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    227Cad. Cedes, Campinas, vol. 25, n. 66, p. 227-247, maio/ago. 2005Disponvel em

    Helena Copetti Callai

    APRENDENDO A LER O MUNDO:A GEOGRAFIA NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO

    FUNDAMENTAL

    HELENACOPETTI CALLAI*

    A histria no se escreve fora do espao, e no h sociedade

    a-espacial. O espao, ele mesmo, social. (Milton Santos)H uma pedagogia indiscutvel na materialidade do espao.(Paulo Freire)

    por isso que, hoje, seja qual for a escala, o territrio cons-titui o melhor revelador de situaes no apenas conjuntu-rais, mas estruturais e de crise. (Milton Santos)

    RESUMO: Este artigo discute a possibilidade e a importncia de seaprender geografia nas sries iniciais do ensino fundamental, a par-tir da leitura do mundo, da vida e do espao vivido. Para tanto,aborda o papel da geografia nesse nvel do ensino e a necessidadede se iniciar, nessa fase, um processo de alfabetizao cartogrfica.Considera tambm os contedos da geografia presentes nos curr-culos escolares como uma das maneiras de contribuir na alfabetiza-o da criana. Tendo em vista esse objetivo, discute as exignciastericas e metodolgicas da geografia para referenciar o ensino e aaprendizagem.

    Palavras-chave: Geografia. Ensino. Aprendizagem. Sries iniciais e espao.

    LEARNINGTOREADTHEWORLD:

    GEOGRAPHYINTHEFIRSTYEARSOFBASICSCHOOLING

    ABSTRACT: This paper discuss the possibility and the importanceof learning geography at elementary school, based on the reading

    * Doutora em geografia e professora do Departamento de Cincias Sociais e do Programa de Ps-Graduao em Educao nas Cincias (mestrado) da Universidade Regional do Noroeste doEstado do Rio Grande do Sul (UNIJU). E-mail: [email protected]

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    Aprendendo a ler o mundo: a geografia nos anos iniciais do ensino fundamental

    of the world and life and of the space in which one lives. It thusexplores the role of geography at elementary school and the need

    to start a cartographic alphabetization. Considering considers thegeographic subjects taught in the early school years as one of theways to contribute to such child alphabetization, it then discussesthe theoretical and methodological requirements of geography re-lated to the teaching-learning process.

    Key words: Geography. Teaching. Learning. Elementary School andSpace.

    ste texto trata da possibilidade de a criana estudar a geografia noincio de sua escolarizao. A educao no Brasil passa por profun-das mudanas, talvez no tantas quanto a sociedade atual exigiria,

    mas sem dvida significativas. Nesse contexto, a geografia, como compo-nente curricular (tradicional) na escola bsica, tambm se modifica, sejapor fora das polticas pblicas (PCNs, por exemplo), seja por exigncias daprpria cincia. Assim, pensar o papel da geografia na educao bsica tor-na-se significativo, uma vez que se considera o todo desse nvel de ensino ea presena de contedos e objetivos que envolvem, inclusive, as suas sries

    iniciais e a educao infantil.Consideramos que a leitura do mundo fundamental para que to-

    dos ns, que vivemos em sociedade, possamos exercitar nossa cidadania.Queremos tratar aqui sobre qual a possibilidade de aprender a ler, apren-dendo a ler o mundo; e escrever, aprendendo a escrever o mundo. Paratanto, buscamos refletir sobre o papel da geografia na escola, em especialno ensino fundamental, no momento do processo de alfabetizao.

    Uma forma de fazer a leitura do mundo por meio da leitura doespao, o qual traz em si todas as marcas da vida dos homens. Desse modo,ler o mundo vai muito alm da leitura cartogrfica, cujas representaesrefletem as realidades territoriais, por vezes distorcidas por conta das pro-jees cartogrficas adotadas. Fazer a leitura do mundo no fazer umaleitura apenas do mapa, ou pelo mapa, embora ele seja muito importante. fazer a leitura do mundo da vida, construdo cotidianamente e que ex-pressa tanto as nossas utopias, como os limites que nos so postos, sejameles do mbito da natureza, sejam do mbito da sociedade (culturais, po-

    lticos, econmicos).Ler o mundo da vida, ler o espao e compreender que as paisagens

    que podemos ver so resultado da vida em sociedade, dos homens na bus-

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    ca da sua sobrevivncia e da satisfao das suas necessidades. Em linhasgerais, esse o papel da geografia na escola. Refletir sobre as possibilidades

    que representa, no processo de alfabetizao, o ensino de geografia, passa aser importante para quem quer pensar, entender e propor a geografia comoum componente curricular significativo. Presente em toda a educao b-sica, mais do que a definio dos contedos com que trabalha, funda-mental que se tenha clareza do que se pretende com o ensino de geografia,de quais objetivos lhe cabem.

    Tendo em vista que as reordenaes da educao bsica (no quadrodas polticas pblicas para a educao) consideram aspectos significativos

    de vrias cincias, traduzidos em componentes curriculares absorvidos nacomplexidade da aula de forma integrada, na busca de um objetivo que o primeiro aprender a ler e a escrever; considerando tambm o que efeti-vamente acontece na sala de aula, realidade que se conhece intermdio devrias publicaes, pesquisas, diagnsticos e inclusive da observao direta,particularmente por conta de uma pesquisa realizada (O ensino de estu-dos sociais na pr-escola e nas sries iniciais); levando em conta ainda osavanos da geografia como cincia e sua histria como disciplina escolar,buscamos vislumbrar o que possvel fazer com esse componente curricularnos anos iniciais da escolaridade. E isso nos remete a uma questo que po-deria ensejar definir o papel da geografia nessa etapa da educao bsica.

    Qual o lugar da geografia nas sries iniciais?

    Aprender a pensar o espao. E, para isso, necessrio aprender a lero espao, que significa criar condies para que a criana leia o espao vi-vido (Castelar, 2000, p. 30). Fazer essa leitura demanda uma srie de con-dies, que podem ser resumidas na necessidade de se realizar uma alfabe-tizao cartogrfica, e esse um processo que se inicia quando a crianareconhece os lugares, conseguindo identificar as paisagens (idem, ibid.).Para tanto, ela precisa saber olhar, observar, descrever, registrar e analisar.

    Como fazer isso? certo que, da forma como a geografia tem sidotratada na escola tradicionalmente, ela no tem muito a contribuir.Aquela geografia chamada tradicional, caracterizada pela enumerao dedados geogrficos e que trabalha espaos fragmentados, em geral operacom questes desconexas, isolando-as no interior de si mesmas, em vezde consider-las no contexto de um espao geogrfico complexo, que omundo da vida.

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    Aprendendo a ler o mundo: a geografia nos anos iniciais do ensino fundamental

    Uma prtica tradicional na Escola Fundamental, adotada nas aulasde estudos sociais, mas desenvolvida no apenas sob sua gide, o estudo do

    meio considerando que se deve partir do prprio sujeito, estudando a crian-a particularmente, a sua vida, a sua famlia, a escola, a rua, o bairro, a cida-de, e, assim, ir sucessivamente ampliando, espacialmente, aquilo que ocontedo a ser trabalhado. So os Crculos Concntricos, que se sucedemnuma seqncia linear, do mais simples e prximo ao mais distante. Na rea-lidade, esse procedimento constitui mais um problema do que uma solu-o, pois o mundo extremamente complexo e, em sua dinamicidade, noacolhe os sujeitos em crculos que se ampliam sucessivamente do mais pr-

    ximo para o mais distante. Num mundo em que a informao veloz e atin-ge a todos, em todos os lugares, no mesmo instante, no se pode fechar aspossibilidades em um estudo a partir de crculos hierarquizados. Ainda comrelao velocidade da informao, deve-se considerar que no a distnciao que vai impedir ou retardar o acesso informao, mas condies econ-micas e/ou culturais, inscritas num processo social que exclui algumas (oumuitas) pessoas.

    A superao dessa lgica de que a criana aprende por nveis

    hierarquizados no caso do espao, por nveis espaciais que vo se amplian-do sucessivamente requer o estabelecimento, pelo menos, de uma clarezade termos. No estamos considerando que o estudo do meio incuo e des-ligado da realidade. Pelo contrrio, ele pode constituir uma interessante pos-sibilidade de ensino e aprendizagem. O que se est questionando uma pos-tura terica que d a referncia, a forma de encaminhamento, postura queconsidera um espao fragmentado e circular, o qual se amplia sucessivamen-te. Partindo do eu, da famlia, cria-se uma proposio antropocntrica ou melhor, egocntrica ao redor do eu. O problema no partir do eu,mas sim fragmentar os espaos que se sucedem e que passam a ser conside-rados isoladamente, como se tudo se explicasse naquele e por aquele lugarmesmo. A dinmica do mundo dada por outros fatores. E o desafio com-preender o eu no mundo, considerando a sua complexidade atual.

    A referncia terica buscada tanto na geografia a qual consideraque o espao socialmente construdo pelo trabalho e pelas formas de vidados homens como na Pedagogia a qual considera que a aprendizagem social e acontece na interlocuo dos sujeitos (estejam eles presentes fisi-

    camente, ocupando um espao prximo, estejam eles distantes, mantendocontatos virtuais, ou sob a hegemonia de determinada conduo poltica,econmica).

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    Helena Copetti Callai

    Como superar o positivismo da geografia e da educao, em um mun-do que est mudado e continua mudando aceleradamente? O que seria pos-

    svel fazer para engendrar uma nova forma de ensinar o mundo?Se os estudos do meio, considerados a partir do princpio dos crcu-

    los concntricos, no se mostram apropriados para fazer a leitura do espa-o que deveria conter a possibilidade de perceber o movimento, perce-ber a cotidianidade da vida dos vrios sujeitos e a sua expresso por meiodos grupos de que participam, construindo o seu espao quais as alter-nativas possveis? Quais os referenciais tericos que nos permitiriam cons-truir mtodos de anlise do espao geogrfico capazes de permitir que os

    alunos se reconheam no interior desse espao? E que se sintam efetiva-mente produzindo esse espao? E, nesse sentido, quais as prticas sociais(em especial as escolares) que se apresentariam como eficazes?

    O pedaggico e/na geografia

    Para romper com a prtica tradicional da sala de aula, no adiantaapenas a vontade do professor. preciso que haja concepes terico-

    metodolgicas capazes de permitir o reconhecimento do saber do outro, acapacidade de ler o mundo da vida e reconhecer a sua dinamicidade, su-perando o que est posto como verdade absoluta. preciso trabalhar coma possibilidade de encontrar formas de compreender o mundo, produzin-do um conhecimento que legtimo.

    O professor, as suas concepes de educao e de geografia, quepodem fazer a diferena. E a interlocuo dos saberes (Marques, 1993)que pode permitir esse avano. O conhecimento geogrfico produzidona escola pode ser o explicitamento do dilogo entre a interioridade dosindivduos e a exterioridade das condies do espao geogrfico que oscondiciona (Rego, 2000, p. 8).

    A clareza terico-metodolgica fundamental para que o professorpossa contextualizar os seus saberes, os dos seus alunos, e os de todo omundo sua volta. E, no nvel de ensino em que a criana est processan-do a sua alfabetizao, o ideal seria que houvesse uma unidade em que sesupere a fragmentao das disciplinas e das responsabilidades, em prticasorientadas por e para linhas e eixos temticos e conceituais interdiscipli-nares, no apenas uma justaposio de disciplinas enclausuradas em si mes-mas, mas de uma maneira que, em cada uma se impliquem as demais re-gies do saber (Marques, 1993).

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    Aprendendo a ler o mundo: a geografia nos anos iniciais do ensino fundamental

    Nesse caminho em que tudo leva a aprender a ler e a escrever, acredi-tamos que seja fundamental a interligao de todos os componentes curri-

    culares, se somando na busca do objetivo. Mas numa trajetria em que ocontedo seja, em especial, o mundo da vida dos sujeitos envolvidos, reco-nhecendo a histria de cada um e a histria do grupo, combinando a cadeiados conceitos e categorias de anlise com a trama das experincias e da cul-tura mesma do grupo envolvido (Marques, 1993, p. 111).

    nesse contexto que a possibilidade desse cruzamento entre geo-grafia e educao torna-se sobremodo importante num mundo em crise,crise expressa, entre outros modos, nas concretudes do espao vivido atra-

    vs dos quais as relaes sociais se geografizam (Rego, 2000, p. 8). Nosdemais nveis de ensino, a questo de entrelaar geografia e educao podeno aparecer com tamanha relevncia, mas, nos anos iniciais, impossvelela no ser considerada. E se, no exerccio de pensar e procurar caminhosda geografia para as crianas, fosse encontrada a chave para desvendar aspossibilidades de construo de uma geografia escolar mais conseqente?Seria uma reflexo interessante.

    Como fazer, ento, para superar um ensino tradicional, e um pro-

    fessor igualmente tradicional, trabalhando com contedos alheios ao mun-do da vida? Como trabalhar com a realidade sem seguir de forma linear asescalas, mas superpondo-as, interligando-as, para conseguir dar conta dacomplexidade do mundo? Como olhar o local com os olhos do mundo,como ver o lugar do/no mundo?

    Partindo dos pressupostos tericos que balizam nossas concepesde educao e de geografia, como proceder para ensinar geografia nas sri-es iniciais passa a ser o desafio. E, sendo fiis a esses referenciais, a busca

    deve estar centrada no pressuposto bsico de que, para alm da leitura dapalavra, fundamental que a criana consiga fazer a leitura do mundo.

    Alfabetizao e alfabetizao espacial

    Como realizar a leitura da palavra por meio da leitura do mundo? Ecomo fazer a leitura do mundo por meio da leitura da palavra? Esse podeser o desafio para pensar um aprendizado da alfabetizao que seja signifi-

    cativo. Partindo do fato de que a gente l o mundo ainda muito antes deler a palavra, a principal questo exercitar a prtica de fazer a leitura domundo. E pode-se dizer que isso nasce com a criana. Desde que a criana

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    nasce, os seus contatos com o mundo, seja por intermdio da me, sejapelo esforo da prpria criana, buscam a conquista de um espao. Um

    espao que no mais o ventre materno onde ela est protegida, mas umespao amplo, cheio de desafios e variados obstculos, e que, para ser con-quistado, precisa ser conhecido e compreendido. E isso a criana vai fazen-do, superando os desafios e ampliando cada vez mais a sua viso linear domundo. Quer dizer, em termos absolutos, ela consegue ir avanando a suacapacidade de reconhecimento e de percepo. Ao caminhar, correr, brin-car, ela est interagindo com um espao que social, est ampliando o seumundo e reconhecendo a complexidade dele.

    Ao chegar escola, ela vai aprender a ler as palavras, mas qual o sig-nificado destas, se no forem para compreender mais e melhor o prpriomundo? A par do prazer de saber ler a palavra e saber escrev-la, podemosacrescentar o desafio de ter prazer em compreender o significado social dapalavra o que significa ler para alm da palavra em si, percebendo o con-tedo social que ela traz, e, mais ainda, aprender a produzir o prprio pen-samento que ser expresso por meio da escrita. E se, quando se l a pala-vra, lendo o mundo, est-se lendo o espao, possvel produzir o prprio

    pensamento, fazendo a representao do espao em que se vive. Compre-ender a escrita como o resultado do pensamento elaborado particularmen-te por cada pessoa diferente de simplesmente escrever copiando. Eaprender a representar o espao muito mais que simplesmente olhar ummapa, uma planta cartogrfica. Saber como fazer a representao grficasignifica compreender que no percurso do processo da representao, ao sefazerem escolhas, definem-se as distores. As formas de projeocartogrfica e o lugar de onde se olha o espao para representar no soneutros, nem aleatrios. Trazem consigo limitaes e, muitas vezes, inte-resses, que importa manter ou esconder.

    O espao no neutro, e a noo de espao que a criana desenvol-ve no um processo natural e aleatrio. A noo de espao construdasocialmente e a criana vai ampliando e complexificando o seu espao vivi-do concretamente. A capacidade de percepo e a possibilidade de sua re-presentao um desafio que motiva a criana a desencadear a procura, aaprender a ser curiosa, para entender o que acontece ao seu redor, e noser simplesmente espectadora da vida. O exerccio da curiosidade convo-

    ca a imaginao, a intuio, as emoes, a capacidade de conjecturar, decomparar na busca da perfilizao do objeto ou do achado de sua razode ser (Freire, 2001, p. 98).

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    O aprendizado da criana tambm complexo e amplo. Interessa-nospensar como ela aprende e que significados d ao espao, como desenvolve essa

    noo, a partir da sua vivncia e do desenvolvimento do seu pensamento. Im-porta aqui compreender o significado de saber ler o espao, e toda informa-o fornecida pelo lugar ou grupo social no qual a criana vive altamenteinstigadora de novas descobertas (Castelar, 2000, p. 32). Tais descobertas po-dero se relacionar com as questes de sua prpria vida, as relaes entre asvrias pessoas do lugar, ou a questes especficas do ambiente. O importante poder trabalhar, no momento da alfabetizao, com a capacidade de ler o es-pao, com o saber ler a aparncia das paisagens e desenvolver a capacidade de

    ler os significados que elas expressam. Um lugar sempre cheio de histria eexpressa/mostra o resultado das relaes que se estabelecem entre as pessoas, osgrupos e tambm das relaes entre eles e a natureza. Por exemplo, Por queno aproveitar a experincia que tm os alunos de viver em reas da cidadedescuidadas pelo poder pblico para discutir, por exemplo, a poluio dosriachos e dos crregos e os baixos nveis de bem-estar das populaes, os lixese os riscos que oferecem sade das gentes? (Freire, 2001, p. 33).

    Se os alunos vivem essa situao ou vivem em locais que apresentamesse tipo de problema, a partir de tais problemas que devem ser feitas a

    leitura, a representao, e que deve ser instigada a curiosidade para avanarna investigao e compreender o que ocorre. Mas no preciso restringir adiscusso questo social, pode-se discutir questes que so especficas docontedo da disciplina Geografia, por exemplo, em vez de ditar para o alu-no, ou mesmo ler em um livro, ou responder a perguntas a partir de umtexto, realizar a leitura do espao. E a partir da trabalhar com os conceitosenvolvidos no caso, rio, riacho, crrego, lenol fretico, lixo, poluio, de-gradao ambiental, degradao urbana, cidade, riscos ambientais. A leitura

    do espao permite que se faa o aprender da leitura da palavra, aprendendoa ler o mundo. A partir da a geografia pode trabalhar com os conceitos queso prprios do seu contedo.

    Pois bem, se esse o sentido que supomos para o processo de alfabe-tizao, cabe-nos, alm de constatar, avaliar o envolvimento da geografiacomo um dos componentes curriculares, reconhecendo o sentido de sua pre-sena nas sries iniciais.

    Como ler o mundo da vida?Sem dvida, partindo do lugar, considerando a realidade concreta do

    espao vivido. no cotidiano da prpria vivncia que as coisas vo aconte-

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    cendo e, assim, configurando o espao, dando feio ao lugar. Um lugar queno apenas um quadro de vida, mas um espao vivido, isto , de experin-

    cia sempre renovada, o que permite, ao mesmo tempo, a reavaliao das he-ranas e a indagao sobre o presente e o futuro. A existncia naquele espaoexerce um papel revelador sobre o mundo (Santos, 2000, p. 114).

    Ao partir de uma concepo de lugar, deve-se considerar que ele nose restringe aos seus prprios limites, nem do ponto das fronteiras fsicas,nem do ponto de vista das aes e suas ligaes externas, mas que um lu-gar comporta em si o mundo. Os lugares, so, pois, o mundo, que elesreproduzem de modos especficos, individuais, diversos. Eles so singula-

    res, mas tambm so globais, manifestaes da totalidade-mundo, da qualso formas particulares (idem, ibid. p. 112).Do ponto de vista da geografia, esta a perspectiva para se estudar

    o espao: olhando em volta, percebendo o que existe, sabendo analisar aspaisagens como o momento instantneo de uma histria que vai aconte-cendo. Essa a leitura do mundo da vida, mas que no se esgotametodologicamente nas caractersticas de uma geografia viva e atual, as-sentada em categorias de anlise que supem a histria em si, o movimen-

    to dos grupos sociais e a sua interligao por meio da ao ou at de inte-resses envolvidos. H que se pensar tambm no paradigma de educaocapaz de acolher, ou de referenciar, esse tipo de anlise. Exige-se, em to-dos os estgios da prtica educativa, que se combine a cadeia dos conceitose categorias de anlise com a trama das experincias e da cultura mesmodo grupo envolvido (Marques, 1993, p. 111).

    Nesse processo de aprender a ler, lendo o espao, no h uma regra,um mtodo estabelecido a priori, nem a possibilidade de elencar tcnicas ca-pazes de dar conta de cumprir o exigido: articulam-se a teoria e a prtica, ospressupostos tico-polticos da educao, os contedos conceituais e tcnicasdo ensino, com as caractersticas grupais e pessoais dos sujeitos em interao,nas condies concretas, conjunturais, de operacionalizao (idem, ibid.).

    Pedagogicamente, portanto, o que importa o estabelecimento e oexerccio contnuo do dilogo com os outros (professor, colegas, pessoal daescola, famlia, pessoas do convvio); com o espao (que no apenas o pal-co, mas tambm possui vida e movimento, uma vez que atrai, possibilita, acessvel ao externo); com a natureza e com a sociedade, que se interpene-

    tram na produo e geram a configurao do espao.Essa capacidade de interlocuo (de saber ouvir, falar, observar, ana-

    lisar, compreender) pode ser desenvolvida desde a educao infantil, e tor-

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    Aprendendo a ler o mundo: a geografia nos anos iniciais do ensino fundamental

    nar-se assim um mtodo de estudo de fazer a leitura do mundo. Ao partirda vivncia concreta, busca-se a ampliao do espao da criana com a apren-

    dizagem da leitura desses espaos e, como recurso, desenvolve-se a capaci-dade de aprender a pensar o espao, desenvolvendo raciocnios geogrficos,incorporando habilidades e construindo conceitos.

    Compreender o lugar em que se vive encaminha-nos a conhecer a his-tria do lugar e, assim, a procurar entender o que ali acontece. Nenhumlugar neutro, pelo contrrio, os lugares so repletos de histria e situam-seconcretamente em um tempo e em um espao fisicamente delimitado. Aspessoas que vivem em um lugar esto historicamente situadas e contextua-

    lizadas no mundo. Assim, o lugar no pode ser considerado/entendido iso-ladamente. O espao em que vivemos o resultado da histria de nossasvidas. Ao mesmo tempo em que ele o palco onde se sucedem os fenme-nos, ele tambm ator/autor, uma vez que oferece condies, pe limites,cria possibilidades.

    Cada lugar combina variveis de tempos diferentes. No existe um lu-gar onde tudo seja novo ou onde tudo seja velho. A situao umacombinao de elementos com idades diferentes. O arranjo de um lu-

    gar, atravs da aceitao ou da rejeio do novo, vai depender da aodos fatores de organizao existentes nesse lugar, quais sejam, o espa-o, a poltica, a economia, o social, o cultural. (Santos, 1988, p. 98).

    Esse o meio em que vivemos, em que nosso aluno comea a ter asua vivncia fora da sua casa e da famlia. No naturalmente constitudo, construdo no dia-a-dia. O lugar

    o ponto de encontro de lgicas que trabalham em diferentes escalas,reveladoras de nveis diversos, e s vezes contrastantes, na busca da efi-ccia e do lucro, no uso de tecnologias do capital e do trabalho. O lu-gar o ponto de encontro de interesses longnquos e prximos, locaise globais. (Santos, 1994, p. 18-19)

    Como considerar o desafio de, ao estudar o lugar, poder compreendero mundo? Como dar conta de tecer a trama de relaes no plano da com-preenso, assim como est tecida a trama de interesses e de lgicas que ori-entam e estruturam os espaos nossa volta? Quais as possibilidades de, su-perando as concepes tradicionais, encontrar a forma de entender a palavra

    em todo o seu significado, e compreender o mundo que rodeia a criana? importante que se considere, na educao, a nova realidade do

    mundo atual, cujas caractersticas implicam que a velocidade da informa-

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    o supera qualquer distncia, e que todos os problemas do cotidiano seentrelaam em nveis complexos.

    No se espera que uma criana de sete anos possa compreender toda acomplexidade das relaes do mundo com o seu lugar de convvio evice-versa. No entanto, priv-las de estabelecer hipteses, observar, des-crever, representar e construir suas explicaes uma prtica que nocondiz mais com o mundo atual e uma Educao voltada para a cida-dania. (Straforini, 2001, p. 56-57)

    O olhar espacial

    Fazer a anlise geogrfica significa dar conta de estudar, analisar,compreender o mundo com o olhar espacial. Esta a nossa especificidade por intermdio do olhar espacial, procurar compreender o mundo davida, entender as dinmicas sociais, como se do as relaes entre os ho-mens e quais as limitaes/condies/possibilidades econmicas e polticasque interferem.

    O olhar espacial supe desencadear o estudo de determinada realidadesocial verificando as marcas inscritas nesse espao. O modo como se dis-tribuem os fenmenos e a disposio espacial que assumem representammuitas questes, que por no serem visveis tm que ser descortinadas,analisadas atravs daquilo que a organizao espacial est mostrando.(Callai, 2000, p. 94)

    A observao e a anlise dos espaos construdos encaminha paracompreender como a materializao/concretizao das relaes sociais con-

    figuram um lugar, bem como este coloca limitaes ou possibilidades sociedade. Portanto a contribuio da geografia no nvel inicial do ensino,no qual a criana passa pelo processo de alfabetizao, no se d como aces-sria, mas como um componente significativo (assim como as demais re-as) na busca do ler e do escrever. Ao ler o espao, a criana estar lendo asua prpria histria, representada concretamente pelo que resulta das for-as sociais e, particularmente, pela vivncia de seus antepassados e dos gru-pos com os quais convive atualmente.

    A complexidade do mundo da vida, que se estrutura e se torna visvelpor meio das suas arrumaes no espao, exige certos critrios para que sejafeita a anlise. Tais critrios decorrem dos referenciais adotados, consideran-do-se a educao e a geografia, ambas em sua dimenso epistemolgica.

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    Aprendendo a ler o mundo: a geografia nos anos iniciais do ensino fundamental

    Desenvolver o olhar espacial, portanto, construir um mtodo quepossa dar conta de fazer a leitura da vida que estamos vivendo, a partir do

    que pode ser percebido no espao construdo. O olhar espacial supe de-sencadear o estudo de determinada realidade social verificando as marcas ins-critas nesse espao (idem, ibid.). Essas marcas refletem toda uma histria, eescondem atrs de si as relaes e o jogo de foras que foi travado para final-mente assumirem estas feies. A organizao espacial representa muitas coi-sas que, por no estarem visveis, precisam ser descortinadas.

    A leitura da paisagem

    So as paisagens que mostram, por meio de sua aparncia, a histriada populao que ali vive, os recursos naturais de que dispe e a forma comose utiliza de tais recursos (idem, ibid., p. 97). A paisagem no formadaapenas de volumes, mas tambm de cores, movimentos, odores, sons, etc.(...) e a percepo sempre um processo seletivo de apreenso (Santos, 1988,p. 62). Importa ento considerar as caractersticas culturais dos povos e osinteresses envolvidos para a realizao da leitura da paisagem. E esta ser, por-tanto, sempre a apreenso que o sujeito faz, e no a verdade absoluta, neutra.Assim como a paisagem est cheia de historicidade, o sujeito que a l tam-bm tem o seu processo de seleo do que observa. So verdades construdas,mas enraizadas nas histrias das pessoas, dos grupos que ali vivem.

    Desse modo, fazer a leitura da paisagem pode ser uma forma interes-sante de desvendar a histria do espao considerado, quer dizer, a histria daspessoas que ali vivem. O que a paisagem mostra o resultado do que aconte-ceu ali. A materializao do ocorrido transforma em visvel, perceptvel o acon-tecido. A dinamicidade das relaes sociais e das relaes do Homem com aNatureza, desencadeia um jogo de foras, cujos resultados so concretos e vis-veis. Descrever e analisar estas paisagens supe, portanto, buscar as explicaesque tal retrato nos permite. Os objetos, as construes, expressos nas ruas,nos prdios, nas praas, nos monumentos, podem ser frios e objetivos, porma histria deles cheia de tenso, de sons, de luzes, de odores, e de sentimen-tos. Portanto ler a paisagem exige critrios a serem considerados e seguidos.

    Escala de anlise

    A escala de anlise um cuidado que requer toda a ateno. Partin-do de que impossvel esconder das crianas o mundo, quando as infor-

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    maes lhes so passadas no exato instante do acontecimento (Straforini,2001, p. 56), nenhum estudo pode ficar restrito ao mbito espacial em

    que est acontecendo. Pois nada acontece de forma isolada. Ou tem algu-ma relao com a natureza ou tem interferncias de outras dimenses deescala que no esto prximas fisicamente (em termos de espao absoluto),mas que podero estar muito mais intensamente relacionadas por contada origem e dos motivos do acontecimento. J a definio/delimitao deque recorte do espao considerar um motivo de escolha da escala. Consi-derando ento que a escala no algo dado, mas resultado de opes/esco-lhas, elas esto estreitamente ligadas aos objetivos que temos para o ensi-

    no, para a pesquisa no/do lugar.Buscar as explicaes para aquilo que o espao est mostrando requer,portanto, que se tenha o cuidado de no simplificar as questes, mas ao con-trrio, tentar situ-las em um contexto de investigao e estabelecer as inter-relaes. Assim, nos referimos a uma escala social, que traz em si uma di-menso histrica e que permite que sejam evidenciadas as motivaes,explicitadas ou no, de cada um dos eventos. Nesse movimento importan-te perceber que os fenmenos da natureza se configuram em outra escala,que da natureza mesmo e que vai pautar os acontecimentos, ao contrriode uma escala histrica, intrinsecamente ligada ao tempo e ao espao de nos-sas vidas. Sob a interferncia dos interesses humanos, a natureza tambmalterada, muitas vezes de maneira extremamente rpida. Nosso entendimen-to de que essa uma questo social fundamental para no nos submeter-mos s idias de destino, ou de azares ambientais, como se a natureza nosofresse alteraes a partir dos interesses da sociedade.

    Enfim, so necessrias interligaes dos vrios nveis de anlise, paraque se possa compreender que nada acontece por acaso, e que os motivosde muitos acontecimentos podem estar, s vezes, prximos, mas podemestar tambm muito distantes.

    O estudo do lugar

    Quando entro em uma sala de aula devo estar sendo um ser aber-to a indagaes, curiosidade, s perguntas dos alunos, a suas inibies;um ser crtico e inquiridor, inquieto em face da tarefa que tenho a de

    ensinar e no a de transferir conhecimento (Freire, 2001, p. 520). Omundo, na Era da Informao, est totalmente globalizado. Mas essaglobalizao, por meio das questes que so globais, se concretiza nos di-

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    versos lugares, em cada lugar em especial, e com diferentes formas de apre-sentao. Da a fora do lugar (Milton Santos), pois cada lugar tem sua

    histria, seus homens e suas capacidades de se organizar e pensar alternati-vas para si. Essa uma realidade tensa, um dinamismo que se est recri-ando a cada momento, relao permanentemente estvel, e onde globaliza-o e localizao, globalizao e fragmentao so termos de uma dialticaque se refaz com freqncia (Santos, 1996, p. 252).

    Assim, ler o mundo a partir do lugar o desafio. Como desenvolvera curiosidade na criana para que ela possa avanar na sua leitura do mun-do? Freire nos diz que O exerccio da curiosidade a faz mais criticamente

    curiosa, mais metodicamente perseguidora do seu objeto. Quanto mais acuriosidade espontnea se intensifica, mas, sobretudo se rigoriza, tantomais epistemolgica ela vai se tornando (Freire, 2001, p. 97).

    A partir dos interesses da criana, podem-se desencadear diversas ati-vidades para buscar e realizar o exerccio da palavra e o esforo de ler omundo. Poderamos apontar para o estudo de determinadas realidades,que, se consideradas como uma situao geogrfica, seriam desenvolvidas apartir do reconhecimento do lugar, pode ser da rua, da casa da famlia,

    pode ser do bairro, ou da escola, ou mesmo da cidade. O fundamental saber do que se pode partir, e se a curiosidade for exercitada na sala deaula, as crianas mesmas podem definir o que estudar. Na verdade, o con-tedo que ser considerado no de modo algum o mais importante. Omais significativo saber de parte do professor o que se quer. Aprender aler, por meio do componente curricular da geografia, lendo o mundo. Lero lugar, para compreender o mundo em que vivemos. Pode-se partir detemticas, de problemas e, a partir da, aguar a curiosidade infantil, tra-ando os caminhos a seguir. Essas problemticas devem ser formuladas apartir da realidade do que acontece e do que existe no mundo e, ao seremanalisadas, devem considerar as dimenses de espao e de tempo. Querdizer, precisam ser situadas em um espao que ter as suas caractersticasinternas e uma contextualizao, as quais lhe daro marcas especficas. Eprecisam ainda ser situadas em um tempo, porque todas as aes dos ho-mens so histricas e, como tal, carregam as marcas de seu tempo.

    Os conceitos

    Os conceitos so fundamentais para que se possam analisar os terri-trios em geral e os lugares especficos, e vo sendo construdos ao longo

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    do processo de anlise. Quais so, ento, os conceitos imprescindveis parase fazer a anlise geogrfica? E como trabalh-los?

    Seja como cincia, seja como matria de ensino, a geografia desen-volveu uma linguagem, um corpo conceitual que acabou por constituir-senuma linguagem geogrfica (Cavalcanti, 1998, p. 88). Ao se apropriardessa linguagem, a criana desencadear um processo de leitura do mun-do, com o olhar espacial a que j nos referimos. Cavalcanti coloca aindaque Essa linguagem est permeada por conceitos que so requisitos para aanlise dos fenmenos do ponto de vista geogrfico (idem, ibid.). Essalinguagem ser incorporada pelo aluno medida que ele consiga operar

    racionalmente com os conceitos prprios da geografia.Ao ler o espao, desencadeia-se o processo de conhecimento da rea-

    lidade que vivida cotidianamente. Constri-se o conceito, que uma abs-trao da realidade, formado a partir da realidade em si, a partir da com-preenso do lugar concreto, de onde se extraem elementos para pensar omundo (ao construir a nossa histria e o nosso espao). Nesse caminho, aoobservar o lugar especfico e confront-lo com outros lugares, tem incioum processo de abstrao que se assenta entre o real aparente, visvel, per-

    ceptvel e o concreto pensado na elaborao do que est sendo vivido.

    As habilidades

    As habilidades devem ser desenvolvidas ao longo das atividades quevo sendo realizadas. Algumas habilidades so gerais, que todo sujeito pre-cisa desenvolver para viver e construir suas aprendizagens. Outras expres-sam a especificidade de ler o espao. Desenvolver essas habilidades fun-damental, pois, sem elas, torna-se difcil fazer abstraes. Elas sodesenvolvidas desde que a criana entra para o convvio escolar e, mesmoassim, de um modo geral, os alunos apresentam grandes dificuldades paradar conta delas. As hipteses que explicam tais dificuldades variam, masparece que elas esto centradas no modo como se realizam as atividadesque permitiriam a sua exercitao durante a vida escolar, em especial nosprimeiros anos.

    Assim como importante ter claro quais os conceitos fundamentaisna geografia, tambm necessrio saber quais as habilidades bsicas para aanlise geogrfica. A respeito desse aspecto, deve-se considerar que existeuma linguagem especfica, que consideramos demandar uma alfabetizaocartogrfica.

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    A cultura

    A cultura de cada povo, de cada sociedade apresenta suas marcas etem ligaes com a possibilidade de os sujeitos concretos dessas sociedadespossurem uma identidade, no sentido de pertencimento ao lugar. Umaidentidade que se d entre os prprios homens e com o lugar o territ-rio em que esto. A questo da identidade cultural, de que fazem parte adimenso individual e a de classe dos educandos cujo respeito absoluta-mente fundamental na prtica educativa progressista, problema que nopode ser desprezado (Freire, 2001, p. 46). Pensar o prprio espao enca-

    minha a exercitar a anlise e a crtica constante sobre as formas de vida e ascondies que existem. E possibilita ao sujeito efetivamente se situar nomundo.

    Uma das tarefas mais importantes da prtica educativo-crtica propi-ciar as condies em que os educandos em suas relaes uns com os ou-tros ensaiam a experincia profunda de assumir-se. Assumir-se como sersocial e histrico, como ser pensante, comunicante, transformador, cria-dor, realizador de sonhos (...). (idem, ibid.)

    Reconhecer, enfim, a sua identidade e o seu pertencimento fun-damental para qualquer um entender-se como sujeito que pode ter, emsuas mos, a definio dos caminhos da sua vida, percebendo os limitesque lhe so postos pelo mundo e as possibilidades de produzir as condi-es para sua vida.

    Nesse sentido, estudar o lugar, como contrapartida ao movimentode homogeneizao produzido pela mdia e pela ao concreta das gran-des empresas, pode ser interessante por dois motivos. Primeiro, pelo fatode que, mesmo em um mundo globalizado, as idias universais s se con-cretizam nos lugares, e no no global, no geral. Depois, porque assim sepode perceber que nossa ao pode ser efetiva e eficaz, dependendo do jogode foras em que se insere, e que os homens podem no ser apenas cobaiasou partes de uma estrutura na qual no tm o direito de pensar e de to-mar atitudes que lhes paream adequadas. Ao se reconhecer o lugar comoparte de nossa vida, como um dado que nos permite criar uma identidadee termos a idia de pertencimento, ser possvel agir para o grupo, e no

    apenas para servir a interesses externos.O espao retrata a nova realidade de supresso de fronteiras, de cri-

    ao de regionalidades especficas para promover o desenvolvimento, ou

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    para o aumento das condies efetivas a se colocar nos mercados. Espacial-mente, essa realidade se expressa tanto no que tange aos povos com seus

    territrios, quanto aos espaos segregados nas cidades. um fenmeno deexcluso que se expressa no espao de forma muito marcante; seja nos lu-gares em que as pessoas, despojadas de tudo que lhes seja essencial para teruma vida digna, vivem em condies humilhantes; seja onde as pessoas,embora vivendo com dignidade, no tm condies de se fazer ouvir, dedecidir os seus caminhos.

    Nessa perspectiva, torna-se interessante investigar qual a identida-de desses lugares, a partir dos interesses das pessoas que ali vivem. Reco-

    nhecer os valores, as crenas, as tradies e investigar os significados quetm para as pessoas que vivem ali. A cultura, que d esse conjunto de ca-ractersticas s pessoas e aos povos, se expressa no espao por meio de mar-cas que configuram as paisagens.

    Cada lugar tem uma fora, uma energia que lhe prpria e quedecorre do que ali acontece. Ela no vem de fora, nem dada pela nature-za. resultado de uma construo social que se d na vivncia diria doshomens que habitam o lugar, resultado do grau de conscincia das pessoas

    como sujeitos do mundo onde vivem e dos grupos sociais que constituemao longo de sua trajetria de vida. resultado do somatrio de temposcurtos e de tempos longos que deixam marcas no espao.

    A cartografia na leitura do espao

    Para ler o espao, torna-se necessrio um outro processo de alfabe-tizao. Ou talvez seja melhor considerar que, dentro do processoalfabetizador, alm das letras, das palavras e dos nmeros, existe uma ou-tra linguagem, que a linguagem cartogrfica. Ao ensinar geografia, deve-se dar prioridade construo dos conceitos pela ao da criana, toman-do como referncia as suas observaes do lugar de vivncia para que sepossa formalizar conceitos geogrficos por meio da linguagem cartogrfica(Castelar, 2000, p. 31). Ser isso possvel? Seria o incio do processo deescolaridade ou uma questo que pode permear todo o ensino da geo-grafia? Independentemente da resposta que encontrarmos, parece-nos cla-

    ro que a alfabetizao cartogrfica base para a aprendizagem da geografia.Se ela no ocorrer no incio da escolaridade, dever acontecer em algumoutro momento. Nas aulas de geografia preciso estar atento a isso.

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    A capacidade de representao do espao vivido, se esta for desen-volvida assentada na realidade concreta da criana, pode contribuir em

    muito para que ela seja alfabetizada para saber ler o mundo. Quando par-te do processo de alfabetizao utilizando a linguagem cartogrfica, o ensi-no de geografia se torna mais significativo, pois se criam condies para aleitura das representaes grficas que a criana faz do mundo (idem,ibid., p. 35).

    Uma das formas possveis de ler o espao por meio dos mapas,que so a representao cartogrfica de um determinado espao. Estudio-sos do ensino/aprendizagem da cartografia consideram que, para o sujeito

    ser capaz de ler de forma crtica o espao, necessrio tanto que ele saibafazer a leitura do espao real/concreto como que ele seja capaz de fazer aleitura de sua representao, o mapa. , inclusive, de comum entendimen-to que ter melhores condies para ler o mapa aquele que sabe fazer omapa. Desenhar trajetos, percursos, plantas da sala de aula, da casa, doptio da escola pode ser o incio do trabalho do aluno com as formas derepresentao do espao. So atividades que, de um modo geral, as crian-as dos anos iniciais da escolarizao realizam, mas nunca demais lem-

    brar que o interessante que as faam apoiadas nos dados concretos e reaise no imaginando/fantasiando. Quer dizer, tentar representar o que existede fato.

    Assim, no basta saber ler o espao. importante tambm saberrepresent-lo, o que exige determinadas regras. Para fazer um mapa, pormais simples que ele seja, a criana poder realizar atividades de observa-o e de representao. Ao fazer um desenho de um lugar que lhe seja co-nhecido ou mesmo muito familiar, ela estar fazendo escolhas e tornando

    mais rigorosa a sua observao. Poder, desse modo, dar-se conta de aspec-tos que no eram percebidos, poder levantar novas hipteses para explicaro que existe, poder fazer crticas e at encontrar solues para as quais lheparecia impossvel contribuir. A capacidade de o aluno fazer a representa-o de um determinado espao significa muito mais do que estar apren-dendo geografia: pode ser um exerccio que permitir a construo do seuconhecimento para alm da realidade que est sendo representada, e esti-mula o desenvolvimento da criatividade, o que, de resto, lhe significativopara a prpria vida e no apenas para aprender, simplesmente.

    Para saber ler o mapa, so necessrias determinadas habilidades, taiscomo reconhecer escalas, saber decodificar as legendas, ter senso de orien-

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    tao. A capacidade de entender um espao tridimensional representadode forma bidimensional, aliado concepo de que a terra redonda e,

    portanto, no h em cima nem em baixo, poder ser desenvolvida a par-tir da realizao de diversas atividades de mapeamento (Callai, 2000, p.105-106).

    Essas habilidades so adquiridas a partir da exercitao continuadaem desenvolver a lateralidade, a orientao, o sentido de referncia em re-lao a si prprio e em relao aos outros, alm do significado de distnciae de tamanhos. Elas podem ser simplesmente exercitadas, procurando-sealcanar o seu domnio. Mas o que nos interessa no simplesmente ter

    domnios, que o capacitem a viver no mundo, claro, mas poder, por meiodessa exercitao, dar conta de aprender a ler e viver o mundo. Aprender apensar e reconhecer o espao vivido. No simplesmente como espao quepode ser neutro, ou estranho a si prprio, mas pensar um espao no senti-do de se apropriar das capacidades que lhe permitiro compreender omundo, reconhecer a sua fora, e a fora do lugar em que vive. Aprenderpara viver, mas aprendendo a buscar a transformao capaz de tornar o es-pao mais justo, pelo acesso aos bens do mundo e da vida. Aprender a

    construir a sua cidadania.Aprender a observar, descrever, comparar, estabelecer relaes e cor-relaes, tirar concluses, fazer snteses so habilidades necessrias para avida cotidiana. Por intermdio da geografia, que encaminhe a estudar, co-nhecer e representar os espaos vividos, essas habilidades podero serdesencadeadas. Mas sempre como caminhos, como instrumentos para darconta de algo maior.

    Por meio da geografia, nas aulas dos anos iniciais do ensino funda-

    mental, podemos encontrar uma maneira interessante de conhecer o mun-do, de nos reconhecermos como cidados e de sermos agentes atuantes naconstruo do espao em que vivemos. E os nossos alunos precisam apren-der a fazer as anlises geogrficas. E conhecer o seu mundo, o lugar emque vivem, para poder compreender o que so os processos de excluso so-cial e a seletividade dos espaos.

    Compreender o lugar da diferena neste mundo, que se diz e se querglobalizado e tende a homogeneizar a todos e a tudo, um passo para

    perceber que ainda h o que fazer, e no se pode, nem precisa, ficar sesperando que as ditas determinaes aconteam. curioso notar que, nasanlises e estudos em geral, at bem pouco tempo, as determinaes

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    advinham basicamente da natureza. Hoje se quer fazer crer que a globali-zao define tudo, inclusive o desrespeito para com a natureza.

    Construir os referenciais bsicos para a anlise espacial ter clarezaepistemolgica da nossa cincia. E, para saber fazer uma educao com sen-tido de aprender para ser sujeito da sua vida, necessrio fundamentar epis-temologicamente a pedagogia.

    Aprender a ler, aprendendo a ler o mundo da vida, e usando paratanto as possibilidades metodolgicas da geografia, pretender que nessemovimento se consiga construir uma metodologia para estudar esse com-ponente curricular, e tambm que o aluno consiga usar esse aprendizado

    metodolgico para estudar, alm do seu espao vivido o lugar em queest outros lugares, que podem ser distantes de sua vida diria, mas queesto interferindo na dinmica geral das sociedades e, ao mesmo tempo,na sua vida ou de seu grupo em particular.

    Enfim, a geografia, nos anos iniciais da escolarizao, pode, e mui-to, contribuir com o aprendizado da alfabetizao, uma vez que encami-nha para aprender a ler o mundo.

    Recebido em maio de 2005 e aprovado em julho de 2005.

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