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G. W. F. Hegel. “Textos Dialéticos”. Selecionados e traduzidos, com Introdução e Notas, pelo professor DJACIR MENEZES. 1969, Zahar Editores RJ. EXISTÊNCIA NÃO É PREDICADO Essa observação contém o mesmo argumento que constitui o momento capital da crítica kantiana da prova ontológica de Deus, acerca da qual todavia só se considera a diferença nela ocorrente entre o Ser e Nada em geral e de determinado Ser e não-Ser. É sabido que naquela aludida prova estava pressuposto o conceito de um Ser (Wesen) em que se encontram todas as realidades, bem como a existência, que também era considerada como uma das realidades. A crítica kantiana insistia sobretudo nesse ponto, que a existência ou o ser (o que significa aqui a mesma coisa), não é de nenhum modo propriedade ou predicado real, quer dizer, não é conceito de algo que se possa agregar (hinzukommen) ao conceito de uma coisa. Com isso, Kant quer dizer o ser (existir) não é uma determinação de conteúdo. Daí resulta, continua Kant, que o possível não contém nada mais que o real; cem táleres reais não contém nem um átomo mais do que cem táleres possíveis; a saber, aqueles não têm nenhuma outra determinação de conteúdo que estes. Para este conteúdo considerado isoladamente é indiferente, na verdade, existir ou não existir; nele não se encontra qualquer diferença entre o ser e o não-ser; esta diferença não o afeta em geral absolutamente; os cem táleres não diminuem de valor pelo fato de não existirem ou ganham maior valor se existem. Uma diferença pode originar-se somente de outra parte. “Ao contrário”, recorda Kant, “há mais em meu patrimônio, com cem táleres reais do que com seu conceito puro ou com sua possibilidade. Pois, o objeto, em sua realidade, não está apenas contido analiticamente em meu conceito, mas se acrescenta sinteticamente em meu conceito (que é uma determinação de minha situação), sem que, pelo fato deste existir fora de meu conceito, estes mesmos cem táleres pensados se aumentem minimamente.” Aqui se pressupõem duas situações diversas, para ficarmos no âmbito das expressões kantianas, que são um tanto confusas e pesadas: uma, a que Kant denomina conceito, sob que se compreenderá a representação, e outra, que é a situação patrimonial. Tanto para uma como para outra, para o patrimônio como para a representação, cem táleres são uma determinação de conteúdo, ou diga-se com Kant, “eles se integram no conteúdo sinteticamente”. Eu, como possuidor de cem táleres ou como não possuidor deles, ou ainda eu como o que se representa cem táleres ou não, o conteúdo é, na verdade, distinto. Dito de forma mais geral: as abstrações do Ser e do Nada deixam ambas de ser abstrações quando adquirem um conteúdo determinado: então o ser é uma realidade, o ser determinado de cem táleres; o nada é uma negação, o não-ser determinado deles. Esta determinação mesma do conteúdo, os cem táleres, ainda tomada de modo abstrato, é em um dos casos, sem variação, o mesmo que o outro. Porém, quando o ser é considerado tomado como situação patrimonial, os cem táleres entram em relação com uma situação e para esta não é indiferente tal determinação, que eles exprimem; seu ser ou não-ser é apenas uma mudança; eles são transpostos para a esfera do Ser determinado. Quando, porém, contra a unidade do Ser e do Nada se insiste, entretanto, seja indiferente isso ou aquilo (os cem táleres) existam ou não existam, então há uma ilusão, pois reduzimos simplesmente a diferença do Ser e não-Ser, se tenho ou não tenho os cem táleres uma ilusão baseada, corno mostramos, na abstração unilateral, que omite (weglässt) a existência determinada (besti’mnmt Dasein) que ocorre em tais exemplos, e estabelece simplesmente o Ser e o não-Ser, da mesma sorte que, inversamente, muda o abstrato Ser e Nada, que deve ser entendido, em um determinado Ser e Nada, isto é, em uma

Djacir Menezes - Hegel Textos Dialéticos Selecionados e Traduzidos Com Introdução e Notas

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G. W. F. Hegel. “Textos Dialéticos”. Selecionados e traduzidos, com Introdução e Notas,

pelo professor DJACIR MENEZES. 1969, Zahar Editores RJ.

EXISTÊNCIA NÃO É PREDICADO

Essa observação contém o mesmo argumento que constitui o momento capital da

crítica kantiana da prova ontológica de Deus, acerca da qual todavia só se considera a

diferença nela ocorrente entre o Ser e Nada em geral e de determinado Ser e não-Ser. É

sabido que naquela aludida prova estava pressuposto o conceito de um Ser (Wesen) em que

se encontram todas as realidades, bem como a existência, que também era considerada como

uma das realidades. A crítica kantiana insistia sobretudo nesse ponto, que a existência ou o

ser (o que significa aqui a mesma coisa), não é de nenhum modo propriedade ou predicado

real, quer dizer, não é conceito de algo que se possa agregar (hinzukommen) ao conceito de

uma coisa. Com isso, Kant quer dizer o ser (existir) não é uma determinação de conteúdo. —

Daí resulta, continua Kant, que o possível não contém nada mais que o real; cem táleres reais

não contém nem um átomo mais do que cem táleres possíveis; — a saber, aqueles não têm

nenhuma outra determinação de conteúdo que estes. Para este conteúdo considerado

isoladamente é indiferente, na verdade, existir ou não existir; nele não se encontra qualquer

diferença entre o ser e o não-ser; esta diferença não o afeta em geral absolutamente; os cem

táleres não diminuem de valor pelo fato de não existirem ou ganham maior valor se existem.

Uma diferença pode originar-se somente de outra parte. — “Ao contrário”, recorda Kant, “há

mais em meu patrimônio, com cem táleres reais do que com seu conceito puro ou com sua

possibilidade. Pois, o objeto, em sua realidade, não está apenas contido analiticamente em

meu conceito, mas se acrescenta sinteticamente em meu conceito (que é uma determinação

de minha situação), sem que, pelo fato deste existir fora de meu conceito, estes mesmos cem

táleres pensados se aumentem minimamente.”

Aqui se pressupõem duas situações diversas, para ficarmos no âmbito das expressões

kantianas, que são um tanto confusas e pesadas: uma, a que Kant denomina conceito, sob que

se compreenderá a representação, e outra, que é a situação patrimonial. Tanto para uma como

para outra, para o patrimônio como para a representação, cem táleres são uma determinação

de conteúdo, ou diga-se com Kant, “eles se integram no conteúdo sinteticamente”. Eu, como

possuidor de cem táleres ou como não possuidor deles, ou ainda eu como o que se representa

cem táleres ou não, o conteúdo é, na verdade, distinto. Dito de forma mais geral: as

abstrações do Ser e do Nada deixam ambas de ser abstrações quando adquirem um conteúdo

determinado: então o ser é uma realidade, o ser determinado de cem táleres; o nada é uma

negação, o não-ser determinado deles. Esta determinação mesma do conteúdo, os cem táleres,

ainda tomada de modo abstrato, é em um dos casos, sem variação, o mesmo que o outro.

Porém, quando o ser é considerado tomado como situação patrimonial, os cem táleres entram

em relação com uma situação e para esta não é indiferente tal determinação, que eles

exprimem; seu ser ou não-ser é apenas uma mudança; eles são transpostos para a esfera do

Ser determinado. Quando, porém, contra a unidade do Ser e do Nada se insiste, entretanto,

seja indiferente isso ou aquilo (os cem táleres) existam ou não existam, então há uma ilusão,

pois reduzimos simplesmente a diferença do Ser e não-Ser, se tenho ou não tenho os cem

táleres — uma ilusão baseada, corno mostramos, na abstração unilateral, que omite

(weglässt) a existência determinada (besti’mnmt Dasein) que ocorre em tais exemplos, e

estabelece simplesmente o Ser e o não-Ser, da mesma sorte que, inversamente, muda o

abstrato Ser e Nada, que deve ser entendido, em um determinado Ser e Nada, isto é, em uma

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existência. Somente a existência (Dasein) contém a diferença real de Ser e Nada, a saber, um

algo e um outro. — Essa diferença real se apresenta ante a representação em lugar do Ser

abstrato e do Nada puro e de sua diferença somente pensada (nur gemeinten Unterschiede).

Conforme se exprime Kant, penetra então “por meio da existência algo no contexto da

experiência total”, “alcançamos por isso mais um objeto da percepção, porém nosso conceito

do objeto não se acha enriquecido por tal meio”. — Isso quer dizer, como decorre dos

esclarecimentos anteriores, que, graças à existência, essencialmente porque algo representa

um Ser determinado, encontra-se este algo em conexão com outros e entre os outros também

com um sujeito percipiente (mit einem Wahrnehmenden). — O conceito de cem táleres, diz

Kant, não se acha aumentado por meio da percepção. O conceito significa aqui os já aludidos

cem táleres, representados isoladamente. Nesse estado isolado, eles constituem um conteúdo

empírico, porém recortados (abgeschnitten), sem conexão e determinação diante de outro; a

forma da identidade consigo mesmo lhes tira a referência a outro e fá-los indiferente ao fato

de serem percebidos ou não. Porém, esse nomeado conceito dos cem táleres é um conceito

falso; a forma da mera referência a si mesma não faz parte de tal conteúdo limitado, finito; é

uma forma que lhe foi imposta e emprestada pelo entendimento subjetivo; cem táleres não

são algo de imutável e encerrado em si próprio (nicht em sich auf sich Beziehendes), sim

coisa variável e perecedoira.

O pensamento ou representação, não tendo por objeto senão um Ser determinado, uma

existência, deve regredir ao mencionado começo da ciência, qual fez Parmênides, que

esclareceu e elevou sua própria representação e a dos tempos seguintes ao pensamento puro,

ao Ser como tal e assim criou o elemento da ciência. — O que é primeiro na ciência deve

mostrar-se historicamente como primeiro. Devemos considerar o Um ou o Ser dos eleatas

como o primeiro da ciência do pensamento. A água e outros princípios materiais semelhantes

devem por certo ser considerados como universais, porém, enquanto materiais, não são

pensamentos puros; os números nao representam nem o pensamento primeiro simples, nem o

que permanece em si (noch der hei sich bleiibende), mas o que é totalmente exterior a si

próprio.

A remissão (Zuriickweisung) do ser finito particular para o Ser como tal em sua

universalidade totalmente abstrata tem de ser encarada como exigência primaríssima tanto

teórica quanto prática. Vale dizer que, quando se suprimam os cem táleres, supressão que

produz em meu patrimônio uma diferença, se os tenho ou não, e ainda mais se eu existo ou

não, se outra coisa exista ou não — mesmo sem mencionar que pode haver patrimônio a que

sejam indiferentes a tal posse dos cem táleres — então importa recordar que o homem tem

que se elevar, em seu modo de pensar (in seiner Gesinnung), a essa universalidade abstrata,

na qual lhe seja indiferente, de fato, que os cem táleres — qualquer que seja a relação

quantitativa que possam ter com sua situação patrimonial — existam ou não existam, tanto

quanto lhe seja também indiferente que ele próprio exista ou não, isto é, se ache ou não na

vida finita (por tal circunstância se entenda um ser determinado, etc. —mesmo si fractus

iliabatur orbis, impavidum ferient ruinae,* consoante disse um romano; e nessa indiferença

ainda mais deve encontrar-se um cristão.

Importa ainda assinalar a imediata conexão em que consiste a elevação sobre os cem

táleres e as coisas finitas em geral com a prova ontológica e a citada crítica kantiana à

mesma. Tal crítica se tornou plausível em geral por causa de seu exemplo popular; quem não

sabe que cem táleres reais são diferentes de cem táleres puramente possíveis? E que eles

constituem uma diferença em meu patrimônio? E porque essa diferença para os cem táleres

resulte evidente, então difere o conceito entre eles, isto é, entre a determinação do conteúdo

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como possibilidade vazia e o ser; logo, também o conceito de Deus difere do seu Ser e como

não posso extrair da possibilidade dos cem táleres sua realidade, do mesmo modo não posso

“perquirir” (“herausklauben”) no conceito de Deus a sua existência; dessa “perquirição”,

porém, da existência de Deus do seu conceito, deve consistir a prova ontológica. Se, pois, é

verdadeiro que o conceito e o Ser são coisas completamente diferentes, mais verdadeiro ainda

é que Deus difere quanto aos cem táleres e as outras coisas finitas. A definição das coisas

finitas consiste em que, nelas, são diferentes o conceito e o Ser, em que conceito e realidade

são separáveis, a alma e o corpo, e que, portanto, elas são transitórias e morais. Pelo

contrário, a definição abstrata de Deus é precisamente esta: que seu conceito e seu Ser são

inseparados e inseparáveis. A verdadeira crítica das categorias e da razão consiste

exatamente nisso: instruir o conhecimento acerca dessa diferença e afastá-lo da aplicação das

determinações e relações do finito a Deus.

(Ciência da Lógica)