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1 doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03035 DIVERGÊNCIAS ENTRE CRISTIANISMO ECLESIÁSTICO E GNOSTICISMO NO SÉCULO II MATIAS, Carlos Almir (UEL/CAPES) Introdução Cem anos após a morte de Jesus Cristo, seus seguidores conseguiram levar seus ensinamentos para muito além das fronteiras do mundo judaico, e disseminaram o cristianismo por quase todas as partes do Império Romano. À medida que o movimento crescia, aumentava a diversidade, tanto de idéias, como de práticas, e com isso ocorriam às divergências, devido ao fato de cada grupo ter a sua própria interpretação da mensagem de Cristo. Todos os grupos se diziam fazer parte da verdadeira igreja instituída por Jesus Cristo, todos diziam ter recebido os ensinamentos diretamente dos seus apóstolos, mas as idéias eram tão diversificadas que era difícil saber quem realmente tinha recebido esses ensinamentos. Podemos de forma simplista dividir esses grupos em dois: o primeiro seria a florescente ortodoxia, que pautava-se na idéia de Tradição Apostólica, e que ao longo dos dois primeiros séculos estava consolidando uma hierarquia de bispos, presbíteros e diáconos, e do outro lado, o movimento chamado de gnosticismo, que tinha uma visão dualista do universo e uma imagem diferenciada em relação ao Deus criador do mundo material. Sem dúvida, é uma divisão muito simplificada, mas que serve para nos situar no debate sobre o desenvolvimento da igreja e das seitas gnósticas ao longo do século II. Esse trabalho tem por objetivo, refletir sobre as divergências entre cristãos e cristãos gnósticos ao longo dos séculos II e III, e discutir sobre a resistência dos diversos grupos gnósticos ao processo de hierarquização no qual estava passando a igreja ao longo do século II.

DIVERGÊNCIAS ENTRE CRISTIANISMO ECLESIÁSTICO E ... · Cristo, todos diziam ter recebido os ensinamentos diretamente dos seus apóstolos, ... Sem dúvida, é uma divisão ... pois

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doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03035

DIVERGÊNCIAS ENTRE CRISTIANISMO ECLESIÁSTICO E

GNOSTICISMO NO SÉCULO II

MATIAS, Carlos Almir (UEL/CAPES)

Introdução

Cem anos após a morte de Jesus Cristo, seus seguidores conseguiram levar seus

ensinamentos para muito além das fronteiras do mundo judaico, e disseminaram o

cristianismo por quase todas as partes do Império Romano. À medida que o movimento

crescia, aumentava a diversidade, tanto de idéias, como de práticas, e com isso ocorriam às

divergências, devido ao fato de cada grupo ter a sua própria interpretação da mensagem de

Cristo.

Todos os grupos se diziam fazer parte da verdadeira igreja instituída por Jesus

Cristo, todos diziam ter recebido os ensinamentos diretamente dos seus apóstolos, mas as

idéias eram tão diversificadas que era difícil saber quem realmente tinha recebido esses

ensinamentos.

Podemos de forma simplista dividir esses grupos em dois: o primeiro seria a

florescente ortodoxia, que pautava-se na idéia de Tradição Apostólica, e que ao longo dos

dois primeiros séculos estava consolidando uma hierarquia de bispos, presbíteros e

diáconos, e do outro lado, o movimento chamado de gnosticismo, que tinha uma visão

dualista do universo e uma imagem diferenciada em relação ao Deus criador do mundo

material. Sem dúvida, é uma divisão muito simplificada, mas que serve para nos situar no

debate sobre o desenvolvimento da igreja e das seitas gnósticas ao longo do século II.

Esse trabalho tem por objetivo, refletir sobre as divergências entre cristãos e

cristãos gnósticos ao longo dos séculos II e III, e discutir sobre a resistência dos diversos

grupos gnósticos ao processo de hierarquização no qual estava passando a igreja ao longo

do século II.

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Para essa análise primeiramente se faz necessário contextualizar primeiramente

como se deu o crescimento da igreja ao longo dos primeiros séculos, e refletir também

sobre o surgimento do gnosticismo nesse contexto.

Em seguida vamos analisar como que, essa resistência a hierarquização da igreja

aparece nas fontes gnósticas. Para essa análise recorreremos a dois escritos gnósticos

distintos; o primeiro intitulado “Apocalipse de Pedro” escrito no século III, no qual os

bispos são criticados pelo fato de oprimirem os cristãos gnósticos, que segundo o autor, são

o que realmente possuem o verdadeiro conhecimento dos mistérios divinos, enquanto que

os bispos eram considerados “canais sem água”. O segundo texto é o Evangelho de Judas

escrito no século II pela seita dos cainitas, uma pequena seita gnóstica que venerava Judas

e Caim. Segundo Urbano Zilles (2006, p.906) neste evangelho, Judas Iscariotes aparece,

não tanto como traidor, mas como herói, a traição é interpretada como mistério da

redenção.

Esses dois textos de diferentes tradições gnósticas nos permitirão analisar como

que, diversos círculos gnósticos reagiram ao crescente processo de hierarquização da igreja

nos primeiros séculos. Também vamos refletir sobre as acusações apresentadas pelos

gnósticos contra os lideres da igreja.

1.0 cristianismo eclesiástico

Segundo Geremek (1989, p.167), a cristandade dos primeiros séculos se

concentrou no Mediterrâneo, iniciando-se na Palestina, passando rapidamente para a Síria

e a Ásia Menor e chegando até a Itália, a Ilíria, a Espanha e a Gália. Ainda segundo o

mesmo autor, o período que se delineou após a ação do grupo de discípulos em torno do

Mestre foi à época das comunidades primitivas.

De início, o cristianismo difundiu-se entre as classes urbanas, artesãos, pequenos

comerciantes, homens livres e soldados, sua organização e ideologia eram similares ao dos

agrupamentos religiosos da sociedade hebraica na Judéia. Sua organização inicialmente era

democrática e igualitária, sendo dirigida por missionários errantes e chefes espirituais

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inspirados (e aspirando) ao ensino das verdades da fé, e por vezes, afirma-se que as

mulheres não foram excluídas desse processo. (GEREMEK, 1989, 168).

Tertuliano no final do século II, afirma no seu Apologeticum;” não vivemos longe

do mundo. Freqüentamos o fórum, os banhos públicos, as oficinas, as baticas, os mercados,

as praças publicas. Somos marinheiros, soldados, camponeses, mercadores. “(GEREMEK,

1994, pág.169).

Mas segundo o mesmo autor, desde cedo à cristalização da ossatura interna

reforçara o papel dos guardiões, dos epískopoi, encarregados de administrar a vida comum,

ocupando-se dos bens da comunidade, da administração do culto e do banquete comuns

(ágapai), e do socorro dos pobres. Também havia os presbyteroi, que podem ter precedido

os epískopoi nas comunidades menores.

Na comunidade primitiva, a autoridade dos chefes fundava-se nas suas qualidades

individuais, mas ao mesmo tempo, percebem-se grupos fortemente organizados. As cartas

de Santo Inácio são muito significativas, pois demonstram a preocupação de manter as

comunidades cristãs unidas em torno do bispo, pois este era detentor de carisma pessoal e

espiritual. (GEREMEK, 1989).

O bispo era considerado como o chefe (caput) de sua comunidade, como o “príncipe”, mas ao mesmo tempo como o homem espiritual dotado pelo Espírito Santo das qualidades necessárias para a direção da comunidade. Este foi vista como o sujeito inicial da vida cristã, a realidade primeira da cristandade ekklésia, no seu sentido etimológico e histórico, reconduz à idéia de comunidade, de fraternidade, de assembléia. (GEREMEK, 198, p.169).

Segundo Castro (2008, p.63), o bispo Inácio enfatizava bastante a autoridade do

bispo, e aconselhava os cristãos a obedecê-lo em tudo, pois seguir o bispo era a garantia

que os fiéis estavam seguindo a verdadeira doutrina de Cristo. O bispo era o legitimo

representante da ortodoxia apostólica e a segurança contra as várias heresias que

ameaçavam a Igreja.

Na carta a Policarpo, Inácio aconselha os fiéis a se aproximar dos bispos:

“Aproximai-vos do bispo, para que também Deus se aproxime de vós”[...] ( Carta a

Policarpo, VI, 1, p.67).

Em outro trecho, Policarpo exorta a unidade da igreja, e o cuidado com os

hereges: “Pensa na união de que não há nada melhor” [...] Não te espantem os que parecem

dignos de confiança e têm outro ensino (Carta a Policarpo).

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Na carta endereçada aos Efésios, Inácio também discorre sobre a importância da

unidade e dos fiéis estarem unidos ao bispo, “Convêm caminhar de acordo com o

pensamento de vosso bispo, como já o fazeis”. (Carta aos Efésios, III).

Inácio deixa transparecer sua preocupação com um grupo de hereges que estavam

atuando em Efeso, mas não diz qual grupo estava atuando e qual eram suas idéias.

De fato existem algumas pessoas que dolosamente costumam levar o Nome, mas agem de modo diferente e indigno de Deus, é preciso que eviteis essas pessoas como se fossem feras selvagens. ( Carta aos Efésios, VII).

Para evitar o perigo das heresias, Inácio de Antioquia aconselha o seguinte:

“Que ninguém, portanto, vos engane, assim como também não vos deixeis enganar, sendo todos de Deus. Se não há discórdia entre vós que possa atormentar - vós, então verdadeiramente estais vivendo segundo Deus. (Carta aos Efésios, VIII).

Os escritos de Inácio de Antioquia nos dão sustentação para afirmar que, foi de

fundamental importância o papel dos bispos em suas respectivas comunidades, no que

concerne, a relação com os fiéis, na administração da paróquia, e na administração do

serviço religioso. Além das ações dos bispos em suas comunidades, foi também importante

o contato entre as diversas igrejas, que eram feitos através de cartas, no fortalecimento da

unidade e no combate aos grupos considerados heréticos, pois esse contato gerava

cumplicidade, solidariedade e troca de experiências com relação a questões administrativas

e combate a dissidentes.

Geremek (1989) destaca que o princípio comunitário era muito forte e o bispo,

como guardião da comunidade, dirigia preces a Deus em nome de sua comunidade,

afirmando-se unicamente pelo seu “poder espiritual”.

A noção de “poder espiritual” e de autoridade dos bispos provinha da idéia de

inspiração divina na qual Deus, através de seus sinais lhe mostrou a sua vontade. Nas

comunidades cristãs o poder sobre os fies era atribuído unicamente a Deus, o bispo apenas

intermediava esta relação. (GEREMEK, 1989).

Segundo Geremek:

A história dos primeiros séculos de existência do cristianismo foi, de facto, a da expansão de uma comunidade organizada. O crescimento

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numérico dos cristãos e a convicção de possuírem a verdade determinavam o universalismo da visão cristã. Formando uma ossatura organizativa, o cristianismo empreende uma luta pelo monopólio ideológico religioso. (GEREMEK, 1989, p.170).

A maior parte de nosso conhecimento sobre a igreja vem dos escritos do bispo

Euzébio de Cesaréia, já no século IV Euzébio era um historiador preocupado em

demonstrar que a igreja cristã tinha sido ordenada por Jesus Cristo desde o início e foi

solidamente estabelecida pela primeira geração de apóstolos, pelo fato que só a verdadeira

igreja pode sobreviver as inúmeras tentativas de heresias. (Johnson, 2001 p. 58).

Para Paul Johnson (2001), fica claro que é uma construção com fins ideológicos

para mostrar que a corrente na qual era representante era a principal do cristianismo, ou

seja, uma ortodoxia equilibrada, ao contrário das diversas seitas gnósticas que propagavam

suas idéias errôneas segundo o grupo que se diz ortodoxo.

Podemos entender a noção de Euzébio de tentar mostrar uma ortodoxia que se

iniciava com os apóstolos, pelo fato de que na época havia inúmeras variedades de

cristianismo e era preciso diferenciar quem era ortodoxo e quem era herético. Também

vale lembrar que os cristãos eram perseguidos pelos romanos acusados de perturbar a

ordem pública, mas quem eram ortodoxos, quem eram heréticos ou judeus? Euzébio dá a

entender que se a igreja não combatesse os heréticos, ela própria será perseguida, então por

isso a importância de tentar mostrar uma ortodoxia equilibrada e com bases históricas.

Mas ao contrário dessa construção ideológica de Euzébio de Cesaréia, vamos

perceber a igreja com uma estrutura eclesiástica reconhecida surgiu de uma forma lenta e

gradual, representando um processo de seleção natural, uma sobrevivência espiritual. Paul

Johnson usa a imagem darwiniana para explicar os diferentes movimentos religiosos nos

séculos I e II nos Mediterrâneos oriental e central; segundo ele havia uma multiplicidade

de idéias que lutavam para se propagar, todos os movimentos eram instáveis e se dividiam

e modelavam-se. Jesus havia gerado certas idéias e matrizes que se propagavam

rapidamente por uma vasta área geográfica.

Segundo Silva (2009), a Igreja centraliza-se por volta do ano 200, no qual foi

estabelecida uma hierarquização baseada em três níveis: os bispos, os presbíteros e os

diáconos.

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2.0 o gnosticismo

Mas ao mesmo tempo em que esta ossatura organizativa estava ganhando corpo

ao longo dos dois primeiros séculos, outros grupos menos organizados, que reclamavam

para si as verdades da fé, surgiam e ameaçavam o monopólio ideológico da florescente

ortodoxia. Esses grupos eram conhecidos como gnósticos pelos Padres da Igreja. Segundo

Kochakowicz (1989, p.318), os gnósticos se caracterizavam por terem apresentado ma

versão radical e negativa do mundo material, como criação de uma força má. Ainda,

segundo o mesmo autor, esta versão negativa, parece ter-se difundido imensamente nos

dois primeiros séculos do cristianismo.

A gnose, nome grego que significa conhecimento ou ciência, teve a intenção de se

apresentar como uma ciência de Deus, penetrando os mistérios para revelá-los a seus

adeptos. Os gnósticos consideravam-se os únicos herdeiros da ciência mística, que é a base

de todas as religiões. Assim segundo eles, a gnose da dá o segredo do universo e o segredo

da evolução. (RIBEIRO JUNIOR, 1989, p.25).

De acordo com Ogrady (1994) gnosticismo no seu sentido mais abrangente

significa a crença na salvação pelo conhecimento, isto é, a compreensão da natureza da

realidade. Para os gnósticos, era a compreensão da origem da alma, sua condição neste

mundo e a saída desta condição.

Os gnósticos tinham duas preocupações centrais; a crença em um mundo duplo do

bem e do mal e a existência de um código de verdade secreto transmitido verbalmente, ou

por meio de escritos arcanos. O gnosticismo era uma religião do conhecimento, era esse o

significado da palavra que afirmava deter uma explicação interna para a vida.(JOHNSON,

2001, p.60).

Para Kochakowicz (1989), o gnosticismo surgiu antes de Cristo, mas ao ter

assimilado elementos do cristianismo, essas seitas podem ter sido consideradas heresias

cristãs. Segundo o autor:

Os gnósticos criam que o mundo físico fora criado por um demiurgo malévolo e que as almas humanas, que têm a sua verdadeira morada no Céu, estão aprisionadas nos corpos, Jesus Cristo, que não tinha em si qualquer quota-parte de mal, não podia ter tido um corpo físico nem ter realmente ressuscitado. A libertação espiritual dos homens requer, por um lado, uma vida ascética, que vá contra todos os desejos naturais, e, por

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um outro, um progresso no conhecimento esotérico, apenas acessível a alguns, e que os gnósticos afirmavam possuir. (KOCHACOWICZ, 1989, p.318).

De acordo com uma ampla gama de grupos gnósticos, o deus que criou este

mundo não é o único deus, e nem o mais poderoso ou aquele que sabe tudo. Ele era

considerado uma divindade muito baixa, e geralmente ignorante. (EHRMAN, 2006).

Os gnósticos viram os desastres ao redor de si- terremotos, furacões, enchentes, ondas de fome, secas, epidemias, miséria, sofrimento- e declararam que o mundo não é bom. Mas disseram: não se pode colocar a culpa por esse mundo em Deus! Não, este mundo é um desastre cósmico, e a salvação só virá para aqueles que aprenderem a escapar deste mundo e de suas armadilhas materiais. (EHRMAN, 2006, p.85).

Na visão de Robinson (2007), o gnosticismo cristão pode ter sido uma reação a

crescente institucionalização da Igreja, e sua forma de acomodação ao status quo uma

forma de protesto e de revolta contra uma instituição, que consideravam que cada vez mais

se afastavam do ideal pregado por Jesus, em que homens e mulheres tinham uma vida

simples e igualitária, dedicados a pregação do evangelho. Segundo Pagels (1979), a

principal crítica dos gnósticos contra a “ortodoxia” era a formação de uma hierarquia fixa,

e que cada vez mais diferenciava os clérigos dos leigos.

3.0 a questão da hierarquia

Como já destacamos a principal critica dos gnósticos contra os membros da igreja

era a formação de uma hierarquia que separava os leigos dos clérigos pautada na idéia de

Tradição apostólica defendida por Irineu de Lião em seu livro “Adversus Haereses”,

escrito no século II. Essa idéia consistia basicamente na afirmação de que os apóstolos

formaram as primeiras comunidades cristãs, e repassaram sua autoridade espiritual e seus

ensinamentos aos seus sucessores, no caso, os bispos, e estes a outros e assim

sucessivamente. Por exemplo, o próprio Irineu foi o próximo de uma sucessão que

remontava ao apostolo João e ao seu discípulo Policarpo.

Podemos ainda lembrar de Policarpo, que não somente foi discípulo dos apóstolos e viveu familiarmente com muitos dos que tinham visto o Senhor, mas que pelos próprios apóstolos, foi estabelecido bispo da Ásia na igreja de Esmirna. Nos o vimos na nossa infância, porque teve vida

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longa e era muito velho quando morreu com glorioso e esplendido martírio. (Adv haer, III, 3,4, p.251)

Como os gnósticos reagiam a essa idéia de uma tradição apostólica?

Segundo Pagels (1979) os gnósticos mais importantes sugeriam que os bispos e os

padres ensinavam publicamente apenas as doutrinas elementares, e que eles próprios

ofereciam mais, os mistérios secretos, os ensinamentos superiores, por isso, provavelmente

era natural esse trânsito de fieis entre a igreja e os círculos gnósticos cristãos.

De acordo com Eliade (1979) os gnósticos pressupunham a existência de um

ensinamento esotérico praticado por Jesus e continuado por seus discípulos. Enquanto o

cristianismo eclesiástico construiu a idéia de tradição apostólica, os gnósticos também

abriram mão deste artifício e criaram a tradição gnóstica que consistia na transmissão de

ensinamentos reservados a determinado número de fiéis e transmitidos oralmente.

Essa idéia aparece, por exemplo, no Evangelho de Judas, “Ele começou a falar-lhes

sobre os mistérios além do mundo e o que aconteceria no final”. A partir de uma citação

como esta, os gnósticos podiam afirmar que eles possuíam um conhecimento que os padres

não possuíam. O Evangelho de Judas é um caso a parte pelo fato de que nem os próprios

discípulos de Jesus entendiam os seus mistérios: “Os discípulos disseram a {ele}: “Mestre,

por que ris da {nossa} prece de ação de graças? O que fazemos? {Isto} é o correto”.

Talvez o autor do Evangelho de Judas tenha relacionado os discípulos com os

representantes da Igreja, por isso eles não entendiam o que Jesus dizia, apenas pessoas com

mentes elevadas poderiam entender os mistérios do além mundo, no caso deste evangelho,

essa pessoa era Judas. Se essa idéia de que os discípulos no evangelho de Judas

representam os lideres da igreja estiver correta, esse provavelmente é um caso único e

extremo, pois a maioria dos escritos gnósticos são atribuídos a discípulos como Pedro,

Paulo, Tomé e Filipe, por exemplo.

Para Eliade (1979, p.139) esse esoterismo na abordagem gnóstica tornava-se

suspeito para a hierarquia eclesiástica. Invocando o testemunho de uma tradição apostólica

oral e secreta, certos gnósticos podiam introduzir no cristianismo doutrinas e práticas

radicalmente opostas ao éthos do Evangelho.

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No caso do Evangelho de Judas, Jesus estava rindo dos discípulos pelo fato destes

adorarem o demiurgo, “Não estou rindo de vós. Não estais fazendo isso devido a vossa

própria vontade, mas por que é por meio disto que vosso deus {será}louvado”

Para os gnósticos era fundamental se libertar do demiurgo para assim adorar ao

verdadeiro Deus. Para Pagels (1979) isso era decisivo, pois oferecia uma justificação

teológica para as pessoas se recusarem a obedecer os bispos e os padres. Irineu explica o

efeito desse ritual:

Eles afirmam ter atingido uma perfeição além de todos os poderes e que, portanto, estão livres sob todos os aspectos para agir como quiserem, não tendo ninguém a temer em coisa alguma. Pois sustentam que, por causa da redenção... não podem mais ser compreendidos, ou sequer entendidos pelo juiz. (IRINEU: apud PAGELS, 1979).

No texto Apocalipse de Pedro, também aparece à idéia de que os lideres da igreja

são ignorantes em relação ao verdadeiro conhecimento.

Tenho te dito que essas (pessoas) são cegas e surdas. Então houve as coisas que elas estão te contando em um mistério e as guarda, não as conta aos filhos desta era. Pois eles te blasfemaram nesta geração, pois são ignorantes de ti, entretanto, eles o louvarão em conhecimento. (O APOCALIPSE DE PEDRO).

O que podemos perceber é que para os gnósticos somente aqueles que possuem o

conhecimento sobre os mistérios divinos é que possuem a legitima autoridade espiritual

sobre os fiéis.

4.0 Acusações dos gnósticos contra os cristãos eclesiásticos.

Geralmente quando analisamos os escritos de Irineu de Lião, nos deparamos com

diversas acusações contra os membros das seitas gnósticas, a principal acusação era a de

que, os lideres gnósticos se reuniam com as mulheres promover orgias, pois o caráter

dessas reuniões era secreto, então abria possibilidades para as mais diversas acusações

contra os membros desses grupos. Eles também eram acusados de comer carnes

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sacrificadas aos ídolos e de charlatanismo, ou seja, de querer ganhar dinheiro em troca da

revelação dos mistérios divinos.

Assim consigo entender por que não querem ensinar essas coisas a todos, em publico, mas somente aqueles que podem dar altas gratificações para conhecer tão grandes mistérios [...] Quem não daria tudo o que possui para aprender que os mares, as fontes, os rios e todas as substancias úmidas se originaram das lagrimas de Entimese do eõn tomado pela paixão, a luz do seu sorriso, os elementos corporais do mundo, do seu temor e inquietação? (Adv haer I, 4,3, p.41)

Mas o inverso também ocorria, os gnósticos também acusavam os lideres da igreja

dos mais diversos crimes, entre eles, o de usar o nome de Jesus Cristo para propagar idéias

errôneas, por exemplo.

E eles louvarão os homens que propagam a falsidade, aqueles que virão buscá-lo. E eles abrirão os caminhos ao nome do homem morto, pensando que se tornarão puros. Porém, se tornarão altamente corrompidos e cairão no nome do erro e na mão do demônio, no homem astuto, e no dogma emaranhado, e serão governados hereticamente. (O APOCALIPSE DE PEDRO).

E ainda:

Porem, muitas outras, que se opõem a verdade e que são as mensageiras do erro, estabelecerão os seus erros e suas leis contra estes meus pensamentos puros, com quem observa de uma perspectiva), pensando que o bem e o mal provêm de uma única (fonte). Elas fazem comercio com minha palavra. E propagaram o destino cruel. (O APOCALIPSE DE PEDRO).

O Apocalipse de Pedro foi escrito em um período posterior, por exemplo, ao

Evangelho de Judas, que provavelmente foi escrito no século II, não sabemos nada sobre o

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grupo gnóstico que se utilizava desse escrito, e é significativo o fato dele ser atribuído

justamente a Pedro, o maior representante do cristianismo romano. Nesse escrito:

A perseguição de Jesus Cristo é usada como um modelo que ajuda a compreender a História do Cristianismo antigo, na qual um vestígio da fé gnóstica é oprimido por aqueles que “se autodenominam bispos e diáconos”. (BRASHLER, James; BULLARD, Roger, 2007, p.319).

No texto aparecem no mínimo seis grupos caracterizados como “cegos sem

orientação” que com certeza se referem a grupos da igreja, mas também podem se referir a

outros grupos gnósticos rivais.

E deverá haver outras daquelas que não estão incluídas no nosso número, que se autodenominam bispos e diáconos, como se estivessem recebido suas autoridades de Deus. Elas se curvam diante do julgamento dos lideres. Essas pessoas são canais secos. (O APOCALIPSE DE PEDRO).

No Evangelho de Judas aparecem mais acusações contra os lideres da igreja.

Eles {disseram: “Vimos} uma grande {casa com um grande} altar {dentro dela, e} doze homens- são os sacerdotes- e um nome; e uma multidão de gente estava esperando naquele altar, {até que] os sacerdotes {…e receberam oferendas}. {Mas} só ficaram esperando”. {Jesus disse:} “Como são {os sacerdotes}? Eles {disseram: “Alguns} duas semanas; {alguns} sacrificam os próprios filhos, outros a esposa, em louvor {e} humildade uns para os outros; alguns dormem com homens; alguns estão envolvidos em {matanças}; alguns cometem uma infinidade de pecados e atos de ilegalidade. E os homens que se postam {na frente do} altar invocam o teu {nome}, e em todos os atos de sua deficiência, os sacrifícios estão ardendo {...}. (O EVANGELHO DE JUDAS).

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Geralmente os romanos acreditavam que os cristãos cometiam todos esses atos,

inclusive por isso foram algumas vezes violentamente perseguidos. O que chama a atenção

é que, no “ O Apocalipse de Pedro” os membros da igreja são acusados apenas de não ter

conhecimento sobre os mistérios divinos e de ensinar idéias erradas, no Evangelho de

Judas, as acusações são mais contundentes. Será que esse grupo fez essas acusações

inspiradas nas acusações que os romanos faziam aos cristãos, ou foi apenas uma forma de

devolver as acusações da ortodoxia.

Vejamos a resposta de Jesus ao sonho dos discípulos:

Jesus lhes disse: “Por que estais inquietos? Verdadeiramente eu vos digo, todos os sacerdotes que se postam perante aquele altar invocam o meu nome. Mais uma vez vos digo, meu nome foi escrito neste {...} das gerações das estrelas por meio das gerações humanas. {E eles} plantaram árvores sem frutos, em meu nome, de maneira vergonhosa. Jesus lhes disse: “Aquele que vistes recebendo as oferendas no altar- é isto quem sois. É aquele o deus a quem servis, e sois aqueles doze homens que vistes. O gado levado para lá é as oferendas que vistes- são as muitas pessoas que vós guiais pelo mau caminho perante aquele altar. {…} se erguerá e fará uso do meu nome desta maneira, e gerações de devotos permanecerão leais a ele. Depois dele, outro homem d{os fornicadores} vai se erguer ali, e outro dos assassinos de crianças {vai} se erguer ali, e outro daqueles que dormem com homens, e daqueles que se abstêm, e do restante do povo de imundice e ilegalidade e erro, e aqueles que dizem: ‘Somos tais como anjos’; eles são as estrelas que levam tudo a sua conclusão. (O EVANGELHO DE JUDAS).

Esse Evangelho é citado na obra de Irineu:

´Dizem que Judas, sabia exatamente todas estas coisas e por ser o único dos discípulos que conhecia a verdade, cumpriu o mistério da traição e que por meio dele foram destruídas todas as coisas celestes e terrestres. (Adv haer, I, 31,1, p. 122).

De acordo com Ehrman (2006) um dos diversos grupos gnósticos citados por

Irineu foi o chamado de o dos cainitas. É difícil saber se esse grupo existiu ou se Irineu

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inventou esse nome. Mas o que sabemos, é que segundo Irineu esse grupo utilizava-se do

Evangelho de Judas.

O grupo recebeu esse nome por causa de Caim, o primeiro filho de Adão e Eva,

personagem bíblico que matou seu irmão mais novo Abel por inveja. De acordo com

Irineu, os cainitas levavam sua oposição ao antigo testamento ao extremo se opondo a

qualquer coisa que esse deus mandava e se opondo aos seus aliados, neste caso Abel.

Parece contraditório esse evangelho ser considerado um texto setiano, pelo fato

de que, nos outros escritos setianos, Set, aparece como o primeiro ser de uma raça

escolhida, após o assassinato de Abel por parte de seu irmão Caim. Ao que tudo indica,

esse grupo que se utilizava do Evangelho de Judas era um dos grupos mais ferozes e

ferrenhos opositores da igreja no século II, pois nem os apóstolos escaparam a sua

oposição. Eles preferiram adorar Judas como o único que realmente entendeu e

compreendeu a mensagem de Jesus.

Judas possivelmente era um estereotipo do homem gnóstico, que tem o

conhecimento dentro de si, mas que acabava sofrendo muito com isso, principalmente com

a perseguição dos lideres da igreja que compreendiam apenas as leis do demiurgo. Judas

lhe disse: “Na minha visão, eu me enxerguei enquanto os doze discípulos me apedrejavam

e {me} perseguiam {com inclemência}.

Considerações finais

Este artigo buscou refletir sobre os pontos de divergências entre os cristãos

ortodoxos e os cristãos gnósticos ao longo dos primeiros séculos do cristianismo.

Primeiramente refletimos sobre a idéia de Tradição apostólica pregada por Irineu de Lião

que considerava os membros da igreja os únicos dignos de pregar, os gnósticos seriam

aberrações posteriores. Mas vimos também que, em contrapartida, os gnósticos criaram a

sua própria idéia de tradição, na qual os discípulos transmitiram secretamente de forma

oral ensinamentos para um número limitado de pessoas iluminadas.

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Em seguida foi discutida a questão da formação da hierarquia da igreja, e como

os gnósticos reagiram a esse processo. Para os gnósticos, o poder espiritual não estava

pautado na tradição, mas sim, no conhecimento das coisas divinas, no conhecimento sobre

a origem da alma, em suma, no conhecimento sobre o verdadeiro Deus. Os diversos grupos

gnósticos consideravam os lideres da igreja, como canais sem água, pelo fato deles não

conhecerem o verdadeiro deus e adorarem apenas ao demiurgo.

Por fim, analisamos algumas acusações dos gnósticos contra os membros da

igreja, tais como, de ensinar idéias errôneas aos seus fiéis, de fazerem comercio com o

nome de Deus, e diversas outras acusações tais como, fornicação, assassinatos e diversos

atos sexuais considerados ilícitos.

Esse trabalho buscou mostrar que, ao contrario da imagem tranqüila de uma

igreja que cresce forte e unida, que haviam diversas outras formas de cristianismo tentando

se propagar e buscando seu espaço no contexto religioso do século II.

REFERÊNCIAS

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