e diminuição das disparidades entre os países. Ela ressaltou os desafi os que ainda dividem a região: migração através das fronteiras, consequências ambiental, diversidade dos padrões de governança e entendimento cultural. Outros experimentos interessantes para promover a integração regional estão em marcha, como entre os ASEAN+3, mas a liderança institucional para cons-truir um futuro comum é fragmentária. Mesmo assim, os principais estudiosos observaram que “a emergência de uma Ásia Oriental integrada é inevitável e necessária”.3 O desafi o é descobrir como fazer para que isso ocorra rapidamente.

Contribuição de Homi Kharas.

HONGHONGKONG,KONG,CHINACHINA

CHINACHINAJAJAPPANAN

INDONESIAINDONESIA

MALMALAAYYSIASIA

TAIWAN,TAIWAN,CHINACHINA

SINGAPORESINGAPORE

THAILANDTHAILAND VIETNAMVIETNAM

PHILIPPINESPHILIPPINES

REREPP. OF. OFKOREAKOREA

HONGKONG,CHINA

CHINAJAPÃO

INDONÉSIA

MALÁSIA

TAIWAN,CHINA

CINGAPURA

TAILÂNDIA VIETNÃ

FILIPINAS

REP. OFCORÉIA

>150 100–150

50–100

25–50 10–25

Fluxos bilaterais de importação (US$ bilhões)

100–250>250

75–10010–75

<10

Total das importações(US$ bilhões)

Mapa G3.2 A Ásia integrada: o comércio no final do século XX

Fonte: Gill and Kharas 2007.

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