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355 Do cinismo antigo ao cinismo moderno: O que é racionalidade cínica? Gabriel Vertulli 1 Resumo: Tomando como ponto de partida a definição do cinismo dada por Peter Sloterdijk em seu livro “Crítica da razão cínica” – isto é, o cinismo como “falsa consciência esclarecida” objetivo explorar a retomada dos motivos cínicos que ganham força no iluminismo, avançam no século seguinte a partir das obras de Nietzsche e passam a ter notoriedade nas últimas décadas como objeto de estudo com o trabalho do chamado “último” Foucault. A partir desses autores, viso apresentar uma história do cinismo e compreender o que ficou convencionalmente conhecido como “racionalidade cínica”. Palavras-chave: Cinismo. Peter Sloterdijk. Michel Foucault. Historiografia da Filosofia. Teoria da História. Abstract: Taking as a starting point the definition of cynicism given by Peter Sloterdijk in his book “Critique of cynical reason” – that is, cynicism as “false enlightened consciousness” – I aim to explore the resumption of cynical motives that gain evidence in the Enlightenment, advance in the next century from the works of Nietzsche and become known in recent decades as an object of study with the work of the so-called “lastFoucault. From these authors, I intend to present a history of cynicism and understand what was conventionally known as cynical rationality. Keywords: Cynicism. Peter Sloterdijk. Michel Foucault. Historiography of Philosophy. Theory of History. O que é cinismo? Qual a diferença entre cinismo antigo e moderno? O que é racionalidade cínica? Essas são algumas das perguntas que perpassam nossa pesquisa. Não temos a intenção de esgotá-las no espaço que nos é aqui reservado, pretendemos apenas acenar para possíveis respostas. O nosso ponto de partida é a definição do cinismo dada por Peter Sloterdijk o cinismo como “falsa consciência esclarecida2 mas não podemos nos limitar a este primeiro passo, pois acreditamos que uma definição pronta não é capaz de trazer à tona as diferenças entre cinismo antigo e moderno. Com efeito, objetivamos explorar a 1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). CNPq. [email protected] 2 SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. São Paulo: Estação Liberdade, 2012, p. 34.

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355

Do cinismo antigo ao cinismo moderno: O que é racionalidade cínica?

Gabriel Vertulli1

Resumo: Tomando como ponto de partida a definição do cinismo dada por Peter Sloterdijk

em seu livro “Crítica da razão cínica” – isto é, o cinismo como “falsa consciência esclarecida”

– objetivo explorar a retomada dos motivos cínicos que ganham força no iluminismo,

avançam no século seguinte a partir das obras de Nietzsche e passam a ter notoriedade nas

últimas décadas como objeto de estudo com o trabalho do chamado “último” Foucault. A

partir desses autores, viso apresentar uma história do cinismo e compreender o que ficou

convencionalmente conhecido como “racionalidade cínica”.

Palavras-chave: Cinismo. Peter Sloterdijk. Michel Foucault. Historiografia da Filosofia.

Teoria da História.

Abstract: Taking as a starting point the definition of cynicism given by Peter Sloterdijk in his

book “Critique of cynical reason” – that is, cynicism as “false enlightened consciousness” – I

aim to explore the resumption of cynical motives that gain evidence in the Enlightenment,

advance in the next century from the works of Nietzsche and become known in recent decades

as an object of study with the work of the so-called “last” Foucault. From these authors, I

intend to present a history of cynicism and understand what was conventionally known as

“cynical rationality”.

Keywords: Cynicism. Peter Sloterdijk. Michel Foucault. Historiography of Philosophy.

Theory of History.

O que é cinismo? Qual a diferença entre cinismo antigo e moderno? O que é

racionalidade cínica? Essas são algumas das perguntas que perpassam nossa pesquisa. Não

temos a intenção de esgotá-las no espaço que nos é aqui reservado, pretendemos apenas

acenar para possíveis respostas. O nosso ponto de partida é a definição do cinismo dada por

Peter Sloterdijk – o cinismo como “falsa consciência esclarecida”2 – mas não podemos nos

limitar a este primeiro passo, pois acreditamos que uma definição pronta não é capaz de trazer

à tona as diferenças entre cinismo antigo e moderno. Com efeito, objetivamos explorar a

1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da Pontifícia Universidade Católica

do Rio de Janeiro (PUC-Rio). CNPq. [email protected] 2 SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. São Paulo: Estação Liberdade, 2012, p. 34.

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retomada dos motivos cínicos que ganham força no iluminismo, avançam no século seguinte a

partir das obras de Nietzsche e passam a ter notoriedade nas últimas décadas como objeto de

estudo com o trabalho do chamado “último” Foucault.

É sabido que a “Crítica da razão cínica” está explicitamente em diálogo com a teoria

crítica, quer dizer, Sloterdijk herda várias das questões levantadas por Adorno e Horkheimer.3

Não obstante, acreditamos que seja possível usar alguns argumentos destes dois últimos para

ir na contra mão da tese de Sloterdijk de que o cinismo moderno é uma forma degenerada do

cinismo antigo. Ao forjar a noção de “dialética cínica”, objetivamos demostrar que a auto

degeneração do cinismo é, na verdade, uma estratégia de manutenção que opera já no interior

do cinismo antigo. À vista disso, vamos problematizar o diálogo entre a “Crítica da Razão

cínica” e a “Dialética do esclarecimento” e, dessa forma, criar o solo necessário para fazer

uma “taxonomia do cinismo”.

Entendemos aqui por “taxonomia do cinismo” um estudo que não se limite a

apresentar o cinismo como mais uma escola helênica que ganha novos formatos no decorrer

da história dos discursos (como na época das luzes e no chamado Nietzsche “maduro”). Com

efeito, pretendemos esmiuçar os motivos e as condutas que podem ser entendidos como uma

espécie de “arquétipo” cínico e, na mesma esteira, apresentar em que medida este “arquétipo”

permeia várias práticas e formas discursivas da cultura europeia-ocidental. Sendo assim,

conceber uma taxonomia do cinismo significará apurar o modus operandi da racionalidade

cínica. Ao explorar as diversas facetas desta racionalidade, pretendemos demostrar a sua

conformidade com a dialética do esclarecimento. É justamente com o intuito de compreender

as nuanças desta racionalidade que cunhamos a noção de “dialética cínica”.4

À primeira vista, fazer do cinismo um objeto de estudo com o intuito de esmiuçar a

história do seu modus operandi pode parecer um empreendimento vago. Todavia, quando

Foucault nos diz que o cinismo faz parte de uma “experiência ética fundamental do

ocidente”5, defendendo ao mesmo tempo que é possível desenhar uma “história do cinismo”

que implica, é claro, “formas diversas, práticas diferentes, estilos de existência modulados de

acordo com esquemas diferentes”6, ele nos dá a garantia de adentrar um terreno sólido.

3 Como bem observa Sharon A. Stanley: “Sloterdijk’s masterful study was deeply rooted in his German context,

taking up German historical experiences and philosophical dilemmas largely adopted from the tradition of

German critical theory.” STANLEY, SHARON A. The French Enlightenment and the Emergence of

Modern Cynicism. Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 3. 4 Como se pode perceber pelo termo “dialética”, a noção que cunhamos já carrega em si uma problematização

entre a razão cínica e a dialética do esclarecimento. 5 FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. São Paulo: Editora WMF

Martins Fontes, 2011, p. 253. 6 Ibid., p. 157.

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Ademais, continua ele, seria possível então “mostrar a existência permanente de algo que

pode aparecer como o cinismo através de toda a cultura europeia”7. Nesse sentido, seguiremos

a indicação de Foucault de analisar a “história do cinismo” não como a história de uma

“doutrina”, mas muito mais como uma análise das “atitudes e maneiras de ser”.8

Além disso, o filósofo francês, ao dedicar os últimos anos de sua vida ao estudo do

cinismo, percebeu a dificuldade que é “defini-lo”. Ora, o estado da arte nos mostra que

sempre houve o problema de como “identificar o cinismo”9. Não obstante essa dificuldade,

Foucault não é o único a dar um lugar imponente ao cinismo no interior da cultura europeia.

Estudiosos do tema chegam inclusive a afirmar que o cinismo seria “a ramificação mais

original e influente da tradição socrática na Antiguidade.”10

Diante disso, cabe então

perguntar: como o cinismo poderia ser tão influente se ele ganha tão pouco destaque nos

grandes manuais de história da filosofia?

Para além do fato de que o cinismo é o “primo pobre da história da filosofia antiga”

(dado que a “soma de estudos que lhe foi consagrada é ridiculamente magra, se comparada

com a concernente ao epicurismo, ao estoicismo e até ao ceticismo”11

), deve-se ter em mente

também que a tarefa de fazer dele um objeto de estudo sempre encontrará dificuldade no que

diz respeito ao mapeamento de suas fontes. Este é um ponto reconhecido por todos os que se

debruçam sobre o tema. Aliás, um aspecto digno de nota é que “o estudo do cinismo –

diferentemente, digamos, do estudo do platonismo – é inseparável do estudo da sua

recepção.”12

Este aspecto se torna claro quando lembramos que a principal fonte sobre o

cinismo antigo é a obra de Diógenes Laércio (“Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres”13

). Ou

seja, a principal fonte sobre o cinismo já é uma etapa da sua recepção – ou melhor, podemos

dizer que o cinismo é a sua própria recepção.

Não obstante as dificuldades que se apresentam, no que diz respeito aos mais recentes

estudos sobre o cinismo em um registro filosófico, os dois grandes marcos que vem à tona

7 Ibid.

8 Ibid., p. 156.

9 Cf. GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico na

Antiguidade e o seu legado. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 31-38. 10

Ibid., p. 11. 11

À vista disso, Frédéric Gros localiza o estudo do “último” Foucault como um grande avanço para amplificar

na França o interesse por “essa corrente que permaneceu marginalizada”. Cf. GROS, Frédéric. Situação do

curso. In: FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. São Paulo: Editora

WMF Martins Fontes, 2011, p. 310. 12

Cf. GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico na

Antiguidade e o seu legado. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 24. 13

O livro VI de Diógenes Laércio é intitulado “A escola cínica” e é inteiramente dedicado ao cinismo. Neste

livro ele apresenta em sequência as figuras de Antístenes, Diógenes, Mônimos, Onesícritos, Crates, Metrócles,

Hiparquia, Mênipos e Menêdemos – bem como traços importantes da filosofia destes cínicos. Cf. LAÉRCIO,

Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1977.

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são, claro, o livro do próprio Sloterdijk (“Crítica da razão cínica”) e o de Foucault (“A

coragem da verdade”). Por outro lado, em um registro historiográfico, as grandes referências

são “A History of Cynicism: From Diogenes to the 6th

century A. D.” de Donald Dudley, “Der

Kynismus des Diogenes und der Begriff des Zynismus” de Heinrich Niehues-Pröbsting e um

livro organizado por Marie-Odile Goulet-Cazé e Bracht Branham que reúne vários ensaios

sobre o cinismo e leva o título “Os cínicos: O movimento cínico na Antiguidade e o seu

legado”. Este último é a leitura obrigatória para a introdução ao tema do cinismo, pois ele nos

oferece diferentes perspectivas de vários autores sobre a recepção do cinismo em diversas

épocas.

Não se pode deixar de mencionar também o livro de Sharon Stanley, intitulado “The

French Enlightenment and the Emergence of Modern Cynicism”. Da mesma forma como os

livros citados acima, ele também é um grande marco na história da recepção do cinismo –

dado que é um dos estudos mais profundos sobre os elos entre a filosofia francesa do período

das luzes e o cinismo. Todavia, a riqueza do seu trabalho está em não se limitar a apontar os

momentos em que os filósofos franceses do século XVIII meditaram deliberadamente sobre a

relação entre as suas reflexões filosóficas e o cinismo antigo. O que torna o seu estudo de

grande relevância é, com efeito, argumentar que algumas das características do iluminismo

providenciaram um solo fértil para o advento do cinismo moderno.14

Desta maneira, Stanley

está aprofundando um tema que já havia sido lançado por Louisa Shea em seu “The Cynic

Enlightenment: Diogenes in the Salon” e defendendo que na filosofia do iluminismo seria

possível “refletir sobre uma constelação de crenças e práticas que poderíamos identificar

como cinismo”15

. É com vista para esse ponto que ela, em certo sentido indo na mesma rota

de Sloterdijk, cunha a noção de “cinismo esclarecido” [“enlightenment cynicism”].16

Se seguirmos de forma atenta o caminho delineado pela historiografia, podemos

enumerar tendências e pensadores que adotaram uma postura cínica, endossaram o seu

discurso ou colocaram em prática motivos cínicos. É por isso que, doravante, apresentaremos

rapidamente esse cenário historiográfico – este se revela como a nossa primeira tentativa de

delimitar uma história do cinismo.

Em uma lista rápida que segue a tradição, podemos dizer que, na Antiguidade grega,

Antístenes, Diógenes de Sínope e Crates formam o que é considerado a “matriz” do cinismo

(entendido aqui enquanto uma filosofia helênica que emerge, entre outras coisas, a partir de

14

Cf. STANLEY, SHARON A. The French Enlightenment and the Emergence of Modern Cynicism.

Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 7. 15

Ibid. 16

Cf. Ibid., p. 14.

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um diálogo íntimo com o socratismo). Diógenes de Sínope, em especial, é considerado o

grande modelo para os cínicos e cinismos posteriores – o seu estilo polêmico e as suas frases

mordazes se tornariam uma marca registrada. Chamado pelos atenienses de “o cão”, ele

buscou estabelecer o cinismo como uma “filosofia prática”17

, é por esse motivo que costuma-

se estipular a razão pela qual ele não se dedicou à tarefa de escrever tratados filosóficos. Um

dos principais motores dessa sua filosofia era a chamada prática da “parresía”, que, grosso

modo, quer dizer a “fala franca”18

– em suma, o “parresiasta” (ou seja, o cínico) é aquele que

desvela aquilo que a cegueira dos homens não os permite enxergar.19

Diógenes ficou muito

conhecido por defender que, enquanto um indivíduo verdadeiramente feliz vive de acordo

com a physis (que costuma ser traduzida por “natureza”20

), os infelizes e ignorantes vivem de

acordo com o nomos (que quer dizer “lei”, “convenção” ou “norma”.) O que ele quer dizer a

partir da ideia de uma vida que siga a physis é que uma vida feliz necessita de muito pouco e,

por conseguinte, a autossuficiência é uma virtude a ser buscada caso se queira evitar os

caprichos da “fortuna”. A sua crítica ao nomos deixa transparecer o eudemonismo e, logo, a

ética cínica: onde fica estabelecido que as leis sociais que regem a polis ou qualquer

sociedade são de sobremaneira superficiais e, por isso, não são capazes de conduzir os

indivíduos à verdadeira felicidade. Em linhas gerais, o nomos seria uma espécie de ilusão que

afasta os indivíduos de uma vida virtuosa regida pela physis. O grosso do material que nos foi

legado desta matriz cínica foi compilado por Diógenes Laércio no livro VI de seu “Vidas e

doutrinas dos filósofos ilustres”.

Seguindo com a cronologia, entramos no Império Romano. Os romanos viveram uma

relação intensa com o cinismo (principalmente em função de sua relação de “amor e ódio”

com o estoicismo – a escola helênica que alcançou grande popularidade no período imperial).

Um dos exemplos paradigmáticos da manifestação das práticas cínicas nesse período é, sem

dúvida, a sátira menipéia – atividade literária “sério-cômica” que encontra o seu auge nos

escritos de Luciano de Samósata21

. Pode-se dizer que, assim como Diógenes, Luciano foi um

17

DOBBIN, Robert. Anecdotes of the Cynics. Great Britain: Penguin Books, 2016, p. 14. 18

Foucault caracteriza a parresía da seguinte maneira: “A parresía é, portanto, em duas palavras, a coragem da

verdade naquele que fala e assume o risco de dizer, a despeito de tudo, toda a verdade que pensa, mas é também

a coragem do interlocutor que aceita receber como verdadeira a verdade ferina que ouve.” FOUCAULT,

Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,

2011, p. 13. 19

Cf. Ibid., p. 16. 20

Heidegger criticou veementemente a tradução latina do termo physis por “natureza”. Cf. HEIDEGGER,

Martin. Introdução à metafísica. Rio de janeiro: Tempo brasileiro, 1978, p. 91, 128, 129 e 209. 21

Não obstante, não podemos esquecer também a importância de Epicteto – que é um estoico que também tem

uma relação ambígua com o cinismo. Sobre o tema, Cf. GRIFFIN, Miriam. Cinismo e romanos: atração e

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dos expoentes que conseguiu levar o discurso cínico às últimas consequências – uma vez que

ele era “tanto um cínico como um satirizador dos cínicos”.22

Já o período medieval viveu um grande diálogo tácito com o cinismo. O cristianismo,

ou, mais precisamente, as ordens dominicana e franciscana, encontraram no ideal de

mendicância, da vida simples e da completa indiferença a qualquer espécie de luxo – isto é,

nos tópicos marcantes da ética e da “estética da existência” cínica23

– os grandes vetores de

legitimação do seu ascetismo religioso.24

Com o crescente abrandamento do paganismo dos

antigos gregos, o monaquismo toma a imagem de Diógenes como um modelo de perfeição

moral e espiritual a ser seguido.

Como sabido, o cinismo também rendeu grandes frutos ao Renascimento. Para citar

um bom exemplo, basta lembrar a “Utopia” de Thomas More. Neste livro, More retoma o

estilo “sério-cômico” característico da sátira menipéia – o estilo distintivo do cinismo que

ganha novo ímpeto no período renascentista. Ademais, como bem constatou Daniel Kinney:

“há muito para ser dito sobre a Utopia como uma invenção cínica.”25

Seguindo com a nossa breve digressão, o uso dos motivos e práticas cínicas continuam

a sua marcha no período das luzes – e é justamente nesse período que essa história começa a

de fato ser do interesse da nossa pesquisa. Vladimir Safatle constata com agudeza que “há

uma complexa história que envolve a recuperação dos motivos do cinismo antigo pelo

Iluminismo francês.”26

Ora, existem vários estudos que assinalam a importância da filosofia

do iluminismo para a “retomada” do cinismo. Dentre eles, os mais consideráveis são o já

mencionado “The French Enlightenment and the Emergence of Modern Cynicism” de Sharon

Stanley e o excelente artigo de Heinrich Niehues-Pröbsting, intitulado “A recepção moderna

do cinismo: Diógenes no Iluminismo”. O interessante destes estudos é que eles não se limitam

repulsa. In: GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico na

Antiguidade e o seu legado. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 211-226. 22

NIEHUES-PRÖBSTING, Heinrich. A recepção moderna do cinismo: Diógenes no Iluminismo. In:

GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico na Antiguidade e o

seu legado. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 377. Como ficará claro mais adiante, essa sátira do cínico por

ele mesmo faz parte da dinâmica trágica do seu discurso, ou seja, da sua “dialética”. 23

Foucault chama os franciscanos de “os cínicos da cristandade medieval”. FOUCAULT, Michel. A coragem

da verdade: o governo de si e dos outros II. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 160. Sobre a

noção de “estética da existência” cínica, conferir: Ibid., p. 141. 24

Cf. Ibid., p. 160-161. E também: MATTON, Sylvain. Cinismo e cristianismo da Idade Média ao

Renascimento. In: GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico

na Antiguidade e o seu legado. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 265-290. 25

KINNEY, Daniel. Herdeiros do Cão. Identidade cínica na cultura medieval e renascentista. In: GOULET-

CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico na Antiguidade e o seu legado.

São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 351. 26

SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 49.

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a simplesmente apresentar pontos de contato entre o iluminismo e o cinismo27

. Com efeito, a

tese central de Stanley é que uma nova forma de cinismo emerge no iluminismo francês, e

Niehues-Pröbsting, por sua vez, defende que o estudo da recepção do cinismo é fundamental

para uma melhor compreensão tanto do iluminismo como do contra-iluminismo.28

Para Niehues-Pröbsting, seria no entendimento do cinismo que os filósofos e

pensadores do iluminismo perceberiam os perigos da razão ser pervertida – quer dizer, o

perigo da razão atingir um grau tão alto de esclarecimento que seria capaz de demostrar a

irracionalidade dos seus próprios protocolos29

– nas suas palavras: “o iluminismo toma

consciência dessa ameaça para si mesmo por conta de sua afinidade com o cinismo”.30

Além

disso, apesar de ser Rousseau quem foi alcunhado por seus contemporâneos de o “novo

Diógenes”31

, é digno de nota que tanto Stanley como Niehues-Pröbsting apontam a obra de

Denis Diderot (mais especificamente “O sobrinho Rameau”) como o exemplo paradigmático

do acento cínico da razão esclarecida. Endossando o argumento desses dois autores, Safatle

nos diz que foi Diderot quem percebeu que, na aurora das luzes, “uma crítica inspirada nos

móbiles do cinismo grego poderia nos levar a um impasse.”32

– ora, é justamente este impasse

que visamos expor com a nossa noção de “dialética cínica”.

Aliás, não é por acaso que é justamente “O sobrinho de Rameau” o exemplo

paradigmático do cinismo no iluminismo francês – afinal, esta obra é um “diálogo-filosófico”.

Mais especificamente, pode-se dizer que é justamente pelo cinismo ser uma “filosofia prática”

– que se coloca em uma posição contrária a exposição filosófica por meio de tratados – que

ele encontra na narrativa literária uma forma adequada de exposição. Essa perspectiva nos

ajuda a caminhar para a parte final dessa breve história da recepção do cinismo: quer dizer,

não podemos deixar de mencionar a obra de Nietzsche, dado que o próprio estilo de escrita do

filósofo alemão é uma questão filosófica em si mesma33

. Não é equivocado afirmar que o

estilo aforístico e literário nietzschiano é uma reprodução dos motivos cínicos. Com efeito,

Nietzsche trabalha em cima dos aspectos formais do cinismo para criar um espaço de crítica

27

Pontos estes que seriam, dentre os mais evidentes, o cosmopolitismo, a autonomia intelectual, a descrença nas

práticas religiosas, o ideal de liberdade, a rejeição ao senso comum a partir de uma reflexão crítica, entre outros. 28

Cf. NIEHUES-PRÖBSTING, Heinrich. A recepção moderna do cinismo: Diógenes no Iluminismo. In:

GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico na Antiguidade e o

seu legado. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 363. 29

Como se pode perceber, este é um ponto central da dialética do esclarecimento da forma como analisada por

Adorno e Horkheimer. 30

Ibid. 31

Cf. Ibid., p. 370. 32

SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 52. 33

Derrida foi um dos que assinalou a importância de se levar em questão o estilo de escrita de Nietzsche.

Conferir: DERRIDA, Jacques. Esporas: Os estilos de Nietzsche. Rio de Janeiro: NAU, 2013.

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às filosofias que se reduzem a modos de exposição convencionais. Ademais, o autor de

“Assim falou Zaratustra” é considerado por muitos o responsável pela eclosão de um suposto

“neo-cinismo” – assim como pelo desvelamento do alicerce cínico do niilismo europeu.34

Não são poucas as vezes que Nietzsche demostra a sua veia cínica, por exemplo, ele

começa o seu livro “A vontade de poder” (publicado apenas postumamente) com a seguinte

frase: “Grandes coisas exigem que nos calemos a seu respeitou ou que falemos com grandeza:

grandeza quer dizer: com inocência, – cinicamente.”35

Na mesma esteira, podemos mencionar

também uma passagem bem conhecida de “Além do bem e do mal”, em que ele nos diz em

seu característico tom aforístico que “o cinismo é a única forma pela qual as almas vulgares

tocam de leve naquilo que é a honestidade; e o homem superior tem de aguçar seus ouvidos

para todo o cinismo grosseiro ou refinado”.36

Além de tudo, não podemos esquecer a clara referência a Diógenes que Nietzsche faz

em um de seus textos mais famosos, a saber: o parágrafo 125 da “A gaia ciência”, intitulado

“O homem louco”. Não custa lembrar que, nesse texto, o personagem que anuncia a “morte

de Deus” acende uma lanterna em plena luz do dia para procurar Deus. Ou seja, exatamente

como Diógenes fazia em Atenas. No entanto, este último procurava um “homem” (o seu

intuito era ridicularizar a moral reinante na polis, dizendo que, em função dela, ninguém ali

vivia conforme à physis). A figura do “homem louco” nietzschiano é fundamental porque

demostra que o filósofo alemão não tinha apenas admiração e um interesse histórico-

filológico pelo cinismo, com efeito, pode-se dizer que ele incorporou vários de seus

preceitos.37

Diga-se de passagem, é revelador que Nietzsche chame sua personagem de

“homem louco”, dado que o próprio Platão se referia a Diógenes como um “Sócrates

enlouquecido”.38

Por fim, não se pode desconsiderar também o recente interesse pelo estudo dessa

recepção. Quer dizer, consideramos aqui que as mais novas análises sobre a recepção do

cinismo também formam uma etapa relevante dessa história – principalmente para os fins da

34

Sobre a questão da filosofia de Nietzsche como um “neo-cinismo”, conferir: NIEHUES-

PRÖBSTING, Heinrich. Der „Kurze Weg“: Nietzsches „Cynismus“. In: Archiv für Begriffsgeschichte, vol.

XXIV, caderno 1, Bonn, 1980, p. 121. 35

NIETZSCHE, Friedrich. A vontade de poder. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p. 23. 36

Id. Além do bem e do mal. Porto Alegre: L&PM, 2008, p. 52. (Parágrafo 26). 37

Cf. CARVALHO, Daniel Filipe. Nietzsche e a lanterna de Diógenes. In: Artefilosofia, Ouro Preto, n.13, p.

3-16, dezembro 2012. E também: NIEHUES-PRÖBSTING, Heinrich. Der „Kurze Weg“: Nietzsches

„Cynismus“. In: Archiv für Begriffsgeschichte, vol. XXIV, caderno 1, Bonn, 1980, p. 103-122. 38

Sobre a referência de Platão a Diógenes de Sínope como “Sócrates enlouquecido”, conferir: NIEHUES-

PRÖBSTING, Heinrich. A recepção moderna do cinismo. Diógenes no Iluminismo. In: GOULET-CAZÉ,

Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico na Antiguidade e o seu legado. São

Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 363.

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nossa pesquisa. Os marcos dessa etapa mais recente são os já citados “Der Kynismus des

Diogenes und der Begriff des Zynismus” [“O cinismo de Diógenes e o conceito moderno de

cinismo”] (1979) de Heinrich Niehues-Pröbsting, “Crítica da razão cínica” (1983) de

Sloterdijk e “A coragem da verdade” (1983-1984) de Foucault e, por último, o hodierno “The

Making of Modern Cynicism” (2007) de David Mazella.

Esse sucinto mapeamento histórico que delimita a recepção do cinismo é importante

para apresentar uma diferenciação conceitual que marca de forma significativa a história do

cinismo: a diferenciação entre os conceitos de “Kynismus” e “Zynismus”39

. Essa marca surge

no mundo de língua alemã e praticamente se limita a este meio40

, todavia, ela guarda o mérito

de abrir o espaço para o que ficou conhecido como o “cinismo moderno”. Deste modo,

podemos dizer que ela introduz o debate sobre a retomada do cinismo a partir do período das

luzes. Em linhas gerais, o Kynismus seria “exclusivamente a filosofia de Antístenes e

Diógenes e de seus sucessores clássicos”. E o Zynismus, por sua vez, seria “a atitude que não

reconhece nada como sagrado e que insulta valores, sentimentos e o decoro

provocativamente, com o sarcasmo mordaz, ou mesmo por meio de indiferença deliberada”.41

De tal maneira, quando Sloterdijk define o cinismo como “falsa consciência esclarecida”, ele

está se referindo ao “Zynismus”.

Pode-se dizer que essa diferenciação se tornou clássica a partir do livro “Der

Kynismus des Diogenes und der Begriff des Zynismus” de Niehues-Pröbsting. Não obstante a

sua pertinência42

, visamos aqui problematizá-la. Ou melhor, visamos problematizar em última

instância a atitude que vemos, por exemplo, na “Critica da razão cínica” de Sloterdijk de

idealizar o suposto cinismo antigo em detrimento do cinismo moderno. Mais especificamente,

visamos mostrar que, do mesmo modo que no interior do esclarecimento já se encontra o seu

poder de auto alienação (como argumentam Adorno e Horkheimer na “Dialética do

esclarecimento”), nos pressupostos do cinismo antigo (Kynismus) já estão dadas as condições

39

Cf. NIEHUES-PRÖBSTING, Heinrich. Der „Kurze Weg“: Nietzsches „Cynismus“. In: Archiv für

Begriffsgeschichte, vol. XXIV, caderno 1, Bonn, 1980, p. 115-116. 40

Cabe aqui fazer uma breve nota sobre a questão que Foucault nos deixou como legado, dado que ele faleceu

antes de pormenorizá-la. Quer dizer, ele constata que é no seio da filosofia alemã contemporânea que surge a

“problematização do cinismo em suas formas antigas e modernas”, deste modo, ele afirma que é necessário

investigar “por que e em que termos os filósofos alemães contemporâneos colocaram esse problema”. Cf.

FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. São Paulo: Editora WMF

Martins Fontes, 2011, p. 157 e 169-170. 41

NIEHUES-PRÖBSTING, Heinrich. A recepção moderna do cinismo. Diógenes no Iluminismo. In:

GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico na Antiguidade e o

seu legado. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 361. 42

Até mesmo Foucault, que está apartado da discussão que ocorre no seio da filosofia alemã contemporânea,

adota essa diferenciação, conferir: FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros

II. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 156-157 e 169-170.

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364

de possibilidade para o cinismo moderno (Zynismus). No nosso entender, o cinismo moderno

é o cinismo antigo levado às últimas consequências. É com vistas para esse ponto que

visamos defender que o próprio cinismo, ou a racionalidade cínica, opera a partir de uma

dinâmica trágica43

.

Na nossa perspectiva, a racionalidade cínica consegue impor a sua manutenção na

medida em que busca, em uma atitude deliberadamente sério-cômica, “pular a própria

sombra”. Isto é, o cinismo avança em uma dinâmica trágica dado que é preciso “desvalorizar

e desprezar a independência cínica quando ela própria se torna um valor aceito e

respeitado”44

. Hegel já havia apontado o caminho para a percepção dessa dinâmica do

cinismo ao escrever que “Diógenes no seu tonel está condicionado pelo mundo que procura

negar”.45

É por esse motivo que afirmamos mais acima que os escritos de Luciano de

Samósata são um exemplo paradigmático do discurso cínico, pois ele é um cínico que, ao

mesmo tempo, satiriza o cinismo. Assim, pela lógica das práticas discursivas do cinismo, o

cínico é verdadeiramente cínico ao ironizar o seu próprio cinismo.

Na nossa perspectiva, a atitude cínica de querer “pular a própria sobra” é, com efeito,

uma estratégia de manutenção. Com isso, os seus postulados se tornam metalinguísticos:

como no caso do principal motor da obra do chamado Nietzsche “maduro”, isto é, o seu lema

de “transvaloração de todos os valores”. Este leitmotiv nietzschiano é um ornato cínico por

excelência – como nos mostra Niehues-Pröbsting em seu artigo “Der „Kurze Weg“:

Nietzsches „Cynismus“” [“O ‘caminho mais curto’: O ‘cinismo’ de Nietzsche”]46

. Sloterdijk,

que é nitidamente um leitor de Niehues-Pröbsting, também corrobora esse ponto de vista ao

escrever que Nietzsche “sabia muito bem que o seu grito de guerra filosófico: ‘transvaloração

de todos os valores’ tinha origem num fragmento característico da estratégia de protesto de

Diógenes de Sínope: trocar os valores da moeda”.47

A partir desta perspectiva, podemos dizer

que o constante exercício da filosofia nietzschiana de inverter todos os valores e ir na

contramão de toda espécie de conduta moral cristalizada pelo senso comum é, portanto, uma

43

Usamos aqui o adjetivo “trágico” não para fazer alusão ao “gênero dramático”, isto é, a tragédia. Na verdade,

usamos o termo “trágico” para clarificar a dinâmica de manutenção do cinismo que consiste em negar a si

mesmo. Isto é, visamos mostrar que o cinismo mantém-se ao negar ou ao ironizar a si próprio – eis o seu aspecto

trágico: eis a dialética cínica. 44

NIEHUES-PRÖBSTING, Heinrich. A recepção moderna do cinismo. Diógenes no Iluminismo. In:

GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico na Antiguidade e o

seu legado. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 381. 45

HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito., cit., par. 524, apud SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência

da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 51. 46

Cf. NIEHUES-PRÖBSTING, Heinrich. Der „Kurze Weg“: Nietzsches „Cynismus“. In: Archiv für

Begriffsgeschichte, vol. XXIV, caderno 1, Bonn, 1980, p. 120-121. 47

SLOTERDIJK, Peter. O quinto “Evangelho” de Nietzsche: É possível melhorar a Boa Nova?. Rio de

Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004, p. 69.

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motivação cínica. Nietzsche encontrou uma forma de manutenção do seu discurso filosófico a

partir dessa dinâmica paradoxal – mais uma vez, não custa enfatizar, é essa dinâmica que

denominamos “dialética cínica”.

Convêm destacar que Foucault chegou muito perto de desenvolver o que

denominamos aqui “dialética cínica”. Em seu último curso dado no Collège de France48

, ele

tentou definir o cinismo como uma “espécie de careta que a filosofia faz para si mesma, esse

espelho quebrado em que o filósofo é ao mesmo tempo chamado a se ver e a não se

reconhecer. É esse o paradoxo da vida cínica.”49

Porém, como sabido, devido ao seu

falecimento, Foucault não chegou a desenvolver essas ideias.

É importante destacar também que Vladimir Safatle, seguindo o mesmo tom de

Foucault, deu mais um passo na análise desse “paradoxo da vida cínica”. Em seu texto

intitulado “Was ist Zynismus?” [“O que é cinismo moderno?”]50

, ele constata que:

O cinismo é uma contradição posta que é, ao mesmo tempo, contradição resolvida ou, antes,

aproveitando a formulação de Žižek, uma estranha “discordância legitimada”. Este é o ponto

realmente central: compreender como é possível ao cinismo sustentar-se como essa

paradoxal discordância legitimada.51

Como se pode perceber, não foi por acaso que começamos o nosso texto citando a

definição do cinismo dada por Sloterdijk – isto é, o cinismo como “falsa consciência

esclarecida”. Com efeito, ele está apontando para a dinâmica dessa “paradoxal discordância

legitimada” característica do cinismo. De fato, Sloterdijk admite que essa caracterização é

eminentemente cínica, pois, como ele mesmo diz: “é lógico que se trata de um paradoxo”52

.

Diante disso, podemos perceber que o discurso cínico é sempre caracterizado, tacitamente ou

não, como um discurso paradoxal – ou, como dissemos mais acima, um discurso que tenta

“pular a própria sombra”. Em suma, é esse fenômeno “paradoxal” que denominamos

“dialética cínica”. Pormenorizar este movimento dialético que opera entre o cinismo antigo e

o cinismo moderno é a tarefa que colocamos como eixo central de nossa futura tese – cabe

dizer aqui que nossa pesquisa está apenas no início, logo, este é apenas o primeiro passo de

um longo caminho a ser percorrido.

48

Portanto, um curso que passa a ser considerado como o seu “testamento filosófico”. Cf. GROS, Frédéric.

Situação do curso. In: FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. São

Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 303. 49

Ibid., p. 238. 50

Título em alemão no original, o que ratifica a relevância do tema para o debate filosófico alemão

contemporâneo – como assinalou Foucault, conferir a nota 40 mais acima. 51

SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 84. 52

SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. São Paulo: Estação Liberdade, 2012, p. 34.

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Antes de encerrar, resta lembra que o “esclarecimento” exposto nos moldes de Adorno

e Horkheimer possui uma dimensão trágica na medida em que está fundado numa dinâmica

(ou, caso prefiram, numa dialética) que tem como próprio fim a incessante reprodução dos

meios que possibilitam a manutenção dos mecanismos de dominação. Em síntese, o

esclarecimento possui uma lógica trágica por possuir um fim em si mesmo, “emulando a

máquina que ele próprio produz para que ela possa finalmente substituí-lo. O esclarecimento

pôs de lado a exigência de pensar o pensamento”.53

Fazendo a ponte entre esta temática e o cinismo, pode-se argumentar que a lógica do

esclarecimento avança a partir do exercício da racionalidade cínica. Como dissemos algumas

linhas mais acima, o cinismo seria uma “paradoxal discordância legitimada”, que garante a

sua manutenção a partir do constante velamento e desvelamento do seu saber. Sendo assim, a

sabedoria cínica é uma sabedoria que opera a partir de uma dinâmica trágica porque, para ser

verdadeiramente cínica, em certo momento precisará ironizar a si mesma. Deste modo, o fato

a ser levado em conta é que o esclarecimento encontra nesse modelo de racionalidade a forma

para a sua própria manutenção: o esclarecimento se converte em cinismo na medida em que

ele serve-se da racionalidade cínica para garantir a sua manutenção. Assim, o cinismo é o

motor da razão esclarecida. Em outros termos, o cinismo é o modus operandi da dialética do

esclarecimento: a cultura esclarecida encontra os seus meios de subsistência na racionalidade

cínica.

Enfim, podemos dizer que tornar-se verdadeiramente esclarecido significa perceber os

limites da própria razão (por isso a primeira crítica de Kant é um ponto expressivo do

esclarecimento: Koselleck expõe esse fato de maneira clara ao afirmar que, na “Crítica da

razão pura”, a “crítica volta-se contra a própria razão”54

). Em última instância, o cínico se

torna uma figura do esclarecimento por excelência: um indivíduo plenamente esclarecido

torna-se um cínico, pois ele percebe a motivação autocentrada das diretrizes normativas da

razão. Diante deste cenário, é possível amplificar o comentário de Niehues-Pröbsting de que o

esclarecimento toma consciência da ameaça que ele fornece para si mesmo por conta da sua

“afinidade com o cinismo”.55

A racionalidade cínica seria a lógica paradoxal da dialética do

esclarecimento. Cinismo e esclarecimento caminham lado a lado.

53

ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p.

33. 54

KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise: Uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de

Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 1999, p. 96. 55

Cf. NIEHUES-PRÖBSTING, Heinrich. A recepção moderna do cinismo: Diógenes no Iluminismo. In:

GOULET-CAZÉ, Marie-Odile & BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos: O movimento cínico na Antiguidade e o

seu legado. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 363.

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Em resumo, a noção de esclarecimento como apresentada por Adorno e Horkheimer

nos possibilita defender que o cinismo não seria uma saída para a dialética do esclarecimento,

como tenta argumentar Sloterdijk na “Crítica da razão cínica”. Com efeito, o cinismo faz

parte da “patogênese” (usando aqui um termo caro a Koselleck) da dinâmica trágica do

esclarecimento. Em última instância, nos protocolos do cinismo antigo (Kynismus) já

podemos vislumbrar a lógica esclarecida. Enfim, é chamando a atenção para esse parentesco

que cunhamos a noção de “dialética cínica”.

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